PROSPECÇÕES: Artes Visuais, História e Crítica no Vigorar ... · Eu te recebo de pés...

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1 PROSPECÇÕES: Artes Visuais, História e Crítica no Vigorar do Poético Janaína Laport Bêta Rio de Janeiro Fevereiro de 2015

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PROSPECÇÕES:

Artes Visuais, História e Crítica no Vigorar do Poético

Janaína Laport Bêta

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2015

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PROSPECÇÕES: Artes Visuais, História e Crítica no Vigorar do Poético

Janaína Laport Bêta

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Poética).

Orientador: Profº Dr. Manuel Antônio de Castro

Rio de Janeiro Fevereiro de 2015

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PROSPECÇÕES: Artes Visuais, História e Crítica no Vigorar do Poético

Janaína Laport Bêta

Orientador: Professor Doutor Manuel Antônio de Castro Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Poética). Examinada por:

______________________________________________________ Presidente, Professor Doutor Manuel Antônio de Castro

_______________________________________________________________ Professor Doutor Antônio Jardim – Escola de Música UFRJ _______________________________________________________________ Professor Doutor Antônio Máximo Ferraz – Faculdade de Letras da Universidade Federal do Pará _______________________________________________________________ Professor Doutor Igor Teixeira Silva Fagundes – Escola de Educação Física e Desportos UFRJ _______________________________________________________________ Professora Doutora Teresa Cristina Meireles de Oliveira – Faculdade de Letras UFRJ _______________________________________________________________ Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho – Faculdade de Letras UFRJ - Suplente _______________________________________________________________ Professora Doutora Maria Ignez Calfa - Escola de Educação Física e Desportos – UFRJ - Suplente

Rio de Janeiro Fevereiro de 2015

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FICHA CATALOGRÁFICA

Bêta, Janaína Laport.

PROSPECÇÕES: Artes Visuais, História e Crítica no Vigorar do Poético /Janaína Laport Bêta. Rio de Janeiro: UFRJ, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Poética), 2015.

x, 205f.: il; 31cm. Orientador: Manuel Antônio de Castro Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa

de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Poética), 2015. Referências Bibliográficas: f.196-202.

1. Arte e História da Arte. 2. Resumo da trajetória historiográfica da arte. 3. História e estética. 4. Mortes da arte – Hegel e Duchamp. 5.Danto e Hans Belting. 6. Marcel Duchamp e a essência da técnica moderna. 6. Poiésis e techné. 8. A obra de arte como dispositivo. 9. A relação sujeito-objeto. 10. O sentido da arte. 11. Imbricações entre Arte, cultura e o homem. 11. Obras e questões. 12. As épocas no tempo poético. I. Castro, Manuel Antônio de (Orient.). II.Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Literatura (Poética). III. Prospecções: Artes Visuais, História e Crítica no Vigorar do Poético.

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Gratidão

Aos meus olhos, pelo modo como ainda se espantam, e a todas as coisas que ainda

verei sob a luz que os fazem aclarados.

Ao movimento feroz da vida, que fortalece.

A você meu amor, por seu coração generoso que a cada dia faz mais sublime a

dimensão do ser-com, e a nossa linda Maria, cuja existência nos repleta.

Sou grata uma vez mais e para sempre ao meu grande mestre

Manuel Antônio de Castro, pela alma forte e generosa que me inspira, por

provar dia após dia com a nobreza de gestos e atitudes que poética não é

conhecimento, mas sabedoria. Alguém que, para muito além de estar, sabe

Ser no mundo.

Registro aqui suas inspiradas palavras:

Não basta conhecer, é preciso ser o que se conhece.

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Eu te recebo de pés descalços: é esta a minha humildade e esta nudez de pés é a minha ousadia.

Clarice Lispector (1999, p.51)

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RESUMO

PROSPECÇÃO Artes Visuais, História e Crítica no Vigorar do Poético

Resumo de Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós Graduação em Ciência da Literatura (Poética), da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Poética). Acreditamos seja a arte a porção mais humana do homem, constituindo sua essência tanto quanto a liberdade. Vivemos dias ensombrecidos, onde, em nome da arte, desde Marcel Duchamp, apresentam-se dispositivos conceituais que nos causam perplexidade. Uma fissura abissal se instala entre arte e obras. Obras ausentes de arte. Onde o homem se perdeu de si mesmo e da essência do criar? Neste estudo imbricam-se artes visuais e sua escrita nos descaminhos do contemporâneo. Na modernidade o homem embrenha-se pelos caminhos do desvelamento explorador, e, enveredando-se pela técnica moderna desconecta-se da face originária da arte. Tudo passa a girar em torno da funcionalidade e dos fins. Proclama-se o fim da arte e o fim da história. Mas o que é o homem sem arte e história? O que é arte? O que é história? Tais questões nos conduzem ao pensamento originário de Martin Heidegger acerca das questões do sentido do ser e do vigorar do poético. Para compreendermos os descaminhos da produção artística em nosso tempo e da escrita que a acompanha, antes haveremos de nos interrogar a respeito do que seja arte. Do que seja homem. Do que seja a humanidade do homem. Haveremos de pensar a essência do agir humano, a que os gregos nomearam poiésis. Palavras chave: Morte da Arte, Arte contemporânea, Phýsis, Poiésis, techné.

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ABSTRACT

PROSPECTION Visual Arts, History and Criticism in Poetic Force.

Abstract of a Doctoral Thesis submitted to the Postgraduate Program in Science Writing (Poetry), at the Federal University of Rio de Janeiro – UFRJ, as part of the requirements needed to obtain the title of Doctor of Science in Writing (Poetry). We believe art is the most human part of the human being, its substance and freedom. We live shadowy days, and in the name of art since Marcel Duchamp, conceptual devices are causing perplexity. An abysmal fissure settles between art and artworks, with artworks lacking art. When has man lost himself and the essence of creating? This study investigates visual art and the writings about it in the confusing paths of contemporary. In modernity, man explores unveiling paths, and, in doing so, he enters modern technique disconnecting from the face of the original art. Everything begins to revolve around functionality and purpose. The end of art and the end of history are proclaimed. But what is man without art and history? What is art? What is history? Such questions lead us to the thought of Martin Heidegger about “being” and “poetic force.” And to understand the confusing paths of artistic production in our time and the writings that follow it, we must question ourselves not only about what art is, but also about man and the humanity of man. We must think about the core of human acts, which the Greeks named poiésis. Key-words: Art`s Death; Contemporary Art; Phýsis; Poiésis; Techné.

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SUMÁRIO

Introdução ...................................................................................................... 10 1 A superfície em muitas camadas: Arte e História .............................. 22 1.1 Breve resumo da trajetória da disciplina História da Arte: acertos e

equívocos ............................................................................................ 23 1.2 Bifurcações do caminho: história e estética........................................ 36 1.3 As Mortes da Arte ............................................................................... 38 1.3.1 Primeira Morte da Arte – Hegel .......................................................... 40 1.3.2 Algumas considerações acerca da segunda Morte da Arte ─ Marcel

Duchamp ………………………………………………………………….. 46 1.4 A escrita post-mortem – Hans Belting e Arthur Danto ...................... 60

2 Prospecções....................................................................................... 78 2.1 Prospecção reflexiva: Duchamp e a essência da técnica moderna .. 86 2.1.1 O equívoco das quatro causas – Notas sobre o responder e dever... 96 2.1.2 A pro-dução e o deixar-viger: poiéses e techné ................................. 98 2.1.3 A técnica moderna, a arte contemporânea e o desencobrimento

explorador: a obra como dispositivo.................................................... 101 2.2 Objetos indiscerníveis e significados corporificados: a relação

sujeito-objeto e os descaminhos da obra como dispositivo ............ 108 2.3 Télos – Arte, técnica e a questão do sentido ..................................... 121 2.4 Arte, cultura e phýsis: a natureza artística do homem e o habitar ... 127 2.4.1 O fenômeno cultural e o conceito de cultura ...................................... 128 2.4.2 O emergir cultural ............................................................................... 130 2.4.3 A natureza humana ............................................................................ 133 2.4.3.1 A Angústia ......................................................................................... 135 2.4.3.2 O existir e o habitar ............................................................................ 138 2.4.3.3 Homem e tempo: o Dasein ................................................................ 141 2.4.4 A phýsis e o homem ........................................................................... 145

3 Afresco ............................................................................................... 154 3.1 Do próprio e do impróprio ................................................................... 159 3.2 Obras e Questões: a arte, o mito e os ritos ........................................ 163 3.3 Arte e épocas: a circularidade do tempo poético................................ 177

Conclusão ...................................................................................................... 184

Anexos ........................................................................................................... 193

Referências .................................................................................................... 199

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Introdução

Não queremos servir à história senão na medida em que ela sirva à vida1.

Nietzsche

Munidos de bisturis de aço carbono, réguas e lápis, em tarefa delicada que exige

alto grau de concentração e destreza, efetua-se corte estreito e retangular a

delimitar a área onde se realizará cuidadosa raspagem. Prospecção - palavra que

nomeia tecnicamente este fazer e constitui parte da etapa inicial em um projeto de

restauração. De modo perseverante e minucioso a prospecção em restauro

reconduz o ver, desvelando afrescos sob a crosta que reveste paredes, constituída

de inúmeras camadas de tinta que ao longo dos anos (ou mesmo séculos) foram ali

depositadas e os encobriram, impedindo seu vigorar enquanto obra.

O bisturi é o condutor nessa viagem através do tempo, propiciando uma verdadeira

arqueologia vertical. O vagaroso movimento de raspagem que impetra o saber das

mãos do restaurador desencobre épocas. Por vezes o número de obras descobertas

excede o esperado. Revelando-se cada qual à sua vez: sob cada camada, outra. Ao

restaurador cabe a difícil tarefa de eleger uma entre muitas obras, renegar por vezes

um afresco barroco ao descobrir sob ele um gótico. A busca tem destino específico,

ainda que não se saiba o que as camadas do tempo em forma de tinta e reboco

revelarão, almeja-se alcançar a última delas, ou melhor, a primeira, o fazer

inaugural. Desvelar a obra original restituindo-lhe a força da presença constitui o

principal empenho.

O presente estudo busca no universo da restauração elementos que se afinem ao

pensamento que se pretende desenvolver. Das ferramentas do restauro a régua

será dispensada. Ainda que saibamos que a tradição a criou para que culturas

jovens a utilizem é de nosso conhecimento também não haver uma, entre todas,

capaz de aferir fabricos da arte. Por bisturi tomaremos o próprio verbo: restaurar -

1 NIETZSCHE: 2005, p. 68

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do latim restaurare2: refazer, renovar. De etimologia obscura, no sentido mais antigo

dizia o refazer um rito que não foi bem feito. Em sentido recente um de seus

significados diz: pôr algo novamente em vigor.

Toda restauração se constitui a partir de uma grande prospecção em que camadas

sobrepostas de várias épocas são desbastadas para que se recomponha uma

configuração original. Este o ponto de confluência entre o fazer do restaurador e

nossa proposta de estudo: Sabendo que uma prospecção arqueológica em restauro

pode resgatar a história de uma época, julgamos possível que uma prospecção

poética nos reconduza aos arcabouços do que chamamos época, para melhor

entendermos sua essência no vigorar das questões do âmbito da Arte, da

Linguagem, da Historicidade, e da Poiésis – essência de todo agir.

Nestas prospecções poéticas nos ateremos ao vigor da Arte no eclodir das obras

enquanto Linguagem, Tempo e Memória. Para tanto, haveremos de buscar instaurar

um pensar voltado para as questões originárias do sentido do Ser, questões estas

que repousam sob muitas e densas camadas de tintas com as quais nos pintaram

os sentidos. Neste retirar de camadas avistamos particularidades nos escritos que

se dirigiram à arte ao longo de sua história, seja no horizonte historiográfico seja no

crítico, por vezes, área de atuação dos próprios artistas, hoje por ofício também:

curadores, historiadores, críticos...

Mas em que consiste o horizonte da crítica?

Buscando escutar primeiramente o que a palavra horizonte nos diz, temos no

pensamento de Emmanuel Carneiro Leão (2002), que a palavra horizonte vem do

verbo grego horizo, e diz de estabelecer limites e fins, de-limitar, de-finir. Segundo o

pensamento que desenvolve, delimitando, o horizonte define as possibilidades de

diferenciação de céu e mar, constituindo a própria harmonia invisível de contrários e

oposições. “O horizonte enverga o âmbito do visível. Tudo que cai dentro desta

envergadura pode ser visto” (Idem, p.181). Já a palavra crítica vem do verbo grego

Krinein e tem por sentido separar, distinguir pelo diferenciar o essencial do acidental.

Contudo, partindo de seu sentido original formaram-se conceitos outros como: crise,

2 Dictionnaire étymologique de la langue latine. Paris: Klincksieck, 1979, p. 319.

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crime e critério. Acreditamos que no horizonte da crítica deveríamos avistar a

harmonia invisível dos contrários que se dá no operar das questões arte/não-arte

(sendo arte o que se doa ao ver e não-arte aquilo que permanece velado como fonte

inesgotável do vir à presença), obra/vazio. Há - não podemos desconsiderar -

circularidade poética no horizonte arte-crítica: se a crítica é o que dá visibilidade à

obra, por sua vez são as obras que possibilitam a existência da crítica, ambas

possuindo condição de existência no vigorar da própria Arte. Contraditoriamente a

isto temos no exercício da crítica vigente nas artes visuais o imperar do critério

(entendido como norma ou modelo), firmado na tensão arte/anti-arte, onde se firma

o esquecimento da potência arte/não-arte. Tal posição acabou por encaminhar ao

operar do conceito crise, que por sua vez, conduz a escrita, as produções em artes

visuais e a própria Arte a uma espécie de cisalhamento3.

Quando o cisalhamento é diagnosticado em obra pictórica, torna-se primordial que

haja intervenções do restaurador para que a obra não sucumba à ação do que

chamam “tempo ruim”. Diante do problema, o restaurador, que tem por lema em seu

ofício “primeiramente não fazer mal” (o que o faz estabelecer entre seus critérios a

redução ao mínimo de intervenções), é convocado a agir reentelando4 a pintura,

para assim minimizar danos que poderiam conduzir à perda definitiva da obra.

Atualmente no horizonte das artes – entendido como circuito de um modo amplo a

englobar produção, escrita e mercado - há a ação de um “tempo ruim”, que

inicialmente se instaurou na trincadura entre poiéses e techné. Esta primeira

trincadura se deu possivelmente a partir do distanciamento da própria essência da

arte enquanto questão (onde obra seria a corporificação das tentativas de respostas,

que por sua vez na dinâmica que as constitui, recolocariam sempre outras questões

originais a quem estivesse aberto ao diá-logo).

3 O cisalhamento consiste em trincaduras na superfície pictórica de uma pintura que diverge do conhecido

craquelê. No cisalhamento há a ação do que em restauro chamam “tempo ruim”, o craquelê seria a ação do tempo bom (há beleza na pátina e nas pequenas trincaduras, um certo charme que diz da obra ao longo de sua história no tempo), não oferece riscos. Já o cisalhamento é perigoso. As camadas de tinta racham profundamente e começam a se desprender da tela, se não houver uma intervenção radical como o reentelado , corre-se o risco da perda da obra. 4 Reentelamento - Procedimento em restauro que consiste em dar à camada pictórica nova tela quando a

existente está deteriorada comprometendo em cisalhamentos a camada de pintura. Após o reentelado há a necessidade de retoques no cisalhamento.

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Conscientes de tal fato, percebemos que, um olhar questionador sobre produções

artísticas contemporâneas envolve questionar também acerca da escrita crítica e

seu modo de constituir história, observando com cuidado os pontos onde surgem

tais cisalhamentos. Ao admitirmos a crise que se instituiu no seio da arte

contemporânea percebemos que ela está diretamente relacionada ao modo de se

apresentar historicamente, ou seja, o modo historiográfico de se pensar a arte, onde

historicidade é cambiada por um historicismo mecânico cuja preocupação central

reside num desejo descabido de vanguardas, onde impera a “tradição do novo”.

Onde antigas “fórmulas” de pensamento são substituídas por novas “bulas” que

estabelecem modos de se ver e fazer. Acreditamos na necessidade de se re-buscar

a condição do ver calcado na autonomia das obras, pois aí reside o vigor poético,

que é, a um só tempo, o a ser restaurado e o próprio restaurador, hoje soterrado sob

camadas e mais camadas de subjetividades (críticas e artísticas) que em buscas

“intelectuais” renegam inúmeras vezes não só o saber das mãos, como também as

questões que se manifestam através do ver, submetendo o pensamento plástico à

aridez de súmulas conceituais. Acreditamos que seja no vigorar do poético que

resida a possibilidade do reentelado que se faz urgente: re-união de crítica,

produção plástica e Arte que culmine em registros históricos calcados na

historicidade da presença, distantes da historiografia mecanizada.

Mas que força move a vontade de conhecimento em busca do a-se-pensar nas

tensões Arte/questões/conceitos, Arte/obra/crítica, Arte/época/História?

É de nosso conhecimento que repensar tais estruturas demanda fôlego, sendo o

presente estudo apenas uma breve introdução da questão. Retirar camadas é

sempre um processo doloroso e a consciência prévia da dor exige coragem.

Ladeando a coragem há de estar sempre o medo. Haverá, em todas as vezes que

nos dispusermos a rever algo anteriormente pensado e conceituado, a ronda do

medo. Especialmente se atravessamos território histórico em busca de fissuras onde

se instaure questionamentos que reconduzam o pensamento da historiografia à

historicidade, implicando, por vezes, melindrar saberes instituídos, contrariando

interesses firmados ao sugerir caminho que restrinja fronteiras de conforto, através

de movimento que impele ao desconhecido, lá onde vigora o poético. Tememos este

lugar desconhecido, mas, justamente por temê-lo, lançamo-nos adiante, na tentativa

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de transpor o que nos paralisa, aclarando no medo sua face esquerda: A audácia.

Nela encontrar meios de partir atrás do que se insinua, a ponta que se nos mostra,

exagerando-a talvez, mas um exagerar que se dá na medida não de nossa

subjetividade, mas na da natureza, do humano.

Percebemos que as artes visuais vivem um “tempo necrófilo”. Críticos que rejeitam

as atuais produções artísticas resumem o atual momento a uma espécie de circo

dos horrores, onde artistas se exibem em espetáculos públicos atados ao que seria

o cadáver putrefato da própria arte. Ainda que esta não seja a direção de nosso

pensamento, haveremos de considerar que o panorama não é muito animador.

Artistas de fato produzem obras onde defesa prévia é imprescindível, sem a qual

permaneceriam fechadas à fruição. Obras outras seguem para museus

acompanhadas de memoriais descritivos que as sustentem distantes de seus

criadores. Constitui nosso empenho pensar onde e como se deu tal desvio que

instituiu o esvaziamento que presenciamos. De onde partiu e no que se sustenta

essa subjetividade artística exacerbada que nos conduz entre outros desmandos, a

um cultuar ao bizarro?

Após algumas aclamações acerca da morte da arte surgiu a escrita crítica pós

mortem, tendo por expoentes Arthur Danto e Hans Belting, autores aos quais nos

dedicaremos mais adiante. Acusados por alguns críticos contrários às novas

produções de serem os mentores intelectuais do momento artístico vigente, eles são

na verdade, a nosso ver, historiadores que defendem o fim da História em

detrimento ao da Arte. Arthur Danto (2006) reflete questões referentes à arte pós-

histórica, surgida da autoconsciência de sua essência trans-histórica. Esta arte teria

por ponto de partida para sua elaboração algo que transcende a aparência e que o

autor vai nomear “conceito”, não havendo para essa produção modelo prévio, ou

“modo de fazer”. Percebemos exposto de modo claro em seu pensamento a morte

não da arte, mas do “objeto” artístico em seu comum entendimento. Para o autor, a

condição de arte não se dá no objeto em si, mas em algo exterior a ele, a que

chama “conceito de arte”. Defende que para esta arte trans-histórica é preciso que

se escreva uma nova história, que se aproxime da filosofia, distanciando-se dos

então conhecidos estilos de época alimentados pela insuficiente [para dizer o

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mínimo] leitura formal, defendida por tantos outros historiadores e críticos como

Clement Greenberg (1986) por exemplo.

O início do século XX configura marco na “história” da produção artística com o

florescimento das principais vanguardas que ainda hoje, um século depois,

fomentam discussões acaloradas acerca dos rumos que as artes plásticas (hoje

visuais) tomaram. Atribui-se a esta “época” profundas mudanças. Talvez a

reconhecidamente mais importante seja a que chamarei de ruptura do ver. A arte

abandona a condição dita “retiniana”, caminhando a largos passos ao que julgariam

ser outra direção: rumo ao pensamento, à filosofia.

Historiograficamente falando, após Hegel, tivemos inegavelmente em Duchamp o

arauto: a segunda morte da arte anunciada em um porta-garrafas ready-made.

Muitos discursos se ergueram desde então. Todavia, a Arte como potencia

inesgotável do vir-a-ser, tal qual ave mitológica sempre ressurge. Das cinzas da

pintura (que disseram morta), da gravura e escultura: novas pinturas, gravuras,

esculturas e ainda assemblagens, Land Art, vídeo-instalações, performances e todos

os outros modos de questões se corporificarem vindo à presença.

Duchamp sinalizou o óbvio, possivelmente por fastio ao então já poderoso mercado

de artes. Seu gesto bradava: isto é mais que um objeto decorativo para a festa dos

olhos, é pensamento, questão. A nosso ver, foi incompreendido: por seus pares,

defensores e, especialmente, seguidores. Evitou pronunciar-se a respeito.

A morte da arte hoje já não constitui problema para a crítica, não há como redigir

atestado de óbito para o que se dá a ver. Mas há os que até hoje repetem tal

discurso, acusando Duchamp de assassínio, vendo na produção contemporânea

nada além de uma missa de corpo presente. Aos que assim pensam, algumas

considerações se fazem necessárias:

a) Obviamente a arte não morreu.

b) Duchamp sequer pretendeu assassiná-la um dia, e mesmo que esta fosse

sua intenção nem mesmo com sua genialidade seria capaz, pois Arte é Linguagem,

antecede e transcende Duchamp ou qualquer outro artista;

c) O que talvez configure problema seja menos Duchamp e seu gesto, que

seus seguidores, a repetirem mecanicamente um feito, incorporando o ready-made

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como instrumento técnico a ser decorado da página doze do manual do artista

contemporâneo.

Duchamp acertou em sua afirmativa: Arte é pensamento. Mas, ainda que nosso

ponto de vista, ou mesmo o dele, fosse outro, nenhuma diferença faria para o vigorar

da arte que continuaria a ser o que desde sempre é: Questão. No entanto,

presumimos que as questões em artes plásticas (visuais) melhor se configuram

quando corporificadas, ou seja, quando se delineiam plasticamente. Vivemos a era

da arte dita cerebral – obras “complexas”, quase charadas, cercada por legendas. O

que nos leva a outra reflexão: quantas legendas são necessárias ao convocar de

uma questão? Reportemo-nos à Itália renascentista, aos primorosos afrescos de

Michelângelo no teto da Capela Sistina. Caso necessitassem legendas o que estas

diriam? Quantas leituras prévias se fazem necessárias para o diá-logo com esta

obra?

Há no momento histórico no qual vivemos um exacerbado racionalismo a orbitar a

Arte. Tamanho postulado conceitual conduz artistas e historiadores a afirmarem ser

a arte, puro pensamento. Negam o que chamam equivocadamente “objeto” de arte.

Contudo, permanecem em estreita relação sujeito-objeto em relação a própria arte,

cambiando a materialidade da obra pela “objetividade” do conceito. Para se

resguardarem de possíveis retaliações postulam-se defensores do fim do objeto

aurático, da Bela Obra como fetiche. Seguem com suas produções, buscando

afirmar e convencer através de inúmeras legendas, serem obras de Arte,

pensamento.

Não poderíamos esquecer o paradoxo do mercado de artes que mesmo repetindo o

mantra que diz ser o conceito mais importante que a obra, comercializa a peso de

ouro tudo que é produzido no circuito, seja crânio cravejado de diamantes5 ou

artist´s shit6. Obviamente que artistas não são peões neste jogo de altos interesses

comerciais visto serem hoje críticos e historiadores por excelência, acumulando

funções que vão desde o produzir, passando pelo “pensar”, divulgar, até o

comercializar da obra. Refletindo sob um ponto de vista purista, dinheiro não deveria

5 Trabalho de Damien Hirst - For the Love of God.

6 Artist’s shit é o título de um trabalho do italiano Piero Manzoni que enlatou as próprias fezes e adesivou

rótulo que contém além da frase que a nomeia em inglês, alemão e italiano, a indicação do peso: 20g. O preço inicial seria a equivalência entre o peso indicado e o grama do ouro.

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ter nada a ver com arte. O preço que uma obra atinge em um leilão, como afirma

Deyan Sudjic (2010), não deveria medir nada além do talento do leiloeiro e

marchand para criar mercado. Mas, para o bem ou para o mal, ainda segundo as

colocações de Sudjic, o preço contribui bastante para uma reflexão sobre hierarquia

social. Sendo, inclusive, este mesmo fenômeno o “tema” do trabalho de Damien

Hirst citado acima. A caveira de Hirst pode ser vista como uma inversão impertinente

e cética do mictório de Duchamp.

Neste ponto se faz importante pensarmos se as produções no campo da arte hoje

não seriam uma espécie de espelho de nossa errância, do empobrecimento das

experiências, das distorções conceituais do tempo, que nos cega para as questões

originárias do sentido do Ser pensadas por Martin Heidegger no conjunto de sua

obra.

No tocante aos bens, em quaisquer deles inclusive culturais e artísticos, há um

esvaziamento, uma relação de mero consumo. De modo generalizado não se almeja

o Bem, mas os bens. Há um imenso vazio a nos tragar, e este vazio em nada

remete ao vazio inaugural, potência de toda e qualquer criação, mas a algo estéril,

estereotipado, oco. Obras produzidas como charadas filosóficas que quando

decifradas fecham-se a fruição, esgotam-se. Obras para serem vistas uma única

vez, pois derivadas de conceitos não acolhem o a-se-pensar inesgotável. O

pensamento é móvel enquanto o conceito é estático e tem por atributo a condição de

efêmero. A obra meramente conceitual emudece rapidamente, não há possibilidade

de um vigorar no tempo; tais obras serão sempre submissas a memoriais

descritivos. Uma vez mais questionamos: caso os afrescos da Capela Sistina

precisassem de legendas, o que estas diriam? Acrescentariam algo à obra que já

não estivesse lá?

Toda obra verdadeiramente artística é diá-logo. Estar em contato com elas é estar

em contato com o logos. Mas precisamos estar atentos para auscultá-lo. Tal

movimento é interno – não se dá externamente. É indiscutível que diante das obras

precisamos estar inteiros e, obviamente, nossas leituras, conhecimentos, vivências e

experiências que, de um modo geral nos constituem, ampliam nossa visão no

horizonte das questões. Mas ainda que sempre dialoguemos com as obras a partir

do que somos, há também, e indiscutivelmente, o que nelas se doa sem pré-

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requisitos. Não há necessidade prévia de cursos específicos que nos tornem aptos a

fruir questões manifestas em obras quando estas são verdadeiramente Obras de

Arte.

No entanto, haveremos de reconhecer que, diante de alguns trabalhos

“contemporâneos” nada ouvimos. Seja por não conseguirmos auscultar, seja por sua

condição emudecida. Há também as produções contemporâneas que são

verdadeiramente mudas. Não por corporificarem questões relativas ao silêncio, mas

por não haver ali diálogo possível. Embora conscientes de que a arte não tenha

morrido não devemos nos iludir, pois o fato de permanecer viva não a salva dos

embustes em seu nome. Mas isto já configura outra questão. Há discursos

acalorados que pregam que a não fruição de certas obras contemporâneas se deva

a ignorância do público, falta de conhecimento por parte dos apreciadores que

culmina na incompreensão dos “conceitos” ali articulados e que constam dos mais

variados manuais redigidos por homens da “história” e que as contextualizam dentro

de um mecanismo que culminou nesses processos “contemporâneos de arte”.

Refletindo a esse respeito, considero importante narrar história que ouvi certa vez.

Uma galeria em Roma recebia visitas de grupos de senhores, (em nosso país

costumeiramente chamados terceira idade) em projeto municipal, que se recordo

corretamente, pretendia propiciar aproximação entre esta camada da população e a

arte contemporânea, dada a resistência ao novo, devida possivelmente à forte

tradição de arte clássica na Itália. Os grupos de um modo geral eram compostos por

pessoas simples na maioria camponeses sem muita instrução. Certo dia em um

desses grupos havia um senhor, que caminhando pelos corredores, deteve-se

diante de uma obra de Lúcio Fontana (Conceito espacial: espera), e, retirando o

chapéu da cabeça, posicionou-o junto ao peito em posição respeitosa e emocionado

proferiu: Dio mio che bello!

Importante lembrar ter sido Lúcio Fontana sempre resolvido a cortar os laços com

todas as tradições. Foi um dos artistas menos programados e ao mesmo tempo um

dos mais concisos e coerentes como nos esclarece Giulio Carlo Argan (1992).

Esteve por uma vez a frente de um movimento, o Espacialismo, que não se

configurou apenas como mais uma teoria, mas sim uma lúcida afirmação: Qualquer

coisa que se faça conscientemente é um fazer no espaço. Suas obras configuram

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recusa a representações do espaço por meio da pintura ou escultura tradicional. A

obra em questão trata-se de uma tela medindo 1m x 1m, apenas queimada em

água-tinta onde o artista realizou uma incisão com navalha na principal diagonal da

superfície. Seu gesto destrói a mera simulação espacial na pintura. O crítico e

ensaísta Giulio Carlo Argan (Idem, p.630) nos diz acerca do trabalho de Fontana

“que destruir uma simulação significa recuperar uma verdade”. Pensemos com

cautela acerca da situação relatada: Mesmo desconhecendo conceitos pictóricos ao

ponto de poder repudiar a obra em questão reduzindo a ação do pintor a uma atitude

agressiva ou leviana, ainda assim aquele senhor não se desvirtuou do que havia de

mais importante no ali posto em sua presença: a corporificação de uma questão.

Algo na obra tocou profundamente aquele homem simples, sem que legendas ou

teorias se fizessem necessárias, algo muito maior que todas as teorias do

conhecimento: A verdade como desvelamento.

Quando a produção é calcada apenas em conceitos, na maioria das vezes emudece

rapidamente. O conceito se esvai e a “obra” permanece, agora sim reduzida, a mero

objeto. Não é o conceito que estabelece o pensamento - o pensamento é que

formula o conceito. Poderíamos dizer que ele, o conceito, seja o pensamento que

se cristalizou, e que estático (por sua condição de algo fechado) estabelece

narrativa com princípio, meio e fim. Já questões são abertas, e é neste aberto que

vigora o inesgotável, como fonte a jorrar. Questões mantêm o pensamento em

movimento contínuo, não se fecham em discursos, em respostas. Verdadeiras

obras, dignas de serem chamadas obras de Arte, são questões corporificadas que

eternizam o a-se-pensar, seja nos afrescos de Michelângelo, seja nas obras

performáticas de Marina Abramovic. continuam a convocar ao pensamento ainda

que séculos ou milênios se interponham entre nós e elas. Habitam o espaço e o

Tempo. Acreditamos que um olhar cuidadoso que se dirija às questões, pode em

muito contribuir para a realização de uma escrita da Arte, seja no âmbito da teoria ou

da história, pois somente uma escrita afinada com as questões originárias poderá se

aproximar da essência da arte.

Introduzindo de modo mais contundente o presente estudo, esclarecemos que o

percurso escolhido, ao modo de uma prospecção, se dará em camadas. Nosso

olhar, tendo por principal foco compreender os descaminhos da produção artística

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no contemporâneo, por vezes se aterá à história, por outras à teoria e até mesmo à

crítica. Acreditamos que “raspar”, rever camadas sobrepostas, seja salutar ao nosso

intento, pois assim haveremos de compreender a genealogia dos registros da

produção artística, como foi se constituindo, sob quais bases o pensar

institucionalizado da arte firmou seu alicerce desde o despontar de sua história

oficial. Ou seja, desde o surgimento da disciplina História da Arte no Renascimento

italiano. Revendo parte desta construção talvez possamos compreender melhor o

ponto onde nos encontramos, observando as possíveis interferências dessa História

da Arte institucionalizada nos modos de se produzir arte hoje. Primeiramente nos

ateremos ao alvorecer dessa História, para, em sequência, lançarmos nosso olhar

em direção à teoria que a acompanha desde seu despontar. Assim, seremos

levados a perceber como (em se tratando de arte) história, crítica e teoria imbricam.

Apontamos anteriormente que grande parte da produção contemporânea em arte

passa pelo crivo conceitual. Por percebermos nas “mortes” das artes um aceno em

direção à pavimentação da estrada que conduziu a produção artística a tal estância,

buscaremos, em nossa prospecção, avistar, entre as muitas camadas sobrepostas,

também as aclamadas “mortes” tanto da arte quanto da história. Acreditamos que a

compreensão desses descaminhos da produção artística em nosso tempo passe

necessariamente pelo artista francês Marcel Duchamp, assim, julgamos que

compreender sua atuação na constituição do cenário da produção contemporânea

em arte constitui, de certo modo, o cerne deste estudo, razão pela qual realizaremos

cuidadosa raspagem no “corredor” que o circunda. Contudo, pensar a participação

de Marcel Duchamp no destino epocal da arte vai muito além de mapear seus feitos

e produções e, em muito excede o mero ato de assumir posição favorável ou

contrária, como fizeram tantos estudos e publicações ao longo da segunda metade

do século XX e início do século XXI. O presente estudo caminhará por entre

estreitos corredores de súmulas e moldes históricos, raspando suas paredes, até

que possamos enveredar por prospecção outra, da ordem do pensamento, mais

reflexiva, que nos conduza a questão talvez ainda não avistada, ainda não pensada,

acerca do tipo de desvelamento que envolve a produção de Marcel Duchamp, e a

bifurcação que aí se instaurou na produção artística de nosso tempo. Questão essa

que passa pela essência da técnica moderna e que cresce na fissura que se

instaurou entre poiéses e techné com o advento da modernidade.

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No capítulo Prospecções, intensificaremos nosso “mergulho” por entre as camadas

de tinta que nos embotam os sentidos. A “raspagem” de determinados segmentos a

que chamamos “corredores” da História da Arte, ou seja, do pensamento dirigido à

arte ao longo dos últimos séculos, aos poucos revelará oscilações entre o individual

e o geral e uma completa desatenção ao singular e universal. Perceberemos como a

história, a crítica e a teoria transitaram durante séculos apenas na esfera ôntica. Os

próprios artistas, em sua maioria, não cruzaram as fronteiras do aparente.

Buscando pensar ontologicamente a arte, ou seja, buscando pensar também o que

nela não se revela na esfera dos entes, a saber: seu vigorar no mistério,

passaremos a uma prospecção reflexiva, retomando questões pontuadas,

aprofundando-as. Dentre elas, a já mais de uma vez mencionada “morte” da arte em

Marcel Duchamp, e suas possíveis relações com a essência da técnica moderna no

descortinar do destino epocal. Questionaremos também determinados aspectos e a

abordagem ôntica no pensamento de Arthur Danto, especialmente no tocante a

teoria dos objetos indiscerníveis.

Prospecções em restauro podem desvelar afrescos. Assim também,

metaforicamente falando, haverá de ser com a prospecção filosófico-reflexiva. Nosso

empenho maior consistirá em aprofundar camadas até ser possível avistar o afresco

encoberto, ou seja, o vigorar da arte enquanto mistério que repousa no velado do

ser. E pelo pensamento poético-ontológico buscaremos aproximar homem, arte e

história, desvelando na produção poética e histórica o sentido da existência do

homem em seu habitar. Pensando ontologicamente a arte haveremos de ser

conduzidos a refletir acerca do homem, da phýsis, do tempo, dos mitos e dos ritos.

Tal modo de pensar implica em lançar olhar também sobre nós e os outros, atentos

aos modos de estarmos no mundo. Pensar verdadeiramente a arte é pensar nossa

humanidade naquela que se revela o “espelho mágico” de nossa errância.

Perceberemos então que tanto na arte e sua escrita, quanto na vida, sempre há no

mínimo dois caminhos: aquele que nos conduz ao que nos é próprio, e outro, que

pode nos conduzir a perda de nossa essência poética e a queda no impróprio. O que

desde já se descortina no horizonte do pensamento é que sempre haverá escolha.

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1 – A Superfície em muitas camadas: Arte e História

A história do conhecimento humano não é estanque. Assim temos que quando o

pensamento se dirige à Arte não é diferente. Sabemos também que fronteiras,

quando estabelecidas, tendem a se flexionarem, visto seja próprio ao pensar,

imbricar-se. Teorias, fruto de tais pensamentos, surgem, uma, depois outra, e tantas

mais, em desdobramentos sucessivos. As posteriores geralmente dão continuidade

ou questionam as que as precederam. Assim o tecido dos saberes cresce, e vai se

solidificando - seja em acertos ou equívocos - em trama matizada e mista,

proveniente de fios diversos, fiado por diferentes mãos.

Buscaremos, neste início de percurso, investigar brevemente a trajetória do

pensamento que culminou na escrita crítica que hoje conhecemos e na história da

arte, que dizem “já falecida”. Julgamos relevante recapitular alguns teóricos que

trabalharam em prol do registro das produções artísticas, contribuindo com o tecer

dessa história. Diferentes modos de ver e pensar originaram teorias diversificadas

que ora encantaram ora causaram desagrado. O desagrado parece-nos ter sido

estímulo ao encadeamento da história como disciplina, recolocando o pensamento

em movimento, convocando à construção de novas teorias ou métodos que se

somassem, ou até mesmo subtraíssem, em busca de possível superação aos

anteriores, abarcando a parcela de produção artística que a anterior, ou anteriores,

sob ponto de vista específico, negligenciara.

Muitas teorias se firmaram, inúmeros métodos foram instituídos, oferecendo

fórmulas precisas para se “ver” e “pensar” a arte. Inúmeras dessas teorias e

métodos compõem os humanismos ao longo de sua história. Nosso olhar habitará

estas cercanias, observando trajetos, percebendo como se deu o desenrolar da

História da Arte enquanto disciplina, que culminou com o quadro que conhecemos.

Circulemos então por tais corredores, afinal, faz-se necessário à prospecção, o

reconhecimento das paredes.

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1.1 – Breve resumo da trajetória da disciplina História da Arte – acertos e equívocos

Sabemos que a Arte faz parte da essência do homem, essência originária onde

repousa a condição de possibilidade para possibilidades como doação, mistério do

existir. Dentre elas, a arte configura, assim como a filosofia, leme a auxiliar na

travessia sobre a terra, guiando-o rumo à produção de sentido, onde a verdade se

desvela em obras. Assim a humanidade ao longo de sua história segue em seu

mundificar.

Diante de tal constatação, haveremos de considerar que o que chamamos de

história da arte em verdade são apenas registros por meio dos quais o homem

busca compreender o sentido maior. Tais registros historiográficos referentes à

trajetória da arte, ou seja, esta escrita que veio dar forma à História da Arte como

disciplina científica, diante da totalidade da existência da arte é relativamente

recente, visto ter surgido no Renascimento italiano.

Julgamos que, um olhar que se dirija a este início, em que a construção da história

como disciplina germinou e, seu encadeamento teórico ao longo do tempo, pode

contribuir com nossos estudos, ainda que nossa questão maior passe ao largo da

historiografia. Observando o caminho percorrido pelos teóricos que se propuseram a

pensar a produção artística ao longo dos séculos, podemos verificar se houve

distanciamento entre tal escrita e a arte, e, havendo, como isso se deu. Outro dado

importante a observar se refere ao fato de que em se tratando de artes visuais,

história, crítica e até mesmo teoria imbricam. Em Diderot e Baudelaire podemos

constatar menos pensamento histórico que exercícios de pensamento crítico, sendo

ambos considerados os precursores da crítica de arte. Enquanto em Diderot

observamos uma postura opinativa, com textos mais voltados para o juízo do gosto,

em Baudelaire percebemos um olhar que vê nas obras um lugar de discussão, de

experiência. Até mesmo os escritos de Vasari, nome sempre mais associado à

História da Arte, pode ser pensado sob o ponto de vista da crítica de arte, pois a

ideia de história que propõem se baseia num critério de juízo, valorando o que, a seu

ver, seria “melhor” ou “pior” entre as produções as quais dirige o olhar.

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Crítica e história seguem imbricadas ao longo dos séculos, e assim vão constituindo

a grande narrativa, a disciplina, a História da Arte. E a diferença entre história e

crítica que vai se estabelecendo com o tempo se configura mais disciplinar que

metodológica7. Podemos observar ainda que a construção desta narrativa histórico-

crítica vai se alterando de acordo com o momento histórico-cultural, com o ponto de

vista, com as pesquisas, e de acordo com os interesses daqueles que a produzem.

Curioso observar que algo iniciado tendo como ponto de partida a arte, com seus

desdobramentos, estabeleceu-se centro do “sistema da arte”, (ou talvez mais

adequado dizer, sistema “para” a arte, já que é ele que dela se ocupa, e não o

contrário) e acabou por – excetuando poucos críticos e historiadores (em nosso

juízo, entre as exceções estariam Winckelmann, Baudelaire e Argan) – passar ao

largo, paralelamente, distanciando-se da própria arte, e, na maioria das vezes, das

questões que lhe são próprias. O sistema, de um modo quase geral, não se ocupa

em pensar essencialmente a arte, ou seja, em buscar avistar sua essência.

Percebemos, observando a historiografia, que a construção da disciplina História da

Arte se estabelece a partir do surgimento do artista, como será esclarecido a seguir.

Assim, crítica e história, trabalharam para a manutenção desse status “artista”, ora

determinando o que este deveria produzir, ora validando ou invalidando produções a

partir do juízo, concedendo ou negando o direito de integrarem o “universo da arte”

chancelado pela disciplina História da Arte. Direito a ser adquirido pelo cumprimento

das normas e padrões firmados pelos especialistas.

7 Vera Beatriz Siqueira, historiadora da arte e professora do Instituto de Artes da UERJ, afirma, acerca da

diferença entre História e Crítica de Arte, em entrevista concedida a “http//: arteeinstitucionalização.blogspot.com” em 29 de outubro de 2010 (acesso em abril de 2014) que: “(...) ambos, crítico e historiador, trabalham a partir do juízo, desenvolvendo um procedimento basicamente crítico. Além disso, acho que a tradicional divisão entre Crítica/arte contemporânea e História/arte do passado é francamente equivocada. É possível escrever um texto crítico sobre uma obra tradicional ou fazer a História da arte contemporânea. A História da Arte, porém, como campo disciplinar, precisa lidar com a construção rigorosa de conceitos históricos. Ou seja: o juízo crítico se destina à criação de séries históricas de objetos, ainda que estas reúnam objetos de variados períodos históricos. Já a Crítica de Arte pode lidar com conceitos um tanto mais metafóricos, frequentemente mais relacionados a problemas estéticos do que históricos. Há também diferenças do ponto de vista poético ou formal. Um texto crítico geralmente é mais curto e pode dispensar certas referências ou citações. O argumento histórico-artístico requer um texto diferente, com outra relação com a tradição dos estudos das obras que analisa. Mas são todas diferenças, como se pode ver, de forma e não de procedimento.

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Se fizermos um passeio pela historiografia8 da arte, para compreendermos melhor o

surgimento do “status” artista, encontraremos, como mencionado, no

Renascimento, o momento em que o artista passa a ser reconhecido socialmente. O

homem renascentista via o humanismo como aquilo que o aproximava de Deus,

residindo na razão à condição de aproximação com a verdade divina; diferindo

assim do homem medieval que ao contrário deste, cria que o humanismo o

aproximava do animal, distanciando-o de Deus. É nesse contexto científico, em que

o homem sai da Idade Média e entra na Renascença, onde desponta a racionalidade

que impera nos séculos posteriores, que o artesão obtém seu novo status, o de

artista.

Questionamo-nos sempre acerca deste momento quase “mágico” em que o homem,

saindo das trevas, caminha ao encontro das luzes da razão. Será mesmo possível a

existência de um marco histórico tão visível e delineado? Será mesmo que em

algum momento do século XIII os habitantes da Itália dormiram na Idade Média e

acordaram no Renascimento? O que de fato nos chega através dos muitos registros

que se firmaram é que o “homem do Renascimento” se torna um modelo de como

viver, uma categoria antropológica. Contudo, não somos ingênuos, sabemos que

marcos históricos, são apenas marcos, e que a dinâmica da vida e da realidade é de

outra ordem, sendo sempre possível avistar traços modernos na Idade Média,

medievais no Renascimento, renascentistas na modernidade etc.

O que de fato ficou para nós nos registros é que a arte, que até então era entendida

como trabalho artesanal, por este tempo passa a ser reconhecida como “coisa

mental”, habitando de modo menos coadjuvante a história humanista. Estabelece-se

a condição social do artista, ou seja, suas atribuições, seu ofício passa a ser

reconhecido pela sociedade como profissão, como um saber específico. Isto se dá

com o surgimento das Academias de arte que inicia a profissionalização.

Juntamente com a Academia nasce o embrião daquela que, fortalecendo-se no

desenrolar dos séculos, talvez configure hoje a principal responsável por certos

desmandos que observamos no cenário artístico contemporâneo: a subjetividade

artística. Não precisamos ser muito atentos para constatar que, no que se refere à

História da Arte, autores apontam diversos renascimentos. Tais renascimentos se

8 A partir dos registros escritos da história e dos estudos críticos sobre aquilo que foi escrito sobre a história.

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devem ao desejo e tentativa de retomar ou resgatar algo já esfumaçado nos idos do

tempo. Para Erwin Panofsky (1981), o que diferencia o renascimento italiano dos

demais é a plena consciência da já não existência do antigo, e a crescente

necessidade de recriá-lo. A pergunta que sempre se instaura é: o que faz da arte

italiana dos séculos XV e XVI algo tão especial? O que pensavam e faziam os

homens de “gênio” (reconhecidos então como artistas), que habitavam aquele

espaço-tempo?

Lorenzo Mammi (2013)9 esclarece que era este o tempo de mestres das artes mistas

e do engenho, mentes desbravadoras, inventoras. Habitavam também a Florença de

então, as corporações de artesãos e comerciantes. Havia espaço ainda para as

artes de maior prestígio, as chamadas artes liberais, aprendidas distantes de

afrescos e rebocos, nas páginas de cobiçados livros. Aprendizagem que não se

dava pela via da experiência prática. Mas os que de fato chamaram a atenção sobre

si foram os mestres das artes mistas, que não eram práticos, tampouco acadêmicos.

Não se identificavam com o saber artesanal das corporações, legado de pai para

filho, nem pelo saber escolar dos livros. Aproximavam-se de modo empírico das

engenharias, fundição de metais, alquimia das cores, sem de modo algum se

restringirem a apenas uma delas. Eram homens que em sua maioria não

dominavam o latim, mas que tinham acesso a importantes tratados de geometria e

ótica, e consultavam, sempre que se fizesse necessário, cientistas e matemáticos.

Eram homens estudiosos, sempre atentos aos escritos literários de seu tempo, bem

como à História. Nem artesãos, nem filósofos: apenas artistas, pela primeira vez.

Homens que, cientes de seu ofício, produziam arte.

Com esta nova posição brota também a necessidade de um pensamento que se

dirigisse à produção desses homens, os artistas. Importante ter em mente que

também a arte, ao menos do modo como é compreendida e estudada hoje, segundo

o pensamento do historiador alemão Hans Belting (1994), teria sido uma “invenção”

ocorrida após a Idade Média. A esse respeito ele teria afirmado que:

Após a Idade Média, no entanto, a arte assumiu um significado diferente e tornou-se reconhecida por seu próprio interesse – arte como invenção

9 Para saber mais acerca do tema recomendamos a leitura do ensaio Guia do renascimento para o século XXI de

Lorenzo Mammi. IN: Revista Bravo Edição 191 – Julho 2013.

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[criação] de um famoso artista e definida por uma boa teoria. Enquanto as imagens de velhos tempos foram destruídas por iconoclastas no período da Reforma, as imagens de um novo tipo começaram a encher as coleções de arte que estavam sendo então formadas. A era da arte, que está enraizada nestes eventos, se estende até os dias de hoje. Desde o início tem sido caracterizada por um determinado tipo de historiografia que, embora seja chamada de história da arte, na verdade trata da história dos artistas. (BELTING, 1994, p. XXI apud AMARO, 2009).

Neste contexto histórico temos Alberti (1999)10, com uma escrita que cria definições

claras sobre a pintura, em forma de tratados calcados em sua experiência com a

arte Florentina. Tendo sido ele a nomear, no prólogo de seu tratado Da Pintura

(1999), os mestres das artes mistas e do engenho da Florença daquele tempo:

Filippo Bruneleschi, Donatello, Lorenzo Ghiberti, Lucca della Robbia e Masaccio.

Teriam sido eles, segundo o teórico, a fazerem reviver uma arte que, na plenitude do

entendimento que podemos ter da questão da mímese em Aristóteles, aproximava-

se da natureza.

Alberti firmou-se como um dos primeiros teóricos da arte. Em seus tratados

defendeu a crença na pintura como representação, o que entendia diferir de

imitação. Segundo ele através da perspectiva se tornava possível adicionar a

terceira dimensão à pintura. Vê nesta construção, como é comum aos que pensam

no contexto do Renascimento, um ponto de vista que olha para o futuro. É a partir do

pensamento de Alberti que a perspectiva deixa de ser uma questão somente

matemática e científica, passando à questão artística. O artista por sua vez,

deixando de ser artesão, torna-se profissional liberal da arte, portador de um

pensamento intelectual capaz de reproduzir a verdade da natureza.

Precursor da escrita, sendo talvez o primeiro historiador da arte, em seus tratados

não fala da arte de seu tempo, mas da egípcia e da grega, voltando seu olhar para o

passado, sempre mais confortável. Foi com ele que tivemos a arte como “objeto” de

história. Há os que defendam que sem o seu trabalho conceituando a pintura em seu

século, talvez não houvesse surgido no século posterior artistas como Leonardo da

Vinci, Ticciano, ou Michelângelo.

No século XVI surge Vasari (2011) cuja escrita se ocupa da vida dos artistas.

Diferindo de Alberti, reúne pintura, escultura e arquitetura – encontrando-se, na base

10

Leon Battista Alberti – Teórico mais importante da primeira fase do Renascimento.

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de todas, o desenho, que, constituía para ele, a base intelectual da arte. Teve

Michelângelo (por seu primoroso desenho) na conta de semideus. Lamentou o traço

sensual da pintura florentina, que se atinha a cor em detrimento ao traço do

desenho. É com Vasari que surge o embrião do que mais tarde conheceríamos por

análise formal, a partir dos conceitos de linear e pictórico. Como Alberti, Vasari

também possuía produção artística. É em seu pensamento também que nasce a

concepção de “estilo”, com as expressões “pintam a maneira de Michelângelo”,

pintam “a maneira de Leonardo”. Ele teria avistado no estilo individual de cada

artista o germe dos “estilos artísticos”. Com ele nasceu a ideia de maneirismo, na

medida que começou a perceber individualidades, peculiaridades artísticas. Os

pintores deste momento histórico materializavam as teorias formuladas por Alberti no

século anterior. Nenhum deles questionava as ideias expostas no tratado sobre

pintura. Mas, para Vasari, o juízo crítico sobre a arte deveria ser um pensamento

(olhar) à posteriori, o contrário do que havia sido pensado anteriormente por Alberti,

que cria que o olhar crítico era à priori, responsável por estabelecer uma “receita” a

ser seguida. Para Vasari, o pintor deveria retratar o que via e apenas isto, o que não

fosse visível não seria do âmbito da pintura.

Posteriormente teríamos o Iluminismo e toda a questão da esfera pública, quando

surgiria o que viríamos a conhecer como “opinião pública”. Não por acaso no século

XVIII nasce, com Diderot (2005), a crítica de arte, ou seja, a “opinião” sobre arte,

quando em 1735, é fundado o “Salão de Artes do Louvre”, pela primeira vez aberto

ao público em geral. Acontecendo a cada dois anos, mostrava a produção

contemporânea. Antes de Diderot outros escritores falaram sobre os salões, pois o

público leigo solicitava à Academia comentários sobre as obras. Diderot realizaria

essa escrita por vinte e dois anos. A crítica de então tinha a função de descrever as

obras para quem não as tivesse visto em exposição. Seu exercício crítico consistia

em escrever crônicas acerca das obras em exposição para um jornal destinado a

nobres que estivessem fora da França. Diferentemente de Vasari ou Alberti, Diderot

não escreveu tratados sobre obras de arte, mas estabeleceu forte relação com a

pintura, estudando-a a fundo. Ao contrário de Alberti, não ignorou a produção de seu

tempo, tornando-se seu profundo conhecedor.

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Em sua época, para a Academia uma natureza morta não tinha de modo algum o

mesmo status de uma pintura histórica. Ainda assim Diderot considerou Chardin um

pintor por excelência, independentemente do fato de se dedicar a esta temática

“menor” em pintura. Mesmo estando a Academia em seu apogeu, como crítico, a

contestou, questionando seus valores. Ele defendia que a escrita crítica não deveria

partir de conceitos à priori; para ele o crítico só poderia de fato escrever a partir da

obra, do que a obra discutisse, oferecesse. Contudo, seu pensamento era repleto de

paradoxos, – por vezes acreditando que a crítica era capaz de mostrar as obras,

crendo na transparência das palavras; por outras, duvidando.

Para a historiografia, se por um lado Diderot apontava para a modernidade, por

outro era neoclássico, vendo um sentido pedagógico na arte. Acreditava em gênio -

um gênio corporal, não espiritual. Esse gênio seria o produtor das grandes obras,

que só estariam, por sua vez, abertas ao entendimento de outro grande gênio, o

crítico, e o único capaz de traduzi-las para a língua dos homens comuns. Defendia a

mutabilidade do gênio, onde cada época teria o seu. Do mesmo modo acreditava na

mutabilidade do belo. Defendia que para produzir uma boa crítica era preciso estar

aberto a todos os gostos. Para ele, o conceito de belo habitava a arte, e não o tema

por ela tratado. Nutriu um pensamento considerado aristotélico, não era contra a

mimeses. Não expulsaria o poeta da Polis, entretanto, acoplaria inúmeras regras à

produção poética, tornando-a pedagógica, “melhorando-a” por meio de sua escrita,

fazendo-a “edificante”. Para o crítico em questão, obras como as de Chardin

recriavam a natureza, e as duas (obra e natureza) teriam o mesmo grau de verdade.

Em seu pensamento, a cor era mais capaz de “dar conta” da “alma da pintura” que o

desenho, tendo sido esse o seu aspecto moderno, ainda que tenha posto a arte a

serviço de algo - não do espírito, como defendia Hegel – mas da educação. Para

Diderot, a arte exercia uma função moral. Em suas definições, o gosto se formava a

partir do acúmulo de experiência. A lembrança dessa experiência formaria o “gosto

esclarecido”, instrumento de trabalho do crítico.

Em 1764, Winckelmann11, publica em Dresden Geschichte der Kunst des Altertums

[História da arte da Antiguidade], obra que o faz merecedor do reconhecimento de

outros críticos e historiadores posteriores. Segundo Hans Belting (2004), esta obra 11

Esclarecemos que não tivemos acesso a referida obra de Johan Joachim Winckelmann, toda nossa leitura acerca do autor foi realizada a partir de textos de outros historiadores. Gerd A. Bornhein por exemplo.

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explicita, pela primeira vez, um modo rigoroso de escrever a História da Arte. A

escrita de Winckelmann teria se distanciado da “mera narração da sucessão

temporal”. Não pretendeu realizar biografias de artistas. Buscava nas obras a

essência da arte ao invés de tratar de circunstâncias externas. Sua proposta, ainda

segundo palavras de Hans Belting, não seria realizar uma história da arte, mas sim

tomar a arte como história. A censura a seus precursores era a de não terem

mergulhado “na essência e na intimidade da arte” (BELTING, 2004, p.217). O autor

dedicou o tempo e energia intelectual não a arte de Roma, seu círculo cultural, onde

se concentrava toda a Europa amante da arte. Voltou o olhar e o pensamento para a

antiguidade clássica grega. Entre suas ideias teóricas temos que, o objetivo da arte

seria a beleza, e que, o verdadeiro artista toma por temática a natureza,

modificando-a, ao combinar o motivo com sua imaginação criativa, desenvolvendo

um padrão ideal, onde a principal característica seria a “simplicidade nobre e

grandeza serena”. Resgata o ideal de harmonia e beleza da arte grega, inserindo-o

no fazer do crítico.

No século XIX Charles Baudelaire (2005) traz o pensamento e o olhar para a arte de

seu tempo, para a contemporaneidade. Pela primeira vez na escrita da arte se

configura o interlocutor. Baudelaire sabia exatamente para quem escrevia: o

burguês. Vai constituir a modernidade e ser a um só tempo seu maior crítico. Não foi

apenas historiador ou crítico, foi, segundo a historiografia, fundador de uma época.

Com Baudelaire a arte perde um pouco da grandeza e do glamour onde estava

inserida, mas em contrapartida ganha um campo de discussão específico.

Diferentemente de Diderot que descrevia as obras para aqueles que não as podiam

ver, o poeta escrevia para os que as viam. Assim, buscava através de sua escrita,

trazer questões.

Baudelaire (2005) não acreditava na compartimentação das artes, mas em

“correspondências”. Cria na relação entre artes diversas, sensações diversas. Do

Belo, diria ser relativo - algo próximo a um imutável-dinâmico. Para o poeta a

afinidade crítica-artística não era uma questão de gênio, mas de temperamento. Não

acreditava na crítica despida deste, ao contrário, defendia que ela deveria ser a um

mesmo tempo: parcial, apaixonada, política. Via o crítico não como o “homem da

razão”, mas do temperamento, aquele a ser tocado pela obra, exercitando sua

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maneira particular de ver, de modo que contribuísse para que o outro também

aceitasse o convite da obra. Baudelaire sempre se posicionou, não temeu dar sua

opinião, mas também se colocou “conceitualmente” (segundo vocabulário

historiográfico). Não partia de subjetividades, do mero “eu acho”. Em seu

pensamento, a arte falaria de nossa totalidade, a todos os nossos sentidos. Seria

ela, a arte, a unir o que a cidade moderna fragmentou.

Na Áustria, a História da Arte já nasce com muita força e importância. Da escola de

Viena sai Alois Riegl (1980), ele Estuda arte romana. Segundo seu pensamento,

haveria certa eternidade da forma, sendo os motivos a se transformarem. Sua

grande “ruptura” consistiu em dizer que as formas obedeciam a leis próprias, não se

submetendo à natureza. Acreditava em uma “pulsão de arte”. Seu pensamento é

motivo de divergências entre críticos e historiadores.

Heinrich Wölfflin (2000) busca em sua obra algo que seja próprio da arte e de nada

mais. Para ele, o único campo possível para as artes visuais seria o da visualidade.

O fato de se calcar na pura visualidade alimenta a crítica, bem como a resistência ao

seu pensamento. Propõe um alto grau de cientificidade na utilização de seu método.

Não considera questões relativas a poéticas individuais. Seu pensamento está

conectado ao clássico, em que , para ele, sua obra funcionaria como uma espécie

de gramática. Acredita em algo que chama de espírito de época, a tocar toda a arte,

não priorizando individualidades, alternando-se sempre entre o conceito de linear e

pictórico. Para Wölfflin, a história das poéticas dos artistas não daria conta da

especificidade da arte. Segundo ele, apenas os conceitos que elaborou (extraídos da

análise formal das obras, não de filosofias) seriam capazes de dar conta do que só à

arte é próprio. Mas, como é próprio aos artistas conduzirem críticos a “becos sem

saída”, Duchamp, ao propor o “informe” (e um valor de arte que não está sequer no

objeto, que dirá na forma), teria “desmantelado” seu sistema. Ainda que, de certo

modo, tenhamos que considerar que também o próprio Duchamp vá configurar

exceção a confirmar regra, visto que a partir dele a arte envereda pelo informe (o

que remete ao conceito de espírito de época elaborado pelo autor).

Wölfflin(2000) não acredita no juízo de valor do historiador, para ele a história não

valora. Não produziu um tratado, como fez Vasari ou Alberti, dizendo como a arte

deveria ser produzida. Ocupou-se de dizer como ela deveria ser vista. O historiador

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Hans Belting o contesta, dizendo que ele aspirava um olho absoluto, a dar conta de

toda História da Arte.

Já Erwin Panofsky (1991) propõe uma leitura iconológica das obras. Para ele seria

possível fazer a História da Arte a partir da história das imagens. Ao entender a arte

deste modo faz critica a questão da forma. Para ele as imagens abrem inúmeras

possibilidades de leitura, são interpretáveis. Surge assim a importância dos

historiadores e suas leituras. Para Panofsky (idem) o historiador tem que possuir

uma “intuição sintética”, que dará sentido a tudo que foi visto, “dando conta” do

conteúdo da obra. A partir da obra pode-se conhecer uma época, um artista, pode-

se ir além do que está ali, sendo possível ler os valores simbólicos. Acredita no

poder das imagens e no que a forma traz de conteúdo. Em última instância podemos

dizer que para Panofsky, a História da Arte é a história da interpretação iconográfica.

O fato do “juízo de valor” não estar dentro de seu modo de ver, é um dos alvos das

críticas ao seu pensamento. Não podemos esquecer também a questão que envolve

o artista Andy Warhol, ou seja, o fato de que talvez na Pop Art não possamos fazer

uma leitura iconológica das obras. É fato que os artistas e as obras na pós-

modernidade, acabaram por fazer ruir os “sistemas” da crítica.

Pierre Francastel (1990) e a sociologia da arte. A proposição desta vertente crítica é

que a arte seja pensada como um produto da sociedade. Francastel (1990) critica

este ponto de vista, pois não vê a arte como produto nem da sociedade, nem de

nada externo a ela mesma. Concorda com Panofsky (1999) no ponto de vista de que

a perspectiva tenha sido uma forma escolhida para representar o espaço. Contudo,

ele defende que poderia também ser outra. Para ele o homem renascentista a

escolheu devido ao contexto e critica Panofsky por ter visto a perspectiva apenas

como forma simbólica – para Francastel ela seria símbolo sim, mas iria além,

configurando também códigos sociais. Segundo seu pensamento deveríamos olhar

não apenas quem produz a obra, mas também quem a tornou possível, segundo seu

ponto de vista, partindo da figura do mecenas poderíamos entender melhor a

sociedade. Assim, crê que a arte produz significados, mas que também é permeada

pelos significados que a rodeiam. O objeto artístico seria simbolizador de uma

cultura, e a arte uma forma específica de pensar. Para ele, pensar a sociedade

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implica em olhar a arte, pois esta contém conceitos e informações que não são

encontrados em nenhuma outra área.

Configuram pontos essenciais para o entendimento social da arte segundo

Francastel (Idem):

• O lugar do artista na sociedade

• A relação entre os mecenas e os artistas

• Relação entre arte e técnica (o advento da fotografia é exemplo)

• Arte-linguagem – análises formais da obra. Linguagens especificas do meio.

Em seu pensamento a obra não é um reflexo da sociedade, não a ilustra apenas,

mas faz parte de sua construção. Sem a visão da obra faltaria algo ao social. A obra

não configuraria apenas um espelho a mostrar a sociedade, mas sem dúvida

ajudaria a pensá-la, a construí-la. Francastel não nega que o poder usa a arte de

maneira instrumental.

Outro crítico que seguiu o viés da sociologia da arte foi o alemão Arnold Hauser

(1998). Nele destacamos a utilização ideológica da arte. Muito criticado por

Francastel, principalmente no ponto em que diz que a arte é um produto, um reflexo

da sociedade.

Historiador e crítico que não podemos deixar de mencionar é o italiano Giulio Carlo

Argan. Para ele a Historia da Arte, como disciplina européia, possui uma visão

eurocentrista. Segundo seu pensamento Panofsky rompe com isto quando

desconstrói a análise formal, dizendo que a forma é apenas mais uma entre as

imagens, como tudo que o homem produz, e isto não a faz necessariamente arte.

Argan vai defender a Historia da Arte como disciplina humanística contraposta à

posição de disciplina científica. Para o historiador italiano, é humanista o homem que

acredita no homem e vê na arte o lugar onde se defender e praticar a liberdade. Por

ser marxista seu pensamento não penetra nos Estados Unidos, mas como

fenomenólogo, ele acredita que a formação da consciência é um embate entre

sujeito e objeto, acredita na força do fenômeno, no real. Para Argan, a verdade

estaria na obra e não atrás dela, logo, critica Wölfflin e sua análise científica das

obras. Para ele a arte não é um objeto científico passível de análise e catalogação.

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Se a história é a do progresso, e o progresso é um instrumento do poder, haveria

uma história que não fosse a do poder? Para Argan (1992), essa História seria a da

Arte, contrária a ideologia do progresso. Ele vê o artista como um trabalhador. Em

Michelângelo avista a questão humanística, o drama da existência humana, não o

da razão. Com relação a questão fenomenológica, do embate com a obra,

precisamos pensar que, se essa relação for apenas com o fenômeno, talvez a

leitura não abarque todas as obras, a exemplo podemos citar novamente Andy

Wahrol, e a obra Marilyn, que destituída de seu contexto não possibilita leitura.

Em Clement Greenberg (1986) temos a visão subjetiva. Tudo se dá diante da obra, e

dele - o crítico. Ele vê os meios como campos de autonomia da obra. Para ele tudo

se dá na planaridade do quadro. Transforma a subjetividade crítica em

universalidade. Arthur Danto (2006) afirma que Greenberg estaria preso a uma

narrativa histórica. A teoria da arte para ele seguiria o pressuposto histórico evolutivo

– evoluindo até a abstração; a pureza da arte consistindo na pureza da

representação dos meios. Importante destacar que em seu pensamento, bastante

Kantiano podemos concluir, a arte não é conceito (o que de certo modo nos parece

animador), mas é juízo de gosto, juízo esse que depende de certa universalidade.

Defende a objetividade do gosto, demonstrável na presença do consenso que

atravessa o tempo, sendo a própria durabilidade responsável pelo consenso.

Importante lembrar que gosto, em Kant, não se restringe a preferências ou hábitos

culturais. A “faculdade” de gosto seria a capacidade de julgar o belo, seja na

natureza ou na arte, sentimento inerente ao humano, sendo comum a todos os

homens e mulheres.

Encerramos nesse ponto o breve panorama que decidimos realizar. Tal panorama

vem ao encontro do que inicialmente afirmamos acerca das teorias produzidas pelos

humanismos: Inúmeras foram produzidas – aqui apontamos algumas – e quase

todas almejavam submeter a produção artística de um modo ou de outro às suas

estruturas. Diferenciadas abordagens estabeleceram diferentes critérios de

submissão e avaliação da obra de arte ao longo da existência da História enquanto

disciplina. A história, como algo que emerge do movimento da verdade enquanto

desvelamento que se dá entre o homem e a arte, desejamos ressaltar uma vez

mais, não principia com o Renascimento, ali surge apenas sua escrita – na condição

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de registros e critérios. Bem sabemos, como afirmamos anteriormente, que história,

como trajetória e existência da Arte, remonta à infância da humanidade. Outro

aspecto que nos salta aos olhos é que, de início, a apresentação histórica da arte

esteve vinculada de algum modo a um “conceito” de arte a ser comprovado por meio

dela mesma. Ou seja, das produções artísticas, das obras. Mais tarde esse quadro

foi se alterando, e com as propostas das teorias estilísticas à obra de arte,

individualmente falando (referindo-nos às produções individuais de cada artista),

passa a configurar apenas etapa do caminho onde as novas “normas da arte” se

cumpririam. E a História da Arte, mapeada em seu surgimento lá nos escritos de

Alberti (1999) e Vasari (2011) como espécie de teoria da arte aplicada, termina onde

tal “teoria” perde a validade. Percebemos também que o germe da história do estilo

que desponta em Vasari em muito já difere da proposta inicial de Alberti, mas ainda

apresenta modelos e vai alcançar a plenitude dos desdobramentos com Wölfflin

(2000). Com Vasari (2011) surgem cânones, valores, onde os ideais de harmonia e

beleza clássicos se firmam como norma. “O classicismo encontra seu lugar histórico

no modelo biológico de crescimento, maturidade e velhice, o qual Vasari, como

todos os seus contemporâneos, transferiu da vida do homem para a vida da história”

(BELTING, 2012, p.224). Para Vasari (2011) o progresso no cumprimento da norma

seria um percurso histórico de gêneros que conduziria a um classicismo da arte. A

história por ele escrita, e também por todos os outros, esteve, como pontuamos na

abertura deste capítulo, profundamente vinculada às teorias desenvolvidas por cada

um dos autores. O ordenamento da história foi seguindo as avaliações de tais

teorias. Assim fica posto, de modo claro diante de nós que, a história assim escrita é

menos história da Arte em si, que história das ideias dos historiadores e críticos.

Cada novo modo ou critério para a escrita da arte surge movido pelos ideais do

autor que quase que de modo generalizado busca adequar as produções artísticas

às suas teorias. Alguns, como Clement Greenberg (1986), chegando ao excesso de

ignorar deliberadamente algumas obras por não se “enquadrarem” em seus

métodos, ou seja, em sua estrutura de pensamento.

O breve exercício retrospectivo acima contribui no sentido de aclarar certos aspectos

da escrita que se dirigiu à arte, que, salvo raras exceções, de um modo geral,

ocupou-se mais de si mesma e da elaboração de métodos científicos para classificar

seu objeto de estudo, que do próprio objeto de estudo. Voltando-se constantemente

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apenas para o passado, volvendo-se sobre si, acaba por configurar uma história que

chegamos a pensar poder chamar de autorreferente, especialmente após a

bifurcação com a estética, em Hegel (1997). Por vezes chegamos a crer tratar-se de

uma história acerca da própria história da arte mais do que de uma História da Arte

em si.

1.2 – Bifurcações do caminho: história e estética.

Percebemos no capítulo anterior que, em dado momento, houve a despedida de

uma história da arte aplicada, ou seja, daquela que pretendia ser referência para

produções futuras. No século XVIII vai surgir algo que a modifica, transformando

definitivamente os parâmetros da historiografia. Havia até então uma teoria universal

para apresentar a arte historicamente, ainda que cada historiador executasse sua

tarefa segundo os próprios métodos. Em dado momento, surge algo fora do contexto

dito “histórico empírico” da arte. Despontam em separado das considerações

históricas, as considerações estéticas e filosóficas, e assim surgem teorias da arte.

Ou seja, nasce a Teoria da Arte. Não que teorias acerca da arte já não tivessem sido

escritas, mas, em dado momento, sobretudo com o pensamento de Hegel e Kant,

tais teorias distanciaram-se em definitivo da história. Surge então a Estética como

disciplina e o termo “Estética” passa a ser quase sempre usado para toda uma área

de significação em torno da arte.

Como adjetivo - segundo Anne Cauquelin (2005) -, a palavra estética qualifica

comportamentos que, de algum modo, relacionem-se com os atributos da atividade

artística, como o prazer, a harmonia, a gratuidade etc. Já o substantivo “estética” se

refere a um corpus teórico constituído de pensamentos que culminaram em textos

empenhados em definir o domínio específico da arte, propondo análises, avaliando

as obras. Segundo a autora, Estética, pensada substantivamente, surge como um

“lugar” onde se reúnem sob a mesma chancela diferentes pesquisas, textos,

pensamentos, diálogos filosóficos que tenham por objeto as noções relativas ao

belo. Importante ressaltar que o primeiro autor a utilizar a palavra “estética” (de

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grande largura semântica como podemos constatar), de um modo mais próximo de

como a entendemos hoje, foi o pensador alemão Alexander Gottieb Baumgarten, em

seu tratado de 1735, intitulado “Meditações filosóficas sobre as questões da obra

poética”, designando-a como aquela que trata do conhecimento sensorial que chega

à apreensão do Belo expresso através das imagens da arte. Obviamente estudos

acerca do Belo remontam à antiguidade clássica, aparecendo em escritos de Platão,

especialmente em Hípias Maior. Todavia, ainda Platão não erige uma teoria acerca

da arte. A ideia platônica do Belo estabelece segundo CAUQUELIN (2005) o que se

pode chamar de horizonte teórico, que será posteriormente utilizado por outros

teóricos com interesses específicos ao campo da arte. Assim, Baumgarten não é o

primeiro a se ocupar das questões do Belo, mas sim o primeiro a buscar e utilizar a

palavra grega aesthesis deste modo. Contudo, não é através de Baumgarten que a

Estética se firma como ciência. Teria sido Benedetto Croce, em um dos seus textos,

o primeiro a definir estética como a ciência da arte. Mas, teria afirmado de imediato

“não se tratar de ‘ciência’ propriamente dita, mas de visão filosófica, interrogando-se

em seguida para saber se a crítica de arte é ou não estética, assim como a história

da arte” (CAUQUELIN: 2005, p14).

Talvez esteja em Kant, mais do que em Baumgarten ou Croce, esta raiz da Estética

como disciplina (idem). Seu pensamento acerca da arte, entre outras coisas,

ocupou-se do posicionamento humano à percepção da beleza, ou seja, do gosto,

algo que concluiu ser ao mesmo tempo universal e subjetivo. Para Kant, a arte é um

produto criado pela sensibilidade, imaginação e inspiração, cuja finalidade é

proporcionar a contemplação do belo. Defendeu para tal fenômeno estético uma

faculdade específica, sendo a beleza algo sem conceito, objeto ou finalidade, uma

afirmação de um estado da mente. Segundo o filósofo, chega-se a apreensão do

belo através do juízo estético. O Belo constituindo um elemento apriorístico,

universalmente válido, sendo o seu valor universal. Todos sabem o que é Belo,

ainda que as opiniões acerca do “isto é belo” ou “aquilo é belo” não sejam unânimes.

Surge em Kant o juízo de gosto, capaz de emitir um julgamento universal referindo-

se a algo particular. Ainda segundo Anne Cauquelin (2005, p.11), um dos sentidos

da palavra “teoria” estaria ligado a etimologia: “Theoria, procissão ou cortejo ritual

em honra a um deus, que convoca toda sorte de participantes para uma festa

votiva”. Percebemos que o pensamento teórico pode ser pensado como uma

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procissão assim como pontua a autora citada, onde inúmeros seguidores

compactuam as mesmas crenças. Assim foi com a teoria de Kant, com o juízo de

gosto se tornando ferramenta oficial, amplamente utilizada pela crítica de arte desde

então, e a noção do “isto é Belo” estabelecendo-se como norteadora de quase a

totalidade do juízo acerca da arte. Isso até Duchamp, que interrompe a procissão do

isto é belo, iniciando outra, a do: Isto é arte.

Ao lado de Kant posiciona-se Hegel na escala das teorias acerca da arte.

Esclarecemos que nosso olhar não se dirigirá a ele neste momento, visto que,

dedicaremos àquele que elaborou teoria acerca da primeira morte da arte, todo um

tópico. Por hora, nos restringiremos a expor nossa opinião acerca de que, embora

autor dos Cursos de Estética, obra considerada de referência, e pensador de grande

porte, ousamos argumentar que Hegel não se ocupou propriamente da arte. Sua

questão era o Espírito Absoluto, a arte configurando apenas ponto de passagem em

seu sistema. A nosso ver Hegel não teria se deixado tomar, por não constituir seu

principal interesse filosófico, pelas questões que são próprias à arte, como teria feito

Heidegger posteriormente.

Antes de seguirmos adiante, gostaríamos de dizer que com a bifurcação estética, o

caminho seccionou-se em história e teoria. A habitar este sítio chamado Teoria da

Arte, estão, obviamente, as próprias teorias e os teóricos. Anne Cauquelin (2005,

p.16) nos diz que pensa teóricos e teorias “como atividade que constrói, transforma

ou modela o campo da arte”. Contudo, gostaríamos de acrescentar aqui uma

questão: Não são as obras, em seu vigor, - ou ao menos não deveriam ser? - as

responsáveis pela construção, modelagem e transformação, quando assim se

fizesse necessário, do “campo” da arte?

1.3 - As “mortes” da Arte

Quando o pensamento e a própria dinâmica de uma pesquisa conduz à fronteiras

conceituais, teóricas, e nos instigam a cruzá-las, cabe-nos aclarar posições antes de

iniciar qualquer incursão. Estudar os des-caminhos do pensar acerca da arte hoje,

como já dito anteriormente, implica escarificar corredores históricos que se

entrecruzam, onde opiniões ora convergem, ora divergem. Embrenhar-nos por estes

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corredores se faz necessário ao percurso, ainda que, alguns deles nos pareçam

insólitos, sobretudo os que conduzem ao que se convencionou chamar “mortes da

arte”. Antes de iniciarmos tal percurso esclarecemos: nenhum cadáver nos aguarda

no fim.

Sabemos que o fazer artístico é inerente ao humano. Nenhum homem é sem a arte.

Muitos, ao ouvir tal afirmação, diriam sem pestanejar que passariam a vida inteira

sem tomarem ciência da existência de Pablo Picasso sem que isso representasse

diferença relevante em suas existências. Decerto é bem provável que certas almas

atravessem toda uma vida sem tomarem conhecimento das grandes questões

articuladas nas artes visuais. Outros ainda afirmariam jamais terem lido Willian

Shakespeare. Muitos nunca foram, ou sequer pensaram algum dia ir, a um concerto,

e passarão pela vida sem conhecer a beleza transcendente da peça Concerto para

dois violinos de Johann Sebastian Bach. Mesmo concordando que algumas pessoas

nascem, crescem e envelhecem em um estado de quase “an-estesia” - incapazes de

sozinhos perceberem efetivamente sua necessidade de arte - ainda assim, nossa

afirmação inicial se sustenta: não vivemos sem ela. Em sua total ausência

enlouqueceríamos. De um modo ou de outro, sempre se faz presente em nossas

vidas, em todas as vidas, mesmo naquelas que julgam estarem à margem dela. Se

há humanidade haverá anseio de arte. É fato que em algumas vidas isso será mais

contundente, tão essencial quanto o pão, o ar ou até mesmo ópio. Em outras,

ocupará posição secundária, mas, ainda assim, ela se fará presente de algum modo.

Basta perguntarmos a um adolescente de hoje se ele poderia viver sem seu Ipod,

sem sua playlist no celular, sem música. Isso soaria absurdo à maioria deles, visto

que necessitam de trilha sonora, tendo nos fones de ouvido uma extensão do

próprio corpo. O mesmo constatamos ao voltarmos um pouco no tempo, até a última

década do século XVIII por exemplo: Seria possível para um jovem, no auge do

romantismo, imaginar mundo sem poesia? Recuando mais: E quanto aos homens e

mulheres da Idade Média, poderiam imaginar o mundo sem cânticos? E como seria

a relação homem/mundo no neolítico sem danças e rituais?

Mesmo diante da incontestável relação homem/arte, vez por outra, o pensamento se

dirige às fronteiras obscuras que dizem da morte desta que faz parte de nossa

essência. Assim, ao longo de sua história, surgiram arautos de sua morte.

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Destacamos três momentos pontuais em que a morte da arte teria sido anunciada: o

primeiro deles no século XVIII no Sistema filosófico de Hegel, o segundo momento

teria sido no início do século XX, na fina ironia de Marcel Duchamp, e, o que alguns

consideram um terceiro momento, mais recente, na escrita crítica de Hans Belting

(2012) e Arthur Danto (2006), e que aqui apenas citamos, chamando de escrita post-

mortem. Ainda que nosso empenho seja aclarar na arte sua potência poética,

especialmente por sabê-la inerente ao humano, e acreditarmos nas sábias palavras

colhidas por Heidegger no poema No azul sereno floresce... de Hölderlin, que nos

diz que poeticamente o homem habita, reconhecemos necessário para a plena

compreensão da atual situação da produção e escrita da arte, realizarmos essa

breve genealogia de suas supostas “mortes”.

1.3.1 – Primeira Morte da Arte - Hegel

A relação entre o pensamento do filósofo Friedrich Hegel e a arte, a nosso ver, é

controversa. Para compreendê-lo precisamos de antemão ter em mente que a arte,

para Hegel, referia-se apenas a um “estágio” do conhecimento humano em sua

escalada rumo ao espírito absoluto, ou conhecimento absoluto, a saber: a filosofia.

Seus Cursos de Estética podem ser vistos como uma espécie de teoria sistemática

da (ou talvez melhor dizer: sobre a) arte. Um sistema onde se marcha rumo ao saber

absoluto, e que, em dado momento do caminho, se ocupa da arte. Para o filósofo, o

espírito se desenvolveria historicamente em três etapas: religião, arte e filosofia. A

época em que viveu ele teria sido, segundo seus escritos, a da passagem da arte

para a filosofia, em que esta, em evolução natural rumo ao espírito absoluto, acaba

por perder materialidade a cada círculo, e assim finda. Buscaremos, ao longo dos

próximos parágrafos, compreender a posição que a arte ocupa no sistema

hegeliano, em tentativa de aclarar por que, para o filósofo, ela teria morrido, ou seja,

findado.

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Nos Cursos de Estética (1997) Hegel traça panorama dos desdobramentos formais

e ideias de diferentes manifestações artísticas. Seu sistema se baseia no progresso

das artes, que se dá no sentido de alcançar uma expressão cada vez mais clara e

menos simbólica de uma verdade que se revela cada vez mais profunda, ou seja,

cada vez mais interior ao homem. Para o filósofo, arte é um saber, e, como tal, nela

há um conhecimento do “Espírito absoluto”. Segundo esclarecimentos de Michel

Haar (2002) sobre os escritos de estética de Hegel, este conhecimento nas artes

seria apenas intuitivo; chegando a alcançar a verdade absoluta, mas numa

apreensão através da intuição, do sentimento. Para o filósofo, a arte apreende a

verdade, mas não a concebe, sendo um saber direto, manifesto, onde se celebra a

união do sensível e do espiritual, exterior e interior, natureza e espírito. Assim, criar

uma obra de arte seria fazer encarnar um conteúdo de pensamento em uma forma

sensível, contudo, mesmo havendo uma unidade entre conteúdo e forma, não

haveria necessariamente, e tampouco em todas as obras, uma adequação entre

ambos. Para o filósofo, a adequação entre forma sensível e conteúdo teria estado

presente apenas em um dos períodos da arte - a saber: na arte clássica, na Grécia.

O conteúdo da arte seria a religião, o divino, os deuses ou Deus. Este seu centro de

gravidade. É óbvio que a arte poderia expressar mais que teologia, havendo espaço

também para os sentimentos, para o amor. Michel Haar (2000) afirma que para

Hegel o amor seria o tema essencial da pintura no período em que a arte

corresponde ao cristianismo, a saber, no Romantismo.

No sistema hegeliano, sendo a religião o conteúdo da arte, o desenvolvimento desta

segue o daquela. Assim, para Hegel, teria havido três pares religião/arte

correspondentes ao longo da história da arte, divididos em três círculos. Para aquela

que chamou de religião da natureza tivemos a arte simbólica; para o politeísmo da

religião, a arte clássica; e, para a religião cristã, como mencionado anteriormente,

tivemos a arte romântica. Para cada um dos períodos da arte - simbólico, clássico e

romântico – teria surgido manifestações artísticas próprias que buscavam

adequação ao conteúdo religioso.

Na arte simbólica, tivemos, segundo o filósofo, o primado da arquitetura. Luz na

Pérsia, animais e plantas na Índia - a divinização da natureza tornavam as

divindades inapreensíveis dentro de um aspecto formal. Na busca por apreender o

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divino, obras foram realizadas muito além dos limites do que se podia supor

resistência humana. Formas tomaram proporções descomunais em nome de um

querer apreender, e ainda assim, para Hegel, não teriam conseguido abarcar o

conteúdo espiritual da época. Haar (2000, p.55) cita as pirâmides como o mais

contundente exemplo desta inadequação: forma geométrica sem alma contrastando

com a imortalidade de uma alma individual. A arte simbólica, caracterizada pela

inquietude devoradora de uma ideia abstrata de liberdade e das potências infinitas

da natureza se valeram de materiais pesados e de formas colossais. No sistema de

Hegel, a arte segue o seguinte padrão: quanto mais abstrata for a ideia, mas

concreta será a forma. A arquitetura teria tomado de empréstimo o material da

natureza, mas as pesadas pedras empilhadas segundo abstratas leis do equilíbrio

apresentaram uma relação meramente exterior e inadequada entre conteúdo e

forma. Na arte simbólica, com a presença marcante da arquitetura, ergueram-se

templos que interiormente ofereceram morada aos deuses, concedendo-lhes um

lugar de aparição ao mesmo tempo em que exteriorizam o sentimento de comunhão

religiosa do homem na forma de um querer-estar-juntos.

Seguindo pelo sistema evolutivo de Hegel, temos, a arte clássica. Nela há a primazia

da escultura. Politeísmo religioso refletido na beleza escultórica da estátua de Apolo.

Para o filósofo, a arte clássica teria atingido a adequação entre forma e conteúdo. O

equilíbrio perfeito, a comunhão exata entre forma sensível (o corpo humano) e o

conteúdo espiritual (deuses individuais). Cada deus correspondendo a um ideal de

beleza, força ou serenidade. A arte seguindo caminho em direção à leveza, à

abstração. A arte clássica teria sido o domínio do belo, da beleza antropocêntrica, do

equilíbrio. Humaniza-se o princípio divino. O sensível é espiritualizado, e o espiritual

é encarnado. (ibidem, p.62)

No círculo seguinte, em correspondência com a religião cristã, temos a arte

romântica, última época artística no sistema de Hegel (apud HAAR: 2000, p.62). A

arte romântica se desdobra em três manifestações artísticas, as quais Hegel

chamou: “subjetivas”, isto é, a unidade consciente entre o humano e o divino, em

oposição a “objetividade” da arquitetura na arte simbólica e da escultura na arte

clássica. E para esclarecer seu ponto de vista acerca da objetividade na arte

clássica, que defende como total adequação entre forma e conteúdo, afirma: “O

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deus grego reveste a forma carnal do homem (...); o sujeito pode realmente

reconhecer-se nele, sem ter a impressão ou a convicção íntima de compor com ele

uma unidade”.

Assim, compondo a arte romântica de conteúdo cristão, afinadas à leveza do espírito

e a exaltação da subjetividade, tivemos a pintura, a música e a poesia. No

cristianismo, Deus não estaria mais limitado a um ideal, ou corporificado em figuras

ideais, fez-se Homem, e, assim, o conteúdo espiritual foi distribuído entre almas

particulares. “É Deus mesmo que está presente em toda parte”. (Ibidem p.56) e

assim tudo aquilo que se agita em uma alma, tudo que buscava exteriorizar-se nos

atos, torna-se matéria de representação. Baseado nesta convicção, o filósofo

defende que a arte romântica teria feito da interioridade concreta seu conteúdo. Para

Michel Haar (2000), Hegel interpreta o cristianismo como a autorização para divinizar

os sentimentos humanos. Deus-feito-Homem, possibilitado pela religião cristã, teria

tornado possível à realização da essência verdadeira da arte, síntese da

espiritualidade interior com o sensível. Hegel vê nas três manifestações artísticas

que compõem a arte romântica um caminhar progressivo rumo à desmaterialização:

a pintura e o trabalho em um espaço cada vez mais abstrato, bidimensional; a

música com a expressão da interioridade também abstrata; e a poesia, a quase total

imaterialidade cada vez mais desconectada de seu suporte material – e a

aproximação crescente com o Espírito Absoluto. Da solidez descomunal das

pirâmides, exemplo da arquitetura que para Hegel era pobre em ideias e

materialmente pesada, passando pelo equilíbrio das esculturas gregas, até a

abstração do espaço na pintura e a interioridade da música, a arte, com a poesia,

torna-se capaz de expressar através da linguagem todo e qualquer pensamento,

atingindo o ápice de sua desmaterialização. O filósofo vai situar a poesia no limite

extremo do domínio da arte, que neste ponto estaria prestes a “evoluir” em direção

ao pensamento filosófico. A morte da arte no sistema filosófico hegeliano se dá

neste desmaterializar-se rumo ao espírito absoluto. Por perder-se do tangível,

saindo da ordem sensível, “morre”, tornando-se apenas objeto de estudo, um

momento ultrapassado, deixando de ser o meio no qual, e pelo qual, vivemos.

Em todas essas relações a arte é e permanecerá para nós, do ponto de vista de sua destinação suprema, algo do passado. Com isso, ela também perdeu para nós a autêntica verdade e vitalidade e está relegada à nossa representação, o que torna impossível que ela afirme sua antiga necessidade

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na realidade efetiva e que ocupe seu lugar superior. Hoje, além da fruição imediata, as obras de arte também suscitam em nós o juízo (...). A ciência da arte é, pois, em nossa época muito mais necessária do que em épocas na qual a arte por si só, enquanto arte proporcionava plena satisfação. (HEGEL, 2001, p.35).

Com esta “morte”, a arte não deixaria obviamente de existir, mas, perderia sua

relevância espiritual diante da reflexão pura. Hegel teria nos dito ainda que a arte

convidar-nos-ia a contemplá-la por meio do pensamento, não para retomar seu

antigo lugar, mas para que conhecêssemos cientificamente o que, de fato, ela é.

Com esta colocação podemos perceber uma atitude visionária do filósofo, que de

algum modo, lá do século XVIII, vislumbrou a “enlutada” arte de nosso século.

Percebemos, na passagem em destaque acima, que Hegel ao “encerrar” a arte

parece firmar efetivamente a ciência da arte. Segundo suas palavras, em sua época,

tal ciência teria uma maior relevância que a arte em si, visto que ela, a arte, já não

seria capaz de firmar-se como conhecimento por já não mais possuir um sentido na

escalada rumo ao absoluto. O que temos nas palavras de Hegel é que a arte, a

partir deste momento, só se daria a conhecer em seu passado, ou seja, o olhar que

se dirigisse nesta direcão deveria ser um olhar que se voltasse para trás, já que no

presente, segundo o filósofo, ela deixava de ter função por ter findado sua missão na

escalada em direção ao espírito absoluto. O pensamento de Hegel (1997)

desmantela o sistema de história da arte aplicada, como o de Vasari (2005) ou

Diderot (2005) por exemplo, pois se a arte está integrada no curso histórico das

culturas ela não recebe suas normas de si mesma. “A estética de Hegel é antes uma

tentativa de diminuir o poder de qualquer estética de artista e de qualquer crítica de

arte aplicada em prol de uma ‘consideração teórica’ da história da arte do ponto de

vista do historiador universal”. (BELTING, 2012, p.228)

Para Hans Belting (2012), a ideia de Hegel de conceituar a função da arte na

sociedade foi com frequência depreciada como a “estética do conteúdo”, mas teria

se tornado eficiente dentro do “sistema artístico” tão logo se desprendeu de sua

fundamentação dogmática dentro do sistema de seu criador. A ideia de efeito e

prosseguimento da arte, associada ao que ela realiza em suas tarefas, é também o

que a esgota. Tal ideia evolutiva é rompida com a arte moderna. Permanecendo,

contudo, a imagem do ciclo em que cada “progresso” constituiria um passo para a

libertação em relação ao conteúdo exposto.

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Quando “o conteúdo se esgota” e os respectivos símbolos são completamente formulados sem resquício, então “desaparece o interesse absoluto”. Com incumbência especial, a arte justamente ainda nova perdeu também, muito rapidamente, o seu “conteúdo”, e apenas a objeção contra o conteúdo desgastado libera novamente a atividade artística no período subsequente. (BELTING, 2012, p.228)

Na modernidade, há um deslocamento nas percepções e tal papel é questionado,

afinal a arte já não estaria atrelada a um conteúdo particular, não possuindo mais a

autoridade de representar um conteúdo universal, que atendesse e satisfizesse a

todo o público. Surgem as escolhas individuais, e, como afirma Hans Belting (2012),

a arte passa então a refletir a consciência individual do artista. Sob a luz do

pensamento de Hegel (1997) teríamos a arte como uma revelação do espírito que

teria cumprido sua função histórica, e que só poderia continuar existindo

retrospectivamente sob o lume de uma historiografia da arte universal. Assim, a

História da Arte tornou-se autorreflexiva desde que ficou mais fácil conhecer a arte

em seu passado. A História da Arte teria se transformado no próprio conteúdo

teórico. Contudo, perder as funções dentro do sistema hegeliano concedeu

autonomia estética às obra de arte. Então, liberta de suas antigas “funções”, a arte

estaria, como defenderam os modernos, entregue a si mesma, cabendo ao novo

observador aprender a vê-la livremente, sem os desvios de conteúdos ou símbolos.

Para além de Hegel, presenciamos no chamado “contemporâneo” outros modos de

ser da arte, onde esta não foi abolida, ao menos não no sentido hegeliano de poder

existir apenas por meio da ciência da arte. No contemporâneo não se pretende,

como teria dito Hans Belting citando Gianni Vattimo, abolir a arte, mas proporcionar

uma “experiência da arte no sentido de uma ocorrência estética integral”, uma

“explosão da estética fora de seus limites tradicionais”. (VATTIMO apud BELTING,

2012, p.231).

Não podemos deixar de mencionar uma vez mais Hans Belting, em cujo ponto de

vista Hegel e seu sistema teria criado uma justificativa decididamente metafísica

para o museu de arte recém surgido, onde a arte, totalmente destituída de sua

função social na escalada do espírito, é deslocada dos altares para os museus. É

com a consolidação dos museus que o olhar sobre a arte se torna efetivamente um

olhar retrospectivo sobre a História da Arte. Sob este ponto de vista, considerando

esse aspecto específico, poderíamos ver Hegel não como aquele que sedimentou a

estética, mas sim o que estabeleceu definitivamente o papel da História da Arte.

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Hans Belting (2012) nos alerta sobre o que talvez tenha sido o grande equívoco de

Hegel: o de achar que é possível julgar de fora da história e sobre a história.

Estabelece-se a historização da arte ao custo da perda de sua tarefa de permanecer

na vida, perde-se assim de sua função junto aos rituais. Produzida especialmente

para o museu a arte é submetida à outra espécie de “sacralização”. Podemos

concluir, inspirados pelo pensamento de Quatremère de Quincy, citado por Hans

Belting (2012, p.233) que talvez a situação em que se encontra hoje o “sistema” que

se ocupa da arte, tenha suas origens neste equívoco inicial, de um museu e de uma

crítica que julgava saber tudo sobre arte, mas que não havia compreendido de fato

nada de sua essência.

1.3.2 – Algumas colocações acerca da segunda morte da arte em Marcel

Duchamp

Cerca de cem anos após Hegel, a suposta segunda “morte” da arte se dá pelas

mãos não de um filósofo, mas de um artista: Marcel Duchamp que desfere golpe dito

certeiro com um porta-garrafas. Para evitar que se tome apressadamente seu gesto,

dito “assassínio”, apenas como atitude leviana, busquemos pensá-lo.

O famoso porta-garrafas12 é um ready-made. Trata-se de objeto cotidiano eleito pelo

artista, retirado da esfera do uso e inserido no “território” da arte, descumprindo

noções comuns da ordem do estilo e da manufatura que imperavam até então. O

porta-garrafas como ready-made, primaria pela ideia, sendo, segundo o próprio

Duchamp, um objeto de antiarte. Os ready-mades configuram, inegavelmente um

marco na história da arte, que, permanece, mesmo um século depois, dividindo

opiniões. Com relação ao artista podemos informar que firmou seu legado, sendo

considerado o precursor da arte contemporânea, tendo influenciado diretamente os

artistas conceituais. Importante esclarecer que Duchamp havia construído uma

trajetória artística, e que, antes dos ready-mades, era pintor admirável. Para os que

esqueceram, ou desconhecem esse fato, é de extrema importância re(ver) suas

obras pictóricas - sobretudo o célebre óleo sobre tela Nu descendo uma escada Nº

12

Ver anexo ilustração 3.

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2, de 191213, antes de realizar qualquer tipo de juízo acerca dos ready-mades. Não

há dúvidas de que Duchamp conhecia profundamente seu ofício, o circuito e o

mercado de artes. Ainda que estejamos cientes de que a biografia do artista não é

um dado importante a ser considerado ao pensarmos suas obras, consideramos

relevante mencionar: foi exímio jogador de xadrez. A certa altura de sua trajetória

artística, proclamou-se antiartista e passou a inserir no circuito objetos de “antiarte”.

Que força moveu o gesto que alguns consideram estopim para a segunda morte da

arte?

Pensar a ação de Duchamp não constitui tarefa simples. Teóricos diversos se

empenham em compreendê-lo e as opiniões nem sempre são convergentes.

Pontuaremos alguns “pareceres” teóricos acerca de tal gesto. Como teria nos dito

Octavio Paz (2002, p.29) não é tanto uma operação artística quanto um jogo

filosófico, ou antes dialético: é uma negação que, pelo humor, se torna uma

afirmação. Afirmamos, em parágrafo anterior, ter sido Duchamp exímio pintor.

Reiteramos. Há ainda os que defendam que para além da pintura de telas, pintou

ideias – os que assim pensam pontuam que sua obra principal estaria mais próxima

da filosofia que da arte. Teria defendido a pintura como pensamento, revelando-se

altamente combativo àquela que chamou “pintura olfativa” – cheirando a terebintina

e linhaça. Demonstrou profundo desagrado em relação à pintura apenas “retiniana”

que a seu ver se estabeleceu com o Impressionismo. Marcel Duchamp, do ponto de

vista da crítica e da história correntes, teria movido a arte para um novo território.

Segundo palavras do artista Jasper Johns (2006, p.203) teria levado a arte para um

campo em que a linguagem, o pensamento e a visão agem uns sobre os outros.

Duchamp, a seu modo, teria entendido a arte como algo que brota do invisível e a

ele retorna, invisível que, para ele, não pareceu obscuro ou misterioso, mas sim,

transparente.

Tal pensar acerca da transparência nos conduz a outra estância, aos escritos de

Martin Heidegger (2008b), lá, de onde a Linguagem, como fonte primeira de toda

criação e possibilidade de ser do humano, acena-nos. Não nos aprofundaremos

nesta questão, ainda que a nosso ver seja de extrema relevância para a

compreensão da arte. Precisamos por hora dirigir nossa atenção e pensamento à

13

Ver anexo ilustração 4.

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Duchamp, assim, restringimo-nos a apenas sinalizar, que o artista, em meio à total

irreverência e ironia que compunham seu processo de criação (ou anti-criação)

acenou, cremos que de modo não intencional, em direção ao pensamento originário.

De certo modo, ao julgar a arte transparente, aproximou-a da Linguagem, a nosso

ver também transparente. Com relação à Linguagem, no sentido profundo dos

encaminhamentos de Martin Heidegger, haveremos de sempre lembrar que somos e

estamos nela, vemos por e através dela sem que nos seja dado avistá-la

efetivamente.

Mas voltemos à Duchamp. Alguns entusiastas defendem que seu gesto teria

provocado o fim da arte por afirmar, ainda que de modo indireto, que todos podem

ser artistas, já que o ready-made tornou absolutamente dispensável qualquer talento

especial para sua realização. Com o lançar mão de objeto industrializado elevando-o

à condição de obra, rompe-se, ao menos teoricamente, a fronteira que separava arte

e cotidiano. A partir deste gesto inaugural, diversos outros artistas procuraram

estreitar distâncias entre o que entendiam por arte e vida. Entre os de atuação mais

efetiva destaca-se o alemão Joseph Beuys, cujo ponto principal a qualquer

observador de suas obras é ter em mente sua tese fundamental de que todo ser

humano é um artista. Contudo, ainda que para Beuys (apud DE DUVE, 1998, p. 126)

Duchamp tenha sido o desbravador de caminhos, o artista alemão tinha reservas em

relação ao criador dos ready-mades, especialmente à sua postura diante do que

iniciou, julgando seu silêncio em relação às obras excessivo, como podemos

constatar por suas palavras na passagem a seguir:

Eu o critico porque no preciso momento em que poderia ter desenvolvido uma teoria com base no trabalho realizado, ele se calou. Sou eu, hoje, quem desenvolve a teoria que ele poderia ter desenvolvido. (...) Ele fez aquele objeto (o urinol) entrar no museu e percebeu que seu deslocamento de um lugar para o outro o transformava em arte. Falhou, entretanto, por não chegar à conclusão clara e simples de que todo homem é artista. (BEUYS apud DE DUVE: 1998, p.126)

Beuys, posteriormente a ação de Duchamp, teria feito da criatividade humana e do

princípio “todos são artistas” as bases não só de sua arte, mas de suas crenças,

tecendo intrincada ideologia acerca do tema. Já Duchamp, considerado precursor de

tal teoria, a quem Beuys censurou pela postura silenciosa em relação à questão

“todos são artistas”, jamais foi um utópico. Para Thierry De Duve (1998), nada

poderia estar mais distante de seu modo de pensar do que a crença na criatividade

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universal. O ready-made não teria surgido da fé de que todos poderiam ser artistas,

mas do fato de ter reconhecido que todos já o eram, já que anula qualquer diferença

entre fazer e apreciar arte. Uma vez empalidecida esta diferença, o artista abre mão

de todo privilégio de seu fazer técnico em relação ao leigo, havendo um total

esvaziamento da “profissão” artista. Não havendo mais barreiras - sejam elas

institucionais, sociais ou financeiras - tornou-se dedutível que qualquer um poderia

ser artista se assim desejasse. Para De Duve citado, este fato não teria sido uma

consequência do ready-made, mas sua condição.

Há um consenso quanto a obra de Marcel Duchamp configurar passagem

obrigatória de todo pensamento que se encaminhe à arte contemporânea, seja para

legitimá-la ou para buscar desconstruí-la. O fato é que ignorá-la abre margem para a

“desqualificação” de trabalhos teóricos que busquem pensar a trajetória, em seus

acertos e/ou equívocos, da teoria e história da arte e até mesmo da produção

artística, e, nesse ponto, referimo-nos especificamente a produção pós-duchamp, ou

seja, a contemporânea. Levando em conta este aspecto, consideramos relevante

observar mais algumas posições teóricas acerca de seu gesto, esboçadas por

renomados críticos e filósofos, antes de nos posicionarmos a seu respeito.

Segundo Arthur Danto (2010, p.24) Marcel Duchamp teria sido um pioneiro na

História da Arte, o primeiro a “transformar objetos comuns em obras de arte”. Para

Danto, podemos avistar nos feitos de Duchamp uma tentativa de impor às obras

certo distanciamento estético, já que os objetos por ele eleitos, revelavam-se de

fruição improvável. Danto diz ainda ser absolutamente possível ver os ready-mades

como “demonstrações práticas de que se pode descobrir alguma espécie de beleza

onde menos se espera”, mas que a redução do gesto de Duchamp a uma “pregação

estética” ofuscaria, obscureceria o que chamou de: “sua profunda originalidade

filosófica”.

Para o filósofo italiano Giorgio Agamben (1996), a ação de Duchamp, com os ready-

mades, sinaliza fratura ocorrida na modernidade entre trabalho intelectual e manual,

que culminou com o esvaziamento do conteúdo artístico, sendo este fazer um

sinalizador de tal vazio. Para Agamben, com os ready-mades nada vem à presença,

nada que não havia antes é trazido à existência a não ser a própria privação de uma

potencialidade.

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Carlos Zílio (1997) vai defender que o trabalho de Marcel Duchamp tem por alvo

preciso o sistema da arte, consistindo investida clara contra o aparelho cultural-

ideológico, cuja estratégia é nele penetrar, compreender seu funcionamento, para

minar suas estruturas, subvertendo mecanismos, buscando voltá-lo contra si

mesmo, dando à arte a oportunidade de traçar um novo percurso. Zílio defende que

Duchamp, agindo dentro das forças da sociedade, buscou desarticular o sistema

cultural dominante.

O ponto-chave de toda a principal interpretação realizada acerca de Duchamp, gira

em torno dos escritos de Kant (2010). Já que o antiartista é considerado uma

espécie de “subversor” do pensamento kantiano acerca do belo e da arte. Para

Thierry De Duve (1998), já citado anteriormente, a ação de Duchamp cambia a

sentença “isto é belo” norteadora de todo o fazer artístico até a modernidade, por

outra, reconhecida como mais complexa, a saber: “isto é arte”. O belo, nas obras

propostas por Duchamp, seria, segundo afirmações teóricas vigentes, de outra

ordem, sendo a beleza, nessa instância, a própria indiferença. Tendo a arte, e até

mesmo a beleza, tornado-se livre ao se desvencilhar de toda e qualquer pré-noção

acerca do Belo. Haveria na proposta de Duchamp uma espécie de suspensão do

julgamento de valor estético, onde nenhum veredicto acerca do gosto se faz

presente. Seguindo tal encaminhamento, como reza a cartilha da estética, com a

suspensão do gosto e a ausência do julgamento, também a arte se faz ausente, o

que transforma o ready-made em obra de antiarte e Duchamp em antiartista.

Com relação à escolha de um ready-made, o próprio Duchamp (apud De DUVE,

1983, p.130) teria esclarecido que: “essa escolha era baseada numa reação de

indiferença visual concomitantemente total de ausência de bom ou mau gosto... na

verdade uma completa anestesia”. Neste ponto talvez seja importante inserir um

questionamento de Tierry De Duve acerca de tal afirmação de Duchamp, ao qual

somamos nossa voz: Seria mesmo possível acreditar na indiferença visual absoluta?

Com o passar do tempo o legado de Duchamp firmou-se, tornando-se cada vez mais

evidente. Percebemos com clareza sua influência, especialmente na Pop Art, e na

Arte Conceitual dos anos 1960. Com relação a Pop Art julgamos legítimo certo ponto

do pensamento de Clemente Greenberg, historiador tão criticado por alguns de seus

pares por ter ignorado tais produções. Para Greenberg (1986), os neodadaísta

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(como também ficaram conhecidos os artistas da Pop Art), admirando os ready-

mades por sua “beleza estética” teriam apenas inaugurado um novo episódio na

história do gosto, o que podemos crer que, em essência, configura contrassenso ao

que dizem ser o pensamento de Duchamp, já que sua busca teria sido justamente

pela neutralização do gosto.

Ainda no que se refere à herança (influência) de Duchamp na esfera da Arte

Conceitual, o artista Joseph Kosuth teria instituído o “conceito” como resposta ao

gosto e beleza. Tal movimento, a Arte Conceitual, legitima como “questão” no fazer

artístico a “remoção” da qualidade estética da obra. O que faz com que a

“legitimação” da arte migre da esfera do gosto para a do que chamam “nomear”.

Para Kosuth (apud De Duve, 131) mesmo que a arte seja sempre conceito firmado

na explicitação “isso é arte”, ainda assim seria trabalho do artista legitimar tal

posição, pois, apesar de partir de uma definição à priori, não se trata apenas de uma

construção teórica, mas sim de uma afirmação de arte, a ser reafirmada a cada

trabalho. Acerca disto o artista Donald Judd teria dito: “Se alguém chama isto de arte

então é arte”. (apud De DUVE, 1998, p. 132). Na arte dita conceitual tudo passa a

girar em torno da “questão do nome”. Se o artista diz “isso é arte” e os espectadores

concordam, então todos afirmam: é arte. Muitos acreditam que Duchamp com seus

ready-mades tenha sido o pivô dessa tendência, modificando irremediavelmente a

natureza da arte, e que toda obra de arte depois deles seriam “obras conceituais”

(expressão que cunharam para designar uma obra de pensamento). Neste ponto

julgamos importante introduzir questionamento: Em algum momento de sua trajetória

enquanto fazer inerente ao humano, ela, a Arte, deixou de estar vinculada ao

pensamento? Esclarecemos que, quando falamos em pensamento não nos

referimos ao raciocínio, já que este, a nosso ver, pertence a esfera da lógica e não

da arte. Mas acerca da diferença entre pensar e raciocinar discutiremos adiante em

momento oportuno.

Thierry De Duve (1998) propõe que olhemos Kant depois de Duchamp substituindo

o termo/conceito “belo”, por “arte”, pois assim reconheceríamos que se a faculdade

do gosto é a faculdade de julgar o belo, seja na natureza ou na arte e que esta é um

sensus communis, estando presente tanto na mulher quanto no homem, esse

suposto senso comum se transforma na faculdade de julgar a arte por força do

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sentimento comum a todos os homens e mulheres. O ready-made, segundo De

Duve, conduz-nos a esta leitura, mas também apaga toda diferença entre fazer e

julgar arte.

O artista escolhe um objeto e o chama de arte ou, o que se equivale, coloca-o em

um contexto que determine que o objeto seja considerado arte (o que significa que

mesmo de forma solipsista, o artista já o denominou arte). Ao espectador cabe

apenas repetir o julgamento do artista. De Duve nos diz que qualquer um pode fazer

isto; a capacidade e o conhecimento exigidos são nulos; acessíveis ao leigo. Kant

não poderia prever essa perfeita coincidência entre arte e estética. (p.141).

De Duve ainda nos dirá que com os ready-mades avaliar e produzir arte se tornam

ações sintetizadas em um mesmo ato, levando a supor que “gênio” e “gosto”

também se fundem em uma única e mesma “faculdade”. Para o autor, reler Kant

depois de Duchamp, substituindo como proposto o “isto é belo” por “Isto é arte”,

subentende também, que a palavra arte abarca os sentidos de gênio e gosto,

referindo-se tanto à inapresentável ideia estética, quanto à uma indemonstrável ideia

racional. O autor diz ainda acerca de Duchamp, que em sua ironia fina, fruto de uma

privilegiada capacidade de pensar, ao se proclamar antiartista que produz antiarte

apenas antecipou o julgamento que naturalmente receberia em seu tempo, como é

próprio aos desbravadores. O autor nos faz lembrar que toda obra prima da arte

moderna – incluindo Madame Bovary de Flaubert, Flores do Mal de Baudelaire,

Olympia de Manet, bem como Demoiselles d’Avignon de Picasso - foram

inicialmente recebidas com indignação, inúmeras vozes se ergueram no coro: “Isso

não é arte!”, expressão que se traduz da seguinte forma: “isso não merece nem

mesmo um julgamento de gosto”.

No entanto, mesmo diante de todo o empenho em neutralizar o gosto, substituindo o

“isto é belo” por “isto é arte” julgamos importante mencionar que apesar do Belo ter

perdido sua definição original, o gosto, de um modo ou outro, ainda habita o

julgamento “isto é arte”, tendo sofrido apenas um deslocamento ou ajuste aos novos

hábitos. Para tal constatação basta observarmos a preferência, para não

chamarmos “imposição”, de obras ditas “cerebrais” em detrimento das chamadas

retinianas.

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Com relação ao senso comum mencionado anteriormente, é inegável que todos são

capazes de saber o que seja arte, ainda que não concordem entre si sobre o que

exatamente é e o que deixa de ser. Importante talvez frisar desde esse momento

que os ready-mades não são obras, mas sim “antiobras de arte” e que podem (ou

devem) ser pensados como “objetos” anônimos que o gesto gratuito do artista, pelo

fato de escolhê-lo, conduziu ao circuito da arte. A grande ironia reside no fato de que

esse gesto dissolve a noção de obra; nessa contradição reside, para a maioria dos

teóricos, a essência da “poética” de Duchamp, que teria rompido não apenas com a

pintura retiniana, mas também com o uso vulgar da linguagem, aqui entendida como

comunicação.

Para Otávio Paz (2002), o processo criativo de Duchamp teria sido influenciado pela

produção de Raymond Roussel, pelo fascínio exercido pelo jogo com as palavras,

que viria a aparecer tantas vezes em suas obras, jogo este que consistia em

confrontar duas palavras de som semelhantes, mas de sentido diferente,

estabelecendo entre elas uma ponte verbal. Duchamp percebe a linguagem como

uma estrutura em movimento, e o que para Roussel era um método literário, no

artista se transmuta na mais afiada metaironia. Octávio Paz acrescenta ainda que o

que torna ainda mais complexo o método de Duchamp é o fato de não se tratar

apenas de uma combinação verbal, mas também plástica e mental. Se o jogo com

as palavras destrói ou anula os significados, o ready-made, por sua vez, destrói a

ideia de valor. O interesse de Duchamp se revela não apenas ou simplesmente

plástico, mas crítico, filosófico; “o ready-made não postula um valor novo: é um

dardo contra o que chamamos valioso. É crítica ativa: um pontapé contra a obra de

arte sentada em seu pedestal de adjetivos”. (PAZ, 2002, p.23). Paz dirá ainda que

não se trata de antiarte como tantas criações expressionistas, mas de uma obra a-

Rtística, funcionando como ataque a obra de arte institucionalizada, uma crítica

contumaz ao gosto, que o artista considerava (tanto o bom quanto o mau gosto)

nocivo. Acerca do tema o autor nos dirá ainda que, o gosto se recusa ao exame e ao

juízo, oscilando entre moda e instinto, estilo e receita. Seria o gosto:

Uma noção epidérmica de arte, no sentido sensual e no social: um prurido e um signo de distinção. Pelo primeiro reduz a arte à sensação; pelo segundo introduz uma hierarquia social fundada em uma realidade tão misteriosa e arbitrária como a pureza do sangue e a cor da pele”. (PAZ, 2002, p.24).

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Esse processo do gosto, como afirma Octávio Paz, acentua-se em nossos dias, teria

se firmado, segundo o pensamento de Duchamp, desde o Impressionismo, quando a

pintura se converteu em matéria, sensualidade, reduzida a mera contemplação; para

Duchamp toda arte moderna - Impressionismo, Fauvismo, Cubismo em seus

desdobramentos, o Abstracionismo e a Arte Óptica - seria retiniana, fazendo

exceção apenas ao Surrealismo e a casos isolados como Mondrian e Seraut. Para

Octávio Paz o ready-made configura claramente uma crítica à figura do artista e

suas práticas. Duchamp, depois de provar a si mesmo que dominava o ofício, passa

a denunciar os vícios, as superstições desse fazer. Para ele o artista é um homem

da ação, ou deveria ser. Assim, obras não deveriam ser apenas feituras, mas atos.

Para Paz (Idem), Duchamp, apesar da crítica à pintura, à fatura, não pretendeu

dissociar forma e conteúdo, arte para ele seria forma, ou seja, conteúdos, sentidos

corporificados - formas trazem à presença os conteúdos, projeta sentidos. O que o

incomodava era a “insignificância” dos conteúdos das pinturas retinianas, julgava-os

inexistentes, tudo não passando de impressões, sensações etc. O ready-made

surge então como um modo de colocar diante desta insignificância a não-

significação, a neutralidade, provocando questionamentos acerca dos conteúdos.

Para tanto um ready-made precisava ser a-estético. Esse o motivo que justifica o

empenho em eleger um “objeto” que não fosse belo, agradável, repulsivo, tampouco

interessante. Era preciso encontrar algo realmente neutro, que não se enquadrasse

em nenhuma das categorias da estética Kantiana. O próprio Duchamp teria dito:

“Qualquer coisa pode converter-se em algo muito belo se o gesto se repete com

frequência; por isso o número de ready-made é muito limitado” (Apud PAZ, 2002,

p.25). É de extrema relevância perceber como alerta estas palavras do artista acerca

da repetição excessiva provocar uma recaída no gosto e a degradação imediata da

neutralidade. É mesmo uma pena que os “filhos de Duchamp” não tenham estado

atentos a esse importante detalhe ao transformarem ready-made em um “meio”,

como o happening ou a performance por exemplo, algo que deve não apenas

constar, mas ser decorado do “manual” do artista contemporâneo. Duchamp

deslocou um objeto comum, por vezes um utensílio, e o transfigurou em ready-

made, ou seja, retirou do objeto sua significação, sua utilidade, esvaziando-o. Com

esse gesto o objeto deixa de ser objeto, pois já não cumpre nenhuma função

utilitária em relação a um sujeito. Não é objeto, ou mesmo utensílio, já que não

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denota serventia, utilidade. Tampouco é obra, visto não corporificar sentido, haja

visto não possuir conteúdo. Nada vem à presença através dele. Permanece no

limbo, na neutralidade da mera coisa.

Finalizando nossos apontamentos acerca do gesto definitivo de Duchamp,

acompanharemos analogia de Octávio Paz que diz que uma pedra é igual a uma

pedra, enquanto um porta-garrafas é igual a outro, sendo que a semelhança entre os

pares divergem no modo de ser, afinal pedras seguem a ordem da semelhança

involuntária, enquanto porta-garrafas seguem a da manufatura, onde tudo é

deliberado, calculado. A identidade dos porta-garrafas provém de sua utilidade:

acolher garrafas. Já a identidade entre as pedras carece de significado em si, ou

pelo menos assim se posiciona a modernidade diante dos acontecimentos da

natureza. Mas Octávio Paz (2002) citando Roger Caillois, prosseguirá, dizendo que

nem sempre foi assim, e que entre os artistas chineses havia os que escolhiam

pedras por sua aparência fascinante, convertendo-as em obras de arte ao gravar ou

pintar nelas seus nomes. Já os japoneses, que também colecionavam pedras,

elegiam as que não fossem em demasiado estranhas, insólitas, ou mesmo belas,

buscavam sempre pedras arredondadas, comuns. “Buscar pedras diferentes ou

iguais não são atos distintos: ambos afirmam que a natureza é criadora. Escolher

uma pedra entre mil equivale a dar-lhe nome” (PAZ, 2002, p.27). Assim, segundo o

autor, também faz o homem, nomeando a natureza: Mar Vermelho, Pedra Bonita,

Morro Azul. Lugares ou pedras entram na esfera dos significados através do

nomear: seja do homem comum, seja do artista. Duchamp teria feito o inverso:

arrancando do objeto seu significado faz do nome um eco do vazio. O porta-garrafas

sem garrafas. Enquanto o gesto oriental dos chineses e japoneses afirma a

identidade homem/natureza, o de Duchamp, em toda a sua ocidentalidade afirma a

diferença irredutível. O ato oriental é uma elevação, um elogio, o ocidental uma

crítica mordaz.

Para chineses, gregos, maias ou egípcios a natureza era uma totalidade vivente, um

ser criador. Por isso a arte, segundo Aristóteles, é imitação: o poeta imita o gesto

criador da natureza. O chinês leva esta ideia à sua última consequência: escolhe

uma pedra e põe sua assinatura (...) e sua firma é um reconhecimento (PAZ, 2002,

p.27).

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Já Duchamp elege o objeto manufaturado, trabalho não da natureza, mas do

homem, e em gesto que configura menos reconhecimento que desafio, inscreve seu

nome, em um nomear que por sua vez também é menos homenagem que negação.

Com a afirmação da neutralidade do ready-made, instituiu-se definitivamente na

história da produção artística a autocrítica, a crítica aos valores artísticos

institucionalizados e, especialmente, a crítica à obra de arte como mero objeto de

consumo. Por efeitos colaterais ao procedimento, temos a institucionalização da

ação bem como a cobiça e fetichismo aos ready-mades e, ainda, o mais perigoso

deles: a exacerbação da subjetividade artística, levada hoje às últimas

consequências. Percebemos em certos segmentos da arte contemporânea a busca

pelo fim da obra de arte em sua significação. Há uma exacerbada exaltação ao

artista, como aquele que elege o que é e o que deixa de ser arte. Assim, a

significação com todos os bônus e ônus possíveis, foi desviada da obra para o autor,

ou seja, o artista. Se o ex-objeto é anônimo, neutro, não o é quem o escolheu, o

elegeu. A significação, a administração e até possivelmente a reprovação se dirigem

agora ao artista. O ready-made não é obra, é gesto. E embora muitas vezes pareça

o contrário - por conta de atitudes ingênuas ou levianas - não deveria ser gratuito ou

impensado, ou seja, não poderia ser realizado por qualquer um, ou a todo o

momento. Para Octávio Paz (2002) é um gesto que só pode ser realizado por um

artista, e não qualquer artista, apenas Marcel Duchamp. É curioso pensar, como

ressalta o autor, que a crítica e o público de entendidos considerem o gesto

“significativo”, mas que ninguém ao certo saiba o que ele de fato significa. Passaram

todos da adoração do objeto à adoração do gesto, gesto este que a maioria sequer

compreende. O círculo se fecha, Duchamp salta antes, e neste ponto, menos artista

que enxadrista, do fundo do seu não-pronunciamento, proclama: xeque-mate. Firma-

se o postulado contemporâneo: cambia-se autonomia da obra por autonomia do

artista, e este por sua vez, vai progressivamente alargando a distância entre si e

aquilo a que podemos genuinamente chamar arte.

Dos pontos de vista apresentados acerca de Marcel Duchamp, o de Carlos Zílio

(1997) (que acredita na ação do artista como um ato de resistência ao sistema que

busca engolfar a arte) e o de Octávio Paz (que percebe em sua ação algo que

requer atenção e pensamento) são os que mais se aproximam de nossa visão

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acerca deste que se proclamou antiartista. Busquemos agora nós analisar, do ponto

de vista ôntico, como é próprio às análises, seu polêmico gesto.

Anteriormente, destacamos a grande habilidade de Marcel Duchamp como

enxadrista. Trazer tal faceta da personalidade do artista ao pensamento, ainda que

assim não pareça, pode ser relevante. Seria possível pensar que Duchamp, abrindo

mão de sua posição de artista, tenha agido como jogador? Teria ele, em detrimento

a todas as possíveis questões filosóficas que cercam a arte, almejado dar apenas

um xeque-mate no sistema mercantilista que se apropriava da arte? Examinar seu

gesto sob tal aspecto, considerando-o não como artístico, mas sim como uma

“jogada” realizada por contumaz jogador de xadrez, implica também deduzir que ele

tenha antecipadamente previsto, como é próprio a um enxadrista, cada uma entre as

possíveis reações do sistema que já por aquele tempo tendia a controlar, como

ainda hoje o faz, a produção e a distribuição artística (e que engloba: museus,

galerias, crítica especializada etc). Tal possibilidade nos impeliria a - sobretudo com

o distanciamento histórico que nos possibilita conhecermos tão bem as referidas

reações – considerar Duchamp mais mercantilista que o próprio “sistema” ao qual

dizem ter buscado contestar, e ainda mais superficial que a arte retiniana que tanto

condenou, pois teria ele previsto todas as reações possíveis, concluindo que

estaríamos hoje, em relação aos ready-mades, exatamente como estamos, em uma

posição de quase culto, e, ainda assim, teria realizado a “jogada”.

Por outro lado, para encararmos sua ação como algo que partiu de alguém que com

ela pretendia defender pensamento artístico, precisaríamos admitir que tal postura

seria no mínimo contraditória, em especial ao considerarmos tudo que foi dito acima.

Mais que uma contradição às crenças artísticas, seria, talvez, uma incursão pelo que

poderíamos chamar território da tolice, dado o risco da queda em descrédito que o

trabalho e até mesmo a própria arte estariam expostos. Tal ação, partindo de

alguém que se proclamasse artista, poderia ser considerada na conta e no risco de

um “tiro no próprio pé”. Pois uma ação que afirma serem todos artistas (visto que se

torna a partir dela desnecessário todo e qualquer tipo de habilidade especial para se

produzir arte, dado tratar-se o ready-made de objeto qualquer, teoricamente

podendo ser eleito por qualquer pessoa), também afirma que ninguém mais o é. O

que torna aquele que se proclama artista, ou aceita para si este título, um embuste.

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Já se formos pensar tal gesto sob o ponto de vista da ironia questionadora que se

posiciona contra, entre outras coisas, a mercantilização da arte e o esvaziamento do

sentido da obra de arte (grosso modo reduzida à condição de mero objeto

decorativo, da ordem dos quadros adquiridos apenas para combinar com tapetes),

ficaremos menos desconfortáveis, ainda que constatemos uma metaironia, partindo

não da ação de Duchamp em si, mas do dardo contrário disparado pelo sistema, que

transformou, quase que de modo imediato, a crítica corporificada em ready-made

em objeto de consumo, elevando-o não apenas a condição de obra a ser

comercializada, mas a de um quase fetiche, a ponto de se formarem filas em salas

de exposição para “apreciar” a Fonte, mictório comum, que poderia ser encontrado

em qualquer loja especializada em materiais para construção, cuja apreciação não

justifica a ida ao museu ou a galeria, haja vista não haver possibilidade para nenhum

tipo de fruição estética a ser desencadeada ou potencializada diante da antiobra.

Parece-nos que, quem se desloca até um espaço de exposição para “apreciar”,

“fruir”, um mictório ready-made, de fato nada compreendeu do pensamento proposto

por Duchamp ao realizar o polêmico gesto de enviá-lo para a “sacralização” imposta

pelo pedestal da galeria. É... Restou-nos a todos inegavelmente após o gesto de

Duchamp, o amargo sabor da constatação de que não se deve subestimar o

mercado e seus longos tentáculos...

Observando de perto a ação de Duchamp, ainda que a reconhecendo sob o ponto

de vista da crítica e da ironia que problematiza, entre outras coisas, o mercado de

artes, podemos chegar ao entendimento de que, intencionalmente ou não, sua ação

prestou um desserviço à arte. Contudo, analisando um pouco mais, talvez possamos

chegar à conclusão efetiva de que o problema por ele colocado atingiu mais

certeiramente o modo como se fazia “história” da arte, que propriamente a arte. Pois

afinal, o que de fato um ready-made efetivamente desmontou (e a seguir seus

desdobramentos com a Pop Art) foi o molde de narrativa evolutiva e estilística que

se utilizava até então na História da Arte.

De concreto o que temos é que, a arte, para além da antiarte, sobrevive.

Desnecessário dizer que não haveria de ser de outro modo. Olhando minimamente

os registros acerca da arte, perceberemos, de pronto, que ao longo da história de

sua escrita, de tempos em tempos algo como um grande “sacolejo” se dá. Vínhamos

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em uma larga e consolidada estrada de tradição clássica, até que, no início do

século XIX, os modos de “produção” artística foram radicalmente alterados com o

advento da fotografia. O artista encontrou-se irremediavelmente liberto da

“obrigação” social de reproduzir o mundo para registro. No bifurcar-se do caminho,

inaugura-se a modernidade e nela os artistas se entregam à pesquisa da arte pela

arte mesma. Neste contexto, um pouco mais à frente no tempo cronológico, já na

alvorada ensombrecida do século XX, fazendo parte do movimento dadaísta que

decretava publicamente a falência dos ideais morais, éticos e artísticos de uma

sociedade que se proclamava regida pela razão, mas que demonstrou sua

insanidade ao promover a 1ª Guerra Mundial, alardeando todo seu fastio aos

mecanismos que buscavam manipular o fazer artístico, temos, Marcel Duchamp.

Novo “desvio” ou “tropeço” se dá no curso da “história” da arte, quando no caminho

da narrativa linear surge um mictório ready-made. Funda-se assim o começo, do que

seria depois conhecido como “o fim da história da arte”, fadada a atingir o auge da

derrocada com os chamados neo-dadaístas da Pop Art, onde também encontra seu

fim o que até então se convencionou chamar Arte Moderna. Inaugura-se a “pós-

modernidade” com o despontar de uma nova “arte”, que a “história moribunda”

chamaria contemporânea, onde já não se poderiam ditar - ela ou mesmo a crítica -

regras de produções. Teoricamente os artistas teriam assumido as rédeas de seu

fazer. A História da Arte enquanto disciplina, destituída de sua principal e talvez

equivocada função de ditar regras ao futuro a partir de um encadeamento do

passado, se vê obrigada a pensar o presente, mas sem o auxílio da estética - que a

acompanhava desde Hegel e Kant, da qual sempre se serviu - já que com a

mudança de paradigma as ferramentas estilísticas se tornam obsoletas. Perguntam-

se estarrecidos então os historiadores egressos da velha narrativa: De que vale a

estética quando o belo deixa de ser a principal questão da arte? De nada vale. Ao

menos no que se refere ao belo meramente retiniano. Dizem. Na pós-modernidade a

beleza cede lugar ao conceito. O presente desconcerta a história, ao menos a

autorreflexiva, historiográfica. Esta, de bom grado talvez o negasse. Se assim

pudesse.

Depois das “mortes” da arte e da história, de ready-mades e pedras roladas,

finalizando gostaríamos de rememorar artista que, a nosso ver, utiliza de modo

denso e poético a ideia de deslocamento semeada pelos polêmicos e a-estéticos

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ready-mades de Duchamp. Trata-se de um ocidental, que ao contrário de Duchamp,

recebe, pelo sopro do mediterrâneo talvez, brisa poética já circulada por entre

colunas do Paternom: o escultor italiano Giuseppe Penone - artista que julgamos

compreenda de modo ímpar a essência do nomear. Trazemos à luz uma de suas

obras, que carrega no título a força do verbo ser: Essere fiume. A escultura Ser rio,

1981, que, segundo as preciosas palavras de Georges Diddi-Huberman (2009, p

146): se entrega à contemplação como uma escultura que, justamente, desdobra

com todo rigor a diferença entre objeto e ser. Na obra, dispostas lado à lado, sem

que possamos identificar qual é qual, duas pedras: uma, garimpada na montanha,

esculpida ao modo mais tradicional e mimético possível pelo artista, e a outra, o

“modelo” para o trabalho escultórico, colhida logo ao pé da montanha, à beira do rio,

naturalmente esculpida pelas águas e pelo tempo. Deslocar a pedra do rio para a

galeria, ainda que a dispondo ao lado da outra, é quase um ready-made. Mas como

a pedra não é mera manufatura, mas sim a dynamis do próprio rio, e nela há a força

ontogênica da criação, não há como neutralizar seu significado. Mas há como

humildemente, por meio do e no operar da obra, na entelecheia, que retém e move

toda criação artística em sendo e sentido, conduzir o olhar do espectador ao rio, a

um mesmo tempo escultor e escultura, e ao processo artístico, também, a seu modo,

rio, em fluxo contínuo.

Apesar dos rumores a arte vive e segue, ora montanha acima, ora rio abaixo.

1.4 - A escrita post-mortem

Hans Belting e Arthur Danto – A “morte” da História

Como afirmamos anteriormente, é de nosso interesse olhar atentamente, raspar,

escavar corredores que atualmente circundam a arte, sejam históricos, sejam

críticos, buscando realizar em suas paredes uma espécie de arqueologia,

repensando o momento de ruptura onde se firmou para alguns a fissura entre o

plástico e o poético, poiésis e techné, entre homem e história. Questionar o

momento onde se cambiou historicidade por historicismo, rever trajetos, acertos e

equívocos da escrita e da produção em arte, enfim, refletir o momento no qual

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questões plásticas passaram a ser oferecidas sob a forma econômica dos conceitos,

e onde o homem se perdeu de sua essência histórica.

Hans Belting e Arthur Danto cada qual a seu modo e quase simultaneamente, ainda

que, segundo Danto (2006, p.3) ignorando em totalidade o pensamento um do outro,

realizam construção teórica acerca da morte, não da arte em si, mas de sua história.

Ou seja, morte da história da arte enquanto narrativa construída ao longo dos

séculos, encadeada cronologicamente e embasada, na maioria das vezes, em

questões relativas ao estilo. Tanto Danto (2006) quanto Hans Belting (2012)

realizam análise dos modos de se efetuar registros históricos e críticos acerca da

arte desde o seu surgimento no Renascimento com Vasari, até a modernidade em

Clement Greenberg, e questionam a falência de tal sistema diante da arte

contemporânea em sua diversidade.

Hans Belting dá o primeiro passo nessa direção ao publicar, em 1984, a obra Das

Ender der Kunstgeschichte?, posteriormente revista e publicada com tradução no

Brasil como O fim da História da Arte (2012). A primeira publicação de Danto acerca

do tema data também de 1984, um ensaio intitulado “O fim da Arte” publicado no

livro “The Death of Art” que abrigava coletânea de ensaios de vários autores. Mais

tarde surgiram novas publicações do autor acerca do tema e entre elas estão A

transfiguração do lugar comum (2010) e o comentado Após o fim da Arte (2006),

obras nas quais nos basearemos para os apontamentos a serem realizados ainda

no presente capítulo, por sua alardeada relevância dada à importância de seus

autores no atual cenário científico da arte. Contudo, nossa intenção não excede o

ato de mapear o que ambos pensaram acerca do fim da história da arte. A

realização de tal mapeamento se dá por julgarmos que tema tão amplamente

discutido em nosso tempo não possa ser ignorado. Após esse mapeamento nos

posicionaremos acerca da relevância ou não no contexto específico de nossos

estudos em relação ao encaminhamento que pretendemos realizar com base em

questões poético-ontológicas.

Hans Belting (2012), até onde podemos compreender, demonstra preocupação

relativa à necessidade do estabelecimento de uma história das imagens em

detrimento a uma história da arte, que a seu ver deve ser realizada de modo

abrangente, onde nada relativo à produção imagética humana seja excluído. Em sua

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primeira publicação acerca do tema, ao contrário do que se possa pensar a partir do

que o título da obra sugeria, não se refere ao fim da história da arte como disciplina

científica da arte, da qual, aliás, faz parte na condição de historiador. O que tenta

apontar é a iminência do fim de uma história da arte calcada em sistema estilístico

autônomo, sistema esse que se mostra senhor das próprias leis e regras a produzir

uma “história” que segue até o fim da era moderna desconectada, desgarrada da

condição de um olhar que de fato se dirigisse ao homem e ao sentido de suas ações

artísticas para sua história.

Essa História da Arte, ordenada como uma grande narrativa e calcada em

enquadramento eurocêntrico, de acordo com Belting, teria caminhado com suas

próprias pernas para o fim. Pois teria ficado evidente, com a chegada do que

conhecemos como pós-modernidade, que, o excessivo apego científico à ordem,

construído e alimentado desde seu surgimento na renascença italiana, acabou por

revelar total despreparo diante da arte caótica do século XX. A incapacidade em

abarcar as vanguardas artísticas expôs de modo contundente que o pretenso

universalismo proposto configurava um equívoco por parte do modo ocidental de se

pensar arte e história.

Tivemos oportunidade de constatar ao longo do tempo que, os anúncios de mortes

da arte não determinaram seu fim. Do mesmo modo sabemos que o anúncio do fim

da história não a finalizou, apenas dirigiu nosso olhar e pensamento nesta direção, e

nos fez observar melhor suas estruturas. Nas palavras de Hans Belting (2012, p.12),

basta haver pequeno número de historiadores da arte para que haja a garantia de

que o tema que rege suas profissões não tenha fim. Para tratar do tema e sinalizar o

problema que regeu o fim da história, o autor aponta em direção que julgamos

importante ao afirmar que no conceito de história da arte “está presente tanto o

significado de uma imagem como a compreensão de seu enquadramento: o

acontecimento artístico, como imagem, no enquadramento apresentado pela história

escrita da arte”. Sob esta ótica, somente através deste enquadramento histórico uma

imagem estaria apta a ser considerada arte. O que estivesse fora deste

enquadramento estaria também fora do “sistema” e não seria aceito pela História,

tampouco pelo museu, onde obviamente só se expunha o que já estivesse inserido e

legitimado pela História da Arte.

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Durante muito tempo a arte teria se adequado, ajustando-se ao enquadramento da

história da arte. Ou melhor, arte e história teriam por um longo tempo se adequado

mutuamente. Havia jogo cujas regras eram amplamente difundidas e conhecidas por

todos. Hoje o que presenciamos é menos morte que perda desse enquadramento.

Tal perda tem como consequência a dissolução da imagem – já que não se pode

mais delimitá-la a partir da história. Falar do fim da História da Arte sob esta

perspectiva seria, segundo o pensamento de Belting, falar do fim deste jogo de

enquadramento, ou melhor, do fim de determinadas regras que o regiam.

Obviamente o “jogo” chamado “história da arte” segue, mas de outro modo.

Ao falar de fim, Hans Belting não quer dizer que tudo acabou, mas apenas exortar a

necessidade de uma mudança no discurso gerada pela perda desse

enquadramento, visto que o “objeto” artístico expandindo seu campo se tornou

inapreensível ao enquadramento estilístico. O historiador, de modo lúcido, entende

que o fim da “história dos enquadramentos”, que coincide com o fim do breve e

acelerado ciclo da modernidade, nada mais representa do que “o fim de um episódio

no turno tranquilo de um percurso histórico mais longo”. O modelo de

enquadramento que até então regia a narrativa era o de Wölfflin (2000) e o de

Panofsky (1991), reconhecidamente grandes mestres da história. Tais modelos,

válidos por toda modernidade, mostraram-se ineficazes na pós-modernidade, visto

que se passou a produzir outro tipo de arte.

A metodologia desenvolvida e aplicada por Wölfflin teria conduzido à redução das

obras às formas e aos estilos. Tal posição, por seu radicalismo, teria estimulado

posturas diametralmente opostas. Um exemplo de reação a esta postura seria a

iconologia de Panofsky - “modalidade” de história reconhecida como a mais bem-

sucedida do século XX. Contudo, os métodos de Panofsky tanto quanto os de

Wölfflin mostraram-se insuficientes diante da tarefa de manter o fluxo da história da

arte em seus enquadramentos frente às vanguardas artísticas do séc. XX.

O formalismo de Wölfflin se torna insuficiente por questões óbvias, ou seja, métodos

formais são inaplicáveis em obras informes14. Já a iconologia de Panofsky, por

interrogar em demasia o conteúdo das obras, distanciou-se da história da arte como

14

O informe, pensado por Rousalind Krauss é uma expressão relativa ao anti-formal, em outras palavras, uma nova possibilidade para o esgotamento da forma.

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esta era costumeiramente entendida, aproximando-se mais de uma “história da arte

como história das ideias”. E por ter que consultar todas as fontes de imagens

possíveis, inclusive as que se encontravam fora do espectro da arte, teria, segundo

Hans Belting (2012), abandonando o espectro da disciplina.

Aos que queriam resguardar, do ponto de vista metodológico, a História da Arte,

sem, ao mesmo tempo, restringi-la a um diminuto território, a relação entre arte pura

e tradição imagética em sentido amplo sempre configurou problema. Tais

dificuldades apontam, ainda segundo o historiador, outra maior: a de realizar uma

história da arte “pura” no meio do mundo histórico e suas inúmeras possibilidades

imagéticas. Belting (1994) propõem - com sua obra intitulada “Imagem e Culto”, uma

história da imagem antes da era da arte (a referida obra reconstitui a história das

imagens devotas do Ocidente cristão desde o final do império romano até cerca de

1400 d.C.)15 - pensamento sobre a existência da arte para além daquilo a que vai

chamar “conceito de arte”. Defende a urgência de se pensar a necessidade de uma

história da imagem, já que, a História da Arte, como uma história dos estilos, não

consegue abarcar toda ordem de acontecimentos que moldam a produção imagética

humana. Ou seja, defende que, algumas imagens possuem um conjunto de

significados bem diverso dos que hoje nos valemos para nos aproximarmos delas, e

que talvez, considerar seu valor de uso, bem como sua função no contexto em que

foram produzidas (considerando inclusive as crenças, as esperanças e os medos

que motivaram tais produções), possa ampliar o modo como seus significados a nós

se revelam.

Assim, percebemos que a preocupação de Belting acerca do fim da História, bem

como com a arte produzida desde o anúncio deste “fim da história”, tem relação

intrínseca com a ideia de arte produzida antes de seu início, ou seja, antes de o

conceito de arte ter se estabelecido através da História Arte enquanto disciplina.

Sinaliza a necessidade de a história da arte se adaptar, para a própria

sobrevivência, ampliando os horizontes para além dos conceitos de arte até então

instituídos, compreendendo a dimensão de que seu tamanho enquanto percurso de

disciplina, não excede a condição de breve segmento da história humana e sua

relação com as imagens.

15

Likeness and Presence: A History of image before The Era of Art (1994)

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Em outro texto acerca do mesmo tema, o fim da história da arte, que constitui uma

revisão do primeiro, realizada dez anos depois, Belting (2006) permanece no quadro

dos argumentos anteriores, mas não coloca mais a ciência da arte no centro,

tratando agora de novas experiências e novos temas, como “Oriente e Ocidente, o

museu atual e as mídias”, onde suas considerações partem do diálogo que mantém

consigo mesmo como historiador. Seu tema inicial é a arte ocidental, depois que os

Estados Unidos tomaram à frente no cenário artístico no pós-guerra, e sua a atitude

cada vez mais distante em relação à Europa. Os problemas da História da Arte

como disciplina europeia crescem.

A Europa, contudo, por meio da temática recém-surgida sobre Oriente e Ocidente – para a qual ainda não existe uma resposta da história da arte -, repentinamente está mais uma vez referida a si mesma, depois que pareceu ter escapado a essa divisão na “parceria do Ocidente”. A arte universal emerge finalmente como a quimera de uma cultura global pela qual a história da arte é desafiada como um produto da cultura europeia. Em contrapartida, as minorias reclamam sua participação numa história da arte de identidade coletiva em que não se veem representadas.(BELTING: 2012, p.18).

Com relação aos novos modos e meios de se produzir arte a partir do meado do

século XX, Belting (2012) pontua que a arte multimídia, seja ela vídeo ou instalação,

propõem questões inteiramente novas, por conta de suas estruturas tanto material,

quanto temporal, estruturas estas que não se encaixam mais no discurso habitual da

história da arte. Belting (Idem) nos dirá também que a arte individual que tinha seu

espaço, seu lugar sólido na consciência do público, aparentemente é substituída

pela fugacidade dos espetáculos e pela condição efêmera das obras. Videotapes

depois de exibidos quase sempre tendem a desaparecer, assim como as instalações

depois de desmontadas. “Desse modo, a duração que existia na presença da arte é

substituída por impressões que se ajustam ao caráter fugaz da percepção atual”.

(Idem ,p.31). A individualidade teria irrompido na modernidade juntamente com a

crise da cultura burguesa. Já faz algum tempo que a discussão foi deslocada da

questão colocada pela vanguarda antiburguesa acerca da cultura dominante, visto

que a cultura dominante burguesa deu lugar à cultura de massas, onde teoricamente

todos podem fazer suas escolhas, estabelecendo-se então, a crise da

individualidade. Por esse tempo os filósofos já teriam declarado “o homem como

supérfluo e ultrapassado” (Idem, p.29). Neste ponto Belting faz uma colocação com

a qual imaginamos esteja se referindo à Pop Art:

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(...) e os novos produtos artísticos, numa relação complexa e obscura com o mundo do consumo e da publicidade mais banal, são apregoados com o bordão “pós-humano”, no qual se esconde o mais terrível e, espero, equivocado slogan de epílogo da nossa época.” (Idem).

Com esta colocação começamos a perceber, que, apesar da convergência no tema

tratado, há uma certa divergência de pensamento entre Hans Belting e Danto,

especialmente quanto ao modo como veem a Pop Art, ainda que ambos a

mencionem como marco.

Arthur Danto (2010), parte justamente das obras dos artistas da Pop Art, também

conhecidos como neo-dadaístas, sobretudo da Caixa de Sabão Brillo de Andy

Warhol, para estabecer sua teoria acerca dos objetos indiscerníveis e da

impossibilidade (diante, ou melhor, a partir deles) de continuidade da História da Arte

como a grande narrativa até então conhecida. A História da Arte, que teria sido, em

seus primórdios, uma história da arte aplicada, e que ao longo dos séculos teria

“evoluído” para a história dos estilos, teria chegado ao seu “acabamento” diante das

desconcertantes obras da Pop. Como enquadrar, segundo as regras do estilo, uma

obra que consiste em ser uma caixa de sabão, só diferindo das encontradas no

supermercado pelo fato de ser réplica produzida pelo artista?

Warhol cria um grande problema para a narrativa linear que sequer havia digerido

totalmente os ready-mades de Duchamp. Brillo Box não se enquadra nem no

conceito corrente de obra, e nem no de ready-made, já que não se trata de uma

apropriação por parte do artista de um objeto industrializado. Warhol não se

apropriou, ele construiu a Brillo. Sua caixa, idêntica às outras que poderiam ser

encontradas no supermercado, só diferia destas por ser uma obra autoral, produzida

em madeira e depois serigrafada de acordo com a original. O que pretendeu Warhol

com tal obra? Estreitar a lacuna entre a arte e a realidade, como a história, até então

produzida, as compreendiam?

Danto nos diz que a partir das discussões colocadas pelas obras da Pop “não seria

mais possível compreender a diferença entre arte e realidade em termos puramente

visuais, ou ensinar o sentido da ‘obra de arte’ mediante exemplos”. (DANTO, 2006,

p.138). Irá ainda afirmar que, em seu juízo, teria sido graças a Pop que a arte teria

mostrado a questão propriamente filosófica sobre si mesma, que, segundo suas

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palavras: “consistia no seguinte: o que faz a diferença entre uma obra de arte e algo

que não o é se, na verdade, ambos se parecem exatamente?” (Idem).

Em “Após o fim da Arte” Danto firma sua posição acerca dos limites da arte e de sua

história enquanto saber humano em nossos dias. A ideia para pensar a arte após

seu fim teria nascido a partir da leitura da obra The Image before the Era of Art [A

imagem antes da era da arte], de Hans Belting. Danto esclarece não se tratar

apenas do fato daquelas imagens a que Belting se refere, não serem arte, mas que

a grande sacada se referia ao fato de terem existido antes que o conceito de arte

existisse. Ou seja, ser ou não arte não fazia parte do que moveu tais produções.

Aquelas imagens, como já mencionado, exerciam na vida das pessoas um sentido

bem diverso da relação que passariam a ter com as obras depois que o conceito de

arte se firmasse. Não eram pensadas como arte nem mesmo no sentido mais

primeiro, ou seja, aquele que diz de algo produzido por artistas. Não havia um

conceito de artista associado àquelas imagens devotas como havia nas que seriam

produzidas a partir da Renascença, quando sabemos ter surgido a ideia de artista tal

qual a conhecemos hoje. Danto (2006) cria que, sendo concebível haver arte, antes

da era da arte (já que obviamente a arte não iniciou em 1400), também é plausível a

ideia de outra descontinuidade, a saber: entre a arte produzida durante a era da arte

e a arte produzida após o fim dessa mesma era.

Para Danto, na época em que tais ideias surgiram, talvez nem ele ou mesmo

Belting, tivessem ainda clareza acerca do que naquele momento, tentavam dizer.

Tais pensamentos talvez só tenham se desdobrado em convicções delineadas mais

adiante. Ele defendeu ser possível considerar estarmos emergindo da era da arte

para algo diferente que ainda precisa ser compreendido. Em que o complexo de

práticas teóricas já inaplicáveis na arte desde a segunda metade do século XX cede

lugar a outras, de formato ainda não delineado. Danto afirmou, que, como Hans

Belting, não falava em morte da arte, ainda que seu ensaio tivesse sido publicado e

fosse (segundo suas palavras) o mais importante do volume, cujo título era The

Deatch of Art [A morte da arte]. Ele esclarece que o título não foi de sua autoria, e

que apenas escreveu sobre uma narrativa que havia cumprido o seu ciclo na história

da arte. Tal narrativa é que teria chegado ao fim. Suas palavras a esse respeito

foram:

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Não era meu ponto de vista de que não haveria mais arte, o que certamente significa “morte”, mas o de que, qualquer que fosse a arte que se seguisse, ela seria feita sem o benefício da narrativa legitimadora, na qual fosse vista como a próxima etapa apropriada da história. O que havia chegado a um fim era a narrativa, e não o tema da narrativa. (DANTO, 2006, p.5)

Acompanhando o breve esboço acerca da narrativa-mestra da história da arte no

Ocidente realizado por Danto (2006), destacamos aqui uma de suas afirmações.

Trata-se de sua posição acerca de a narrativa histórica da arte possuir três “eras”

distintas: uma da imitação, seguida por uma de ideologia que, teria, por fim, dado

lugar à nossa: a era pós-histórica. Segundo suas palavras, nessa etapa pós-histórica

tudo que houve antes continua a valer, só que de outro modo. A cada um desses

períodos teria se seguido uma estruturação diferenciada na respectiva crítica.

A crítica de arte, no período tradicional ou mimético, esteve fundada na verdade visual. A estrutura da crítica de arte da era da ideologia é aquela da qual estou buscando me desvencilhar: ela caracteristicamente se funda em sua própria ideia filosófica do que é arte, numa distinção excludente entre a arte aceita (a verdadeira) e todo o resto que não é verdadeiramente arte. O período pós-histórico é marcado por uma separação de caminhos entre a filosofia e a arte, o que significa que a crítica de arte no período pós-histórico tem de ser, como a própria arte, tão pluralista quanto pós-histórica. (Idem, 2006, p.52)

No primeiro episódio, ou periodização estaria Vasari e sua interpretação da arte

como representacional. Vasari a teria visto ficando melhor com o passar do tempo,

na “conquista da aparência visual”. Com o advento do cinema teria se encerrado a

pintura como narrativa. Visto ter o cinema se mostrado muito mais eficaz em retratar

a realidade. No episódio seguinte da grande narrativa histórica estaria Greenberg, lá

onde a modernidade se perguntava sobre o que deveria fazer diante do cinema e do

fim da pintura. Greenberg define uma nova narrativa, descobrindo nas condições

materiais do meio um modo de ascensão às condições de identificação da arte, ou

seja, a arte pela arte mesma, a pintura pela pintura, o que podemos constatar em

todo o trabalho que realizou acerca do expressionismo abstrato. Tal narrativa por ele

estabelecida, densa e profunda, vai ruir com a Pop Art, sobre a qual jamais

conseguiu escrever, a não ser menosprezando-a. A partir da Pop começam a surgir

os slogans “tudo é obra de arte” e ainda “todo mundo é artista”, tendo o artista Beuys

defendido tal slogan. Acaba a história da busca por parte da arte de uma identidade

filosófica. Os artistas estavam livres para fazerem o que bem desejassem.

Inaugurava-se a era pós-histórica.

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Danto (2006) faz analogia entre esse “sistema” ou periodização tripartida e a

narrativa política de Hegel, segundo a qual, no início apenas um era livre, depois

alguns se tornaram livres, até que finalmente, em sua própria era, todos eram livres.

Segundo seu pensamento, no início da narrativa-mestra só a mímese era arte,

depois diversas coisas se tornaram arte, mas cada qual tentava extinguir as demais

que julgavam adversárias, até que, finalmente, tornou-se evidente a não existência

de condicionamentos estilísticos ou filosóficos, e assim todos teriam se tornado

“livres”, não havendo mais uma forma especial que determinasse como haveria de

ser uma obra de arte. Esse seria o presente, onde ocorreu o fim da narrativa mestra,

ou seja, o fim da história que moldava as produções.

Para Danto (2006), hoje a arte é produzida em um mundo sem essas narrativas para

controlá-la, ainda que considere que permaneça na consciência artística o

conhecimento de tais narrativas, só que agora seguidas da consciência de sua

inaplicabilidade. Para Danto (2006, p.53) esse seria o diferencial entre os artistas de

nosso tempo e os de outrora, que, de maneira um tanto sentimental teriam emergido

como especialistas, lá onde ocorreu a divisão do trabalho, “que permitiu a indivíduos

particularmente dotados assumirem as responsabilidades estéticas da sociedade:

dançando em casamentos, cantando em funerais ou decorando os ambientes em

que os membros da tribo comungavam com espíritos”.

Danto (2010, p.295), ao falar de história, diz que um período “só é um período

histórico na perspectiva do historiador, que o vê de fora, pois, para os que viveram

nessa época, tudo era simplesmente a maneira normal de levar a vida.” Defende o

aparecimento da essência trans-histórica da/na arte, buscando identificar e mapear

na própria arte o ponto onde teria atingido, ao emancipar-se da história, o estágio a

que chama “autoconsciência”. Realiza então uma investigação mais historiográfica,

para ao final propor sua alardeada teoria: a ideia da arte após seu fim. Em verdade,

como mencionado, não re-anuncia a morte da arte como muitos pensaram a

princípio que faria, sua tese, como a de Hans Belting, propõe sim, o fim da história

da arte, ou seja, o fim da grande narrativa evolutiva da arte, afirmando que a

produção de arte contemporânea inaugura a essência trans-histórica, invalidando tal

narrativa ao não se encaixar nela. Ou seja, após seu fim, a arte segue e a história é

quem finda por inadequação. A morte dessa grande narrativa da arte, a saber, da

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história da arte, teria se dado no momento em que esta não foi capaz de acomodar a

Pop Art. Para Danto (2010), Clement Greenberg, mesmo com todo o seu

brilhantismo já demonstrado como intérprete da arte moderna, especialmente no que

se refere ao expressionismo abstrato, não teria compreendido a Pop Art ao

desconsiderá-la, julgando-a somente uma “novidade”. Com o passar do tempo a Pop

demonstrou não ser apenas novidade passageira, continuando a problematizar,

requisitando para si “explicação”. Greenberg não teve como encaixá-la em sua

narrativa, nem ele nem ninguém mais. Assim a narrativa tornou-se obsoleta: diante

da nova proposta artística e seus objetos indiscerníveis. Danto toma a Pop por seu

paradigma e, em seu julgamento, a compreensão de nossa época passa

necessariamente por ela. É neste ponto que seu pensamento difere de tantos outros

que julgam que tal compreensão passa necessariamente por Duchamp. Em

entrevista concedida por ele a Virgínia Aita16, procurando sempre negar postura

conservadora, defendeu que devemos estar sempre abertos à arte de nossa época,

pois, ao olharmos cuidadosamente para ela, estaríamos possibilitados a

compreender melhor a nós mesmos e ao nosso tempo.

Refletindo acerca do que foi exposto ao longo deste capítulo, consideramos

importante ressaltar Hans Belting e seus questionamentos que propõem pensarmos

a arte para além do “conceito de arte”, que se construiu a partir do Renascimento, ao

pontuar que o conceito de arte que ali se inicia não invalida toda produção imagética

do homem que antecede o século XIII. Julgamos seja esse pensamento de grande

relevância, pois se dirige ao óbvio muitas vezes ignorado pela ciência da arte, ou

seja, o fato de que para aquém e além dos conceitos, a Arte remonta a infância da

humanidade, e a acompanhará por toda sua trajetória compondo o seu mundificar, já

que inerente à humanidade do homem.

O fato de Belting (1994) ter proposto uma história das imagens que abarcasse todas

as que existiram antes do conceito de arte instituído na Renascença, e ao dizer da

necessidade de utilizarmos outros critérios que envolvam inclusive o “para quê”

foram produzidas, desvinculadas do universo estético, remete-nos a importante

colocação acerca da arte, da estética e da beleza, feita por Emmanuel Carneiro

Leão (2010) em A luz na arte Grega, em que nos conduz a pensar as implicações 16

IN: FÓRUM PERMANENTE VOL.1, Nº 1 2012 Disponível em: http://forumpermanente.org/revista/edição-0/entrevista/arthur-danto.

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entre beleza, arte e estética à luz do que era beleza no berço da arte Ocidental, ou

seja, na Grécia. O pensador esclarece que “estética é coisa de moderno”, tendo data

certa e certidão de nascimento, supondo correlação e experiência entre o sujeito e o

objeto. Em seu ensaio reafirma a experiência estética e seu reinado ter se

estabelecido a partir do Renascimento, tendo se imposto aos poucos por toda parte.

Assim a estética teria iniciado sua caminhada até que, beleza e arte, na

modernidade, convergiram para identificação, culminando com a transformação da

arte em fenômeno, tornando-se beleza – surgindo assim as Belas Artes. Isso teria se

dado na medida em que cresceu e se propagou a identidade entre arte e beleza,

entendida pelos modernos em sentido bem diverso da experiência dos gregos,

quando se tratava de uma experiência originária, que se perdeu no ocidente no

correr dos séculos. Carneiro Leão (2010) nos diz ainda que, para os modernos, o

Belo surge da produção, a partir das vivências, das sensações e dos sentimentos,

ou seja o Belo, remete a determinado tipo de emoção gerada de um fazer. O Belo é

deslocado do nível do ser para o âmbito do fazer. O que antes, entre os gregos teria

sido secundário, torna-se o principal. E o que constituía de fato o principal, o ser,

abandona o fazer.

Tal pensamento nos conduz ao entendimento de grande parte da errância

contemporânea. Entre os gregos não havia a intenção de se produzir algo para que

fosse arte, não ao menos ao modo como entendemos arte nos últimos séculos. “Na

Grécia, o maravilhoso não é o extraordinário, mas o ordinário. O que provoca

espanto e admiração é deixar o ser ecoar e bruxulear no e através do fazer” (LEÃO:

2010, p.80). Por isso, na Grécia, o grande desafio é e não é ser obra de arte, pois

tudo já o é. Já na Idade Moderna, ser e fazer foram invertidos de tal modo que

culminou com o estágio doentio deste fazer, que desponta no fazer de Duchamp,

atravessa a Pop Art e se abre em desdobramentos em nossos dias, em que, desde

os ready-mades, o desafio de ser arte é não ser obra de arte. Erigiu-se o reinado do

mero fazer e nele, o artista, senhor de sua subjetividade e legitimador da obra,

perde-se da essência do agir.

Entre os gregos não havia a tensão referente a legitimar algo como obra de arte,

pois tudo já o era. Tampouco havia a pressão paradigmática de que algo só seria

arte se não fosse útil. As esculturas eram produzidas para os templos, para o culto,

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e os vasos para o vinho e para a água, a arte era bela e boa. Emmanuel Carneiro

Leão (2010) nos diz ainda do quanto seria inconcebível para um grego a redução da

arte ao fazer e da beleza à vivência estética, ou seja, às relações de sensações e

sentimentos, e que para os gregos “ser belo e bom não designavam conotações

emocionais da sensação e do sentimento. Remetiam às conotações ontológicas de

ser e realizar-se”. Belo e bom diriam sempre do real por e ao realizar-se.

Com relação ao pensamento que se dirige ao fim da grande narrativa mestra da

história da arte, por pura impossibilidade de continuidade, que consideram obsoleta

diante das obras produzidas na pós-modernidade, apontado tanto por Belting quanto

por Danto, acreditamos que, ainda que sob o ponto de vista dos conceitos, ambos os

autores fazem considerações relevantes ao estudo da arte. Mas, sobretudo no que

se refere às colocações de Danto (2006; 2010) precisamos proceder com cautela,

pois ainda que seu pensamento pareça inicialmente irretocável, ao olharmos atentos

às questões da Linguagem a serem desenvolvidas adiante, perceberemos que na

verdade as cartas são diferentes, mas o jogo não mudou muito. Percebemos certa

predisposição em substituir o modelo antes regido por leituras formais (que giravam

em torno de uma ideia filosófica própria, a saber, da arte pela arte mesma, que

decidia e valorava as produções entre o que era e o que não era digno de ser arte),

por outro modelo de leitura, ligado a certo historicismo, posicionamento que tende a

nos deixar confusos em relação a sua tese, defendida com tanto empenho, acerca

do fim da história da arte e da postura trans-histórica apontada na arte

contemporânea.

Tal posicionamento historicista se deixa entrever por mais de uma vez em trechos de

The Art World [O mundo da arte], por Danto (2006) mesmo. Segundo palavras dele,

sua preocupação e interesse no momento em que escrevia o ensaio, giravam em

torno de obras que, por parecerem tanto com objetos comuns, furtavam à percepção

a tarefa de distingui-las dos objetos as quais eram idênticas. Obras as quais viria

nomear em A transfiguração do lugar comum (2010), como “Objetos indiscerníveis”.

Danto teria afirmado desde O mundo da Arte que “ver algo como arte requer algo

que o olho não pode desvalorizar – uma atmosfera de teoria artística, um

conhecimento da história da arte: um mundo da arte”. (2010, p.183). Afirmando

ainda acerca de tais obras:

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(...) que ninguém que não estivesse familiarizado com a história ou com a teoria artística poderia vê-las como arte e, portanto era a história e a teoria do objeto, mais do que qualquer coisa palpavelmente visível, que se deveria invocar para vê-las como arte”. (DANTO, 2010, p.184)

Em Após o fim da Arte (2006), Danto volta atrás e, buscando reformular seu

posicionamento, afirma pensar que, o que gostaria de ter dito de fato era que “o

conhecimento de a quais outras obras a obra dada se conforma, o conhecimento de

quais outras obras tornam uma determinada obra possível”. Tal colocação talvez até

minimize, ainda que não anule, o posicionamento historicista que se deixa entrever

na citação anterior, todavia, gera outro desconforto, pois, do modo como realiza a

colocação, induz pensarmos que uma obra só poderia se abrir a fruição, ou seja,

acontecer como obra, diante dos conhecimentos prévios de seu observador, que

para ser capaz de compreender uma obra da Pop Art, teria que conhecer todos os

séculos precedentes da história da arte em seus encadeamentos e desdobramentos

que conduziram à produções dessas obras indiscerníveis frente a objetos comuns.

Tal pensamento talvez não seja de todo equivocado ao pensarmos diversas das

obras contemporâneas. Mas ao contrário do que defende Danto, tal postura exigida

do observador não justifica ou legitima essas obras, mas, a nosso ver, apenas

sinaliza o caminho equivocado que os artistas tomaram após Duchamp, produzindo

obras que não se sustentam distantes de seus memoriais descritivos.

Buscando aprofundar o pensamento desenvolvido acerca desses objetos

indiscerníveis, Danto (2006) revê seu posicionamento, propondo-se repensar tais

objetos artísticos tão parecidos com objetos comuns (como no caso da Brillo), ou

quase idênticos entre si (no caso das pinturas monocromáticas). Volta então, seu

olhar na direção da pintura monocromática, tarefa a qual não havia se dedicado em

A transfiguração do lugar comum (2010). Entre as obras monocromáticas elege

trazer ao pensamento famosos quadrados: Quadrado Preto e Quadrado Vermelho,

ambos do suprematista Malevich e outro, bem mais recente, o Vermelho Chinês da

artista minimalista Marcia Hafif (que também, como os outros dois, consiste em

pintura de um quadrado sobre a superfície de um compensado, que, segundo a

própria artista, seria “uma pintura entre centenas da mesma artista, e uma entre

milhares de centenas de artistas” (apud DANTO, 2010, p.186).

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Em nosso entendimento, é exatamente ao discutir o Vermelho Chinês, que Danto

demonstra efetivamente ainda estar vinculado às análises historicistas. Na página

187 de Após o fim da arte (2006) realiza uma espécie de leitura descritiva da obra

em questão, fornecendo detalhes acerca de sua feitura. Esclarece ter sido pintado

ao modo de uma cadeira, de um modo quase industrial, e que este fato seria

artisticamente importante, por não ser pincelado como outro monocromo seria,

sendo mais limpo, mais cuidado. E que apesar de ser uma pintura sobre

compensado de madeira, não era em têmpera, como era costume se fazer na

renascença, onde teria sido comum a realização de pinturas sobre esta superfície.

Vermelho Chinês foi pintado em esmalte vermelho disponível comercialmente e o

próprio título teria uma nomenclatura utilizada por decoradores, que costumam

denominar cores pela impressão que estas provocam. Danto então questiona: Para

quantas outras pinturas, de outros quadrados vermelhos, até mesmo iguais, essas

informações seriam verídicas? A partir desta indagação que nos parece ser sua

“grande questão” acrescenta que: “O olho não dirá a não ser que ‘a mente invada e

indague’”. Diante desta afirmação, que se segue a uma descrição dos detalhes

técnicos do modo de execução de uma obra, não escondemos nossa perplexidade...

Danto conclui seu pensamento, afirmando que as informações listadas acima,

sobretudo a de que a tinta usada é um esmalte comercial, a seu ver, tão

“necessárias” à apreciação, e à estética da obra, são completamente históricas, e

que, quando crítica, estética e história estão unificadas, uma vez mais as hipóteses

da matriz de estilo desmoronam, já que sob a égide de tal matriz, todos os

quadrados vermelhos seriam iguais. (Imaginem se a concretude de uma parede

dependesse da informação quanto a ter sido pintada com tinta acrílica ou látex!).

Danto, firmando sua crítica à matriz do estilo, em passagem que em nosso

entendimento parece ambígua, menciona mecanismos da história historiográfica, a

mesma que defende ter findado, e na qual julgamos, que, o historicismo, não apenas

se encaixava, como ajudava a compor, da qual a própria matriz do estilo obviamente

fez parte. No trecho destacado abaixo não nos ficou de todo claro, dado o que foi

dito antes, se ele combate ou defende “postura historicista” na leitura das obras:

Sob os auspícios da matriz do estilo, todos os quadrados vermelhos são semelhantes. E somente tornarão explícitas suas diferenças estéticas mediante historicismo.(DANTO, 2006,p.188).

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Estaria mesmo Danto, enquanto defende o não-modelo para a produção de arte,

paradoxalmente o defendendo, ainda que de modo indireto, para a leitura das

obras? Em relação ao historicismo, não há, de nossa parte, nenhuma postura

contundente em relação ao fato de Danto julgá-lo essencial ou não ao pensamento

que se dirija às artes. Contudo, julgamos relevante pontuar algumas questões.

Obviamente cremos que não há (e não nos referimos apenas à arte, mas ao que

quer que seja) sem história. Contudo, também julgamos de extrema importância

questionar o historicismo.

Consideramos a importância do historicismo que, em nosso entendimento, pode ser

compreendido, entre os modos e possibilidades que abarca, como uma metodologia

que desvenda o conhecimento histórico. Contudo, acreditamos que, ao nos

referirmos às produções artísticas, às obras de arte, devemos nos ater não ao

historicismo que as circundam, mas àquilo que as movem, a saber: a historicidade.

Sabemos que o historicismo pode ser entendido como filosofia da história, teoria da

história, e também, e nesse caso mais próximo da arte e bem provavelmente ao que

Danto se refere, da cultura histórica. Mas tais facetas, embora conduzam a certa

proximidade da obra, permitindo tangenciá-la, tratam sempre de questões externas

às obras. Por isso, ao invés do trabalho historicista, defendemos que o trabalho do

critico e do historiador seja pela historicidade.

Trabalhar a historicidade das obras implica observar processos (não os que se

referem aos meios de e para a feitura), mas sim de construção dos sentidos. A

historicidade desconstrói ilusões referentes à clareza e certeza às quais os métodos

científicos, incluindo o historicismo, conduzem. Pensar a historicidade é cambiar

clareza por luminosidade, que não se opõem à escuridão, mas a acolhe; e certeza

por verdade. Verdade a ser compreendida em seu sentido grego de desvelamento e

velamento, de algo que por vezes não se deixa avistar em totalidade, por só

parcialmente se doar ao ver. Obras de arte não são conjuntos de dados objetivos

aos quais precisamos incluir uma camada histórica. Trata-se de algo concreto, cuja

materialidade, e tecido, constitui-se de sentidos corporificados. É o próprio dar-se da

história. Mas acerca de arte e história discutiremos adiante.

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Sabemos que uma obra está sujeita à interpretação e confrontação de diferentes

formas de interpretação. O abrir-se a inúmeras possibilidades de interpretações

mesmo com o correr dos séculos e o passar dos observadores, e poder sustentá-

las, faz parte do seu modo de ser no tempo, sendo este um dos aspectos que faz

com que a obra seja obra de arte. Obra de arte é o desdobrar-se da verdade se

materializando em sentido, é convite a interpretações que aclaram e recolocam

questões essenciais ao homem, seja ele observador fruidor, crítico ou historiador.

Obviamente ao observador comum é resguardado o direito de esquivar-se,

declinando o convite ao diá-logo proposto pela obra, se assim o desejar. Já aos

críticos e historiadores, por sua condição de observadores “institucionais”, caberá a

tarefa efetiva de interpretá-las, não podendo se furtarem a, por vezes árdua, tarefa -

e aqui também não iremos nós, ao modo do avestruz, por medo, esconder a cabeça

sob a terra - separar através do juízo crítico, o que seja de fato arte, dos inúmeros

embustes realizados em seu nome.

A nosso ver, qualquer obra é uma obra, mas para uma obra ser de fato digna de ser

chamada obra de arte, precisa corporificar sentidos, ser desencobrimento.

Retomando nosso pensamento inicial, esclarecemos que até certo ponto

acreditamos na relevância de certos aspectos e problemas apontados por Danto,

mas afirmamos também perceber que, a lacuna que ele julga ter preenchido no

pensamento acerca da arte, permanece. Algo deixou de ser considerado, fugindo ao

seu “exame”. Tudo o que se mostra, possivelmente, tenha sido examinado, mas

talvez justamente isto configure, a nosso ver, a falha em sua teoria: desconsiderar a

possibilidade de haver na arte algo que não se mostra em sua totalidade, ou seja, o

não visto por trás de toda obra que vem à presença. Outra questão que não

podemos deixar de pontuar é a impossibilidade da existência de uma arte a que

possamos chamar pós-histórica. Ainda que tenhamos compreendido exatamente o

que o autor quer dizer ao se referir à essência trans-histórica da arte

contemporânea, julgamos fundamental destacar que tal pensamento pode conduzir

a ciência da arte por caminhos que acabem por instituir “guetos”, como os

apontados pelo próprio autor na história estilística, e que acabou por conduzir ao

esgotamento das narrativas.

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Ao nos entregarmos à reflexão, somos conduzidos a perceber que problemas são

histórico-circunstanciais e passíveis de solução. Todavia, a Arte move-se

inegavelmente no território das questões. De certo que, pela condição “histórica” dos

problemas, estes são contínuos, surgindo sempre novos, mas que podem ser

equacionados, resolvidos, assim como Danto demonstra em seus escritos,

elucidando o “X” do problema relativo ao fim da história da arte como o esgotamento

da grande narrativa encadeada, segundo, entre outros parâmetros, os estilísticos.

Mas nem Danto, ou mesmo Belting, dirigiram seu pensamento às questões que

regem a arte e que constituem seu sentido, sendo essa, a nosso ver, a grande

lacuna de ambas as teorias.

Questões não são históricas, isto simplesmente por serem elas a constituírem a

história. Em nosso entendimento, a Arte é do âmbito da Questão e não do problema,

e assim não pode ser: a-, pós-, pré- ou trans-histórica, simplesmente por

constituírem, enquanto movimento questionador, a própria história, a história

humana. Nós, seres humanos, somos movidos por questões, isso faz de nós seres

históricos. Diante de tal “problema”, somos convocados pelas questões a rever,

repensar, o que entendemos e denominamos “história”. Para tanto há que se pensar

o tempo e o que é próprio ao homem em suas relações com a phýsis.

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2. Prospecções

Tivemos oportunidade de constatar, nos capítulos anteriores, que muito se tem dito

acerca de arte e história e sobre o fim de ambas. Contudo, a nosso ver, tais

constatações foram alcançadas sem que se compreendesse como arte e história se

dão, ou seja, sem que se pensasse efetivamente acerca do vir-a-se de ambas.

Estamos, cremos que de um modo geral, acostumados a nomear como

“pensamento” os vícios ou cacoetes mentais que nos arremessam em direção a

trilhas que só podem conduzir a equívocos. Em verdade, o mais acertado a afirmar

seria que estamos desacostumados ao pensamento em seu sentido mais legítimo.

Constantemente, nos enveredamos pelos descaminhos do indistinguível, que nos

leva a confundir o que é geral com o que é universal. Empenhamo-nos com afinco

em criar “ciências do geral” que por sua vez se opõe a outras, também criadas por

nós, a saber, as “ciências do individual”. Diante dos caminhos e descaminhos que se

descortinam diante de nós, precisamos, antes de prosseguir, compreender a

dimensão de tal equívoco, ajustando percepções. Assim, e só assim, conseguiremos

nos mover, dando de fato um passo adiante.

O pensar que se dirige a arte, ou seja, a “ciência” que dela se ocupa - desde o seu

florescimento, atravessando a modernidade e em sua tentativa “abortada” de

ingresso na pós-modernidade - até o ponto em que a podemos compreender, teve

por foco a dualidade opositiva, a saber: individual/geral. A “ciência do individual”,

calcada em subjetividades artísticas, estabelece-se no contemporâneo opondo-se a

outra, que imperou, desde o Renascimento, até então. A esta, que podemos chamar

“ciência do geral”, como o nome a ela atribuído sugere, empenhou-se em

generalizar, unificando produções artísticas em blocos, sempre as submetendo à

égide dos conceitos estilísticos. Estes, ainda que sempre se alterassem conforme o

foco teórico da vez se mantinham firmes no intento de ditar moldes, modelos. Já a

“arte contemporânea” se descortina no horizonte da subjetividade, fruto da “ciência

do individual”, formulada então por artistas que, combativos à anterior, efetivamente

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assumem - resguardados por decreto de um ready-made - as “rédeas” de seu fazer,

no fim daquela que nos acostumamos a chamar modernidade.

É chegado o momento de atentarmos que homem e arte são no mundo de um modo

que passa ao largo desta rivalidade dicotômica entre geral e individual. A relação

homem-arte é de outra ordem, estando diretamente ligada à questão homem-

existência-mundo. Esta relação se estabelece não entre o individual e o geral, mas

sim entre o singular e o universal; e nela não há oposição, mas completa integração.

“O singular é a ressonância, num ser original, da ordem universal” (HUMMES, 1963,

p.119). A universalidade habita a singularidade, assim como a unificação de tudo

que é singular compõe o universal.

Ao pensarmos no concreto, no real se dando, realizando-se, haveremos de

constatar que este dar-se do real é resultado da “simbiose”, da comunhão, do

singular e do universal. Assim podemos pensar também o dar-se da arte. Em que a

própria arte faz parte do mistério do universal, enquanto o artista configura, em sua

humanidade, o singular. Sendo, a obra de arte, o fruto desta comunhão, de tais

núpcias. Obra de arte, a verdade da arte enquanto movimento do real, realiza-se por

meio do homem-artista. Como na vida, em que cada homem resguarda a totalidade

da problemática da existência se concretizando, em cada artista a totalidade da arte

se realiza sem com isso perder sua universalidade. Assim, cada obra de arte por ser

realizada pelo homem é única, singular.

Para considerarmos a possibilidade de existência de uma “ciência da arte”, esta há

que ser uma ciência do concreto, uma ciência do pensamento. Se tal ciência do

pensamento se chama filosofia, que assim seja. Mas tal filosofia haverá de ser uma

filosofia do real, a saber, do homem e da existência, em que o pensamento se mova

em direção a questões, não conceitos. Tal ciência, sendo efetivamente uma ciência

concreta, não descuidará do singular ou do universal, tampouco os colocará em

oposição, simplesmente por compreender a dialética que os une.

Aqui, tendo por ponte o pensamento de Maurice Blondel, pensador da ação, que nos

chega pelas inspiradas palavras de Dom Cláudio Hummes (1963), propomos um

caminhar por veredas de um pensar que, dirigindo-se à arte, havendo nela a

necessidade de ser ciência, desvele-se como ciência do concreto, onde reine o

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respeito e o reconhecimento à unicidade singular-universal, sempre atenta à questão

de que a arte não pertence à esfera do mero fazer, mas sim à essência do agir, a

que os gregos nomearam poiésis.

O homem é singular, um próprio único, inaugural. A singularidade faz parte de seu

modo de existir. A existência, contudo, é universal, visto que todos os homens

existem. Existir é estar em contato com o outro e com toda a universalidade da

existência. Tal contato é possibilitado pela ação. E, por meio da ação o homem é no

mundo. É na, e, pela ação, que o homem mundifica. “A ação humana é o único dado

imediatamente por nós atingido, tudo o mais somente mediante esta ação nos é

manifestado” (P. LOTZE S.J. apud HUMMES, 1963, p.119). Logo, uma ciência, seja

ela qual for, não pode desconsiderar a ação humana, visto que todo seu objeto de

estudo, está, de um modo ou outro, nela contido, e mais: sem ação não há

possibilidade de ciência.

Pensar a arte, ou seja, realizar qualquer ciência acerca da arte (seja crítica, história

ou teoria), implica lançar olhar cuidadoso sobre tais questões. Pensar implica

conhecer. Sabemos que tal sentença se revela em paradoxo, pois, para

conhecermos de fato algo precisamos pensar a respeito. Imbricados ou

independentes, pensar e conhecer, são do âmbito da ação. O modo verbal assim

nos mostra. A ação, pensar-conhecer, nos conduzirá a algo a que denominamos

conhecimento. Dom Claudio Hummes (1963) nos esclarece que Blondel distingue o

conhecimento humano em dois aspectos inseparáveis: prospecção e reflexão.

Ao elegermos o vocábulo prospecção como título de nosso estudo, decidimo-nos por

também, através da ação do nomear, trazê-lo ao pensamento. Inicialmente em

nosso trajeto, o prospectar nos acenou como um fazer pertinente ao ofício do

restaurador, ação que proporciona possibilidade de “revisitar” o passado fazendo a

raspagem que desencobre épocas trazendo uma vez mais ao vigor pinturas

eventualmente esquecidas que por ventura estivessem sob inúmeras e densas

camadas de tinta depositadas ao longo de séculos, por vezes até sob outras obras.

Escolhemos a palavra prospecção obviamente pelas ideias que nela repousam. A

ideia inicial nos falou desse olhar que se voltava ao passado re-buscando algo

valoroso.

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Se a prospecção, enquanto o fazer do restaurador, diz-nos de um olhar para trás,

que, pelo método investigativo, desencobre o passado (e que justifica nosso trabalho

em revisitar a História da Arte em seus inúmeros desdobramentos), para além desta

possibilidade prospectiva há ainda outra, que nos alcança através da escrita de Dom

Claudio Hummes (1963) sobre o pensamento de Maurice Blondel. Nele, o termo

prospecção nomeia um modo de conhecimento. Tal conhecimento trata-se de algo

espontâneo, como aquele que costumeiramente exercemos sempre dirigido aos fins

práticos da existência, ou seja, conhecimento ligado à vida e que se dirige ao futuro.

O próprio termo prospecção vindo do latim pro-spicere, diz desse “olhar para a

frente”, e sinaliza a intencionalidade direta deste conhecimento. “Nele e por ele se

resolve o problema da vida” (BLONDEL apud HUMMES, 1963, p.120).

Por meio da prospecção, é-nos dada a possibilidade de resolvermos o “problema da

vida”, em todas as suas implicações destinais, ou seja, o sentido da existência

humana. Nas palavras de Dom Cláudio Hummes (1963), a possibilidade de

“resolver” o problema da existência não seria um privilégio doado apenas ao homem

sábio como patrimônio, essa possibilidade residiria em cada um dos homens,

mesmo no mais simples e primitivo, ainda que, neste, o alcance de tal possibilidade

se dê de modo mais sintético e global. A possibilidade, ainda que sintética,

simplificada, é sempre suficiente à descoberta do sentido da vida.

Em cada momento de nossas vidas, mesmo sem nos darmos conta, em nossa

singularidade já está contida toda a universalidade da existência, a cada instante,

em cada ato, toda essa problemática da dialética singular-universal se articula,

podendo a solução do problema da existência eclodir em cada um dos momentos

vividos, que devemos lembrar sempre poderem ser os últimos. Cada ato se

realizando, com maior ou menor clareza, (mas sempre de modo suficiente para

aquele que o realiza, dentro do conjunto de possibilidades que lhe foram doadas)

sempre se realiza sob a luz do problema total da existência. Sendo a prospecção a

luz - a saber, o elemento cognescitivo – a orientar nossas ações.

Em cada ação, já está sempre implicada a prospecção. Segundo a filosofia de

Blondel (apud HUMMES, 1963, p. 210) toda ação é pensamento, sendo o próprio

ato de conhecer, em si, também ação; havendo sempre uma unicidade entre a ação

e o conhecimento como prospecção. Assim, cada ação humana seria como que “um

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círculo que implica toda a problemática da realidade”, uma vez que cada modo de

viver e pensar implica deliberadamente uma solução completa do problema da

existência. Podemos então compreender prospecção como a possibilidade de ver o

que livremente se abre para diante da posição em que nos encontramos, lembrando

sempre que tais posições não são fixas ou unânimes por estarmos sempre, cada um

de nós, em constante vir-a-ser.

Para refletirmos acerca das ações humanas é mister pensar onde se dão tais ações.

Arte e história se dão no e através do tempo. Se o próprio homem não é sem o

tempo, obviamente, arte e história também não o são. Acerca do homem e do tempo

discutiremos em momento oportuno, quando pensarmos a questão do Dasein. No

mais, a conclusão de que sem homem não há arte ou história não impõe ao

pensamento grande esforço filosófico. Faz parte de nossa humanidade as relações

temporais. Há, desde os primórdios, uma busca constante por compreendê-lo,

domesticá-lo, para, realizando antigo desejo, submetê-lo aos nossos desígnios. No

cotidiano, naquilo a que Heidegger (2006) chamou intramundano, por sermos seres

finitos desejamos sempre otimizar nossos dias. Assim, vivemos o constante desafio

de mapear nossa finitude. Mas ele, o tempo, na esfera da funcionalidade, sempre

nos escapa. Tomados por tal desafio, buscamos operacionalizá-lo em passado,

presente e futuro. Destes três modos de sermos no tempo, por vezes nos

concentramos mais no passado, outras no futuro. Há os que defendam olhar o

passado, sempre o repensando, por julgarem nele repousar explicações para

questões presentes. Esse olhar que se volta apenas para o passado alimenta a

história como a conhecemos, ou seja, a ciência histórica, a História enquanto

disciplina. Tal olhar, a nosso ver, é insuficiente.

Obviamente, reconhecemos que a ação de investigar, por vezes até buscar resgatar

o passado, configura, entre as relações funcionais do viver, um dos possíveis modos

de compreender o presente e vislumbrar o futuro. Contudo, tal pensamento, muitas

vezes tomado como de uma obviedade quase orgânica, resguarda em si certo

perigo, escondendo a verdadeira questão que envolve o ser-tempo, entificando-o, ao

trazê-lo ao pensamento de um modo equivocado, linear e tripartido. Tal modo de nos

relacionarmos com o tempo remete-nos à imagem de estarmos de pé no presente,

lugar a oferecer vista privilegiada para distante estância a que chamamos passado,

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cujo conhecimento apurado de sua topologia nos salvaguardará de “tropeços”,

tornando-nos mais eficientes na construção de um outro lugar, esse ainda mais

longínquo, a que chamaremos futuro, lugar para o qual ainda haveremos de nos

encaminhar.

Ainda que possa nos parecer insólito, precisamos atentar de que somos no tempo

de outro modo, bem diverso deste. Reconhecemos ser valoroso encararmos o

passado como celeiro de experiências vividas e não como o reino do perdido, do já

feito, onde as luzes já se apagaram. No entanto, precisamos considerar com

atenção que no irradiar-se da vida, do real, não há passado, presente e futuro assim

compartimentados e estanques, mas sim passadopresentefuturo, sempre

entrelaçados, entretecidos, em que nossas ações constituem fibras que dão corpo a

esse entretecimento, em um presentificar. Nessas presentificações ou

desencobrimentos é que somos verdadeiramente no tempo, este que se desdobra

em nós como vasta e desconhecida planície. Nosso estar constitui um ser tempo e

pode ser entrevisto na imagem simples de um ponto. Minúsculo ponto onde se

cruzam as diagonais setas do destino, a que podemos nomear finitude e ação, a

primeira arremessada do futuro curva-se sobre nós, enquanto a outra, vinda do

antes a que chamamos passado, com a mesma veemência é lançada para adiante.

Nesta interseção contínua, a que chamamos presentepassadofuturo, na abertura do

que somos, dá-se tempo, nosso modo de ser e estar. O instante-já, entrevisto na

escrita de Clarice Lispector (1998). Preciosos e fugazes instantes onde presente

passado e futuro estão sempre em unidade.

Temos o péssimo hábito de pensar de modo cartesiano, onde o tempo se mostra

linear. Se o tempo em cada homem sobre a terra assumisse a conformação de uma

linha, em nosso entendimento não seria ela uma linha horizontal, mas sim vertical, e,

em perspectiva aérea, não excederia a condição de breve ponto no infinito espacial.

Tais pontos sucessivos, a se sobreporem em desencobrimentos destinais, teceriam

a História Universal, dizendo da eternidade de nossa dolorosa finitude, condição de

sermos, sendo. Transpassados, somos em errância, diante do cumprimento de

nossa destinação maior: realizar travessia naquele que feito lança nos atravessa e

nos constitui, mas que também acolhe em constante e ambíguo movimento-repouso.

Já teria nos dito Clarice: “Minha vida é um único dia. E é assim que o passado me é

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presente e futuro. Tudo numa só vertigem. E a doçura é tanta que faz insuportável

cócega na alma” (LISPECTOR, 1999, p.19).

Ainda que nos pareça complexo, a dinâmica da vida e do tempo se dá, à revelia de

nossa vontade, é facticidade, em desconcertante simplicidade. O tempo pleno, sem

dobras, descortina-se singelo, para os que tiverem olhos de ver, em pequena

semente de girassol. Nela, presente, passado e futuro são em um único e pequeno

ponto. Tudo (o foi, o é, e o será) ali em repouso aguardam o instante-já da eclosão,

que em nada se aproxima do tempo cronológico ao qual nos habituamos no correr

dos dias funcionais. Trata-se de Kairós, do tempo oportuno. A dinâmica da natureza

em sábia simplicidade resumiu, na singela semente, inúmeras páginas da mais

complexa filosofia da existência.

Tal reflexão ambiciona nos conduzir ao entendimento do quão equivocado pode ser

o pensamento que se dirige ao passado de modo objetivo, visando operacionalizar o

presente para projetar o futuro; ou mesmo o nobre empenho em resgatar certa

poesia que julgamos sepultada em tempos idos. Para estarmos mais próximos de

entrever o modo de sermos no tempo, algo essencial à compreensão do modo de

sermos no mundo, bem como do mundificar humano, onde arte e história são,

precisamos verdadeiramente considerar a dinâmica poética do futuro que se dobra

sobre nós em nossa existência fática, bem como todo o passado que jamais deixa

de vigorar no presente desencadeando os desencobrimentos de todo porvir.

Considerando as colocações acima, esclarecemos que a partir do presente capítulo,

ficaremos atentos aos encaminhamentos e envios da palavra prospecção como

condição do olhar que vê, percebendo que o atrás e o adiante se reúnem no

memorável. O Ver, afinado com as questões originárias nos conduzirá ao caminho

onde poderemos vislumbrar o entrelaçamento entre arte, homem, tempo e destino

epocal, o que nos levará a um maior entendimento dos problemas que apontamos

ainda na introdução deste estudo.

O encaminhamento dado até aqui se desenhou sob a égide prospectiva de um olhar

voltado ao passado ôntico, preocupado em investigar e mapear. Ou seja, olhar de

reconhecimento, próprio ao ofício do historiador; ao menos daquele responsável

pelos registros, pela historiografia, mas que, a nosso ver, é insuficiente para

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alcançar a essência histórica de uma época, muito menos a essência da arte. Neste

ponto em que nos encontramos, propomos que a prospecção se expanda, passando

do universo do pensar ôntico ao ontológico, agregando ao olhar que se dirige ao

passado, outro, que se dirige ao presente e seus possíveis desdobramentos nos

envios do destino epocal da arte e de todo porvir, considerando as indicações de

Heidegger (2008a) de que a essência só se revela no fim. Para tanto somaremos ao

conhecimento prospectivo, o reflexivo. Prospecção e reflexão unidas em olhar que

se lança à frente, mas, que também volta sobre si, observando o caminho

percorrido, volvendo-se em direção ao próprio conhecer, para assim ampliar a

compreensão do que se conhece.

Cientes de que o homem, em seu caminhar, deve se deixar tomar pela essência do

agir, onde a consciência de seus atos constitui talvez a parte mais essencial de sua

humanidade, buscaremos aprofundar, por meio de estudo e reflexões pontuadas nos

escritos de Martin Heidegger, questões apontadas anteriormente. A nosso ver,

questões de suma importância, visto que determinam o pensar de então acerca da

arte, e que, de certo modo, alteraram o curso do fazer artístico, determinando o

acontecer, por vezes sombrio, de seu desencobrimento em nosso tempo.

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2.1 – Prospecção reflexiva: Duchamp e a essência da técnica moderna.

O que me guia é apenas um senso de descoberta. Atrás do atrás do pensamento17.

Clarice Lispector

Há que se questionar. Uma vez mais, e outras tantas, visto que a questão mantém o

pensamento em movimento. Sempre haverá o não pensado, mesmo e

especialmente quando tudo foi dado como visto e conceituado. Tendo chegado a

nós, pelas inspiradas palavras de Heidegger, que a questão é a piedade do

pensamento, propomos um olhar piedoso, um olhar ainda mais atento, reflexivo, que

conduza ao questionar das questões já pontuadas, buscando nelas o que ainda não

se mostrou.

No breve inventário realizado acerca dos caminhos percorridos pelo pensar dirigido

à arte ao longo dos últimos séculos, podemos perceber que este se construiu e

ainda permanece, na ambiência do já dado, do ôntico, ou seja, da arte no desvelado

do ser, a saber: na esfera dos entes. Em nosso “passeio” por entre os meios

utilizados por aqueles que dirigiram seu pensamento à arte, observamos que,

quando não estipulavam critérios para sua eclosão (como Vasari), o faziam para

determinar o que seria acolhido nos “anais” da teoria e da história especializada

(Clement Greenberg por exemplo), instituindo-se assim, durante longo tempo, a

valência de “bulas” onde constavam “critérios” para que obras fossem produzidas

e/ou aceitas como obras de arte. Reside justamente neste aspecto da escrita da arte

(seja na história, na crítica ou na teoria) o principal equívoco apontado pelos teóricos

que mapearam o fim da História da Arte, da grande narrativa; fim este, que, segundo

o pensamento construído por Danto (2006) e Hans Belting (2012), teria se dado por

puro esgotamento, movido pela inadequação entre tal escrita e as produções

artísticas contemporâneas que já não se adequavam aos padrões de análise até

então vigentes. De repente, tornou-se algo obsoleto, teóricos fornecerem modelos já

que tais modelos nada mais diziam aos artistas, agora emancipados.

17

LISPECTOR, 1998, p.60

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No que se refere ao aspecto de “gerar e fornecer critérios” reiteramos que,

guardadas as devidas proporções, não percebemos larga distância entre as

elaborações teóricas que constam dos escritos de Greenberg (1986; 1996) e nos de

Arthur Danto (2006; 2010). Se o primeiro defendeu a pura forma, o segundo, ao

combatê-la, defendeu o conceito, e assim, ao que nos parece, ambos se valeram de

critérios prévios, uns mais formais e estilísticos, outros dito mais “filosóficos”, mas

sempre de natureza ôntica, partindo do já dado. Infelizmente pouco ou nada foi

pensado acerca do que na Arte é mistério e não se mostra, repousando no velado

do ser. Seus olhares não se dirigiram ao questionamento acerca da essência da

arte, de sua origem. E o que nos parece ainda mais sério: nada se pensou acerca da

essência da mudança que tanto incomodou um e instigou o outro.

A desconexão ou distanciamento que em dado momento se dá entre arte e história

apontado por Danto e também por Belting, a nosso ver, deve-se ao modo como

teoria, crítica e história sempre abordaram o ser da arte. Desde antes, até nossos

dias, percebemos, com algumas exceções, que não se pensa a arte, raciocina-se

sobre ela. Muitos dirão não haver distinção significativa entre pensamento e

raciocínio. No entanto, defendemos o efetivo empenho em perceber a diferença

entre ambos, para que não nos percamos irremediavelmente da essência no que se

refere às questões que se relacionam a destinação do homem e da própria arte. E,

como em nosso entendimento, só é possível avistar questões a partir do

pensamento, o raciocínio, nesse caso, torna-se ferramenta incompleta.

Precisamos observar a diferença entre pensar e raciocinar. Todos tomam o ato de

raciocinar como algo profundo e sério, enquanto o ato de pensar é tomado por um

modo descompromissado de se relacionar com ideias. Isto é um equívoco. Há que

se compreender que no raciocínio parte-se de uma interpretação já dada do logos,

parte-se do “como é”, ou seja, do já dado e fundamentado, onde tudo gira em torno

de causas e finalidades. Enquanto o pensar ausculta o logos, o raciocinar atende a

lógica, e na lógica não há espaço para o Nada. Sob a luz da razão não há espaço

para o escuro, para o não visto. E é desde o escuro abissal que a Linguagem nos

fala, sendo, o logos, esta fala.

Teóricos costumam raciocinar sobre a arte. Partem do desvelado e, considerando o

que se mostra no aberto como a totalidade do que há, empenham-se por mapear

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cientificamente as suas estruturas. Interessa-os buscar um encadeamento lógico

para as obras, para assim conceituarem o que é arte. Agem como se fossem as

obras a constituírem a arte. Se nos enveredarmos pelas questões - aquelas que só

nos chegam através do pensamento, pensamento que é a ausculta do logos -

perceberemos que sem arte não há obra, e sem obras não há sequer artista, sendo

a arte o mistério fundador de ambos. É do escuro que provém o desencobrimento da

arte, é desde o mistério que a arte se doa ao homem. É com esse escuro abissal

que o artista flerta, dele brotam as questões que movem o ser humano tomado pelo

vigorar da arte, esta que constitui a própria humanidade do homem. Hoje, até

mesmo os artistas duvidam do escuro de onde brotam as questões e raciocinam

sobre a arte.

E por falar em artistas...

No capítulo anterior, entre teóricos e historiadores e seus modos de investigação e

registro acerca da arte, destacamos um artista. Apenas um, e, ainda assim,

escolhemos observá-lo justamente a partir do momento em que se proclamou

antiartista. Ao que se deve tal decisão? O que pretendemos com esse gesto? Seria

nosso interesse reiterar a importância a ele atribuída?

Trazer Duchamp ao pensamento explicita nossa intenção que, esclarecemos, em

nada excede o desejo de investigar o que se deu nas artes visuais na passagem da

modernidade para a pós-modernidade e que, a nosso ver, alterou os modos de

desencobrimento da arte. Muitos atribuem as mudanças ocorridas ao fazer de

Duchamp, alguns o rechaçam por esse motivo. Quanto a este fato, no que diz

respeito ao fim da narrativa histórica, Danto (2006; 2010) aponta não Duchamp, mas

os feitos da Pop Art, vendo em Warhol, um neodadaísta, o estopim da derrocada da

narrativa histórica. É fato que após Duchamp o fazer artístico foi alterado. Nossa

escolha por uma observação mais atenta dele em nada se refere a apreciarmos ou

não seu gesto, ou a algum tipo de encantamento por seus ready-mades. O que

legitima tal escolha é considerarmos o fato de ter sido ele o primeiro a sinalizar, sim,

com os ready-mades, a sombra que se insinuava sobre o universo da arte na era da

técnica e que viria a eclipsar, como temos oportunidade de constatar, o horizonte

artístico em nosso tempo, quando é contundente a ausência da Arte em inúmeras

obras que insistem em se denominarem “de arte”.

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Acreditamos que o problema que chega via Duchamp às artes plásticas, hoje

visuais, tem origem bem mais complexa que meramente temperamento artístico,

inicia-se com a entificacão do ser que se dá, de modo emblemático, com a

modernidade18. Entificar o ser, tomar por digno de ser considerado apenas o que

habita a esfera ôntica configura problema, pois assim desconsidera-se o essencial, a

saber: que a força criadora da arte repousa e pulsa justamente no e a partir do

velado do ser, ou seja, no que ainda não é, como já mencionado acima, no Nada. A

grande questão é que a ciência, e a excessiva racionalidade como paradigma (que

começa com o Renascimento, e, firma-se com Descarte), torna-se o grande marco

da modernidade, mãe da técnica e da indústria. Esta racionalidade científica nada

sabe ou quer saber do nada. O nada é “irracional” e, deliberadamente

desconsiderado. Assim, temos que, o grande problema da racionalidade é

justamente ignorar o nada. Se a ciência não é capaz de avistar, não existe. Contudo,

à parte a miopia científica, ainda que o Nada seja ignorado, é desde lá que a

Linguagem e a arte nos acenam, lá repousa sua essência.

No presente, grande parte da arte chamada “contemporânea” se firma no aparente.

Ou seja, é guiada pela causalidade, onde todo o sentido é reduzido a apenas uma

de suas facetas. Entre as quatro causas que regiam produções, se elegeu a menos

essencial, a que se reduz ao que é gerado a partir de comandos que visam efetivar

resultados. Resultados estes que sempre almejam uma finalidade. Télos, o sentido,

passa a ser confundido com finalidade, e esta se torna o grande paradigma das

produções ditas artísticas em nosso tempo. A grande ironia é que este novo modo

de produzir “arte” dizia querer justamente libertá-la de paradigmas, de critérios

prévios. O artista na pós-modernidade assim que se compreendeu liberto dos

critérios impostos pela história e pela teoria, submeteu-se, em autônoma iniciativa, a

novo grilhão: o da própria subjetividade, fundamentada na causalidade e na

racionalidade. É nesse contexto que se fecha o círculo, não o poético, mas aquele a

partir do qual se edifica o circo dos horrores em cujo picadeiro figura grande parte da

produção “artística” contemporânea, em que a obra dita de arte é reduzida a mero

dispositivo.

18

O termo modernidade aqui se refere à revolução científica e filosófica do século XVIII.

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As ideias iniciais, acerca do que desenvolveremos neste capítulo, foram-nos

despertadas por Pedro Duarte de Andrade (2010). O percurso que realizaremos

difere do eleito pelo autor, todavia, nossas ideias se consolidaram a partir do referido

texto. As questões que efetivamente buscaremos desenvolver serão calcadas nas

reflexões de Martin Heidegger (2008a) e relacionam a arte contemporânea e a

essência da técnica moderna. Tal questionamento teve por gatilho a seguinte frase

do artigo mencionado acima: “Mas qual teria sido o acontecimento epocal que fez

com que a arte precisasse morrer para continuar viva? Nada mais, nada menos do

que o acontecimento capital da técnica” (ANDRADE, 2010, p.66).

Agora não mais apenas morte da arte, fala-se – é possível assim interpretar a partir

da frase citada - em suicídio e redenção. A frase, contudo, diz-nos de acontecimento

epocal, e isso requer atenção. Os envios da técnica sem dúvida são um

acontecimento epocal. Seria a técnica a grande responsável pelo estranhamento

que nos causa a “arte” em nosso tempo?

Para compreendermos os descaminhos artísticos na era da técnica, há que se

pensar o que há (ou havia) em comum nos modos de desencobrimento da técnica e

da arte, bem como a legitimação da primeira pela ciência. Mas teria sido mesmo a

ciência a firmar a era da técnica, ou esta teria se valido daquela para legitimar-se?

Heidegger (2008a) nos esclarece que a ciência firma-se na era da técnica.

Pensemos um pouco então nas relações entre ciência, técnica e arte, especialmente

entre arte e técnica na antiguidade grega, bem como as mudanças que se

estabeleceram com a modernidade.

Ainda que nos cause estranhamento, arte e técnica já compartilharam da mesma

essência. Mas, com a expansão da técnica moderna, o homem acabou por caminhar

a passos largos para o mais distante da essência das coisas, da essência da arte,

da própria técnica e até mesmo da essência de si mesmo. Hoje sabemos da arte e

da técnica, mas, todavia, ignoramos a essência de ambas. Sabemos, é fato, que a

modernidade decidiu separá-las. Mas como era a relação arte-técnica antes da cisão

imposta pela modernidade?

Na longínqua Grécia arte e técnica caminhavam juntas, unidas em seu modo de

desencobrimento. No pensamento grego, desencobrimento, o movimento que leva

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algo a aparecer no aberto do ser, a pertencer à esfera dos entes, é alethéia. Ou

seja, verdade. Esta que, ao mesmo tempo em que desvela, também vela, havendo

sempre o não visto em tudo o que se revela. Arte e técnica eram unidas pela

verdade do ser. Em dado momento na modernidade ocidental julgaram que o que

vinha à presença por meio da técnica era inferior aos desencobrimentos da arte,

iniciando-se assim um distanciamento entre ambas.

Com o avanço da era da técnica firmou-se a separação entre arte e técnica, e, em

nosso entendimento, ao invés da produção artística se fortalecer, enfraqueceu, e

isso, em nosso juízo, deveu-se ao distanciamento do artista em relação à produção.

Artistas, na pós-modernidade, passam a se envergonhar do saber das mãos, do

fazer técnico, julgando-o inferior. Firma-se o seguinte paradigma: artista é o que

conceitua, o restante é mera manufatura, qualquer um efetua. E a técnica encontra

espaço apenas nos produtos industriais, nos processos mecanizados e repetitivos.

Na separação arte-técnica, muitos artistas deixam de produzir, não é mais

necessária nenhuma habilidade especial. O artista “pensa”, conceitua, e, elege

qualquer objeto industrializado. A partir dessa trincadura entre artista e pro-dução

abre-se um fosso, por ele a arte se esvai, sua essência cada vez mais se recolhe ao

velado do ser e a maioria das obras produzidas são apenas obras, não mais obras

de arte. Este o ponto de nosso interesse.

Os ready-mades, “anti-obras” de arte, mostram-se relevantes ao estudo, por

configurarem marco inicial das obras ausentes de arte. Avistamos neles um aceno

para a importância de revermos o modo como nos relacionamos com a essência não

apenas da arte, mas de nossa era, com nosso destino epocal. Não podemos

simplesmente reduzir nossa ação neste estudo a apenas aceitar ou repudiar o que

se tem feito a partir deles, engrossando fileiras com os que endeusam o gesto dito

“inaugural” de Duchamp, ou mesmo fazendo parte do grupo dos que o repudiam, ou

ignoram. Precisamos sim, não nos furtar à tarefa que se nos apresenta, e,

encarando-a com seriedade, buscar compreender o que levou um artista a proceder

de tal modo, e mais que isso, o que fez com que de repente todos (ou ao menos a

grande maioria daqueles que fazem parte do “sistema” da arte) considerassem tal

gesto como aceitável e até mesmo brilhante, digno de ser reproduzido a exaustão. É

inegável que o ready-made seja um marco que em muito excede as motivações

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pessoais do artista, ou seja, sua intencionalidade. O que de antemão podemos

afirmar é que houve, naquele momento histórico, uma bifurcação no caminho. Nesta

bifurcação outras possibilidades se descortinaram no horizonte, entre estas figuram

produções em “arte” que perdem a dimensão do sagrado.

Esclarecemos que o sagrado ao qual nos referimos em nada se relaciona a religião

(ao modo de Hegel), ou mesmo credo, tampouco se refere a “sacralização” dos

pedestais das galerias e museus que Duchamp pretendia, segundo dizem,

combater. O sagrado a que nos referimos é da ordem do mistério que repousa no

velado do ser e que nos impulsiona rumo à criação poética. Ou seja, do apelo que

transforma, e que faz eclodir o extraordinário na ordem do dia com a presentificacão

da criação artística, esta que nos conduz ao que de fato somos e nos faz sermos

no mundo, que nos possibilita a condição de mundificar. O Sagrado das questões

que movem homem e mundo. A racionalidade exacerbada subtraiu do fazer do

artista, entre outras coisas, a dimensão do sagrado, transformando sua relação com

a arte em algo próximo da verdade como correção, em que impera a certeza dos

conceitos. Tal equívoco se estabelece em teia, não tendo uma causa isolada.

Contudo, a nosso ver, entre outros aspectos, está relacionado ao modo como se

passou a compreender o diálogo com as obras de arte a partir de uma interpretação

distorcida do télos, do sentido da arte.

Em toda ação se perfaz um sentido que resulta da integração entre penhor e bem. A

percepção cada dia mais ôntica das quatro causas que regem a criação, conduziram

a uma distorção na compreensão do télos. Ou seja, do sentido da criação. Este foi

reduzido a algo entendido como meta ou finalidade. Como isso se deu? Na busca

desenfreada por instrumentalização surgida com a técnica moderna, a Linguagem

acabou por ser reduzida a um código que serve apenas à comunicação. A

Linguagem/logos passou a ser compreendida como pertencente à ordem dos

instrumentos, servindo à representação e a comunicação. Obras de arte sempre

propuseram diálogos profundos, profícuos, no entanto, com tais mudanças nos

modos de compreensão, como passaram a se dar tais diálogos? Diante da postura

que percebe o logos como algo que atende a funcionalidade, há uma inegável

transformação dos diálogos.

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Manuel Antônio de Castro (2007) em ensaio intitulado Télos e sentido nos diz que,

na palavra diálogo o prefixo diá- quer dizer “através”, mas que esse “através” pode

incorporar diversos sentidos. O grande erro consiste na busca por apreender o logos

a partir do diá-, quando é justamente o contrário a ser feito. Ou seja, apreender o

diá- a partir do logos. Não se trata de atingir o logos através de algo que tem uma

finalidade. Mas sim de pela ausculta do logos alcançar as questões que se mostram

em obra. Passamos a submeter o logos ao diá-, ou seja, passamos a julgar serem

os artistas através de suas obras a “criarem” o logos, quando em verdade é por e

pelo logos que as obras se abrem ao homem, seja ele artista ou espectador. Dos

diá-logos que sempre foram estabelecidos entre obra e artista, bem como entre o

espectador e a obra, subtraiu-se o logos que nos proporcionava a escuta da

Linguagem, permanecendo apenas o diá- (o através de). Deixamos de ver a obra a

partir do logos. Ou seja, como movimento da Linguagem. A própria Linguagem

passou a ser vista como instrumento, meio, e, desse modo, a obra ficou reduzida a

um meio que conduz a um fim específico, como que uma ilustração do já sabido, já

raciocinado e conceituado e que deve constar da legenda que a acompanha, de seu

memorial descritivo. A obra torna-se assim mero dispositivo.

Mas ao que isto se deve?

Julgamos que a grande questão se situa exatamente na trincadura entre a poiésis e

a techné e a forma como o artista passa a se relacionar com ambas, determinando o

novo modo de desencobrimento da arte. Para arrostarmos tais questões seguiremos

no caminho apontado por Martin Heidegger em seu ensaio A questão da técnica

(2008ª), ainda que, ao pensarmos arte, de imediato nos venha à mente outro famoso

ensaio de Heidegger, A origem da obra de arte (2010). Julgamos que os

encaminhamentos de Heidegger acerca da técnica e o estudo de sua essência na

era moderna abrirão caminhos que nos levarão a avistar a origem das bifurcações

que conduziram artistas aos descaminhos que os distanciam da arte em nosso

tempo.

Não cremos na ruptura permanente, como parte do movimento do real, entre poiésis

e techné, pois a nosso ver, ambas são em unidade. Acreditamos, contudo, que a

modernidade, com sua escala de valoração distinguindo o que é manual do que é

mental (racional) julgou por bem separá-las, afirmando ser o saber das mãos algo

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somente próprio a artesãos ou operários. Recapitulando: Estabeleceu-se com o

pensamento moderno que, a arte para ser algo próximo ao pensamento deveria

estar distante do fazer manual, como se este saber fosse algo indigno, menor.

Julgando não haver espaço para a técnica junto à arte e, decidindo por separar os

fazeres artísticos dos técnicos, julgados “menores”, o que se conseguiu foi um efeito

colateral contraditório que distancia as obras, a partir de então, da essência da arte,

aproximando-as efetivamente da essência da técnica moderna. Neste ponto é

importante frisar que a técnica moderna já nasce distante da essência da técnica

antiga, ou seja, da techné.

Mas o que é a essência da técnica, e qual diferença a separa da essência da técnica

moderna?

Para compreendermos melhor a proximidade entre a arte contemporânea e a

essência da técnica moderna, e o que transformou as obras em meros dispositivos,

haveremos de compreender, antes, o que consiste a essência da técnica, bem

como, e, principalmente, a essência da técnica moderna. Para tanto haveremos de

eleger um ponto de partida.

Ainda nos parece obscuro determinado aspecto da questão que a nós se apresenta,

quase em paradoxo, e que se refere ao equívoco de se tomar o artista por causa

eficiente da obra, o que se agrava ainda mais com o ignorar da causa final, onde o

sentido (télos) é tomado por meta, por finalidade. Teria sido a excessiva

subjetividade artística a desvirtuar o fazer artístico de seu caminho de

desencobrimento? Ou teria sido este corresponder a um novo modo de

desencobrimento a fortalecer a subjetividade artística? Busquemos tal compreensão

desde o inicio, e, para compreendermos o que seja a técnica e sua relação com a

arte, haveremos antes de compreender as quatro causas que regem o fazer e o

produzir humano, em que também se insere a produção artística.

Iluminados pelo pensamento de Heidegger (2008a), somos levados a perceber que

a essência da técnica moderna não é técnica. Percebemos, como bem nos mostra o

pensador alemão, que para compreendermos algo, o que quer que seja, é

imprescindível abrirmo-nos às questões. Começamos a caminhar de fato no território

do questionar quando olhamos cuidadosamente para algo que queremos

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compreender. Nosso olhar cuidadoso nesse momento se dirigirá a técnica.

Questionando o que seja a técnica podemos afirmar que, se pensada no âmbito da

correção ela configura meio para se chegar a um fim, e, assim, é instrumental. Ou

seja, depende e produz instrumentos para alcançar suas finalidades. Tem residido

nesta concepção instrumental todo o esforço do relacionamento homem-técnica.

Sendo a técnica moderna indiscutivelmente uma atividade humana, um fazer, como

todo fazer humano também resulta em um desencobrimento. Sim, também a técnica

moderna conduz a um modo de desencobrimento. No entanto, tal desencobrimento,

ao contrário da técnica antiga, não é mais da ordem da pro-ducão, ou seja, da

poiésis, mas sim da exploração e da disposição.

Ver a técnica como instrumento implica em reconhecê-la como meio para se

alcançar um fim. O homem deseja dominar a técnica e para tanto precisa acreditar

em tal domínio. O homem domina os meios. Assim, afirmar o domínio humano sobre

a técnica implica reduzi-la a um simples meio. Dissemos acima, guiados pelo

pensamento de Heidegger, que é correto afirmar que a técnica é um instrumento.

Chega-nos então ao pensamento a necessidade de escutar o que o termo

“correção” nos diz.

Em geral, acolhemos, sem questionar, o que temos na conta de “correto”. Mas o que

é o correto? O correto e o verdadeiro são da mesma ordem? Precisamos pensar

cuidadosamente e observar que, o correto, mesmo sendo algo exato, nem sempre é

verdadeiro. O correto por vezes maquia a essência das coisas e, portanto, diverge

do verdadeiro. Não devemos tomar o correto e o verdadeiro por sinônimos. O

verdadeiro só se dá em plenitude quando se dá o desencobrir da essência de algo.

A determinação instrumental da técnica é correta, mas, não nos mostra sua

essência. Para avistar a essência haveremos de procurar o verdadeiro para além do

correto, o que nos impulsiona em direção a outra busca. Assim, somos conduzidos a

indagar acerca do que seja o instrumental em si mesmo.

Heidegger (2008a) nos mostra que um questionamento se realiza de um modo

encadeado. Assim caminhamos em direção que nos levará a conhecer o que seja

isso, o instrumental. Percebemos então que instrumental é o que possibilita que se

chegue a algo, ou seja, é o meio para se alcançar um fim. Mas a que pertence meio

e fim? Se o meio é aquilo que fazemos para obter algo, diz de uma causa que tem

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por consequência um efeito. Desenvolvemos meios para atingir fins. Criamos

instrumentos por haver um fim a ser alcançado. Tal constatação nos conduz a

concluir que a causalidade impera na instrumentalidade. Mas o que vem a ser

causa? E no que a causa se relaciona com o télos, ou seja, com o sentido de algo?

2.1.1 O equívoco das quatro causas – Notas sobre o responder e dever

Pensar os envios da técnica implica pensar o que seja produção. Remonta ao

pensamento grego, a Aristóteles, a teoria das quatro causas que rege tudo quanto é

produzido. São elas: a causa materialis, a causa formalis, a causa finalis e a causa

eficiens. Mas o que materialis, formalis, finalis e eficiens querem dizer enquanto

causas? Ao que se referem exatamente? Acerca das quatro causas que regem a

produção, Heidegger (2008a, p.13), esclarece-nos que: a) a causa materialis

consiste no material, ou seja, a matéria com que se faz algo. Toma por exemplo um

cálice: em um cálice temos como causa material, a prata de que é feito; b) a causa

formalis se refere à forma que ele, o cálice, assumirá. Ou seja, a figura em que se

insere um material, isto é, a forma cálice do cálice, que deve corresponder a um

receptáculo para o vinho; c) à causa finalis corresponde o fim ao qual o cálice

atende, a saber, o culto sacrificial. O fim determina a forma e a matéria do cálice; e

d) a causa efficiens, o ourives, que produz o efeito, ou seja, o cálice realizado,

pronto.

O filósofo nos alerta quanto à necessidade de refletirmos sobre o que determina o

caráter de causa que compõe essa teoria que é aceita como uma verdade

absolutamente clara. E se a causalidade for algo mais obscuro para nós? Instigar-

nos-á a indagar o porquê da existência das quatro causas. Questionar a causalidade

nos conduzirá a um maior entendimento acerca da técnica, e precisamos entender a

técnica para assim avistar distanciamentos e aproximações entre ela, a essência da

técnica moderna, e a arte contemporânea. Pensemos então a causalidade.

Entre nós podemos observar não haver mais uma organicidade das causas como

havia entre os gregos. Dentre as quatro, firmou-se de modo mais contundente uma

delas: a causa efficiens. Não apenas no tocante à técnica, mas também, e talvez até

especialmente, no que se refere aos fabricos “artísticos” de nosso tempo, onde é

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visível já não haver total integração entre as causas, tendo chegado ao ponto em

que a causa final, o télos - o sentido pleno - é incessantemente esquecido,

desconsiderado, ou mesmo confundido com algo que em muito difere de sua

essência.

Em sua etimologia, a palavra causa diz de cair, pois provém do verbo latino cadere.

Assim, podemos compreender causa como aquilo que faz com que algo caia neste

ou naquele resultado. Vimos que a teoria das quatro causas remonta à Grécia

antiga, mas perceberemos que em nosso ocidental e moderno pensar, pouco ou

nada restou do que entre os gregos se pensava a esse respeito. Nas terras

banhadas pelo Mediterrâneo as quatro causas em nada se relacionavam com a

eficácia ou eficiência de um fazer. O que hoje chamamos causa, os gregos

chamavam aitia, palavra que nomeava os quatro modos, sempre coerentes entre si,

de algo responder e dever. Entre os quatro modos de dever e responder estariam: a

matéria de que algo é feito, ou seja, a prata, que respondeu pelo cálice sacrificial ou

o marfim, que respondeu pela Estátua de Zeus em Olímpia; a figura que se deixa

enformar seguindo a ideia (eidos) daquilo pelo qual responde, seja cálice, seja

estátua; e ainda o terceiro modo (a definir previamente o que serão cálice e/ou

estátua), pondo o cálice na esfera da libação sacrificial, do mesmo modo em que

coloca a estátua produzida por Fídias na esfera do culto. A este modo de ser e

responder do utensílio e da obra os gregos chamavam télos. Equivocadamente

compreende-se télos hoje como fim ou finalidade, quando em verdade diz muito

mais acerca de sentido e plenitude. O quarto modo de responder pela integração

que conduz o utensílio ou a obra ao desvelamento seria o ourives (no caso do

cálice), e Fídias (em relação à estátua de Zeus). Mas nem o ourives, tampouco

Fídias, seriam tomados pelos gregos como causa eficiente, no sentido de fazerem

com que, pelo trabalho, o cálice ou a estátua de Zeus fossem efeito de uma

atividade. As palavras de Heidegger (2008a, p. 15) a esse respeito são: “A doutrina

de Aristóteles não conhece uma causa chamada eficiente e nem usa uma palavra

grega que a corresponda”.

No pensamento grego, o ourives, ou mesmo Fídias, (por nós incluído no exemplo),

apenas recolhe em unidade os três modos de ser e responder mencionados (a

matéria, a forma e o sentido). Tanto no que diz respeito ao cálice, quanto à obra, a

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reunião dos três modos de responder devem à reflexão do ourives e do escultor o

modo como aparecem em jogo na pro-ducão, mas não há, entre esta e as demais,

uma hierarquia, mas sim uma organicidade. Tanto no utensílio quanto na obra há a

regência e a vigência de quatro modos de responder e dever que se integram. E é

nesta integração que os quatro modos de responder e dever conduzem ao

desvelamento, levando sempre alguma coisa a aparecer em seu vigor. “Dar-se e

propor-se designam a vigência de algo que está em vigor” (Idem, p.15).

2.1.2 – A Pro-dução e o deixar-viger: poiésis e techné

Podemos perceber então, que a essência grega da causalidade corresponde a um

“deixar-viger”. Segundo palavras de Platão no Banquete, esse modo de deixar-viger,

em que algo passa da não-vigência à vigência, é uma pro-dução. Importante

ressaltar que a palavra pro-ducão aqui não deve ser compreendida no âmbito

econômico, mas em seu sentido etimológico, composta pelo verbo ducere (levar) e

da preposição pro (diante de, em frente de). “Produção é a instauração de vigor que

leva o modo de ser de algum ente para a frente da presença histórica” (LEÃO apud

CASTRO, 1982, p.22). No pensamento grego pro-dução é poiésis, pertencendo à

poiésis o trazer algo ao seu vigor. Nesse contexto não somente a pro-ducão

artística ou poética seria poiésis, mas também o movimento da própria physis, da

natureza, residindo nela a constituicão máxima da poiésis, a saber, auto-poiesis,

onde é resguardado ao próprio vigente o poder da eclosão, diferentemente da

estátua de Zeus, ou do cálice, em que, da presença do artista e do ourives, irá

depender o eclodir da pro-dução.

Na pro-dução, algo vem ao desencobrimento, ou seja, algo encoberto, velado no

ser, é desvelado na esfera dos entes. Só há pro-dução quando algo que antes não

existia no desencoberto chega ao desencobrir-se. A esse desencobrimento os

gregos chamaram aletheia. Os romanos teriam traduzido por veritas, que nos deu o

vocábulo verdade, o qual, inúmeras vezes e de modo equivocado, somos levados a

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compreender como correção. É neste desencobrimento, neste movimento da

verdade, que se funda toda e qualquer produção. Em essência, tanto poiésis quanto

techné, fazem parte do movimento da verdade, por conduzirem ao desencobrimento.

Ambas pertencem a um recolher em si que atravessa e rege os quatro modos de

deixar-viger a causalidade, levando algo ao desvelamento. Techné e Poiésis são

pro-dução.

O pensamento corrente nos leva a crer ser a técnica um simples meio para se

alcançar um fim. Mas a técnica nem sempre habitou ou se restringiu a esfera da

instrumentalidade. Ainda que isso nos cause certo estranhamento, precisamos

pensar a esse respeito. É notoriamente conhecido que a palavra técnica tem origem

grega, oriunda de techné. A Techné, entre os gregos, não dizia apenas de um fazer

manual, artesanal, designava também o agir da arte, habitando a esfera do poético,

visto atender ao apelo do desencobrimento da produção, da poiésis. Techné seria

uma forma de alethéia:

ela desencobre o que não se produz a si mesmo e ainda não se dá e propõe, podendo assim apresentar-se e sair, ora num, ora em outro perfil. Quem constrói uma casa ou um navio, quem funde um cálice sacrificial des-encobre o a ser produzido nas perspectivas dos quatro modos de deixar-viger. Este des-encobrir recolhe antecipadamente numa unidade o perfil e a matéria do navio e da casa numa coisa pronta e acabada e determina daí o modo da elaboração. O decisivo da techné não reside, pois no fazer e manusear, nem na aplicação de meios mas no desencobrimento mencionado. (HEIDEGGER, 2008, p.17).

A técnica se constitui na produção, não na elaboração de um fazer, mas no

desencobrimento que segue a pro-dução. O desencobrimento, ao modo da poiésis,

como essência da técnica, diz respeito à técnica antiga, tempo em que ainda não se

fazia distinção entre o fazer da arte e o da técnica. A arte era um saber fazer, em

que algo vinha ao desencobrimento resultando na união do pro-duzir com o

conhecer. A técnica moderna é de outra ordem, ligada às máquinas e aparelhagens.

A técnica mudou, ou mudou o modo como o homem com ela se relaciona? A

questão segue em sua complexidade, e por não ser mera pergunta, não possui

resposta objetiva. Em nosso entendimento, apesar de todos os desvios e tentativas

de separação entre a arte e técnica, a arte, ou o que hoje se produz em seu nome,

de modo inesperado talvez, ainda compartilha da mesma essência da técnica,

embora aqui já não estejamos mais falando da técnica antiga, mas sim nos referindo

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à técnica moderna. E, ainda que de modo bem diverso em relação à antiguidade, na

pós-modernidade que tem Duchamp por precursor, arte e técnica, ainda são

desencobrimento. Resta-nos compreender a que esfera pertence tal

desencobrimento. Se o fazer artístico da pós-modernidade compartilha da mesma

essência da técnica moderna, haveremos de indagar: Qual a essência da técnica

moderna?

Heidegger (2008a, p 23) buscou seu nomear na força de um substantivo:

Chamamos de cordilheira (Gebirg) a força de reunião que desdobra originariamente, os montes num mar de morros e atravessa o conjunto de suas dobras. Chamamos de ânimo (Gemuet) a força originária de reunião, donde se desprendem os modos em que nos sentimos de bom e de mau humor, neste ou naquele estado de alma. Chamo aqui de com-posição (Ge-stell) o apelo de exploração que reúne o homem a dis-por do que se des-encobre como dis-ponibilidade.

Dediquemos à técnica moderna um olhar cuidadoso. Seria ela diferente da antiga

por apoiar-se nas ciências exatas da natureza? Percorrendo o caminho desbravado

pelo filósofo, perceberemos que o contrário disso se dá, visto que, por exemplo, a

física moderna depende dos progressos da técnica e suas aparelhagens.

Acreditamos haver sim, uma co-dependência entre técnica e ciência. Já sabemos

que a essência da técnica antiga é o desencobrimento como poiésis, o

desencobrimento pro-dutor. A técnica moderna em nada se aproxima da poiésis,

sendo sua essência a com-posição, mas, mesmo em muito diferindo da técnica

antiga, também ela, a seu modo, é desencobrimento. Vejamos como isso se dá.

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2.1.3 – A técnica moderna, a arte contemporânea e o desencobrimento explorador: a obra como dispositivo

O modo de desencobrimento que corresponde à técnica moderna, cuja essência

Heidegger nomeou com-posição, é o explorador. Mas o que vem a ser um

desencobrimento explorador? A nova técnica desafia a natureza impondo

constantes modos de exploração, onde ela, a natureza, está sempre no modo da

dis-posicão, no sentido de algo a ser explorado. A dis-posição nos diz de uma

tendência dupla de exploração, onde se dis-põe de algo não apenas para que a

coisa esteja disponível em algum lugar, mas sim no sentido de algo estar dis-posto

para outra dis-posicão. A técnica moderna transforma a natureza em dispositivo.

A usina hidroelétrica posta no Reno dis-põe o rio a fornecer pressão hidráulica, que dis-põe as turbinas a girar, cujo giro impulsiona um conjunto de máquinas, cujos mecanismos produzem corrente elétrica. As centrais de transmissão e sua rede se dis-põem a fornecer corrente. Nesta sucessão integrada de dis-posições de energia elétrica, o próprio rio Reno aparece, como um dis-positivo. (HEIDEGGER: 2008a, p.20)

Dis-ponibilidade nomeia aquilo que corresponde ao modo como vige e vigora tudo o

que é através do desencobrimento explorador e possui como característica o pôr, no

sentido de explorar, sendo esta a forma de desencobrimento que faz com que o

homem transforme a natureza em objeto de pesquisa, desafiando-o a explorá-la.

Importante compreendermos que embora seja o homem a realizar a exploração que

desencobre o real como dis-ponibilidade, ele somente o faz quando já foi desafiado.

O desencobrimento como dis-posição desafia o homem. Mas, ainda que caiba ao

homem elaborar, representar, ou mesmo realizar coisas de diferentes modos, não é

ele quem controla ou determina tal desencobrimento, ele não detém poder sobre o

real, que em constante movimento, do mesmo modo que se mostra, retrai-se. O

homem apenas, ao ser desafiado pelo desencobrimento, corresponde. Tal dinâmica

se mostra de modo mais claro nas seguintes palavras de Heidegger (2008a, p. 21):

“não foi Platão que fez com que o real se mostrasse à luz das ideias. O pensador

apenas respondeu ao apelo que lhe chegou e que o atingiu”.

Se o desencobrimento da disposição só se dá e acontece quando o homem já foi

desafiado a explorar as energias da natureza, não pertenceria então o homem de

um modo mais originário do que a natureza, à disponibilidade? Este é um dos

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questionamentos de Heidegger que nos faz refletir acerca de, o homem, já estar

hoje, quer ele saiba ou não, à disposição da técnica e da ciência. A dis-posição

segue encadeamento, onde todos nós nos encontramos, de um modo ou de outro,

enredados. Contudo, o homem não se reduz a essa mera disponibilidade haja vista

ser sempre desafiado a dispor-se de modo mais originário.

Com relação à técnica moderna concluímos que vigora no desencobrimento da dis-

posição. Não se reduz a um fazer do homem, ainda que seja através do fazer do

homem que chegue ao desencobrimento. É ele, o desencobrimento da dis-posicão,

o desencobrimento explorador, quem convoca o homem. Ou seja, o homem não

controla o desencobrimento, é por ele atravessado. O desencobrimento que envolve

a dis-posição nunca é em si um feito do homem, assim como o espaço onde ele,

homem, estabelece as relações sujeito-objeto, também não é um feito seu. O

homem é sempre tomado por um apelo que o move, e assim se vê sempre inserido

no que já se revelou. Dado a vigência de seu modo de estar no desencobrimento, irá

apenas responder ao apelo do desencobrimento, tendo, contudo, a liberdade de

contradizê-lo. Ainda que não controle o desencobrimento, cabe a ele decidir com

qual desencobrimento irá se comprometer.

Tendo avistado o modo de desencobrimento da técnica moderna avancemos um

pouco mais pelo caminho que nos conduzirá a compreensão de possíveis relações

entre a técnica moderna e a arte contemporânea. Precisamos, para tanto,

compreender ainda a essência da técnica moderna. Retorna então ao pensamento a

com-posição, termo cunhado por Heidegger para definir a essência da técnica

moderna que, faz com que a técnica, como desencobrimento da disposição, não se

reduza a um mero fazer do homem.

Por “com-posição”, “Gestell”, podemos compreender “a força de reunião daquele por

que põe, ou seja, que desafia o homem a des-encobrir o real no modo da dis-

posicão, como dis-ponibilidade” (HEIDEGGER, 2008a , p.24). O autor nos esclarece

que, embora “Com-posicão” nomeie o desencobrimento que rege a técnica

moderna, ela, em si, não tem nada de técnico, e, tudo quanto pertence ao técnico

(das aparelhagens à engrenagens), respondem a exploração da com-posicão, mas

não a produz.

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Em nosso exercício de pensamento somos capazes, guiados por Heidegger, de

compreender a com-posicão como a força de reunião de um pôr, que impõe ao

homem des-cobrir o real como dis-ponibilidade segundo o modo da dis-posição.

Mas, cientes de que a com-posição, em si, não é técnica, perceberemos a

possibilidade de nela repousar também sentido outro, que diz de um abrir-se a partir

do verbo “pôr” ali inscrito. Em tal verbo podemos ouvir o ressoar de outra

possibilidade que provém do pro-por e ex-por no sentido de poiésis, e que, como

bem sabemos, também faz o real vigorar em desencobrimento. A essência da

técnica moderna põe o homem a caminho do desencobrimento que conduz o real,

de modo perceptivo ou não, à disponibilidade, mas já compreendemos que o homem

não domina o desencobrimento. Heidegger (2008a) vai nos esclarecer que, pôr a

caminho significa destinar, sendo o destino, a força encaminhadora que põe o

homem a caminho de desencobrimentos, cabendo a ele, o destino, determinar a

essência da história. Como modo de desencobrimento, a com-posicão é um envio

do destino. Contudo, devemos considerar que, embora seja o destino a reger o

homem, ele, o destino, não configura uma irredutível fatalidade, pois não é

imposição num sentido de coação. Em nosso entendimento, o homem da era da

técnica, atravessado por tais apelos, e, desafiado a se comprometer com o

desencobrimento, ao decidir por responder ao desafio de um determinado

desencobrimento co-participa do destinar-se do destino epocal.

Acreditamos que em uma época regida pelo desencobrimento como com-posicão,

tal desencobrimento desafia o homem em todas as esferas do saber. Assim,

também a arte, e não somente a técnica, é conduzida pelo caminho eleito. Como

mencionamos anteriormente, é fato vivermos na era da causalidade, em que impera

a causa eficiente. Cremos que o gesto de Duchamp revela a escolha pelos envios

da com-posicão. A partir dos ready-mades abriu-se o caminho para o

desencobrimento explorador também na arte. As vias deste desencobrimento que

prima pela causalidade, segue em larga distância da integração das quatro causas

como modos de deixar-viger, ou seja, da pro-ducão. O dar-se e propor-se da pro-

ducão na organicidade dos quatro modos, em que o artista responde e deve pelo

dar-se e propor-se da obra de um modo originário e em integração com os demais

modos de deixar-viger, é, em nosso tempo, algo raro. Na ausência da pro-dução, da

poiésis, resta apenas um mero “fazer do artista”, a “causa eficiente”, no sentido

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daquele que faz com eficiência algo que estará à disposição de uma finalidade

específica. Nesta equação, ao se subtrair do fazer do artista o responder e dever

pelo dar-se e propor-se da obra, este dar-se e propor-se se retrai. Encerrando-se a

vigência do poético se subtrai da obra também seu vigor. Obras de artistas que

enveredam pelo desencobrimento da com-posicão, como aquela que reúne a dis-

posicão para a exploração, perdem o vigor da arte. O que de antemão

compreendemos é: o fazer artístico que se aproxima da essência da técnica

moderna é reduzido a mero dispositivo. Ou seja: Duchamp rompe com a pro-dução,

tal decisão estabelece nas artes visuais a trincadura entre poiésis e techné. Por tal

trincadura a arte é tragada. O artista proclama então seu fazer como antiarte.

Quanto às suas criações, convicto de seu gesto, chamará, possivelmente por estar

ciente da distância que as separam das obras de arte, anti-obras de arte.

Quando a arte se ausenta, a obra, em nosso entendimento, transforma-se em

dispositivo para algo. A obra, ou mais adequado dizer, a anti-obra, não sendo mais

pro-dução, é reduzida a um mero fazer, e assim não excede a condição de

ilustração de conceitos. Os artistas pós-Duchamp, que tomam por base seu gesto,

almejando o controle da arte decidem determinar a totalidade do que a obra é, antes

que esta seja. A subjetividade artística, tendo por característica a ideia de controle e

a segurança, coloca o artista sob os envios do desencobrimento explorador. As

questões deixam de habitar as obras. Os artistas julgam delas terem se apropriado,

mas se isso de fato se dá, é ao modo da dis-posicão para dis-ponibilidade. Julgam

delas dis-por e assim seguem, submetendo-as ao crivo da subjetividade,

redistribuindo-as na forma econômica de conceitos. O conceito não excede a

condição de pensamento estagnado.

Como bem pontuou Heidegger (2008a, p.21): “no sentido da dis-ponibilidade o que é

já não está para nós em frente e defronte, como um objeto”. Cai a materialidade da

obra na medida em que cresce a subjetividade do artista que a vê como mero dis-

positivo conceitual. Hoje abarrotam museus e galerias, obras que atendem ao

desencobrimento como disponibilidade. Obras dis-postas para assegurarem a

possibilidade de ex-posição do pensado, ou seja, o pensamento cristalizado em

conceito. Onde impera a subjetividade a obra perde autonomia, sendo vinculada a

autonomia do artista. Sabemos que o artista pode elaborar e realizar da maneira

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que desejar suas obras. Contudo, assim como o homem não exerce pleno domínio

sobre o desencobrimento do real, também o artista não o tem sobre a arte. O artista

não é o detentor da arte, não a tem em seu poder, sob seu domínio. À arte cabe o

mostrar-se e retrair-se, o habitar ou não as obras. A nosso ver, a arte habita obras

que atendam aos envios do desencobrimento como pro-ducão, poiésis. Nas que são

meras feituras, segue ausente.

O artista é atravessado pelo apelo das questões da arte, este seu destino. Contudo,

cabe a ele a decisão de qual caminho de desencobrimento percorrer. No

contemporâneo percebemos artistas que desafiados pelo apelo do desencobrimento

explorador da com-posicão, passam a ver as obras e a própria arte como mero dis-

positivo conceitual. Rememorando as palavras de Heidegger acerca do homem,

também nós questionamos: Se o artista é desafiado e dis-posto pela dis-

ponibilidade, não teria ele próprio, distanciando-se de sua essência, tornado-se mero

dis-positivo? É o que tristemente constatamos em nosso tempo, sobretudo entre os

que almejam e pregam a qualquer preço o reconhecimento “artístico”. Assim, como

teria nos dito Heidegger acerca do seringueiro que está à disposição da indústria de

látex, está também grande parte dos artistas contemporâneos - de modo consciente

ou não, e ainda que seus discursos bradem o contrário - à disposição do mercado

que almeja dominar a arte.

Agarrados à convicção do que se insinua no verbo “por”, inscrito na palavra com-

posicão mas que, também diz, do pro-por e do ex-por da pro-ducão poética, é que

renovamos nossas esperanças, bem como nossa confiança na arte como

movimento originário da verdade. Sobretudo quando avistamos em meio aos

entulhos conceituais de nosso tempo, obras verdadeiramente poéticas, onde o vigor

da arte é evidente. Em nosso tempo, assim como sempre foi e há de ser, é óbvio, há

os que produzem obras de arte, visto que, cabe ao artista, em sua condição humana

que o desafia sempre a dis-por-se de modo mais originário, não circunscrever a si e

as obras à esfera da mera disponibilidade para algo.

Sabemos e sempre haveremos de nos lembrar de que o artista não domina o

desencobrimento, apenas responde a seu apelo, e é por ele atravessado. O apelo

do desencobrimento reivindica o homem a ser homem. Entre os homens há os que

receberam por doação a condição e a possibilidade de serem artistas. Somente

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atendendo ao apelo do desencobrimento o artista chega a ser artista. Sempre que

ele se lança no empenho de propósitos, na execução de ações, na procura de

sentidos “sempre que se solta em figuras e obras” se insere no que já se revelou.

Cabe ao artista decidir se: lançar-se-á na direção do que o conduzirá a feitura de

obras como mero dis-positivos ou se deixar-se-á tomar pela arte no

desencobrimento da pro-dução que conduz ao desvelar das obras de arte.

Quando artistas como Duchamp decidem por encarar a arte como pesquisa e

investigação com a intenção de produzir obras que servirão como dis-positivos para

conceitos, sejam estes de ordem cultural, contra-cultural, políticos etc, e, não se

deixam tomar pelo apelo da arte que conduz ao desencobrimento da pro-dução, ele

se torna, de pronto, comprometido com outra força específica de desencobrimento.

Tal desencobrimento se trata do mesmo que rege a técnica moderna e que conduz o

artista a explorar a arte do mesmo modo que o homem explora a natureza. A arte se

torna objeto de pesquisa exploradora, especulativa, até que a obra de arte

desaparece na anti-obra, que segue, em nosso ver, os envios da com-posicão,

criada para ser dis-posta como dis-positivo conceitual.

A com-posicão pertence ao destino do desencobrimento. Quando a com-posição é

no desencoberto a pro-ducão é no encoberto. O fazer artístico ao aproximar-se da

essência da técnica moderna também caminha pelo espaço livre do

desencobrimento. Importante lembrar sempre: não estamos trancados. Artistas,

historiadores, críticos e teóricos não precisam se entregar às cegas, tampouco

necessitam debaterem ferozmente, como quem ataca força demoníaca. Tanto os

caminhos quanto os descaminhos da arte no contemporâneo, a nosso ver, provém

de escolhas.

Ao nos colocarmos a caminho do desencobrimento, este se desenha em

possibilidades. Dentre as possibilidades, a dis-posição é a que habita o

desencobrimento como com-posição. Uma vez enveredados por tal

desencobrimento a ele caberá a proveniência de todas as medidas e parâmetros

(sim, pois esta via é a da causalidade, da instrumentalidade) que governarão o

pensar e o fazer em arte. Fecha-se assim a possibilidade da pro-dução como o que

encaminha o artista em um empenhar-se de modo mais originário, em que, a ele, é

dado pensar a essência do que se desencobre e do próprio desencobrimento.

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Acreditamos que esse estar jogado neste “entre caminhos”, é o que expõe o artista

ao perigo. Perigo do próprio destino, pois no destinar-se dos desencobrimentos há

sempre o perigo do equívoco do artista, da escolha por enveredar-se pelo caminho

da causalidade, que o conduzirá a supor-se, entre outros desastres, como a causa

da arte.

Assim, mais do que aceitar ou negar o feito de Duchamp, ou nos esforçar por

separar ou juntar arte e técnica, pretendemos acenar a necessidade de

compreendermos o destino epocal deflagrado em seu gesto. Acerca do destino e

das épocas Heidegger (2005, p.257) teria nos dito:

Quando Platão representa o ser como Idéa e como Koinonía das ideias, Aristóteles como enérgeia, Kant como posição, Hegel como Conceito absoluto, Nietzsche como Vontade de Poder, não se trata de doutrinas produzidas ao acaso, mas palavras do ser, que respondem a um apelo que fala no destinar que a si mesmo oculta, que fala no “Se dá ser”. Cada vez retido na destinação que se subtrai, o ser se liberta da retração para o pensamento com sua multiplicidade epocal de transformações.

O homem, ciente do fato de que não controla os modos de desencobrimento, e que

tais modos de desencobrimento são destinações que fazem parte do destino epocal,

pode fraquejar, julgando-se joguete do destino. Contudo, devemos nos lembrar

sempre, que destino não é fatalidade, e que, entre as possibilidades humanas existe

aquela que faculta realizar escolhas.

Compreender o destino implica saber ouvi-lo, e, relembrando uma vez mais as

inspiradas palavras de Heidegger, afirmamos que só haveremos de ser

verdadeiramente livres num envio (já que artistas ou não, antes de tudo somos

humanos) quando nos fizermos ouvintes e não escravos do destino. No mais, ao

contrário do que proclamaram os modernos, e também em eco os pós-modernos,

não precisamos afastar a arte da técnica, precisamos sim, avistar em tudo que é

técnico o poético, e se for para evitarmos algo, que seja a poesia técnica.

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2.2 - Objetos indiscerníveis e significados corporificados – A relação sujeito-

objeto e os descaminhos da obra como dispositivo.

Cabe-nos, em nossa prospecção análoga ao ofício do restaurador, olhar para trás,

mas, enquanto atividade de pensamento, devemos realizar ao mesmo instante a

introspecção, e, revendo questões, refletir. Voltemos então um pouco mais ao já

visto, buscando, na rigidez do já conceituado por teóricos, a flexibilidade do a se

pensar. Lembrando, contudo, que o olhar prospectivo se volta ao já visto, mas

também caminha em busca de um lançar-se adiante. Dirijamo-nos então à teoria

dos objetos indiscerníveis de Arthur Danto (2010), para avistarmos também no fazer

teórico os descaminhos mencionados acima.

Por meio de mecanismos da filosofia analítica Danto (2010) buscou estabelecer

pensamento acerca da arte e sua filosofia. A obra mencionada acima pode, até certo

ponto, ser compreendida como uma espécie de incubadora das principais ideias do

autor que culminariam em sua principal tese no campo da arte, a saber: o

“acabamento” da história - desenvolvida a partir dos estudos do autor acerca da Pop

Art, produção artística que teria, segundo ele, sinalizado um modo de se fazer arte

após o que chamou de “o fim da arte”. Partindo de um olhar dirigido a Pop chega ao

termo “objetos indiscerníveis” e a questão dos “significados corporificados”,

considerado, por muitos, de extrema relevância ao exercício da crítica que busca

“conceituar”, definir obras de nosso tempo, bem como firmar posicionamento da

história da arte diante delas, mas que, a nosso ver, reverbera a questão do fazer

artístico que leva a objetos ditos de arte que não excedem a condição de

dispositivos.

Mas o que seriam exatamente os “objetos indiscerníveis”?

No pensamento de Danto (2010), tais objetos são os que imbricam questões

relativas à mimese, bem como da problemática “arte e vida”. Para o autor, objetos

indiscerníveis são aqueles que, ainda que idênticos, pertencem a diferentes esferas

de valoração, onde um deles é apenas um objeto corriqueiro e o outro, é um objeto

de arte.

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Danto, crítico de arte e professor emérito do Departamento de Filosofia da faculdade

de Colúmbia, foi, inicialmente, artista. Contudo, as condições do mundo da arte em

1960 o conduziram a renunciar a concepção de pintura romântica que havia nutrido

e compartilhado com seus pares nos anos 1950. Abandonou a atividade artística por

não desejar enveredar pela Pop Art. Todavia, em contrapartida a aversão estética

que nutriu inicialmente pelo movimento pop, (assim como o minimalismo) o pop

pareceu-lhe instigante do ponto de vista filosófico. Segundo afirmações de Danto

(2010), tal interesse despontou após o contato com uma reprodução, na revista

Artnews (a então mais importante revista de arte dos EUA), da tela O beijo, de Roy

Lichtenstein, exposta na galeria de Arte de Leo Castelli. Ele teria ficado perplexo,

pois nunca teria cogitado a possibilidade de uma tirinha de história em quadrinhos vir

a ser exibida numa galeria daquele porte. Sua primeira reação foi indignar-se, afinal,

acreditava em elevados ideais de pintura. A seguir Danto teria tomado a resolução

de olhar o quadro de perto. A referida pintura de Lichtenstein teria então mudado

completamente seu modo de ver, obrigando os olhos a se desacostumarem do que

até ali teria julgado como arte. Continuou em busca de outras galerias que

mostrassem mais daquela novidade a que chamavam Pop Art. Somaram-se então

aos artistas da Pop de seu interesse Claes Oldenburg e Andy Warhol.

O grande impacto que determinaria novas estruturas no pensamento de Danto

provém de Andy Warhol e suas embalagens de sabão Brillo que formavam grandes

pilhas nas galerias, semelhante as do supermercado. Ao contrário do crítico Clement

Greenberg (1986), aceitou-as prontamente, para, a seguir, perguntar-se o porquê

daquelas pilhas de caixas ali na galeria serem arte enquanto as do supermercado

não eram. Teria percebido no corpo da dúvida a dimensão filosófica do problema

materializado em caixas de sabão. Todo seu pensamento posterior, desenvolvido

em Após o fim da Arte (2006), teria nascido desse seu encontro com a Brillo Box.

Os filósofos nos dizem que coisas que parecem completamente diferentes umas das outras são iguais, enquanto coisas que são completamente idênticas são diferentes. Era exatamente isso o que se passava entre a Brillo Box [Caixa Brillo] de Warhol, exposta na galeria, e as mesmas embalagens de sabão em pó Brillo armazenadas em depósitos. Dizer que a diferença em última análise, se deve à diferença entre as instituições da galeria e do depósito é escamotear o problema. (DANTO, 2010, p.16).

Segundo Danto, em dado momento da história da arte ser um “objeto” de arte

significava gozar de direitos e privilégios negados aos objetos ditos comuns, a saber:

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ser respeitado, protegido, estudado, valorizado, reverenciado. Houve tempo em que

obras de arte assumiram a conformação de esculturas em toda a solidez de nobres

mármores das montanhas da Itália, ou ainda de pinturas sobre telas de linho

preparadas com esmerado afinco a fim de receber séculos de tradição em cores a

óleo. Enfim, eram reconhecidas, entre outras coisas, pela nobreza dos materiais.

Isso faz pensar qual teria sido o motivo, força ou circunstância a firmar a Brillo Box,

uma simples caixa de sabão, entre os ditos “objetos” de arte, tornando-a apta a

usufruir das concessões feitas às obras. E mais: por que as caixas comuns de sabão

Brillo não eram também dignas de tais privilégios?

Para Danto, e essa é a “questão” dos objetos indiscerníveis que desenvolve, o

motivo que leva uma caixa de sabão a galerias e museus, elevando-a a condição de

obra, enquanto a outra permanece no supermercado, não circulam por universos

perceptivos, já que ambas, aparentemente, são idênticas. A diferença entre elas, e

por extensão, entre todos os demais objetos e as obras que com estes tenham uma

identidade visual, são perceptivamente indistinguíveis. Sabemos que as caixas de

Warhol eram feitas de compensado, enquanto as do supermercado, de papelão,

mas, ainda que fosse ao contrário, para Danto em nada se abalaria a questão

filosófica apresentada. A pergunta para ele persiste: O que faz a Brillo Box de

Warhol apta a ser elevada ao status de objeto de arte?

Lançando-se na busca por uma diferenciação entre ambas, analisa que os dois

objetos possuem causas distintas. Segundo ele as causas por trás da simplória

embalagem pertencem à ordem prática e se referem às necessidades imediatas

relativas ao transporte do produto (a saber: o sabão) das fábricas aos galpões de

armazenamento, e destes, às prateleiras dos supermercados, a fim de serem

adquiridos por consumidores finais. Sua aparência visa apenas diferenciá-la das

demais caixas de sabão da concorrência, tornando-a reconhecível, localizável entre

diversas mais em prateleira divida com outras marcas. Já a Brillo de Warhol para ele

pertenceria à outra ordem ou encadeamento, trazendo em seu “DNA” toda a história

da teoria da obra de arte, como também a história recente da arte. Segundo Danto

(2010), para que esta caixa de sabão se diferencie da que está no supermercado e

chegue a ser vista como obra, ou como um “objeto” de arte, faz-se necessário um

conhecimento prévio da história, como também dos vários debates ocorridos acerca

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das muitas teorias da arte; tais conhecimentos se tornam essenciais ao

reconhecimento de seu valor artístico. A nosso ver, essa colocação evidencia a

questão da obra como algo a dis-posicão de conceitos, que a faz carecer de

memorial descritivo que a defenda e sustente.

Ainda do ponto de vista de Danto, em nenhum momento da História da Arte,

(excetuado o momento presente, ou seja, o que se convencionou chamar

contemporâneo) a existência da Brillo de Warhol teria excedido a condição de mero

objeto chegando a ser elevada a condição de obra. Danto (2010 p. 17) defende que

o “trabalho só se tornou viável como arte quando o mundo da arte – o mundo das

obras de arte – estava pronto para recebê-lo entre seus pares”. Do ponto em que

observamos, dadas às circunstâncias, acreditamos que este “mundo da arte” seja o

mundo desvelado sob o jugo do desencobrimento explorador que na era da técnica

segue os envios da com-posicão, onde a “obra” passa a ser mero dis-positivo para

algo. Mundo que, nas artes visuais, cremos, iniciou-se em Duchamp. Assim, a caixa

Brillo é mero veículo para representação de conceito desenvolvido pelo artista Andy

Warhol.

Para Danto, as obras, os “objetos de arte”, como veículo de representação,

encaixavam-se perfeitamente à filosofia da representação que ele buscava

estabelecer, ainda que reconhecesse que nem todos os veículos de representação

fossem obras de arte. Surge para ele então a necessidade de encontrar uma

condição diferenciadora entre as obras e os meros veículos de representação.

Assim, desenvolveu a ideia dos “significados corporificados”, ou seja, ainda que a

obra de arte seja um veículo de representação, é um veículo diferenciado, visto que

corporifica significados. Com base nisso defende a importância da interpretação das

obras, acreditando ser só através dela, da interpretação, que os significados se

abram ao entendimento. Em sua defesa traz aquela que foi sua mestra, Susanne K.

Langer, e que teria estabelecido a diferença entre formas discursivas e formas

presentificadoras. Para Langer (apud DANTO, 2010, p.19) “as obras de arte

presentificam seus significados enquanto o significado de uma descrição é exterior a

esses significados.” Danto defende que a chave para entender a corporificação não

passa pela descrição, mas pela interpretação.

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“A interpretação de obras de arte é o cerne do exercício da critica de arte. O crítico procura identificar o significado de uma obra e mostrar como o objeto em que o sentido está corporificado efetivamente o incorpora.” (DANTO, 2010, p.19)

Destaca que o problema fundamental da filosofia da arte seria explicar como a obra

se relaciona com o objeto. A obra sendo o objeto acrescido de significado, onde a

interpretação seria capaz de explicar como o objeto traz em si o significado

apresentado ao observador; em que a reação do observador será de acordo com o

modo como o objeto apresenta tal significado. Esclarece que o objeto apresentado

possui propriedades que pertencem à obra, mas também outras, que, ainda que ali

estejam, não pertencem a ela. Reconhece ser um bom exercício buscar distinguir

tais propriedades.

Danto (2010) se refere a significados corporificados ao falar das obras. Julgamos

importante ressaltar que em nosso entendimento a expressão “significado” distancia

a obra da essência da arte. A nosso ver, obras de arte não são significados, mas

sim, sentidos corporificados. Acerca do sentido das obras de arte falaremos adiante.

Com relação ao pensamento de Danto, há ainda outra importante ressalva a ser

feita: trata-se do uso da expressão “objeto” referindo-se às obras de arte. A nosso

ver, há sempre uma associação de ideias ao falarmos/usarmos a palavra “objeto”.

Acreditamos que objeto implica sempre a existência de um sujeito. Quando o objeto

em questão é do campo da arte, de imediato, tendemos a personificar tal sujeito com

a figura do artista. Mas seria mesmo o artista o sujeito da arte? Acreditamos que o

uso da expressão “objeto de arte”, bem como o entendimento da obra como objeto

acrescido de significado possa, para dizer o mínimo, ser perigosa, pois potencializa

a subjetividade artística, bem como a legitimação de toda produção por demandas

críticas, na mesma medida em que anula a autonomia da obra. Não há dúvidas que

desde a modernidade a problemática sujeito-objeto se instaurou e que, no

contemporâneo, tendemos a observá-la com a naturalidade de um truísmo, dado a

instrumentalidade operacional científica de “nosso tempo”. Emmanuel Carneiro Leão

(2010, p 161) nos diz que a diferença sujeito/objeto nem sempre existiu, “nasceu

com a determinação de ser, como funcionalidade, e cresceu com a decisão da

verdade, como operatividade.”

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Os artistas na modernidade construíram para si um objetivo: alcançar a autonomia e

a liberdade de criar, quebrando os paradigmas instituídos anteriormente. Guiados

por tal objetivo, elaboraram manifestos, traçaram metas, e suas ações cresceram e

impulsionaram (em direção ao lugar no qual hoje se encontra) o fazer artístico, ou

seja, lugar de onde se julga poder submeter a arte às projeções do objetivo traçado.

Assim, ao objetivarem o processo de criação, a produção artística terminou reduzida

a um mero executar. Em inúmeras situações obras foram (e ainda são) submetidas

ao jugo de uma “originalidade” distorcida, descabida, que as reduzem a meros

objetos, aos quais certo significado será anexado pelo sujeito, a saber: o sujeito-

artista. Assim chegamos aos objetos de “arte”, muitos deles indiscerníveis dos

objetos comuns. Contudo, em nosso entendimento, o problema se refere menos a

indiscernibilidade, que ao esvaziamento poético que se estabelece a partir da

operacionalização conceitual deste fazer, com seus inúmeros métodos, que diz

combater as regras de outrora impostas aos artistas, mas que acaba por criar uma

nova súmula: a conceitual. Ou seja, há uma total liberdade, o que valia antes

continua valendo, há a “liberdade” de que tudo seja arte, contanto que o artista seja

capaz de defender sua obra conceitualmente. Para que uma obra seja legitimada

não há necessidade de que seja boa, basta para tanto que o discurso do artista seja

adequado. Esse sim precisa ser bom, eloquente, reconhecido e legitimado por seus

pares. Instaura-se uma espécie de corporativismo artístico.

Retomando a questão dos objetivos, temos que, um objetivo estabelecido - como

bem nos esclarece Emmanuel Carneiro Leão (2000 p. 161-187) determinará sempre

um método que implicará num conjunto de decisões, na escolha do caminho, bem

como recursos e meios a empregar no percurso. Ninguém discorda que do método,

da operacionalização, do esboço e definições prévias, deste elaborar da ação,

dependerá o sucesso, ou seja, o atingir da meta, a saber: o objetivo. Em geral, não

questionamos tal postura por ela nos parecer óbvia, sensata. O lamentável é que, de

modo geral, o óbvio tende a silenciar as questões. Contudo, Carneiro Leão (Idem)

nos instiga a ouvi-las, ao dizer que, apesar da sensatez do óbvio ser o abrigo da

ciência e de todo saber, por parecer inquestionável, há sempre a possibilidade de

nos aventurarmos corajosamente pelo não saber, onde o pensamento questionador

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ainda ressoa. Aventuremo-nos, portanto, pelas trilhas do não-saber, aquelas ainda

não mapeadas pela instrumentalidade que domina os saberes instituídos.

No contemporâneo impera a relação sujeito-objeto e artistas nada querem saber do

não saber. Hoje, grande parte deles vê seu estar no mundo de modo diferenciado,

nada semelhante aos artistas de outrora, sobretudo daqueles que produziam arte na

longínqua Grécia. Elegem, como dito anteriormente, objetivos, e a partir destes

traçam metas: sabem muito bem onde estão, qual caminho devem percorrer e

aonde irão chegar. Seguem dentro da zona de conforto, amplamente mapeadas pelo

GPS institucional. Tudo isso sob o lume da razão. O caminho a se percorrer é o do

conceituar. O objetivo alcançado resultará no objeto de “arte”. Afirmam pensar seu

ofício. Afinal já não se trata de um mero produzir. Tudo é em razão do conceito. Por

vezes sequer é preciso executar a obra. Mas vale a elaboração conceitual do artista.

Toda medida, direção e parâmetros partem do eu. Ter uma meta estabelecida em

uma relação às claras com seu fazer, determinar previamente a totalidade do

alcance de uma obra (visto que já nasce cerceada pelo conceito) é o que o move. O

pleno conhecimento e controle de seu fazer é considerado o grande avanço. A

questão que se estabelece é: isso o faz mais artista do que aquele que produzia arte

antes de tais objetivos serem traçados? Ou ainda, a obra contemporânea possui

maior valor artístico (e não nos referimos a valor de mercado, mas a valor poético)

que uma obra produzida por aqueles que viam na arte um sentido sagrado? Ou seja,

por exemplo, entre os etruscos, gregos ou egípcios, em que tais considerações

acerca deste objetivo seriam absurdas, inimagináveis?

A produção contemporânea nos desorienta, por seu caráter contraditório. Apesar da

suposta objetividade, há um exacerbado culto a subjetividade artística, e ainda

assim afirma-se não ser este o tempo do individual, mas sim da coletividade. Afinal,

há que se firmar a comunidade artística. O trabalho, o fazer artístico, o objeto de

arte, não deve ser resultado de uma singularidade, de um eu, pois isso o faria

empobrecido, seria mero idealismo, subjetivismo e até individualismo. Por outro

lado, o artista credita a si a arte, proclamando-se senhor de seu ofício. Não há

espaço para diálogo com o mistério, doação e entrega. Só racionalidade. O artista é

um estudioso que conhece e joga com toda tradição que o precedeu, contanto seja

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sempre ele, o artista, a medida. Todas as metas para alcançar o objetivo a ser

laureado com o objeto de arte partem de si. Mas será que deste modo chega-se

mesmo a um objetivo? Sim, responderiam eles em coro, os objetos de arte

contemporâneos são frutos de objetivos bem traçados e desenvolvidos. O objetivo

é: Deixar claro que arte não é algo destinado a fruição estética, é pensamento. Mas

insistimos: será que deste modo, em meio a tanta subjetividade, atinge-se mesmo

um objetivo?

Parafraseando Carneiro Leão (2000, p.165) questionamos: Tal objetivo em verdade

não teria se tornado ao longo do caminho um subjetivo?

O artista, ao se colocar em posição de sujeito em relação à arte, tem a ação movida

pelo ego, e este o entorpece e cega em relação ao mistério da criação. Não ser

capaz de entrever e flertar com o mistério provoca esvaziamento poético. Perceber a

obra como objeto e a si como o sujeito conduz a equívoco maior, o de julgar

controlar a arte e seus modos de desvelamento, desencobrimento. Tal postura mais

que revelar pretensão, configura tolice. Como se coubesse ao homem controlar a

realidade, como se ele não fosse apenas parte dela.

Nenhum objetivo faz de alguém artista. Ao contrário, o artista ao colocar-se em

relação sujeito-objeto com a arte só faz encobrir a verdade da arte, pois tentando

submetê-la ao seu domínio, abre-se caminho para o desencobrimento explorador,

onde a obra, reduzida a objeto que corporifica significados, finalidades, é reduzida a

mero suporte para conceitos. Acreditamos, portanto, que a questão dos objetos

indiscerníveis vai muito além de objetos que não podem ser distinguidos pela mera

aparência. Danto (2010) nos diz que o que os difere, o que faz com que um seja arte

e o outro não, é o significado que um deles carrega. A nosso ver, para além das

aparências, os objetos indiscerníveis unem-se, aproximam-se, justamente por

carregarem tal significado, a existência de ambos se unem pela finalidade. Ambos,

enquanto objetos, possuem finalidades. A finalidade de um: portar sabão; do outro:

portar conceitos. Mais que a aparência, é essa condição de serem dis-positivo para

algo, para finalidades, que os tornam tão semelhantes, estabelecendo a descrença

na arte que presenciamos na maioria dos espectadores em nossos dias. Tais

objetos são criados com uma finalidade, ou seja, como nos disse Danto (2010),

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“corporificar um significado” que se baseia em um conceito criado pelo artista. Por

habitarem a esfera dos objetos existem para o cumprimento de um objetivo, para

suprir uma necessidade específica. O que segue esquecido é que a Arte não supre

necessidade, é necessidade. Quanto à finalidade, cremos que não seja algo próprio

às obras de arte, elas não possuem finalidade. Obras não corporificam significados.

Obras são do âmbito do télos, do sentido. Ao defendermos tal ideia, reações

contrárias se manifestam e podemos escutar o erguer das vozes que dirão:

Mas então o que é o artista? Um marionete de força oculta, misteriosa?

Não é legítimo que seja objetivo em todos os seus empenhos, mostrando assim a

seriedade de seu fazer?

Para algo ser correto não haverá de ser objetivo?

É previsível que na era da ciência e da técnica haja os que defendam a objetividade

como máxima regência dos fazeres e saberes. Obviamente, a ciência não é algo

subjetivo. Dizem. No domínio da ciência não existe argumentação a se erguer e

firmar fora da razão, da certeza. A ironia é que a ciência teve inúmeras vezes que

rever seus paradigmas. Não teriam sido poucas às vezes em que o movimento do

real desmentiu seus ditos, revelando-os em contraditos. Ainda segundo Carneiro

Leão (2000), os defensores da objetividade argumentariam que é a não-objetividade

que toma o sujeito por parâmetro para pensar a realidade e enveredam pelo

equívoco da subjetividade.

No subjetivismo estaríamos enredados pelo idealismo e relativismo. Observando as

atitudes humanas sob o lume da lógica, somos conduzidos a tomar como óbvio que,

se algo não for objetivo é subjetivo. Se não for realista é idealista e, não sendo

objeto é sujeito. E assim segue a lista das dicotomias que insistem em “fatiar” o real

em oposições estanques. A ironia é que não há objeto sem sujeito, e como nos diz

Carneiro Leão (2000), tudo se corresponde como em uma gangorra: ora sujeito, ora

objeto. Os que por sua vez condenam a objetividade dirão que a arte, assim como a

realidade, não deve e não pode ser objetivada. Não há como medi-la pelo raciocínio

lógico-científico. E que, somente o sujeito, no caso o sujeito-artista, adequa-se em

profundidade à arte. Tal postura é arriscada por lançar o artista no labirinto do ego.

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O artista contemporâneo, que vive o desencobrimento explorador, optou por uma

relação sujeito-objeto com seu fazer. Tal relação, em nosso entendimento,

compromete o vigor da arte, e, mutila no artista o que lhe é próprio. Pois com o ego

inflado, com o culto exacerbado do eu, abre-se fenda por onde se esvai sua

identidade, conduzindo-o a perda de si mesmo em uma falsa ilusão de controle. E

assim, distante da poiésis e do poeta que poderia ter sido, torna-se um “fazedor” de

objetos. O equívoco vem do julgar-se abrigado e fortalecido pela luz da razão,

quando é do escuro da origem que pulsa sua força criativa. Após as considerações

feitas acerca do desejo de alguns artistas em dominar a arte em seus modos de

desencobrimento, e o conflito com sua origem, vem-nos ao pensamento a sábia

história do arqueiro de Chuang-tzu que a escrita de Carneiro Leão (2000, p.168)

generosamente nos repassa:

Quando um arqueiro atira sem alvo nem mira, está na originariedade de sua realização de atirador. Quando atira para ganhar, instala-se em sua realidade uma cisão entre atirar e ganhar. E já fica nervoso. Quando atira por um prêmio, fica cego. Pela cisão vê ao mesmo tempo dois alvos. Sua realidade é a mesma, mas as divisões o cindem. Ele se preocupa mais em ganhar do que em atirar, vê mais o prêmio do que o alvo. A necessidade de vencer lhe esgota a força de identidade.

Parafraseando uma vez mais o pensador, agora acerca do vigor e identidade do

real, em relação às diferenças apontadas desde o arqueiro na história de Chuang-

Tzu, podemos também pensar o vigorar e o esvair-se da arte na tensão artista/não-

artista, pro-duzir/fazer, necessidade de produzir/reconhecimento como meta de um

fazer, obra de arte/objeto.

O artista não domina o desencobrimento da arte como movimento do real, assim

como o homem não domina o desencobrimento da técnica, não é ele, o artista, a

determinar a realidade da obra de arte, nem mesmo o seu “coeficiente artístico”19,

como teria dito Marcel Duchamp (2004) . O artista é apenas parte do mistério da

eclosão da arte, ainda que responsável por sua pro-dução, por suas escolhas como

ser-aí, ainda que seja um pensante. Produzir arte não depende apenas da “aptidão

19

O coeficiente artístico seria, para Marcel Duchamp, como que uma relação aritmética entre o que permanece inexpresso ainda que intencionado e o que é expresso não intencionalmente. Ou seja, uma média entre tudo o que o artista quis que estivesse na obra e não está lá, e o que lá está independentemente de sua intenção.

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natural”, ou seja, das possibilidades que lhe foram doadas (implica também escuta),

tampouco depende apenas do domínio técnico (ou seja, dos aparatos de ordem

instrumental) seja da técnica manual ou conceitual; muito menos dos seus desejos.

Não é o artista que produz o vigor da obra de arte, o artista produz apenas a obra

(caso contrário não existiriam artistas medíocres, todos seriam brilhantes). Não está

em seu poder enquanto artista controlar os desígnios da arte.

Algumas notas acerca de artista, obra e mecanismos da criação

Gilvan Fogel (2009) realiza profícuos esclarecimentos acerca do fazer, do pro-duzir

humano. Acompanhemos suas reflexões e elas promoverão esclarecimentos acerca

do ser artista. O homem não é previamente isto ou aquilo, o homem seria um oco,

em que possibilidades para possibilidades se dão. Assim não há um homem

previamente pescador, guerreiro, escritor ou artista, mas sim há a ação do pescar

que faz daquele homem que pesca um pescador. Assim também com o guerreiro,

com o escritor, com o artista. Pescar, escrever, guerrear são possibilidades de ser,

de vida, de existência. Obrar em arte não é uma ação do sujeito artista pré-existente,

assim como pescar não é uma ação do pescador pré-existente. Se dá pescador a

partir da pesca, se dá artista a partir da arte. Assim como o pescador é obra do

pescar, artista é obra da arte. Artista se dá no acontecimento da obra de arte.

O artista não deve se apegar a obra, a forma, muito menos a equivocada ideia de

obra como objeto. Deve compreender sempre que para além da forma concreta e do

“objeto”, a arte é uma força que o atravessa. Paul Klee (1996), artista que soube se

deixar atravessar pelos mistérios da arte, já teria nos dito que tal mistério se

assemelha ao da criação do cosmo. Próximo a algo que chame de um ordenar-se.

Onde a forma, ou melhor dizermos, o figurar da obra, dá-se. Ainda a este respeito,

este que tanto compreendeu do figurar da obra nos disse:

A libertação dos elementos, seu agrupamento em subdivisões menores o desmembramento e a reconstrução em um todo sob diversos aspectos ao mesmo tempo, a polifonia pictórica, a obtenção da estabilidade através de um equilíbrio de movimento, todas estas são complicadas questões formais, cruciais para se dominar o problema da forma mas ainda não são arte em uma esfera mais elevada. Nesta esfera mais elevada, por detrás da pluralidade de sentidos, há um mistério derradeiro, e a luz do intelecto, lastimavelmente se apaga. (KLEE: 1996, p. 188)

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A nosso ver, artista não é sujeito, obra não é objeto, tampouco deve configurar

objetivo do artista dominar a arte em seu desvelamento. A obra não é paciente do

agente artista, muito menos a arte. O artista pro-duz a obra, mas é a arte quem põe

a obra em obra. O obrar da obra independe do artista. Produzir uma obra de arte em

muito excede a convergência entre aptidão e técnica, caso contrário, por toda parte

nos depararíamos com grandes obras de arte. Somente no vigorar da arte

identidade e diferença se articulam e o artista chega a ser artista e a pro-ducão

chega a ser obra verdadeiramente artística. O artista, portanto, deve amar a arte

pela arte mesma, e não por qualquer outra razão ou circunstância. Deve amar sua

necessidade de arte. Sabemos o quanto de estranhamento tais ideias podem

despertar, sobretudo por ir de encontro a certezas já amplamente consolidadas.

Sabemos o quanto é árduo abrirmos mão de nossas crenças. Não é confortável

aceitar-se parte de algo maior, desconhecido, que só nos é concedido entrever, haja

vista ter o homem cruzado a modernidade com a ilusória ideia de controle. Óbvio

que não se trata aqui de tomarmos o artista por médium ou algo semelhante, mas

sim de nos aprofundarmos no mistério da criação, aproximando-nos da origem, da

essência, daquilo que, segundo palavras de Heidegger (2008a) é o que se mostra

por último. Devemos, ainda que aos poucos, deixar-nos tomar pelas questões

originárias, de onde nos acenam a Linguagem e a Memória. Por ora, a respeito da

relação artista-obra e todo o mistério que envolve a criação artística, ouçamos o que

a poesia nos des-vela, através do poeta Ivan Junqueira em O Poema:

Não sou eu que escrevo o meu poema: ele é que se escreve e que se pensa, como um polvo a distender-se, lento, no fundo das águas, entre anêmonas que nos abismos do mar despencam.

Ele é que se escreve com a pena da memória, do amor, do tormento, de tudo o que aos poucos se relembra: um rosto, uma paisagem, a intensa pulsação da luz manhã adentro.

Ele se escreve vindo do centro de si mesmo, sempre se contendo. É medido, estrito minudente, música sem clave ou instrumentos que se escuta entre o som e o silêncio.

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As palavras com que em vão o invento não são mais que ociosos ornamentos, e nenhuma gala lhe acrescentam. Seja belo ou, ao invés, horrendo, a ele é que cabe todo o engenho,

não a mim, que apenas o contemplo como um sonho que se sustenta sobre o nada, quando o mito e a lenda eram as vísceras de que o poema se servia para ir se escrevendo.

Temos muito a aprender com os poetas...

Porque tanto nos dói saber que não sabemos? Por que tanta resistência ao não

saber? Já teria nos dito também Clarice Lispector (1999, p.45) acerca “da vertigem

que se tem quando num súbito relâmpago-trovoada se vê o clarão do não-entender”.

Aceitar o não-entender, abrir mão de nossos objetivos, desistir da relação sujeito-

objeto se revela desestabilizador, para dizermos o mínimo. Precisamos, contudo,

encarar o que se nos mostra, buscando pensar criticamente acerca das

consequências advindas deste modo objetivo-subjetivo de estarmos no mundo. A

relação do homem com a arte seja objetiva ou subjetiva é equivocada, visto que

impositiva. E, como nos diz Emmanuel Carneiro Leão (2000), ao traçarmos um

objetivo, já nos enredamos em suas imposições e a pre-ocupação nos impede de

perceber o livre fluxo da realidade. Na era da técnica moderna artistas seguem o

envio de um objetivo e assim objetivam o fazer artístico e se tomam por sujeitos da

arte. Nesta distorção da originalidade, obras se tornam objetos. Esse é um dos

modos de sermos, um modo de desencobrimento no nosso destino epocal, onde

vemos, por nossas escolhas, a arte ausentar-se das obras, em retraimento. Já é

chegado o momento de compreendermos as destinações epocais, e abandonarmos

o tatear cego, onde, como teria nos dito Heidegger, em meio a tanta técnica não

chegamos a conhecer a vigência da técnica e mesmo depois de tanta estética não

somos capazes de preservar a vigência da arte.

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2.3 - Télos: arte, técnica e a questão do sentido Mais algumas considerações acerca da técnica.

Todo artista sabe da importância da poética, da arte. Todo estudante de arte foi, em

dado momento, apresentado por seus mestres à importante obra, a Poética de

Aristóteles. Contudo, a maioria de nós talvez, ainda não tenha atentado para “o

problema da poética de Aristóteles”, do qual nos fala Emmanuel Carneiro Leão

(2000) em ensaio homônimo. Assim, indagamos: Em que consiste tal problema?

Obviamente não há um problema na ou com a obra de Aristóteles em si, o problema

da poética de Aristóteles se delineia quando voltamos o pensamento em direção à

escolha das palavras utilizadas na tradução do título da referida obra. A escolha

vocabular sinaliza um “desvio” no pensamento ocidental acerca da técnica. O título

original da obra em grego, ao ser comparado com sua tradução, aponta questão que

não deve ser ignorada, relativa aos envios da técnica no contexto da poética.

Mesmo sendo a técnica em nosso tempo amplamente difundida e conhecida, ao se

traduzir o título da obra de Aristóteles: Peri Poietikes technes, ao invés de se optar

pela proximidade com o título original que resultaria em: “Sobre a técnica poética”,

decidiu-se por: “Sobre a arte poética”. Suprimiu-se a palavra “técnica” do título,

substituindo-a pela palavra “arte”. Pensar o que determinou tal substituição nos

conduz a duas possibilidades antagônicas:

a) Tomou-se arte e técnica por expressões sinônimas, e assim sendo não havia

motivo para a preocupação na escolha de uma em detrimento a outra;

b) reconheceu-se total divergência semântica entre ambas, e assim a palavra

técnica mostrou-se menos adequada em relação à arte.

Houve tempo, na longínqua Grécia, em que a arte chamava-se apenas techné e

celebrava o encontro entre deuses e homens. Muita coisa mudou desde então. Leão

(2000) nos alerta que a hesitação em usar a palavra “técnica” na tradução nos diz da

desconfiança em nós mesmos e no modo como compreendemos a técnica.

Apropriamo-nos do termo grego e instalamos nosso mundo técnico, mas apesar da

apropriação da palavra, nossa técnica nada diz da techné grega. Nossa palavra

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técnica possui duas instâncias semânticas. Em uma delas nos diz de um conjunto de

atividades humanas, bem como elaboração de coisas, a saber: instrumentos,

aparelhos, máquinas etc; enfim, mecanismos que englobam e propiciam todas as

atividades, bem como elaboração de meios, para se alcançar um fim específico,

previamente estabelecido. A outra referida instância semântica seria aquela em que

técnica se distingue de arte. Nela, a palavra não designa apenas um conjunto de

coisas, mas sim as formas de elaboração, correspondendo ao modo de agir e fazer,

algo que pode ser aprendido e repassado, podendo repetir-se, e, que, embora se

aproxime da artesania, em muito se distancia da arte. Esses os dois modos de

compreensão da técnica que regia a modernidade no momento da tradução da obra

de Aristóteles. Contudo, a techné grega, que consta do título original, em nada se

aproxima das dimensões semânticas citadas.

Em oposição aos sentidos modernos de técnica, techné refere-se a uma espécie de

“lugar” onde o homem vem a ser homem. “É na techne que o homem alcança

condições de produzir alguma coisa de si mesmo, elevando-se à dimensão de seu

mundo” (LEÃO: 2000, p.154). Techne, compreendida como essa competência de

produzir, não se reduz a mera habilidade, tampouco se fecha no fazer artesanal ou

industrial, refere-se ainda ao fazer da arte. Não se limita ao técnico no sentido de

mecânico, elétrico ou eletrônico, menos ainda à atividade manual do artesanato.

Trata-se de pro-dução, ou seja, de toda dinâmica do pro-duzir, da poiésis.

Ao refletirmos acerca da grandeza de sentido que a palavra techne encerra, a

palavra moderna que mais se aproxima, de fato, é a palavra arte.

Na modernidade fomos levados a compreender cultura em oposição à natureza, ou

seja, compreendemos cultura e arte como tudo que vem ao acontecer através da

ação libertadora da criação/trabalho humano. Por esta via de entendimento

distanciamos arte e phýsis (natureza) percebendo arte e cultura de maneira idêntica,

haja vista a compreensão que temos de cultura, como a reunião de espaço e

processo de toda atividade poética, ou seja, de todo fazer que eleva o homem à sua

humanidade. No entendimento moderno arte difere de natureza, pois na natureza o

acontecer das coisas se dá por si mesmo, sem a participação poética do homem.

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No sentido amplo de cultura, esta abarca, além das obras de arte, também as coisas

da técnica, estando sob o domínio de uma mesma palavra a “manipulação da

técnica” e a “competência poética”. Assim temos que, na concepção moderna, tanto

da arte como da cultura, a competência da techne é reduzida a eficiência de um

fazer. Assim, somos levados a perceber que a aproximação entre arte e cultura, bem

como a compreensão de techné como “eficiência”, anuviaram importante questão

relativa à identidade entre arte e natureza. “Como se, para diferirem, tanto a arte não

já fosse natureza, como a natureza já não fosse arte” (CARNEIRO LEÃO, 2000,

p.155). Ambas, arte e natureza, são manifestações poiéticas, poiésis, ou seja,

deixam vir à presença o que antes não existia. Sobre as intrincadas relações

homem-arte-natureza trataremos em capítulo posterior.

Teria sido na Ética e não na Poética em si, que Aristóteles teria se aproximado de

modo mais revelador, das questões da arte. Mais especificamente no sexto livro da

Ética a Nicômaco que surgiria a determinação definitiva da estrutura da arte, ainda

que o filósofo grego tenha se referido ou ainda se valido da arte em todas as suas

obras (de um modo mais restrito, sempre ligado à competência da produção

artesanal). Temos na passagem a seguir algo que revela a real estrutura da arte em

Aristóteles: “passa práxis agathou tinos ephiesthai dokei: “em toda ação vive um

empenho por algum bem.” (LEÃO: 2000, p.155)

Pensemos um pouco a esse respeito. Segundo tal afirmação empenho configura a

tensão entre penhor e bem. Seguindo por tal viés de pensamento perceberemos que

o empenho da ação se dirige ao que serve e é bom. Servir e ser bom seria um

Aghaton tini, uma serventia, ou seja, um prestar para algo. Contudo, um bem que

resulta de uma ação não é necessariamente bom para a ação, tampouco configura o

Bem da ação. Mas só há verdadeiramente empenho por um bem na medida em que

este bem serve para algo diferente de si mesmo. De um modo geral, quando ao final

o que resta é um bem que em si é somente “prestância e serventia”, se o produto

final do que se supõe uma ação constitui algo que se encerra em si mesmo,

podemos concluir que não houve de fato ação, pois não houve empenho, visto que

este, além de um bem, implica também o penhor.

O penhor da ação é o “Bem” que em muito difere dos “bens”. O Bem é o empenho

que move o sentido de todas as ações, e, isso, em nada se relaciona a servir ou

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prestar para alguma coisa. É algo mais profundo, que se consuma na simplicidade

de um acontecimento, de uma presentificação. Há nesse consumar uma

simultaneidade com o preencher, o completar-se da ação.

Assim, temos que a dinâmica de uma ação é gerida pelo empenho, ou seja, pela

integração entre penhor e bem. Tal integração perfaz o télos, o sentido de toda

ação. Neste ponto se faz importante frisar que Emmanuel Carneiro Leão nos alerta

com relação aos equívocos das traduções, onde costumeiramente toma-se télos por

meta, fim ou finalidade, quando, em verdade, nada diz da meta a que uma ação se

dirige, tampouco do findar dessa ação ou de sua finalidade.

“Télos é o sentido, enquanto sentido implica princípio de desenvolvimento, vigor de vida, plenitude de estruturação. Assim o télos, o sentido, de toda ação é consumar a atitude, é o sumo desenvolvimento do vigor de sua plenitude.” (LEÃO, 2000, p.156)

Percebemos então que, a atitude que se desvela no movimento de uma procura que

tanto diz da ação artística, diz do comportamento humano como um todo e é o tema

discutido por Aristóteles em sua Ética. A nosso ver ética e arte são em uníssono.

Nas atitudes humanas, onde estão também as ações artísticas, é sempre posto em

trabalho o propósito e o método, sendo a própria atitude a desenhar o caminho e

encaminhar a procura, sendo a ação, sempre, um empenho. É enveredando pelo

caminho da ação que o homem é conduzido à cercania da obra. “A obra empenha

toda habilidade, toda serventia e todo sentido da ação.” (Idem, p. 156).

Para pensarmos o sentido da ação humana, e nela o agir da arte, comecemos pelo

que nos é dado: a obra - ela constitui o sentido de toda ação. Precisamos ter a

sensibilidade de observar que com isso não se afirma que toda ação resulta em algo

fabricado, visto que isto tornaria a ação em si, dependente da obra. No que se refere

à arte, a obra consiste em algo que brotando da ação cruza definitivamente as

fronteiras do mero fabrico, desvelando-se como algo que provoca e convoca, e que

resguarda em si a condição de possibilidade de abrir-se em sentidos no eclodir da

arte. É o revelar-se do círculo poético em que a ação, o empenho, irradiando-se da

essência de todo agir, da poiésis, presentifica a obra; e a obra, produção humana,

techné, presentificando-se, reafirma o vigor da arte e a humanidade do homem.

Após tais reflexões duas questões nos saltam aos olhos:

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a) O desacertado julgamento de que obra seja algo restrito ao âmbito da

ação humana;

b) o engano no julgamento de que seja a obra de arte um bem, quando em

verdade ela é o Bem, ou seja, o sentido de toda ação.

A obra pertence a toda dinâmica da realidade. Quando algo se realiza, quando o que

antes não existia se presentifica, dá-se obra. Esta dependência do real para realizar-

se, em que há a necessidade de que algo brote do outro de si mesmo, Aristóteles

chamou dynamis, poder-ser. Em nosso entendimento a obra carrega em si um

poder-ser, um poder fazer surgir de si algo novo, um pro-duzir. Nesse sentido, o

próprio homem é também obra. Da natureza, da phýsis. Se um poder-ser não se

concretiza, não põe nada em obra, essa condição, esse dynamis, fica reduzido a

uma possibilidade abstrata. Percebemos que muitos fabricos da arte nomeada

conceitual não excedem a condição de dynamis, permanecendo como abstrata

possibilidade de presentificação de sentido, por não obrarem efetivamente. No que

diz respeito a um ready-made por exemplo. Após visto uma única vez,

compreendido o conceito ali anexado pelo artista, há um esgotamento da pseudo-

obra. Nada mais ali nos convoca ao pensamento. Por ser conceitual congela o

pensar. Conceito nesse caso é pensamento engessado, tudo o que havia para ser

pensado, já foi. Diante de um ready-made temos uma única possibilidade de

pensamento, ou compreensão. O que faz de uma obra verdadeiramente uma obra

de arte em muito difere disso. Pessoas diferentes diante de obras de arte são

convocadas por diferentes questões. A mesma pessoa diante de uma mesma obra

(energéia) em diferentes momentos de sua vida será convocada por questões

outras. Pois, ainda que a obra seja a mesma, a pessoa está em constante mudança,

e o pensamento percorrerá diferentes caminhos até a enteléquia. Como nos disse

Heráclito, ninguém mergulha duas vezes no mesmo rio. Obra de arte é diá-logo não

discurso.

Retomando a questão do homem e ao que é próprio à ação, temos que “o homem é

a ação que está em obra” (LEÃO, 2000, p.157). Será ainda o filósofo a nos fazer

compreender imbricações entre dynamis, energéia e entelechia. O homem vive em

operação. Operação e obra constituem e integram a ação. Quando se diz que algo

está operando, que está “em obra”, pretende-se ressaltar um processo, onde algo

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caminha para a eclosão. Este algo ainda não atingiu sua plenitude, ainda não é tudo

que pode ser, não esgotou as possibilidades, a este obrar podemos chamar

energéia. Quando finalmente afirmamos que uma coisa é uma obra, está implícito

em nosso dizer que temos diante de nós algo pleno, pronto, amadurecido. Na

dinâmica da pro-dução a obra é a plenitude de uma operação, é algo que tem

sentido em si mesmo, alcançou a plenitude do sentido, o télos. Quando a obra

chega a plenitude da ação, deixa de ser energeia, ao alcançar o sentido pleno é

entelecheia. Uma obra de arte, a nosso ver, é sempre energeia-entelecheia, Ao

mesmo tempo em que há o télos, o sentido, há um constante obrar, pois as

questões sempre se recolocam, convocando o espectador-fruidor a ação, ao

pensamento. O obrar da obra se evidencia na constante convocação ao diá-logo

poético. Assim, percebemos com clareza que ela não é um bem, mas o Bem. Não é

mero objeto, é figura-questão. Pensar o sentido da obra de arte propicia enxergar

com clareza os equívocos de nosso tempo que em nome da arte agrega a objetos

discursos conceituais e os transformam em comodities. Poiésis e techné configuram

a essência do agir. Assim, Obra de Arte é empenho, caminho, sentido, ação.

Sempre.

Com relação à resistência ao saber das mãos, que para além de um saber fazer é

um saber ver, sempre tão rechaçado no contemporâneo, retomamos em derradeiro

momento, a questão da techné grega, nas inspiradas palavras de Heidegger (1967).

O filósofo esclarece-nos que techné nomeia uma forma de saber que não significa

apenas trabalho e fabricação. O homem que segue no empenho da techné é o

homem da ação, e a própria ação é a sua medida. O saber da techné trata de um

saber ver o que está em jogo na produção. Defende, como já afirmamos

anteriormente que, entre os gregos, não havia distinção entre poiésis e techné. Foi

no pensamento moderno que se deu a trincadura entre técnica e poética. Assim,

concluímos que arte é techne, mas não é técnica. A arte como techne, abriga-se em

um saber que é uma espécie de “olhar preliminar naquilo que mostra a forma e dá a

medida, mas que é ainda invisível, e que deve ser primeiramente engendrado na

visibilidade e perceptibilidade da obra”. (Idem, p.2).

Tal olhar que vê, necessita de claridade, iluminação, necessita Luz. “O raio governa

tudo”, nos diz Heidegger citando Heráclito. O raio de Zeus. O olhar da techne seria

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então o olhar de Atena, filha de Zeus, deusa responsável pelas coisas a serem

produzidas pelo homem. Grécia, berço da arte. A physis lança sobre o homem seu

destino: ação e percepção humana, unidas, conduzem o homem a trazer de si

mesmo, aquilo que a natureza em si não pode. E assim ao trazer a obra à presença,

o homem mundifica, presentificando o ainda não presentificado. É desse modo que

a arte co-responde a physis, sem imitá-la, sem copiá-la. Physis e techne se co-

pertencem em mistério. “O elemento no qual physis e techne se pertencem uma a

outra e o domínio no qual arte deve se introduzir para poder, enquanto arte, vir a ser

o que ela é, este elemento e este domínio permanecem encoberto” (Idem, p.3).

Esta luz, este saber que se materializa poeticamente no mítico raio de Zeus é o que

buscam exaustivamente poetas e filósofos. Contudo, sem ilusões, como nos mostra

ainda Heidegger (Idem) através de verso da poesia de Ésquilo, percebemos que:

“(...) só entre os deuses eu sei onde estão as chaves Destes lugares onde o raio está guardado sob lacres”.

2.4 – Arte, cultura e phýsis: A natureza artística do homem e o habitar

Enquanto que na queda e na decadência das coisas, as cigarras tão caras ao bom Sócrates perduraram. E aqui certamente elas ainda cantam em grego antigo20.

Vincent van Gogh

Retomemos a questão da separação de arte e natureza na modernidade

mencionada anteriormente, trazendo-a ao pensamento. Natureza é a palavra latina

para phýsis. Natura quer dizer o conjunto de coisas que ainda vão nascer. Contudo,

tal vocábulo não diz a totalidade da experiência da phýsis grega. Mas não podemos

tomar phýsis apenas na acepção que hoje temos de natureza. Heidegger nos

esclarece que:

Os gregos não experimentaram o que seja phýsis nos fenômenos naturais. Muito pelo contrário: por força de uma experiência fundamental do Ser, facultada pela poesia e pelo pensamento, se lhes desvelou o que haviam de

20

In: Cartas a Théo (2002, p.370)

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chamar phýsis (...) Phýsis significa o vigor reinante, que brota, e o perdurar, regido e impregnado por ele. (apud CASTRO, 1982, p.31)

Phýsis é mais que o conjunto de todas as coisas, todos os entes. Tudo é nela e por

meio dela, é o vigor que produz todos os fenômenos, que produz tudo que há. É o

real das realidades. Pensar questões que movem o homem e a arte implica pensar

as doações da phýsis e a constituição do humano, ou seja, possibilidades de mundo

em suas imbricações. Tal questão nos conduz a outra, a saber: a Cultura. Eis que se

estabelece a tríade natureza/homem/cultura. É desastroso o pensamento que

separa cultura e natureza. O homem rege o fenômeno cultural ao se apropriar de

suas possibilidades de ser. Mas de onde vêm tais possibilidades? Como o homem

chega a produzir cultura? Busquemos antes e primeiro compreender o que seja

cultura.

2.4.1 - O fenômeno cultural e o conceito de cultura

Desde antes, muitas foram as formas de se compreender e classificar o que seja

cultura. O antropólogo Roque de Barros Laraia (2001) nos diz que partindo do

vocábulo culture cunhado por Edward Tylor, em 1871, a partir da síntese do termo

germânico Kultur (que dizia dos aspectos espirituais de uma comunidade) com a

palavra francesa Civilization (que se referia especialmente às realizações materiais

de um povo) surge o primeiro conceito de cultura, compreendida como algo que,

tomado em sentido etnográfico amplo, diz “este todo complexo que inclui

conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade

ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade.” (TYLOR apud

LARAIA, 2001, p.25). Para Laraia, Tylor teria apenas formalizado uma ideia que

vinha crescendo, desenvolvendo-se na mente humana.

John Locke (1690) procurou demonstrar que a cabeça do homem não passava de

uma caixa vazia no momento do nascimento, todavia, reconheceu que tal caixa era

dotada de ilimitada capacidade de obter conhecimentos por um processo hoje

conhecido como endoculturação. Locke, contrário às ideias correntes da época, as

teria refutado, especialmente aquelas que defendiam princípios ou verdades inatas

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impressas hereditariamente no homem. Seu pensamento ensaiou os primeiros

passos em direção ao que mais tarde viríamos a conhecer por relativismo cultural.

Muitos foram os estudiosos que se dedicaram a pensar, reverberar ou contradizer o

conceito de cultura estabelecido. Muitos foram os que acreditaram e defenderam o

valor da cultura na formação humana através da educação. Dentre eles, podemos

destacar Jean-Jacques Rousseau. Assim, entre duelos acadêmicos, o pensamento

acerca da cultura foi se expandindo, tomando a proporção que hoje conhecemos.

Antropólogos, no entanto, dividem-se quanto à validade da expansão do espectro do

conceito de cultura. Alguns creem que tal ampliação ao longo dos séculos foi

benéfica, outros, como Clifford Geertz (apud LARAIA, 2001, p.27) defendeu que

seria importante “diminuir a amplitude do conceito e transformá-lo num instrumento

mais especializado e mais poderoso teoricamente.” Ainda segundo Lararia (2001) o

que se inicia com Tylor, em 1871, ao definir cultura como sendo todo o

comportamento aprendido que independe de transmissão genética, se firma com

Alfred Kroeber em 1917 em seu trabalho O superorgânico com a declaração de que

graças à cultura o homem se distanciou do animal. Tal afirmacão estabelece fosso

definitivo entre o cultural e o biológico. Postulou-se a supremacia do cultural.

A ciência em âmbito geral e a Antropologia de modo particular vêm se empenhando,

desde seus primórdios, por firmar a separação entre cultura e natureza. Na

observação das relações natureza/homem/cultura, privilegia-se a cultura em

detrimento do homem e da natureza. Passando o homem a ser compreendido não

como sujeito, mas como objeto, produto do processo cultural. Obviamente,

reconhecemos a importância da cultura e sua transmissão, não se trata aqui de

estabelecer pensamento que negue a cultura, no entanto, “a redução da cultura a

esse nível esquece o que há de mais essencial no fenômeno cultural”. (CASTRO,

1982, p.17). Homem e cultura estão ontologicamente ligados.

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2.4.2 – O emergir cultural

Buscando um modo originário de compreensão do que seja cultura e suas relações

com a natureza e com o humano, pensemos o homem. Dediquemos um olhar

cuidadoso ao que seja o homem bem como a cultura em seu alvorecer.

Cultura é um acontecimento existencial que se dá em uma conjuntura. Para

compreender a questão que move o homem em direção à conjuntura, reportemo-nos

ao exemplo de Castro (1982) quando cita a obra cinematográfica 2001: uma

odisséia no espaço de Arthur C. Clark e Stanley Kubrick, que nos conduz a pensar

uma vez mais a cultura em seu alvorecer, não em seu alvorecer conceitual, mas

como acontecimento. Passemos a descrição da cena em questão:

Mostra-nos a câmara uma “Terra” inóspita e dois bandos de macacos em situação de sobrevivência. Em dado momento, um dos bandos de macacos é atingido pelo zunido forte de um monólito (uma (só) pedra), misteriosamente aparecido. Tudo vai mudar a partir deste instante. Como sucedia normalmente, os dois bandos, na hora da sede, se dirigiam para uma escassa poça d’água. A disputa se dava na base dos gestos e dos brados. Nesse dia, no entanto, algo inesperado aconteceu. Um dos chefes, diante dos gritos do outro, não se afasta. Visualiza um osso enorme de uma carcaça, pega-o e começa a desferir golpes no outro até matá-lo. Uma feroz alegria o invade e vibra o osso-arma no ar. (CASTRO, 1982, p.20)

Nesta cena, afloram o acontecer de humanidade em horizonte cultural. Emergem

homem, tempo e cultura partindo de uma mesma conjuntura, a saber, um mesmo

obstáculo: “o inter-relacionamento da necessidade sede, da possibilidade poça

d’água e da dificuldade ‘o outro’” (Idem, p.20).

É um duelo de vida ou morte que rege o habitar como nos foi descrito. Quem lança a

luz que faz com que o osso se des-vele em arma é a conjuntura. O homem não é a

luz, a luz o atravessa. O “primitivo” já havia, em outras situações, avistado o fêmur,

mas apenas ali despertara para ele. Castro nos diz que a manifestação do monólito

provoca, operando mudança. Antes havia os meios. Mas só ali, naquele momento se

dá conjuntura. A conjuntura se faz acontecimento, no acontecer dá-se mundo. Há

um desvelar mundo-cultura em uníssono. O osso, até então coisa qualquer, sob a

luz da verdade revela-se em possibilidades. O homem é apenas a abertura, a

clareira para que luz se dê. O homem é a abertura do ser.

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Da transformação do osso em arma emerge cultura e também uma nação (do verbo

nasci: nascer). Manuel Antônio de Castro (1982) esclarece que diferentemente de

um grupo ocasional, uma nação dis-põe de projeto de vida, o projeto em questão

gira em torno da descoberta do osso-arma. Assim começa a se instituir os traços

culturais. Esta nação, quando ameaçada, recorre a arma. Emerge desta postura a

questão do poder dos que se valem da arma para guardar a fonte. A arma é o poder

constituído. Por questões relativas à sobrevivência a nação transmite tais

conhecimentos ou poderes para as gerações subsequentes. Assim os traços

culturais vão se delineando. De modo algum são externos ao grupo, visto sejam eles

a constituir o grupo como grupo, sendo a razão de ser desse grupo-nação. Tais

traços os identificam e unem, portanto são defendidos pelo grupo, constituindo o que

os diferencia dos demais. Tais valores os gregos nomearam Ethos, sendo o que, há

um mesmo tempo, identifica e diferencia o homem.

Do aflorar da possibilidade osso-arma emergem questões. Por tal via de pensamento

percebemos que a cultura não precede o homem. Produzir cultura é inerente ao

habitar humano. Cultura se dá quando o homem atende ao apelo das questões que

o move em sua travessia. As questões o conduzem ao mundificar. O homem,

ameaçado em sua sobrevivência, avista o osso dentro de uma conjuntura e sai de si

em direção ao objeto, lançando seu olhar a frente. A isso podemos chamar

prospecção. Na sequência do exemplo se dá a introstecção: o homem, de posse do

objeto, traz o obstáculo (o outro) para dentro de si, estabelecendo ponte entre objeto

e obstáculo. Tal ponte se erige sob a luz da inteligência. O homem produz a solução:

O osso-arma se desvela, revelando-se ao homem, este ataca. O homem pela

primeira vez pro-duz. Podemos considerar esse o primeiro traço cultural. “Cultura

antes de tudo é fundamentalmente produção”. (CASTRO, 1982, p.22). Isso

diferencia o homem dos demais entes. Os demais animais não excedem a

prospecção, apenas olham adiante, não trazem para dentro de si,

introspectivamente, não refletem.

O filme-exemplo nos oferece uma possibilidade de pensar o primeiro traço cultural.

Assim, dada a conjuntura, a cultura se revela um acontecimento. “Enquanto

prospecção e introspecção é ato, mas desde que se configura em solução, vira fato,

isto é, algo feito. Não termina aí a dimensão essencial desse traço. Ele é mais. É um

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acontecimento. (CASTRO: 1982,p.22). Teria nos dito ainda Emmanuel Carneiro

Leão (2010, p.42-47) que, a humanização do homem decorre do acontecimento

histórico. Cultura e história configurando o acontecer poético humano.

O homem encontrou solução. Produziu solução. Mas, para que haja produção antes

há que se dar ação. Na ação, solução se constitui como processo. Nela conjugam-

se prospecção e introspecção. Da e na ação surge o conhecimento, não como um

saber científico no rigor dos modelos, da exatidão. Trata-se antes do conhecimento

como conascere, ou seja, nascer-com. O homem produz e essa produção é um pôr

algo, mas este pôr é também um “se pôr” no mundo.

Infelizmente habituamo-nos a pensar cultura somente sob a ótica da transmissão e

não da pro-dução, como se fosse cultura a produzir homem e não o contrário disso.

É sempre no âmbito da acumulação e transmissão que a cultura é normalmente

entendida, todavia precisamos estar atentos ao fato de que, como nos alerta Manuel

Antônio de Castro (1982), a transmissão do acumulado não é pro-ducão, mas sim

reprodução. No âmbito da reprodução atrelamos cultura a mera funcionalidade. É

muito simbólico, como ressalta o autor em seu exemplo, que o primeiro traço cultural

em 2001: uma odisseia no espaço, seja uma arma. O filme nos conduz por

alamedas do pensar que sinalizam acerca dos desvios da cultura na funcionalidade

abstrata que se firma na era da técnica como uma arma contra o próprio homem.

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2.4.3 – A natureza humana

O maior apetite do homem é desejar ser. Se os olhos vêem com amor o que não é, tem ser21. Padre Antônio Vieira

Após as reflexões acerca da cultura, dirijamos nosso olhar piedoso na direção do

homem para compreendermos as relações entre a cultura, o homem e a phýsis. O

homem é no mundo. Ainda que venha a pertencer a grupos ou nações, presentifica-

se nu e só, nada trazendo consigo da ordem dos aparatos materiais ou dos

instrumentos técnicos, os quais, posteriormente, terá na conta de indispensáveis. O

homem nasce só e a única certeza que pode ter ao nascer - ainda que não tenha

imediata consciência dela - é a de que, cumprido seu ciclo, morrerá. Inerente ao

homem, a solidão.

O homem, mesmo gêmeo, nasce só, e, ainda que a morte o alcance na condição de

vítima de catástrofe coletiva -- epidemias, cataclismos, guerras – morrerá só. Nascer

e morrer são experiências ontológicas, vivências intransferíveis e não

compartilháveis. Ainda que no nascimento haja a presença de ente queridos, haja

mãos que amparem o corpo no aberto do mundo, a dor de respirar pela primeira vez

será vivenciada de modo solitário.

Ao observarmos as esculturas do australiano Ron Mueck, mestre do que se

convencionou chamar hiperrealismo, somos conduzidos de imediato à esfera poética

da solidão como condição humana. O artista possui um domínio total da técnica da

manipulação de resinas e silicones atingindo um grau de “realismo” quase

inacreditável em suas obras, que em muito excedem questões relativas a mera

aparência. Quanto ao domínio técnico poderíamos compará-lo por sua destreza a

Michelângelo. Suas obras de modo geral, mas uma de modo particular, a escultura

de um recém-nascido, atira-nos na face nossa condição essencialmente solitária.

Mas o que há de solitário em um bebê? Perguntaríamos, uma vez que, salvo raras

exceções, o nascimento é algo tão esperado e desejado por todos, uma celebração

21

In: Paixões Humanas. Apud BARROS: 2002, p.36.

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de vida, sendo o recém-nascido sempre cercado de afetos e afagos. Mueck, em sua

genialidade, concebe na referida obra (intitulada A Girl22, e que data do ano de 2006)

um bebê de quase quatro metros e, ao fazê-lo, como que coloca uma lupa nessa

experiência única de vir ao mundo, conduzindo-nos efetivamente ao olhar que de

fato vê todas as questões que advém com o nascer.

Olhar um bebê que nasce é uma experiência linda e perturbadora. Linda para nós

que vemos a vida que se perpetua, perturbadora e solitária para aquele ser

convocado ao aparecer que ali se presentifica. Ser corpo, estar encorpoado23, ser

sendo, constitui um encapsular em solidão. Nas sábias palavras de Gilvan Fogel, o

corpo é um oco, abrigo do vir-a-ser, na medida das realizações. Esse oco nos

conecta com o nada do qual somos doação. Nascemos ocos e sós. Um estado de

solidão ontológica, aquela que se refere não a solidão de ser só, mas sim outra, da

qual já nos falou Manuel Antônio de Castro, a solidão de só ser. Um bebê ao nascer

só é. No mais, travessia, onde ele será, sendo. Assim também, no derradeiro

instante.

Cada homem, cada um de nós, experienciou de modo singular e solitário o nascer,

e, solitariamente, será acolhido pela morte. E neste ponto podemos observar outra

obra também de Ron Mueck Man in a boot, de 199224 – Nela, um homem de meia

idade, nu, sentado no centro de um barco, de imediato, remete-nos a figura do pai

no conto de Guimarães Rosa, A terceira margem do rio, como se estivesse

aguardando o cumprimento de seu destino. Travessia cumprida, silencia. E, em

estado de profunda solidão aguarda o recolhimento ao mistério do nada. Existir, do

início ao fim, é experienciar solidão. O homem sabe de solidão. O homem sabe de

morte. Mais que isso, sabe que não nasce para morrer um dia, sabe que morre

desde o instante que nasce. Saber-se neste entre vida e morte, contudo, não é uma

condenação, visto que tal consciência conduz ao sonho, aquele que, como bem nos

disse as poéticas palavras de Mário Quintana, é um acordar-se para dentro. O

sonho move todo o criar.

22

Ver imagem 5 no anexo, página 204. 23

Variação da expressão “encorpoação” colhida no ensaio “Notas sobre o corpo” (2009, p.57) de Gilvan Fogel a nosso ver (neste contexto específico) mais rica e adequada que a expressão usual “incorporado”. 24

Ver ilustração na página 204 do anexo.

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Ao falarmos de morte e do criar rememoramos belíssimas palavras de Vincent Van

Gogh (2002) em uma de suas inúmeras cartas ao irmão Théo, que data de junho de

1888, onde diz do poder da criação em perpetuar a vida humana. Van Gogh fala dos

pintores que ainda que mortos e enterrados falam às gerações futuras por meio de

suas obras. Estendemos sua fala relacionada ao pintor a todos os poetas, sejam das

cores, da palavra, dos sons ou do gesto. É dado ao homem eternizar-se em obras.

Isto é tudo ou ainda há algo mais? Na vida de um pintor talvez a morte não seja o mais difícil. Eu confesso não saber nada, mas a visão das estrelas sempre me faz sonhar, tão simplesmente quanto me fazem sonhar os pontos negros representando cidades e aldeias num mapa geográfico. E eu me pergunto porque os pontos luminosos do firmamento nos seriam menos acessíveis que os pontos negros no mapa da França? Se tomamos o trem para ir a Tacascon ou a Rouen, tomamos a morte para ir a uma estrela. O que certamente é verdadeiro neste raciocínio, é que estando na vida nós não podemos ir a uma estrela, assim como estando mortos não podemos tomar o trem. Enfim, não me parece impossível que a cólera, as pedras, a tísica, o câncer, sejam meios de locomoção celeste, assim como os barcos a vapor, os ônibus e a estrada de ferro são meios terrestres. Morrer tranquilamente de velhice seria ir a pé. (VAN GOGH: 2002, p.232)

Conhecer vida e morte e realizar travessia, a pé ou não, constitui o grande destino

humano. Na travessia existencial nascer-morrer seguimos em grupo. Solitários

acompanhados.

Tomados pela consciência desta solitária condição, ainda impregnados pela

presença da obra de Ron Mueck, refletimos: O que era o bebê antes de existir? O

que é o homem após sua morte?

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2.4.3.1 – A Angústia

Quando nos entregamos ao exercício de pensamento que busca vislumbrar o ser

antes do existir somos conduzidos à face transfigurada do nada, a saber: a angústia.

É nesta proximidade com o Nada que o homem arrosta a angústia que diz da

experiência de saber-se jogado no mundo, onde este jogado diz de um

ser/estar/perceber/flertar com o abismo. Avistar o nada é raro, mas também possível

e real quando estamos entregues a angústia. Sabermo-nos doação do Nada nos

conduz destemidos a tal experiência.

Não há temor em se avistar o nada transfigurado, a angústia, visto que nela

experimentamos um estado de estranha tranquilidade, em que, distanciando-nos de

tudo, somos conduzidos ao nada e a uma nano partícula da verdade existencial.

Vivenciar a angústia é atirar-se no abismo e cair para cima pairando sobre o nada

que origina todas as coisas, é perceber a inexatidão de escalas para medir-se em

relação ao todo universal. O nada se revela na angústia, mas não como ente, não

nos é dado como um objeto, nunca. Não se trata de uma apreensão do nada, trata-

se de por uma fenda no sendo, avistar uma nesga do ser. Heidegger (2005, p.57)

nos diz a esse respeito: “Na angústia o ente em sua totalidade se torna caduco (...)

revela-se propriamente o nada com o e no ente como algo que foge em sua

totalidade”. É como se o ente em sua totalidade fosse se esvaindo por tal fenda, não

em fuga mas naquilo que Heidegger chama quietude fascinada:

Na angústia se manifesta um retroceder diante de... que sem dúvida, não é mais uma fuga, mas uma quietude fascinada. Este retroceder diante de... recebe seu impulso inicial do nada. Este não atrai para si, mas se caracteriza fundamentalmente pela rejeição. Mas tal rejeição que afasta de si é, enquanto tal, um remeter (que faz fugir) ao ente em sua totalidade que desaparece. Esta remissão que rejeita em sua totalidade, remetendo ao ente em sua totalidade em fuga – tal é o modo de o nada assediar na angústia, o ser aí (...). (Idem p.58)

Contudo, não devemos confundir angústia ontológica com o irromper fisiológico da

angústia, aquela que tem parentesco com o medo e que nos assola em meio às

coisas intramundanas, posto que toda ameaça nos vem ao encontro como ente

intramundano. O nexo ontológico entre medo e angústia ainda nos é obscuro.

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Experienciar a angústia ontológica em nada se assemelha a uma suposta fuga de si

mesmo. Tal fuga se dá no decair da presença no impessoal e no mundo das

ocupações. Partindo do profundo encaminhamento realizado por Martin Heidegger

em Ser e Tempo somos conduzidos a diferenciar angústia ontológica do medo, ao

percebermos o medo como o que nos assola no intramundo. Sentimos medo de algo

que nos pareça ameaçador e que de nós se aproxime. A angústia ontológica não se

irmana ao medo, ainda que a possibilidade de sentirmos medo tenha nela sua

origem. Medo é o que se dá no intramundano, enquanto angústia equivale a um sair,

a um “ausentar-se” do intramundano. “Medo é angústia imprópria, entregue a

decadência do ‘mundo’ e como tal, angústia nela mesma velada”. (HEIDEGGER:

2006 p. 256)

A constituição fundamental do homem, da presença é ser-no-mundo. A angústia se

angustia não com algo intramundano, mas com o ser-no-mundo como tal. O com

quê a angústia se angustia é inteiramente indeterminado. Essa indeterminação nos

mostra algo que excede o fato de que o ente intramundano que ameaça é

indeterminado, e mostra-nos sim que o intramundano é irrelevante. A angústia não

se angustia com nada que se encontra no interior do mundo. O ser dado que se

descobre no mundo não tem importância na angústia. “Na angústia, não se dá um

encontro disto ou daquilo com o qual se pudesse estabelecer uma conjuntura

ameaçadora” (HEIDEGGER, 2006, p. 253). Não há um aqui ou ali de onde parte o

ameaçador. O ameaçador não se encontra em lugar nenhum. Essa a questão. A

angústia não sabe por que se angustia com o mundo enquanto tal. Mas, o nada e o

lugar nenhum não são ausência de mundo, significam apenas a pouca importância

do ente intramundano que expõe o mundo, que se impõe em sua mundanidade. A

possibilidade de tudo, do próprio mundo é o que se entrevê na angústia. Ao passar

dizemos que não foi nada. Esta a verdade de angústia: o nada. Avistá-lo. A angústia

não se dá com o que está a mão. O nada que é o com o quê a angústia se angustia

nada tem a ver com o contrário do “manual” intramundano.

A angústia se angustia pelo ser-no-mundo ele mesmo. Nela perde-se o que se

encontra a mão ao redor, perde-se do intramundo. O mundo se torna insuficiente em

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seus oferecimentos, mesmo a co-presença dos outros. A angústia tira da presença a

possibilidade de na decadência intramundana compreender a si mesma,

arremessando-a na singularidade de seu próprio-ser-no-mundo, e em sua projeção

para possibilidades. “A angústia abre a presença como ser-possível e, na verdade,

como aquilo que, somente a partir de si mesmo, pode singularizar-se na

singularidade”. (Idem p.254). A angústia revela o ser para um poder ser que lhe é

mais próprio, para o ser-livre, para a liberdade, conduzindo-a para a liberdade de ser

aquilo o que sempre já é. A angústia ontológica não lança a presença num vazio

desprovido de mundo, mas sim a conduz ao sentido extremo de seu existir,

trazendo-a como mundo ao seu mundo, ou seja, como ser-no-mundo para si

mesma.

2.4.3.2 – O Existir e o Habitar

A existência humana é a viagem que o homem faz entre realização e realidade25.

Emmanuel Carneiro Leão

Pensar o homem é pensar a eK-sistência. Estar jogado entre vida e morte, ser

tempo, experienciar angústia, constituem o existir humano. O homem existe. Mais

que isto: o homem ek-siste. Importante frisar que ek-sistir em muito difere de existir.

Martin Heidegger em Carta sobre Humanismo (2008b) nos esclarece que existência

(existentia) significa actualitas, ou seja, realidade efetiva que se distingue da

possibilidade como ideia. Enquanto eksistência significa postar-se-para-fora na

verdade do ser, onde este para fora não diz meramente de um “para fora” de algo

que sai de um interior, esse fora diz de um para-além.

O homem é no aberto do mundo ao mesmo tempo em que constitui, ele próprio, o

aberto. Sendo abertura o homem é também salto que ordena mundo. Não podendo

deixar de ser o que desde sempre é, mundifica. O homem necessita mundificar. O

homem é o/e no aberto onde mundo se dá.

25

2010, p.45.

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Mas o que é mundo, um solo humano, ou melodia a ser composta e executada em

dueto homem-phýsis?

O homem, na infância da existência, caçou, colheu, e seguiu adiante por vastas

planícies na medida em que se extinguiam os recursos imprescindíveis a sua

sobrevivência. Até que, seja por repletar-se de caminhos ou por fastio de passos,

decidiu não mais seguir. No ato de fincar raízes, a condição de permanência

germina de semente lançada ao útero da terra. O homem finalmente cultiva. Chuva

e sol a cumprir ciclos naturais. Luz a cortar os céus seguida pelo ribombar do trovão.

Deles o homem nada sabia então. Da necessidade de compreender misteriosa força

a reger céu e terra: o culto. Mitos se fundam no acontecer homem-natureza. No

desdobrar-se do tempo, os ritos atualizam os mitos. No habitar possibilidades de

ação: mundificar.

O homem se apropria das possibilidades que lhe foram doadas, e, movido pela

poiésis, essência do agir, cultua, cultiva, produz. Assim, uma vez mais afirmamos:

homem e cultura. Cultura não é algo que precede o homem. Cultura é um acontecer

humano, só se dá quando antes homem já se deu. Para haver cultura há que ter se

dado antes existência, cultura se dá no abrir-se humano, no ek-sistir. O homem ek-

siste incorporado, encorpoado. Homem é em extravio, é o aberto do ser no fechado

do ente. Homem é corpo. Pensar corpo nos conduz a aísthesis, ou seja, à

percepção sensível das coisas no dar-se e revelar-se, mas, por ora, voltemos a ek-

sistência.

Ek-sistir é habitar. Habitar é quase sempre interpretado como morar, ou seja, residir,

ter uma residência. Obviamente há no homem a necessidade de abrigo, de morada.

O homem precisa de casa. Mas habitar não se reduz a essa concepção de morar,

de ter um teto que o proteja de intempéries. O habitar humano nas cavernas em

muito excede o estar sob um teto. O habitar humano ali se dá antes e mais nas

inscrições rupestres nas paredes, quando em seu estar e se relacionar com o

mundo o homem cria que seus traços firmariam o acontecer da caça. Sendo no

aberto do mundo o homem habita. Se ek-sistir diz de um para-fora que é um para-

além, podemos compreender ek-sistir como ultrapassagem do ser em direção a

mundo. Como chamaríamos tal ultrapassagem, transcendência? A ultrapassagem

em direção a mundo nomeou-se liberdade. Uma vez sendo/estando no mundo, o

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habitamos, ou seja, permanecemos em constante estado de ultrapassagem, sendo o

que somos: essencialmente livres. Exercer a liberdade é ultrapassar-se de forma de-

morada. É habitar.

Habitar é de-morar. Demorar-se junto às coisas. Construir.

O homem constrói – esse o habitar. Mas esse construir não diz apenas do erguer

moradas, casas, prédios. Obviamente que erigir morada é um construir, mas a

relação construir/habitar em muito excede o edificar. Construir já é em si um habitar.

Heidegger nos diz que devemos sempre escutar a linguagem ao invés de termos

sobre ela uma postura de dominação. Não devemos tomar a linguagem por simples

meio de expressão. Sempre nela, na linguagem, repousa a verdade. Devemos,

portanto, buscar seu vigor e cuidar do dizer. Buscando escutar a linguagem através

do dizer, o filósofo esclarece que a palavra construir vem do antigo alto-alemão

“buan” que significa habitar, dizendo de permanecer, morar. O significado próprio do

verbo bauen (construir) como habitar, perdeu-se. Esclarece ainda que os verbos

buri, buren, beuren, beuron significam circunstâncias e estâncias do habitar. A

palavra buan mais que dizer do construir como um habitar, instiga-nos a pensar o

habitar que nela se nomeia.

A palavra alemã para construir como Heidegger nos disse é bauen. Precisamos

compreender que o habitar é bem mais que um mero comportamento do homem,

não podendo ser reduzido a: o homem trabalha aqui, caminha ali, habita acolá. É

bem maior sua amplitude. Já sabemos que originariamente construir é habitar. Mas

habitar excede o construir, habitar é ser, chegar a ser. É no construir e habitar que o

homem chega a ser homem.

Bauen, buan, bhu, beo é na verdade, a mesma palavra alemã ‘bin’, eu sou nas conjugações ich bin, du bist, eu sou, tu és, nas formas imperativas bis, sei, sê, sede. O que diz então eu sou? A antiga palavra bauen (construir) a que pertence ‘bin’, ‘sou’ responde: ‘ich bin’, ‘du bist’ (eu sou, tu és) significa: eu habito, tu habitas. (HEIDEGGER: 2008a, p.127).

O modo como somos sobre a terra constitui o habitar, ao passo que habitamos

somos. Dizer que somos homens, é o mesmo que dizer que somos mortais sobre

esta terra. Somos na medida que habitamos. Heidegger nos dirá ainda que a palavra

bauen (construir) significa ao mesmo tempo, proteger e cultivar.

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“Ambos os modos de construir – construir como cultivar, em latim colere cultura, e construir como edificar construções, aedificare – estão contidos no sentido próprio de bauen, isto é, no habitar, ou seja, no sentido de ser e estar sobre a terra. (Ibidem p.127).

Habitar é um construir acolhido na simplicidade do que Heidegger chama

quadratura: terra, céu, deuses e mortais. O habitar tem por traço fundamental o

resguardar. Habitamos quando resguardamos a quadratura em sua essência,

salvando a terra, acolhendo o céu, aguardando os deuses e sendo o que somos.

Salvamos a terra quando dela não nos adonamos e nem a ela nos submetemos

deixando-nos sucumbir. Acolhemos o céu quando respeitamos a natureza e assim

preservamos seus ciclos. Aguardamos os deuses quando não nos tomamos por

eles, endeusando nossas ações. E, somos mortais, quando jogados no aberto do

mundo vivemos o que entendemos vida e morremos o que compreendemos morte.

Mas, especialmente, resguardamos a quadratura quando neste estar jogado no

mundo, neste entre vida-morte, encontramos a terceira margem e erigimos morada

poética, e nela habitamos, produzimos. Eis a travessia em liberdade.

Do e no habitar, cultivar, construir-produzir e cultuar humano, da e na travessia,

eclodem cultura e arte.

2.4.3.3 – Homem e Tempo - O Dasein

Pensar o homem é pensar o ente que somos nós. Para pensarmos a nós mesmos e

ao que compreendemos por existir, ou ainda mais, por ek-sistir, haveremos de

buscar compreender o tempo. Ao pensar ontologicamente, em sua origem, o ente

que é o homem e as questões do tempo, perceberemos que imbricam. Não há

homem e tempo, ou mesmo homem no tempo. Homem é tempo como clareira do

existir a que Heidegger nomeou Dasein. Esta palavra alemã é uma expressão quase

intraduzível, a qual podemos, grosso modo, compreender por ser-aí, ou ser sendo.

O homem sendo, “é”. Este “é” diz do que existe e do que pode do ponto de vista

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ôntico ser compreendido como homem. Mas há no mistério do ser homem o para

além do que se mostra, se presentifica, ou seja, para além daquilo que se dá como

presença, isto é, há ainda o que se resguarda no velado acerca do ser do homem,

que sendo, é no aberto do mundo, a saber, na existência.

A existência é abertura do ser que se presentifica. O homem é presença ao se

corporificar na abertura do ser. Outros entes se dão em tal abertura, mas os demais

entes são viventes, só o homem é existente, pois é dado apenas ao homem entre-

ver os mistérios do ser, sendo ele próprio sua clareira. O Dasein tem consciência de

ser.

Anteriormente, refletindo acerca do homem chegamos à questão acerca de sua

destinação e da solidão na travessia, ou seja, no mover-se entre vida e morte. Do

homem sabemos até aqui que ele existe, ou melhor, ek-siste, que é finito e tem

consciência de sua finitude e que sua existência se funda no habitar. Habitar que é

um construir e mundificar. Poeticamente o homem habita e mundifica, e assim pro-

duz cultura e arte. A questão da travessia e do mundificar nos remete a questão do

tempo como percurso.

Mas o que é isto, o tempo?

Deixar-se tomar pelas questões do tempo é decidir enveredar por questão

fundamental na dinâmica do pensar originário de Martin Heidegger (2006): a relação

entre ser e tempo. Somos equivocadamente conduzidos pela metafísica a acreditar

na equivalência entre ser e eternidade. Heidegger nos conduz por caminho outro, o

da temporalidade do ser. O tempo do Dasein não se deixa colher na linearidade da

análise clássica do tempo que se dá em passado presente e futuro. Anteriormente

fizemos esta afirmação e agora nos propomos discuti-la.

Somos seres para a morte. Para além de morrermos, temos consciência de sermos

morrentes. Nossa vida é marcada por esta certeza. A finitude não constitui um ponto

fora da curva da existência humana em sua essência imortal. O homem é mortal,

isto é fato. Mais que isto, ser mortal constitui a facticidade do homem, é o fato que

foge ao seu controle, é parte de sua destinação e independe de sua vontade. Para

além disto, resta-lhe apenas a consciência da morte durante a vida. É nesta e desta

antecipação da morte que se descortina o sentido essencial da temporalidade de um

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ser finito. Assim, a temporalidade do homem, a saber, do Dasein, não pode ser

compreendida ou medida com base em um sujeito por essência intemporal,

atemporal ou supratemporal.

Por ser a morte algo que compreendemos como um advento futuro, é de certo modo

o futuro que define o Dasein, não o presente ou o passado. Esse futuro, contudo,

não é uma abstração que se lança em direção a algo que ainda está por vir, ou

mesmo uma antecipação da morte. Trata-se de um futuro autêntico que se dá não

como o que ainda não é presente, mas como a dimensão a partir da qual se

constituem presente e passado. É um futuro que não dimensiona tempo enquanto

Chronos mas sim Kairós, ou seja, como o momento oportuno. O porvir é o primeiro,

mas também é o que é finito, assim sendo é o que desenha a existência com o

aceno da não existência, ou seja, o porvir se dobra sobre a presentificacão do ser

como iminência de uma não-coisa, ou seja, iminência de um não mais existir. Morrer

é possibilidade e como tal o puro ser-no-mundo é experimentado como Dasein. A

morte como advento do porvir se revela como a certeira impossibilidade para

possibilidades.

O Dasein constitui tempo que, uma vez mais frisamos, não é um tempo linear a se

ordenar cronologicamente a partir do presente como sucessor do passado e

antecessor do futuro. Ele se dá em ekstases que se projetam em todas as direções,

no vigor de camadas que se sobrepõem em presente, passado e futuro. Não se trata

de uma linearidade composta por uma sucessão de agoras, “pois há uma não-coisa,

a morte, que não é senão em sua vinda, que não é nenhum agora, mas inscreve

todo ‘presente’ na iminência de sua pura vinda”. (DUBOIS, 2000, p.61).

Não há particularmente um ser entificado, ou uma deidade a que podemos

denominar tempo ao qual o Dasein é submetido ou habita. Não há tempo como

lugar, tampouco a vida é medida por um cronômetro. Há Dasein, o ser-aí volvido

para a morte, e nesta condição de consciência de ser para a morte que tempo se dá.

De modo originário. Contudo, a relação original com o tempo não é algo que se dá

na ordem de uma medida que tem por parâmetro a consciência da morte

simplesmente em um caminhar diário para ela, isto seria fazer da vida uma

ampulheta por onde escoam “agoras” sucessivos. Temos consciência da morte, mas

vida não gira em torno da fixação: quanto tempo ainda me resta? Experienciar

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originariamente o tempo como o ser volvido para a morte significa apreender o seu

próprio naquilo a que Clarice Lispector nomeou instante-já e que citamos

anteriormente. Dasein não é aquele que caminha no tempo, mas sim aquele que ao

caminhar, tempo se dá, fazendo-se tempo, temporalizando. É no caminhar em

direção ao fim que se chega a ser quem se é, é nesta vinda a si - que difere de um

vir a si apenas intramundano, ou seja, ligado a mera funcionalidade dos

acontecimentos cotidianos - que somos conduzidos a nós mesmos. É a referência

ao fim como antecipação que desenha cada instante presente em sua singularidade.

Cada instante único, incalculável e insubstituível.

Françoise Dastur (1990), sinaliza que quando Heidegger se refere a Ser e Tempo,

precisamos atentar ao que diz Ser, ao que diz Tempo e especialmente ao que diz

esse e. A conjunção não justapõe duas ideias diferentes, opositivas, que se

entrelaçam, mas um desdobramento do mesmo, ou seja, uma co-pertença íntima.

Devemos cuidar também para não cairmos no equivoco de tomar ser e tempo como

produtos do Dasein.

Pensar ser e tempo é pensar o homem, Dasein, clareira onde tempo se faz tempo

advindo mundo e história. Mas acostumamo-nos a pensar homem apartado do

tempo originário. Costumeiramente pensamos o tempo como uma abstração

conceitual. Assim, precisamos cuidar para não tomar a temporalidade do Dasein

como um tempo subjetivo, finito, ou seja, uma porção de tempo entre outras

modalidades e possibilidades do tempo eterno. “A temporalidade em sua essência é

finita” (DUBOIS: 2000, p.61).

O homem deve ater-se a sua facticidade não tomando qualquer distância teórica em

relação a si mesmo. Viver a vida ciente da morte não é viver em função de um

acontecimento futuro, ou de um conceito estabelecido e compreendido, mas

perceber o futuro como uma ekstase, como o porvir que se dobra sobre a

presentificação e o faz desperto para a vida mesma. É na iminência deste futuro

como acontecimento, do porvir, que se chega a ser o que se é, que homem se faz

homem pela ação, e, mundo se dá em meio as realizações humanas em relação

essencial com a phýsis.

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2.4.4 – A phýsis e o homem

Pensar questões da ordem da finitude, da angústia e do tempo buscando

compreender como tais questões movem o homem em direção a produção no dar-

se da cultura e da arte implica em trazer ao pensamento as doações da phýsis na

própria constituição da humanidade do homem. Uma vez mais afirmamos: devemos

sempre nos deixar tomar pelas questões. Mas até onde somos capazes de levar o

questionar acerca do homem, da cultura e da arte? Qual profundidade do questionar

nossa humana condição alcança? Seria legitima tal indagação? Passaria de fato

pelo homem, por nós, a medida do questionar? Somos nós a termos as questões ou

são elas a nos ter?

Sigamos. Tomados pelas questões arte, humano e cultura indaguemos acerca dos

limites do questionar. Terão as questões a medida de nosso fôlego?

O limite do questionar não é o não poder questionar, mas o não poder questionar senão a partir das questões em que já estamos todos lançados (CASTRO: 2011, p.263).

O homem pensa desde e a partir das questões. Toda possibilidade de pensamento

consiste justamente neste estar aberto e se deixar por elas tomar. É no questionar

que se aviam as possibilidades para possibilidades; através das questões nos

apropriamos de nossas possibilidades de ser. Através e pelo questionar ouvimos a

fala da linguagem, ou seja, auscultamos o logos e nos apropriamos do que nos é

próprio. Quando nos abrimos às questões que desde sempre nos movem, iniciamos

percurso, colocamo-nos em caminho que conduz através de nós mesmos até

chegarmos a ser o que somos. Exercemos nossa liberdade. Ultrapassamo-nos em

direção a nós mesmos. Vencemos os mecanismos do eu em sua funcionalidade e

avançamos em direção ao próprio.

As questões nos tomam no vigor da Linguagem, somos na Linguagem, nela

alcançamos aquilo que desde sempre nos foi doado como possibilidade. Heidegger

(2008c) já teria nos dito que a Linguagem é a casa do ser. O pensador nos

esclareceu ainda ser o homem mais que um ente entre os demais. O homem como

Dasein, ou seja, o ser-aí, é a clareira do ser, constituindo o aberto onde se instaura

mundo. É por sermos na Linguagem que nos advém o questionar que conduz à

ação e ao mundificar. O que conhecemos por vontade é, em verdade, o operar das

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questões. São elas que moldam nosso querer. Pertence a nós humanos um querer

que constitui nosso intelecto. Tal querer é um querer saber todo o não saber.

Contudo, tanto a vontade que nos move, quanto o intelecto em si são doações da

phýsis.

Constituindo a humanidade do homem encontra-se, como dito anteriormente, a

possibilidade da ação. O homem age e mundifica. Mas esse agir é segundo as

possibilidades que desde sempre lhe foram doadas pela phýsis. Tais possibilidades

permitem criar, pro-duzir. A arte se presentifica em obras por este agir humano. À

essência desse agir os gregos nomearam poiésis. Tanto a phýsis quanto o homem

correspondem a um agir. Assim pensando, podemos ser conduzidos a concluir não

haver diferença entre homem e phýsis. Sabemos que o homem é a clareira do ser,

mas este aberto se dá em extravio, ou seja, no fechado do ente. Assim temos que o

homem é. Tal condição de ser sendo constitui a grande diferença entre homem e

phýsis , pois enquanto o homem é, a phýsis é e não é - ora se manifestando, ora se

velando. Contudo, a phýsis, mesmo quando se vela, age, esse agir se dá a partir

das possibilidades que doou ao homem. No e por meio do homem ela se manifesta

velada.

A mover, impulsionar à ação humana, como já dito, temos a poiésis, que é a

essência de todo agir. Sendo essência de todo agir ela é mediadora, dimensionando

as possibilidades doadas pela phýsis. A poiésis não dimensiona apenas o agir

humano, está presente também nos desvelamentos da phýsis, contudo de um outro

modo, as realizações da phýsis são o que podemos chamar de autopoiésis.

Reiterando: Toda ação humana se dá a partir das possibilidades doadas pela phýsis

que velando-se, manifesta-se por meio do homem. No movimento do real que se

realiza, a doação constitui o grande mistério. A phýsis doa ao ser humano a tarefa

de realizar aquilo que ela própria não realiza, e, nas obras humanas ela se consuma.

Acerca disso podemos considerar que a phýsis:

Joga o ser humano em uma dimensão em relação aos outros entes que não o torna superior ou inferior, mas que lhe dá a responsabilidade de manifestar-lhe o sentido. (...) Uma vez que o ser humano recebeu essa convocação pelo poder chegar a realizar o que a própria realidade não realiza, que são as obras de arte e todas as obras que hoje chamamos de utensílios ou técnicas, ele se constitui de possibilidades que não são dele, mas que nele se realiza. (CASTRO, 2011, p.266)

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O homem recebe da realidade as possibilidades de realização. Esse receber é ao

mesmo tempo um estar jogado na liberdade. Pois as possibilidades se tornam

convocação à realização, visto que o homem tem necessidade de realizar as

possibilidades que recebeu. Acerca de tal necessidade podemos considerar as

palavras da escultora francesa Louise de Borgeois acerca de sua produção artística:

“Faço escultura por necessidade, não por diversão. Não me divirto nem um pouco –

na verdade, tudo o que faço é um campo de batalha, uma luta sem fim”26. As

palavras da artista aclaram questões acerca do querer humano elucidando que a

possibilidade de criação não passa pelo querer, está entre as possibilidades que a

cada homem foram doadas, é destinação. Criar é ser, é fazer-se livre. Criar não é

escolha, é necessidade. O homem é essencialmente livre, mas precisa para tanto

ultrapassar-se, só chegando a liberdade por meio do criar, do pro-duzir, criando se

apropria de suas possibilidades, chegando a ser o que desde sempre é.

É nesse entre liberdade necessária e necessidade livre que se gera a ambiguidade de se achar que a liberdade do ser humano consiste exatamente em ele fazer o que quiser, quando na realidade, ele não pode fazer aquilo que ele quiser, ele só pode fazer aquilo que o constitui como possibilidades recebidas. (CASTRO: 2011, p.266)

Ao refletirmos acerca do criar e da liberdade não podemos deixar de mencionar

Arthur Bispo do Rosário, hoje reconhecido grande artista brasileiro, que em sua

travessia enfrentou com destemor patologia que, segundo estudos de Ida Elizabeth

Cardinalli (2004) realizados a partir do pensamento de Heidegger e Medard Boss,

compromete justo a liberdade de ser, a esquizofrenia - também conhecida como

síndrome da alma fendida. É possível que as contingências da vida em suas

inúmeras solicitações à funcionalidade tenham- no afastado de si mesmo e de seu

próprio conduzindo-o a patologia. Mas nas tramas do destino, o que seria doença o

reconduz a saúde, reconduzindo-o a si mesmo pelas veredas do pro-duzir artístico.

Assim se dão as relações Arte e Natureza, ou seja, Arte e Phýsis, atravessando o

homem e o fazendo livre. Compreendemos então o equívoco em confundir liberdade

com o mero querer. Ser livre é condição ontológica humana, independe de vontade.

26

Citação em matéria assinada pela dramaturga brasileira Denise Stoklos em homenagem a artista por ocasião de seu falecimento no suplemento “Segundo Caderno” do jornal O Globo edição de quarta-feira, 2 de junho de 2010.

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Quando o homem não atende ao apelo ontológico da liberdade adoece. Mas quando

o homem realmente exerce sua liberdade? Ao corresponder ao apelo do real e

realizar aquilo que a própria realidade (como movimento da phýsis) não alcança em

autopoiésis, não realiza. É esse corresponder ao apelo da realidade que eleva o

homem à plenitude de sua humanidade, ou seja, que o leva a ser o que desde

sempre é: livre.

Manuel Antônio de Castro (2011, p. 265) nos diz ainda que a poiésis, como essência

do agir, dimensiona as possibilidades humanas em três instâncias: logos, nous e

techné. Quando o homem se apropria de tais possibilidades pondo-as em obra se

dão arte e cultura. Equivocadamente somos conduzidos a compreender logos por

razão, nous por sensação e techné por técnica, ou seja, algo da ordem dos

aparatos. Mas o que vem a ser em verdade logos, nous e techné?

Acerca da techné realizamos detalhado encaminhamento que nos conduziu a

perceber que entre os gregos não havia separação entre esta e a arte, ambas

consistindo em um trazer à presença aquilo que por si só não pode se presentificar.

Podemos aqui, uma vez mais, reafirmar as palavras antes citadas de Martin

Heidegger (1967, p.2) que nos leva a concluir que arte é techné, mas não é técnica.

A arte como techné, abriga-se em um saber que é uma espécie de “olhar preliminar

naquilo que mostra a forma e dá a medida, mas que é ainda invisível, e que deve ser

primeiramente engendrado na visibilidade e perceptibilidade da obra”.

Quanto ao logos, pensá-lo implica pensar a Linguagem, a morada do ser, lá onde

moram os homens tendo por guardiões os poetas e os filósofos. Podemos

compreender o logos como a fala da Linguagem, que não deve ser confundida com

língua. O homem que pensa é aquele que ausculta o logos.

Já o nous se refere a uma dimensão bastante conhecida dos artistas, a percepção, a

aísthesis, compreendida como o dar-se e revelar-se de algo imediatamente. Isto é, o

dado primário, primeiro. Que não deve ser confundida com meras sensações. O

Homem (corpo) não possui percepção ele é percepção. Segundo Gilvan Fogel

(2009), homem não pré existe a percepção. Percepção não é algo a ser

acrescentado ao homem a posteriori. Não diz de visão, audição, tato, não se

restringe às instâncias sensoriais. Noien, nous, diz da própria condição de ser

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corpo, ser homem. Ser corpo é dar-se conta de. Corpo é percepção. Heidegger

(2006, p.73) nos esclarece acerca de aísthesis, consequentemente nous,

aproximando-a do logos como um modo de deixar e fazer ver, aproximando-a da

verdade: “A visão sempre descobre cores, a audição descobre sons. ‘Verdadeiro’, no

sentido mais puro e originário, isto é, no sentido de só poder descobrir e nunca

poder encobrir (...)”

É dado ao homem apenas o desencobrir na ação, no acontecimento, que se efetiva

na percepção. Mas esta, a percepção, dá-se em virtude do ser. “A percepção é um

acontecimento em que o homem, nele acontecendo, entra no acontecer histórico

como o ente que é”. (HEIDEGGER apud CASTRO: 1982, p.37). Aísthesis se

aproxima da verdade pois é na aísthesis que chegamos ao que se dá no

desencoberto. Ainda pensando o nous tragamos ao questionar as palavras do pintor

alemão Max Beckmann (1996, p.190):

Minha forma de expressão é a pintura; há naturalmente outros meios para isso, como a literatura, a filosofia ou a música; mas como pintor, amaldiçoado ou abençoado por uma sensualidade terrível e vital, é com os meus olhos que devo buscar a sabedoria.

Nas palavras de Beckmann avistamos o acenar da visão. Mas o ver não se reduz ao

órgão da visão, a vista, mas ao perceber, ao nous. Ver é um dar-se conta de. Nesse

caso o mesmo é ver e pensar. Ver seria uma espécie de fora (enquanto aparecer)

que me joga dentro (enquanto refletir) na condição do ser enquanto existir.

Feitos os esclarecimentos acerca de logos, nous e techné retomemos a questão

principal: o homem e a phýsis.

Todo ser humano é uma doação presentificadora da phýsis, as possibilidades de

realização já nos foram desde sempre doadas. Isso faz do homem um ser

essencialmente artístico. Necessitamos de arte, ela constitui nossa humanidade.

Refletindo sobre a condição artística do homem, o pintor Barnett Newman (1996)

teria dito não ter dúvidas de que o primeiro homem foi um artista e que poderia

surgir uma ciência da paleontologia a partir da constatação de que arte antecede a

sociedade. A primeira expressão humana, assim como seu primeiro sonho, teria sido

artístico.

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“A fala foi uma explosão poética e não uma exigência da comunicação. O homem original, ao gritar suas consoantes, o fez como uma manifestação de espanto e raiva ante o estado trágico de sua autoconsciência e de sua impotência diante do nada. (Idem, p.559).

Atravessando o homem, por entre a essência do agir, a phýsis realiza aquilo que

diretamente, sem ele, não chegaria a realizar. É no ser humano que a phýsis chega

a sua plenitude. Pela poiésis mediadora do logos, nous e techné na ação humana, é

que a phýsis possibilita o homem realizar aquilo que ela não chega a realizar

sozinha. O homem se abre ao criar, movido pela poiésis, e, habitante da Linguagem

se deixa tomar pelas questões ao auscultar o logos, tendo o nous como ponte entre

ser e mundo, entrega-se ao produzir na techné. Poiésis articula homem, logos, nous

e techné e assim o pensamento se faz ação corporificando-se em obra.

Tendemos, de modo pretencioso e equivocado, a julgar serem as questões -

aquelas que nos tomam de assalto e nos movem - históricas e culturais. Reforçando

tal equívoco, ajuizamos ainda serem história e cultura construções totalmente

humanas, quando, em verdade, do movimento das questões que nos atravessam é

que se constituem história e cultura. Toda cultura e arte, produções humanas, são

antes manifestações da phýsis, que não é estática como muitos supõem, é

movimento - ação, poiésis. As questões brotam no homem por meio da phýsis que

nele se manifesta no agir, agir este cuja essência é a poiésis.

Outro ponto importante a considerarmos acerca das questões que movem o agir

humano, é a condição de ser único que habita cada homem. É nessa

individualidade, e por meio dela, que o homem é tomado pelas questões. Assim,

cada homem sendo único, visão e compreensão se dão de diferentes modos, sob

diversificadas perspectivas. Dessa diversidade nascem as inúmeras teorias acerca

do habitar humano sobre a terra, inclusive aquelas que julgam serem a história e a

cultura a constituí-lo.

Somente à medida que o homem se deixar tomar pelas questões, caminhará em

direção a si mesmo, em direção à verdade do ser. Tal percurso, como já dito

anteriormente, se dá na e por meio da Linguagem. Contudo, devemos estar atentos

para não confundirmos Linguagem, com a acepção corriqueira de linguagem,

entendida como mero meio de comunicação. Sobre este aspecto o pintor Barnett

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Newman (1999) teria dito que, se considerarmos linguagem como a capacidade de

nos comunicarmos por meio de sinais, sons ou gesto, teremos que reconhecê-la

como uma força animal, haja vista que qualquer pessoa que observe pombos por

alguns instantes pode perceber que a pomba sabe de imediato o que um pombo

comum quer quando este começa a dar voltas ao redor dela. Newman segue

adiante e diz que o que há de humano na linguagem é a literatura não a

comunicação. Portanto, não é o homem a constituir linguagem, é a Linguagem a

constituir o homem. O percurso humano ao se deixar tomar pelas questões se dá no

vigor da Linguagem. O homem tomado por questões está a caminho e no caminho

da Linguagem.

Dos diferentes pontos de vista e modos de compreensão tanto das questões quanto

da Linguagem surgiram os humanismos em suas diversificadas teorias, calcadas em

diferentes paradigmas instituídos ao longo do tempo. Contudo, Manuel Antônio de

Castro (2011) destaca ponto importante ao falar de que quando se trata de

construção de realidade é de suma importância que tenhamos a compreensão de

que as diferentes filosofias não se resumem meramente a diferentes modos de se

responder a uma mesma questão. Trata-se antes de tudo de um aprofundamento do

humano nas questões.

São níveis diferentes de se perguntar e aprofundar as respostas dadas e são modos sempre diferentes de se encaminharem os desafios que elas, em todas as épocas, propõem. São níveis diferentes de se perguntar e aprofundar as respostas dadas e são modos sempre diferentes de se encaminharem os desafios concretos criados pelas experiências históricas da vida e da linguagem. (Idem, p. 264).

Por mais que se defenda ou questione os inúmeros paradigmas, o que permanece

inquestionável é o fato de que o homem produz, poética e filosoficamente, movido

por questões.

Retomando a questão da cultura percebemos que tendemos a tomar o meio em que

o homem vive por sua medida. Há quem defenda que seja o homem um produto

cultural. Contudo, quando compreendemos os mecanismos da produção humana

percebemos não ser a cultura a constituir a natureza humana, mas sim a natureza a

constituir cultura. Quando produz cultura, o homem referencia a phýsis. Somente a

partir dos envios da phýsis é capaz de produzir. Os mistérios da própria phýsis e o

apelo do mundificar no fluxo das questões que o movem é que fazem com que ele, a

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partir das possibilidades que lhe foram doadas pela própria phýsis, cultive e cultue.

Se o homem produz cultura tomado pelo apelo de fundar mundo, e se esse apelo

constitui parte de sua liberdade essencial, fica claro que não é a identidade cultural

que o eleva a sua humanidade. É na cultura que o homem manifesta a natureza, a

phýsis, e é assim, elevando a phýsis a seu grau máximo de realização, que o

homem alcança sua humanidade, pois ela reside justamente nas possibilidades de

ser, só a ele doadas.

Assim, recapitulando as relações entre phýsis/homem/arte/cultura, compreendemos

que o operar da phýsis se dá de dois modos distintos: um no velado e outro no

desvelado. Desveladamente origina os diferentes entes da realidade e veladamente

opera no ser humano, constituindo a essência de seu agir. “A este agir humano,

operando na medida do ser, os gregos chamaram poieîn, que deu origem às

palavras poesia, poema e poeta. A essência do poieîn é a poiésis”. (CASTRO, 2011,

p. 265). O operar da phýsis no homem, sendo possibilidade de realização das

possibilidades por meio da ação, é poiésis. No agir humano, a mediação enquanto

poiésis se dá na justa medida da destinação do ser enquanto sentido, Linguagem.

Assim o homem mundifica. Assim é o seu obrar em arte. É nesse presentificar o

que sem ele não viria a presença, que o humano do homem se consuma. O

humano se dá nas possibilidades do homem chegar a ser o que desde sempre é

através da poiésis, ou seja, pelo sentido do agir que manifesta a phýsis onde ela

mesma não pode manifestar-se. Assim o homem produz. Assim se dá arte, cultura e

história. A liberdade do homem se dá neste apropriar-se de suas possibilidades. A

consumação dessa liberdade é o que podemos considerar obra de arte. Este o

sentido da arte, seu télos. Assim, percebemos que obra de arte é phýsis,

consumando-se a partir do homem em sua verdade e sentido, isto é: mundo.

O homem, essencialmente livre, exerce a plenitude de sua liberdade ao habitar,

construir, pro-duzir. Contudo, a compromete quando se empenha apenas nas

relações e produções de objetos, entes, utensílios, como presenciamos na era da

técnica. Há um comprometimento da liberdade de ser quando seu agir é apenas

intramundano e se fecha no ente, renegando o aberto que instaura mundo. Tal agir,

por configurar um “fazer”, já não um pro-duzir, mais escraviza que liberta, pois se dá

circunscrito a uma esfera de significados que passam ao largo do sentido que rege

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nossa humanidade. Tais relações se dão sempre no nível dos entes, onde há o

esquecimento do ser, levando o homem a distanciar-se do que lhe é próprio. Acerca

disso, Castro (2011, p.267) nos diz:

Os significados vigoram no estabelecido como código e suas possíveis combinações entitativas, isto é, meramente funcionais. Toda função se reduz a uma finalidade dentro de um sistema já dado. O código nunca apreende o acontecer da phýsis como mundo e sentido, porque nele nunca se dá a sua manifestação como acontecer.

Quando o homem põe a frente da pro-ducão as finalidades, estabelece uma relação

entitativa com o produzir, reduzindo-o a um mero fazer. Tais finalidades estão

sempre inseridas em um sistema de significados. Toda relação estabelecida para

um fim específico é entitativa, Nessas relações de finalidade estão os utensílios, não

as obras de arte. Mas este é apenas um dos modos de se relacionar com o fazer. As

relações originárias da poiésis não visam finalidades, não são realizações que visam

um fim específico, são pelo sentido, e nelas vigem o logos, o nous e a techné. Tais

relações estabelecem produções que em muito excedem ao mero utensílio. Quando

o homem abandona os significados e as finalidades e se entrega ao sentido

originário do ser ele produz obras de arte. Nelas e por meio delas a phýsis se doa

como mundo e o homem se eleva em sua humanidade.

Ao longo da presença do homem sobre a terra sabemos que muitas foram as formas

de nomear a phýsis, e até de compreendê-la, variando conforme épocas, cultos e

culturas, havendo, na modernidade, efetivo empenho em separá-la da cultura e da

arte. O inegável para nós, após os questionamentos realizados e os

encaminhamentos propostos é que, na obra de arte, phýsis chega à plenitude de

seu manifestar-se. Nos mistérios da phýsis, que velada eleva o homem a sua

plenitude e na ação humana se consuma, estão as possibilidades artísticas e

culturais. Rememorando uma vez mais palavras de Manuel Antônio de Castro

(2011) somos conduzidos a refletir que na harmonia do dueto phýsis-homem para

além da divinização do homem, temos a humanização do mistério.

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3. Afresco

No início de nosso percurso, ainda na introdução a este estudo, aclaramos nosso

desejo de aproximar o modo de pensar as questões que nos movem, do ato próprio

ao ofício do restaurador, isto é, da prospecção. Inúmeras obras pictóricas, sobretudo

afrescos, são encontrados e trazidos novamente ao seu vigor artístico, depois de

removidas as camadas de tinta que os mantiveram velados ao longo dos séculos.

Antes de iniciar a raspagem total, o restaurador realiza a prospecção, que constitui

em raspar cuidadoso com o auxílio de um bisturi, um pequeno retângulo, que por

vezes não excede dez centímetros, revelando-se como pequena e estreita “janela”

que possibilita visão geral de tudo que ficou encoberto no desdobrar-se das épocas

ali materializadas em camadas sobrepostas de tinta.

Avistamos neste fazer do restaurador um sinalizar metafórico da própria dinâmica

do tempo e da existência. A prospecção como um fazer que antecede a restauração,

consiste em uma ação que, de certa forma, de um ponto futuro ao da feitura da obra

a ser desvelada, se dobra sobre o presente onde a obra já é passado, desvelando

neste “passado” o vigor de um porvir, naquela que mesmo permanecendo por

séculos velada, não perdeu sua essência, e re-presentificada volta a vigorar como

ação do logos, que por meio da téchné - no empenho antes do artista - e agora do

restaurador, propõem uma vez mais questões aos espectadores, convocando-os ao

diá-logo.

Todo nosso empenho se resume na ação de “raspar” abrindo uma “pequena janela”,

onde a arte em seu vigor se mostre. Dissemos anteriormente que, em nossa tarefa

de rever o pensar e o fazer artístico em seus desvios a partir da modernidade,

tomaríamos por bisturi o próprio verbo: “restaurar”, que em seu sentido mais antigo

diz de um refazer um rito que não foi bem executado. Contudo, esclarecemos que

não defendemos uma tentativa de retorno, buscando no passado aquilo que já se

foi. Não se trata de tentativa de repetição, mas sim de retomada. Há que se re-

buscar, retomar a movimentação do começo. Sabemos que na dinâmica do tempo

se fazendo tempo, dia e noite se sucedem. Mas ainda que cada noite retorne

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sempre ao dia, jamais retorna ao dia anterior. Não pretendemos lutar contra o tempo

na sucessão dos dias.

Toda produção humana que se dá no ciclo dia-noite constitui memória. Não se pode

arrancar do tempo a memória, não se pode lograr do futuro seu passado, tampouco

retornar ao passado apagando o que posteriormente a ele se deu. Todo feito se

resguarda na memória. O caráter de retomada que propomos pode ser entendido

como a compreensão do homem, de sua origem, na dialética tempo-memória. A Arte

começa onde o homem se depara com o fim, com a finitude, os questionamentos

acerca da arte não podem ignorar essa origem.

Julgamos importante aclarar que ainda que a palavra prospecção tenha sido colhida

inicialmente do vocabulário da restauração, não devemos aqui, compreender

retomada como “a restauração” do começo, ou seja, “restauração” do passado das

obras, ou ainda, das próprias obras vindas antes à presença, julgando que apenas

nelas a arte vigore. Não há como restaurar passado, nem mesmo o de obras de

arte, visto que é próprio a uma obra de arte ser sempre no presente. Quanto ao

passado, não há restauração que nos devolva a fruição de outro tempo. Jamais

teremos a mesma experienciação que teve um homem do século VII a.C diante de

afrescos etruscos27 ou de um do século XIII diante de afrescos de Giotto28 . Olhar

para tais obras hoje é lidar com densas camadas de memória e história, e com todas

as experiências vivenciais que nos conduziram ao local onde nos encontramos hoje

e que fazem com que sejamos quem somos diante das obras, sejam elas afrescos

etruscos ou a videoarte de Nam June Paik29. Pretender restaurar um modo de

experienciação passado equivaleria a:

(...) querer ser um instrumentista surdo, um músico que acha possível tocar Bach hoje como se tocava no tempo de Bach, só porque se restaurou os instrumentos daquele tempo, a técnica dos músicos daquele tempo, as igrejas-auditório daquele tempo. Mas para tocar Bach como naquele tempo seria preciso arrancar dos ouvidos toda a memória de Beettoven, da música atonal, do rock posteriores. (SHUBACK: 1996, p.63)

27

Arte etrusca refere-se à arte da antiga civilização da Etrúria localizada da Itália central (atual Toscana) e que teve seu apogeu artístico entre os séculos VIII e II a.C. 28

Giotto di Bondone – Pintor e arquiteto italiano (1266-1337). Um dos primeiros artistas a romper com as tradições medievais da pintura. 29

Artista sul-coreano (1932-2006) precursor da videoarte.

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Assim também se daria com Leonardo da Vinci caso pretendêssemos vê-lo como os

seus contemporâneos o viram. Para tanto haveríamos de apagar de nossas mentes

os experimentos cubistas, entre outros. Nós vimos Picasso. Aliás, essa é a grande

diferença entre esses dois grandes gênios da pintura: Picasso viu Leonardo da Vinci,

da Vinci não viu Picasso. O espanhol por ter crescido impregnado do legado dos

renascentistas italianos, aos 15 anos já pintava como Rafael Sânzio30 .

Quando falamos em restauração de modo algum nos referimos a reviver

experienciações de outrora, tampouco trazer de volta o que já foi, ou refazer o feito.

Propomos um retorno, uma retomada da origem, para, interpretando o já feito,

encontrar nele a força do por-fazer. A verdadeira produção artística e/ou histórica é

aquela que a cada obra retoma a origem, a essência. “A essência das coisas é o seu

possível e, portanto, o que pode (ou não) vir a ser". (Idem p.65). Assim se dá arte,

história, memória. Arte e história constituem o memorável, na mesma medida em

que a memória erige arte e história. Toda e cada obra artística genuína compõem

esse memorável e é por ele composto, sempre reinaugurando, retomando o início.

Cabe à tradição administrar a memória. De modo geral ela quem “guarda” o

memorável. A história como a conhecemos está a serviço desta tradição. Contudo,

antes e primeiro deveriam guardar, não descuidar do começo, da origem, da força

que põe tudo em movimento; mas, sem obstruir a passagem, deixando o caminho

para a fonte livre. Guardar, não esconder sob camadas e mais camadas de

paradigmas. Por vezes, a tradição esconde a fonte de onde ela mesma se originou.

A prospecção que aqui propomos nos chega ao pensamento como um movimento

de retorno a essa origem, em um embrenhar-se sob as camadas sobrepostas da

historia “historiográfica” que obstruíram a fonte. Tal movimento de retorno pode, de

certo modo, ser pensado como uma desconstrução da tradição.

A tradição remete ao começo mas se movendo apenas nas formas, nos tipos, nos exemplos historiográficos, mantendo-se no nível das evidências. (...) Conduzir a tradição para além de seus dados e retorná-la a sua fonte, ao movimento de sua constituição. Não se trata de destruir a tradição no sentido de uma revolução cultural. Trata-se de desfazer as suas construções, de remover suas pedras e alcançar suas fundações. A destruição da tradição, que Heidegger assume como tarefa de seu pensamento em Ser e Tempo, tem esse sentido desconstrutor do senso-comum, do consolidado (...) É

30

Mestre do Renascimento Italiano (1483-1520). Pintor primoroso, célebre pela perfeição e suavidade de suas obras.

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preciso “que se abale a rigidez e o endurecimento de uma tradição petrificada e se removam os entulhos acumulados. (SHUBACK: 1996, p.66)

Márcia Shuback (1996) esclarece que quando Heidegger se refere à desconstrução

e remoção de entulhos não está falando da destruição da tradição ontológica. Sua

crítica se refere ao modo como em nossos dias a história da ontologia é tratada. A

prospecção que propomos é análoga a esta “remoção de entulhos”, um meio de

devolver a dados e fatos ao vigor de seu começo, ou seja, ao lugar das

possibilidades. Por vezes, ao removermos camadas, sejam elas de tinta ou entulho,

não encontramos construção, afresco ou mesmo pedra angular. Somente o vazio.

Um vazio repleto de possibilidades. Vazio possibilitador que nos põe em marcha,

impulsionando-nos em direção ao por-fazer.

Uma bela imagem para associarmos a desconstrução que reconduz a origem

proposta por Heidegger é a Igreja de São Clemente em Roma. (SHUBACK, 1996).

Na entrada um altar Barroco, descendo um lance de escadas avista-se colunas

medievais, desce-se mais um lance e temos um antigo templo pagão dedicado a

Mitra. Ao fim de mais um lance de escadas nos deparamos com um olho d´água em

toda sua profundidade. Ao fim desta escavação não se encontrou um paradigma

“mas a confirmação de que ali era o lugar daquelas construções, da estratificação de

sentidos diversos e afins, porque ali era o lugar da fonte” (Idem, p.67). Deixando-nos

conduzir por Shuback, percebemos que a Grécia é o olho d´água de Heidegger.

Finalizando os esclarecimentos, pontuamos que ao tomarmos o verbo “restaurar”

por bisturi não somos movidos pela ingenuidade ou pretensão de nos tomar por

restauradores. É a própria arte, enquanto doação da phýsis no humano e em todo o

movimento a que chamamos vida, quem age em autorrestauração. Constitui nosso

empenho apenas acenar em direção ao que no pensamento crítico e nas produções

ditas artísticas perdeu vigor, ao soterrar-se sobre camadas e mais camadas

conceituais. Cremos que, no remover das camadas conceituais, o inicio, revela-se.

Como já teria nos dito Martin Heidegger: “a verdade se revela no fim”. Reafirmamos

uma vez mais que velada ou desvelada, a arte, nem pelo átimo de um instante,

deixou de ser. Contudo, acreditamos na urgência do pensamento que ao se dirigir à

arte reencontra a origem, o olho d´água, a fonte que ao jorrar faz o rio correr. Há que

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se deslocar o pensamento da evidência das coisas para a movimentação do

começo, para a essência. Parafraseando Shuback ousamos dizer que se faz

necessário reconduzir o dito, o já sabido e o historicamente compreendido para o

começo de um novo dia, onde haveremos de nos questionar de modo incessante

acerca da essência da arte.

Na realização da “raspagem”, ao longo de toda prospecção - fosse ela o olhar para

trás a dizer do ofício do restaurador encarregando-se do já dito, ou o lançar-se à

frente no olhar prospectivo como possibilidade humana – constituiu nosso empenho

reflexivo buscar avistar no visto, o ainda não visto e, no dito, o por dizer. Desde a

primeira página até aqui, buscamos fôlego para, camada após camada, ir ao

encontro da essência do que seja arte, do que seja homem, pois acreditamos que

somente assim uma escrita sobre a arte pode se aproximar do vigorar da verdade

nas obras.

Após adentrarmos as camadas de tinta que se depositaram sobre o feito de

Duchamp em forma de escrita crítica, sob o lume do pensar originário fomos

conduzidos aos envios do desvelamento explorador na era da técnica, e assim

pudemos perceber que tanto a escrita quanto determinados segmentos da produção

artística “contemporânea” estabeleceu um fosso conceitual entre arte e obras. Neste

fosso a arte se retraiu, permanecendo em recolhimento no velado do ser diante de

alguns trabalhos, haja vista que o desvelar da arte se dá no movimento das

questões e não no estagnar dos conceitos. Inúmeros artistas, teóricos e

historiadores se perderam da essência da arte como a porção mais humana do

homem. Ou seja, perderam-se da arte como o que constitui a humanidade do

homem, isto é, arte como necessidade e liberdade.

Revisamos também parte do percurso conceitual da escrita teórico-crítico-histórica

da arte até onde o fôlego nos permitiu na busca por mapear onde se deu o desvio ou

bifurcação que culminou com o apartar de arte e obra. Na medida em que as

questões foram aflorando, fomos sendo conduzidos, pela dinâmica do próprio

pensar, a estâncias originárias, em que nos deparamos com questões mais

profundas, ontológicas, que envolvem phýsis e tempo na dinâmica do desvelar-se da

arte por meio do homem como necessidade, mistério da potência do criar.

Necessidade de arte esta, que eleva o homem em sua humanidade, fazendo com

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que chegue a ser o que é, isto é, livre. O homem tem necessidade de arte. O artista

tem necessidade de criar. A esse respeito Van Gogh já teria dito a seu irmão Théo

em carta:

Ah! meu irmão, às vezes sei tão bem o que quero! Posso muito bem na vida e também na pintura me privar de Deus, mas não posso, sofrendo, privar-me de algo maior do que eu que é minha vida, a potência de criar. (VAN GOGH, 2002, p.264).

Vivemos tempos sombrios já descritos na introdução deste estudo em que muitos

falam da morte da arte (inclusive artistas) e da morte da história. Sabemos que tudo

isso não excede o território da falácia, haja vista haver, ainda, humanidade.

Obviamente enquanto houver um único homem sobre a terra haverá arte. Haverá

história. Pois, o homem é, em sua essência, artístico e histórico. Neste capítulo ao

qual nomeamos “Afresco” na estrutura de nosso pensamento, direcionaremos nosso

olhar a duas obras de arte, buscando nelas avistar algumas das importantes

questões acerca dos desvios do homem no impróprio que pudemos perceber ao

longo da dinâmica deste estudo. Contudo, antes precisamos ainda compreender

efetivamente o que seja este “impróprio”.

3.1 – Do Próprio e do Impróprio

Para compreender o que seja o impróprio, precisamos uma vez mais refletir acerca

do que seja o próprio. O próprio não pode ser confundido com o eu, ou seja, com a

subjetividade. O eu se constitui a partir da funcionalidade, do dar-se do homem no

intramundano entregue as atribuições cotidianas. Ou seja, o eu é um produto da

funcionalidade das funções que as conjunturas impõem ao homem, enquanto o

próprio se concretiza na liberdade do ser sendo, agindo, apropriando-se de suas

possibilidades de realização. Ambos precisam estar integrados, sem exclusão, na

dialética do existir. As relações entre o eu e o próprio precisam se dar em equilíbrio,

ambas as dimensões, sem exclusão alguma, compõem o humano. O próprio é um

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dar-se do destino e da história na abertura existencial que é o homem, o Dasein.

Manuel de Castro31 nos diz que este dar-se do destino acontece dentro de um

conjunto de referências e relações. Tal dinâmica não se reduz às relações com o

meio ou com a cultura, trata-se das relações que se dão de modo essencial, um

volver-se sobre a essência de si mesmo, algo que vigora no ser do homem, sem

excluir nenhuma das referências. Ou seja, nenhuma das dimensões humanas, a

saber: as genético-familiares, históricas, sociais, psíquicas, religiosas e criativas.

Em Madras: Arte e sagrado em Arthur Bispo do Rosário32 realizamos o seguinte

encaminhamento acerca desta questão:

Somos uma amálgama de tudo, mas que ao mesmo tempo resguarda no centro deste tudo, o Nada. Sabemos ser amálgama uma reunião. Se re-uniu, antes estava disperso, havia distância entre. Importante considerar não apenas o espaço que algo amalgamado ocupa, mas também o espaço que habita e compõem amálgama enquanto amálgama, ou seja, aquilo que se reuniu. Há um vigorar de espaços, ainda que não visíveis ou não compreensíveis, “entre” as partes reunidas. Há o vazio. Por este vazio, o fluir de toda possibilidade; é por estas frestas que o que nos é próprio flui.(...) As possibilidades do que nos é próprio é um vigorar a partir do Nada que habita os interstícios daquilo que faz de nós o que somos, ou seja: nossa família, história, lugar etc., enfim, todas as condições que nos foram doadas pelo destino. É no vigorar deste Nada – que habita estas trincaduras ou minúsculas fendas entre os fatores que nos constituem – que repousam todas as possibilidades de sermos. (BÊTA, 2012, p.88).

É nesta conjuntura que irrompe o próprio em um querer-poder que se firma em

realizações a partir das ações humanas, ações estas que são articuladas pela

poiésis. O eclodir do próprio, contudo, se dá na combinação entre possibilidades e

condições. As possibilidades são doações do ser, ou seja, é o mistério da phýsis se

realizando no e a partir do homem. Já as condições são advindas do meio: social,

histórico, familiar etc. Nada se dá em separado, não bastam as condições sem as

possibilidades, e de nada servem possibilidades se não houver condições para que

aflorem.

Na dinâmica das necessidades humanas há as ontológicas e as intramundanas. Ou

seja, as conjunturais que estabelecem fins específicos e aquelas que desde o

mistério do que somos, da existência, convocam-nos. Nossa travessia se dá em

31

“Próprio”. In: http://www.travessiapoetica.letras.ufrj.br. 32

Ensaio de minha autoria referente à dissertação de mestrado, publicado pela editora Tempo Brasileiro como volume 1 da coleção Pensamento Poético. A referência completa consta da bibliografia.

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meio a essa disputa entre as necessidades essenciais e as demandas do cotidiano.

É na não concordância entre possibilidades e condições, no desequilíbrio entre o

essencial e o emergencial que o homem cai no impróprio. Muitas vezes nos afazeres

intramundanos a face do eu se solidifica e se impõe, sobrepondo-se ao próprio.

Vamos nos esquecendo de quem somos, de nossas necessidade ontológicas.

Abdicamos de nossa liberdade, cambiando-a por uma pseudo “segurança”.

Afastamo-nos da arte e nos aproximamos da técnica moderna com seus muitos

aparatos funcionais. E, na medida em que nos aproximamos da ciência e da razão,

esquecemo-nos dos mitos e dos rituais que compõem nossa essência originária.

Fazemos nossas escolhas. Mas sempre há um preço a ser pago. O eu inúmeras

vezes revela-se inimigo do próprio. É neste contexto que se dá o esquecimento do

ser, é assim que nos perdemos de nós mesmos. É na hipertrofia do eu, submisso à

funcionalidade da vida cotidiana que caímos no impróprio e adoecemos. Inúmeros

males nos acometem no encalço da “morte da arte”, dos rituais, da poesia.

Para Duarte Jr (1986), a primazia da razão e a primazia do trabalho representam

aspectos básicos da cisão da personalidade humana na modernidade. Fazemos eco

ao pensamento do autor quando ele defende que os grandes males humanos têm

inicio com o equívoco que foi ter tornado a razão detentora de tanto poder. Como se

somente ela fosse capaz de “solucionar” os problemas humanos, sendo

considerados problemas “reais” somente aqueles que fossem apresentados ou

reconhecidos pela ciência.

Com relação ao trabalho (referimo-nos ao trabalho excessivo e mecânico e aqui

atrelamos a expressão “trabalho mecânico” toda e qualquer função/profissão que em

seu pôr-se em ação siga parâmetros da funcionalidade, que conduzam a um fim

específico e pré-determinado de modo mecanizado), vislumbra-se apenas a

produção de bens de consumo, sempre direcionados a fins utilitários. Com esta

posição diante do trabalho o desenvolvimento passa a ser visto por grande parte dos

povos, como o fazer/produzir cada vez em maior número bens

manufaturados/industrializados que tem em seu cerne produtivo o uso

indiscriminado da natureza, transformada em mero dispositivo para algo.

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Tal primazia da razão conduziu o homem a um racionalismo exacerbado, e, com tal

hipertrofia, acaba-se por aniquilar dimensões básicas da vida, tais como valores e

emoções. Com a primazia do trabalho o homem se afastou do lúdico, dos rituais, da

arte. Condenou-se a condição de sentir, inerente ao ser humano, a um patamar

inferior na escala das prioridades oficiais. A arte ficou reduzida a mero lazer, ou

atividade para as horas vagas, ou, pior ainda, a segmento de mercado. Grande parte

dos que dela ainda se ocupam, na condição de artistas profissionais, galeristas,

marchands, curadores etc., visam apenas o “objeto”, e ainda que seus discursos

sejam pelo fim do “objeto artístico” movimentam as estruturas, a mover engrenagens

que transformam obras em commodities. Os que deveriam defender a arte em sua

essência e poder manifestador, ou seja, a arte pela vida, ocupadíssimos,

embrenham-se pelo mercado especulativo.

Enquanto nos distanciamos do que nos sensibiliza, do que nos faz pensar, somos

continuamente induzidos a crer que precisamos de mais do que de fato para

sobreviver. E todo esse “mais” nos é oferecido pelo sistema. Podemos encontrar à

venda, bastando que para tanto haja dinheiro. Obviamente precisamos de dinheiro.

Para o dinheiro: trabalho. Assim o sistema segue se autogerindo. E nesta roda viva

somos, cada vez mais, apartados de nós mesmos. Seguimos, cegos e errantes

cambiando o bem pelos bens.

Tempos assim tão sombrios nos remetem ao que Emmanuel Carneiro Leão (2010)

chama de século vespertino. Mas o que seria um século vespertino?

Século vespertino é um século de acumulação e esvaziamento, onde relacionamentos, afazeres, conquistas, recursos, instituições, grupos e indivíduos, tudo em fim é protegido, promovido e favorecido mas, ao mesmo tempo, perde a liberdade e fenece em originalidade. Impera por toda parte um vazio saturado pelas dependências de ter ou não ter. (Idem, p.46)

O ritual, a dança, a festa, são gradativamente afastados do cotidiano. No dia-a-dia, o

dar-se apenas do trabalho. A funcionalidade acima de tudo. Só o trabalho

remunerado permite consumir, e o consumo nos traz a acalentadora ideia de

dignidade. Só são considerados sábios os que não perdem “tempo”, e aqui o tempo

deixa de ser o tecido de nossas vidas, para, interpretado de modo ôntico, receber a

pior das conotações: tempo compreendido como dinheiro. Ser realista é ser racional,

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e os racionais não sonham e não perdem “tempo” com a emoção. Para esta há um

calendário específico.

A hipertrofia da razão nos encaminha para a morte do próprio e, assim,

mergulhamos no impróprio. Contudo, seguimos adiante, em verdadeira zumbie walk,

adoecidos de nós mesmos. Negando o sentimento (lembrando que, como nos disse

Fernando Pessoa o mesmo é pensar e sentir), o sonho, e a arte, as emoções

perdem seu canal de expressão e o peso da finitude na funcionalidade dos dias

esmaga nossa humanidade. É neste cenário que afloram as explosões de ira e

violência, bem como as chamadas doenças da alma.

3.2 – Obras e Questões: A arte, o mito e os ritos

Por isso também o filósofo é de alguma maneira amigo dos mitos33.

Aristóteles

Nestes tempos obscurecidos, tempos do impróprio, a melancolia, que na idade

média era conhecida como bílis negra, estende seu véu sobre o homem, pondo-o de

luto. Luto de si mesmo. Parte significativa da humanidade, ao modo de uma parcela

da chamada “arte contemporânea”, assiste ao próprio velório em missa de corpo

presente, ao perder-se de seu próprio e vagar pelo impróprio. Afastando-se da

essência do criar o homem se mantém preso ao intramundano, não sai de casa.

Tomado pela funcionalidade se entrega a apatia do correr dos dias e, sem forças

para, em última instância, entregar-se à angústia que salva, apenas o medo o ronda.

A consciência da morte, que no percurso pelo próprio nos impulsiona ao criar, no

caminho do impróprio nos esmaga. Na encruzilhada dos caminhos a maioria de nós

se perdeu daquela que alivia da vida sem aliviar do viver. A depressão se revela o

mal do século. Só alguns poucos, os mais angustiados, ao abdicarem do conforto da

33

Apud LEÃO: 2010, p.46

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casa, do cotidiano, e arriscarem-se no aberto do mundo, encontram na “caverna

mágica” que é a arte, abrigo e acolhimento.

Uma obra da chamada sétima arte, o filme Melancolia (2011) do cineasta

dinamarquês Lars Von Trier, nos fala dessa condição que assola nossos dias,

atirando-nos na face a questão do homem e o perder-se de si em meio à

funcionalidade. Em belíssimas tomadas, carregado de referências artísticas e

filosóficas, tendo por trilha sonora Richard Wagner, Melancolia descortina diante de

nossos olhos a verdade acerca do habitar humano neste ao qual nos habituamos

chamar “contemporâneo”.

O filme nos desperta para, entre outras questões, a consciência da finitude e o peso

da iminência do fim quando se vive no impróprio, quando atravessamos a vida e não

chegamos a ser quem somos. Na história, duas irmãs, Justine e Claire, lutam por dar

algum sentido à suas existências, mas seguem perdidas de si mesmas. Justine

(nome que possivelmente é uma referência à “Justine” do Marquês de Sade), e

Claire são as personagens a partir das quais a trama se constrói. O filme nos mostra

o constante estado melancólico de Justine (e este recorte nos aproxima do

experienciar individual da melancolia), contraposto à iminência do fim da

humanidade com aproximação do planeta Melancolia em rota de colisão com a terra

(a nos oferecer uma experiência coletiva do melancólico).

O filme inicia com o fim, ou seja, com a colisão entre os planetas, para que nenhuma

expectativa com relação ao final, ou seja, ao desfecho da trama, possa nos

desvirtuar dos diá-logos originários que a obra propõe. Na sequência, inicia-se a

primeira parte, apresentando a história de Justine no dia de seu casamento que se

revelará fracassado ainda durante a festa. Justine vaga pelo impróprio. Ama arte, o

que é demonstrado em seu momento de talvez maior sofrimento durante o filme -

após discurso de casamento proferido por sua mãe, uma pessoa visivelmente

amarga e descrente do amor - que desencadeará a compreensão do espectador de

todo o processo melancólico de Justine que, naquela noite, culminará com o fim do

casamento que acaba de se realizar.

Após o discurso amargo e cruel da mãe, ao buscar a fuga de si mesma, ou seja, do

seu eu cotidiano, refugia-se na biblioteca em meio aos livros de arte, abrindo-os,

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com a urgência de um animal ferido, em páginas que revelam grandes obras, os

mantendo assim abertos nas prateleiras, como se assim pudesse ser salva.

Justine ama arte, mas é publicitária. Publicidade, com uma ponta de ironia,

podemos compreender como “o lado negro da força”, o uso dos conhecimentos e

dos domínios artísticos para o mal. Ou seja, o artístico não como o que fomenta e

desencadeia o questionar e aproxima o homem de si mesmo, mas sim como o que o

aliena, aniquilando toda possibilidade de pensamento crítico, transformando-o em

massa amorfa, homogênea e de fácil modelagem. É o território da manipulação.

Para além da insatisfação com o emprego no qual, aliás, é muito bem sucedida e

respeitada, a história de Justine se desenha a partir do pai e da mãe, cada qual a

seu modo egoísta profissional, da irmã Claire que tenta a todo custo ajudá-la,

inclusive preparando sua festa de casamento, do cunhado (homem muito rico) que

financia tudo, e de um sobrinho pequeno que a admira, talvez por ainda não ter

entendimento das fraquezas dela e pelo qual ela visivelmente nutre amor sincero.

Após o fim do casamento ainda durante a festa, a personagem entra em estado de

prostração melancólica, incapaz de reunir forças para seu estar no mundo. Segue

sobrevivendo sob os cuidados da irmã.

Em contra-partida à Justine, Claire, sua irmã, é aparentemente uma mulher forte,

bem casada e mãe. Mas seu universo particular desmorona ao ver-se na iminência

da morte do filho e da própria morte, que se desvela na face do Melancolia, planeta

que se aproxima da Terra. Seu marido é quem demonstra maior equilíbrio diante da

situação. Homem esclarecido e estudioso, não acredita no fim, afinal, cientistas

afirmam que o planeta não está em rota de colisão, e que passará ao largo da Terra.

Sua fé na ciência o mantém calmo e centrado, a razão o acolhe. Contudo, ao

descobrir, pouco antes do fim efetivo, que os cientistas erraram os cálculos e que

haverá de fato a colisão, não suporta o peso de ter de reconhecer a inexatidão da

ciência. Tal consciência associada ao medo da morte efetiva furta-lhe o equilíbrio, e,

antecipando-se ao destino, numa tentativa desesperada de permanecer no controle,

vê no suicídio a saída, abandonando a mulher, o filho e a cunhada a própria sorte.

Após o suicídio do marido, Claire, em estado de desespero, tenta fugir com o filho.

Mas fugir para onde? Não há como fugir de si diante da morte iminente.

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No fim, recobrando as forças, é à imaginação criativa que Justine vai recorrer para

aliviar a si mesma, ao sobrinho, e a irmã do medo da morte. Constrói junto com o

menino uma cabana. Por material usam gravetos, poesia, magia. Ali estarão

protegidos, no ritual de construção reafirmam sua humanidade. O habitar. No refúgio

edificado aguardam o derradeiro e fatídico instante. A arte segue aliviando-os da

vida, enquanto aguardam o fim do viver.

A obra citada aponta para diversas questões acerca do tempo humano sobre a terra,

ou seja, do homem como clareira do ser e a necessidade de sermos livres,

apropriando-nos do que nos é próprio e, dos riscos de caminharmos no impróprio. O

homem é possibilidade para possibilidades, mas, entre as possibilidades que lhe

foram doadas figura, projetando-se do porvir, a morte, como a impossibilidade de

todas as possibilidades. A consciência da finitude é o que impulsiona o homem, o

que o conduz no agir, na produção, na arte. É na ação, no criar, que ele se faz livre.

O homem não desenha ou escreve o caminho, sua relação com o percurso é da

ordem da inscrição. Cabe ao homem deixar sua marca. Ao inscrever-se em

instantes-já, esboça o acontecer, o porvir, sua historicidade, constituindo a si e a

história.

Acerca da questão da morte e do trabalho, ou, melhor dizendo, acerca da morte e do

trabalho como questões, Emmanuel Carneiro Leão (1977) realiza profunda reflexão.

Partindo da hermenêutica existencial aclara pontos importantes acerca da

interpretação do mito da criação que envolve a condição do trabalho humano e da

consciência da morte. Sobre a importância dos mitos de modo geral, e deste em

particular, destacamos aqui duas frases do pensador: “ho mythos exprime o destino

que se lega historicamente à existência” e “Todo mito é uma avalanche da

Linguagem que toma corpo e se encarna numa história”. (Idem, p. 196 e 42).

O Mito traz, entre suas características essenciais, a obscuridade. Precisamos

aprender a ver no e através do escuro para que ele se abra em sentidos para nós.

Acerca da obscuridade dos Mitos, Carneiro Leão (2010, p.47) ressalta o aspecto

positivo e fundamental, pois nos coloca em posição de aceitar os limites, aceitar o

não saber de todo saber.

Os limites não apenas nos retiram e recusam alguma coisa. Os limites quando o fazem, só o fazem para nos conceder e pôr nas possibilidades que somos e por isso

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mesmo temos. Pretender eliminar obscuridades tão criadoras equivaleria à impotência de poder tudo, de saber tudo, de fazer tudo. Pretender esclarecer tudo, é não ver nada. Para o homem finito, definido pela mortalidade, uma clareza sem sombras não esclarece cega.

Para ilustrar essa passagem podemos recorrer ao personagem do filme de Lars Von

Trier, o marido suicida de Claire que apoiado apenas nas luzes da razão descobriu-

se “cego”, desamparado, no derradeiro instante.

Os mitos em sua obscuridade nos aproximam bem mais das questões relativas a

essência humana que a ciência. Assim sendo, dirijamos nosso olhar ao mito. Dentre

eles elegemos o mito da criação mencionado anteriormente, mais precisamente o

mito da Árvore do Conhecimento, um dos mais arcaicos e importantes da história

ocidental. Segundo orientações de Carneiro Leão (1977) em leitura realizada sob a

luz da hermenêutica existencial ele precisa ser compreendido em três instâncias, ou

momentos distintos, a saber: imanência, transcendência e decadência do humano.

O mito fala da chegada do homem ao Jardim do Éden sendo moldado do barro do

chão; diz de sua solidão e da criação da mulher com o fim de aplacá-la - criada a

partir de uma de suas costelas. Por todos os lados havia árvores e frutos para

saciarem a fome. Contudo, o mito diz de uma restrição importante imposta pelo

Criador: não comer do fruto da árvore que se encontrava no centro do Jardim, a

saber, a árvore do conhecimento. Se dela provassem, conheceriam a morte. Havia

uma segunda árvore também proibida, tratava-se da árvore da vida, mas o criador

não alerta o homem quanto a esta segunda restrição, pois sabia que, para despertar

para a segunda árvore, haveria antes de provar do fruto da primeira. É a serpente,

animal dos mais astutos, quem vem tentar Eva, até convencê-la a tomar para si e

oferecer também a Adão o fruto da árvore proibida. Para convencê-la, a serpente

disse que de forma alguma morreria de morte, Deus havia feito tal restrição por

saber que o dia em que comecem de tal fruto, seus olhos se abririam e haveria eles

de serem também como Deus, sabendo o que é bom e mau.

Após experimentarem do fruto proibido constatam permanecerem vivos, mas

experimentam a vergonha. Pois com o abrir-se dos olhos se dão conta da própria

nudez e, percebendo a chegada do criador, escondem-se atrás da moita em busca

de encobrir o corpo nu. O criador os indaga acerca de estarem escondidos e eles

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lhes dizem da vergonha da nudez, o que faz com que Deus saiba que seus olhos

abriram-se por terem eles tomado e comido do fruto proibido. Homem e mulher

percebem terem sido enganados pela serpente, mas é tarde, são expulsos do

paraíso e recebem todos suas condenações. A serpente terá que rastejar sobre o

próprio ventre e comer terra por toda a vida. A mulher terá, por punição, que

experimentar dores horríveis ao dar a luz e será submissa ao homem. Já o homem é

condenado ao trabalho, tendo que, com o suor do próprio rosto, fazer jus ao

alimento. Com o suor do trabalho ganhará o pão para saciar a fome até voltar ao

ventre da terra de onde foi retirado. E Deus teria dito: “Eis que o homem se fez como

um de nós e sabe o que é bom e o que é mau. Que também não estenda sua mão e

tome da árvore da vida, coma e viva eternamente” (apud LEÃO: 1977, p.199).

Pensemos, segundo os encaminhamentos de Carneiro Leão (Idem), a questão da

imanência. Já no inicio do mito percebemos que em seu existir Adão emerge no

Jardim do Éden. Assim é com o homem que emerge num país e instala-se em uma

paisagem. Deus modela o homem da terra, e com seu sopro faz dele um ser vivo.

Contudo, ser vivo ainda não diz ser humano. Para chegar a ser em sua humanidade

um longo percurso se dará. O mito não diz em nenhum momento que o hálito de

Deus concede ao homem a eternidade, ao contrário, há passagem que deixa clara

sua condição para a morte ao dizer que o homem, por ter sido formado da terra, a

ela retornará.

A Terra de onde o homem sai, e para onde retorna ao morrer, é o país da imanência

humana. Esse país no mito é simbolizado pelo Éden. Essa paisagem é importante

para o homem se tornar homem. “É que o homem nunca existe pura e simplesmente

num país. Ele só existe quando o país de sua imanência se transforma em

paisagem. A criação do homem consiste nesta transformação”. (LEÃO: 1977, p.201).

Deus criou o paraíso e lá colocou o homem. Obviamente que o Éden não é o lugar

da inércia, nele o homem vive em atividade, mas tais atividades não constituem

ação do homem para si, são atividades prescritas por Deus. É Deus quem é ativo.

Deus está em ação, o homem lá está para guardar e cuidar. Isso não é trabalho, ou

seja, cuidado de si mesmo. Trata-se de serviço prestado a Deus. O Jardim do Éden

é o jardim de Deus, sua paisagem, Deus o plantou para si e pôs lá o homem, que

podia tomar do fruto das árvores para se alimentar, com exceção de duas: as

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árvores do conhecimento e da vida. Ainda que lá circule, cuide e se alimente essa

ainda não é sua paisagem. A paisagem de seu país ainda não está completa.

Das árvores proibidas o homem nada sabe que exceda a proibição. Nada foi

explicado a ele além da ameaça de morte imediata no caso de desobediência.

Contudo, por meio do mito, fica para nós a ressalva da importância criadora de

ambas as árvores. O homem até então é apenas um ser vivo, e assim sendo não se

interessa em saber. O criador não menciona a restrição em relação a árvore da vida

por saber que o perigo do homem tomar de seu fruto para comer só surgirá após ter

se servido da árvore do conhecimento.

O homem é no Éden junto às coisas e aos outros seres vivos, no entanto, o modo de

ser do homem e dos demais animais não possuem o mesmo sentido. “Nomear é

instaurar e exprimir possíveis comunidades de ser. O homem nomeou todos os

animais com um nome diferente do seu”. (LEÃO: 1977, p.202). O mito deixa claro

que o homem não se encontra em nenhum dos animais. Assim sendo, para fazer

companhia a ele, Deus cria a mulher a partir do próprio homem. Por ter sido retirada

de si o homem a reconhece semelhante e a saúda, nomeando-a varoa, por ter sido

“tirada” dele, o varão. A comunidade, o modo de ser entre ambos é a coexistência.

Desta coexistência brota a atração sexual. Homem e mulher neste momento de

imanência vivem em atmosfera totalmente animal. Vivem nus e não se

envergonham, pois ignoram estar nus e o que seja nudez.

É na passagem do estado de ausência de vergonha para a constatação da vergonha

que há de fato a criação do homem. Ali começa a humanidade do homem. A

ausência de vergonha aqui em nada se relaciona, como esclarece Carneiro Leão

(Idem), a um estado de pureza angelical. Havia obviamente sexualidade. Contudo,

esta se dava com naturalidade animal. A ausência da vergonha nos mostra que o

homem seguia seus instintos básicos, primários, e sua sexualidade tinha a mesma

naturalidade da dos animais. O homem ainda não é homem. Nesta primeira

dimensão da existência ainda não se constituiu a humanidade do homem. A

humanidade do homem só se dá quando a imanência é tocada pela transcendência.

É na articulação de país e paisagem, imanência e transcendência que a humanidade

do homem se constitui na força sintetizadora do espírito. Essa passagem de um

estado ao outro tem por símbolo a figura da serpente que personifica a tentação. A

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tentação configura o impulso necessário para a transição, fazendo com que o

homem deixe o estado de opacidade da imanência puramente animal.

A serpente, reconhecidamente o mais sabido dos animais, sabe mais que o homem

que até então é apenas ser vivo. O homem, ser ainda inconsciente, é desinstalado

da zona de conforto da imanência ao ceder a tentação de tomar e comer o fruto

proibido. A serpente convence a mulher que não haverá morte imediata, que Deus

assim os ameaça por saber que ao comerem do fruto se tornarão como ele. E “...no

dia em que comerdes abrir-se-vos-ão os olhos e haveis de ser como Deus e saber o

que é bom e mau”. (apud LEÃO, 1977, p. 203).

A figura da serpente, segundo o pensador Carneiro Leão, levanta no mito, a questão

da veracidade. Quem dizia a verdade, ela ou Deus? Para a interpretação cristã a

serpente simboliza um mal separado de Deus. A mulher, diante de Deus, afirma que

a serpente a enganou. Mas como enganou se disse a verdade? Afinal o homem não

morreu e abriram-se-lhes os olhos. Segundo o mito Deus reconhece isso no

versículo 22 do terceiro capítulo: “eis que o homem se fez como um de nós e sabe o

que é bom e mau”. (apud LEÃO, 1977, p.203). Quem disse a verdade, Deus que

predisse morte imediata, ou a serpente que afirmou que ele passaria a ver e

distinguir o que é bom do que é mau? A nosso ver, ambos, ainda que ao comer do

fruto o homem continue vivo e de olhos mais abertos que antes. A importante

mudança que se dá é que, de imediato, nota e envergonha-se de sua nudez.

A tradição cristã, para fugir da aporia com relação a Deus ter ou não mentido,

recorre à imortalidade. O homem teria sido criado imortal, tornando-se mortal após a

desobediência. Contudo, nenhuma passagem do mito nos diz de um estado primitivo

imortal, ao contrário, dá-nos a crer que o homem retornaria a terra da qual foi

retirado. Ainda assim, contudo, defende-se que o se tornar mortal a que Deus se

refere se trata da perda da imortalidade.

O tornar-se mortal a que se refere o mito se relaciona com o ter consciência da

própria morte. Cremos que o abrir-se dos olhos se refere, entre outras

possibilidades, a enxergar o viver como o que é bom e ao morrer como o que é mau.

Importante ressaltar que o mito não fala em olhos que distinguirão o “bem e o mal”,

mas sim o “bom e o mau”. Concordamos que isso pode ser compreendido como o

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bom que é comer o fruto e que o mau seriam as consequências do ato. Mas cremos

não poder descartar a questão da consciência da finitude no estado de

transcendência.

Carneiro Leão (1977) esclarece que, segundo o mito, está na vergonha da nudez - e

não no medo do castigo – o que leva o homem e a mulher a se esconderem na

presença de Deus. Essa a chave para a compreensão da hominização do homem

pela transcendência do espírito. A vergonha aqui simboliza a perda da naturalidade

animal. Apenas o homem entre os seres vivos, tem a capacidade de se envergonhar

da nudez. Assim, o fruto da árvore do conhecimento representa a criação do homem

como homem, ou seja, comer do fruto da sabedoria desperta o homem em sua e

para sua humanidade.

A presença da transcendência na imanência é o espírito. Mas não espírito pensado

ao modo cristão ou religioso. Espírito próximo ao pensamento grego, a saber, como

logos, “força de reunião e síntese dos contrários (...) É o espírito que transforma a

sensação que o homem tem em comum com os animais, em percepção”. (LEÃO,

1977, p.205)

Ao pensar o espírito como logos, somos, de imediato, conduzidos à percepção como

nous, e ao trabalho como techné nas possibilidades doadas ao homem pela phýsis.

Ao nous entrevemos na seguinte colocação:

Todavia o homem não é apenas o único ser vivo que é espiritual. Ele também é o único que é sensível. Assim como o animal não pode pensar ele também não pode perceber impressões sensíveis como tais. Mesmo o homem não o pode espontaneamente. Tem que aprender a perceber o que lhe transmitem os sentidos, puramente em si, independente de qualquer interpretação (...) os animais nunca apreendem impressões sem interpretá-las. Tudo que lhes ocorre significa sempre alguma coisa: alimento, companhia, fêmea, inimigo. Mas o animal não é livre na interpretação de seu mundo. Depende na interpretação de sua experiência, da teleologia de sua vida e de sua espécie. É esta que lhe estabelece os limites de suas possibilidades de aprender e agir. (LEÃO: 1977, p. 205).

Esse dissociar-se da conduta animal que são indissoluvelmente interligadas,

compõem a essência do homem, e, não se dá apenas no conhecimento mas em

todas as estâncias, em todas as possibilidades humanas. O apropriar-se das

possibilidades no homem se dá no sistema de referências do mundo. Deve unir,

sintetizar, para criar, sempre interpretando o que é bom ou mau para si. Lembrando

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que o ser-com faz parte de sua humana condição. Então o bom deve ser bom para

si e para seu semelhante.

O animal vive o hoje, o agora. Ao homem cabe cuidar do porvir, o mesmo porvir de

onde acena a morte. Porvir deve ser pensado de um modo mais ampliado do que o

que compreendemos por futuro. Futuro é o amanhã de hoje, porvir implica “a

integração no presente da impossibilidade de todas as possibilidades”. Porvir não se

trata de algo situado na extremidade de uma reta continua e longa, onde, em dado

momento ainda muito distante, o homem se deparará com o desvelar da verdade de

sua existência fáctica, a saber, a morte. O Porvir é algo que desde lá se dobra sobre

o instante presente, em contínua circularidade e faz com que cada um desses

instantes possa ser o último. O homem não nasce para morrer algum dia. Morre

desde o seu nascer. O animal não morre, finda. A morte é uma pre-ocupação

humana. Os animais não se pre-ocupam. Vivem no paraíso do qual o homem foi

expulso. Tais pensamentos nos arremessam à seguinte passagem:

Observa o rebanho que pasta diante dos teus olhos: ele não sabe o que significa nem o ontem nem o hoje; ele pula, pasta, repousa, digere, pula novamente, e assim da manhã a noite, dia após dia, estritamente ligado a seu prazer e à sua dor, ao impulso do instante, não conhecendo por esta razão nem a melancolia nem a tristeza. Este é um espetáculo duro para o homem, este mesmo homem que vê o animal do alto de sua humanidade, mas que inveja por outro lado a felicidade dele (...). (NIETZSCHE, 2005, p.70).

O homem, onde se deu a transcendência na imanência, é expulso do paraíso. Todas

as suas possibilidades passam a vigorar do porvir onde lhe aguarda a morte.

Todavia, nem mesmo na transcendência, nem mesmo auscultando o logos que o

conduz às diferenciações: bom e mau/ mal e bem, o homem deixa de possuir

instintos. “A animalidade da imanência não desaparece com a transcendência do

espirito” (LEÃO: 1977, p. 206). Desta dualidade entre o não mais ser e o ainda ser

animal advém a vergonha.

Por terceira estância do pensar a partir da hermenêutica existencial proposta por

Emmanuel Carneiro Leão (1977), temos a decadência. Deus, constatando a

transgressão do homem, distribui as punições que, não são outra coisa senão o

reconhecimento da hominização do homem. Não há uma distinção no mito entre os

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efeitos do fruto e as punições divinas. Primeiramente a mulher: esta é castigada com

os sofrimentos da gestação e com as dores de parto, que, coincidentemente e de

modo emblemático nos acostumamos chamar “trabalho de parto”. Tal condição

constitui característica humana, se compararmos com a postura dos animais diante

do mesmo ato, os animais se a possuem, não a manifestam.

Na dualidade entre transcendência e imanência, a mulher, mesmo consciente das

contingências a que está submetida, cede aos instintos que a impelem à

maternidade. Os desejos sexuais da mulher surgem no mito na conformação de um

castigo, enquanto os do homem se mostram de um modo corporal, natural, com a

retirada de sua costela. O fato da condição sexual da mulher ser na conformação de

um castigo diz, segundo Carneiro Leão (1977, p.206), da decadência humana,

“condenar uma condição como castigo por uma culpa é não aceitar os limites de

suas possibilidades e, com isso, interpretar-se a partir do outro que não de si

próprio”. Tal fuga de si próprio configura a decadência. Para o pensador, o homem

realiza sua humanidade sempre numa forma de decadência. O homem é em

extravio.

A decadência fica ainda mais clara na punição do homem, que no mito, aparece

como a principal. O homem é punido com o trabalho. O trabalho é uma expressão

da humanidade do homem. Animais não trabalham. Ao menos não para si. O

homem é condenado a trabalhar e isto associado à consciência da finitude constitui

efetivamente sua humanidade. O homem trabalhando cuida de si. E esse cuidar é

em prol da integração no presente, do passado e do futuro, naquela dinâmica do

dobrar-se do porvir mencionada anteriormente. Embora o paraíso não fosse o lugar

do ócio, lá também não existia trabalho como um construir a si. Não havia a questão

do cuidado pelo Porvir desde o presente.

O homem, diferentemente dos outros animais, existe. Existir constitui a humanidade

do homem. O homem só é homem humano por perceber o Porvir como

impossibilidade de suas possibilidades. Essa a estrutura da temporalização da

existência, do Dasein. Isto é, tempo se fazendo tempo, temporalizando. A estrutura

da existência como temporalização do tempo nos faz compreender de modo efetivo

onde imbricam a consciência do bem e do mal, a distinção entre o bom e o mau e a

necessidade do trabalho (isto é, do habitar e construir, constituindo a paisagem

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humana). Tudo isso, em síntese, se constitui a partir do sentido último, o último

“castigo”, a facticidade humana: a morte. O homem é o único ser vivo que sabe,

sente e espera pela morte. Essa consciência da morte como a suprema

impossibilidade das possibilidades, que ao mesmo tempo é a suprema possibilidade

entre as possibilidades, transforma e dá sentido a vida, impulsionando o criar.

Assim é quando o homem não vaga pelo impróprio. Pois nos liames da

racionalidade hipertrofiada, o tempo deixa de ser o tecido da existência e passa a

ser compreendido como dinheiro. Sob a ótica distorcida da funcionalidade, dos fins e

das finalidades, o trabalho é submetido ao regime escravocrata da ganância. E

assim, perdido de si mesmo, o homem segue, ora escravizando, ora se deixando

escravizar. Por dinheiro, poder ou território se mata e se morre.

Tomados pela questão da finitude no caminho do próprio e do impróprio, bem como

pela crença na força dos ritos que, atualizando os mitos, acolhendo o homem em si

mesmo, somos convocados ao diálogo por outra obra de imensa carga poética, a

performance: Balkan Baroque, de Marina Abramovic. Obra que, na força ritualística

que encerra, nos remete, em beleza e intensidade, ao ritual do Kuarup34, realizado

pelos índios Awetí, Kalapo, kamayurá, Kuikuro entre outros povos, que habitam a

região sul do Parque do Xingu, conhecida como Alto Xingu. Kuarup é um ritual dos

povos da floresta onde dança, luta, choros e lamentações saúdam os mortos,

encerrando assim o período de luto.

34

O ritual do Kuarup acontece uma vez por ano, durante a estação seca, aproximadamente entre julho e setembro. É quando os índios choram pela última vez seus mortos. Quando morre algum membro da aldeia seus parentes precisam se organizar para festeja-lo no Kuarup. A realização exige um grande incremento na produção de alimentos. Quando o membro é de grande prestígio social, mobiliza toda a aldeia com os preparativos. A família do morto será anfitriã dos participantes das outras aldeias convidadas e encarregada de prover-lhes os alimentos durante a celebração. O auge do ritual é antecedido por uma série de preparativos que começam 15 dias antes. Realizam-se grandes pescarias e uma semana antes da cerimônia são cortados os troncos que representarão os mortos. Eles ficam escondidos na mata até a véspera do cerimonial. Antes de o ritual acontecer preparam os alimentos e os ornamentos. Os mensageiros saem convidando as outras aldeias. Preparados os troncos eles são colocados em seus devidos lugares. Mulheres neste momento estão dentro das malocas de portas fechadas. Quando o tronco é posicionado em seus lugares os homens dão um grito. É o sinal. As mulheres então saem para adornar seus mortos e iniciar o ritual. Parentes chorando vão colocando as plumas, colares e tudo o mais que o morto usava, como se ele ainda vivesse. O Kuarup também encerra ritos de passagem para rapazes e moças. Os rapazes lutarão o huka-huka e as moças serão apresentadas aos habitantes da aldeia. Há música e danças. No final da tarde os troncos do Kuarup são retirados dos buracos onde foram fixados e jogados no rio. Neste momento os índios choram pela última vez a memória de seus mortos. Ver ilustrações 8-12 no anexo.

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Na performance Balkan Baroque35 realizada na bienal de Veneza em 1997, Marina

Abramovic (artista nascida na ex-Iugoslávia), munida de uma bacia, dois baldes de

cobre e uma escova, senta-se sobre uma pilha de 1500 ossos frescos de boi e por

quatro dias, em seis horas ininterruptas diárias, pôs-se a fazer a lavagem dos ossos,

um a um, até que ficassem limpos como o marfim, em um ritual de ablução. Nas

paredes da sala onde se realizou a ação, a performance, havia ainda três grandes

projeções. Duas delas consistindo em bustos da mãe e do pai da artista em uma

referência histórico-biográfica. Seus pais desde os anos de 1940 tiveram

participação ativa nas agitações políticas do país, a saber, a antiga Iugoslávia, que

deixou de existir como estado-nação em 2003, haja vista que desde 1991 as

repúblicas autônomas Kosovo e Croácia, entre outras, obtiveram independência em

uma guerra desumana e fratricida de limpeza étnica. A terceira projeção na parede

traz a própria artista numa cena em que, vestindo um longo jaleco branco ao modo

de uma zoóloga, conta a história dos ratos-lobo dos Balcãs – uma determinada

espécie de rato que destrói a si próprio. Numa outra cena dança em êxtase ao som

de canções folclóricas.

Enquanto faz a ablução dos ossos, trajando um longo camisolão branco que aos

poucos vai se tingindo de vermelho-sangue, Abramovic, valendo-se de antigas

tradições, recorre a canções de seu antigo país natal, canções de carpideiras, a

cada dia, por cada uma das repúblicas.

Anteriormente Abramovic havia realizado, em 1994, a Delusional, performance

teatral com ratos, que trazia, de modo contundente, a impotência e a raiva acerca do

que se passava na antiga Iugoslávia. Balkan Baroque, realizada três anos depois

soa como um gemido, um lamento por um estado de coisas que já não podiam ser

alteradas. Os ossos, ainda ensanguentados, equivalem ao grito que remete a

inúmeras existências interrompidas, vitimadas no massacre. Abramovic, com a

ablução e os cânticos, realiza um ritual de ultrapassagem emocional da perda.

Ver tantos ossos é aceitar o convite da memória e retornar à cena de 2001: Uma

odisseia no espaço que Manuel Antônio de Castro nos oferta como exemplo do

acontecer da cultura em sua conjuntura. Nas alamedas do pensar que sinalizam

acerca dos desvios da cultura na funcionalidade abstrata que se firma na era da 35

Ver ilustração 7 no anexo.

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técnica, percebemos que, com o avanço da técnica, o homem se aperfeiçoou mais e

mais na promoção de guerras e na intolerância com o outro. Em analogia ao filme-

exemplo que mostra como primeiro traço cultural humano uma arma, concordamos

uma vez mais com o autor que sinaliza acerca de os avanços da técnica nos desvios

dos aparatos funcionais e dos fins em si, configurarem arma contra o próprio

homem.

Conforme encaminhamentos anteriores sabemos que o homem habita e as

implicações do habitar. Esse o modo de ser do Dasein, esse o existir humano. Viver

é habitar. Mas há o habitar ontológico e o habitar cotidiano. Na esfera ôntica há o

jogo contraditório do habitar. Sob o jugo da funcionalidade, o homem busca a

conquista territorial, pois, segundo seu distorcido entendimento, habitar implica

conquista de espaço, território. Para viver precisa habitar, e pelo habitar, mata e

morre, aniquila o outro e a si mesmo. O homem ao matar seu semelhante, perde-se

de sua humanidade, aproximando-se dos ratos dos Balcãs aos quais Marina

Abramovic se refere. No perder-se de si e matar o semelhante entrevemos o aceno

de outro mito: Cain e Abel.

O homem que mata sua humanidade vaga anestesiado pelo caminho do impróprio,

entrega-se a melancolia, e torna-se tal qual morto-vivo. Alguns se entregam a apatia,

outros à ganância sem propósito. A vida, de todo modo, perde o sentido enquanto

habitar poético. Como derradeiro recurso aos sobreviventes angustiados, e, sendo

também o que salva, resta o cultuar aos mortos e o refúgio a que chamamos arte,

que aplaca a dor de se saber eternamente finito e errante.

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3.3 – Arte e épocas - A circularidade do tempo poético.

Após refletirmos sobre o mito e as obras de arte, sobre a existência humana e as

doações da phýsis e sobre o tempo, apresenta-se ao pensamento outra grande

questão: a época, a Época enquanto questão. Para o pensamento conceitual que se

dirige a arte e exposto anteriormente, as muitas épocas ao longo do tempo

cronológico constituem matéria quintessenciada da qual a Arte se origina. Por esse

viés de pensamento as obras seriam fruto de contexto social e histórico específico,

agrupadas no tempo. O artista, imerso neste contexto, seria o canal a materializar

nas obras sua época, a ser posteriormente estratificada e catalogada por críticos e

historiadores em (já então velhos conhecidos nossos) estilos. Assim, artistas que

viveram na Itália durante o Renascimento teriam produzido obras renascentistas; os

que viveram na França no século XIX produziram obras impressionistas; os

modernos, obras modernistas e assim por diante. Sob este modo conceitual de

condução de pensamento, as obras seriam sempre fruto da efervescência de

alguma época.

Percebemos que, ao longo das muitas “épocas”, a Arte vem sendo submetida a uma

série de cisões, entre-vistas em nossa prospecção inicial, cisões que têm origem na

intenção de se ajustar obras à escrita historiográfica. A cisão com o ver, e o império

do conceito em defesa de uma arte não retiniana que impera no contemporâneo,

para além de Duchamp, acreditamos seja, na verdade, um movimento muito mais da

História da Arte que dos artistas. A história (como disciplina) sempre tentou

submeter a Arte às suas regras e fórmulas de análise, ordenando-a e a submetendo

a uma cronologia compartimentadora. Historiadores e críticos, munidos de teorias

estéticas formuladas a priori realizam leituras, formais ou filosóficas, suficientes

apenas aos seus intentos: ordenar linearmente as obras por proximidade visual

(agora também conceitual) e/ou cronológica, ao longo da História da humanidade.

Faz-se urgente a necessidade de pensarmos as relações entre arte e época.

Contudo, haveremos de pensar época não de um modo historiográfico, mas poético.

Até então o pensamento oficial acerca da arte buscou a adequação da arte a uma

época historiográfica. Busquemos agora pensar a arte afinada a época poética,

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aquela que não se dá a priori, mas que se delineia a partir das obras. O limite de tal

época se desenha em contornos artísticos bem distantes da lógica, da razão. Trata-

se de contornos firmados no sentido, na verdade do ser. Como nos esclarece

Manuel Antônio de Castro (2010), para diferenciarmos a época historiográfica da

época poética precisamos ter em mente que uma é da ordem do conhecimento e a

outra do saber. A época historiográfica é do trato do conhecimento. Sabemos que

conhecimentos orbitam conceitos, e, estes, variam no tempo cronológico, seguindo

tendências, correntes e até modismos. Na linearidade historiográfica há uma espécie

de “dança”, ou alternância dos conceitos. Como se baseiam na lógica muda

conforme surgem novas hipóteses e quase sempre não excedem a condição de

informação. Se olharmos com atenção, perceberemos que, o modo de constituição

da História da Arte não a permite exceder a condição de um conjunto de

informações acerca das obras. Informações que se mostram mais ou menos

relevantes, conforme o feeling do historiador, mas, de um modo geral, a disciplina

História da Arte, furta-se ao mergulho na essência das obras. Nada sabe ou

questiona acerca da essência do humano que ali se deixa entrever. A época

historiográfica, onde a História da Arte se firma, é adepta da cronologia e da

catalogação.

Sabemos que a cronologia sendo da ordem dos instrumentos, ajuda na organização

prática diante do tempo, mas não podemos julgar que seja suficiente para

pensarmos a arte. Atendo-nos apenas ao tempo cronológico criamos uma dicotomia

que secciona as obras em duas grandes categorias: contemporâneas e não-

contemporâneas. No entanto, o mais importante é negligentemente desconsiderado:

Arte é Linguagem, movimento do real que se dá na concretude do tempo poético-

circular.

As obras verdadeiramente de arte, atravessam o homem por meio de sua ação se

corporificam e constituem época. Tempo se fazendo tempo pela ação humana é o

que constitui as fibras da época poética. Diante deste tempo da criação, do tempo

poético, a História (disciplina) torna-se naturalmente anacrônica. Seus conceitos

caducam. A época poética não se dá a conhecer a partir de conceitos, funda-se no

saber. Saber este que se constrói a partir do questionar das questões, que provindas

do originário se presentificam em sensibilidade artística. Ao contrário da época

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historiográfica, onde conceitos se pretendem permanentes e universais (ainda que

contraditoriamente sempre contestados, substituídos), as questões que dão corpo a

época poética são permanentes na mudança, tal qual rio, tal qual homem. Sempre

em fluxo Tempo e Linguagem se manifestam em acontecimentos poéticos que

configuram época e constituem memória.

A questão da época poética se inscreve em questão fundamental, e ainda mais

ampla, que é a Histórica.

Sempre que a arte acontece, quer dizer, quando há um principiar, a história experimenta um impulso de embate. Então ela principia ou torna a principiar. História não significa aqui a sucessão de não importa o que no tempo, mesmo que sejam importantes fatos. História é o desabrochar de um povo em sua tarefa histórica, enquanto um adentrar no que lhe foi entre-doado para realizar. (HEIDEGGER, 2010, p.197)

Aqui, obviamente, não nos referimos à história enquanto disciplina, ou à

historiografia. Trata-se da História que é o homem em seu vir-a-ser, ou seja, trata-se

da existência humana enquanto abertura, do ser sendo, e sua constituição enquanto

povo e nação. História, assim entendida, toma corpo muito lentamente, e sua

tematização se dá por vagaroso processo. Olhando atentamente para ela,

percebemos que por sua vez se imbrica no Tempo. Como pensar Época e História

sem antes pensar a essência do Tempo, quando sabemos ser a essência de algo

sua verdade?

Poderíamos dizer, partindo do pensamento de Manuel Antônio de Castro (2010),

que o Tempo nas artes, em sua essência, é mítico-circular, com uma história

implícita, não muito apreensível, ainda que vigorosa. Neste Tempo há uma tensão

que se estabelece entre mito e rito e que instaura todo o movimento. Por mítico

podemos entender o poético, sendo o mito seu vigorar inesgotável. Assim, nas artes,

a impulsionar as questões, temos o mito. As obras, enquanto ritos, seriam a busca

por responder as questões que se colocam. O poético, por sua circularidade,

recoloca sempre as mesmas questões, embora, de diferentes modos. Como o dia e

a noite a se repetirem em continuidade, e ainda assim inteiramente distintos entre si.

Completando a ideia da retomada do dia e da noite em eterno retorno, numa

aparente, contudo diferente, sucessão do mesmo, temos as estações em repetição

cíclica, a remeterem por sua vez à maior dentre todas as questões, aquela que

discutimos anteriormente e que move os seres humanos: nascimento e morte.

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Acompanhando a agradável certeza de um constante renascer de seres sempre

genuinamente diferentes a perpetuarem nossa espécie, há a dolorosa consciência

de nossa morte. Nesta consciente circularidade mítico-poética da existência

humana, nascimento-morte, está a mola propulsora de todo criar.

Na ação do “tempo ruim” - ao qual anteriormente, ainda na apresentação deste

estudo, chamamos cisalhamento que, devido às distorções conceituais e

distanciamento progressivo das questões do ser, envolvem as produções ditas “de

arte” em nosso tempo – estabeleceu-se uma trincadura inicial entre poiésis e techné

que culminou na fragmentação do círculo poético. Hoje, com a sistematização da

arte baseada em conceitos, temos, em muitas das produções plásticas, a total

desconexão entre rito e mito, obra e questão. Neste “tempo em cisalhamento” os

estudos críticos e históricos buscam uma organização eucrônica das obras, e, em

exacerbada cronologia, segue catalogando seja pela proximidade formal ou

conceitual. No tempo poético não há sentido submeter obras a normas cronológicas,

compartimentando-as em estilos de época como Renascimento, Barroco,

Romantismo, Modernismo, Impressionismo, Expressionismo Abstrato, Dadá, Arte

Conceitual, Informe, ou qualquer outra divisão estilística ou conceitual. Ao

pensarmos o tempo poético, poderemos constatar não haver sequer sentido em

falarmos em “arte contemporânea”, visto ser o contemporâneo em si, apenas mais

um atributo que anexamos à ideia equivocada que temos do tempo. O Tempo que

vigora na Arte é outro, e ao mesmo instante o único possível. O mergulhar neste

Tempo é uma visita a um não-lugar, implica em um cair para cima, um flutuar sobre

o abismo, sobre o desconhecido. É perceber nossa própria dimensão em relação ao

infinito: diante dele somos nano-partícula de lápis em península. Na ação humana,

nos pequenos gestos de um ser finito, tempo se faz tempo. A verticalidade concreta

do instante poético na circularidade do Tempo originário não é mensurável,

especialmente por unidades de medida que tentem submetê-lo a uma abstrata

horizontalidade, mas ainda assim existe e funda mundo.

O tempo mítico-poético-originário é o da memória, inteiro, não fragmentado, onde

não há linearidade tripartida em presente, passado e futuro. Esse tempo não passa,

desdobra-se sobre si mesmo. Dá-se tempo na medida em que seguimos em nosso

destino. Mas, iludimo-nos com o contrário, e buscamos ajustá-lo à nossa distorcida

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percepção da realidade. Para fazer uma analogia poderíamos pensar nas árvores

que ladeiam as estradas e que ficam para trás ao passarmos de carro, e que,

enquanto crianças, temos a nítida sensação de que são elas a passarem por nós,

apressadas, correndo em direção contrária.

Não pretendemos estabelecer negação ao tempo linear, sabemos ser a cronologia

importante em nossa organização prática de mundo, apenas reconhecemos sua

insuficiência diante da Arte ou da História pensadas de modo originário e não como

disciplinas, pensadas como a porção mais humana do homem, como historicidade.

Ou seja, como tempo se fazendo tempo na medida em que homem se faz homem

edificando sua obra, mundificando. Em se tratando de arte e tempo a linearidade de

nossas réguas serão sempre insuficientes.

Diante das obras de arte estaremos sempre perante o tempo se fazendo tempo.

Georges Didi-Huberman36 nos diz que diante de uma obra, por mais antiga que seja,

o presente não cessa de se reconfigurar; o mesmo se dando com uma obra muito

recente, a mais “contemporânea” possível, nela o passado também não cessará em

sua inesgotável reconfiguração. A obra frequentemente possui mais porvir e mais

memória que o ente que a olha. O filósofo e crítico citado se deixa tomar pelas

questões que habitam o afresco de Beato Angelico, a datar de 1440, localizado em

um dos corredores do convento de São Marco em Florença. O painel de pintura

deliberadamente ignorado pela História da Arte por seu desconcertante

anacronismo, é o lugar poético onde o abstrato propõe, em “extemporaneidade

cronológica”, diálogo com o figurativo - Santa Conversação:

Painel de afresco vermelho, crivado de manchas erráticas, produz como uma deflagração: um fogo de artifício colorido que ainda traz o traço de seu jorrar originário (em um naco de instante, o pigmento foi projetado à distância, em chuva) e que, a partir de então, se perpetuou como uma constelação de estrelas fixas. (DIDI-HUBERMAN, 200)

Pintura abstrata no ano de 1440? Para a história e seus registros historiográficos

que se ocupa dos estilos de época pareceu mais simples ignorar. Em todas as

reproduções da Santa Conversação subtraiu-se o painel abstrato que a acompanha.

36 Filósofo, historiador, crítico de arte e professor da École de Hautes Études em Sciences Sociales, em Paris, em ensaio intitulado Diante do tempo / História da Arte e anacronismo das imagens. Paris: Les Éditions de Minuit, 2000.

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Afinal como seria ver em um frei dominicano do século XV um dos precursores da

action painting surgida cinco séculos depois? Como poderiam encaixar esta obra em

suas análises? Neste painel temos um Pan de Peinture, termo proustiano que diz da

parte maldita dos quadros, a que traz uma inquietude não-dita, uma negação do que

o quadro afirma na ordem mimética37.

Ao lermos os escritos de Didi-Huberman acerca do painel de Fra Angelico

percebemos sua relação com o texto de Jorge Luis Borges: Kafka e seus

precursores (2007), ensaio em que Borges defende que as obras de Kafka muito

contribuíram para que pudéssemos entender seus antecessores. Diz ainda que, por

meio de suas obras, cada escritor ajuda a criar seus precursores. Cada nova obra

modificaria nossa concepção de passado, como se apurássemos o olhar pouco a

pouco, abrindo-nos ao que se mostra, e assim pudéssemos finalmente de fato

distinguir o que não havia sido anteriormente acolhido pelo ver. Provavelmente

Lucifer, e tantas outras obras de Jackson Pollock ajudaram Didi-Huberman a ver os

Pan de Peinture do Beato Angelico. É Pollock e não Alberti38 que torna visível o

painel do Quatrocento, assim como é Arthur Bispo do Rosário em sua potência

artística que explode fora do mundo da funcionalidade em um transbordamento do

próprio que escorre por entre as frestas do eu implodido pela fuga da norma, e não

Arthur Danto, que nos ajudou a ver em Duchamp os descaminhos de artistas que

enveredaram pelo desencobrimento explorador transformando obras em mero

dispositivo conceitual, fazendo com que a arte se retraísse ao velado, desenhando a

face desta época onde impera a funcionalidade técnica e o homem se perde de sua

humanidade poética.

Precisamos compreender que é no eclodir poético que a época se configura e não o

contrário, sem linearidade, apenas vertigem. O tempo se deixa entrever nesta

eclosão das obras, sobretudo nas ditas “intempestivas”. Não são as épocas que

produzem obras, mas sim as obras que configuram e instauram época.

No mostrar-se do tempo como memória, o futuro que se volve sobre o presente

humano faz com que o presente possa nos auxiliar no entendimento do passado

37

Nota de rodapé na pág. Inicial do ensaio Diante do tempo (DIDI-HUBERMAN, 2000) 38

Leon Battista Alberti – Humanista italiano do século XV, um dos precursores da História da Arte citado no capítulo 1.

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para o qual não estávamos preparados anteriormente. O passado por sua vez nos

auxilia no entendimento e construção de todo porvir. Esta a dinâmica da poética.

Poética, como nos disse Antônio Jardim (2005, p.82), é o que propicia a unidade do

que se conhece com o que ainda não se conhece, sendo o poético a consolidação

desta dinâmica do memorável, sendo a memória aquilo que o poético é capaz de

poetizar, realizar.

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Conclusão

De qualquer ponto em que se estava partia-se para o longe. Nunca se viu tanto caminho39.

Clarice Lispector

Chegamos ao fim-começo desse estudo e, das possíveis certezas esperançadas ao

iniciarmos, somente a mais lúcida reverbera: aqui temos apenas um esboço, ou

seja, o princípio de um pensamento acerca de artes visuais, homem e história,

inspirados pelas questões ontológicas, a sinalizar o longo caminho a ser percorrido

posteriormente. Apenas iniciamos a caminhada.

Dos encaminhamentos realizados fica a consciência de termos apenas avistado,

sob a névoa do conhecer, a possibilidade de caminhos outros, inúmeros,

inesgotáveis, que foram se delineando ao longo do curso de nossos passos. Indo de

um ponto ao outro em atravessamentos, nossa busca consistiu em pensar a arte,

fosse pela observação da escrita histórica ou crítica em nossa prospecção inicial,

ainda ôntica, ou em seu desdobramento posterior, a prospecção reflexiva afinada

com as questões do ser, em mergulho por entre camadas do humano em sua

condição fáctica, condição essa que impulsiona o agir, o criar, através do que lhe é

próprio, para chegar a ser o que desde sempre é. Exercendo sua liberdade, doação

da phýsis.

Acerca dos descaminhos da arte no “contemporâneo” que nos propomos investigar,

tivemos a oportunidade de compreender que mais que o feito isolado de um artista,

tratou-se dos envios do destino epocal que conduziu - a partir, da escolha do artista

por um entre muitos caminhos - o “mundo da arte” rumo ao desencobrimento

explorador na era da técnica, aproximando criações ditas artísticas da essência da

técnica moderna, culminando em obras de onde a arte se ausentou.

Com relação às “mortes da arte” tivemos a oportunidade de perceber que

pensamento que erige tal conceito habita apenas a esfera ôntica, ou seja, avistando

39

LISPECTOR: 1998, p.57.

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apenas o que se mostra, esquecendo o que vigora velado na verdade do ser.

Obviamente em nada desmerecemos o pensamento de Hegel, apenas julgamos que

tenha tangenciado a arte e não de fato dela se ocupado. Contudo, fica claro para

nós que, cada pensamento traz contribuições específicas, circunscritas em seu

destino epocal.

Com relação aos alardeados equívocos da História da Arte que teriam culminado

com sua “morte” pensada por Hans Belting e Arthur Danto, acreditamos que mais do

que um equívoco acerca do uso de ferramentas de leituras formais, ou a submissão

das obras a bulas e súmulas, o que fica patente também aqui é o esquecimento do

ser, o que se faz visível no uso de inúmeros paradigmas elaborados em prol da

eficácia e da funcionalidade, calcados na crença em se julgar possível pensar de

modo estanque o que seja homem, o que seja arte e o que seja história.

Na dinâmica do pensar fomos conduzidos ao Dasein, ou seja, à condição do homem

como clareira do ser, como tempo se fazendo tempo e sua condição essencialmente

histórica. Lendo obras, pensando-as como ritos que atualizam mitos nos

aproximamos um pouco mais da essência da arte a constituir épocas. Assim

constatamos a impossibilidade de uma história estanque, que se ocupe, quando não

de ditar regras para a produção, em ordená-las conforme o ponto de vista deste ou

daquele historiador.

Então, qual a verdadeira face humana? A que se revela sem foco nos inúmeros

conceitos enfileirados ao longo da modernidade, ou a que se delineia em sombra e

luz no poético? O cultuar exagerado do epistemológico desfigura a face do homem.

A hipertrofia da razão e da ciência na era da técnica desumanizou o homem,

apartando-o da arte. Precisamos nos libertar e distinguir a dimensão do pensamento

da dimensão da fé. Ainda que nos pareça estapafúrdia tal afirmação numa época em

que impera o científico e o racional. Ao observarmos com cuidado nossas atitudes,

perceberemos que é a fé que, de um modo geral, move-nos, sobretudo a fé na

ciência. Outra questão é a de que a maioria de nós, ateus ou crentes, filósofos,

religiosos, artistas ou historiadores, vivemos uma dimensão do pensamento que

adotou como parâmetro para o tempo a eternidade, o que constitui enorme equívoco

para seres finitos. Precisamos efetivamente compreender o tempo a partir do tempo

e não do eterno.

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Quanto à filosofia, esta deveria ser a ciência do Ser, mas nem sempre é. Talvez, na

mesma medida em que necessitamos de mais arte e menos estética, precisemos de

menos filosofia e mais pensamento. Deixamo-nos reger, durante séculos, muitas

vezes sob o jugo do que se denominou filosofia, pelas ciências ônticas, isto é,

aquelas que pretenderam compreender o ser, mas só se ativeram ao intramundano,

ao ente, ao aparente. É inquestionável precisarmos sim da filosofia, mas antes

precisamos compreendê-la mais como o que pensa e menos como ciência geradora

de conceitos.

Há fortes indícios de que antes de Heidegger, como já teria dito Gadamer (apud

ZANETTE, 2008) pensar significava apenas relacionar, colocando apenas uma coisa

em relação à outra, comparando juízos. Heidegger propõe uma nova experiência,

inovadora e verdadeiramente de pensamento, que reconduz o pensar a uma

estância originária, aproximando-o da essência das coisas. Em Heidegger pensar

significa mostrar algo em sua essência, ou seja, pensar é se pre-ocupar até que algo

se mostre em seu vigor. Cremos que as questões acerca do pensar apresentadas à

humanidade por Martin Heidegger possam nos reaproximar da totalidade da arte por

nos aproximar de sua essência, trazendo-a ao seu vigor. Vigor que em dias

sombrios como os nossos se mantém, na maioria das ditas manifestações artísticas,

no retraimento do ser. A escrita histórica da arte entificou o tempo, e os “artistas” a

partir da modernidade, cada qual ao seu modo, buscaram, e de certa forma até

conseguiram, entificar a arte, mantendo o pensar acerca dela numa esfera

meramente ôntica. A visão histórica e artística perdeu a dimensão ontológica, ou

seja, a que acolhe o mistério do não visto em sua totalidade, lá desde o escuro onde

brotam as questões que nos movem.

Houve um grande esvaziamento do sentido da arte, do humano, quando o artista

passou a se relacionar com seu ofício exercendo postura sujeito-objeto, em que tudo

é dado e conceituado previamente dentro das raias da racionalidade e da

funcionalidade que gera e alimenta dispositivos. Subtraiu-se das obras de arte o

diálogo a partir do aberto ontológico do questionar, ao encerrá-las em conceitos que

engessam o pensamento. Lutou-se para arrancar da arte sua utilidade. Afastaram-

na do sagrado e dos altares, contudo, parece-nos que quanto mais a distanciaram

do sagrado tanto mais a aproximaram da dimensão mais enfraquecida da fé,

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estando a arte, no “contemporâneo”, muito mais próxima da fé do que já esteve no

Barroco ou no Gótico e, muito mais distante da filosofia do que jamais esteve antes,

ainda que julguemos que com a atualidade da arte conceitual, as profecias de Hegel

tenham se cumprido com a perda da materialidade das obras.

O homem, em suas relações intramundanas vive uma dimensão existencial

decadente, a qual Heidegger se refere como um estar-caído. Na acomodação

cotidiana, no intramundano, o homem decidiu viver no impróprio, sempre na esfera

da funcionalidade. Neste estar no mundo de modo impróprio se tem uma falsa ideia

de familiaridade, de um sentir-se em casa. Cabe-nos então buscar a pro-dução em

arte que seja mais angustiada, movida pelo estranhamento da “casa”. A angústia, se

interpretarmos as falas cotidianas, poderia ser compreendida como abertura. Na

angústia se está estranho. Tal estranheza pode ser comparada a um não sentir-se

em casa, que podemos compreender como exercício de liberdade. É na angústia

que o homem, o Dasein, foge de si para si, sai do impróprio e se apropria de seu

próprio, e, rompendo com a familiaridade cotidiana, redescobre a força da criação. O

homem precisa redescobrir o que lhe é próprio.

É próprio ao homem ser essencialmente histórico. E para falar em história é

necessário pensar a presença, o homem em sua historicidade, ou seja, a própria

condição de existir: existência como abertura para algo. Falar em existência é

pensar temporalidades. Pensar temporalidade é estar atento sobretudo para o

tempo se fazendo tempo, em suas três dimensões, ou aberturas: presente, passado

e futuro (que devemos compreender como algo afinado com a dinâmica do Porvir)

que se articulam compondo um único e mesmo instante. É próprio do homem ser

abertura, Dasein, constituir mundo, mundificar, obrar em arte. Contudo, haverá de

ser sempre vigília, pois ao adormecer, ao ficar desatento, pode ser tragado pelo

cotidiano, pela decadência, onde os ritmos se alteram. E, havendo queda do ritmo,

do próprio, habitará o território do impróprio, onde a fonte originária cessa de jorrar.

Cada homem carrega a possibilidade de exercer o próprio e o impróprio, e nos dois

modos de ser, o tempo se dá diferenciadamente. No impróprio se dá o tempo vulgar,

linear em sua sucessão de “agoras”. Já o tempo do próprio é aquele onde a vida se

dá verdadeiramente, é o tempo da vida própria, autêntica, vida que move a si

mesma. O viver se dá como um mergulho no próprio tempo, em que se estabelece o

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instante poético, vertical, singular. É nesse tempo do possível, tempo-possibilidade,

que se dá a criação.

A vida para ser vida, precisa ser criação, criação se dá no tempo, mas tempo como

vimos não se dá de maneira abstrata. O tempo para ser tempo precisa ser ação,

movimento, ou seja: Cri-ação. Assim temos vida, tempo e criação, em ciranda,

fechando o círculo mítico-poético da existência humana. Criação é vida como

acontecimento histórico. História é acontecer. O homem é histórico por ser

acontecimento. Só no homem as coisas acontecem. O homem é o lugar dos

acontecimentos que viram memória e os acontecimentos memoráveis são aqueles

movidos pelas questões que põem o pensamento em movimento. O território das

questões é fértil, nele o homem transcende a si mesmo e se descobre às margens

de fonte maior. Já o território dos conceitos é perigoso por constituir-se e mover-se

no impróprio, ou seja, no que se erige a partir das “visões de mundo” por vezes

estereotipadas, sempre carregadas de subjetividade. A historicidade não reside

nessas “visões subjetivas de mundo”.

Precisamos de uma história/crítica/teoria da Arte que seja ela também criação. Ou

seja, obra. O historiador/crítico/teórico precisa estar aberto à obra, ao vigor poético

da obra, só assim conseguirá ajustar o “objeto de estudo” ao seu saber, sem

mutilações. A formulação de regras a priori, sejam elas direcionadas à produção ou

reflexão artística, é reducionista, talvez até mesmo aniquiladora. Não devemos

esquecer que tais métodos de análise dizem respeito a uma cientificidade que não é

nada mais que uma objetividade segunda, que só pode se instituir a partir do que

antes se revelou, ou seja, a obra. Para Martin Heidegger toda ciência não excede a

condição de Positum, uma posição diante de algo. Um “ponto de vista”, sob as leis

de determinada perspectiva diante do real. A ciência historiográfica para expandir

sua visão no horizonte da arte precisa retirar a venda da análise conceitual que

confunde o “ante-ver” com regras e conceitos a priori.

Todo conhecer é de fato um ante-ver, mas é de suma importância que este ante-ver

esteja ajustado ao Próprio. Ao ajustar-se ao vigor do próprio, o historiador poderá

perceber que estar sintonizado ao “objeto” de estudo, ao seu vigor, é um modo de

estar no tempo, na real temporalidade, é estar no sentido do tempo poético que se

abre em obra, temporalizando como o futuro que vai ao passado, vindo ao presente.

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O historiador, ao modo do poeta (entendido aqui em sentido amplo como vida

entregue a criação) deve reconhecer-se na condição de abertura, Dasein,

possibilidade para possibilidades, possibilidade de criação, e lançar-se adiante.

Neste lançar-se que é um regresso ao memorável, ao originário, poderá perceber,

mesmo na facticidade da existência, que, as três dimensões do tempo se realizam

no instante e não no agora, pois haveria nisso uma impossibilidade inerente a

própria essência do tempo, pois o tempo se dá em circularidade e a sucessão de

agoras é linear. O homem enquanto eksistência é o lugar para e de todas as coisas,

essa a historicidade de sua presença. É nessa condição histórica de abertura onde

tudo se dá que se dá a dimensão passado, o “ter sido” sobre a qual o historiador se

debruça. Toda possibilidade de história se dá no homem, sem que isso o faça

possuidor, controlador dessa história. Nem o homem, tampouco o historiador

controla a história. Não lhe cabe apenas catalogar no tempo cronológico as obras de

criação, que - como ele próprio em sua condição humana do que se dá em desvio,

extravio - não seguem cronologia.

Houve certa ingenuidade na História da Arte em julgar eficiente compartimentar as

produções artísticas em períodos distribuídos em uma linearidade equivocada,

inexistente, buscando classificar e pensar obras por sua sequência de aparecimento

no tempo cronológico, ou por meras afinidades formais. Nesse lugar estreito as

exceções quando se dão se inscrevem no território das bulas conceituais, sem

grandes distanciamentos ou rupturas na linearidade ou visualidade propostas, em

que, na grande narrativa as considerações mais elásticas se deram na formulação

dos termos: pré ou pós, em referência a determinado movimento. Quando o vigor da

obra ameaçou paradigmas instituídos, no máximo admitiu-se que determinado

artista permanecia, por exemplo, pré-cubista, quando os demais de seu tempo já

haviam adentrado a modernidade. Ou então, como no caso de Cézanne, em que a

historiografia faz concessão maior e o admite pré-moderno (em verdade precursor

da modernidade onde repousava o germe do cubismo) tendo vivido

cronologicamente o impressionismo.

Cézanne é um excelente nome para pensarmos as implicações da história como

ciência historiográfica, no curso da arte, e por que não dizer, da vida. Homem

determinado dedicou sua vida ao trabalho, à criação, sua obra foi um divisor de

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águas no cerne dos modos de produção artística, pouco se importava se estava na

contramão dos ditames da “história” ou não. Foi um obcecado pela ação. Um

solitário a-histórico (se pensarmos no sentido de história construído pela

historiografia). Ao pensar Cézanne recordamos trecho de Nietzsche (2005, p. 76) na

II Consideração Intempestiva, ao dizer que:

(...) nenhum artista realizaria sua obra, nenhum general alcançaria a sua vitória, nenhum povo conquistaria sua liberdade, sem que estas coisas tivessem sido previamente desejadas e perseguidas num tal estado de a-historicidade. Assim como o homem de ação é sempre, segundo expressão de Goethe, despojado de escrúpulos, da mesma maneira ele é também privado de consciência, esquece tudo exceto a coisa que quer fazer, é injusto para com aquele que o precede e não conhece senão um direito, o direito daquele que vai agora nascer.”

Partindo das considerações de Nietzsche, avistamos em Cézanne, o que o filósofo

chama de força plástica que permite que se desenvolva de maneira independente e

original assimilando e transformando as coisas, curando as próprias feridas,

reconstruindo formas destruídas. Nem forte, nem fraco: valente.

Refletindo sobre o posicionamento da História enquanto disciplina, uma vez mais

precisamos dar voz ao pensador: Na medida em que está a serviço da vida, a

história está a serviço de uma força a-histórica: portanto, ela não poderia nem

deveria jamais se tornar, nesta hierarquia, uma ciência pura, como as matemáticas.

(Idem, p.81)

Podemos concluir que história, crítica e produção em arte constituem partes de algo

maior, o humano, estando circunscrita em único e mesmo círculo, o poético. Em

vigília, dele precisamos afastar a ação do “tempo ruim”, mencionado por nós ainda

na introdução desse estudo, cisalhamentos que ameacem destruir o que no humano

há de mais nobre: sua condição de possibilidade para criação.

Em uma nova possibilidade de escrita (teórica, crítica e histórica) cabe a cada

historiador, teórico e crítico acolher o esquecimento, e se deixar conduzir pelos

interstícios da memória e assim herdar no feito a força do por fazer. Desvencilhando-

se de paradigmas, esquecendo o já feito, apenas assim poderá aproximar-se

verdadeiramente das obras, tornando sua escrita também obra. Somente partindo

do esquecimento será possível criar. Reconhecer-se como ser histórico será outro

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passo que o habilitará a fazer História. Ao historiador a exigência de um lançar mão

ao que lhe é próprio adentrando as cercanias da criação, algo que se dá na solidão,

impossível entre multidão, especialmente de conceitos. Toda ação exige certa dose

de renúncia, que inclui por vezes abrigar-se das luzes conceituais. Toda ação exige

esquecimento, assim como toda vida orgânica exige não somente a luz, mas

também a escuridão. (Idem, p.72)

É preciso libertar o gigante aprisionado no corpo do anão e impulsionar o salto que

possibilitará a inserção em círculo poético. Perceber o tempo verticalizado,

condensado, onde a circularidade não se dá na sucessão de pontos que configuram

uma reta (os agoras) a ser usada como ponte entre historiador e obra, mas sim no

próprio ponto, neste minúsculo rastro tempo-espaço capaz de abrigar todo o

universo: o instante. Percebendo que é no micro que a vida explode como vida,

como criação, não no macro. No mais, desnecessária a ponte, pois o ponto abriga já

o encontro – do eu e do próprio. Do homem e sua humanidade.

Após todas essas reflexões, acreditamos ter de algum modo avistado o que

propomos de início. Consideramos de pronto as restrições implicadas em

adentrarmos inúmeras camadas de escrita sobrepostas ao longo de séculos,

munidos apenas de um olhar que, abandonando as áreas de conforto que circundam

a arte desde sua institucionalização, buscou se dirigir às veredas poéticas.

Acreditamos, contudo, termos de algum modo principiado a caminhada rumo ao

pensar desde um lugar “desacostumado”, onde a luz da razão não nos ofusca os

olhos, onde a “clareza” dos conceitos se afasta e nos aproximamos das questões

poéticas que se dão em claro-escuro, no desvelar e velar da verdade do homem

como acontecimento poético.

Buscando proximidade com o poético por vezes apenas tangenciamos o a ser dito,

ficando parte por dizer, junto ao não visto que pulsa velado e impulsiona questões.

Assim, haveremos sempre de retornar, retomar o pensamento, buscar dizer uma vez

mais, realizando um outro exercício de escrita, que não almeje explicar, mas sim,

quando muito, provocar questionamentos diversos. Na escrita que busca se

aproximar do poético na arte, do seu vigor, a tão almejada verdade é apenas entre-

vista. No território do poético nada se reduz a explicações, trata-se de um por em

movimento, apenas. O pensamento-pesquisa que aqui se materializa em escrita

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pretende ser tão-somente condutor de breve nesga de luz, que deixe entre-ver,

contudo sem macular, o escuro onde repousa toda criação humana em que

explicações se revelam insuficientes. Assim, entregamo-nos ao exercício de uma

escrita que não conduz a explicações, mas que tenta aclarar o que se mostra no

caminho. Acerca da escrita que busca circundar o poético, trazemos o saudoso

Manoel de Barros, recentemente “nascido para passarinho”:

Escrever nem uma coisa Nem outra – Ao fim de dizer todas – Ou, pelo menos, nenhumas Assim, Ao poeta faz bem desexplicar – Tanto quanto escurecer acende os vagalumes40

Assim, ao exercício de uma escrita que queira se aproximar das obras e de um

pensar poético cabe (por entre o claro e escuro do desvelar da verdade) ser tal qual

vagalume que segue por vasta planície onde se sobrepõem densas camadas de

memória, de onde se pode avistar horizonte que quanto mais nos aproximamos,

tanto mais ele se afasta de nós, instigando-nos a caminhar. Diante de tanto chão a

percorrer, não excedemos a condição de andarilhos aprendizes, viventes do ermo...

Do percurso realizado dispensamos as parcas certezas, para de mãos e mentes

livres colhermos as vultosas questões que nos repletam com, como teria nos dito

ainda o poeta, “coisa tão velha como andar a pé”: a força do não-saber. Por ora

fiquemos aqui, para o necessário repouso de pés, mãos e mentes antes de

seguirmos em frente. Quanto à arte, esta não cessa, segue adiante, sempre, a

restaurar existências.

40

BARROS, 2013, p.41

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ANEXOS

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Ilustração 1, 2 e 3: Ready-mades

1 - Marcel Duchamp, Fonte, 1917

2 – Duchamp, Roda de bicicleta, 1913 3 – Duchamp, Porta-Garrafas, 1914

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Ilustração 4

Marcel Duchamp, Nu descendo uma escada Nº 2, 1912

Óleo sobre tela, 146x89 cm Filadélfia (PA), Philadelphia Museum of Art

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Ilustração 5

Ron Mueck, A Girl

Ilustração 6

Ron Mueck – Man in a boot, 1992

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Ilustração 7

Marina Abramovic – Performance Balkan Baroque – Bienal de Veneza 1997 Duração: 4 dias e 6 horas

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Ilustrações 8, 9, 10, 11 e 12

Kuarup – Ritual fúnebre dos povos indígenas do Alto Xingu

Ilustração 8 Ilustração 9

Ilustração 10 Ilustração 11

Ilustração 12

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