Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

16
ROBERTO CHATEAUBRIAND DOMINGUES Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania PUC – Minas / IEC Curso de Especialização Direito Público Belo Horizonte 2007

description

Este texto discute o Projeto de Lei 98/2003 de autoria do Deputado Fernando Gabeira que dispõe sobre a exigibilidade de pagamento por serviço de natureza sexual na perspectiva teórica do processo legislativo

Transcript of Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

Page 1: Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

ROBERTO CHATEAUBRIAND DOMINGUES

Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

PUC – Minas / IECCurso de Especialização

Direito PúblicoBelo Horizonte

2007

Page 2: Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

ROBERTO CHATEAUBRIAND DOMINGUES

Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

Artigo apresentado como trabalho de conclusão da disciplina Processo Legislativo– Curso de Especialização em Direito Público Professor: Luciana Costa

BELO HORIZONTE2007

Page 3: Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

I - Introdução

Encontra-se em processo de apreciação na Câmara dos Deputados o PL 98/2003 de

autoria do Deputado Fernando Gabeira que dispõe sobre a exigibilidade de pagamento por

serviço de natureza sexual e suprime os arts. 228, 229 e 231 do Código Penal.

Em observância ao Regimento Interno daquela Casa Legislativa o referido projeto de lei

foi analisado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, cuja redação do parecer coube

ao Deputado Antônio Carlos Magalhães Neto. Em seu parecer o Deputado opinou pela

constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa do presente projeto de lei e, na conclusão,

rejeitou o mérito da proposta.

Amparados por dispositivos contidos no Regimento Interno foram apresentados votos em

separado por Deputados que também compõem a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania

que apresentam argumentações contrárias ao voto do Relator, sendo que, dentre eles, encontra-se

o voto do Deputado Régis de Oliveira pela inconstitucionalidade, injuridicidade e má técnica do

projeto analisado.

Não obstante a aprovação do parecer do relator durante a sessão de deliberação na

Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, por ser um projeto de lei tendente a alteração de

código legislativo, no caso, o Código Penal, o PL 98/2003 necessita de ser debatido pelo Plenário

da Câmara dos Deputados, o que amplia a possibilidade de discussão do tema pelos

parlamentares. Esta nova etapa do processo legislativo poderá vir a corrigir o fragrante déficit de

legitimidade que caracterizou a aprovação do parecer do Deputado Antônio Carlos Magalhães

Neto pela CCJC.

Na Câmara dos Deputados existem dezoito comissões permanentes1 que dividem entre si

a competência para análise dos projetos propostos por aqueles que constitucionalmente são

designados como titulares da iniciativa privativa para propositura dos projetos de Lei. Apenas a

CCJC possui a prerrogativa de análise de todos os projetos de lei que tramitam na Câmara, por

1 Regimento Interno da Câmara dos Deputados disponivel em www.camara.gov.br acessado em 13 de novembro de

2007.

Page 4: Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

ser esta comissão responsável pela dicção acerca da constitucionalidade, juridicidade e técnica

legislativa de dado projeto de lei. Via de regra, a CCJC não se conforma como sendo uma

comissão permanente da Câmara dos Deputados que avoca para si a competência para análise de

mérito dos projetos de lei que passam pelo seu crivo. Daí a necessidade de designação de uma

outra comissão permanente para cumprir o papel de análise de mérito dos projetos de lei que

tramitam na casa.

Na perspectiva de um Estado Democrático de Direito, circunscrever a discussão de um

projeto de lei a uma única Comissão Permanente da Câmara dos Deputados, tende a

comprometer o procedimento básico e indispensável na construção de acordos possíveis em uma

sociedade plural e complexa como a brasileira que é o debate ampliado com a participação de

atores que apresentam matizes ideológicos distintos. Quase que inevitavelmente, nesse cenário,

há uma redução do espaço para a exposição de argumentos consistentes e racionais, privando a

audiência da possibilidade de análise da questão pelos seus mais diversos ângulos. Por via de

conseqüência, tal processo restrito diminui a chance do surgimento do melhor argumento capaz

de provocar a adesão de todos em torno de uma decisão mais adequada e mais legítima.

Nesse sentido, se mostra pertinente, tanto quanto necessário, tecer considerações com

relação aos argumentos contidos no parecer aprovado e nos votos em separado apresentados

pelos Deputados no curso do debate travado na CCJC.

II - Sobre a a argumentação apresentada pelo Relator

O parecer apresentado relator designado para a tarefa, embora fundamentado e escorado

em doutrina de inconteste valor, demanda reparos que podem afetar o entendimento da matéria

pelos demais deputados que analisarão o PL 98/2003 seja na CCJC, seja no Plenário da Câmara

dos Deputados.

Não obstante a correção da análise apresentada pelo Deputado Antônio Carlos Magalhães

Neto ao indicar a dupla faceta do PL 98, uma apontando para instituto do Direito Civil e a outra

para o Direito Penal, é importante reconhecer a necessidade hodierna de se proceder a

imprescindível filtragem constitucional da matéria em tela, sob pena de se aprisionar o debate

aos limites da lógica privatística, sabidamente insuficiente para dar conta da emergência de

fenômenos complexos como é o caso da prostituição.

Page 5: Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

Ao argumentar acerca da impossibilidade de se abrigar a relação estabelecida entre a

prostituta e seu cliente sob o manto do Direito, especificamente no tocante à constituição de um

contrato comercial, o Deputado alega não encontrar tipificação da espécie de contrato, já que

inexiste “previsão legal de um contrato cujo objeto seria o comércio do próprio corpo para fins

libidinosos”.

Cabe, aqui, algumas considerações. Preliminarmente, os termos da assertiva nos autoriza

a entender que o problema identificado pelo Deputado seria a ausência de sintonia entre os fins

libidinosos do comércio do próprio corpo com o sistema jurídico pátrio e não, exatamente, o

comércio do corpo. Em última instância, toda e qualquer atividade humana pressupõe, em maior

ou menor medida, o comércio do próprio corpo como substrato material para consecução dos

objetivos do ser humano, seja na seara comercial ou não.

Não é diferente quando analisamos o exercício da prostituição. Como as demais

atividades humanas, o corpo se encontra presente e se mostra indispensável, porém, o comércio

que se estabelece é de outra ordem, já que se encontra em jogo fantasias e desejos que a

profissional do sexo sabe, como ninguém, oferecer e manejar com maestria técnica.

Nota-se que o contrato comercial ali formalizado possui como objeto não o corpo da(o)

profissional, mas sim as fantasias por ela(e) representado. Opera-se, portanto, em nível

simbólico, estando a alegação de venda ou comércio de corpos destituída de sentido material. Em

clássica definição vê-se que ocorre é, sem sombra de dúvida, a alienação da força de trabalho

da(o) profissional do sexo, gerada, inegavelmente, pelo seu corpo. Porém, este não é o objeto do

comércio, a não ser que se queira manter a singela e simplista interpretação da atividade

autônoma exercida por esses cidadãos como sendo análoga à escravidão, sustentada por aqueles

que enxergam a prostituição através de lentes moralistas que lhes asseguram uma distância

segura, tanto desta realidade quanto do Estado laico e racional em que vivemos.

Ademais, dizer da incompatibilidade da atividade profissional exercida pelas prostitutas

com o ordenamento jurídico pátrio é ignorar que, por ato do Ministério do Trabalho e Emprego2,

procedeu-se a sua inclusão na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) em 2002 sob o

código 5198. Vale ressaltar que a CBO, sendo ato legítimo de órgão ligado ao Poder Executivo,

possui caráter normativo e, como tal, é incorporado ao sistema jurídico brasileiro.

2 Portaria Nº 397, de 09 de outubro de 2002

Page 6: Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

Por fim, afirmar a inexistência de tipificação do contrato em espécie para lhe negar

proteção jurídica é desconhecer a possibilidade da constituição de contratos atípicos ou

inominados, de acordo com a mais balizada doutrina jurídica. Tal negativa constitui, ao fim e ao

cabo, uma grave violação ao princípio da igualdade insculpido no texto constitucional de forma

explícita e inquestionável como direito fundamental.

Isto posto, evidencia-se que a relação comercial estabelecida entre as(os) profissionais do

sexo e seus clientes configura-se, inequivocamente, como um negócio contratual. Sua atipicidade

encontra-se na imaterialidade de seu objeto, o que não altera a sua estrutura conforme nos

informa a Teoria Geral dos Contratos. Trata-se de um negócio jurídico bilateral, comutativo,

conformado pelo acordo de vontades firmado entre as partes envolvidas que, por questão de

justiça, deveria gerar direitos e deveres.

Como negócio jurídico contratual cuja faticidade é inegável, faz-se imperativo o

reconhecimento da incidência do princípio da função social dos contratos, já que este visa

conferir aos contratantes medidas ou mecanismos jurídicos capazes de coibir qualquer

desigualdade dentro da relação contratual Torna-se evidente, partindo da noção de função social,

que o Estado deve criar mecanismos de defesa que possam impedir que o mais fraco seja

espoliado pelo mais forte.

Na relação entre a(o) profissional do sexo e o seu cliente, sobretudo em razão da

clandestinidade que cerca todo o seu entorno, a identificação da parte hipossuficiente se mostra

inequívoca. A(o) profissional do sexo, ao ser contratada(o) para prestação de serviços sexuais

fica à mercê do cliente que pode se recusar a cumprir o acordado, pois não existe mecanismo

legal que o obrigue a fazê-lo. Rompe-se, dessa forma, também com o princípio da boa-fé

objetiva3, princípio estruturante de todo e qualquer negócio jurídico em uma sociedade que se

pretende justa e solidária.

A Constituição de 1988, mantendo em perspectiva os valores da solidariedade e da

construção de uma sociedade mais justa, respeitando, sempre, a dignidade da pessoa humana

consagrou o trabalho como o direito fundamental. Em momento algum, sobretudo em uma

leitura sistemática da Carta Magna, pode-se encontrar óbice à prostituição como atividade

profissional, tanto é que o relator não apontou inconstitucionalidade no texto do Projeto de Lei

em discussão. 3 Venosa, Sivio Salvo. Curso de Direito Civil – Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Ed. Atlas, 2004

Page 7: Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

Reafirma-se aqui o caráter de trabalho profissional, legítimo e lícito, buscando, em última

análise, a declaração de sua legalidade expressa e, por via de conseqüência, proteção jurídica de

seu exercício e dos direitos dela decorrentes.

Todavia, não foi este o entendimento do Deputado relator do PL 98/03, justificando a sua

posição a partir de argumentos morais, de cunho bastante próximo do discurso religioso. O

Deputado afirma que a relação estabelecida entre a(o) profissional do sexo e seu cliente atenta

contra a moralidade na qual a sociedade brasileira se apóia. O parlamentar parte da premissa de

que a sociedade possui uma base homogênea de formação moral que a antecede, sendo passível

de ser desvelada, em uma operação de auto-reflexão de seus integrantes.

Entretanto, na sociedade contemporânea não é este o fenômeno que se apresenta. Um

Estado Democrático de Direito é marcado pela complexidade, pluralidade e diversidade da

sociedade que o conforma o que implica no reconhecimento da necessidade de formulação de

acordos. A legitimidade destes acordos que normatizam a vida em comunidade pode ser aferida

pelo procedimento que os regulam, sendo indispensável a participação livre e em simétrica

paridade de todos os seus destinatários. Um debate, como é o caso em tela, em que o argumento

central de uma das partes se tece exclusivamente sob bases morais, têm-se ferida de morte a

lógica procedimental exigida. Diante de argumentos transcendentes, interrompe-se a cadeia

discursiva posta em movimento e se instala não o dissenso, mas o silêncio, seja este reverencial

ou cínico.

Em um Estado Democrático de Direito normas morais e normas jurídicas não se

confudem, embora se complementem. Uma ordem jurídica se legitima ao não contrariar

princípios morais, embora, é cediço que o código moral vigente não se construa de forma

espontânea no seio de uma dada sociedade, pois obedece, via de regra, ao comando da vontade

humana dirigida para tal fim. Percebe-se que não existe hierarquia normativa entre Direito e

Moral, não sendo possível destacar uma certa norma moral que o Direito não pudesse contrariar

ou o inverso4. Em outras termos, Direito e Moral não se auto-subordinam, ainda que

estabeleçam, entre sim uma nítida relação de complementariedade.

4 Vemos assim, a título exemplificativo, que ninguém poderia ser civil ou penalmente punido por fumar em praça pública ou no interior de sua residência ainda que a fruição de tabaco venha sendo, na atualidade, moralmente reprovado por uma significativa parcela da sociedade brasileira.

Page 8: Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

Na concepção habermasiana, a ordem jurídica, buscando legitimar-se, não transcreve

platonicamente toda a ordem moral, embora busque nela alguns conteúdos. Entretanto, tais

conteúdos morais, neste processo de transmutação, passam a sofrer depurações necessárias

visando compor o conjunto de normas jurídicas que regulam vida em sociedade, a partir da

autonomia política de seus membros que podem desconsiderar parcelas significativas desta

mesma ordem moral5.

III - Sobre a a argumentação apresentada pelo Voto em Separado do Deputado Regis de Oliveira

Contrariando o entendimento do Relator, o Deputado Régis de Oliveira apresenta

arrazoado contrário à constitucionalidade do PL 98 de 2003, sustentando, para tanto, violação do

direito à privacidade e à intimidade dos sujeitos envolvidos na contratação do negócio sexual,

direitos fundamentais protegidos pelo inciso X do art. 5o da Constituição da República.

De acordo com a lógica defendida no voto em separado pelo Deputado, frente a violação

dos termos do contrato estabelecido entre a(o) profissional do sexo e seu cliente e sua

conseqüente reclamação em juízo haveria a exposição pública da intimidade dos sujeitos,

devassando a vida privada daqueles que se escudavam na clandestinidade do negócio sexual.

Não há de se colocar um reparo sequer na lógica utilizada, pois a provocação do judiciário para

decidir uma lide entre particulares impõe, sem sobre de dúvida, a publicidade, via de regra,

corolário das medidas jurisdicionais. Todavia, esta mesma lógica revela a perversidade intrínseca

do estado de coisas que conserva a prostituição segregada a um espaço cuja imposição do

silêncio e invisibilidade protege apenas uma das partes contratantes, em geral, o cliente.

Como pode ser claramente demonstrado a clandestinidade do negócio favorece a

manutenção da injustiça e da violência contra a parte hipossuficiente do negócio realizado, o que

viola o direito fundamental ao acesso à justiça, este também consagrado pelo texto

constitucional.

Conforme balizada doutrina, o ordenamento jurídico pátrio não abriga direitos absolutos e

no caso de conflito entre direitos fundamentais aplica-se a técnica de ponderação de interesses.

5 MOTTA, Paulo Roberto Ferreira. Direito e Moral: Qual o conteúdo para a Constituição?. Revista Diálogo Jurídico, número 11 - fevereiro de 2002. Salvador - Bahia.

Page 9: Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

Nesta prevalece o direito que melhor responde aos ditames da ordem social, sem que se tenha,

necessariamente, que afastar de todo o outro direito sucumbente.

Na discussão em tela, em que, aparentemente, colidem direitos fundamentais de proteção

à vida privada e intimidade, por um lado, e o acesso à justiça por outro lado, também se poderia

cogitar a utilização da ponderação de interesses, mas não parece ser o caso. É importante

recordar que estamos operando na seara de comportamentos praticados por sujeitos livres e

autônomos, cientes de suas obrigações e direitos e, como bem frisou o Deputado Régis de

Oliveira, não haveria óbice em encarar o sexo comercial dentre as hipóteses legais de

contratação. Assim sendo, ainda perquirindo a função social dos contratos acima mencionada, a

contratação de serviços sexuais mediante contraprestação pecuniária implica na observância do

dever de adimplemento dos termos negociados por ambas as partes. Como todo e qualquer

negócio, caso haja inadimplemento das condições acordadas nasce, para a parte lesada, o direito

de reclamar judicialmente o que lhe é devido. A responsabilização pelo descumprimento do

contrato e sua reclamação posterior configura-se como ônus ínsito ao ato praticado, a saber,

fruição gratuita de um serviço que se pretendia remunerado, ato este que se quer, a partir da

aprovação do PL 98, que seja considerado um ilícito civil.

Partindo do pressuposto defendido pelo Deputado Régis de Oliveira, em nome da

intimidade e da vida privada se institucionalizaria, pela via legal, o comumente denominado

“calote” toda vez que se tratasse de descumprimento de contratos relativos à esfera privada dos

indivíduos ou qualquer ato que a atingisse, uma vez que a sua reclamação implicaria em

desvelamento do ato repudiado socialmente, ainda que praticado de forma reservada.

Mais correto parece ser a hipótese de que, em nome da intimidade e da privacidade, a sua

melhor e maior proteção passa a ser a observância do que é correto e justo. Aplicando a assertiva

ao caso do contrato estabelecido entre profissional do sexo e seu cliente, o desejo legítimo de

manutenção do caráter de clandestinidade ao negócio realizado seria a prestação do serviço

contratado e seu respectivo pagamento, conforme acordo prévio. Nem mais, nem menos.

Garante-se, assim, o sigilo do negócio e a satisfação dos contratantes, sem riscos ou dissabores.

Não há como prosperar a argumentação do Deputado que, ao fim e ao cabo, demonstra

que o caráter inconstitucional reside na omissão do Estado em proteger os seus jurisdicionados.

Ao manter na clandestinidade e, portanto, fora do manto protetivo do Direito, negócios jurídicos

Page 10: Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

que geram incontestes efeitos fáticos o Estado, pela via de omissão legislativa, suprime os

reclamos de justiça há muito demandados.

Buscando sustentar o seu posicionamento ideológico, o Deputado Régis de Oliveira alega

que a sociedade brasileira não se encontra em um estágio evolutivo, sociologicamente falando,

apto a conviver com a legalização da prostituição em seu seio, embora não consiga demonstrar

elementos fáticos que comprovem a sua afirmação. De acordo com o seu voto em separado, a

sociedade brasileira, não obstante sua constante e veloz evolução, ainda demandaria

amadurecimento para acatar uma inovação dessa magnitude.

A atenta observação do Deputado, ao que parece, não possui a acuidade que a análise da

complexa realidade de nosso país exige, tendo em perspectiva o seu caráter plural e diverso,

senão vejamos.

Desde 1989 o Ministério da Saúde demanda a participação das(os) profissionais do sexo

na elaboração e implementação de políticas públicas de prevenção às Doenças Sexualmente

Transmissíveis e AIDS. Ao contrário do que observava na primeira metade do século XX,

quando as prostitutas eram destinatárias de ações de controle sanitário, nos últimos anos

verificou-se uma mudança estrutural na relação desse segmento social e o Estado. Atualmente,

mulheres e homens profissionais do sexo atuam na prevenção de DST e AIDS para além das

estratégias de educação de pares, pois desenvolvem trabalhos, de norte a sul do país, junto a

segmentos diversos da sociedade com grande desenvoltura e êxito, além de ocupar assento em

órgãos de controle social, definindo políticas públicas que gerarão efeitos na população como um

todo.

Na contemporaneidade temos o glamour da ficção retratando o cotidiano de profissionais

do sexo, com maior ou menor fidedignidade, a ponto de transformar uma impensável

personagem, ‘garota de programa’, em inegável protagonista de uma novela exibida em horário .

Fenômeno semelhante é observado a partir do inequívoco desejo voyuer de milhares de

exemplares de livros que relatam as aventuras e desventuras de uma profissional do sexo, cuja

história rende dividendos à sua protagonista até a presente data, quando inicia-se a sua adaptação

para o cinema.

Todavia, emblemático é o surgimento, expansão e sucesso da grife carioca DASPU, de

autoria e gestão de prostitutas que lutam pelos direitos civis de sua categoria profissional através

da arte e moda. Desde o seu lançamento, em 2005, a grife vem conquistando mercado estando

Page 11: Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

presente em diversos pontos de venda no país, comercializando um número expressivo de peças

por mês. A marca destas peças remete ao estilo de vida das prostitutas e vem sendo consumida

por homens e mulheres, sem distinção de classe social, idade ou raça, demonstrando a adesão da

população à iniciativa das prostitutas cariocas.

No portifólio da DASPU, além dos desfiles promocionais promovidos pelas prostitutas-

modelos, estão listadas participações no São Paulo Fashion Week e Rio Fashion, principais

vitrines da moda no país, recebendo elogios e ampla divulgação pelos meios de comunicação de

massa. Além disso, a Bienal de Arte Moderna realizada no MAM, na cidade de São Paulo, expôs

uma das criações da DASPU durante a sua edição de 2006, revelando a importância do

fenômeno representado pela grife elevando a moda das prostitutas cariocas ao estatuto de arte

contemporânea.

A mudança radical e perceptível na sociedade brasileira quanto a sua representação com

relação à prostituição pode ser ainda aferida a partir da reação popular frente aos casos de

agressão às mulheres identificadas como prostitutas, veiculados pela grande mídia em 2007. As

inúmeras manifestações públicas de repúdio às alegações que tentaram justificar a violência

contra mulheres em função de uma suposta identificação delas como profissionais do sexo

demonstram que a sociedade civil não mais aceita o tratamento desigual que até muito pouco

tempo era dispensado a esse segmento social. Nota-se que existe um reclamo nacional em

direção à concretização dos direitos fundamentais expressos pelo texto constitucional, sobretudo

a igualdade de todos diante da lei.

IV - O debate no âmbito do Direito Penal

Mantendo em perspectiva a discussão no âmbito do Direito Civil e Constitucional acima

debatido se faz imprescindível perquirir acerca da incompatibilidade lógica entre o permissivo

legal extraído da Constituição de 1988 e as normas contidas no Código Penal, cuja vigência data

da primeira metade do século passado. Sendo a prostituição uma atividade lícita chega a ser

paradoxal que todo o seu entorno seja penalmente punível, restringindo, de forma extrema o

exercício profissional do sexo comercial por mulheres e homens, adultos, livres e autônomos. O

próprio relator afirma, in verbis: “ A prostituição não deve ser crime, não porque a essência do

crime consiste na violação de um direito, que na hipótese não existiria (como pensa o douto

Page 12: Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

Magalhães Noronha, seguindo, aliás, a lição dos clássicos). A essência do crime consiste na

violação de um bem ou interesse jurídico, ou seja, num desvalor da vida social, que pode não se

traduzir num direito”.

Ao se manter as normas penais incriminadoras expressas nos artigos 228, 229 e 231 do

Código Penal, mais uma vez, rompe-se com a lógica protetiva prescrita pelo texto constitucional,

tornando inacessível a um contingente expressivo da população brasileira a fruição legítima de

seus direitos fundamentais.

Sob o pretexto de proteger mulheres e homens, frise-se, adultos e autônomos, da

exploração sexual a legislação penal impõe a elas(es) um regime de punição da pior espécie, já

que não encontra previsão legal para tanto e o faz de forma transversa. Ao se exigir a apenação

dos chamados agenciadores da prostituição é retirado das(os) profissionais do sexo a

possibilidade jurídica de reivindicar condições dignas e adequadas de trabalho, discussão acerca

de direitos decorrentes das relações profissionais, enfim, de exigir tratamento isonômico como

jurisdicionados que são. Mantêm-se, desse modo, cidadãos classificados como sendo de segunda

categoria em um ordenamento jurídico de repudia toda e qualquer forma de discriminação e

reputa a igualdade, não apenas formal, mas, sobretudo, a igualdade material, como valor

intrínseco da República Federativa do Brasil.

Ao se conservar o entorno da prostituição criminalizado cria-se uma zona cinzenta que

sustenta a representação do exercício profissional das mulheres e homens que se dedicam ao

sexo comercial como sendo fonte unívoca de toda sorte de ilegalidades. De certa forma esta

representação social ampara-se em suportes fáticos, já que, não raramente, indivíduos vinculados

às atividades ilícitas se aproveitam da tolerância social que está associada ao fenômeno da

prostituição para se escudarem e tornar sua prática o mais invisível possível, sobretudo, da ação

policial. O efeito imediato desse estado de coisa é a confusão entre as(os) profissionais do sexo e

aqueles cidadãos que praticam delitos ofendendo a ordem pública, fazendo crer que se trata de

um grupo homogêneo, todo ele envolvido e implicado na ilegalidade.

Além disso, sob a égide do argumento de que, supostamente, a criminalização dos

empresários do sexo reprimiria a exploração das(os) profissionais do sexo, em especial, as

mulheres prostitutas, incorre-se em um grave equívoco cuja lógica é transparente. Têm-se, de

fato, a manutenção e agravamento desta mesma exploração. Sem o manto do Direito para regular

as relações estabelecidas entre as prostitutas e seus empresários, sejam eles os conhecidos

Page 13: Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

cafetões, gerentes de hotéis ou donos de ‘boites’ que não obtém vantagem financeira direta com

o “programa” realizado, estas mulheres se sujeitam a condições de trabalho indignas e até

mesmo degradante sem que se possa lançar mão da reclamação jurisdicional por se tratar de uma

relação cujo objeto, por ser ilícito, configura-se como sendo um pedido impossível no

ordenamento jurídico. Constroem-se uma lógica perversa e circular que mantém estas mulheres

sob o jugo de práticas arbitrárias e abusivas sem a possibilidade concreta e material de reverter

esta situação a seu favor, ou melhor dizendo, a favor da ordem pública baseada no Direito que

uma sociedade que se pretende justa e solidária reclama.

Outros dois argumentos apresentados ao debate visando a conservação das normas penais

que criminalizam os empresários do sexo diz respeito ao que se costuma denominar

erroneamente de ‘prostituição infanto-juvenil’ e ao tráfico de pessoas.

No primeiro caso, têm-se uma flagrante confusão conceitual, nem sempre politicamente

inocente, mas que produz efeitos que faz o seu argumento principal se enveredar por caminhos

distantes da racionalidade exigida a todo e qualquer debate público que vise a construção de

acordos sociais. Ao trazer à cena crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, com

inequívoco apelo emocional e profundo repúdio social, o debate sobre o imperativo da

manutenção da proibição legal do agenciamento do sexo comercial é, forçosamente,

interrompido pela irrupção de elementos irracionais, ainda que absolutamente compreensíveis.

Como foi frisado anteriormente, a prostituição refere-se a uma atividade realizada por

sujeitos adultos e autônomos. Assim compreendido tal conceito não pode ser utilizado para

designar uma prática ilícita que se relaciona com violação de direitos inalienáveis de menores, já

que nesta, indubitavelmente, vislumbra-se a figura da exploração sexual de crianças e

adolescentes. Esta conduta, típica, ilícita e culpável, encontra-se descrita com respectiva pena

cominada em Lei Especial, como é o caso do Estatuto da Criança e da Adolescência, cuja

aplicação independe da eficácia do Código Penal vigente no país.

No Brasil, com base nos diplomas legais supra mencionados, não se faz necessário, no

tocante a manutenção de relações sexuais com menores, a configuração de transação comercial

para que a conduta seja punida. Vê-se, portanto, que a sustentação deste argumento como

estratégia racional de coibição deste ilícito não prospera e revela um forte componente

emocional.,tanto quanto moral, para o convencimento e formação da vontade pública sobre a

questão.

Page 14: Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

No tocante ao art. 231 do Código Penal, que dispõe sobre o tráfico de pessoas, a lógica

aplicada deveria ser a mesma exposta acima, já que o bem jurídico tutelado é a liberdade do

indivíduo e não a sua ocupação profissional. A alteração legislativa realizada com o fim de

normatizar com maior clareza e amplitude essa questão, ao que parece, contempla as hipóteses

que o referido artigo busca coibir, sendo mais eficaz em sua nova redação. Ao se conservar o

texto original do art. 231 do diploma penal vigente observa-se uma completa inversão do valor

jurídico a ser preservado, mais uma vez regulando o exercício legal de uma atividade

profissional em detrimento da violência e coerção relativo à privação da autonomia e liberdade

do sujeito.

Avocando ao debate subsídios teóricos advindos de outras ciências e, desta forma,

extrapolando a esfera jurídica propriamente dita, verifica-se a incidência de elementos típicos de

uma sociedade patriarcal que macula e torna absolutamente assimétricas as relações

estabelecidas entre homens e mulheres na sociedade brasileira.

Disciplinas afins e necessárias à compreensão do fenômeno social, como a sociologia e a

antropologia, oferecem o socorro nececessário ao debate em tela e nos coloca em contato com

dados e informações que traduzem a realidade de forma cristalina. Roberto DaMatta, demonstra

através de seus estudos antropológicos, a profunda discrepância entre a educação que forja os

homens e as mulheres brasileiras, fazendo com que os primeiros sejam criados para enfrentar os

desafios da 'rua', em uma clara referência à vida, enquanto as mulheres são condicionadas ao

espaço reservado da 'casa'. 6

A assimetria das relações de gênero, que tem o seu termo inicial na educação familiar, se

solidifica e se naturaliza ao longo da vida desses sujeitos, revelando sua real dimensão nas

relações sexuais, construídas e (re) interpretadas socialmente.

No âmbito desta discussão, observando a ação humana que poderia ensejar o que se

reconhece como sendo tráfico de pessoas, quando o sujeito ativo é o homem nota-se, claramente,

a tendência de identificar a sua conduta como sendo imigração, voluntária e autônoma, em busca

de melhores condições de vida, seja para si, seja para a sua família, independentemente da

ocupação laboral a que venha a se dedicar. Por outro lado, em se tratando de mulheres,

especialmente quando a atividade é a prostituição, não raro, a conduta é tipificada como tráfico

de pessoas, ainda que esta seja uma opção livre e voluntária. 6 DaMatta, Roberto. A Casa e a rua. São Paulo: Ed. Rocco, 1997

Page 15: Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

Curiosamente, naqueles casos em que mulheres brasileiras, em evidente estado de

carência econômica e social, saem de sua cidade natal para trabalhar como domésticas ou

atividades afins, tanto em caráter de emigração quanto de imigração, por exemplo, mesmo em

condições degradantes e desumanas, não são relacionadas como sujeitos passivos do crime de

tráfico ou, ainda, do crime de sujeição a condição análoga à escravas, ambos previsto no Código

Penal brasileiro.

Cumpre ressaltar que, seja qual for a atividade à qual cidadãos/cidadãs brasileiros(as) se

dediquem, inexistindo o componente volitivo ou na presença de elementos que indiquem

obstáculos ao retorno destes sujeitos à sua condição anterior, como é o caso de retenção de

documentos ou de exigências descabidas que implicam em divídas, absolutamente,

incompatíveis com a capacidade de adimplência deste sujeito, têm-se, de forma inequívoca, a

configuração de tráfico de pessoas ou escravidão, cabendo medidas drástica de coibição e

punição aos responsáveis, uma vez que tais condutas contrariam, frontalmente, o ordenamento

jurídico pátrio, da mesma forma que o faz às normas do Direito Internacional que regulam esta

matéria.

Nestes casos, a proteção reivindicada refere-se ao imperativo constitucional de garantia e

proteção da dignidade da pessoa humana, princípio chave que constituI o fundamento da

República Federativa do Brasil.

Não se pode olvidar que, mesmo carecendo de clareza conceitual, dignidade da pessoa

humana deve ser compreendida como sendo a liberdade do ser humano de optar de acordo com a

sua razão e agir conforme o seu entendimento e sua opção, sendo condição de valor intrínseco do

ser humano, que gera para o sujeito o direito de decidir de forma autônoma sobre os seus

projetos existenciais e de felicidade.7

Todavia, de acordo com a lógica social vigente, ao que parece, homens migram e

mulheres, desde que profissionais do sexo, são traficadas. Desvela-se, assim, uma moralidade

estranha ao ordenamento jurídico que impõe igualdade entre homens e mulheres e total ausência

de discriminação em relação ao gênero. Porém, não é o que vislumbra ao impedir que mulheres,

de forma autônoma e livre, tracem o seu próprio destino, tangenciando, de forma perigosa, a

violação do princípio da dignidade da pessoa humana.

7 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. 4ª edição. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2006.

Page 16: Prostituição - Constituição, Justiça e Cidadania

Ao fim e ao cabo, podemos chegar a conclusão de que a criminalização sistemática da

prostituição é uma estratégia moral e legal de controle da sexualidade das mulheres que espanca,

além pressuposto republicano central acima mencionado, o princípio da igualdade insculpido no

art. 5o, Caput, da Constituição da República.

Reivindicar a tutela do Estado para regular atividade desprovida de desvalor relativo às

relações sociais, conforme nos indica o próprio relator do PL 98/03, é retirar dos sujeitos a sua

autonomia, implicando, em ultima ratio, na desconsideração de sua capacidade cidadã de se

auto-determinar em sociedade. Em outros termos, é a afirmação de uma tutela estatal tendo em

vista um grupo social considerado, formalmente, incapazes para a vida civil.

Não nos parece ser este o encaminhamento mais prudente e adequado, como bem

demonstra estarmos todas(os) aqui, nesta esfera pública de discussão, participando como sujeitos

iguais, autônomos e livres, buscando encontrar o adequado caminho para realizar, e garantir, os

preceitos constitucionais que guiam e orientam nossa vida em sociedade.