Propriedade, Apropriação Social e Instituição Do Comum (Pierre Dardot & Christian Laval)

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Análise sociológica do neoliberalismo como um ethos

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  • Pierre Dardot e Christian LavalTraduo do francs de Naira Pinheiro dos Santos

    Propriedade, apropriao social einstituio do comum

    Em 1840, Proudhon fazia do seu princpio crtico um slogan que ficou famoso: a propriedade um roubo. Ele golpeava muito diretamente a tradio jurdica que havia levado a fazer da propriedade privada o fundamento da sociedade ci-vil e, correlativamente, da propriedade pblica, o domnio particular do Estado. Essa impressionante frase proudhoniana no condenava somente a propriedade burguesa; ela visava toda apropriao por um indivduo ou por um Estado de uma riqueza que fosse procedente de um trabalho da sociedade ou, mais pre-cisamente, de uma fora coletiva reunindo inmeras mos e crebros. Note-se que a frmula no teve sequncia, ao menos uma que fosse fiel sua prpria radicalidade. preciso convir tambm que a tradio jurdica da propriedade venceu em todo lugar e que o socialismo progressivamente abandonou essa crtica geral da usurpao proprietria. No foi apenas a Unio Sovitica e os seus satlites que erigiram a propriedade do Estado em regra de organizao econmica e apresentaram a converso dos meios de produo em bem do Estado de todo o povo como instrumento de abolio da dominao de classe. Foi o prprio socialismo que, at na sua verso mais gradualista, acabou por confundir-se com a extenso da propriedade pblica dos meios de produ-o e de troca e com o aumento do campo de ao dos servios pblicos em detrimento da propriedade privada e do setor de mercado da economia. Que tenha chamado propriedade pblica, nacional, coletiva ou social para distingui-la do setor capitalista, a esquerda viu nela o meio por excelncia para

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    ultrapassar o capitalismo, de modo que o socialismo inscreveu-se no esquema binrio de origem jurdica que ope o privado e o pblico. Se muitos tericos mantiveram a exigncia de uma gesto democrtica das empresas coletivizadas, no se pode dizer que o balano das realizaes nesse domnio tenha sido muito convincente. A gesto burocrtica e a direo hierrquica das empresas e dos servios pblicos no conduziram a uma mudana substancial das relaes sociais na produo. Quando vemos com que rapidez os setores estatais de produo foram privatizados desde h cerca de trinta anos em vrios lugares ao redor do mundo, no podemos deixar de nos perguntar sobre a diferena que a propriedade pblica havia introduzido. Com a extenso progressiva da norma neoliberal da concorrncia, desde os anos de 1980, assistimos, ademais, ao alinhamento dos setores pblicos em torno das prticas de gesto em vigor no setor privado. Chegamos, portanto, a um momento em que a soluo preconizada pela esquerda para o problema posto pelo capitalismo o que ela chamou de socializao ou nacionalizao dos meios de produo deve ser radicalmente reexaminada. precisamente sobre esse ponto que as prticas e os discursos que reivindicam ser da racionalidade do comum introduzem hoje em dia uma renovao salutar. Com o comum, no se trata mais de opor simplesmente a propriedade privada e a propriedade pblica, mas de questionar prtica e teoricamente os fundamentos e os efeitos do direito de propriedade, opondo-lhes o imperativo social do uso comum.

    A propriedade privada, ou como a excluso se torna direito

    Longe de ser uma essncia ou uma natureza, a propriedade no seno um determinado arranjo jurdico de relaes sociais que evoluiu com o tempo. O direito de propriedade foi concebido pelos juristas e filsofos do iluminismo como uma liberdade essencial, um meio de ser plenamente homem. A pro-priedade e o patrimnio pessoal so vistos como condies para a autonomia do indivduo, como meios de emancipao das tutelas e das vassalagens. Foi isso que o artigo 17 da Declarao Universal dos Direitos do Homem e do Cidado, de 26 de agosto de 1789, expressou: Sendo a propriedade um di-reito inviolvel e sagrado, ningum pode ser privado dela, a no ser quando a necessidade pblica, legalmente comprovada, o exigir e sob a condio de uma justa e prvia indenizao. A excluso do gozo dos outros est no princpio dessa liberdade. nisso que implicam as definies modernas de propriedade, aquela de Hume ou de Blackstone no mbito da Common Law, ou a do c-digo civil no mbito continental. Para Hume (1983), a propriedade aquela

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    relao entre uma pessoa e um objeto que permite a ela, mas probe a qualquer outra, livre uso e posse dele, sem violar as leis da justia e da equidade moral; Blackstone, em seus Commentaries, d a seguinte definio: No h nada que atinja a imaginao de modo to geral e engaje os afetos da humanidade como o direito propriedade; ou aquele domnio exclusivo e desptico que um homem reclama e exerce sobre as coisas exteriores do mundo, em total excluso do direito de qualquer outro indivduo no universo (Blackstone, 1917, grifo nosso). O artigo 544 do Cdigo Civil francs de 1804 no diz algo diferente disso: A propriedade o direito de gozar e dispor das coisas da maneira a mais absoluta, desde que dela no se faa uso proibido pelas leis ou pelos regulamentos.

    A liberdade se exerce sempre contra a liberdade dos outros, jamais com a deles, uma vez que o gozo pleno e total da propriedade exclui seu uso por terceiros. Isso significa, sobretudo, que a propriedade dos meios de trabalho concede direito absoluto apropriao dos frutos do trabalho, da a impos-sibilidade de o trabalhador ter pleno acesso aos meios para viver e trabalhar, mesmo que pela poupana. Aqui, estamos evidentemente mais prximos do que deu origem ao socialismo a contestao radical desse poder de excluso dos meios de viver e de trabalhar pelos detentores dos ttulos de propriedade pessoal dos meios de produo (Macpherson, 1973). Proudhon disse o es-sencial sobre isso. Fundar a liberdade individual sobre a excluso dos outros, que o principal significado social da instituio da propriedade, tambm o vnculo que esta mantm com a prpria forma da sociedade capitalista. A propriedade exclui o comum, no somente em termos do gozo dos bens, mas igualmente no mbito da produo, j que ela supe a diviso entre proprie-trios e no proprietrios. Essa abstrao jurdica, que foi gradualmente se afirmando no Ocidente, deu origem ao sujeito de direito e ao mundo dos bens, ontologia jurdica de pessoas e de coisas, tais como a Common Law e o cdigo civil as conceberam e as dividiram.

    O efeito foi o desencaixe da economia. A instituio da propriedade separa a relao da pessoa com a coisa dos mltiplos laos existentes entre os membros da comunidade, ela se separa dos usos sociais consuetudinrios, das normas morais e dos valores culturais do grupo. A abstrao econmica do valor, que est no cerne do capitalismo como valor em processo permanente de autovalorizao, o corolrio da instituio proprietria. A abstrao da relao da pessoa com a coisa, que est no princpio do direito absoluto da pessoa sobre a coisa, e a abstrao do valor relativamente aos usos sociais padronizados por hbitos, estatutos ou funes, valores e costumes do grupo

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    constituem as duas faces, jurdica e econmica, de uma mesma moeda1. Assim, o indivduo em geral, abstrado de todas as determinaes particulares, o Indivduo com maiscula, que o verdadeiro efeito social do absolutismo da propriedade privada. Ele constitui naturalmente a unidade elementar do mercado, conforme a economia poltica e a filosofia do homem que a sustenta: conduzido e esclarecido pelo seu interesse, livre para contratar com terceiros a troca dos seus direitos de propriedade segundo a sua prpria vontade subjetiva, o indivduo proprietrio dos seus bens e de suas faculdades produtivas esse homem econmico que investe e trabalha para acumular bens e aumentar o gozo exclusivo que detm um gozo que ele pode avaliar em funo do esfor-o estritamente individual que realizou para obt-lo. Paralelamente, os usos consuetudinrios dos bens (especialmente as terras) cristalizam-se em direitos privativos e transferveis sobre bens, transformando assim tudo aquilo que era da ordem do inaproprivel em mercadorias ou quase mercadorias, como demonstrou Karl Polanyi (1983), entre outros. O mundo econmico , assim, profundamente estruturado por uma ordem simblica que, mesmo sendo diferente dos tipos estudados pelos antroplogos no planeta, no diferente quanto sua arbitrariedade histrica e social. O direito, com as suas fices, desempenha nesse mundo o papel decisivo, frequentemente nos bastidores. Ele a infraestrutura oculta, a verdadeira mo invisvel. A desmaterializao pro-gressiva da propriedade dita intelectual, ou seja, sua generalizao em ttulos, patentes, imagens, nomes, teoremas, siglas etc., no nada mais que a continui-dade de uma tendncia histrica longa, um acirramento da metafsica como Comte a chamava que organiza nossa relao com o mundo. A abstrao do valor em relao aos valores de uso, da quantidade em relao qualidade, da pessoa em relao ao grupo, do gozo absoluto diante das necessidades sociais, parte de um nico processo histrico. Polanyi e Marx perceberam o essencial ao considerarem a destruio do comum pelos cercamentos o mais eficaz dos mecanismos. por esse fato que se pode compreender, inclusive, por que os novos comuns se apresentam hoje como alternativas concretas abstrao proprietria e sua extenso universal.

    A legitimidade do direito de propriedade e sua perenidade no se devem unicamente coero econmica e poltica que pesa sobre os dominados e menos ainda a efeitos ideolgicos que persuadiriam os explorados quanto aos seus benefcios. Devem-se, antes, relao ntima que existe entre a propriedade e a subjetividade do indivduo moderno. Ver e viver a propriedade como di-reito subjetivo significa, como sugere Catherine Colliot-Thlne (2009), que a prpria subjetividade se constituiu na e por meio da relao de propriedade

    1. A abstrao da propriedade

    est inscrita nos usos da lngua.

    Macpherson observa que Ben-

    tham, sempre atento linguagem,

    assinala que na forma usual de

    falar j no se diz mais proprie-

    dade individual de um objeto,

    mas simplesmente propriedade

    individual (Bentham, apud Ma-cpherson, 1973, p. 128, nota 15).

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    com as coisas e com os outros, tal como definida pelos cdigos legais. Isso muito evidente no plano filosfico e poltico: ao menos desde o sculo xviii a propriedade vista como uma proteo em relao autoridade pblica, como um baluarte das liberdades diante da opresso e da intruso, como essa moldura ficcional estabelecendo os limites entre espao privado e espao pblico. tambm uma realidade histrica, uma aspirao profundamente inscrita nos modos de pensar e de viver, ligada a aspiraes igualitrias de um tipo especial: o todos proprietrios do campesinato francs, de que Marx zombava, por exemplo, e que deu uma base sociolgica e cultural ao conser-vadorismo poltico francs durante muito tempo. Mas, de modo ainda mais profundo, a propriedade tambm uma questo antropolgica; ela se tornou constitutiva do nosso modo particular de ser humano. Da mesma forma, o capitalismo, assentado sobre os direitos de propriedade individual, bem mais que um sistema de produo historicamente modificvel. Ele repousa sobre uma maneira especfica de estar no mundo, reforada continuamente por ele atravs de sua extenso a atividades cada vez mais numerosas e a espaos cada vez mais vastos.

    O Estado proprietrio

    Se a instituio da propriedade privada o prprio fundamento do capita-lismo, ela no totalmente estranha ao desenvolvimento paralelo da proprie-dade pblica. O mercado se amplia medida que alimentado pelas trocas de direitos de propriedade, enquanto o Estado aumenta seu poder medida que ele faz a si mesmo proprietrio de um domnio pblico e, mais amplamente, garantidor da ordem proprietria. O Estado, como pessoa moral hipotetica-mente destacada da sociedade , sabemos, o produto de todo o trabalho de interpretao e de categorizao dos glosadores medievais do direito romano redescoberto no sculo xi, em Bolonha. O direito pblico que sustenta essa construo no nasce de uma s vez nem por si s; ele faz composio com o direito civil, que se desenvolve paralelamente. Estado e propriedade, imperium e dominium, desenvolvem-se juntos, com a circulao de conceitos de uma para as outras partes da estrutura jurdica operada no mundo social, conforme

    Weber (1986) apontou em sua sociologia do direito.O Estado apresentou-se ao mesmo tempo como um suporte ordem pro-

    prietria dos particulares, como um limite ao absolutismo do direito de excluso e como um proprietrio de um tipo especial. Em outras palavras, a propriedade privada no reinou sozinha; alis, ela jamais foi to absoluta quanto queria

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    o seu princpio. Na verdade, foi a diviso do direito entre privado e pblico que estruturou as normas, as instituies e as ideologias na histria ocidental. Dissemos que a extenso da propriedade individual trazia consigo a destruio das relaes de dependncia pessoal e dos direitos consuetudinrios das comu-nidades. Ela foi acompanhada pela centralizao estatal e pela imposio de um direito racionalizado. A lei, a mesma para todos, liberou as pessoas das tutelas coletivas introduzindo a ideia de uma comunidade de cidados regida por instituies comuns. O que s vezes visto como duas evolues contraditrias, em particular aos olhos de neoliberais como Hayek (1945), mostra-se uma evoluo coerente quando levamos em conta as necessidades de organizar as relaes sociais com base na propriedade e de regular uma ordem social em que um dos pilares principais seja esse poder de excluir terceiros do gozo dos bens. No foi preciso apenas mobilizar, unir, concentrar foras repressivas e modos de persuaso ideolgica para defender a propriedade contra os no proprietrios. Foi preciso tambm encarregar-se da vida das populaes excludas dos meios de acesso ao trabalho e, portanto, vida. A represso da contestao da ordem proprietria e a manuteno de condies de vida minimamente decentes para as grandes massas so dois aspectos complementares do Estado social integrador do sculo xx. Sob esse ngulo, a biopoltica administrativa e gestionria, que opera por extenso contnua da ao pblica, aparece como o complemento governamental da consolidao jurdica da ordem proprietria, mesmo que aparentemente a questione por meio de uma gesto social das necessidades um protetorado econmico e social sustentando o mito de um Estado de todos para todos, nas palavras de Franois Perroux (apud Legendre, 1968, p. 428). Esse Estado protetor e integrador encontrou em seus antigos recursos doutrinrios as bases de legitimao da extenso de sua ao. O direito pblico do Antigo Regime, em sua operao de reciclagem do direito romano, j havia teorizado a polcia geral da autoridade pblica, como formulou Jean Domat (apud Chardeaux, 2006, p. 34). O Estado de direito, o Estado policial, o Esta-do social no so construes polticas essencialmente contrrias soberania do dominus sobre o seu domnio. Muito pelo contrrio, atravs de processos histricos ao mesmo tempo diversos e descontnuos, a soberania que veio a ser construda primeiro como o patrimnio da coroa e, depois, da nao. Tanto no mbito do direito pblico como no do direito civil, uma mesma concepo naturalista acabou se impondo: um sujeito naturalmente proprietrio de um patrimnio e um patrimnio tem naturalmente um proprietrio. Como observa judiciosamente Duguit (1907, p. 329): Para todo patrimnio necessrio um sujeito; outrora foi o rei, agora ser a nao personificada. A ordem jurdica

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    burguesa moderna prolongou a concepo patrimonial da soberania. Os bona publica do domnio real se tornaram bens nacionais detidos pelo Estado. O que mudou com as revolues modernas no foi tanto a concepo patrimonial da soberania, mas o titular legtimo do patrimnio.

    De propriedade pessoal do Prncipe, passando pela propriedade da coroa, chegamos grande ideia da propriedade nacional. A nao tornou-se a titular de direitos de propriedade, e o Estado, a personificao visvel da soberania. Foi essa concepo moderna de nao proprietria que acabou se impondo no que chamamos hoje de a esquerda. Claro, o socialismo do sculo xix esteve longe de ser unanimemente estatista e nacionalizador. Ele foi sobre-tudo associacionista, descentralizador e antiestatista. O que ele tinha por postulado era a recuperao do seu princpio vital pela sociedade: a produo econmica. Mas a fora de propulso estatal e a consolidao da realidade histrica da nao levaram a uma mutao profunda, nem sempre explcita, dos meios utilizados e dos objetivos perseguidos. Para resumir, a estrutura dual do direito ocidental imps o seu arcabouo ao pensamento socialista. Era a propriedade pblica contra a propriedade privada. Essa transformao foi favorecida pela converso progressiva do fato social no carter poltico do nacional, descoberta em sua originalidade prpria por Saint-Simon. A apropriao social muda ento completamente de significado: longe de ser a reapropriao dos seus meios de existncia pela associao dos produtores, foi pensada como uma nacionalizao dos meios de produo, ou seja, como a extenso da soberania nacional economia. A tambm as coisas so eviden-temente muito complexas ou at mesmo confusas. Jaurs, que foi o grande terico da propriedade social, era muito favorvel cooperao, a fim de que no ocorresse a identificao dessa soberania nacional sobre a economia com uma pura e simples extenso da burocracia de Estado. A propriedade social deveria ser, conforme o autor, acompanhada por uma transformao efetiva dos modos de governo de empresas e servios pblicos em um sentido democrtico. A propriedade pblica, ao ser ampliada para atender s crescentes necessidades sociais objetivas (segurana, transporte, sade, educao etc.), pouco cumpriu a promessa socialista inicial nem tem ajudado a introduzir as mudanas esperadas nas relaes sociais de trabalho.

    A questo se reapresenta hoje de uma nova maneira. O neoliberalismo pre-tende fazer desaparecer tudo aquilo que, no Estado assim como na sociedade, se assemelha a focos de resistncia norma geral da concorrncia. O Estado ele mesmo o alvo de polticas que visam enquadr-lo s normas do mercado, transform-lo em uma quase empresa competitiva e eficaz. As normas do

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    direito privado tendem a prevalecer a a ponto de reduzir a forma jurdica do pblico a uma concha vazia. Mais grave ainda, muitas vezes o prprio Estado que organiza o seu desaparecimento em favor do privado. O caso do Brasil e da Turquia so emblemticos a esse respeito: o Estado neoliberal que abandona o transporte pblico nas mos do setor privado (nas grandes cidades brasileiras) ou que privatiza os espaos pblicos urbanos (o parque Gezi e a praa Taqsim, na Turquia). Mais amplamente, preciso examinar o novo papel do Estado na coproduo de novas normas internacionais (acordos sobre a propriedade intelectual, registro de patentes em conjunto com empresas privadas), que fez dele o parceiro estratgico de grandes multinacionais e no o protetor de interesses comuns. Sob tais condies de hibridao generalizada entre pblico e privado, fica difcil continuar a opor frontalmente o pblico e o privado, como havamos nos habituado a fazer no passado.

    Uma vez que o prprio Estado est sujeito governana do corporate State, faz-se necessrio articular a defesa dos servios pblicos com uma perspectiva de transformao que permita assegurar a coerncia entre suas finalidades coletivas, suas regras de gesto e os procedimentos definidores das orientaes da sua atividade. Nem preciso contar com a esquerda dita de governo para fazer isso, pois ela se converteu ao novo curso do mundo, organizando o seu prprio suicdio histrico. Quanto esquerda dita de transformao social, ela est ainda sob a siderao do vazio deixado pela derrocada do sistema socialista de produo. Uma renovao emerge hoje nas lutas antineolibe-rais e nos experimentos alternativos, ou seja, em todas as prticas que abrem um devir ps-capitalista. nessa conjuntura histrica bem particular que o questionamento sobre a propriedade volta tona, e o faz de maneira parti-cularmente aguda quando se refere a duas categorias polticas diferentes, mas com frequncia confundidas nos discursos: apropriao social e comum. Importa, portanto, esclarecer esses conceitos para poder pensar o horizonte dos possveis.

    A apropriao social e o princpio do comum

    O que se deve entender por apropriao social? O verbo apropriar pode ter dois significados. No primeiro, pode se apropriar de uma coisa para um de-terminado fim, ou seja, para torn-la prpria para realizar sua finalidade por exemplo, apropriar-se de uma terra para satisfazer certas necessidades sociais por meio do seu cultivo. O que importa nessa perspectiva o uso que se faz de alguma coisa. Mas, no outro sentido registrado em letras de ouro nos anais

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    do movimento operrio , se trata de se apropriar de algo, ou seja, de fazer de algo a sua propriedade ou sua posse, seja essa coisa propriedade de uma ou de diversas outras pessoas ou, no sendo propriedade de ningum, esteja vaga e disponvel. Em ambos os casos, o termo remete ao prprio (do latim proprius) de duas maneiras diferentes: por um lado, o fato de ser prprio para algo (relao de finalidade ou de convenincia entre uma coisa e uma ou mais pessoas); por outro, o fato de ser o prprio de uma ou de mais pessoas (relao de pertena entre uma coisa e uma ou mais pessoas). Evidentemente, os dois sentidos podem ser combinados. Pode-se alegar assim que a modalidade da re-lao de pertena deriva, em ltima instncia, da relao de finalidade: dizemos que s a pertena da terra a um coletivo de camponeses possibilita apropri-la sua destinao, enquanto a sua apropriao privada a desvia dessa mesma desti-nao. Que sentido h em se qualificar a apropriao de social? Sem dvida, o adjetivo refere-se ao carter do ato de apropriao em sua relao com o seu beneficirio: a apropriao se faz em nome do interesse coletivo. Ela , nesse sentido, social ou coletiva na medida em que permite apropriar algo sua destinao e fazendo com que a sociedade se beneficie. No entanto, quer a apropriao-pertena se refira ou no a uma propriedade coletiva, o essencial est na apropriao-destinao e nos limites que ela impe a toda forma de propriedade, seja esta coletiva ou social. Ao subestimar tal fato, corre-se o risco de privilegiar a questo da forma jurdica da propriedade e do sujeito titular, em detrimento da relao de finalidade.

    Em contraste com essa primazia dada propriedade, observa-se, em pri-meiro lugar, que a determinao do que se deve entender por propriedade social no fcil: por exemplo, a sociedade neoltica conheceu o que Alain Testart chamou de propriedade usufonde, ou propriedade fundada no uso contnuo ao longo do tempo, em oposio propriedade fundiria, que leva em conta apenas os fundos, independentemente do trabalho ou do uso que o proprietrio faz dela (Testard, 2012, p. 408). Embora exclusse a renda fundiria, esse tipo de propriedade era diferente de uma propriedade coletiva ou social, uma vez que s o uso efetivo e publicamente comprovado da terra definiria o proprietrio.

    Alm disso, na ausncia de um direito de propriedade, podem surgir prti-cas de comunizao (pratiques de mise en commun) alinhadas a uma finalidade social: significativo o exemplo das terras de Somonte, que so de propriedade do governo autnomo andaluz, mas que foram ocupadas por camponeses decididos a cultiv-las para fins sociais; ou ainda o caso da fbrica de revesti-mentos cermicos Zanon, na Argentina, recuperada pelos assalariados aps

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    ter sido abandonada pelo patro e transformada desde ento em cooperativa de produo. Ambos os exemplos so parte de uma experimentao de um co-mum que envolve o exerccio de um direito de uso coletivo muito mais do que a reivindicao de uma propriedade coletiva. No segundo caso em particular, a exemplaridade est na ao de determinar coletivamente a destinao da produ-o: os assalariados fizeram, assim, a doao de milhares de metros quadrados de revestimentos cermicos aos hospitais, s escolas, s cantinas populares etc. Apenas a forma jurdica de cooperativa de produo no seria suficiente para decidir a finalidade da produo, como evidenciado pelo intenso debate que, na Frana do fim do sculo xix, ops os partidrios de uma concepo catlico-liberal de cooperativa, defendida por Charles Gide, de um lado, e os partidrios de uma concepo socialista de cooperativa, representada por Jaurs e Mauss, de outro.

    O princpio do comum que emerge hoje dentro de todos os movimentos sociais deve tornar possvel essa articulao: ele no se ope em nada ao pblico, mas no se define mais em termos de propriedade. Mais precisamente, ele retm aquilo que, no que pblico, destaca a destinao social e no apenas a forma jurdica de propriedade. isso que mostra o movimento de remunici-palizao da gua iniciada pela municipalidade de Npoles atravs de um ato que institua a gua como bem comum, ou ainda a luta dos coletivos que atuam contra a biopirataria praticada pelas multinacionais sobre os recursos naturais (especialmente as sementes). No se trata, ento, de opor uma boa apropriao a uma m apropriao (por exemplo, as boas patentes e as ms patentes), mas de opor a qualquer apropriao a preservao de um comum subtrado de qualquer lgica de apropriao devido a seu carter indisponvel.

    Princpios do comum

    luz dessas consideraes, parece til apontar, a ttulo de concluso, alguns princpios gerais do comum:

    prefervel promover o uso substantivo ao falar do comum a reduzir o termo a um qualificativo. Nesse aspecto, a expresso bem comum que podemos compreender perfeitamente que ainda sirva de palavra de ordem na luta sofre de uma irredutvel ambiguidade: um bem alguma coisa que possumos ou que aspiramos possuir diante de algumas qualidades que a tornam prpria para satisfazer certas necessidades (apropriao-destinao e no apropriao-pertena). Ora, longe de se confundir com um objeto de

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    propriedade, o comum exprime acima de tudo a dimenso do indisponvel e do inaproprivel.

    Nada em si ou por natureza comum. Em ltima anlise so as prticas sociais e somente elas que decidem sobre o carter comum de uma coisa ou de um conjunto de coisas. Portanto, contra qualquer naturalismo ou es-sencialismo preciso sustentar que a atividade dos homens que torna uma coisa comum, guardando-a de qualquer lgica de apropriao e reservando-a para o uso coletivo. Foi assim que, em 1842, Marx fez da atividade de coleta de galhos a base jurdica do direito consuetudinrio da pobreza. Nesse sentido, o comum se refere sempre a uma prtica que visa institu-lo ou manter e reforar a sua instituio j efetuada, o que acordaremos chamar de prxis instituinte.

    A dimenso conflituosa deve ser reconhecida como integrante do comum e no considerada um lamentvel efeito colateral que se deveria evitar: o comum no se refere a uma governana pacfica que funciona de base ao consenso; ele no se constitui, no se perpetua e no se expande de outro modo seno no conflito e por meio dele. O que institudo como comum est em oposio ativa a um processo de privatizao (seja do espao urbano, da gua ou das sementes). Desse ponto de vista, a iluso gestionria se solidariza com a concepo naturalista do comum: estando o comum inscrito nas propriedades de certas coisas, seu reconhecimento poderia ser objeto de um consenso, para alm dos conflitos de interesses sociais. Isso o mesmo que esquecer que o comum deve ser construdo contra a sua negao prtica.

    O essencial reside na coproduo de regras de direito por um coletivo. De fato, s assim se pode fazer respeitar os dois sentidos de munus inclusos no termo comum: a obrigao (primeiro sentido) que se aplica igualmen-te a todos aqueles que participam de uma mesma atividade ou tarefa (segundo sentido). A obrigao que nasce da instituio do comum no tem efetivamente nenhum carter sagrado ou religioso; a sua fora advm do engajamento prtico que liga aqueles que elaboraram coletivamente as regras pelas quais o indisponvel se encontra subtrado de toda lgica de apropriao. Resguardamo-nos, ento, de fazer do comum um novo modo de produo ou, ainda, um terceiro a se interpor entre o mercado e o Estado: comum , na verdade, o novo nome de um sistema de prticas e de lutas.

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    Resumo

    Propriedade, apropriao social e instituio do comum

    A propriedade privada ao mesmo tempo um direito, um princpio de dominao e

    a forma subjetiva das relaes do indivduo com o mundo. A propriedade pblica, no

    corao do direito pblico, desenvolveu-se ao lado da propriedade privada. preciso

    escapar do dilema do privado e do pblico levando-se em conta a nova racionalidade

    do comum, sustentada pelas lutas e experimentaes sociais as mais diversas: elas fazem

    prevalecer o direito de uso sobre a propriedade e se inscrevem, assim, dentro de uma lgica

    da inapropriabilidade.

    Palavras-chave: O comum; Propriedade; Governo coletivo; Movimento social; Subje-

    tivao.

    Abstract

    Property, social appropriation and the institution of the common

    Private property is at once a right, a principle of ownership and the subjective form taken

    by the relations between the individual and the world. Public property, at the core of public

    law, developed alongside private property. This article argues for the need to escape the

    dilemma of the private and the public by taking into account the new rationality of the

    common, advocated by diverse social movements and experiments: these insist that the

    right to use prevails over ownership and thus form part of a logic of inappropriability.

    Keywords: The common; Property; Collective government; Social movement; Subjec-

    tification. d o i : h t t p : / / d x . d o i .o r g / 1 0 . 1 5 9 0 / 0 1 0 3 -

    207020150114.

    Texto enviado em 29/9/2014 e

    aprovado em 12/12/2014.

    Pierre Dardot filsofo e espe-

    cialista em Marx e Hegel. Com

    Christian Laval, autor de Sauver Marx? Empire, multitude, travail immatriel (2007), La nouvelle raison du monde: essai sur la socit nolibrale (2009), Marx, prnom: Karl (2012) e Commun: essai sur la rvolution au xxiesi-cle (2014). E-mail: [email protected].

    Christian Laval professor de

    sociologia da Universit de Paris

    Ouest Nanterre La Dfense.

    Autor de Lambition sociologique (2002), Lcole nest pas une entre-prise (2003), Lhomme conomi-que (2007), entre outros. E-mail: [email protected].

    Pierre Dardot e Christian Laval

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