Psicanálise - Ernest Lanzer, Caso Homem Dos Ratos - Dicionário Da Escola de Psicanálise Koinonia

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  • Lanzer, Ernst (1878-1914),caso Homem dos Ratos

    Segundo grande tratamento psicanalticoconduzido por Sigmund Freud*, depois de Dora(Ida Bauer*) e antes do Homem dos Lobos(Serguei Constantinovitch Pankejeff*), a histriado Homem dos Ratos , sem sombra dedvida, a mais elaborada, a mais estruturada ea mais rigorosamente lgica. A anlise duroucerca de nove meses, de outubro de 1907 a julhode 1908, e Freud falou dela em cinco oportunidadesnas reunies da Sociedade Psicolgicadas Quartas-Feiras*, antes de apresentar o casono primeiro congresso da International PsychoanalyticalAssociation* (IPA) em Salzburgo,em 26 de abril de 1908, num relatrio verbalde cinco horas. Em suas memrias, publicadasem 1959, Ernest Jones* narra o acontecimento:Sentado na ponta da longa mesa qual todosestvamos acomodados, ele falou em sua vozbaixa, mas ntida, como numa conversa. Comeous oito horas da manh e ns o escutamoscom profunda ateno. s onze, fez uma pausa,sugerindo que j tnhamos ouvido o bastante.Mas estvamos todos to interessados, queinsistimos em que continuasse, o que fez at auma da tarde.Durante esse mesmo ano, Freud ajudou seuamigo Max Graf* a analisar o filho (HerbertGraf*), o que lhe permitiu comprovar a exatidode suas teses de 1905 sobre a sexualidade*infantil. E, com o destino dramtico desse homemobcecado, que parecia um personagem doromance de Joseph Roth (1894-1939) intituladoA marcha de Radetzky, finalmente deparoucom um caso de neurose obsessiva* conformea suas hipteses e digno de ser narrado. Emambas as anlises, lidou com aquilo que oapaixonava: a relao entre um filho e um pai.A identidade do Homem dos Ratos foi reveladapela primeira vez em 1986, pelo psicanalistacanadense Patrick Mahony, num notveltrabalho de pesquisa: Ao compararmos ascontratransferncias de Freud com seus principaispacientes, escreveu Mahony, temos asensao de que nutria mais simpatia e empatiapelo Homem dos Ratos do que em relao aDora ou ao Homem dos Lobos. Se Freud foi umprocurador com Dora, foi um educador amistosocom Lanzer.Nascido em Viena*, numa famlia judia damdia burguesia, Ernst Lanzer era o quartorebento de uma fratria que contava sete. Seu pai,Heinrich Lanzer, amara inicialmente uma mulherpobre, mas acabara se casando com a ricaRosa Saborsky, futura me de Ernst. Em 1897,este iniciou seus estudos de direito. Logo seapaixonou por uma prima pouco abastada, GiselaAdler, a quem comeou a cortejar contra avontade do pai, que preferia uma mulher ricapara seu filho. Para cmulo da infelicidade, amoa teve que se submeter a uma ovariectomia,o que a impediu de ser me.Depois da morte de Heinrich, ocorrida em1898, Ernst, tal como o pai, abraou a carreiramilitar, ingressando no terceiro regimento de

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  • atiradores tiroleses do exrcito imperial. Foi em1901 que comeou a ser dominado por estranhasobsesses sexuais e mrbidas. Com efeito,manifestava um gosto especial por funerais eritos de morte, adquirira o hbito de olhar seupnis num espelho para se certificar de seu graude ereo, e tinha inmeras tentaes suicidas,baseadas em censuras e acusaes dirigidascontra si mesmo, prontamente acompanhadaspor resolues beatas e oraes. Ora queriacortar sua garganta, ora planejava afogar-se.Em 1905, portanto, aos 27 anos de idade,sofria de uma grave neurose obsessiva. Emborahouvesse rejeitado o projeto dos pais, que queriamfaz-lo casar-se com uma mulher rica,ainda no conseguira decidir-se a casar comGisela. Consultou ento o clebre psiquiatraJulius Wagner-Jauregg*, por causa de umacompulso a se apresentar numa prova semprecedo demais e despreparado. O mdico respondeu-lhe que a obsesso era muito salutar e nofez nada pelo rapaz.Foi durante o vero de 1907 que se produziramos dois grandes acontecimentos que ocupariamo cerne de sua anlise com Freud. Emjulho, durante um exerccio militar na Galcia,ouviu o cruel capito Nemeczek, adepto doscastigos corporais, contar a histria de um suplciooriental que consistia em obrigar o pri-sioneiro a se despir e a se ajoelhar no cho como dorso curvado para a frente. Nas ndegas dohomem fixava-se ento, por meio de uma correia,uma grande vasilha furada onde um rato seagitava. Privado de alimento e atiado por umpedao de ferro em brasa introduzido num orifcioda vasilha, o animal procurava fugir daqueimadura e penetrava no reto do supliciado,infligindo-lhe feridas sangrentas. Ao cabo demais ou menos meia hora, morria sufocado, aomesmo tempo que o prisioneiro.Nesse dia, Lanzer perdeu seu pincen duranteum exerccio. Telegrafou a seu oculista,em Viena, para lhe encomendar outro, que deveriaser enviado pela volta do correio. Doisdias depois, recebeu o objeto por intermdio domesmo capito, que lhe informou que as despesaspostais deveriam ser reembolsadas aotenente David, funcionrio do correio.Obrigado a fazer o reembolso, Lanzer teveento um comportamento delirante em torno dotema obsedante do pagamento da dvida. Ahistria do suplcio misturou-se com a da dvidae fez surgir na memria do Homem dos Ratosum outro episdio envolvendo dinheiro. Umdia, seu pai contrara uma dvida de jogo: forasalvo da desonra por um amigo que lhe emprestaraa soma necessria para o pagamento. Heinrichhavia tentado, findo o seu servio militar,reencontrar esse homem, mas no conseguirafaz-lo. Por isso, a dvida com certeza nuncafora paga.Foi esse homem, obcecado por ratos e poruma dvida, que entrou no consultrio do Dr.Freud no dia 1o de outubro de 1907. Entrou deimediato no jogo da associao livre* e comeouespontaneamente a evocar lembranassexuais que remontavam a seus seis anos de

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  • idade. Todas as noites, Freud redigia o diriodessa anlise, para reproduzir seus dilogoscom exatido. Em muito pouco tempo, Lanzerentrou na histria dos ratos. Entretanto, nosuportando descrever os detalhes do suplcio,levantou-se de repente do div e suplicou aFreud que o poupasse dessa tarefa. Com firmeza,este o obrigou a prosseguir em seu relato, aomesmo tempo que lhe expunha sua concepoda resistncia*. O paciente manifestou imediatamenteuma incapacidade de pronunciar certaspalavras. Estaria querendo falar de empalao?,escreveu Freud. No, no era isso.Amarrava-se o condenado (ele se exprimia demaneira to obscura, que no pude depreenderde pronto em que posio o supliciado era amarrado),e se virava sobre suas ndegas uma vasilhaem que eram introduzidos ratos, os quais ele se levantara e manifestava todos os sinais dohorror e da resistncia se enfiavam. Nonus, tive que completar. E Freud acrescenta:A cada momento do relato, observava-se emseu rosto uma expresso complexa e bizarra,expresso que eu no saberia traduzir de outramaneira seno como o horror a um gozo* queele mesmo ignorava.Ao contrrio do que se passaria na anlise deSerguei Pankejeff ou de Marie Bonaparte*,Freud no inventou, no caso de Lanzer, umacena sexual original. Neste, ele agiu verdadeiramentecomo um terapeuta desejoso de fazerseu paciente confessar seus tormentos, aindaque tivesse que tranqiliz-lo, afirmando-lheque no tinha nenhum pendor para a crueldade.Foi atravs dessa tcnica da confisso, na qualocupou para Lanzer o lugar de um pai, queFreud conseguiu relacionar o complexo paternocom a obsesso dos ratos. Enunciou a hiptesede que, por volta dos seis anos de idade, opequeno Ernst teria praticado uma m ao deordem sexual, relacionada com a masturbao,e teria sido castigado pelo pai. Lanzer aceitouessa interpretao, que correspondia a suas lembranas,e evocou uma outra cena, contada porsua me, da poca em que ele tinha quatro anos.Nessa ocasio, depois de haver mordido algum,levara uma surra do pai. Furioso, havia-oxingado, cumulando-o de nomes de objetos:Seu lmpada! Seu guardanapo! Heinrichexclamara ento: Ou esse menino vai se tornarum grande homem, ou ser um grande criminoso.Ao relatar essa cena, da qual no tinha nenhumalembrana, Lanzer duvidou dos sentimentosde dio que teria nutrido pelo pai. Cedo,porm, em seus sonhos e associaes, comeoua insultar grosseiramente seu terapeuta, dequem, ao mesmo tempo, reivindicava um castigo.Esse episdio permitiu rapidamente aFreud mostrar a seu paciente como a dolorosavia da transferncia levava, de fato, a umaconfisso do dio inconsciente pelo pai.E Freud tratou de resolver o enigma: fora orelato do castigo pelos ratos, disse ele, em essncia,que havia redespertado o erotismo analde Lanzer e lhe recordara a antiga cena damordida, narrada por sua me. Fazendo-se defensorde uma punio corporal atravs dos

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  • ratos, o capito assumira para o doente o lugardo pai e atrara para si uma animosidade comparvel que outrora tinha reagido crueldadede Heinrich. Segundo Freud, o rato revestiu-seali da significao do dinheiro e, portanto, dadvida, que se manifestou na anlise por umaassociao verbal, florim/rato ou quota/rato,j que, desde o incio do tratamento, opaciente adquirira o hbito de contar o montantedos honorrios dizendo: Tantos florins,tantos ratos.Em 1910, Ernst Lanzer casou-se com suaquerida Gisela e, em 1913, tornou-se advogado.Convocado pelo exrcito imperial em agosto de1914, foi feito prisioneiro pelos russos em novembroe morreu sem ter tido tempo de aproveitaros benefcios proporcionados por suaanlise. Numa nota de 1923, Freud acrescentouestas palavras: O paciente a quem a anlise queacaba de ser relatada restituiu a sade psquicafoi morto durante a Grande Guerra, como tantosjovens valorosos em quem era possvel depositarmuitas esperanas.O caso do Homem dos Ratos foi consideradoa nica terapia perfeitamente bem-sucedidade Freud. Decerto isso no foi por acaso, j queFreud foi o inventor do termo neurose obsessiva,j que descreveu a si mesmo, numa cartaa Carl Gustav Jung*, como o prottipo do neurticoobsessivo, e j que considerava essa neuroseo objeto mais interessante e mais fecundoda pesquisa psicanaltica. Sob esse aspecto,como sublinhou Patrick Mahony, o encontroentre Freud e o Homem dos Ratos umaverso vienense do drama de Sfocles que opedipo* Esfinge. Ele ps em cena a essnciado amor edipiano pela me e do dio pelo pai.Dentre os inmeros comentrios feitos sobreesse caso figura o de Jacques Lacan*, de 1953,O mito individual do neurtico. Aplicandouma grade de leitura retirada das Estruturaselementares do parentesco, de Claude Lvi-Strauss, Lacan conferiu um estatuto de mito neurose obsessiva do Homem dos Ratos, mostrandoque ela era o prprio modelo da estruturacomplexa e da dilacerao originria pelasquais todo sujeito se liga a uma constelaosimblica cujos elementos se permutam e serepetem de gerao em gerao, como o memorialde uma histria genealgica.

    Sigmund Freud, Notas sobre um caso de neuroseobsessiva (1909), ESB, X, 159-258; GW, VII, 381-463;SE, X, 151-249; in Cinq psychanalyses, Paris, PUF,1954, 199-261; LHomme aux rats. Journal dune analyse(notas de Freud transcritas por Elza Ribeiro Hawelka),Paris, PUF, 1974 Les Premiers psychanalystes,Minutes de la Socit Psychanalytique de Vienne,1906-1918, 4 vols. (1962-1975), Paris, Gallimard,1976-1983 Ernest Jones, Thorie et pratique de lapsychanalyse (Londres, 1913, Paris, 1925), Paris,Payot, 1969; Free Associations. Memoirs of aPsychoanalyst, N. York, Basic Books, 1959 ClaudeLvi-Strauss, As estruturas elementares do parentesco(Paris, 1949), Petrpolis, Vozes, 1976 M. Kanzer,The transference neurosis of the Rat Man, PsychoanalyticQuarterly, 21, 1952, 181-9 Elizabeth R. Zetzel,

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  • 1965: Additional notes upon a case of obsessionalneurosis, Freud, 1909, IJP, XLVII, 1966, 123-9 RenMajor, Interprtation 1907. Contribution ltude de latechnique analytique, Revue Franaise de Psychanalyse,35, 1971, 527-42 Samuel D. Lipton, The advantagesof Freuds technique as shown in his analysis ofthe Rat Man, IJP, LVIII, 1977, 255-79 Patrick J.Mahony, Freud et lHomme aux rats (New Haven eLondres, 1986), Paris, PUF, 1990 Peter Gay, Freud,uma vida para o nosso tempo (N. York, 1988), S. Paulo,Companhia das Letras, 1995 Jacques Lacan, Lemythe individuel du nvros ou Posie et vrit dansla nvrose (1953), Ornicar?, 17-18, 1979, 289-307 lisabeth Roudinesco, Jacques Lacan. Esboo deuma vida, histria de um sistema de pensamento(Paris, 1993), S. Paulo, Companhia das Letras, 1994.

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