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PRÁTICAS DE ANÁLISE TEXTUAL: UMA PROPOSTA DIDÁTICA A PARTIR DO ESTUDO DA REFERENCIAÇÃO EM TEXTO LITERÁRIO Marcella Wiffler STEFANINI Orientadora: Profa. Dra. Lilian do Rocio Borba Resumo: O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma análise baseada nos pressupostos teóricos construídos na Linguística Textual e, a partir desta, refletir sobre os processos de referenciação como atividade discursiva. A pesquisa, tomando por base conceitos veiculados por Koch & Elias (2012) e Koch (2002), tem como pressuposto que a “escolha das palavras” em processos de referenciação não se dá ao acaso, mas constitui uma atividade discursiva, resultado da operação que se realiza quando, para designar, representar ou sugerir algo, o indivíduo usa um termo ou cria uma situação discursiva referencial. Para demonstrar isso, apresenta-se uma análise textual-linguística de um texto do gênero literário e sugere-se que análises como a apresentada sejam também realizadas em sala de aula. Palavras-chave: Linguística Textual; referenciação; atividade discursiva; análise textual-discursiva. CONSIDERAÇÕES INICIAIS O presente trabalho 1 se propõe a apresentar uma análise de um texto do gênero literário com enfoque no estudo das expressões referenciais nominais enquanto objetos discursivos. Para tanto, pressupõe-se a atividade de referenciação como uma atividade discursiva, na qual o sujeito do discurso, ao referenciar, deixa transparecer sua orientação argumentativa, em um processo de constante construção e reconstrução de objetos discursivos. Com isso, pretende-se demonstrar que a escolha dos termos de referência e de qualificadores não é arbitrária, nem se dá por acaso, mas está em consonância com um projeto de dizer. Conforme esclarecem Koch & Elias (2012), “a seleção das formas nominais referenciais deve merecer um especial cuidado na construção de todo e qualquer texto, levando em conta que essas formas desempenham um papel de maior relevância na progressão textual e na construção de sentido” (KOCH & ELIAS, 2012, p. 155) [grifo nosso]. 1 Este artigo é a versão final de trabalho elaborado para a disciplina HL-135 Oralidade e Escrita.

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PRÁTICAS DE ANÁLISE TEXTUAL: UMA PROPOSTA DIDÁTICA A PARTIR DO ESTUDO DA REFERENCIAÇÃO EM TEXTO LITERÁRIO

Marcella Wiffler STEFANINIOrientadora: Profa. Dra. Lilian do Rocio Borba

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma análise baseada nos pressupostos teóricos construídos na Linguística Textual e, a partir desta, refletir sobre os processos de referenciação como atividade discursiva. A pesquisa, tomando por base conceitos veiculados por Koch & Elias (2012) e Koch (2002), tem como pressuposto que a “escolha das palavras” em processos de referenciação não se dá ao acaso, mas constitui uma atividade discursiva, resultado da operação que se realiza quando, para designar, representar ou sugerir algo, o indivíduo usa um termo ou cria uma situação discursiva referencial. Para demonstrar isso, apresenta-se uma análise textual-linguística de um texto do gênero literário e sugere-se que análises como a apresentada sejam também realizadas em sala de aula.Palavras-chave: Linguística Textual; referenciação; atividade discursiva; análise textual-discursiva.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente trabalho1 se propõe a apresentar uma análise de um texto do gênero literário com enfoque no estudo das expressões referenciais nominais enquanto objetos discursivos. Para tanto, pressupõe-se a atividade de referenciação como uma atividade discursiva, na qual o sujeito do discurso, ao referenciar, deixa transparecer sua orientação argumentativa, em um processo de constante construção e reconstrução de objetos discursivos. Com isso, pretende-se demonstrar que a escolha dos termos de referência e de qualificadores não é arbitrária, nem se dá por acaso, mas está em consonância com um projeto de dizer. Conforme esclarecem Koch & Elias (2012), “a seleção das formas nominais referenciais deve merecer um especial cuidado na construção de todo e qualquer texto, levando em conta que essas formas desempenham um papel de maior relevância na progressão textual e na construção de sentido” (KOCH & ELIAS, 2012, p. 155) [grifo nosso].

1 Este artigo é a versão final de trabalho elaborado para a disciplina HL-135 Oralidade e Escrita.

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A partir dessa assertiva, conclui-se a importância do estudo da referenciação enquanto atividade discursiva para o desenvolvimento das habilidades de leitura e de escrita na sala de aula. No trecho abaixo, fica evidente o alinhamento dessa perspectiva de linguagem enquanto atividade discursiva aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de 1998, o que justifica o presente trabalho, que sugere que análises como a aqui apresentada sejam também realizadas em sala de aula:

Tomando-se a linguagem como atividade discursiva, o texto como unidade de ensino e a noção de gramática como relativa ao conhecimento que o falante tem de sua linguagem, as atividades curriculares em Língua Portuguesa correspondem, principalmente, a atividades discursivas: uma prática constante de escuta de textos orais e leitura de textos escritos e de produção de textos orais e escritos, que devem permitir, por meio da análise e reflexão sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a expansão e construção de instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente, ampliar sua competência discursiva (BRASIL, 1998).

Nesse sentido, apresenta-se uma análise textual-linguística na qual se estuda como o processo de referenciação é construído ao longo do texto. Tomou-se como objeto de análise um texto do gênero literário por se tratar de um gênero já presente na escola. O texto selecionado para essa análise é o conto A Cartomante, de Machado de Assis, publicado pela primeira vez no ano de 1884, no jornal Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro. Optou-se por um conto por ser um texto literário em prosa, mas breve, o que torna possível uma análise mais detalhada em sala de aula.

Sobre o processo de referenciação, Koch & Elias (2012) esclarecem:

“O processo que diz respeito às diversas formas de introdução, no texto, de novas entidades ou referentes é chamado de referenciação. Quando tais referentes são retomados mais adiante ou servem de base para a introdução de novos referentes, tem-se o que se denomina progressão referencial” (KOCH & ELIAS, 2012, p. 132).

Desse modo, o que o presente trabalho propõe é uma leitura do texto que atente para as expressões nominais que se referem aos personagens principais do conto (Camilo, Rita e Vilela), bem como que atente aos termos qualificadores selecionados pelo autor para esses personagens. A análise possibilita perceber que a “escolha” dos qualificadores e dos termos de referência não é arbitrária, nem se dá por acaso. Pelo contrário, o que se objetiva é demonstrar que “o escritor (...) procede a escolhas significativas para representar estados de coisas, de modo condizente com seu projeto de dizer” (KOCH & ELIAS, 2012, p. 134), e que os objetos do discurso (no caso, os personagens do conto) são construídos por meio das expressões referenciais e do constante processo de (re)categorização das expressões referenciais.

Segundo Koch (2002, 87), as expressões referenciais em português se configuram da seguinte forma: Determinante + Nome; Determinante + Modificador(es) + Nome

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+ Modificador(es); sendo que os Qualificador(es) podem ser adjetivos, sintagmas preposicionais, ou orações relativas. O(s) Modificador(es) podem vir antes do Nome, como no exemplo: “a bela Rita”, em que “a” é o Determinante Definido, “bela” é o Modificador, e “Rita” é o Nome, ou depois do Nome, como no caso “uma dama tonta e formosa”, em que “uma” é o Determinante Indefinido, “dama” é o Nome, e “tonta e formosa” são os Modificadores (os exemplos foram retirados do conto que será analisado).

Esse uso de expressões referenciais diferentes para um mesmo referente no mundo (no caso, “a bela Rita” e “uma dama tonta e formosa”) é o que Koch & Elias (2012) chamam de processo de (re)categorização. Sobre esse processo, as autoras explicam:

“Os referentes já introduzidos no texto podem ser retomados mantendo as mesmas características e propriedades ou, como é muito comum, com alterações ou com o acréscimo de outras. Isto é, neste segundo caso, passam a fazer parte de outra(s) categoria(s), além daquelas com que foram inicialmente apresentadas” (KOCH & ELIAS, 2012, p. 149).

Nesse sentido, o termo referencial “a bela Rita” é retomado pela expressão referencial “uma dama tonta e formosa”. Esse movimento de (re)categorizar os referentes contribui para a progressão referencial do texto, e, considerando se tratar de um texto narrativo, também está em diálogo com o compasso do enredo e contribui para a construção de significado dos acontecimentos narrados, a partir da orientação argumentativa que o narrador tenta imprimir no texto.

Sobre isso, as autoras explicam que os referentes não refletem o mundo real, não são simples rótulos para descrever a realidade. Eles são construídos e reconstruídos no interior do próprio discurso, de acordo com nossa percepção de mundo, nossa cultura, nossos propósitos comunicativos (KOCH & ELIAS, 2012, p. 134). Segundo Blikstein (1985), “a percepção/cognição transforma o “real” em referente.” (KOCH, 2002, p. 78), e essa “percepção/cognição” é construída social, cultural e historicamente, sendo, portanto, dinâmica, assim como os objetos do discurso, como esclarece KOCH (2002): “os objetos do discurso são dinâmicos, ou seja, uma vez introduzidos, podem ser modificados, desativados, reativados, transformados, recategorizados, construindo-se ou reconstruindo-se, assim, o sentido, no curso da progressão textual” (KOCH, 2002, p. 80-81).

Da mesma forma, as expressões referenciais são construídas de acordo com o projeto de dizer do sujeito enunciativo, de acordo com a orientação argumentativa do enunciado, conforme ilustram Koch & Elias (2012):

“Tanto as expressões nominais (definidas e indefinidas), quanto os rótulos são recursos importantes para levar o leitor em direção às conclusões desejadas, isto é, para que o leitor apreenda a orientação argumentativa do texto. Daí a importância de selecionarmos aquelas expressões nominais e aqueles rótulos mais indicados para revelar o projeto de sentido” (KOCH & ELIAS, 2012, p. 154).

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Esse entendimento é de extrema importância para a análise que será apresentada na sequência.

ANÁLISE

O texto selecionado para a análise é o conto A Cartomante de Machado de Assis, retirado do livro Contos de Machado de Assis, da editora L&PM, publicado em Porto Alegre no ano de 2011. Essa versão do texto segue em anexo e suas linhas foram numeradas para facilitar a referência ao texto no decorrer da análise.

A leitura do primeiro parágrafo do texto já possibilita um questionamento sobre o emprego dos qualificadores para se referir aos personagens Rita e Camilo, ou, como o narrador prefere designar na ativação dos referentes, “a bela Rita” e “o moço Camilo” (linha 2), escolha que não é por acaso. Esse questionamento norteou a presente análise, que se propõe a estudar os referentes nominais (formados por substantivos) dos personagens do triângulo amoroso narrado (Rita, Camilo e Vilela) e seus qualificadores (que foram sublinhados no texto em anexo) no decorrer do texto, em uma tentativa de demonstrar como a percepção do narrador sobre os personagens envolvidos na narrativa impulsiona a escolha dos termos referenciais.

Não foram considerados os nomes próprios, nem os pronomes de tratamento presentes no discurso direto dos personagens, uma vez que o objetivo da análise é demonstrar como as formas referenciais e o processo de recategorização (re)constroem o objeto de discurso do ponto de vista do narrador.

Para isso, é importante ressaltar que o conto é narrado em terceira pessoa e é marcado por um narrador onisciente, que não só acompanha os eventos narrados, como também conhece os detalhes da vida dos personagens, suas características físicas e psíquicas, seus sentimentos e pensamentos, e os transmite aos leitores imprimindo suas próprias percepções. Nesse caso, o estudo das expressões referenciais contribui para identificar a percepção do narrador sobre os personagens e sobre os eventos narrados e também o argumento que ele defende junto aos leitores.

É possível perceber esse funcionamento da narrativa já nas linhas 54-59, em que há uma breve sequência descritiva de Rita e de Camilo. Segundo o narrador, Rita era bonita e “graciosa”, “um pouco mais velha (...) contava trinta anos”, enquanto Camilo, com “vinte e seis” anos, era “um ingênuo”, sem “experiência, nem intuição”. Isso explica a escolha do narrador em qualificar Rita como “bela” e Camilo como “moço”, na linha 2, o que demonstra como o narrador opta por apresentar ao leitor esses personagens, e como ele irá construí-los a partir dessa descrição. Uma interpretação possível é de que, segundo a

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percepção do narrador, foi a beleza de Rita que fez com que Camilo se apaixonasse por ela, ao passo que foi a juventude deste que fez com que aquela se apaixonasse por ele. Por outro lado, Vilela, o terceiro personagem desse triângulo amoroso, é pouco descrito pelo narrador, e essa ausência de características psíquicas e físicas do personagem contribui para o suspense produzido na narrativa, o que demonstra que o discurso é construído a partir de estratégias a fim de efetivar o projeto de dizer do autor, que é ressaltar os “ingredientes” para que se desenvolvesse uma relação de adultério entre Rita e Camilo (ao reforçar tanto as características de ambos os personagens, como circunstâncias da situação) e criar esse suspense sobre como Vilela reagiria se descobrisse essa relação (resultado dessa ausência de características do personagem), que são os elementos principais a partir dos quais se desenvolve a narrativa.

O que se sabe é que Camilo e Vilela são amigos de infância, que seguiram caminhos diferentes, mas voltaram a se encontrar quando Vilela já estava casado com Rita, a quem o narrador se refere como “uma dama formosa e tonta” (linha 47). Mais uma vez, o narrador realça a beleza de Rita e sua ingenuidade (característica que pode ser inferida pelo uso do qualificador “tonta”, reforçada pelo diálogo inicial entre Rita e Camilo, que revela que ela consultara uma cartomante para certificar-se dos sentimentos de Camilo, que ri dela e, ao mesmo tempo se preocupa com a possibilidade de ela ter sido vista). Vale ressaltar que essa ingenuidade de Rita está relacionada a uma certa despreocupação, refletida na urgência em consultar uma cartomante para certificar-se dos sentimentos do amante, sem se preocupar em ser vista nessas circunstância, o que, na visão de Camilo, poderia sugerir o adultério que eles temem seja descoberto por Vilela. Diferente da ingenuidade de Camilo, que resulta da sua imaturidade.

Desta forma, é possível inferir que o narrador propõe que, ao mesmo tempo em que a beleza feminina de Rita fez com que Camilo se apaixonasse por ela, sua ingenuidade, ou seja, sua despreocupação com as consequências de seus atos, levou-a a se envolver com o amigo de infância do marido. Além disso, o emprego do termo “dama” para designar Rita nesse momento da narrativa pode ser interpretado como uma necessidade de o narrador marcar que, nesse momento, ela ainda era uma dama, e é assim que o narrador inicialmente a constrói.

Desta forma, quando Rita e Camilo se conhecem, a relação entre ambos é bem marcada: Rita é “a mulher do Vilela” (linha 53), portanto, alguém com quem Camilo não tem intimidade e estabelece uma relação de respeito, por ser esposa de seu amigo. Aos poucos, uma proximidade maior vai sendo construída, Camilo se torna amigo do casal, e “os dois” – Rita e Vilela, como um casal – (linha 61) oferecem a ele todo o apoio que se espera de amigos, depois da morte de sua mãe. Camilo passa a frequentar mais a casa dos amigos e foi nesse momento que Rita, referida agora como “uma serpente” (linha 78)

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“envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca” (linhas 79 e 80).

A partir desse momento narrativo, a personagem Rita, até então construída como uma mulher bonita e ingênua, uma dama, passa a ser (re)construída pelo narrador como uma mulher ardilosa e esperta, capaz de envolver Camilo, que não consegue fugir-lhe e permite que surja um sentimento entre ambos. Diante dessa nova circunstância, Vilela deixa de ser referido textualmente como “o amigo” e passa a ser referido por meio da expressão “o marido” (linha 71), enquanto Rita é referida como “a mulher amada” (linha 76). O triângulo amoroso está desenhado: o marido, a mulher amada e “o rapaz” (linha 95) – reforçando a juventude e imaturidade de Camilo, que podem ser interpretadas como os motivos que o levaram a se envolver como uma mulher casada. Rita e Camilo começam a se encontrar às escondidas e assim o sentimento de ambos vai crescendo.

Na sequência narrativa, o clímax se inicia quando Camilo recebe uma carta anônima, que declara que a verdade sobre ele e Rita é sabida. Suas visitas à casa de Vilela e Rita começam a se tornar menos frequentes, para não levantar as suspeitas “do marido” (linha 92) – conforme apontado, nesse momento da narrativa, Vilela não é mais o amigo de Camilo, é o marido de Rita. O medo de que alguém revele o que sabe a Vilela se torna constante. Neste momento do enredo, Camilo recebe um bilhete de Vilela, com a seguinte mensagem “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora” (linha 113), palavras que “ditas, assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça” (linha 131-132). A essa altura, Vilela não é mais “o marido” de Rita, é, na perspectiva de Camilo (pois nesse trecho parece que o narrador onisciente está verbalizando os pensamentos do personagem), “o outro”, designação, normalmente, utilizada para se referir ao amante (como se observa na linha 106, em que Camilo é o outro), e não ao marido.

À caminho da casa de Vilela, Camilo se consulta com a cartomante, que exerce um papel importante no conto, não só na perspectiva do enredo, mas também em relação à construção dos personagens e à progressão narrativa. Em sua fala, ela se refere à Vilela como “o terceiro” (linha 189) e à Camilo como o “ragazzo innamorato” (linha 196), ou “rapaz apaixonado”. Nesse momento, Vilela não é mais nem o amigo, nem o marido, é “o terceiro, o outro”. Não é mais Camilo que se interpõe no casamento de Vilela e Rita, mas sim Vilela que interfere no relacionamento de Camilo e Rita. Como já observado no uso do referente “o outro”, há uma inversão nos papéis de Vilela e Camilo.

Depois da consulta, no percurso até à casa de Vilela, e uma vez tranquilizadas as suspeitas de Camilo, Vilela volta a ser “o amigo” (linha 221), que, necessitado da ajuda de Camilo, pediu que este viesse a seu encontro. E, assim, o conto caminha para o seu surpreendente desfecho.

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A bela Rita, uma dama tonta e formosa, a mulher do Vilela, uma serpente, a mulher amada, se envolve com o moço Camilo, o rapaz, o outro, o ragazzo innamorato, provocando a ira de Vilela, o marido, o outro, o terceiro, o amigo, o que só poderia resultar no trágico fim do conto. Esse processo de (re)categorização e (re)construção dos referentes resulta em um movimento discursivo que contribui para a progressão textual e favorece a construção de sentido do próprio texto. No caso do conto analisado, esse movimento discursivo possibilita a composição do suspense da narrativa. Nesse sentido, o que se pretendeu foi demonstrar que a “escolha” dos referentes e de seus qualificadores, no caso da narrativa, está em diálogo com a progressão do enredo e contribui para a construção de significados dos acontecimentos narrados.

Da mesma forma, espera-se que tenha sido possível demonstrar que essa “escolha” dos qualificadores e dos termos referenciais não é arbitrária, nem se dá por acaso. Ela faz transparecer a orientação argumentativa do texto, uma vez que os termos referenciais refletem a percepção do narrador acerca dos objetos do discurso construídos (no caso, os personagens do triângulo amoroso). No caso dos personagens Rita e Vilela, a orientação argumentativa do autor parece ser mais evidente. O uso da expressão “uma serpente” para se referir a Rita quando começa a surgir uma proximidade maior entre Rita e Camilo, sugere que o narrador a culpabiliza pelo adultério, uma vez que ao “ingênuo” Camilo, que não conseguiu fugir das artimanhas de Rita, nada restou a não ser ceder a essa mulher “bela” e “formosa”. Ao mesmo tempo, o uso das expressões “o outro” e “o terceiro” para se referir a Vilela pode ser entendido como uma ironia, pois possibilita que se construa o entendimento de que ele, apesar de ser o marido, estava atrapalhando a relação entre sua esposa Rita, e o amante Camilo, ou seja, o recurso da ironia é construído a partir das expressões referenciais.

CONCLUSÃO

A partir dessa análise, foi possível perceber o quanto o processo de referenciação está relacionado com a progressão textual, no que Koch & Elias (2012) classificam como progressão referencial. Quando Camilo conhece Rita, esta era “a mulher do Vilela”, depois ela passa a ser “a mulher amada” de Camilo, enquanto Vilela, nesse momento da narrativa, já não é mais o amigo, mas sim “o marido” e, no final, não é nem o amigo de Camilo nem o marido de Rita, mas “o outro”, “o terceiro”, o que marca uma sutil inversão nos papéis de Vilela e Camilo, inversão que é construída ao longo do conto. Esses são exemplos de como os referentes e seus qualificadores, por si só, de certa forma contam uma história, e são elementos importantes para o desenvolvimento da narrativa e do discurso.

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Retomando o que Koch (2002) assevera “o processamento do discurso, sendo realizado por sujeitos ativos, é estratégico, isto é, implica, da parte dos interlocutores, a realização de escolhas significativas entre as múltiplas possibilidades que a língua oferece” (KOCH, 2002, p. 81), para que o projeto de dizer do sujeito se concretize no discurso, o que faz com que tais escolhas sejam fundamentais para a construção de significado do enunciado e, consequentemente, estruturas chave para o entendimento do enunciado. Desta forma, a escolha das palavras não se dá ao acaso, mas é uma estratégia para a construção de sentido do texto.

Essa estratégia pressupõe que o processo de leitura e interpretação do texto não esteja centrado no texto, tampouco no autor ou no leitor, mas que dependa do compartilhamento de conhecimentos entre o autor e o leitor, na “memória discursiva”, conforme aponta Koch (2002):

“a interpretação de uma expressão anafórica, nominal ou pronominal, consiste não em localizar um segmento linguístico (um “antecedente”) ou um objeto específico no mundo, mas sim em estabelecer uma ligação com algum tipo de informação que se encontra na memória discursiva” (KOCH, 2002, p. 81).

Ou seja, a interpretação não se limita a identificar a que objeto do mundo a expressão faz referência, ou quais outras expressões também fazem referência a esse mesmo objeto. A interpretação consiste na construção de sentido dessas expressões referenciais, que depende do compartilhamento de conhecimentos (da memória discursiva) entre o autor do discurso e seu interlocutor.

Nesse sentido, como a autora conclui, o entendimento de que a referenciação é uma atividade enunciativo-discursiva, conforme defendido no presente artigo, implica uma noção de língua que não se esgota no código, mas que compreenda língua e linguagem como atividade discursiva e cognitiva, ou seja, construídas no interior do discurso. Mesma noção adotada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de 1998, que preconizam atividades em sala de aula que contemplem esse entendimento. Dessa forma, acredita-se que uma análise assim orientada contribui para uma reflexão sobre o funcionamento textual-discursivo da língua e, consequentemente, para um uso mais elaborado desta, exigido em contextos de leitura significativa.

Os PCNs sugerem que o estudo da língua portuguesa se estruture da seguinte forma: 1) prática de escuta e leitura de textos; 2) prática de produção de textos orais e escritos e 3) prática de análise linguística. O objetivo é refletir sobre o funcionamento da língua e da linguagem em uso, através de análises linguísticas como a realizada no presente trabalho. Quanto aos textos selecionados para as atividades, sugerem gêneros que façam parte da realidade do aluno, tais como “notícias, editoriais, cartas argumentativas, artigos de

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divulgação científica, verbetes enciclopédicos, contos, romances, entre outros” (BRASIL, 1998, p. 26).

Espera-se que o presente trabalho tenha demonstrado a relevância do estudo da referenciação, considerando sua importância para a construção de significação do texto, já que se trata de um processo que reflete o querer dizer do autor e, consequentemente, a orientação argumentativa do texto. Por isso sugere-se que atividades de leitura e análise como a realizada neste trabalho também sejam propostas na sala de aula, pois acredita-se que esse tipo de prática possibilita um melhor entendimento do funcionamento da língua, e favorece, inclusive, as práticas de produção textual.

________________BIBLIOGRAFIA

BRASIL. (1998). Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa/Secretaria de Educação Fundamental. MEC/SEF, Brasília.

KOCH, I. V. (2002). A referenciação. In KOCH, I. V. Desvendando os segredos do texto. Ed.Cortez, SP.

KOCH, I. V. ELIAS, V. (2012). Escrita e progressão referencial. In: KOCH, I. V. ELIAS, V. M. Ler e Escrever: estratégias de produção textual. Ed.Contexto, SP.

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ANEXO

A CARTOMANTE, de MACHADO DE ASSIS2

Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.

– Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: “A senhora gosta de uma pessoa...” Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...

– Errou! interrompeu Camilo, rindo.– Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa.

Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito,

que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...

– Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.– Onde é a casa?– Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa;

eu não sou maluca.Camilo riu outra vez: – Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia

muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranquila e satisfeita.

Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se, Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair

2 Retirado de Contos de Machado de Assis. 2ª reimpressão. Porto Alegre: L&PM. 2011, p. 39-52.

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toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.

Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda Velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.

Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.

– É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor.

Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vente e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.

Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.

Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros

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e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as coisas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muitas vezes os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as coisas que o cercam.

Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita, como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.

Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.

Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.

Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.

– Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...

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Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.

No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas coisas com a notícia da véspera.

– Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel.

Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando na pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a ideia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a ideia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.

Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, — o que era ainda pior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. “Vem já, já à nossa casa; preciso falar-te sem demora.” Ditas, assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a ideia, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.

“Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...”Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele

não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo,

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estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.

Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar à primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a ideia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:

– Anda! agora! empurra! vá! vá!Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em

outras coisas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: “Vem já, já...” E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas coisas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: “Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a filosofia...” Que perdia ele, se...?

Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve ideia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para os telhados do fundo. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.

A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:

– Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...

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Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.– E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...– A mim e a ela, explicou vivamente ele.A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez as

cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.

– As cartas dizem-me...Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não

tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável mais cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.

– A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.

Esta levantou-se, rindo.– Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse

a mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.

– Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?

– Pergunte ao seu coração, respondeu ela.Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram.

O preço usual era dois mil-réis.– Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor.

Vá, vá tranquilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com

um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.

Tudo lhe parecia agora melhor, as outras coisas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe

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descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.

– Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer coisa; parece que

formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.

A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.

Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.

– Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para

uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensanguentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.