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Texto Contexto Enferm 2005 Jan-Mar; 14(1):82-8.

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REFLEXÕES SOBRE A PROMOÇÃO DA SAÚDE NUMA PERSPECTIVA BIOÉTICA 

REFLECTIONS ABOUT HEALTH PROMOTION ON A BIOETHICS

REFLEXIONES SOBRE LA PROMOCIÓN DE LA SALUD EN UNA PERSPECTIVA BIOÉTICA.

 Marta Verdi 1 , Sandra Caponi 2 

1 Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Professora do Departamento de Saúde Pública e do Programa de Pós-Graduação em SaúdePública/UFSC.

2 Filósofa, Doutora em Filosofia. Professora do Departamento de Saúde Pública e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública/UFSC.

RESUMO: No artigo, discute-se a promoção da saúde numa perspectiva de modelo sanitário, entendi-do como conjunto de elementos de natureza teórica, cultural e técnica que se expressam nos espaços daorganização do trabalho e das práticas de saúde. A evolução histórica das idéias de promoção da saúdeapresenta diferentes interpretações que podem ser reunidas em duas principais tendências. A primeira,com enfoque comportamental, expressa-se em ações que visam à transformação de hábitos e estilos de vida, pontuando fatores de risco e transferindo a responsabilidade ao indivíduo. A segunda considerafundamental o papel protagonista dos determinantes gerais sobre as condições de vida e de saúdeestando diretamente relacionada à qualidade de vida individual e coletiva. Nesta análise, buscamosrefletir acerca das motivações éticas expressas nas duas tendências, enfocando os princípios da respon-sabilidade e da autonomia, tendo por referência a Bioética Cotidiana de Berlinguer e a Bioética daProteção de Schramm.

PALAVRAS-CHAVE :Promoção da saúde. Bioética.Estilo de vida.

KEYWORDS:

Health promotion. Bioethics.Lyfe style.

 ABSTRACT: The article discusses health promotion from the sanitary model perspective. It is knownas a group of elements of the theoretical, cultural and technical nature, which are expressed in the areasof work and health practices organization. The historical evolution of the ideas of health promotionpresented different interpretations. There are two major tendencies. The first is focused on behaviour,expressed through actions that change lifestyle and habits, emphasizing risk factors and transferring theresponsibility to the individual. In the second, the role of general determinants about health and lifeconditions is fundamental, because it is directly relegated to collective and individual life quality. Thisanalysis reflects on ethics motivations expressed in both tendencies: the autonomy and responsibility principles. The Daily Bioethics of Berlinguer and the Protection Bioethics of Schramm are used asreference analysis.

PALABRAS CLAVE:Promoción de la salud.Bioética. Estilo de vida.

RESUMEN: En el artículo se discute la promoción de la salud en una perspectiva del modelo sanitariocomprendido como un conjunto de elementos de naturaleza teórica, cultural y técnica los cuales sonexpresados en los espacios de la organización del trabajo y de la práctica de salud. La evolución históricade las nociones acerca de la promoción de la salud presenta diferentes interpretaciones que pueden serreunidas en dos tendencias principales. La primera tiene un enfoque comportamental y se expresa en lasacciones con el objetivo de cambiar los hábitos y estilos de vida, señalando factores de riesgo y pasando

la responsabilidad a los individuos. La segunda considera fundamental el rol protagonista de losdeterminantes generales sobre las condiciones de vida y de salud relacionadas con la calidad de vidaindividual y colectiva. El análisis permitió una reflexión sobre las motivaciones éticas expresadas en lasdos tendencias enfocando los principios de la responsabilidad y de la autonomía teniendo por referenciala Bioética Cotidiana de Berlinguer y la Bioética de la Protección de Schramm.

Endereço:Marta VerdiRua Laurindo Januário da Silveira, 5125, casa 688062-200 - Lagoa da Conceição, Florianópolis, SCE-mail: [email protected]

 Artigo original: ReflexãoRecebido em: 15 de agosto de 2004 Aprovação final: 16 de dezembro de 2004

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INTRODUÇÃO

 A promoção da saúde tem se constituído, naúltima década, num dos temas mais citados e reitera-dos nos diferentes espaços da produção do conheci-

mento e das práticas de saúde. É importante explicitarque promoção da saúde é compreendida, no âmbitodeste estudo, como modelo sanitário caracterizado peloconjunto de elementos de natureza teórica, cultural etécnica que se organizam numa determinada socieda-de e num determinado momento histórico, com opropósito de responder às demandas do campo dasaúde e cuja existência é possibilitada apenas na reali-dade concreta.1-2 Assim, modelos sanitários são cons-truções sociais resultantes de relações de disputas eacordos entre diferentes segmentos da sociedade que

confrontam seus interesses, seus valores, suas crençasnas diferentes arenas societais, como por exemplo, oespaço de formulação de políticas públicas de saúde,da organização do processo de trabalho em saúde edas próprias práticas de saúde. É relevante evidenciar,ainda, a importância de se reconhecer que, na prática,inexistem modelos puros, pois eles se apresentam destaforma apenas enquanto construções teóricas, servin-do de referência para a análise da realidade e a identi-ficação de diferenças, que possibilitam escolhas e de-cisões.

 A produção acadêmica acerca da promoção dasaúde mostra a diversidade de interpretações que sur-giu ao longo deste período, evidenciando, de um lado,a grande fertilidade no mundo da construção das idéiasde promoção da saúde, e de outro, a fragilidade comque se revelam na realidade das práticas de saúde. Estasdiferentes interpretações podem ser reunidas em duasgrandes tendências, uma, com enfoque predominan-temente comportamental, referenciada pelos hábitose estilos de vida, e a outra, guiada pela concepção dequalidade de vida, direcionada pelos determinantes

gerais das condições de vida e saúde da sociedade.

Considerando as possíveis contradições existen-tes entre as duas tendências, buscamos refletir sobre asmotivações éticas que nelas se expressam, evidencian-do-se diferenças e aproximações, mas, sobretudo, to-mando por referência os princípios da responsabili-dade da autonomia. Deste modo, o trabalho propõe-se a discutir a promoção da saúde à luz de dois

referenciais da bioética contemporânea preocupadoscom questões da saúde pública, quais sejam, a BioéticaCotidiana3 e a Bioética da Proteção.4

SOBRE A PROMOÇÃO DA SAÚDE: A 

EVOLUÇÃO DE MODELOS

Em primeiro lugar, é importante ressaltar queas diferentes concepções de promoção da saúde nãosão formulações recentes, mas são construções cujaevolução histórica mostra momentos de aproxima-ção e distanciamento com outros modelos do campoda saúde como o modelo preventivo. Efetivamente,promoção da saúde não se apresenta como um con-ceito inédito, nem como uma estratégia desconhecida,mas tem estado presente em diversos estudos, ao lon-

go do último século. Embora o termo seja o mesmo,seu significado tem mudado, conforme a estruturaconceitual e as estratégias operativas a que se liga, ex-pressando uma verdadeira evolução do conceito.

Nas últimas décadas do século XX, observou-se uma rápida e expressiva evolução no campo dapromoção da saúde, tanto em nível da construção te-órica, como na formulação de estratégias inovadorasde implementação. Dois eventos representam verda-deiros marcos desta evolução: o Informe Lalonde*,de 1974, e a I Conferência Internacional sobre Pro-moção da Saúde, realizada em 1986, cujo documentofinal, a Carta de Ottawa, tornou-se emblemático parao movimento que se aglutinava em torno da promo-ção da saúde.5

Entretanto, muito antes de Lalonde e da Cartade Ottawa, outros autores já haviam dirigido seu olharpara a promoção da saúde, inserindo-a na discussãode outras temáticas, como é o caso do médico fran-cês Henry Sigerist e de Charles-Edward Winslow,médico e líder da saúde pública americana.6  Sigeristfoi um dos primeiros autores a referir o termo pro-moção da saúde em seu artigo The place of the phisician 

in modern society , de 1946, no qual indicou as quatrotarefas essenciais da medicina: a promoção da saúde,a prevenção da doença, a recuperação dos enfermose a reabilitação. Para ele, promover a saúde implicavaproporcionar condições de vida e de trabalho decen-tes, educação, cultura física e formas de lazer e des-canso, invocando, para tanto, o esforço coordenadode políticos, setores sindicais e empresariais, educado-res e médicos. A estes últimos imputava um papel so-

*  Publicação do Ministro da Saúde Canadense, Marc Lalonde, que se constituiu na primeira manifestação teórica da saúde pública que buscou questionar 

a abordagem exclusivamente médica para as doenças crônicas. Com motivação política, econômica e técnica, o documento possibilitou passar de uma noção

tradicional que reduz a saúde aos limites da medicina para uma idéia de campo de saúde mais amplo.

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cial de proteger as pessoas e guiá-las para uma vidacada vez mais saudável e feliz.

Na mesma época, a promoção da saúde tam-bém era foco de atenção nos trabalhos de Winslow que, no artigo The Evolution of Public Health and its 

Objectives, apresentou sua definição de saúde públicacomo a ciência e a arte de evitar doenças, prolongar a vida e promover a saúde física e mental. À semelhan-ça de Sigerist, referiu-se à promoção da saúde comoum esforço da comunidade organizada para efetivarpolíticas de melhoria das condições de saúde da po-pulação e programas educativos dirigidos à saúde in-dividual, bem como para desenvolver mecanismossociais que assegurem a todos níveis de vida adequa-dos para a manutenção e melhoria da saúde.7

Contudo, a formulação teórica mais reconheci-da, dentre aquelas que incorporaram o conceito depromoção da saúde, é, sem dúvida, a baseada nomodelo da História Natural das Doenças apresenta-do no livro Medicina Preventiva.8  Neste modelo, oprocesso evolutivo de uma doença subdivide-se emperíodo pré-patogênico (anterior ao início da doença,porém considerando a suscetibilidade) e períodopatogênico (quando a doença já iniciou seu curso). Aestes foram ajustados três diferentes níveis de preven-ção com suas respectivas medidas ou ações preventi-

 vas: prevenção primária, com ações de promoção dasaúde e proteção específica, prevenção secundária, com

o diagnóstico precoce e o tratamento e limitação dainvalidez; e prevenção terciária, com ações de reabili-tação. Considerando os elementos que integram operíodo pré-patológico do processo evolutivo de umadoença, a promoção da saúde é composta por medi-das ou ações de saúde como educação sanitária, ali-mentação e nutrição adequadas, moradia adequada,lazer, condições de trabalho adequadas, entre outras,que buscam desenvolver uma saúde geral melhor. Emrelação à educação sanitária, são enfatizadas as açõesde educação, orientação e aconselhamento, relativas às

situações de saúde que envolvem, de maneira geral, ocomportamento dos indivíduos, tais como a educa-ção sexual e a orientação de hábitos saudáveis.

Esta concepção tem sido alvo de severas críti-cas por parte de diferentes autores. Dois aspectosinterrelacionados são alvo de questionamentos. O pri-meiro, refere-se ao reducionismo do foco de atençãoda medida de promoção da saúde no âmbito indivi-dual, uma vez que as ações dirigem-se, via de regra,para o indivíduo, podendo projetar-se, às vezes, paraa dimensão da família e, mais raramente, para os gru-pos sociais. Já na segunda questão, é apontada a

inadequação do modo de conceituar promoção dasaúde para o caso das doenças crônicas não-transmissíveis, pois, com o advento da segunda revo-lução epidemiológica, esta passou a associar-se a me-didas preventivas sobre o ambiente e o estilo de vidada população. Deste modo, ampliava-se o enfoqueda promoção da saúde para além do indivíduo e fa-mília, passando a incorporar uma atenção dirigida aoutros atores sociais.6

 As formulações conceituais sobre promoção dasaúde passaram, nas últimas décadas, por um intensoprocesso evolutivo, apresentando-se em diferentes in-terpretações. Considerando que não é pretensão desteestudo esgotá-las, apenas apontaremos, que, de ummodo geral, estas formulações podem ser reunidasem duas grandes tendências. A primeira, centrada nocomportamento dos indivíduos e seus estilos de vida,e a segunda, dirigida a um enfoque mais amplo dedesenvolvimento de políticas públicas e condições fa-

 voráveis à saúde.9

Uma das características da primeira tendência éo seu enfoque fortemente comportamental, expressopor meio de ações de saúde que visam à transforma-ção de hábitos e estilos de vida dos indivíduos, consi-derando o ambiente familiar, bem como o contextocultural em que vivem. Nesta ótica, a promoção dasaúde tende a priorizar aspectos educativos ligados afatores de riscos comportamentais individuais, e, por-tanto, processo potencialmente controlado pelos pró-prios indivíduos. Para exemplificar, basta pensarmosna complexa questão do hábito de fumar. As campa-nhas educativas, em geral, são pautadas na aborda-gem que focaliza no próprio fumante as causas e, por-que não dizer a culpa, de seu ato, transferindo ao sujei-to a responsabilidade de sua saúde. Esta situação seaproxima muito da visão da culpabilização da vítima,reduzindo o âmbito do problema ao nível do indiví-duo e sua extensão ao nível do comportamento.10 Destamaneira, não fariam parte da promoção da saúde os

fatores e condições que estivessem fora do controledos próprios indivíduos.

Por outro lado, a segunda tendência, considerafundamental o papel protagonista dos determinantesgerais sobre as condições de saúde, cujo amplo espec-tro de fatores está diretamente relacionado com a qua-lidade de vida individual e coletiva. Logo, promover asaúde implica considerar padrões adequados de ali-mentação, de habitação e de saneamento, além de boascondições de trabalho, acesso à educação, ambientefísico limpo, apoio social para famílias e indivíduos e

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estilo de vida responsável. Promover a saúde implica,também, dirigir o olhar ao coletivo de indivíduos e aoambiente em todas as dimensões, física, social, políti-ca, econômica e cultural. Por fim, promover a saúdeimplica uma abordagem mais ampla da questão da

saúde na sociedade.Nesta lógica, à promoção da saúde correspon-deriam alguns campos privilegiados de ação tais como:políticas públicas saudáveis, ambientes favoráveis àsaúde, fortalecimento da ação comunitária, bem comoo desenvolvimento de habilidades e atitudes favorá-

 veis à saúde.

 Através das políticas públicas saudáveis, fica cla-ra a intenção de inserir a idéia de promoção da saúdena pauta dos programas políticos, em todos os seto-res da sociedade e em todos os níveis da organização

social, como forma dos políticos, dirigentes, lideran-ças, enfim, responsáveis pelas políticas públicas, to-marem consciência das conseqüências de suas deci-sões sobre a saúde da população e assumirem a suaresponsabilidade neste amplo espectro. As políticaspúblicas saudáveis podem efetivar-se por meio de di-

 versas ações complementares, que englobam desde alegislação e medidas fiscais, passando pelas mudançasorganizacionais, até as ações intersetoriais coordena-das, visando à distribuição mais eqüitativa de renda, aspolíticas sociais e a eqüidade em saúde.

O reconhecimento da complexidade da socie-dade, bem como das relações de interdependênciaentre os diversos setores que a compõem, apresenta-se como condição essencial ao desenvolvimento deambientes favoráveis à saúde. Considerando que asformas de vida, de trabalho e de lazer devem ser fon-tes de saúde, e que o trabalho deve constituir-se numrecurso para a criação de uma sociedade saudável, éapontada como prioridade estratégica o desenvolvi-mento de ambientes que facilitem e favoreçam a saú-de, como o trabalho, o lazer, o lar, a escola e a própriacidade.

Outro campo de ação da promoção da saúde,o fortalecimento da ação comunitária, expressa-se atra-

 vés do incremento do poder técnico e político dascomunidades ( empowerment  )**, visando a sua participa-ção efetiva e concreta na escolha de prioridades, to-mada de decisões e na elaboração e implementaçãode estratégias para alcançar um melhor nível de saúde.Neste sentido, deve ser garantido o acesso total e con-tínuo às informações e às oportunidades de aprendi-

zagem sobre as questões de saúde.

Entendendo que a promoção da saúde devafortalecer o desenvolvimento pessoal e social, o quar-to campo de ação focaliza a questão de habilidades eatitudes favoráveis à saúde. Como estratégias para o

desenvolvimento de habilidades e atitudes pessoais sãoapontadas a informação e a educação em saúde, vi-sando incrementar as possibilidades da população exer-cer um maior controle sobre si mesma e o ambiente,e definir-se por opções mais favoráveis à saúde.

 A PROMOÇÃO DA SAÚDE SOB O OLHAR DA BIOÉTICA 

 A promoção da saúde enquanto campo de for-mulações teóricas, mas, sobretudo, como espaço de

manifestações práticas na realidade social, impõe a umaaproximação analítica das possíveis implicações éticasresultantes de sua aplicação. Neste sentido, acredita-mos que tanto a Bioética Cotidiana como a Bioéticada Proteção mostram-se referenciais de análise con-sistentes para produzir tal reflexão. A primeira, por-que busca refletir sobre as situações da vida cotidianaque envolvem milhões de pessoas e que são perma-nentemente ocultadas, omitidas ou negligenciadas. Asegunda, porque se ocupa com as questões relativasao fortalecimento das ações que visam a proteção daqualidade de vida e da saúde humana. Em ambosreferenciais da bioética, dois elementos se apresentame se aproximam, quais sejam, os princípios da respon-sabilidade e da autonomia.

Como todo processo em construção, riscos seapresentam e críticas são necessárias às formulaçõesconceituais de promoção da saúde. Nesta ótica, umdos riscos mais evidentes trata da possibilidade depolíticas públicas de saúde serem construídas de modoreducionista, transformando problemas sanitários com-plexos em desvios de conduta individuais, deslocan-do tanto o cerne da questão do corpo social para o

corpo biológico ou físico, quanto a responsabilidadeda produção de respostas efetivas do nível do Estadopara o próprio indivíduo. Este reducionismo ajudariaa explicar porque tantos programas de promoção desaúde orientam suas estratégias para a promoção deuma conduta sadia.11

Entretanto, sabemos que promover a saúde de-pende da melhoria de condições sociais, tais comoeducação, habitação, trabalho e salário dignos. E são

**  Empowerment, traduzido como empoderamento, é entendido como o processo de capacitação para a aquisição de poder técnico e político por parte dos 

indivíduos e da comunidade.

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justamente estas condições sociais que influem namodificação do estilo de vida. De fato, é difícil modi-ficar o modo de habitar uma cidade, a forma de viverdos sujeitos, numa sociedade onde faltam sistemaseducativos completos e acessíveis a todos; a higienepessoal, certamente, é utopia em casas que carecem deágua encanada, bem como, é impossível explicar umadieta saudável a pessoas que passam fome.

Concordamos com os críticos desta visãoreducionista, os quais ressaltam que produzir uma nova

 visão de promoção de saúde na sociedade latino-ame-ricana significa situá-la num amplo contexto social,como uma estratégia que permite buscar um maiorcompromisso de todos para diminuir as desigualda-des sociais e aumentar o bem-estar coletivo.12 Destamaneira, a expressão políticas públicas saudáveis po-derá assumir um outro papel, o de árbitro das políti-cas públicas, julgando sua atuação, conforme os efei-tos sobre a saúde das populações. Este novo olharpoderá provocar uma evolução no monitoramentodas políticas públicas, passando de uma postura reativa,isto é, impedir que tais políticas provoquem danos àsaúde, para uma postura proativa, induzindo políticasque produzam saúde.

 Todavia, o que assistimos é a uma verdadeirahipertrofia de um dos campos de ação da promoçãoda saúde, o desenvolvimento de hábitos e estilos de

 vida saudáveis, conseqüente do reducionismo da com-plexidade do modelo, com repercussões éticas impor-tantes manifestas nas estratégias de intervenção. Taisestratégias dirigem seu foco de ação ao comporta-mento individual considerado de risco, indicando, as-sim, uma dupla responsabilização do sujeito. Primei-ro, porque o indivíduo passa ser responsável pelopossível adoecimento, caso desconsidere o risco, e se-gundo, como desdobramento, este passa a ser respon-sabilizado pelo desenvolvimento do arsenal de con-dutas e hábitos que evitarão o risco.

 A análise das similaridades entre a promoção da

saúde e a prevenção de doenças mostra que preveniré antes de tudo vigiar, antecipar a emergência de acon-tecimentos indesejáveis em populações indicadas comode risco, enquanto que promover a saúde, quando nãose trata de controlar politicamente as condições sani-tárias, de trabalho e de vida da população em geral,mas quando busca criar hábitos saudáveis, é tambémuma vigilância, uma vigilância que cada um de nós deveexercer sobre si mesmo.13  Resulta que, em ambosmodelos, as estratégias podem gerar ações inócuas oubenéficas para a saúde, mas podem também criar

modos de controle e de exclusão.

 A depender do modo como se estruturam, asestratégias de promoção da saúde podem se tornarestratégias de vigilância que muitas vezes limitam ourestringem liberdades e decisões individuais, com amotivação do bem estar coletivo ou da evitabilidadede conseqüências danosas à saúde e à sociedade. Sede um lado, se evidencia a tendência de responsa-bilização dos indivíduos pelo eventual risco de adoe-cer caso não adotem os padrões indicados como sau-dáveis, chegando, muitas vezes a ponto de culpabilizá-los pela doença, por outro gera a subalternidade àsmedidas médicas, frente às quais o indivíduo podearticular o consenso ou o dissenso, porém sem a pos-sibilidade de construir a autonomia.

No modelo da promoção da saúde, a autono-mia se coloca como um dos princípios sobre o qual seancora a definição dos campos de ação deste modelo.Esta questão se evidencia, sobretudo, nas estratégias li-gadas ao campo do fortalecimento da ação comunitá-ria, porém torna-se frágil quando analisamos as estraté-gias do campo do desenvolvimento de hábitos, atitu-des e estilos de vida favoráveis à saúde, as quais reite-ram o caráter de vigilância de comportamentos.

Neste ponto, cabe resgatar a origem comumentre o modelo preventivo e a promoção da saúde,ou seja, o propósito da vigilância, sendo que na pre-

 venção esta se dirige aos riscos de adoecer e na pro-moção se focaliza nos comportamentos favoráveis àsaúde. De um modo ou de outro, o controle se fazpresente, em um caso sobre a doença e a saúde, emoutro, sobre a própria vida das pessoas.14

Portanto, existe um risco real de expropriaçãoda saúde, em virtude da tendência de delegar ao pro-fissional de saúde a definição dos problemas de saú-de, a escolha das estratégias a seguir e as decisões atomar, como se tratasse de decisões de valor pura-mente técnico. Há também o risco real presente naspróprias medidas preventivas, que em grande parte éocultado ou minimizado, o que interfere diretamentena decisão e escolha das pessoas, pois restringem seuacesso à informação, limitam seu poder de decisãosobre seu próprio corpo e vida.

É importante referir que tanto o campo das es-tratégias preventivas como o daquelas de promoçãoda saúde não são zonas francas em relação ao direitode escolha das pessoas, deveriam superar o caráterpaternalista, transfigurando a compreensão de “paci-ente” para a de sujeito detentor de direitos e poder dedecisão.

É importante ressaltar a compreensão de que

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tais estratégias não são medidas puramente técnicas,mas que carregam em si componentes éticos funda-mentais. Resulta em compreender o que Berlinguercaracteriza como motivação ética de tais medidas (nocaso da prevenção, a virtude antecipatória dos even-tos, na promoção da saúde, o caráter protetor) po-rém sem descaracterizar o princípio da autonomia dossujeitos, o que pressupõe a capacidade de aproveitá-latendo a sua disposição tanto conhecimentos quantocondições psicofísicas e sociais adequadas.

Para a Bioética da Proteção, tanto a promoçãoda saúde como a prevenção de enfermidades são vis-tas como estratégias fundamentais da saúde pública, aqual é entendida como conjunto de disciplinas e práti-cas que têm por objeto a proteção da saúde das po-pulações humanas. Deste modo, no caso da preven-ção, se trata de proteção defensiva, concebida comoproteção contra o adoecimento, enquanto que a pro-moção da saúde é uma proteção proativa, que se com-promete com a proteção em prol de estilos de vidaconsiderados saudáveis ou não-prejudiciais à qualida-de de vida humana. Entretanto, o caráter protetor dasaúde pública manifesto nas ações de promoção dasaúde direcionadas ao incremento da qualidade de vidapode ser traduzido na responsabilidade individual, masdeve ampliar-se necessariamente ao universo da res-ponsabilidade social, ou seja, do Estado frente aos in-divíduos.

Neste sentido, as políticas públicas saudáveis as-sumem papel protagonista na perspectiva da promo-ção da saúde, o que implica uma abordagem maiscomplexa impondo a reformulação de conceitos epráticas, tanto no âmbito da saúde, quanto no âmbitodo Estado e seu papel frente à sociedade, através daspolíticas públicas.

Em oposição à tendência de minimizar e em-pobrecer as políticas sanitárias, é preciso ressaltar queuma das tarefas das políticas públicas saudáveis “éequacionar adequadamente as relações entre saúde eeconomia, entre saúde e desenvolvimento. Tanto parafixar, em nome da saúde, limites éticos e humanitáriosà razão econômica, quanto para com ela estabelecerpactos, onde o tema da saúde possa ser redescobertocomo um valor. Impõe-se que a saúde seja‘descolonizada’ da economia, inclusive superando omito, hoje desmentido por diversos estudos, da

 vinculação inevitável entre desenvolvimento econômicoe desigualdade social”. 15:34

Para a construção das mudanças necessárias nocotidiano das práticas profissionais de saúde, é preci-

so refletir sobre as implicações éticas das ações dostrabalhadores como agentes morais. É preciso, tam-bém, compreender o caráter dinâmico da sociedadecomo um espaço em permanente disputa de interes-ses políticos e desejos individuais e coletivos, que en-

 volvem forças díspares, valores diversos e crenças di- vergentes. Desta forma, pensar em promoção da saú-de na nossa realidade concreta é pensar em políticaspúblicas voltadas para a diminuição das iniqüidadesexistentes na sociedade, em especial a brasileira, evi-denciadas nas desigualdades em saúde, mas cujas raízessituam-se nas desigualdades de acesso ao conjunto decondições mínimas para a saúde. Pensar em políticaspúblicas saudáveis neste cenário, sem dúvida, implica,em primeiro lugar, ter como diretriz política a elimi-nação das múltiplas carências cotidianas da vida indi-

 vidual e coletiva, que passam pela pobreza, pela fome,

pela exclusão social, inclusive de acesso aos serviçospráticas de saúde. Implica, também, em situar estesobjetivos no vértice da pirâmide de prioridades polí-ticas, visto que são, os verdadeiros determinantes dodesequilíbrio social e sanitário forjado em nossa soci-edade.

REFERÊNCIAS

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desafios para práticas inovadoras [citado 2001 Jul 24].Disponível em: URL: http://www.fiocruz.br .

2 Mendes EV. Uma agenda para a saúde. São Paulo: Hucitec;1996.

3 Berlinguer G. Bioética cotidiana. Brasília: Ed. UnB; 2004.

4 Schramm FR. A bioética da proteção em saúde pública. In:Fortes PAC, Zoboli ELCP, organizadores. Bioética e saúdepública. São Paulo: Loyola; 2003. p. 71-84.

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DC: OPS; 1996. p.37-46.

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7 Nunes ED. Sobre a sociologia da saúde. São Paulo: Hucitec;1999.

8 Leavell H, Clark EG. Medicina preventiva. São Paulo:McGraw-Hill; 1976.

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10 Berlinguer G. Ética da saúde. São Paulo: Hucitec; 1997.

11 Ferraz ST. A pertinência da adoção da filosofia de cidadessaudáveis no Brasil. Saúde em Debate. 1994 Dez; 41: 45-9.

12 Restrepo H. La promoción de la salud en el contextourbano de America Latina. Washington, DC: OPS; 1992.

13 Castel R. La gestión de los riesgos. Barcelona: Anagrama;1986.

14 Rabinow P. Antropología da razão. Rio de Janeiro: RelumeDumará; 1999.

15 Carvalho AI. Criação de ambientes favoráveis à saúde. In:Buss PM. Promoção da saúde e a saúde pública. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1998. p.37-44.