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Publicado primeiramente em: Filosofia Política Contemporânea. Manfredo Oliveira et al. (orgs.). Petrópolis: Vozes, 2003, pp. 251-270. A Ideia de Liberalismo Político em Rawls: Uma Concepção Política da Justiça* Theresa Calvet de Magalhães** ([email protected]) Para Odílio Alves Aguiar Como é possível que exista e mantenha-se ao longo do tempo uma sociedade democrática estável e justa [grifos nossos], composta por cidadãos livres e iguais, que permanecem profundamente divididos entre si por doutrinas [grifo nosso] religiosas, filosóficas e morais razoáveis [grifo nosso], incompatíveis entre si?1 Segundo Rawls, esta * A primeira versão deste texto foi apresentada na Mesa Redonda Estado, Democracia e Cultura, ciclo de conferências promovido pela Fundação João Pinheiro no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, a 28 de maio de 1990. Nove anos mais tarde, uma versão inteiramente modificada foi apresentada para os alunos da disciplina Teoria Política no Curso de Mestrado em Ciência Política da UFMG, a 17 de novembro de 1999. Agradeço ao Professor Dr. José Eisenberg esse convite e o diálogo contínuo nos dois semestres seguintes que me permitiu retomar e completar este trabalho. ** Professora Adjunto IV do Departamento de Filosofia da UFMG (aposentada desde Agosto de 2003). 1. J. Rawls, Political Liberalism [PL] (1993, 1ª ed.), New York: Columbia University Press, 1996, p. 4 (todas as nossas referências são a esta última edição - a edição paperbackde PL); ver PL, pp. xx, xxvii, 44, 47, 133. Uma sociedade, dizia Rawls, também pode conter doutrinas abrangentes não-razoáveis [unreasonable] e irracionais, e até mesmo loucas, e o problema, então, é o de conter essas doutrinas, ou de as controlar, de tal maneira que não abalem ou destruam a unidade e justiça da sociedade(PL, pp. xviii- xix). Na Introdução à primeira edição de Political Liberalism, Rawls reconhece que deve a Wilfried Hinsch (ver o § III de sua Introdução à tradução dos Gesammelte Aufsätze, 1978-1989, de Rawls, Frankfurt/ Main: Suhrkamp, 1992) a sugestão de que o liberalismo político teria de usar, em sua própria formulação, a ideia de uma doutrina compreensiva razoável, enquanto oposta a uma doutrina compreensiva simpliciter (PL, p. xxxiii; ver também PL, p. 59, nota 12). Segundo Rawls, as doutrinas razoáveis possuem três características (e é o que permite sua definição): 1) uma doutrina razoável é, dizia Rawls, um exercício da razão teórica; ela abrange [covers] os principais aspectos religiosos, filosóficos e morais da vida humana, de uma maneira mais ou menos consistente e coerente, ou seja, ela organiza e caracteriza valores reconhecidos de modo que sejam compatíveis entre si e expressem uma visão inteligível do mundo; 2) na medida em que especifica quais são os valores que têm de ser considerados como particularmente importantes, e indica como ponderar esses valores quando conflitam, uma doutrina razoável também é, dizia Rawls, um exercício da razão prática; a razão teórica e a razão prática* (que inclui, enquanto adequado, o racional) são, assim, usadas conjuntamente na formulação de uma doutrina razoável; 3) mesmo não sendo necessariamente fixa e imutável, uma visão compreensiva razoável pertence normalmente, concluía então

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Publicado primeiramente em: Filosofia Política Contemporânea. Manfredo Oliveira

et al. (orgs.). Petrópolis: Vozes, 2003, pp. 251-270.

A Ideia de Liberalismo Político em Rawls:

Uma Concepção Política da Justiça*

Theresa Calvet de Magalhães**

([email protected])

Para Odílio Alves Aguiar

“Como é possível que exista e mantenha-se ao longo do tempo uma sociedade

democrática estável e justa [grifos nossos], composta por cidadãos livres e iguais, que

permanecem profundamente divididos entre si por doutrinas [grifo nosso] religiosas,

filosóficas e morais razoáveis [grifo nosso], incompatíveis entre si?”1 Segundo Rawls, esta

* A primeira versão deste texto foi apresentada na Mesa Redonda “Estado, Democracia e Cultura”, ciclo de

conferências promovido pela Fundação João Pinheiro no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, a 28 de

maio de 1990. Nove anos mais tarde, uma versão inteiramente modificada foi apresentada para os alunos da

disciplina Teoria Política no Curso de Mestrado em Ciência Política da UFMG, a 17 de novembro de

1999. Agradeço ao Professor Dr. José Eisenberg esse convite e o diálogo contínuo nos dois semestres seguintes que me permitiu retomar e completar este trabalho.

** Professora Adjunto IV do Departamento de Filosofia da UFMG (aposentada desde Agosto de 2003).

1. J. Rawls, Political Liberalism [PL] (1993, 1ª ed.), New York: Columbia University Press, 1996, p. 4 (todas

as nossas referências são a esta última edição - a edição “paperback” de PL); ver PL, pp. xx, xxvii, 44, 47,

133. Uma sociedade, dizia Rawls, “também pode conter doutrinas abrangentes não-razoáveis

[unreasonable] e irracionais, e até mesmo loucas”, e o problema, então, é o de conter essas doutrinas, ou de

as controlar, “de tal maneira que não abalem ou destruam a unidade e justiça da sociedade” (PL, pp. xviii-

xix). Na Introdução à primeira edição de Political Liberalism, Rawls reconhece que deve a Wilfried Hinsch

(ver o § III de sua Introdução à tradução dos Gesammelte Aufsätze, 1978-1989, de Rawls, Frankfurt/ Main:

Suhrkamp, 1992) a sugestão de que o liberalismo político teria de usar, em sua própria formulação, a ideia

de uma doutrina compreensiva razoável, enquanto oposta a uma doutrina compreensiva simpliciter (PL, p. xxxiii; ver também PL, p. 59, nota 12). Segundo Rawls, as doutrinas razoáveis possuem três características

(e é o que permite sua definição): 1) uma doutrina razoável é, dizia Rawls, “um exercício da razão teórica;

ela “abrange [covers] os principais aspectos religiosos, filosóficos e morais da vida humana, de uma

maneira mais ou menos consistente e coerente”, ou seja, ela “organiza e caracteriza valores reconhecidos de

modo que sejam compatíveis entre si e expressem uma visão inteligível do mundo”; 2) na medida em que

especifica quais são os valores que têm de ser considerados como particularmente importantes, e indica

como ponderar esses valores quando conflitam, uma doutrina razoável também é, dizia Rawls, “um

exercício da razão prática”; a razão teórica e a razão prática* (que inclui, enquanto adequado, o racional)

são, assim, usadas conjuntamente na formulação de uma doutrina razoável; 3) mesmo não sendo

necessariamente fixa e imutável, uma visão compreensiva razoável pertence normalmente, concluía então

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questão deveria ser formulada de uma maneira mais aguda da forma seguinte: “Como é

possível para aqueles que confessam uma doutrina religiosa que se apóia na autoridade

religiosa, por exemplo, a Igreja, ou a Bíblia, também defenderem uma concepção política

razoável que sustenta um regime democrático justo?” (PL, p. xxxix). Esse problema –o

problema do liberalismo político2– pode ser desdobrado em duas questões fundamentais:

1) Que concepção da justiça seria a mais apropriada para especificar os termos

equitativos [fair terms] da cooperação social entre cidadãos considerados como livres e

iguais, e como membros plenamente cooperadores da sociedade no decurso de toda uma

vida, de uma geração à geração seguinte?

2) Que razões podem ser dadas em favor da tolerância, entendida no seu sentido

geral, dado o fato do pluralismo razoável –o fato de uma pluralidade de doutrinas

compreensivas ou abrangentes razoáveis (que podem ser religiosas e até mesmo não-

liberais), mas conflitantes e incomensuráveis– como resultado normal do exercício da razão

humana sob condições de liberdade (ou seja, no quadro das instituições livres de um regime

democrático constitucional)?3

Rawls, “a uma tradição de pensamento e de doutrina ou, pelo menos, se apóia nela”; embora estável no

decorrer do tempo e não sujeita a mudanças bruscas e inesperadas, uma visão compreensiva razoável tende,

segundo Rawls, “a evoluir lentamente em função do que ela considera, de seu ponto de vista, como boas

razões e como razões suficientes.” (PL, p. 59). Para os propósitos do liberalismo político, essa

caracterização “deliberadamente vaga” (justamente para não correr o risco de ser arbitrária e intolerante) das doutrinas razoáveis é suficiente. Rawls evitou, assim, excluir determinadas doutrinas como não-

razoáveis [unreasonable]: “O liberalismo político considera como razoáveis [counts as reasonable] muitas

doutrinas –religiosas, filosóficas e morais– bem conhecidas e tradicionais, mesmo que não pudéssemos

seriamente admitir tais doutrinas para nós mesmos, porque pensamos que elas dão um peso excessivo a

alguns valores e são incapazes de admitir a importância de outros.” (PL, pp. 59-60).

* Ao seguir a maneira como Kant, em 1788, explicitava essa distinção na sua Kritik der praktischen Vernunft

(Crítica da Razão Prática), Rawls dizia aqui que a razão prática “trata da produção de objetos de acordo

com uma concepção desses objetos – por exemplo, a concepção de um regime democrático justo entendida

como o objetivo do esforço político”, e que a razão teórica “trata do conhecimento de objetos [que são]

dados” (PL, p. 93, e p. 117).

2. O termo “liberalismo político” foi usado por Rawls, em “The Idea of an Overlapping Consensus”, Oxford Journal of Legal Studies, Vol. 7, No. 1 (1987), pp. 23-25, e “The Priority of Right and Ideas of the Good”,

Philosophy and Public Affairs, Vol. 17, No. 4 (1988), pp. 271, 273, 275. Este termo já tinha sido

introduzido nas duas últimas divisões de “Justice as Fairness: Political, not Metaphysical” (Philosophy and

Public Affairs, Vol. 14, No. 3 (1985), pp. 245-251), e encontra-se também em “The Domain of the Political

and Overlapping Consensus”, New York University Law Review, Vol. 64, No. 2 (1989), pp. 233-255.

3. PL, pp. xviii-xix, xxvi, xlii, 3-4, 36-37, 47, 54-55, 135-136, 141, 144, 153. Para Rawls, o fato do

pluralismo razoável não é uma mera condição histórica que pode logo desaparecer, mas é um traço

permanente da cultura pública da democracia, ou é a condição normal da cultura da democracia, dadas as

suas instituições (PL, pp. xxxviii, 36, 129, 216-217; ver também “The Idea of Public Reason Revisited”

[1997], in J. Rawls, Collected Papers. Samuel Freeman (ed.). Cambridge (Mass.): Harvard University

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O liberalismo político de Rawls, que não se confunde com o liberalismo como parte

de uma doutrina moral compreensiva, tenta oferecer uma resposta particular a essas duas

questões fundamentais ao elaborar uma concepção política da justiça4 que se aplica à

estrutura de base da sociedade5, isto é, às principais instituições políticas, sociais e

econômicas de uma democracia constitucional moderna e ao modo como elas se ajustam de

modo a “formar um esquema unificado de cooperação social ao longo do tempo”.6 Essa

concepção da justiça política é independente, na medida em que não é elaborada como uma

doutrina –ela é apresentada independentemente de toda doutrina compreensiva, seja ela

Press, 1999, p. 573). Para a questão de saber como um Estado liberal e democrático pode enfrentar o

desafio do pluralismo cultural, ver W. Kymlicka, Liberalism, Community and Culture (Oxford: Oxford

University Press, 1989), Multicultural Citizenship (Oxford: Clarendon Press, 1995) e W. Kymlicka (ed.),

The Rights of Minority Cultures (Oxford: Oxford University Press, 1995). 4. Se, em 1971, em A Theory of Justice (Cambridge (Mass.): Harvard University Press), Rawls fazia uma

distinção entre o conceito de justiça e as concepções de justiça (ver §1), o que é importante agora, em

Political liberalism, é a distinção entre o termo doutrina, que se refere sempre a visões ou pontos de vista

abrangentes ou compreensivos [comprehensive views], e o termo concepção, que é usado sempre para uma

concepção política e suas partes componentes, tais como a concepção da pessoa como cidadão livre e igual.

O termo ideia é usado por Rawls, em Political Liberalism, como um termo geral e pode referir-se tanto a

concepção, neste sentido restrito, como a doutrina, dependendo do contexto (ver J. Rawls, Political

Liberalism, pp. xxxvii-xxxviii, nota 2; mas ver também p. 14, nota 15). A distinção entre “doutrina”,

“concepção” e “ideia” continua a ser defendida por Rawls em “The Idea of Public Reason Revisited”

(1997) –ver J. Rawls, Collected Papers (1999), p. 573, nota 2. Para transformar a sua teoria da justiça, tal

como foi apresentada em 1971, em uma concepção política da justiça, Rawls reformula, em Political Liberalism, as ideias componentes que formam sua doutrina da justiça como equidade em concepções

políticas (ver, mais especificamente, toda a Primeira Parte [Political Liberalism: Basic Elements] de

Political Liberalism e, na Segunda Parte [Political Liberalism: Three Main Ideas], o segundo capítulo).

Uma concepção política da justiça tem três características principais: embora o seu conteúdo seja dado por

certos ideais, padrões e critérios e que essas normas articulem certos valores (neste caso, valores políticos),

uma concepção política da justiça se aplica somente à estrutura de base de uma democracia constitucional

moderna; a sua aceitação não pressupõe uma visão compreensiva particular, ou seja, uma concepção

política da justiça é apresentada como uma visão independente [a freestanding view]; e as suas ideias

fundamentais são familiares e derivam da cultura política pública de uma sociedade democrática (ver PL,

pp. 11-15).

5. Em Political Liberalism, Rawls presume que essa estrutura de base é a de uma sociedade fechada: “temos de considerá-la como auto-contida [auto-contained] e sem relações com outras sociedades. Os seus

membros só entram nela ao nascer e só saem dela ao morrer. Isso nos permite falar deles como tendo

nascido em uma sociedade onde irão levar [will lead] uma vida completa. Considerar a sociedade como

fechada é uma abstração considerável, que só se justifica na medida em que nos permite focalizar certas

questões fundamentais sem nos deixar distrair por detalhes” [PL, p. 12]. Mas esta concepção política da

justiça foi também elaborada por Rawls para se aplicar ao direito e às práticas da sociedade dos povos

políticos (ver Rawls, The Law of Peoples [1993]. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1999)

6. Ver J. Rawls, Political Liberalism, p. xliii, nota 7, e pp. 11-12, 257-288. Não se trata aqui de um

liberalismo compreensivo, ou seja, do liberalismo como parte de uma doutrina moral compreensiva, tal

como as visões liberais de Kant e de John Stuart Mill (PL, p. xxxix).

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religiosa, filosófica, ou moral7– e formula, partindo das ideias políticas fundamentais

(implícitas na cultura política de uma democracia), os valores políticos essenciais de um

regime constitucional. Como módulo ou componente essencial que se ajusta, de diferentes

maneiras, a várias doutrinas distintas, esta concepção política pode ser a base de um

consenso em favor das instituições democráticas, um consenso proveniente de uma

sobreposição (ou entrecruzamento) de doutrinas razoáveis.

Podemos também formular o problema do liberalismo político da maneira seguinte:

“Como é possível que doutrinas compreensivas profundamente opostas, mas razoáveis,

possam coexistir e todas sustentar a concepção política de um regime constitucional?” (PL,

p. xx). O consenso que Rawls busca –um consenso por sobreposição de doutrinas razoáveis

(an overlapping consensus of reasonable doctrines)– não é um mero modus vivendi, ou

uma feliz convergência de interesses (PL, p. 147). Ou seja, não é suficiente que essas

doutrinas compreensivas razoáveis aceitem um regime democrático meramente como um

modus vivendi: elas têm de aceitar esse regime, dizia Rawls, “como membros de um

consenso por sobreposição razoável” (PL, pp. xxxix-xl). Referindo-se aos cidadãos que

confessam uma doutrina religiosa, Rawls pergunta agora: “Como é possível para cidadãos

que confessam uma doutrina religiosa serem plenamente membros de uma sociedade

democrática8 quando endossam uma estrutura institucional que preenche com sucesso uma

7. Isso significa, dizia Rawls, que a teoria da justiça como equidade “tem de ser entendida, no primeiro

estágio de sua exposição, como uma visão independente [a free-standing view] que expressa uma

concepção política da justiça. Ela não fornece uma doutrina específica, religiosa, metafísica ou

epistemológica, que iria além daquilo que é implicado pela própria concepção política” (PL, p. 144; ver

também PL, p. xliii). Ou seja, a sua tarefa consiste justamente em separar o liberalismo político do

liberalismo “compreensivo” que permanece em competição com outras visões do mundo, sejam elas

religiosas, filosóficas, ou morais. Para Rawls, essa tarefa é inevitável, dizia Ricoeur, “na medida em que a

complexidade crescente do mundo moderno já não oferece nenhuma oportunidade a uma visão substancial

do bem ou a uma visão transcendental do justo de servir de cimento ao laço social”. A única alternativa,

dizia ele, “seria a imposição de uma única visão do mundo por um regime tirânico”. E, nesse sentido, concluía Ricoeur, “a liberdade política, separada de sua matriz “metafísica” (...) aparece como a única saída

razoável [raisonnable] diante da alternativa entre a guerra de todos contra todos e a tirania.” (P. Ricoeur,

“Après Théorie de la justice de John Rawls”, in Le Juste. Paris: Esprit, 1995, pp. 114-115).

8. Como uma sociedade política, uma sociedade democrática não é, e não pode ser, dizia Rawls, uma

comunidade, se entendemos por comunidade uma sociedade governada por uma doutrina compreensiva

comum (ver PL, p. 40, nota 43, e p. 42). O fato do pluralismo razoável exclui uma tal concepção de unidade

social: essa concepção deixou de ser uma possibilidade política para aqueles que aceitam as coerções da

liberdade e tolerância das instituições democráticas. Uma sociedade democrática também não é para Rawls,

e não pode ser, uma associação. Não entramos nela voluntariamente: só entramos em uma sociedade

política particular ao nascer e só saímos dela ao morrer (ver PL, pp. 40-41).

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concepção política liberal da justiça com seus próprios ideais e valores intrínsecos, e

quando não a seguem apenas tendo em vista o equilíbrio das forças políticas e sociais?”

(PL, p. xl). Trata-se, portanto, de um problema que diz respeito à justiça política em uma

sociedade democrática9, e não de um problema que se refere ao bem supremo.

10

Qual seria então a visão sobre a estrutura e o conteúdo de uma concepção política

da justiça capaz de obter o apoio de um consenso por sobreposição de doutrinas razoáveis?

O construtivismo político de Rawls é justamente uma visão sobre a estrutura e o conteúdo

de uma concepção política da justiça:

“(...) os princípios da justiça política (conteúdo) podem ser representados como

resultado de um certo procedimento de construção (estrutura). Nesse

procedimento (...), os agentes racionais, enquanto representantes de cidadãos e

sujeitos a condições razoáveis, selecionam os princípios públicos de justiça para

regular a estrutura de base da sociedade.” (PL, pp. 89-90).

Nessa forma de construtivismo, o que é afinal construído? Rawls responde: “o

conteúdo de uma concepção política de justiça”, ou seja, os princípios de justiça

selecionados pelas partes na posição original. Considerada como um dispositivo analítico

de representação, ou como um dispositivo procedimental de representação (a procedural

device of representation), a própria posição original é construída? Não, responde Rawls,

“ela é simplesmente posta [it is simply laid out]” (PL, p. 103). Dito de outro modo: para

Rawls, a posição original é um dispositivo analítico utilizado para formular uma conjectura.

Que conjectura?

9. Ou ainda, como esclarece Rawls: “O problema do liberalismo político é o de elaborar [work out] uma

concepção política da justiça política para um regime [liberal] democrático constitucional, [uma concepção

política] que uma pluralidade de doutrinas razoáveis, tanto religiosas como não-religiosas, liberais e não-

liberais, pode livremente endossar [endorse]” (PL, pp. xl-xli). Dado o fato do pluralismo razoável na vida

política, esta maneira de apresentar o liberalismo parece muito natural e, por isso mesmo, Rawls estranha que o liberalismo político não tenha sido elaborado mais cedo (ver PL, p. 374, nota 1).

10 A ideia da prioridade do justo sobre o bem já tinha sido defendida por Rawls, em 1971, em A Theory of

Justice. A prioridade do justo sobre o bem não pressupõe, diz agora Rawls, uma concepção particular da

pessoa, nem mesmo a que foi apresentada em A Theory of Justice. Ou seja, a prioridade do justo sobre o

bem não é para Rawls a aplicação da filosofia moral kantiana à política, mas é uma resposta prática ao fato

bem conhecido que as pessoas nas sociedades democráticas modernas de fato discordam sobre o bem. Ela

é apresentada por Rawls, a partir de 1988 (“The Priority of Right and Ideas of the Good in Justice as

Fairness”), como sendo um elemento essencial do seu “liberalismo político”, e tem um papel central na

concepção particular da justiça como equidade, que é, ela mesma, enquanto concepção política, uma forma

desse liberalismo (ver PL, pp. 172-211).

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“A conjectura é que quando perguntamos –Quais são os princípios mais

razoáveis de justiça política para uma democracia constitucional cujos cidadãos

são considerados como livres e iguais, razoáveis e racionais?– a resposta é que

esses princípios são dados por um dispositivo de representação no qual as

partes racionais (enquanto mandatários [trustees] dos cidadãos, um para cada

cidadão livre e igual) são situadas em condições razoáveis e absolutamente

sujeitas a essas condições. Assim, os cidadãos livres e iguais são considerados

como chegando eles próprios a um acordo sobre esses princípios políticos sob

condições que representam esses cidadãos como sendo ao mesmo tempo

razoáveis e racionais.” (PL, p. 381).

O acordo entre as partes acerca dos princípios mais razoáveis de justiça política para

uma democracia constitucional, que se realiza através desse procedimento construtivista,

estabelece uma conexão entre esses princípios políticos e a concepção da pessoa

representada pela posição original. É desse modo, diz Rawls, que o conteúdo dos termos

equitativos de cooperação, para as pessoas assim concebidas, é determinado (PL, p. 305).

Cada cidadão é, assim, equitativamente representado nesse procedimento –um

procedimento através do qual são selecionados os princípios de justiça para regular a

estrutura de base da sociedade – não apenas porque “o procedimento da posição original

situa as partes simetricamente e as sujeita a coações que expressam o razoável”, mas

porque “as partes são representantes racionalmente autônomos cujas deliberações

expressam o racional” (PL, p. 324). Considerar então a teoria da justiça como equidade

como tentando derivar o razoável do racional “é mal interpretar a posição original” (PL, p.

53).

Para Rawls, a posição original é simplesmente um dispositivo analítico, ou seja,

como ele disse logo no início de Political Liberalism, ela “descreve as partes, cada uma das

quais é responsável pelos interesses essenciais de um cidadão livre e igual, como

equitativamente situadas e como chegando a um acordo sujeito a condições que limitam

adequadamente o que elas podem apresentar como boas razões” (PL, p. 25). Rawls recusa

aqui a interpretação, que ele tinha autorizado em A Theory of Justice, segundo a qual a sua

teoria da justiça seria uma parte da teoria da escolha racional (PL, p. 53, nota 7). Na teoria

da justiça como equidade, tal como foi reformulada por Rawls como parte de uma

concepção política da justiça, “o razoável e o racional são considerados como duas ideias

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básicas distintas e independentes” (PL, p. 51). Distintas, porque não se trata de derivar uma

da outra: a teoria da justiça como equidade, Rawls insiste, “não tenta derivar o razoável do

racional” (PL, p. 51). Temos de lembrar aqui que Rawls busca uma concepção política da

justiça para uma sociedade democrática considerada como um sistema de cooperação

equitativo entre cidadãos livres e iguais que, enquanto politicamente autônomos, aceitam

voluntariamente os princípios de justiça, publicamente reconhecidos, que especificam os

termos equitativos da cooperação. No quadro dessa ideia fundamental de sociedade como

um sistema equitativo de cooperação social, o razoável e o racional são ideias

complementares:

“Cada uma delas é um elemento nessa ideia fundamental [a ideia de sociedade

como um sistema equitativo de cooperação social] e cada uma delas relaciona-

se com sua faculdade moral distinta, a capacidade de formar um sentido de

justiça [que é, aqui, a capacidade de respeitar os termos equitativos da

cooperação social] e a capacidade de formar e sustentar uma concepção do

bem. (...). Como ideias complementares, nem o razoável nem o racional podem

existir um sem o outro [can stand without the other]. Agentes meramente

razoáveis não teriam fins próprios que desejassem promover através da

cooperação equitativa; agentes meramente racionais seriam desprovidos do

sentido de justiça e seriam incapazes de reconhecer a validade independente das

pretensões de outros.” (PL, p. 52).11

No contexto de uma concepção política da justiça, Rawls associa, em primeiro

lugar, o razoável com a “disposição [willingness] para propor termos equitativos [fair

terms] de cooperação e para os honrar caso sejam também respeitados por outros”, e, em

segundo lugar, com a “disposição [willingness] para reconhecer os ônus do juízo [the

burdens of judgment] e aceitar suas consequências no uso da razão pública para dirigir o

11. Esta distinção entre o razoável (reasonable) e o racional (rational), que é paralela à distinção feita por

Kant na sua Fundação para a Metafísica dos Costumes [Grundlegung zur Metaphysik der Sitten] (1783),

entre o imperativo categórico (o imperativo de moralidade) e os imperativos hipotéticos (os imperativos

“técnicos” (ou regras) da habilidade e os imperativos “pragmáticos” (ou conselhos) da prudência) (Ak 4,

pp. 414-421), foi defendida por W. M. Sibley em “The Rational Versus the Reasonable”, Philosophical

Review Vol. 62 (1953), pp. 554-560; Rawls afirma não apenas que concorda com a distinção de Sibley, tal

como ela é apresentada de forma resumida, nesse texto, na p. 560, mas que essa distinção é fundamental

para a compreensão de toda a estrutura da justiça como equidade (PL, p. 49, nota 1); ver também J. Rawls,

Justice as Fairness: A Restatement [1989-1990]. Erin Kelly (ed.). Cambridge (Mass.): Harvard University

Press, 2001, p. 7 (nota 6).

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exercício legítimo do poder político em um regime constitucional” (PL, pp. 53-54). O

razoável, Rawls insiste, é público de uma maneira que o racional não o é:

“Isso significa que é através do razoável que entramos enquanto iguais no

mundo público de outros e estamos prontos para propor, ou para aceitar,

dependendo do caso, termos equitativos de cooperação com eles. Esses termos,

postos como princípios, especificam as razões que temos de partilhar e

reconhecer publicamente, uns frente aos outros, como fundando nossas relações

sociais” (PL, p. 53).

O que falta, então, aos agentes racionais “é a forma particular de sensibilidade moral

que está subjacente ao desejo de se engajar na cooperação equitativa [fair cooperation]

enquanto tal, e de fazê-lo em termos que seria razoável esperar que os outros, como iguais,

aprovem” (PL, p. 51). Rawls não presume que o razoável constituiria a totalidade da

sensibilidade moral; mas o razoável inclui, segundo ele, “a parte que está ligada à ideia de

cooperação social equitativa” (PL, p. 51).

Toda a importância de uma concepção política construtivista, dizia Rawls, “reside

em sua conexão com o fato do pluralismo razoável e a necessidade, para uma sociedade

democrática, de assegurar a possibilidade de um consenso por sobreposição em relação a

seus valores políticos fundamentais.” (PL, 90). É justamente porque uma tal concepção

política desenvolve os princípios de justiça a partir das ideias públicas e compartilhadas de

sociedade como um sistema equitativo de cooperação ao longo do tempo, de geração em

geração, e de cidadãos como livres e iguais, que ela pode ser o foco de um consenso por

sobreposição de doutrinas compreensivas razoáveis.

Considerada como uma resposta à primeira questão fundamental –“Que concepção

da justiça seria a mais apropriada para especificar os termos equitativos da cooperação

social entre cidadãos considerados como livres e iguais, e como membros plenamente

cooperadores da sociedade no decurso de toda uma vida, de uma geração à geração

seguinte?”– a teoria da justiça como equidade tenta decidir o conflito entre a tradição

associada a Locke e a tradição associada a Rousseau (um conflito que pertence à própria

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tradição do pensamento democrático)12

não apenas ao propor dois princípios de justiça que

orientam o modo como as instituições de base devem realizar os valores da liberdade e da

igualdade, mas também ao especificar um ponto de vista a partir do qual estes dois

princípios podem ser considerados como sendo mais adequados do que outros à ideia de

cidadãos democráticos vistos como pessoas livres e iguais.13

Segundo Rawls, os dois

princípios de justiça devem ser enunciados da maneira seguinte:

“a. Toda pessoa tem uma pretensão igual [an equal claim]14

a um esquema plenamente adequado de direitos e de liberdades de base iguais, um esquema que seja compatível

com o mesmo esquema para todos; e nesse esquema, o justo valor das liberdades

políticas iguais, e somente destas liberdades, deve ser garantido.

b. As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer a duas condições: primeiro,

devem estar ligadas a posições e cargos abertos a todos, em condições de igualdade

equitativa de oportunidades; e, segundo, devem proporcionar o maior benefício aos

membros menos favorecidos da sociedade.” (PL, pp. 5-6).15

Cada um destes princípios regula ou governa instituições em um domínio particular

“não apenas no que diz respeito aos direitos, liberdades e oportunidades de base, mas

também no que diz respeito às pretensões de igualdade” (PL, p. 6). A segunda parte do

segundo princípio –o princípio de diferença– “acentua o valor dessas garantias

institucionais.”(PL, p. 6). Os dois princípios de justiça –o primeiro tendo prioridade sobre o

12. Ou seja, entre a tradição que atribui um maior peso ao que Benjamin Constant chamava “as liberdades dos

modernos” – ou seja, “a liberdade de pensamento e de consciência, certos direitos fundamentais da pessoa e

o direito de propriedade, assim como o Estado de direito [rule of law]”– e a tradição que privilegia “as

liberdade dos antigos”, isto é, “as liberdades políticas iguais e os valores da vida pública” (PL, p. 5).

13. Para Ricoeur, essa redução do campo de significação da pessoa ao cidadão de uma democracia

constitucional é, de fato, muito “libertante” (“libérante”) -ver P. Ricoeur, “Après Théorie de la justice de

John Rawls”, in Le Juste (1995), p. 115.

14. Ou seja, tem igual direito a esse esquema de direitos e de liberdades de base; Rawls dizia também: “Toda

pessoa tem a mesma pretensão irrevogável a (...) [Each person has the same indefeasible claim to (...)]” (J.

Rawls, Justice as Fairness: A Restatement (2001), p. 42). 15. Essa formulação dos dois princípios de justiça difere da maneira como foram formulados em 1971, em A

Theory of Justice, e está mais próxima da formulação apresentada em “The Basic Liberties and Their

Priority” (Tanner Lectures on Human Values. Volume III. Salt Lake City: University of Utah Press, 1982,

p. 5). As razões destas modificações são examinadas por Rawls em Political Liberalism, no capítulo 8

[Lecture VIII. The Basic Liberties and their Priority], p. 347, e pp. 391-395. Esse capítulo é uma versão

consideravelmente revisada da Tanner Lecture, ministrada por Rawls na Universidade de Michigan, no mês

de abril de 1981 (e publicada em 1982), que pretendia responder às objeções feitas por Herbert L. A. Hart,

na sua resenha crítica da obra A theory of Justice (“Rawls on Liberty and its Priority”, University of

Chicago Law Review, Vol. 40 (1973), pp. 534–555; reproduzida in N. Daniels (ed.), Reading Rawls [1975],

Stanford (California): Stanford University Press, 1989 , pp. 230-252).

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segundo– governam juntos as instituições de base que realizam esses valores, e são

considerados, em Political Liberalism, como exemplificando o conteúdo de uma concepção

(liberal) política da justiça. Rawls não abandona aqui a sua concepção igualitarista de

justiça. Os dois princípios de justiça expressam uma forma de liberalismo, que é

igualitarista em virtude dos três elementos seguintes:

“a) a garantia do valor equitativo das liberdades políticas, de tal modo que não

sejam simplesmente formais; b) a igualdade equitativa (e, mais uma vez, não

simplesmente formal) de oportunidades; e finalmente c) o assim-chamado

princípio de diferença, que diz que as desigualdades sociais e econômicas

ligadas a cargos e posições devem ser ajustadas de tal modo que, seja qual for o

nível destas desigualdades, grande ou pequeno, elas possam proporcionar o

maior benefício aos membros menos favorecidos da sociedade.” (PL, pp. 6-7).

Todas as modificações introduzidas em Political Liberalism não afetam, insiste

Rawls, essa característica de sua concepção da justiça (PL, p. 7).

O objetivo da teoria da justiça como equidade era prático, ou seja, ela não se

apresenta como uma doutrina compreensiva, nem como uma concepção verdadeira, mas

apresenta-se, dizia Rawls, “como uma concepção de justiça que pode ser compartilhada por

cidadãos enquanto base de um acordo político voluntário, informado e discutido

[reasoned]. Ela expressa sua razão política compartilhada e pública.” (PL, p. 9). Mas para

atingir essa razão pública, dizia Rawls, “a concepção da justiça tem de ser, tanto quanto

possível, independente das doutrinas filosóficas e religiosas conflitantes e opostas que os

cidadãos afirmam.” (PL, p. 9). Ao formular uma tal concepção da justiça, concluía Rawls, o

liberalismo político aplica o princípio de tolerância à própria filosofia, ou seja, “lega aos

próprios cidadãos a tarefa de resolver as questões que dizem respeito à religião, à filosofia e

à moral, de acordo com visões que eles afirmam livremente.” (PL, p. 154). O liberalismo

político busca, assim, uma concepção política de justiça que possa, é o que se espera, obter

o apoio de um consenso por sobreposição de doutrinas compreensivas razoáveis numa

sociedade governada ou regulada por ela. Conseguir esse apoio de doutrinas religiosas,

filosóficas e morais razoáveis fornece então a base para responder à segunda questão

fundamental: Como cidadãos, que permanecem profundamente divididos entre si por

doutrinas religiosas, filosóficas e morais razoáveis, podem ainda assim manter uma

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sociedade democrática, justa e estável? E Rawls responde: “Para esse fim, é normalmente

desejável que as visões compreensivas (...), que estamos habituados a usar quando

discutimos questões políticas fundamentais, sejam abandonadas na vida pública”. A razão

pública, ou seja, a forma de raciocinar apropriada a cidadãos livres e iguais, “é agora

melhor orientada por uma concepção política cujos princípios e valores podem ser

endossados por todos os cidadãos.” (PL, p. 10). Enquanto concepção política, a justiça

como equidade visa a ser o foco de um consenso por sobreposição, ou seja, o liberalismo

político espera constituir uma base pública de justificação para a estrutura de base de uma

democracia constitucional procedendo a partir de ideias fundamentais, implícitas na cultura

política pública, e fazendo abstração das doutrinas compreensivas. O terreno comum que o

liberalismo político tenta fornecer é a própria concepção política de justiça enquanto foco

de um consenso por sobreposição.

Mas isso não significa que o liberalismo político não possa defender e encorajar

algumas virtudes. Segundo Rawls, a teoria da justiça como equidade compreende também

uma consideração das virtudes da cooperação política que tornam possível um regime

constitucional, tais como as virtudes da civilidade e da tolerância, a virtude da

razoabilidade e do sentido de equidade. O que é crucial para uma concepção política da

justiça é que ela não conduza, ao admitir essas virtudes, ao estado perfeccionista de uma

doutrina compreensiva. Quando essas virtudes da cooperação política espalham-se na

sociedade e sustentam a sua concepção política da justiça, dizia Rawls, “elas constituem um

grande bem público [a very great public good], parte do capital político da sociedade.” (PL,

p. 157). Como uma forma de liberalismo político, a teoria da justiça como equidade é

perfeitamente consistente com o republicanismo clássico:

“O republicanismo clássico é, a meu ver, a visão segundo a qual, se os cidadãos

de uma sociedade democrática pretendem preservar seus direitos e liberdades

fundamentais, incluindo as liberdades civis [civil liberties] que asseguram as

liberdades da vida privada, eles devem ter também, em um grau suficiente, as

“virtudes políticas” (como eu as denominei) e estarem dispostos [be willing] a

participar da vida pública. A ideia é que, sem uma participação ampla de um

corpo vigoroso e informado de cidadãos na política democrática, e certamente

com uma retirada geral [um refúgio] na vida privada, até mesmo as mais bem-

projetadas instituições políticas cairão nas mãos daqueles que procuram

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dominar e impor sua vontade através do aparelho de Estado, seja por sede de

poder e de glória militar, ou por razões de interesse econômico ou de classe,

para não mencionar o fervor religioso expansionista e o fanatismo nacionalista.

A garantia das liberdades democráticas requer a participação ativa de cidadãos

que possuem as virtudes políticas necessárias para manter um regime

constitucional” (PL, p. 205).16

Não haveria, portanto, nenhuma oposição entre o republicanismo clássico, assim

entendido, ou seja, como uma visão que não pressupõe uma doutrina compreensiva,

religiosa, filosófica, ou moral, e o liberalismo político de Rawls, mas apenas algumas

diferenças quanto à concepção das instituições e à “sociologia política dos regimes

democráticos” (PL, p. 205). Mas a teoria da justiça como equidade, considerada como uma

forma de liberalismo político, rejeita o humanismo cívico. No seu sentido pleno, o

humanismo cívico é, por definição, segundo Rawls, uma forma de aristotelismo:

“[O humanismo cívico] como uma forma de aristotelismo, às vezes é enunciado

como a visão de que o homem é um animal social, ou até mesmo político, cuja

natureza essencial se realiza mais plenamente em uma sociedade democrática

onde existe uma participação ampla e vigorosa na vida política. A participação

não é encorajada como necessária à proteção das liberdades fundamentais da

cidadania democrática, e como algo que, por si mesmo, é uma forma do bem

entre outras, por mais importante que seja para muitas pessoas. Ao contrário,

tomar parte ativamente na vida pública de uma democracia é considerado como

o lugar [locus] privilegiado da vida boa. Isso é voltar a dar um lugar central

àquilo que [Benjamin] Constant chamava as “liberdades dos antigos”, e tem

todos os seus defeitos.” (PL, p. 206).

Rawls considera o humanismo cívico como uma doutrina filosófica compreensiva e,

nesse sentido, ela é incompatível com a concepção política da justiça que ele defende em

Political Liberalism.

Podemos agora resumir o debate de 1995 de Habermas com Rawls. Em

“Reconciliation Through the Public Use of Reason: Remarks on John Rawls´s Political

Liberalism” (Journal of Philosophy, Vol. 92, No. 3 (1995), pp. 109-131)17

, Habermas

16. Ver também J. Rawls, Justice as Fairness: A Restatement (2001), p. 144.

17. A versão alemã desse texto, “Versöhnung durch öffentlichen Vernunftgebrauch”, assim como a réplica de

Habermas, “„Vernünftig‟ versus „Wahr‟ oder die Moral der Weltbilder‟”, à resposta de Rawls (“Reply to

Habermas”) foram publicadas em 1996, em J. Habermas, Die Einbeziehung des Anderen. Studien zur

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afirma logo no início, antes de tecer suas três críticas básicas à teoria da justiça de Rawls,

não apenas que admira a tentativa de Rawls, em Political Liberalism, de dar uma resposta

às posições contextualistas que contestam a pressuposição de uma razão comum a todos os

homens, mas que partilha a intenção básica desse projeto e considera como corretos os seus

resultados mais importantes. Ou seja, o desacordo que ele expressa permanece aqui “no

quadro estreito de uma querela de família”.18

As dúvidas de Habermas limitam-se então à

questão de saber se Rawls afirma sempre as suas importantes intuições normativas da

maneira a mais convincente. Habermas retoma rapidamente, num único parágrafo, o projeto

de Rawls tal como ele se apresenta em Political Liberalism, e afirma que a sua crítica a

alguns aspectos da própria execução desse projeto é construtiva e imanente:

“Rawls tenta fundar os princípios em função dos quais uma sociedade moderna

tem de ser organizada para garantir a cooperação equitativa entre os seus

cidadãos considerados como pessoas livres e iguais. O seu primeiro passo

consiste em elucidar o ponto de vista a partir do qual representantes fictícios

dos cidadãos seriam capazes de dar uma resposta imparcial a essa questão. Ele

explica as razões pela quais as partes, na assim-chamada posição original,

chegariam a um acordo sobre dois princípios: primeiro, sobre o princípio liberal

de acordo com o qual toda pessoa tem direito a um sistema igual de liberdades

de base, e, segundo, sobre um princípio subordinado que estabelece o acesso

igual aos cargos públicos e estipula que as desigualdades sociais só são

aceitáveis quando são para o benefício dos cidadãos menos favorecidos. Em um

segundo passo, Rawls mostra que esta concepção espera mesmo alcançar um

acordo sob condições de um pluralismo que ela própria favorece. O liberalismo

político, [considerado] como uma construção razoável que não levanta uma

politischen Theorie. Frankfurt/Main: Suhrkamp (pp. 65-126). Tradução inglesa de Ciaran Cronin:

“Reconciliation through the Public Use of Reason” e “„Reasonable‟ versus „True‟, or the Morality of

Worldviews”, in The Inclusion of the Other. Studies in Political Theory. Cambridge (Mass.): The MIT

Press, 1998 (pp. 49-101). A resposta de Rawls ao primeiro texto de Habermas, “Reply to Habermas” (The

Journal of Philosophy, Vol. 92, No. 3 (1995), pp. 132-180), encontra-se na edição “paperback” de Political

Liberalism (1996), pp. 374-434 (todas as nossas referências são a esta edição). Ver J. G. Finlayson e F. Freyenhagen (eds.), Habermas and Rawls. Disputing the Political. London: Routledge, 2010.

18. Ver J. Habermas, The Inclusion of the Other (1998), pp. 49-50. Ver também M. A. Oliveira, “O Debate

Acerca da Fundamentação de uma Teoria da Justiça: Rawls e Habermas”, e L. B. L. Araújo, “Uma Questão

de Justiça: Habermas, Rawls e MacIntyre”, in S. T. Felipe (org.), Justiça Como Equidade. Fundamentação e

interlocuções polêmicas (Kant, Rawls, Habermas) [Anais do Simpósio Internacional sobre a justiça

realizado na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, de 18 a 22 de agosto de 1997].

Florianópolis: Insular, 1998, pp. 87-102, e pp. 209-230; J.-M. Ferry, Philosophie de la communication, Vol.

II: Justice politique et démocratie procédurale. Paris: Cerf, 1994; e N. F. Oliveira, “Critique of Public

Reason Revisited: Kant as Arbiter between Rawls and Habermas”, Veritas, Vol. 45, No. 4 (2000), pp. 583-

606.

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pretensão quanto à verdade, é neutro em relação a visões de mundo

conflitantes. Em um terceiro e último passo, Rawls esboça os direitos

fundamentais e os princípios do Estado constitucional que podem ser derivados

dos dois princípios de justiça. Ao seguir a seqüência destes três passos,

apresentarei objeções dirigidas não tanto ao projeto enquanto tal, mas a certos

aspectos de sua execução. (...). A minha crítica é construtiva e imanente.” (The

Inclusion of the Other, p. 50).

A primeira objeção de Habermas dizia respeito à posição original tal como ela é

caracterizada por Rawls: esse dispositivo, em todos os seus aspectos, é realmente

apropriado para esclarecer e garantir o ponto de vista da apreciação imparcial que é inerente

aos princípios de justiça deontológicos? A segunda objeção afirmava que é necessário fazer

uma distinção mais nítida entre questões de justificação e questões de aceitação: Rawls

parece querer, dizia Habermas, “obter a neutralidade de sua concepção de justiça ao preço

de um abandono de sua pretensão de validade cognitiva”. Na sua terceira objeção crítica,

Habermas resumia o resultado da estratégia teórica adotada por Rawls –“uma construção do

Estado constitucional que subordina o princípio democrático de legitimação aos direitos

fundamentais de tipo liberal”– e afirmava que Rawls solapa, assim, o seu objetivo que era o

de conciliar a “liberdade dos Modernos” com a “liberdade dos Antigos”. E ele concluía as

suas observações críticas como uma tese sobre o auto-entendimento da filosofia política:

“em condições de pensamento pós-metafísico, este [auto-entendimento da filosofia política]

deveria ser modesto, mas não do modo errado” (The Inclusion of the Other, pp. 50-51).

Habermas lamenta ter sido obrigado, para atender à solicitação do editor do Journal of

Philosophy, a transformar em objeções críticas o que no fundo seriam apenas algumas

reservas.

No que diz respeito à primeira crítica, toda a força do argumento de Habermas é

diluída na medida em que ele afirma logo, e repete ao longo deste texto –e na sua réplica a

Rawls:”„Reasonable‟ versus „True‟, or the Morality of Worldviews” (1996)19

– que “[p]ara

a construção da posição original, Rawls (...)”, que “a construção de uma posição original

(...)”, que “[e]ste procedimento pode explicar-se sem recorrer aos conceitos (...) que Rawls

utiliza na construção da posição original”, e que a construção de uma posição original “que

19. J. Habermas, The Inclusion of the Other (1998), p. 81.

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molda, de uma maneira razoável, a liberdade de escolha de atores racionais”, explica-se

afinal “pela intenção, seguida desde o início, de apresentar a teoria da justiça como uma

parte da teoria geral da escolha racional” (The Inclusion of the Other, pp. 51, 52, 59). A

posição original, como vimos mais acima, não é construída mas simplesmente posta. Ou

seja, a posição original é um dispositivo analítico utilizado por Rawls para formular uma

conjectura: descreve as partes racionais (enquanto mandatários dos cidadãos, um para cada

cidadão livre e igual) como estando equitativamente situadas e como chegando a um

acordo sujeito a condições (razoáveis) que limitam adequadamente o que elas podem

apresentar como boas razões (PL, p. 25). Os cidadãos livres e iguais são considerados como

chegando eles próprios a um acordo sobre os princípios de justiça política sob condições

que representam esses cidadãos como sendo ao mesmo tempo razoáveis e racionais. A

teoria da justiça como equidade não é considerada por Rawls como uma parte da teoria da

escolha racional: não se trata de derivar princípios razoáveis de justiça a partir do conceito

de racionalidade considerado como o único conceito normativo (PL, p. 53).20

Nem tudo é

construído na forma de construtivismo explicitada por Rawls em Political Liberalism, ou

seja, no seu construtivismo político: “(...) somente os princípios substantivos que

especificam o conteúdo do justo político e da justiça política são construídos. O próprio

procedimento é simplesmente posto, utilizando como pontos de partida as concepções

fundamentais da sociedade e da pessoa, os princípios da razão prática, e o papel público de

uma concepção política da justiça.” (PL, p. 104). No plano procedimental, a teoria da

justiça como equidade não é neutra, na medida em que seus princípios de justiça são

substantivos e expressam algo mais do que simples valores procedimentais. Enquanto

concepção política, ela visa a ser o foco de um consenso por sobreposição. Rawls faz aqui

uma distinção entre a neutralidade procedimental e a neutralidade do objetivo visado:

“Enquanto concepção política aplicada à estrutura de base, a teoria da justiça como

equidade, no seu conjunto, tenta fornecer oferecer um terreno comum para um consenso

por sobreposição. Ela espera também respeitar a neutralidade do objetivo visado no sentido

em que as instituições de base e as políticas públicas não devem ser projetadas para

20. Rawls acredita que, no seu conjunto, a sua obra de 1971 (A Theory of Justice) sustenta esta interpretação.

Ver também J. Rawls, Justice as Fairness: A Restatement, p. 82, nota 2.

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favorecer alguma doutrina compreensiva particular.” (PL, p. 194). É todo o construtivismo

político de Rawls que teria de ser aqui explicitado. Deixo de lado, portanto, toda a primeira

objeção crítica de Habermas a Rawls.

Na sua segunda observação crítica, Habermas formula duas questões. A primeira diz

respeito ao próprio papel do consenso por sobreposição: esse consenso acrescenta algo à

justificação de uma concepção política de justiça, ou serve apenas para explicitar uma

condição necessária da estabilidade social? Segundo Habermas, Rawls não teria feito uma

distinção nítida entre a aceitabilidade racional da sua concepção da justiça política e sua

aceitação efetiva. A segunda questão diz respeito ao sentido que foi dado por Rawls, no

contexto do seu liberalismo político, ao termo razoável: Rawls usa esse termo para designar

a validade dos juízos morais, ou simplesmente para expressar uma atitude reflexiva de

tolerância esclarecida? (The Inclusion of the Other, p. 60). Para Rawls, a resposta a estas

duas questões, intimamente relacionadas, reside na maneira como o liberalismo político

especifica três tipos diferentes de justificação (a justificação pro tanto, a justificação plena,

e a justificação pública) e dois tipos de consenso, e como ele então os relaciona com a ideia

de estabilidade e com a ideia de legitimidade (“Reply to Habermas”, PL, pp. 385-386).

Em primeiro lugar, e Rawls está se referindo à razão pública, ou seja, ao uso

público da razão nos debates públicos de cidadãos livres e iguais sobre o bem público e as

questões fundamentais de justiça, a justificação da concepção política da justiça só leva em

conta valores políticos partilhados por cidadãos livres e iguais. Rawls presume aqui que

essa concepção política é completa, ou seja, que os valores políticos que ela especifica

podem ser convenientemente ordenados ou equilibrados, de tal modo que somente esses

valores proporcionam uma resposta razoável –uma resposta dada pela razão pública– a

todas ou a quase todas as questões que envolvem essenciais constitucionais (por exemplo,

os direitos políticos e as liberdades políticas que razoavelmente podem ser incluídos em

uma constituição escrita, presumindo aqui que ela pode ser interpretada por uma suprema

corte) e alguns pontos de justiça fundamental não cobertos por uma constituição. Essa seria

a significação (meaning) da justificação pro tanto: “Ao examinar um vasto leque de

questões políticas para saber se uma concepção política pode sempre oferecer uma resposta

razoável, podemos conferir se ela parece completa. Mas como a justificação política é pro

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tanto, ela pode ser derrogada pelas doutrinas compreensivas do cidadão quando todos os

valores são contados.” (“Reply to Habermas”, PL, p. 386).21

Em segundo lugar, e trata-se agora da justificação plena [full justification] da

concepção política da justiça que é levada a cabo por um cidadão individual enquanto

membro da sociedade civil (e Rawls presume aqui que cada cidadão sustenta não apenas

uma concepção política mas também uma doutrina compreensiva), o cidadão aceita uma

concepção política, dizia Rawls, “e completa a sua justificação ao enquadrar de uma

maneira ou de outra essa concepção, enquanto verdadeira ou razoável, na doutrina

compreensiva que esse cidadão sustenta, segundo o que essa doutrina autoriza.” Alguns

cidadãos, dizia ainda Rawls, podem considerar uma concepção política como plenamente

justificada, mesmo se os outros não a aceitam: a cada cidadão (individualmente ou em

associação com outros) é dado, assim, dizer como as pretensões de justiça política devem

ser ordenadas, ou ponderadas, em relação a valores não-políticos. No que diz respeito a

esses valores não-políticos, a concepção política da justiça não oferece aqui nenhuma

orientação. Contudo, insiste aqui Rawls, “mesmo que uma concepção política da justiça

seja independente, isso não significa que ela não possa ser enquadrada –ou mapeada

[mapped], ou inserida enquanto módulo– nas diferentes doutrinas que os cidadãos

sustentam.” (“Reply to Habermas”, PL, p. 387).

Finalmente, dizia Rawls, temos a justificação pública da concepção política pela

sociedade política:

“Isto é uma ideia de base do liberalismo político, indissociável das três outras: a

ideia de um consenso razoável por sobreposição [reasonable overlapping

consensus], a ideia de estabilidade pelas boas razões, e a ideia de legitimidade.

A justificação pública ocorre quando todos os membros razoáveis da sociedade

política levam a cabo uma justificação da concepção política compartilhada, ao

enquadrá-la em suas várias visões compreensivas razoáveis. Neste caso,

cidadãos razoáveis levam em conta uns aos outros como tendo doutrinas

compreensivas razoáveis que endossam essa concepção política, e este levar em

conta mútuo molda a qualidade moral da cultura pública de uma sociedade

política.” (“Reply to Habermas”, PL, p. 387).

21. Ver PL, pp l-lvii; ver também J. Rawls, “The Idea of Public Reason Revisited” [1997], Collected Papers

(1999), pp. 573-615.

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Rawls insiste aqui num ponto que ele considera crucial: embora, para a sociedade

política, a justificação pública da concepção política depende das doutrinas compreensivas

razoáveis, essa justificação só depende destas doutrinas de maneira indireta, ou seja, “os

conteúdos expressos dessas doutrinas não têm um papel normativo na justificação pública;

os cidadãos não consideram o conteúdo das doutrinas dos outros, e permanecem assim nos

limites do político. Ou, mais exatamente, a única coisa que eles levam em conta e à qual

dão um certo peso, é o fato –a existência– do próprio consenso razoável por sobreposição.”

(“Reply to Habermas”, PL, p. 387). A justificação pública é um caso fundamental para o

liberalismo político: para Rawls, a concepção política da justiça da sociedade política só

pode ser publicamente –embora nunca definitivamente– justificada, quando existe um

consenso razoável por sobreposição.

No liberalismo político de Rawls, a ideia fundamental de justificação pública está

não apenas intimamente ligada à ideia de consenso razoável por sobreposição mas conecta-

se também com as ideias de estabilidade pelas boas razões e legitimidade. Rawls

desenvolve agora mais detalhadamente essas três ideias. Em primeiro lugar, para evitar

qualquer mal-entendido, Rawls diferencia duas ideias de consenso: a ideia de consenso

advinda da política cotidiana e a ideia de consenso defendida em Political Liberalism. A

primeira diz respeito ao acordo que um político busca: “ao considerar diversos interesses e

pretensões existentes, um político tenta chegar a uma coalizão ou a um plano de ação que

todos, ou um número suficiente de pessoas, podem sustentar para obter uma maioria”. Esta

ideia de consenso é, portanto, “a ideia de uma sobreposição [an overlap] já presente ou

latente”. A ideia muito diferente de consenso, defendida por Rawls em Political Liberalism

–a ideia de um consenso razoável por sobreposição– “é a de que a concepção política de

justiça é elaborada primeiro como uma visão independente que pode ser justificada pro

tanto sem considerar as doutrinas compreensivas existentes, ou tentar se ajustar a elas, ou

nem mesmo saber o que são”. Essa ideia de consenso tenta, assim, não colocar obstáculos

no caminho de todas as doutrinas razoáveis que endossam uma concepção política, ao

eliminar nesta concepção toda ideia que vai além do domínio do político, e das quais não se

poderia razoavelmente esperar que sejam endossadas por todas as doutrinas razoáveis.

Quando a concepção política é conforme a essas condições e é também completa, dizia

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Rawls, “esperamos que as doutrinas compreensivas razoáveis, sustentadas pelos cidadãos

razoáveis na sociedade, são capazes de dar suporte a essa concepção” (“Reply to

Habermas”, PL, p. 389).22

Segundo Rawls, numa sociedade democrática marcada pelo pluralismo razoável, o

fato de mostrar que a estabilidade pelas boas razões é pelo menos possível é também uma

parte da justificação pública: “quando cidadãos sustentam doutrinas compreensivas

razoáveis, embora diferentes, examinar se um consenso por sobreposição sobre a

concepção política é possível é uma maneira de testar se existem razões suficientes para

propor a teoria da justiça como equidade (ou uma outra doutrina razoável) que podem ser

sinceramente defendidas diante de outras pessoas sem que seja necessário criticar ou

rejeitar seus mais profundos engajamentos religiosos ou filosóficos”. E se podemos

estabelecer que existem razões adequadas para diversos cidadãos razoáveis sustentar juntos

a teoria da justiça como equidade enquanto sua concepção política efetiva, dizia Rawls,

então as condições que lhes permitem exercer legitimamente um poder político coercitivo

uns sobre os outros –“algo que inevitavelmente fazemos enquanto cidadãos ao votar ou de

uma outra maneira”– estão preenchidas. Ou seja, “apesar do fato do pluralismo razoável, as

condições para a legitimidade democrática estão preenchidas”. Rawls pode então afirmar

que dada uma sociedade política com um tal consenso razoável, “o liberalismo político diz

que como cidadãos dessa sociedade alcançamos a mais profunda e a mais razoável base de

unidade social que nos é acessível [dado o fato do pluralismo razoável] numa democracia

moderna” (“Reply to Habermas”, PL, pp. 390-391).

Em que sentido Rawls usa então aqui o termo “razoável”? A resposta de Rawls é

breve:

“O liberalismo político não usa o conceito de verdade moral aplicado aos seus

próprios juízos políticos (sempre morais). Ele diz aqui que os juízos políticos

são razoáveis ou não-razoáveis; e ele expõe ideais, princípios e padrões

enquanto critérios do razoável. Estes critérios por sua vez conectam-se com as

duas características fundamentais das pessoas razoáveis enquanto cidadãos (...).

O uso do conceito de verdade não é rejeitado ou questionado, mas é deixado

para as doutrinas compreensivas, que o podem usar, rejeitar, ou usar uma outra

ideia em vez desse conceito. E, finalmente, o razoável expressa, é claro, uma

22. Ver PL, p. 39-40, 133-172.

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atitude reflexiva em relação à tolerância, na medida em que reconhece os ônus

dos juízos, e isso por sua vez conduz à liberdade de consciência e de

pensamento.” (“Reply to Habermas”, PL, p. 394-395).

A resposta de Rawls à terceira objeção crítica de Habermas consiste em defender

mais uma vez o modo como entende o liberalismo. Na teoria da justiça como equidade,

considerada como uma forma de liberalismo político, a autonomia pública e a autonomia

privada são igualmente co-originárias e têm igual importância, nenhuma sendo

exteriormente imposta à outra; ou seja, a teoria da justiça como equidade reconhece a

conexão interna entre a “liberdade dos Modernos” e a “liberdade dos Antigos”. Como? É só

recordar aqui o que ocorre na sociedade civil quando os cidadãos discutem e aceitam os

méritos da posição original e dos princípios que seriam aí presumivelmente selecionados:

“As partes enquanto mandatários [trustees] dos cidadãos [um para cada cidadão

livre e igual] não selecionam princípios de justiça para especificar o esquema

de liberdades (de base) que melhor protege e favorece os interesses

fundamentais dos cidadãos, esquema que eles em seguida concedem uns aos

outros? (...) No primeiro princípio de justiça, as liberdades da autonomia

pública e da autonomia privada são ajustadas uma à outra sem ser

hierarquizadas. Estas liberdades são co-originárias por uma razão suplementar:

as duas espécies de liberdade estão enraizadas em uma das duas faculdades

morais, ou nas duas, a capacidade de formar um sentido de justiça e a

capacidade de formar uma concepção do bem. Como previamente, estas duas

faculdades não são elas próprias hierarquizadas e são uma e outra aspectos

essenciais da concepção política da pessoa, cada faculdade tendo o seu próprio

interesse de ordem superior. (...).

(...) as duas famílias de cada uma das duas formas de autonomia foram

internamente ligadas pela construção da justiça como equidade enquanto

concepção política da justiça. Esta forma de liberalismo, portanto, não deixa

subsistir entre as liberdades uma rivalidade não resolvida.” (“Reply to

Habermas”, PL, pp. 413-419).

Habermas conclui as suas observações críticas como uma tese sobre o auto-

entendimento da filosofia política –“em condições de pensamento pós-metafísico, este

[auto-entendimento da filosofia política] deveria ser modesto, mas não do modo errado”– e

é nesse contexto que ele afirma que a sua nova teoria discursiva do direito, desenvolvida

em Faktizität und Geltung [1992], ao estipular não apenas uma relação conceitual interna

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entre as ideias de Estado constitucional e as formas democráticas de poder político, mas ao

introduzir também um conceito moralmente neutro de discurso enquanto tal, é mais

modesta do que a teoria da justiça de Rawls. Esta tese é razoável?

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