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GUSTAVO NUNES DE OLIVEIRA

O PROJETO TERAPUTICO COMO CONTRIBUIO PARA A MUDANA DAS PRTICAS DE SADE

CAMPINAS 2007i

GUSTAVO NUNES DE OLIVEIRA

O PROJETO TERAPUTICO COMO CONTRIBUIO PARA A MUDANA DAS PRTICAS DE SADE

Dissertao de Mestrado apresentada Ps-Graduao da Faculdade de Cincias Mdicas da Universidade Estadual de Campinas para obteno do ttulo de Mestre em Sade Coletiva, rea de concentrao Sade Coletiva Planejamento, Gesto e Subjetividade

ORIENTADOR: PROF. DR. SERGIO RESENDE CARVALHO

CAMPINAS 2007iii

FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DA FACULDADE DE CINCIAS MDICAS DA UNICAMPBibliotecrio: Sandra Lcia Pereira CRB-8 / 6044

OL4p

Oliveira, Gustavo Nunes de O Projeto teraputico como contribuio para a mudana das prticas de sade / Gustavo Nunes de Oliveira. Campinas, SP: [s.n.], 2007.

Orientador: Sergio Resende Carvalho Dissertao (Mestrado) Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Cincias Mdicas.

1. Gesto em sade. 2. Vulnerabilidade em sade. 3. Fatores de risco. 4. Educao em sade. I. Carvalho, Sergio Resende. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Cincias Mdicas. III. Ttulo.

Ttulo em ingls: The therapeutic project as contribution to change health services practices Keywords: Health management Vulnerability in health Risk factors Health in education

Titulao: Mestre em Sade Coletiva rea de concentrao: Sade Coletiva Banca examinadora: Prof Dr Srgio Resende Carvalho Prof Dr Jos Ricardo de Carvalho Mesquita Prof Dr Gasto Wagner de Sousa Campos

Data da defesa: 23 - 02 - 2007

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Banca examinadora da Dissertao de Mestrado

Orientador: Prof. Or. Srgio Resende Carvalho

Membros:Prof. Or. Srgio Resende Carvalho

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Prof. Or. Jos Ricardo C. de Mesquita Ayres

Prof. Or. Gasto Wagner de Sousa Campos

Curso de Ps.,.Graduaoem Sade Coletiva da Faculdade de Cincias Mdicas da Universidade Estadual de Campinas....

Oata: 23/0212007

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s minhas filhas Helena e Sofia e minha amada companheira Patrcia.

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AGRADECIMENTOS

Ao pessoal de Pinda, Agradeo aos profissionais de sade de Pindamonhangaba, todos os que participaram das atividades desenvolvidas naquela cidade. secretria de sade e promoo social Dra. Ana Emlia. Dra. Ana Figueiredo. E em especial Dra. Eny, grande parceira de trabalho e me do David. Mariana, grande aliada. Aos Companheiros do Centro de Sade DIC III que lutam bravamente no cotidiano do SUS nas "periferias" complexas metropolitanas da "Sudoeste". Em especial Rosana pela militncia sem fronteiras e, s vezes, sem medidas. Mas sempre empolgante. Ao Eduardo e Egle, de Taubat, pela acolhida, pela confiana, pelas boas risadas e por todo o apoio que me deram. Aos amigos de Amparo, em especial ao povo da USF Pinheirinho, Elisa e a Dra. Aparecida Linhares Pimenta. Ao meu muito querido amigo-pai Carlo (Prof. Dr. Carlos Roberto Soares Freire de Rivordo). Companheiro de luta, de choro e riso, de estrada e de imensido... que voc consiga se ver e me ver nesse trabalho, muito alm do que eu. Obrigado por sua generosidade. Janete que me acolheu to bem em sua casa em Jacare. Aos meus irmos Aline e Rafael.ix

minha querida me, que sempre amei, to intensamente, que tive que crescer para perceber isso. Ao meu pai. Graas a ele descobri a Vida e perdi o medo. Ao meu orientador que tentou me ensinar a "fazer recortes", ir em frente, valorizando cada passo. Que os nossos finais de semana tragam muitos frutos. Ao Prof. Gasto que sempre me inspira e a quem considero um Mestre. Ao Prof. Emerson Merhy que me instiga a ter curiosidade por outras formas de pensar. Ao Prof. Heleno pela confiana e pelo apoio. Aos residentes de Medicina Preventiva e Social da UNICAMP, em especial Larissa pelo companheirismo. Aos que no pensam e que no agem como eu. Helena, minha filha. Pela pacincia e compreenso. Por ter reclamado da minha ausncia. Por me dar fora e afeto. Por ser Helena. E por ser linda e doce. Sofia, que nasceu em plena tese, para me lembrar de quem sou e do que sou capaz. Patrcia, minha companheira. Pela sua pacincia. Pelo seu carinho. Por ser a mulher que . Por ter essa coragem doce e generosa. Muito Obrigado.

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O desejo diz: Eu no queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso; no queria ter de me haver com o que tem de categrico e decisivo; gostaria que fosse ao meu redor como uma transparncia calma, profunda, indefinidamente aberta, em que os outros respondessem minha expectativa, e de onde as verdades se elevassem, uma a uma; eu no teria seno de me deixar levar, nela e por ela, como um destroo feliz. E a instituio responde: Voc no tem por que temer comear; estamos todos a para lhe mostrar que o discurso est na ordem das leis; que h muito tempo se cuida de sua apario; que lhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, de ns, s de ns, que ele lhe advm. MICHEL FOUCAULT A Ordem do Discurso

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SUMRIO

Pg. RESUMO............................................................................................................... ABSTRACT........................................................................................................... APRESENTAO................................................................................................ INTRODUO..................................................................................................... Captulo 1- O marco Terico-Conceitual............................................................ Captulo 2- Repensando o Projeto Teraputico Singular: caminhos daconstruo de uma proposta...................................................................

xxi xxv 29 37 41

67 69 73

Parte A- A prtica profissional do pesquisador como dispositivo............... Parte B- Conceitos incorporados ao longo do trajeto.................................... Captulo 3- Uma Proposta de Operacionalizao do Projeto Teraputico Singular: a produo intersubjetiva na gesto e no planejamento daclnica..............................................................................................

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Captulo 4- Aspectos da Metodologia de Investigao....................................... 111 Captulo 5- Resultados e Discusso...................................................................... 125 Captulo 6- Consideraes Finais......................................................................... 181 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................ 187 APNDICES.......................................................................................................... 197

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LISTA DE ABREVIATURAS

ACS CAISM CRAS CS DMPS EPS ER ESF FCM OPS PTS PUC SAD SAMU SANASA SMSPS SUAS SUS UBS UMS

Agente Comunitrio de Sade Centro de Referencia e Assistncia Integral em Sade da Mulher Centro de Referncia em Assistncia Social Centro de Sade Departamento de Medicina Preventiva e Social Educao Permanente em Sade Equipes de Referncia Equipe de Sade da Famlia Faculdade de Cincias Mdica Organizao Pan-americana de Sade Projeto Teraputico Singular Pontifcia Universidade Catlica Servio de Atendimento Domiciliar Servio de Atendimento Mvel de Urgncia Sociedade de Abastecimento de gua e Saneamento S/A (Campinas/SP) Secretaria Municipal de Sade e Promoo Social Sistema nico de Assistncia Social Sistema nico de Sade Unidade Bsica de Sade Unidade Mista de Sade

UNICAMP Universidade Estadual de Campinas USF Unidade de Sade da Famliaxvii

LISTA DE FIGURAS

Pg. Figura 1 Quadro de anlise do planejamento...................................................... Figura 2 Roteiro para discusso de PTSI (indivduos em contexto).................... Figura 3 Roteiro para discusso de PTSC (reas, grupos, comunidades em situao de risco/vulnerabilidade).......................................................... Figura 4 Exemplos de representao grficas de arranjos familiares................... Figura 5 Vetores de influncia determinantes de vulnerabilidade nos sujeitos.... Figura 6 Avaliao de vulnerabilidade em sujeitos singulares (balana de vulnerabilidade)...................................................................................... 99 92 95 98 83 91

Figura 7 Avaliao de vulnerabilidade de MF (iniciais de nome prprio)........... 101

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Resumo

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Este trabalho investiga a contribuio do Projeto Teraputico Singular (PTS) para a gesto da ateno individual e coletiva sade. O marco terico parte de concepes da sade coletiva e discusses sobre cincia e senso comum na ps-modernidade.

Aborda possibilidades de mudanas nas prticas de sade, enquanto prticas sociais, a partir do encontro entre sujeitos, na implementao de processos de singularizao da ateno, tendo o PTS como modelo. Faz releitura dos processos de normalizao da ateno, tendo como modelo a aplicao do conceito de risco probabilstico epidemiolgico. Prope a incorporao do conceito de vulnerabilidade s prticas de sade. Avalia uma proposta de operacionalizao do PTS tomando como material de anlise dados coletados em atividades de educao permanente com trabalhadores da rede bsica e no desenvolvimento de projetos teraputicos em unidades de sade. Os dados foram classificados e analisados com base nas categorias Sujeito, Singularidade e Autonomia. Os resultados permitem reflexes sobre teoria/prticas de sade. Assinala limitaes de projetos sanitrios que privilegiam aes programticas sustentadas unicamente na noo de risco, alm de elaborar alternativas s prticas prescritivas objetivantes. Aponta a pertinncia da incorporao do conceito de vulnerabilidade nas prticas e constata o valor de uso do arranjo/dispositivo PTS proposto na qualificao do trabalho em sade voltado para co-produo de sade e de sujeitos autnomos. Conclui apontando possibilidades, limites e dificuldades do PTS enquanto estratgia de reforma das prticas de gesto/ateno em sade e questes que julgamos devedoras de novos estudos.

Resumo

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Abstract

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This study investigates the contribution of the Singular Therapeutic Project (PTS) for the management of the individual and collective attention to health. The adopted theoretical landmark departs from concepts of the Collective Health field and contentious positions about science and common sense in post-modernity. It addresses possibilities of changes in the social praxis on health issues, starting from citizens group meetings to finally overlook the singular aspects of delivering individual processes of providing health care under the PTS model. It reviews the processes of standardization of health services, also using the probabilistic concept of risk from epidemiology. It proposes to encompass the concept of vulnerability to the health practices. It evaluates an application trial of the PTS model based on data collected from continuous education projects of the health workers and some case-analysis on therapeutic projects that they adopt to develop their own services at the primary health centers of the Brazilian Unified Health Services (SUS) network. The data was classified and analyzed based on categories as: Subject, Singularity and Autonomy. The results allow reflections about health theory/praxis and also point out to limitations of sanitary projects that are uniquely supported by the notion of risk, besides suggesting alternative practices. They also state the relevance of the adoption of the concept of vulnerability into the health services and bring about evidences of the PTS model value to promote capacity building for the health teams along with developing health promotion and autonomic concepts among citizens and health workers altogether. The conclusion points out possibilities, limits and difficulties of the PTS model, taken as a strategy to reform of health praxis components specially those directed to health policy and management of health services. These limits are taken as a framework that deserves additional studies.

Abstract

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Apresentao

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Esse trabalho foi desenvolvido a partir das reflexes e das prticas surgidas ao longo de cinco anos de experincia profissional e dez anos de militncia no Sistema nico de Sade (SUS). Trajetria iniciada no segundo ano de graduao em medicina na Faculdade de Cincias Mdicas da Universidade Estadual de Campinas, em 1996, quando implementei meu primeiro projeto de investigao estudando as atividades de educao em sade e participao social realizadas, na poca, pelos 41 centros de sade do municpio de Campinas. Nesse caminho conheci toda a rede de servios de ateno bsica municipal e entrevistei todos os coordenadores dessas unidades. Esse foi o incio de uma relao que, de uma forma ou de outra, tem continuidade at os dias atuais. No mesmo ano, ingressei no movimento nacional de estudantes de medicina (DENEM - Direo Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina) e vivi a efervescncia da discusso da reforma e avaliao do ensino mdico no Projeto CINAEM (Comisso Nacional e Interinstitucional de Avaliao do Ensino Mdico). Nessa poca, j me alinhava s crticas ao modelo de formao das escolas mdicas, fragmentado e focado no corpo biolgico. A convivncia com os servios de sade se deu paralelamente formao acadmica e de forma predominantemente extracurricular. Participei e coordenei alguns projetos de vivncia no SUS ambientados em centros de sade. Entre eles o Projeto Universidade Viva Comunidade (1998), apoiado e financiado pela Pr-Reitoria de Extenso da UNICAMP que tinha o objetivo de inserir alunos de graduao em medicina atravs de parcerias com profissionais de centros de sade de Campinas na formulao e na implementao de projetos de ao comunitria tendo como foco a educao em sade, a participao social e a cidadania. Na Faculdade de Cincias Mdicas da UNICAMP, como representante discente, vivenciei os primeiros movimentos internos de avaliao do ensino de graduao em medicina, inicialmente inseridos no projeto CINAEM e depois nos primrdios da Reforma Curricular, atualmente em curso adiantado de implementao. Na DENEM, participei da gesto nacional do movimento estudantil de medicina como Coordenador da Regional Sul II (estados de So Paulo e Paran). Trouxemos o Congresso Brasileiro dos Estudantes de Medicina (COBREM) de 1998 para Campinas, numa parceria indita entre os estudantes de medicina da UNICAMP e da PUC-Campinas. Para isso, contamos comApresentao

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apoio do Sindicato dos Mdicos de Campinas e Regio (SINDIMED). Nessa poca, foram muitos os fruns promovidos para discusso da formao mdica com participao interinstitucional, inclusive com participao de gestores do SUS. As vivncias dessa militncia influram de forma decisiva na minha vida profissional, ampliando horizontes em mltiplos sentidos, fazendo perceber e procurar meu lugar de luta. Talvez por uma compreenso muito intuitiva do cenrio conjuntural da sade no Pas, ao final da dcada de 90, as perguntas que me passaram a ocupar os pensamentos eram: Como se faz acontecer Universalidade, Eqidade e Integralidade no cotidiano dos servios de sade? Como seria organizado um servio de sade no qual acontecesse a co-produo de sade e de sujeitos autnomos? Como seriam esses profissionais de sade e esses usurios que co-produziriam sade e autonomia? Essas questes me levaram a priorizar a militncia profissional no cotidiano dos servios. Em 2000 terminei a graduao. Na residncia mdica, optei pela especializao em Sade da Famlia e Comunidade, programa novo na FCM - UNICAMP, do qual fui aluno da primeira turma de residentes. Esse curso trazia uma proposta de formao de profissional mdico generalista avanada para a poca, muito embora no sul do pas e no Rio de Janeiro j houvesse tradio de mais de 20 anos, na Medicina Geral e Comunitria. O meu interesse era aprofundar a formao clnica mantendo espaos de reflexo e contato com servios de sade que pudessem proporcionar, ao mesmo tempo, espaos de experincia em Sade Coletiva e gesto. Aps a residncia (2002-2003), trabalhei no Programa Paidia de Sade da Famlia em Campinas. J tinha contato com essa estratgia e com o Mtodo Paidia desde 2001, em razo da residncia mdica na UNICAMP e pela minha proximidade com o Departamento de Medicina Preventiva e Social (DMPS) da FCM - UNICAMP, desde 1996. Em agosto de 2003 regressei para o municpio de Amparo, onde j havia estagiado como residente. Trabalhei como mdico de famlia at maro de 2005, quando iniciei o mestrado em Sade Coletiva. Nesse perodo fui gestor da unidade de sade da famlia Pinheirinho/Centro, que abrigava duas equipes de sade da famlia (eu era mdico de uma delas), e abrangia um territrio de 2.200 famlias e aproximadamente 8.000 pessoas j cadastradas, com estimativa de populao total de 12.000 pessoas.Apresentao

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Nessa experincia tive contato constante com o nvel central da Secretaria Municipal de Sade e fui responsvel por vrios processos de capacitao de trabalhadores de sade, em especial de agentes comunitrios de sade e um processo de educao em sade para funcionrios de pr-escolas do municpio. Paralelamente ao trabalho na ateno bsica, fui mdico plantonista do pronto socorro do Hospital Beneficncia Portuguesa de Amparo, conveniado ao SUS, durante trs anos. Neste perodo entrei para o corpo clnico desse hospital e me tornei coordenador da Clnica Mdica e do Pronto Socorro por um ano e meio. No final de 2003, em funo das experincias de treinamento de agentes comunitrios em Amparo, fui convidado pelo municpio de Jacare (SP) para prestar servio de consultoria no Programa de Educao Permanente para Profissionais de Sade com nfase na Estratgia de Sade da Famlia. Nesse Programa, minha tarefa era desenvolver um treinamento introdutrio para todas as equipes multiprofissionais de sade da famlia. A idia era inserir os trabalhadores de sade no contexto do modelo e da estratgia de ateno sade proposta de forma singular para o municpio. Alm disso, pretendia-se inaugurar o processo de educao permanente que contava com outros mecanismos, alm de capacitaes, tais como a constituio de uma equipe de apoio/superviso e mudanas no modelo de gesto na sade. No perodo de 2005 e 2006 desenvolvi trabalho semelhante no municpio de Pindamonhangaba, tambm na regio do Vale do Paraba (SP), com participao de aproximadamente 260 trabalhadores de sade e promoo social (da ateno bsica e de alguns centros de referncia), atividade que apresento em parte nesta investigao. O conjunto das experincias profissionais e de militncia foram abrindo novas possibilidades de insero e de vivncia e, junto, outras necessidades se impuseram e me levaram a buscar, cada vez mais, conceitos e referenciais tericos que pudessem sustentar esse crescimento. nesse contexto que surge o desejo e o interesse pelo Mestrado em Sade Coletiva. Portanto, esse trabalho o resultado de reflexes e experincias surgidas da minha prtica profissional e militante. Um pesquisador intensamente implicado com seu objeto de investigao.Apresentao

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O leitor notar que no busquei uma abordagem especfica das prticas mdicas ou das prticas de enfermagem ou de qualquer outro ncleo profissional especfico. A escolha por essa abordagem seguiu a mesma estratgia desde a concepo do projeto, passando pelas atividades de campo e pela sua concluso: abordar a prtica de profissionais de sade inseridos em equipes nos servios de sade e no a prtica desse ou daquele profissional. No se pretende, com isso, algum tipo de totalizao ou de generalizao das concluses sobre o trabalho dos profissionais de sade. Procedi a uma discusso sobre as prticas de sade de um grupo de profissionais que participaram deste estudo. De qualquer modo, esses trabalhadores esto contextualizados em territrios que apresentam regularidades de condies e situaes presentes em outros contextos dos servios de sade pblicos no Brasil, mas tambm vivem processos singulares segundo alguns aspectos. Caber ao leitor achar-se mais ou menos inscrito nesses territrios, segundo seus prprios processos de anlise, conforme o que encontrar descrito nestas pginas.

O meu compromisso foi o de detalhar, o melhor possvel, os caminhos de produo e de reproduo das prticas de sade, com o objetivo de contextualizar os processos vividos, possibilitando o acesso do leitor a esses territrios. No trabalho so considerados profissionais de sade: os mdicos, todo o profissional de enfermagem, os profissionais que atuam na sade bucal, os que atuam na sade mental, os agentes comunitrios de sade, mesmo no tendo formao especfica, os trabalhadores que atuam na recepo em servios de sade, mesmo que funcionrios originariamente lotados em outro setor que no a sade (administrao, por exemplo), e todos os trabalhadores que atuam no papel de profissionais de sade, desde que inseridos no contexto dos servios. Pretendo discutir a contribuio do projeto teraputico singular (PTS) na organizao de servios e do processo de trabalho de equipes de trabalhadores de sade. As questes aqui discutidas esto ambientadas na ateno bsica, em especial nas modalidades que incorporam o arranjo das Equipes de Referncia (Carvalho e Campos, 2000), por serem teis ao intento e traduzirem a minha experincia nos ltimos cinco anos. Com esse intuito, no Captulo 1 explicito o marco terico que parte de concepes da Sade Coletiva e discusses sobre cincia e senso comum na ps-modernidade. Tambm discuto questes cruciais no debate dos modelos de ateno eApresentao

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de gesto em sade, tais como os Arranjos e Dispositivos de Gesto e As Equipes de Referncia. As questes discutidas convergem para um percurso que procura recompor o caminho seguido para a compreenso do conceito de Projeto Teraputico Singular, discutido ao final deste captulo. No Captulo 2 reconstru o caminho das prticas e das reflexes tericas que me levaram a formulao de uma Proposta de Operacionalizao do PTS, a qual apresentada em detalhes no Captulo 3. Ainda no Captulo 2 os conceitos de Vulnerabilidade, de Risco e de Territrio so discutidos mais a fundo. O Captulo 3 explicita uma proposta de operacionalizao do PTS construda em atividades de educao permanente com trabalhadores da rede bsica e no desenvolvimento de projetos teraputicos em unidades de sade. No Captulo 4 abordo as questes metodolgicas, tais como desenho investigativo, atividades de campo e tcnica de anlise dos dados empricos. Esse movimento pretende explicitar os caminhos de construo tomados para definir o projeto investigativo. Os Resultados e a Discusso compem do Captulo 5. Os trechos transcritos de oficinas e outras atividades de campo servem de provocao tanto ao pesquisador quanto ao leitor para as reflexes que se seguem, sempre procurando relacion-las com os objetivos propostos no projeto de pesquisa. E, finalmente, o Captulo 6 encerra com as Consideraes Finais que destacam questes importantes a serem aprofundadas, surgidas no processo investigativo, e perguntas que demandam novos estudos.

Apresentao

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Introduo

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No caminho da construo do SUS O contexto poltico dos ltimos dezesseis anos afetou o processo de construo do SUS, marcando seu percurso por adversidades. A ideologia predominante do Estado Mnimo contribuiu para o crnico sub-financiamento, para a precarizao da remunerao e das relaes de trabalho e para as solues propostas pela via da privatizao, marcas do perodo. Apesar disso, aconteceram avanos incontestveis: A incluso social por meio do acesso aos bens e servios de sade ampliou-se e as vrias experincias locais e regionais de sucesso que eclodem por todo o pas vm dando sinais do SUS que deu certo (Santos, 2007). Todavia, o aumento das coberturas de acesso, principalmente na ateno bsica efetivada pela implementao da estratgia de sade da famlia nos municpios, no significou, na mesma medida, aumento de resolutividade dos problemas de sade em todos os nveis de ateno. Com a nfase dada ao princpio da Universalidade sem a garantia de Eqidade e de Integralidade, atualmente vivemos o paradoxo de reas ao mesmo tempo cobertas pela presena de uma unidade de sade, mas desassistidas pela absoluta insuficincia de recursos e de capacidade resolutiva. As periferias das grandes cidades so provas vivas desse paradoxo. H um descompasso entre a crescente demanda e a velocidade de implementao de ofertas de bens e servios de sade, os quais ainda so de qualidade abaixo da necessria. A regionalizao entre os municpios ainda incipiente. Os servios especializados e hospitalares, salvo algumas experincias focais, no se articulam com o restante da rede de servios, persistindo os modelos de gesto e de ateno que no coadunam com os princpios e diretrizes do SUS. Alm disso, as demais polticas sociais sofrem a mesma desconstruo aprofundando as insuficincias no setor sade. Nos servios de ateno bsica as equipes de profissionais enfrentam dificuldades em organizar seu trabalho. Compor-se e manejar-se enquanto equipe, estabelecer equilbrio entre atividades de acolhimento e atividades planejadas, discutir casos e implementar projetos teraputicos que ampliem a clnica com centralidade no sujeito (usurio) so atividades que tm sido deixadas de lado em funo do cumprimento de tarefas, de uma forma mecnica, como dar conta da demanda espontnea que procura as Unidades Bsicas de Sade e do atendimento ambulatorial tradicional por programas, condenando os servios ao funcionamento burocratizado e mdico-centrado.Introduo

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Mesmo nos contextos em que essas questes so superadas, a durabilidade dessas mudanas geralmente se torna refm do cenrio poltico loco-regional, sofrendo com suas flutuaes. Nessa perspectiva comum encontrarmos uma situao de mediocrizao da prtica clnica (Merhy, 1998), na qual os sujeitos so objetivados em sua dimenso de corpo doente, em que sua importncia se encerra no olhar tcnico e normativo dos experts da sade. Decorrente de todos essa problemtica surge um desencantamento com o SUS, na forma de descrdito quanto capacidade do movimento sanitrio, dos polticos, dos gestores, dos profissionais, entre outros, para transformar em realidade uma poltica to generosa (Campos, 2007). No esforo de transformar esse contexto, vrios arranjos e dispositivos organizacionais tm sido discutidos como meios de reformular o processo de trabalho dessas equipes, tendo como objetivo o resgate da funo teleolgica dos servios de sade (Campos, 2005). Neste intuito, essa compreenso de finalidade pode ser relativa sua capacidade de resposta s necessidades de sade da populao e de seus direitos (Paim et al., 1998; Teixeira, 1999; Ceclio, 2001; Starfield, 2002; Lampert, 2003; Ceccim & Feuerwerker, 2004; Santos, 2007) ou, por outro caminho, pode ser explicitada na idia do objetivo-fim na co-produo de sade e de autonomia (Campos, 2005). Isso ter conseqncias nos modos de formulao das prticas de sade,

conforme abordaremos mais adiante neste trabalho. Entretanto, tal esforo no pode se restringir ao incrementalismo (Santos, 2007), furtando-se de compor linhas de ao em contraposio/resistncia manuteno do statu quo descrito aqui em linhas gerais. Assim, a reformulao do processo de trabalho em sade deve produzir novos acontecimentos na sade, provocar mudanas nos sujeitos e nos contextos que, por mais que se operem no espao micropoltico, abriguem no seu interior dispositivos capazes de gerar mudanas no institudo. Nesse sentido que procuro explorar as potencialidades do Projeto Teraputico Singular (PTS) utilizado ora como dispositivo, ora como arranjo e, outras vezes, como estratgia na reorganizao do processo de trabalho de equipes de sade na ateno bsica. O PTS compreendido como modelo de prticas de sade singularizantes, ou Processos de Singularizao da Ateno Sade, traz novas perspectivas e possibilidades de co-produo de sujeitos e seus contextos.Introduo

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Captulo 1O Marco Terico-Conceitual

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As Prticas de Sade: prticas sociais Para circunscrever a idia de prticas e funes sociais das prticas de sade inicio o percurso com o modelo de pensamento que Donnangelo (1979) utilizou em seu trabalho de livre-docncia 1 publicado no livro Sade e Sociedade, no qual parte da medicina comunitria para discutir a prtica mdica como prtica social. Donnangelo referiu-se a medicina comunitria como projeto de organizao da prtica mdica, em termos da constituio de uma forma de articulao entre as organizaes encarregadas das prticas de sade e os grupos sociais a que se destinavam. Naquele texto, a autora definiu medicina como conjunto de recursos tcnico-cientficos voltados para a realizao de nveis progressivamente elevados de bem-estar social. O conceito de social ali inscrito estava centrado nas concepes de necessidades de sade, pobreza, carncia, sade e bem-estar como direito; questes relativas aos modos de articulao entre medicina e sociedade. Essa definio da medicina, que foi sinalizada pela prpria autora como uma simplificao, permitiu visualizar as prticas mdicas como processo histrico de transformaes que se processam nos meios de trabalho mdico, predominantemente, na perspectiva da diversificao tecnolgica progressiva calcada em bases cientficas. Muito embora tenha dito que a historicidade dos meios de trabalho no se esgota na idia de desenvolvimento cientfico-tecnolgico, a qual afirma no ser a mais importante (p.16). Sobre a aproximao prticas de sade e desenvolvimento tecnolgico, em especial o desenvolvimento cientfico-tecnolgico, Gonalves (1994) chamou ateno para a vinculao da questo tecnolgica como incorporao do novo viabilizado pelo progresso cientfico. Salientou que a noo de cincia a empregada possibilita consider-la como motor exclusivo da qualidade de vida humana. Nesse sentido, ocorre uma generalizao tendencial do consumo dos produtos obtidos atravs do uso das novas tcnicas. Esse processo geraria possibilidade de satisfao de expectativas de consumo e a incorporao de meios de produo que, se sempre interessam do ponto de vista do1

Medicina e Estrutura Social (O Campo da Emergncia da Medicina Comunitria), tese de livre-docncia defendida em agosto de 1976 e publicada, na ntegra, no livro: Sade e Sociedade, de Maria Ceclia Ferro Donnangelo e Luiz Pereira, Ed. Livraria Duas Cidades, So Paulo, 1979.Captulo 1 - O Marco Terico-Conceitual

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capital, nem sempre correspondem a necessidades unvocas de todos os setores da sociedade (p. 17). O discurso das noes de progresso tcnico ou de desenvolvimento tecnolgico, segundo esse autor, tem cunho ideolgico e permite afirmar que o termo tecnologia, assim tomado sumariamente como conjunto de meios tcnicos da produo, procede ao mesmo tempo a uma representao pragmtica e fetichizada da realidade, que conseqncia da considerao das formas empricas imediatas assumidas pelo real (as aparncias fenomnicas) como ncleo essencial e equivalente ao seu conhecimento. O uso do termo ideolgico pretendeu destacar que essa concepo ilusria, quando referida s concepes globais e particularizadas que se elaboram a respeito da totalidade social, marca posio dos interesses particulares definidos por situaes de classe (p.20). Essas concepes sobre os modos de articulao entre Sade e Sociedade esto inseridas num contexto histrico que, ao mesmo tempo em que as torna possvel, as restringe, marca seus limites, suas proximidades e suas identidades com outras concepes afins ou antagnicas. Cria-se, desse modo, o discurso da medicina que articula dentro de si modos de operar sentidos e posicionamentos polticos, ideolgicos e tcnicos, passveis de entendimento naquele cenrio. Visto assim, as prticas de sade so prticas sociais que explicitam a operacionalizao de concepes mais amplas sobre as coisas, o mundo e os homens que, ao mesmo tempo em que as orientam, as subjugam num certo contexto de possibilidades limitadas, num determinado territrio. Para Donnangelo (1979), a medicina, numa primeira aproximao, pode ser vista como prtica tcnica que manipula instrumentos tcnicos e cientficos para produzir uma ao transformadora sobre o corpo e o meio fsico, que responde a exigncias que se definem margem da prpria tcnica, no contexto da organizao das prticas sociais, econmicas, polticas e ideolgicas nas quais se inclui. Essas exigncias definem a presena e o dimensionamento do objeto ao qual se aplica, dos meios de trabalho que ela opera e da forma de destinao dos seus produtos. A partir desse referencial possvel afirmar que as prticas de sade so prticas sociais operadas por profissionais de sade. desse lugar, no qual as prticas de sade se articulam com as demais prticas sociais submetendo-se as exigncias doCaptulo 1 - O Marco Terico-Conceitual

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todo organizado das prticas sociais, que so reguladas suas possibilidades de produo e de reproduo do institudo. Este o ponto estratgico do qual melhor se pode apreender o seu carter histrico (Idem, p.15). Dessa forma, torna-se possvel conceber prticas de sade que representam determinadas concepes de sade, de cidadania, de Estado, de poltica e de direito, na forma de operacionalizao de um modelo de ateno e de gesto em sade. Nesse sentido, a emergncia de uma prtica de sade coincide com uma determinada forma de articulao das questes da Sade na Sociedade. Esse referencial tambm toma em considerao a determinao social dos objetos das prticas mdicas, ultrapassando a perspectiva do biolgico. Cogita, portanto, a construo histrica da prtica mdica como prtica social que pode ser explicada, pelo menos de forma parcial, a partir da compreenso do modo pelo qual a sociedade toma seus corpos, os quantifica e lhes atribui significado cultural, poltico e econmico (Donnangelo, 1979, p.28-29). A noo de objeto passa tambm pela considerao dos segmentos sociais, em termos de estrutura de classes, a qual se destinam as prticas mdicas (p.31). No percurso da pesquisa tornou-se importante um esforo pela busca de rotas alternativas ao pensamento de cunho estruturalista. A armadilha criada nesse modo de pensar que todo o processo de mudana passa por intervenes no modo de produo e na estrutura da sociedade de classes, considerando apenas os mecanismos de dominao estveis, contnuos e no sentido do geral para o particular. Essa abordagem considera secundrios os elementos conscientes e inconscientes dos sujeitos individuais e coletivos, como portadores de desejos e de interesses, os quais podem ter capacidade de reforo ou de resistncia com relao aos mecanismos de poder advindos do contexto geral. Um projeto de pesquisa que pretende propor mudanas na organizao dos servios a partir de determinadas prticas de sade, como prticas sociais, nos contextos locais, nos micro-espaos dos servios de sade, teria dificuldades de situar-se estritamente sob esse referencial estruturalista. Um caminho auspicioso de aprofundamento dessa temtica, reconhecendo e procurando superar os caminhos abertos por autores como Donnangelo e Gonalves, est na temtica do poder em Foucault (2005a [1979]).

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Este autor ultrapassa a concepo de poder associada noo de soberania estatal, tradicionalmente localizado nos aparelhos de Estado e a servio dos interesses das classes dominantes. Segundo esse autor, poder no uma instituio ou uma estrutura, mas um lugar estratgico onde se encontram todas as relaes de foras poder/saber. Essas relaes podem ser entre um homem e uma mulher, entre aquele que sabe e aquele que no sabe, entre os pais e as crianas, na famlia. Na sociedade o poder estaria nos milhares de pequenos enfrentamentos, micro-lutas, as quais, ao mesmo tempo em que so freqentemente comandadas ou induzidas pelos grandes poderes de Estado, ou pelas grandes dominaes de classe, no sentido contrrio, uma dominao de classe ou uma estrutura de Estado s possvel se houver essas pequenas relaes de poder. Nesse sentido, a estrutura do Estado se enraza nas pequenas tticas locais e individuais que encerram cada um entre ns. Foucault trata das relaes de poder como relaes de fora, enfrentamentos, sempre reversveis. Haveria, dessa forma, em todas as relaes de poder, possibilidades de resistncia, a qual incita uma resposta no sentido da manuteno da relao de poder de intensidade estabelecida conforme a fora da resistncia oferecida. Assim, no haveria apenas uma dominao geral e contnua, mas uma luta perptua e multiforme, repleta de possibilidades de resistncia (2006b, p. 231- 232).Geralmente, pode-se dizer que h trs tipos de lutas: contra as formas de dominao (tnicas, sociais e religiosas); contra as formas de explorao que separam os indivduos daquilo que eles produzem; ou contra aquilo que prende o indivduo a si mesmo e, desta forma, o submete aos outros (lutas contra a sujeio, contra as formas de subjetivao e submisso). Acredito que na histria podemos encontrar muitos exemplos destes trs tipos de lutas sociais, isoladas umas das outras ou misturadas entre si (Foucault, 1995, p.235).

Esse entendimento permite ampliar as concepes sobre a determinao social do processo sade doena e pensar novos arranjos em termos de prticas de sade que representem acontecimentos (dispositivos), inicialmente na forma de processos singulares, com potncia para mudar ou reforar o institudo. Esses acontecimentos poderiam significar rearranjos de poder, seja no sentido da opresso, da resistncia e/ou da mudana.Captulo 1 - O Marco Terico-Conceitual

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No sentido foucaltiano de poder, que est em todos os nveis de relaes humanas - no necessariamente na macro ou na microestrutura parece-me possvel dizer que no se pode prever de onde parte a emergncia de uma nova prtica de sade, se de uma nova operao micropoltica ou tcnica, ou se na dimenso dos determinantes sociais universais da superestrutura. Parto desse enunciado para afirmar que a emergncia de novas prticas de sade ou de novos modos de articulao Sade-Sociedade pode surgir como acontecimento em qualquer ponto entre o micro e o macro. Estes representando plos de observao; de determinao/estrutura social, cultural, econmica; de poder/poltica; de saber; de cincia; de modos de explicar o mundo; de desejos e de interesses. Esse entendimento permite ampliar a compreenso das prticas de sade, enquanto prticas sociais, abrindo perspectivas para se pensar novas prticas e novas formas de organizao destas, em termos da gesto das relaes de trabalho.

As Necessidades de Sade, a Problemtica Demanda-Oferta e Articulaes entre Saber e Prticas de Sade No cotidiano dos servios de sade h um tensionamento constante entre as demandas feitas pelos usurios e a capacidade de resposta dos profissionais, os quais esto inseridos nas portas do sistema de sade. H um entendimento de que os usurios representam tradues de necessidades de sade mais complexas que so travestidas num pedido especfico a demanda (Ceclio, 2001). Todavia, se considerarmos que costumeiramente as ofertas de servios realizadas pelos profissionais de sade (vnculo, acolhimento, atendimentos, procedimentos, etc.) so apresentados como produtos desses servios de sade, quantificveis (inclusive por parmetros de produtividade), ocorre que esses produtos freqentemente so confundidos com as prprias necessidades de sade. Campos (2005) discute essa questo em termos do conceito de Valor de Uso das prticas de sade. Na sociedade capitalista o conceito marxista de valor de uso expressa a utilidade do produto e permite seu consumo. Essa utilidade proporcional suposio de que o produto em questo pode responder a necessidades. Valor de uso, portanto,Captulo 1 - O Marco Terico-Conceitual

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no equivale a necessidade social. Os produtos (bens e servios/prticas) so meios com capacidade potencial de atender necessidades sociais. Entretanto acontece que na sociedade capitalista, freqentemente, os produtos so ofertados como se fossem equivalentes s necessidades, manobra ideolgica que parte dos interesses do capital, transformando meios em fins. Esse caminho poderia explicar de que forma o consumo de consultas mdicas, a realizao de exames e o consumo de medicamentos passam a ser vistos como sinnimos de Sade em si mesmos. Assim sendo, h um desafio a ser enfrentado: promover o descolamento do valor de uso dos bens e servios da idia direta de atendimento a necessidades sociais. Esse descolamento desvincularia a idia de atendimento das necessidades de sade dos parmetros de produtividade de procedimentos. A oferta de servios no sinnimo de produo de sade. Entretanto, o desafio no pequeno, nem tampouco simples de ser compreendido e enfrentado. preciso levar em considerao a complexidade das questes em disputa pelos atores sociais implicados: as experincias de sofrimentos corporais e subjetivos; a ontologia das doenas conhecidas e legitimadas pela cincia biomdica; o arcabouo jurdico acerca dos direitos e deveres dos indivduos com problemas de sade e dos profissionais de sade (Camargo Jr., 2005); as representaes scio-culturais do processo sade-doena-interveno adjacentes a uma multiplicidade de agenciamentos sociais, a uma multiplicidade de processos de produo de subjetividade

(Guatarri e Rolnik, 2005). Todo esse emaranhado de inter-relaes complexas convergem no momento em que um sujeito portador de necessidades demanda aes, intervenes, bens, prticas de um profissional de sade que est em um servio, supostamente, para atender a essas necessidades. Outro obstculo a essa empreitada o predomnio de uma viso que imprime um grau de exterioridade das necessidades sociais em relao aos sujeitos concretos, como se fossem resultados de uma dinmica histrico-social que no inclui os desejos e os interesses de sujeitos. Estes mais sofrem suas conseqncias do que as comandam em cada situao especfica. Sob esse prisma, as instituies o mercado, o Estado, a medicina, etc. aparecem ao Sujeito com o peso de um determinante Universal, transcendente a ele mesmo (Campos, 2005, p.76).Captulo 1 - O Marco Terico-Conceitual

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Decorre do que foi dito anteriormente que, se h freqentemente uma equivalncia entre o valor de uso das prticas e as necessidades de sade s quais essas prticas tm potencial para responder tambm existe, no momento da demanda, uma equivalncia entre consumo de determinadas prticas consideradas pelo sujeito demandante como portadoras de maior valor de uso e a satisfao de suas necessidades. Misturam-se, nesse sentido de satisfao, questes particulares, subjetivas, projetivas e gerais do contexto social. Tudo isso me leva a afirmar que preciso superar o discurso demasiado otimista e superficial que coloca no usurio sempre o papel demandante de prticas mais humanizadas para solucionar ou aliviar seus sofrimentos,

o que freqentemente dito por autores da Sade Coletiva. Se o usurio ocupa efetivamente o lugar de sujeito-usurio, parece-me necessrio considerar que possvel e freqente que, por mltiplos fatores, incluindo a o desejo de consumo, haja demanda por prticas desumanizadas, iatrognicas, potencialmente danosas. Pode-se opinar que esse aspecto no lgico, baseado em algum argumento de autopreservao, mas certamente humano e freqente no cotidiano dos servios de sade. Frente a uma situao como essa, o profissional de sade no deve e no pode omitir-se. Ocorrem, no encontro das demandas com os servios de sade,

mltiplos processos de dissociao entre demanda, prticas de sade e satisfao de necessidades de sade. Esses processos so produzidos pela reproduo da equivalncia valor de uso/necessidade social. A demanda declarada do sujeito-usurio busca o consumo de bens e servios de sade portadores de valor de uso. Os profissionais de sade quando respondem apenas e superficialmente a demanda pelo consumo reforam a voracidade desta, seja por razes internas ou externas ao contexto imediato dos servios e deles mesmos e podem passar, progressivamente, a organizar o seu processo de trabalho em funo da produo de ofertas que procuram aplacar o insacivel desejo de consumo dos usurios. Nesse processo, o volume da demanda crescente e a resoluo das necessidades de sade, sob qualquer anlise que se faa, cada vez menor. Exemplos desse processo so os servios de pronto atendimento (PA) que reproduzem predominantemente o atendimento do tipo queixa-conduta (Gonalves, 1994).

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Conseqncia desse caminho de pensamento: para retornar no processo de dissociao descrito e fazer com que as prticas de sade atendam a necessidades sociais preciso responder a duas questes: (1) De quem o papel de decodificar demanda em termos de necessidade de sade? (2) Quem determina quais so as necessidades? Responder a essas perguntas tambm se mostra tarefa complexa envolvendo inmeras armadilhas. Falar de reais necessidades de sade um jargo que configura uma dessas armadilhas que freqentemente capturam pensadores do campo da sade. A qualificao de real para necessidade de sade, que tem mais o sentido de verdadeira, s possvel quando se parte do princpio de que existe algum ou algum processo (tcnico) com capacidade de discernimento entre real/verdadeiro e ilusrio/falso. Do ponto de vista foucaltiano,[...] A verdade deste mundo; ela produzida nele e graas a mltiplas coeres e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua poltica geral de verdade; isto , os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instancias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as tcnicas e os procedimentos que so valorizados para a obteno da verdade; o estatuto daqueles que tm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro (Foucault, 2005a [1979], p. 12).

Na sociedade ocidental a tradio positivista toma a cincia como caminho para a verdade, a qual deve ser obtida por mtodos de neutralidade. Essa concepo declara a cincia como aparelho privilegiado da representao do mundo, o que Boaventura de Souza Santos (1989) chamou de dogmatizao da cincia. Nessa cincia dogmatizada, o conhecimento cientfico ope-se ao do senso comum (Bachelard apud Souza Santos, 1989) o que configura a primeira ruptura epistemolgica. Essa ruptura interpreta o modelo de racionalidade que subjaz ao paradigma da cincia moderna. Supera, nessa interpretao, as epistemologias idealistas e empiristas que durante muito tempo mediramCaptulo 1 - O Marco Terico-Conceitual

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foras no campo epistemolgico. Entretanto, essa ruptura s compreensvel dentro deste paradigma, o qual se constitui em oposio ao senso comum recusando os saberes da vida e da convivncia. Nesse paradigma, a relao eu/tu convertida em relao sujeito/objeto, uma relao feita de distncia, estranhamento mtuo e de subordinao total do objeto ao sujeito. O conhecimento cientfico passa a ser o nico conhecimento vlido e baseia-se nas idias de objetividade/neutralidade, nas dicotomias teoria-prtica e cincia-tica, nas verdades alm das aparncias, a verdade nas costas dos objetos. H clara distino entre o relevante e o irrelevante e este ltimo a cincia teria o direito de negligenciar.[...] Um paradigma que avana pela especializao e pela profissionalizao do conhecimento, com o que gera uma nova simbiose entre saber e poder, onde no cabem os leigos, que assim se vem expropriados de competncias cognitivas e desarmados dos poderes que elas conferem; um paradigma que se orienta pelos princpios da racionalidade formal ou instrumental,

irresponsabilizando-se da eventual irracionalidade substantiva ou final das orientaes ou das aplicaes tcnicas do conhecimento que produz (Souza Santos, 1989, p.35).

Nesse paradigma o profissional de sade especialista (portador do conhecimento cientfico) deve assumir a funo de fazer a leitura das demandas e traduz-las em termos de reais necessidades de sade. O usurio, nesse contexto, no passa de demandante e como leigo no detentor de saberes vlidos. Em funo disso, o expert (Lupton & Petersen, 1996) detm o poder de eleger as necessidades de sade relevantes, definir/priorizar/planejar/implementar aes/intervenes, definir os

estilos de vida saudveis e enquadrar as demandas em conjuntos de prticas de sade pretensamente formuladas a partir do conhecimento cientfico. So exemplos dessa formulao o planejamento normativo em sade (mtodo CENDES/OPS da dcada de 60) alicerado pelo conhecimento cientfico epidemiolgico. Esse referencial no s possibilita, como tambm estimula, todo o tipo de prticas prescritivas 2 , tais como a educao em2

O termo prescrio como em Paulo Freire (1987[1970]), significa a imposio da opo de uma conscincia a outra. A conscincia recebedora da prescrio se torna hospedeira da conscincia opressora. Dessa forma, o comportamento dos oprimidos tem origem em pautas estranhas a eles a pauta dos opressores; o que transforma o comportamento dos oprimidos um comportamento prescrito (Freire, 1987, p. 34).Captulo 1 - O Marco Terico-Conceitual

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sade de cunho bancrio (Freire, 1987) e a funo apostlica na prtica mdica descrita por Balint (1988).Era como se cada mdico possusse o conhecimento revelado do que os pacientes deviam e no deviam esperar e suportar e, alm disso, como se tivesse o sagrado dever de converter sua f todos os incrdulos e ignorantes entre os pacientes (Balint, 1988, p.186).

Campos (2005) sugere como sada uma reflexo crtica nos coletivos sobre as polticas, os projetos, os programas, os modelos e as prticas, como meios para o atendimento de necessidades sociais e como valores de uso produzidos. A partir dessas anlises, dever-se-ia autorizar os coletivos a reconstruir as organizaes e os processos produtivos. Pr em discusso, nos coletivos organizados para a produo, os sentidos e os significados do trabalho e as implicaes dos sujeitos nesses processos. Essa sugesto implica em reformulao, em novos arranjos de gesto, em processos de co-gesto efetivos, envolvendo a criao de settings apropriados, e o uso de dispositivos potentes capazes de gerar reflexo/ao para desconstruir as prticas prescritivas/objetivantes no seio dos processos de interao entre os profissionais de sade, os gestores e os usurios. Todavia, esses processos podem no acontecer de forma espontnea, necessitando de metodologias de apoio externo realizadas, sempre, sob os riscos da captura autoritria e da gerao de dependncia. Camargo Jr. (2005) prope que a demanda seja vista como resultante de um processo de negociao, culturalmente mediado, entre atores representantes de diversos saberes e experincias. Essa concepo parte do princpio de que no h distino entre demanda real e falsa colocada a priori. Esta qualificao de real ou falsa se daria ao longo do processo de negociao sociotcnica com capacidade de traduzir-se em um tipo de evento redutvel ao repertrio de intervenes tidas como eficazes no processo de ateno sade ou demandando intervenes de outras ordens (como as intervenes intersetoriais) (p.99). Coloco-me partidrio dos que defendem que no deve haver distino, a priori, da demanda entre real e falsa, mas esse um avano que considero insuficiente.Captulo 1 - O Marco Terico-Conceitual

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No h superao do a priori positivista se as intervenes tidas como eficazes se organizam na forma de repertrio. A sujeio das possibilidades de interveno no campo da sade noo de Eficcia pode se configurar em vis positivista, caso dependa de um julgamento baseado em evidncias cientficas quantificveis, o que s pode ser possvel por parmetros antecipveis. Se a proposta fazer uma ateno sade para sujeitos, sem objetiv-los, a complexidade e a singularidade desses sujeitos inviabiliza qualquer tentativa de validar, antecipadamente, como eficaz determinada interveno. Isso no significa uma proposta de banir das prticas de sade qualquer possibilidade de planejamento ou de formulao de um cardpio de ofertas de forma antecipada. Apenas quer dizer que todo procedimento, tcnico ou no tcnico, de encaixar uma certa demanda em uma dada oferta pr-concebida (formulada antes do contato com a demanda ou em funo de uma srie histrica de demandas estudadas) consiste em um processo de enquadramento, que sempre , em algum grau, uma prtica prescritiva e,

conseqentemente, autoritria. Lidar com essas questes possibilita a crtica reflexiva sobre as prticas de sade e a identificao dos processos de captura autoritria, muito freqentes. Alm disso, possibilita que todo o conhecimento e a experincia anterior dos sujeitos (seja trabalhador de sade, gestor ou usurio) possam ser colocados em suspenso temporria, permitindo a formulao de novas ofertas que levem em considerao as singularidades dos sujeitos envolvidos. Todo esse percurso realizado at agora nos leva a afirmar que a noo de necessidades de sade como necessidades sociais demasiado distante dos sujeitos concretos que interagem nos servios de sade. Desse modo, as problemticas acima discutidas so amplificadas quando se elege a resoluo das necessidades de sade da populao como objetivo-fim das prticas de sade.

O Objetivo-Fim das Prticas de Sade Um dos modos de definir o objetivo-fim das organizaes entend-lo como Misso. A racionalidade gerencial hegemnica mistura os conceitos de Misso e Objetivo Organizacional e com isso, o sujeito-trabalhador acaba submetido ao mercado, pelo imprio do Valor de Uso e no somente do Valor de Troca. As organizaes daCaptulo 1 - O Marco Terico-Conceitual

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sade quando assumem como Misso o atendimento de necessidades sociais apagam os sujeitos em funo dessas necessidades ou da produo de Valores de Uso. Este seria um tipo de dominao, a do imprio transcendente do outro, uma vez que as necessidades sociais so produzidas atravs de processos com grande grau de exterioridade ao Sujeito trabalhador (Campos, 2005, p. 136). Pinheiro et. al. (2005) defendem a tese de que a demanda e o direito sade devem ser vistos como concepes renovadoras de sentidos, significados e vozes de sujeitos, socialmente e historicamente constitudos. Com essa posio pretendem dar visibilidade aos conflitos e as contradies existentes nos encontros da atividade do trabalho em sade, no embate das muitas vozes sociais que se colocam como enunciadoras de demandas. Essas demandas poderiam ser compreendidas como solicitaes de direito dirigidas aos servios de sade, tambm socialmente construdas e, muitas vezes, configuradas num processo histrico de medicalizao. Seria preciso, desse modo, desnaturalizar o modo de conceber as necessidades sociais no campo da sade e afirm-la como construo compartilhada a partir da efetividade desse dilogo (p. 2026). Tomando o entendimento de que as prticas de sade deveriam ter como objetivo-fim a resposta a necessidades de sade, Ceclio (2001) adota uma taxonomia que j se tornou clssica no campo da Sade Coletiva. Haveria quatro grandes grupos de necessidades de sade: as necessidades relacionadas s boas condies de vida; as necessidades de acesso e se poder consumir toda tecnologia de sade capaz de melhorar e prolongar a vida; a necessidade de criao de vnculos (a)efetivos entre cada usurio e uma equipe e/ou um profissional de referncia e a necessidade de cada pessoa ter graus crescentes de autonomia no seu modo de andar a vida (p.114-115). Merhy (1998) entende os graus de autonomia no modo de o usurio andar na sua vida como Sade em ltima instncia. Na discusso sobre a dimenso cuidadora do trabalho em sade, coloca esses graus de autonomia como medida de eficcia das aes de sade (p.105). Para Campos (2005) o desafio est em possibilitar aos sujeitos-trabalhadores a ampliao de sua capacidade de interferir, de negociar, de co-produzir necessidades sociais e influenciar nos modos de atend-las (produo de valores de uso). Um dos caminhos sugeridos pelo autor a construo coletiva de Objetos de Investimento do prprioCaptulo 1 - O Marco Terico-Conceitual

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coletivo que de algum modo se relacionem com os meios de trabalho, os produtos ou com os objetivos de cada organizao (p. 136138). Entretanto, essa construo coletiva no prescinde de objetivos-fins que norteiem o processo de ateno sade. A eleio destes cumpre o papel de desenhar uma situao-objetivo clara, geral e ao mesmo tempo concreta. Esse desenho permite o planejamento e a avaliao das intervenes desenhadas, permite calibrar o sentido geral das intervenes criando um vetor, no qual a direo dada pelo objetivo em si e o sentido depende de valores, estes sim definidores da Misso. Nesse sentido, Campos contribui propondo que seja tomado como objetivos-fins a co-produo de sade e de sujeitos autnomos.A noo de "responsabilizar-se" pelo paciente ou pela comunidade, por exemplo. Que implicaes, que desdobramentos, haveria se se adotasse o critrio de produo de autonomia entre os clientes como avaliador de qualidade?. Discutir o modo alienado e fragmentado com que se faz ateno sade, a centralidade dos procedimentos, em geral, desligados da discusso mais ampliada de projeto teraputico (1997, p. 265).

Como forma de compatibilizao dos objetos de investimento dos sujeitos com os objetivos-fins do processo de ateno sade, o autor sugere a utilizao do conceito de Obra como forma de aproximar os sujeitos dos resultados dos seus processos produtivos, contrapondo o sentido da alienao e permitindo o reconhecimento, a valorizao e a avaliao dos resultados obtidos. Neste trabalho tomo como objetivos-fins do processo de ateno sade a co-produo de sade e de sujeitos autnomos. As concepes de Sujeito e de Autonomia sero discutidas mais adiante. Os valores que configuram o sentido de Misso so a Universalidade, a Integralidade e a Eqidade, conforme as concepes incorporadas pelo SUS. Isso quer dizer que esses so os parmetros que norteiam o desenho de situao-objetivo das prticas de sade, embora signifique processos diferentes em termos concretos quando se levam em considerao as singularidades dos sujeitos envolvidos.

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Para tornar possveis essas co-produes ser preciso conceber que tanto sujeitos-usurios como sujeitos-trabalhadores demandam e ofertam constantemente, modulam as atuaes uns dos outros e necessariamente dever haver um momento de negociao entre essas ofertas e demandas, com ateno s singularidades dos sujeitos envolvidos, seus desejos e seus interesses projetados na forma de objetos de investimento, os quais devero ser explicitados, o quanto for possvel, e tambm negociados tendo como objetivos-fins do processo de ateno a co-produo de sade e de sujeitos autnomos.

Sujeito, Singularidade e Autonomia: alguns posicionamentos estratgicos Parto do entendimento de que esses so conceitos que apresentam grande transversalidade, com elevada importncia na formulao e modelos de ateno e de gesto em sade. So moduladores das prticas sociais tendo capacidade de fazer aparecer qual processo de pensamento e de ideologia as norteia. O conceito de Sujeito est aqui colocado como algo que constitudo, produzido enquanto Ser complexo, portador de uma subjetividade complexa, mergulhado em um conjunto de relaes sociais que alteram seus desejos, seus interesses. Ao mesmo tempo em que est imerso na histria e na sociedade, contextualizado, apresenta alguma capacidade de autonomia e possibilidades de reao, uma potncia e uma resistncia (Campos, 2005, p. 68). Sobre o conceito de Singularidade trata-se a partir dos Planos de Co-Produo do Sujeito e do Coletivo como em Campos (2005). O singular como sntese ou como uma composio distinta e realmente verificvel na existncia cotidiana dos Seres entre a influncia dos determinantes de carter Universal e o contexto Particular e os interesses exclusivos do Sujeito (p.71). Singularidade tambm pode significar [...] propriedade daquilo que nico (Japiass e Marcondes, 2001, p. 249). Sendo nico, tambm pode constituir-se no inesperado, no acontecimento. No olhar da anlise institucional, uma das formas de atuar no institudo gerando foras de reviso e de alterao deste est na atuao no singular (Baremblitt, 1992, p. 196).Captulo 1 - O Marco Terico-Conceitual

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A

idia

de

autonomia

como

autodeterminao

muito

difundida.

Entretanto, caso se pense autonomia somente nesta perspectiva pode-se cair na armadilha de crer num indivduo autnomo, auto-suficiente, a-histrico, reduzindo o conceito de autonomia a idia de livre-arbtrio, conforme j sinalizado por Petersen (1996). Segundo Chau (1996), Autnomo, do grego autos (eu mesmo, si mesmo) e nomos (lei, norma, regra) refere-se quele que tem o poder para dar a si mesmo a regra, a norma, a lei; autonomia significa autodeterminao. Implica conscincia, vontade, atividade, liberdade e responsabilidade. Neste trabalho o conceito de autonomia ser abordado como conceito complexo, relativo e construdo sobre processos de interdependncia, ou seja, sempre em co-construo. Acreditamos que essa abordagem torna mais inteligvel como possvel co-construir autonomia na relao sujeito-profissional de sade/sujeito-usurio.A noo de autonomia s pode ser concebida em relao idia de dependncia [...] Toda a vida humana autnoma uma trama de incrveis dependncias [...] Isso significa tambm que o conceito de autonomia no substancial, mas relativo e relacional. No digo que quanto mais dependente mais autnomo; no h reciprocidade entre esses termos. Digo que no se pode conceber autonomia sem dependncia (Morin, 2005, p. 282).

Consideraes sobre o Tema da Clnica Parto do posicionamento de que todos os trabalhadores de Sade, de uma forma ou de outra, fazem clnica (Merhy, 1998). Considerando sua viso sobre as tecnologias em sade, Merhy, situa a clnica como o campo principal no qual operam as tecnologias leves, como articuladoras de outras configuraes tecnolgicas.

As tecnologias leves so aquelas ligadas ao campo das relaes e do vnculo, espao onde opera o trabalho vivo em ato, ainda no capturado, no cristalizado em tecnologias mais estruturadas (Merhy, 1997). Neste espao, todos os trabalhadores de sade operam e, portanto, agem clinicamente. A clnica comporta a produo de espaos de acolhimento,Captulo 1 - O Marco Terico-Conceitual

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responsabilizao e vnculo e estes perdem sentido se no houver um trabalho clinicamente implicado (Merhy, 1998, p.107). No mesmo sentido, Campos (2003) aponta o vnculo como recurso teraputico. Sendo a teraputica parte essencial da clnica que estuda e pe em prtica meios adequados para curar, reabilitar, aliviar o sofrimento e prevenir danos futuros. Defende a idia de que o vnculo, assim como a responsabilizao e o acolhimento fazem parte do arsenal tecnolgico da teraputica e, por conseqncia, da clnica (p.68). Sendo assim, se o acolhimento, a responsabilizao e o vnculo, nessa perspectiva, podem ter funo teraputica e fazem parte da clnica. Este trabalho incorpora a idia de que todos podem produzir aes teraputicas. Esse entendimento da clnica essencial para a discusso de projetos teraputicos, pois so fundantes da possibilidade de produo coletiva de uma equipe de profissionais de sade que tem em sua constituio trabalhadores de nvel de escolaridade formal e formao variados. Nesse intuito essencial a superao de uma idia equivocada de que a clnica e a teraputica so atribuies apenas dos mdicos e/ou de outros profissionais graduados no saber acadmico-cientfico, ou que, de outro modo, as dimenses da clnica e da teraputica residem exclusivamente no mbito das tecnologias duras e leve-duras (Merhy, 1997). Esse discurso consiste numa tentativa de esvaziar as possibilidades de formulao/engajamento na clnica e na teraputica desses atores no graduados. Frente ao que foi dito, todos os profissionais das equipes de sade podem participar ativamente e produtivamente (e sem subalternizao de seus papis e proposies) na formulao, na implementao e na avaliao de projetos teraputicos. A noo de Clnica Ampliada (Campos, 2003) adequa-se a este trabalho investigativo como clnica que busca a centralidade no sujeito em seu contexto, sem desconsiderar a doena ou os agravos orgnicos, mas incluindo no olhar clnico as diversas dimenses do sujeito. Utilizo tambm as noes de Clnica Degradada e Clnica Tradicional ou Clnica-Clnica como formas de diferenciao da Clnica. A centralidade no sujeito, buscada na idia de Clnica Ampliada impe um desafio fundamental: De que modo possvel transitar entre o conhecimento ontolgico dos problemas de sade, de suas solues e a singularidade dos casos? Ou de outro modo, se no possvelCaptulo 1 - O Marco Terico-Conceitual

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(e nem desejvel) abandonar todo o saber acumulado sobre as generalidades e as regularidades do complexo sade-doena-interveno, como garantir o espao das singularidades dos sujeitos nos processos de ateno sade? Essas questes emergem da certeza de que o conhecimento ontolgico no suficiente para garantir sucesso nas intervenes se o profissional de sade no for capaz e disposto a reconstruir esse conhecimento em funo da singularidade do sujeito-usurio (Campos, 2006). No desenvolvimento da pesquisa no pretendo questionar mais a fundo a pertinncia do termo Clnica Ampliada. Todavia o desafio mencionado tem relao direta com o objeto de investigao deste trabalho. Desse modo, mesmo que no pretendendo respostas definitivas, h uma aposta de que esse trabalho pode trazer avanos para a discusso dessa temtica.

Arranjos, Dispositivos de Gesto e Processo de Trabalho em Sade A necessidade da criao e implementao de novos arranjos e dispositivos de gesto capazes de viabilizar/disparar processos de mudanas nos modelos de ateno e de gesto uma constante neste trabalho, j que se prope o estudo do Projeto Teraputico Singular, enquanto dispositivo de gesto capaz de provocar processos de reflexo/ao nos trabalhadores de sade abrindo possibilidades destes repensarem seu processo de trabalho, suas prticas e a instituio na qual esto inscritos. Faz-se necessrio, portanto, um entendimento mais preciso do que so arranjos e dispositivos de gesto, alm do conceito de processo de trabalho considerados nesta investigao. Arranjos so formas de organizao da gesto e do processo de trabalho. A experimentao de processos de mudanas nos modelos de ateno e de gesto na sade est relacionada institucionalizao de arranjos de gesto como propostas tcnicas de uma outra forma de organizao da gesto e do trabalho em sade. Os arranjos tm certa estruturao e permanncia, formas de organizao que pretendem ser institucionalizadas (Onocko Campos, 2003a, p.125).

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J os dispositivos so dinmicos. Buscam subverter as linhas de poder institudas (p.125-129). Um dispositivo um artifcio que pretende, quando acionado, disparar um movimento, uma produo/ao, uma reao, uma reflexo, uma mobilizao no outro ou, no caso de um dispositivo de gesto, nos sujeitos individuais ou coletivos inseridos em uma organizao. Baremblitt (1996) explicita melhor a noo de dispositivo colocando-o como artifcio produtor de inovaes que gera acontecimento, inventa o Novo Radical. A finalidade de um dispositivo e o processo que ele instaura esto inter-relacionados e implicados. Tm potencial de criar realidades alternativas e revolucionrias que transformam o horizonte considerado Real (p.151). Alguns arranjos podem se comportar como dispositivos ou abrigar um em seu interior. Por exemplo, o arranjo das Equipes de Referncia, que ser discutido mais adiante, pode ser um dispositivo para a construo de vnculo entre trabalhadores e usurios, para o desenvolvimento do trabalho em equipe e para a incorporao da idia de responsabilizao por esses profissionais. Por outro lado, os dispositivos podem apresentar pontos de contato com o institudo, o que pode, inclusive, facilitar sua implementao. Um exemplo desse tipo de dispositivo o Projeto Teraputico Singular (PTS). Considerando que entre os profissionais de sade desejada e valorizada a oportunidade de participar de discusses de caso, o PTS utiliza esse setting, a discusso de caso, para implementar uma certa forma de planejar e compartilhar a clnica e o processo teraputico. Sendo assim, o ponto de contato com o institudo no dispositivo PTS a discusso de caso, que justamente o que facilita sua implementao. Os arranjos e dispositivos de gesto muitas vezes so formas de organizao do processo de trabalho em sade. Como base geral adequa-se aos objetivos da pesquisa o referencial marxista do processo de trabalho em sade, que considera o trabalho como uma prxis que expe a relao homem/mundo em um processo de mtua produo. Nesse sentido, o homem trabalha a partir de um recorte interessado do mundo, projetando-o para as atividades que iro compor o processo de trabalho

(Merhy, 1997, p. 81).

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Para complementar essa referncia inicial pertinente o ponto de vista da esquizoanlise que entende a produo do trabalho como articulao intrnseca de produo e desejo no campo social (Matumoto, 2003).Essa articulao engendra mquinas produtivas desejantes, que em funcionamento libera e corta fluxos, concretizando aes, efetivando a realizao do homem como ser inventivo, criador do novo (BAREMBLITT, 1998). importante assinalar tambm que a produo desejante no se faz sempre numa perspectiva positiva. Podemos ter produes de subjugao e reproduo, e tambm at produes fascistas de opresso e represso (DELEUZE, 1992 apud Matumoto, 2003, p. 33].

As Equipes de Referncia e o Trabalho Interdisciplinar A pesquisa foi ambientada em servios que utilizam o arranjo das Equipes de Referncia (ER). A ER consiste em uma equipe de profissionais que se responsabiliza pela integralidade do atendimento a um certo nmero de usurios, devendo monitorar, acompanhar e ofertar servios, co-responsabilizando-se pela sade dos mesmos. Nessa situao, os usurios encontram-se adscritos a um determinado conjunto de referncia. No caso, por exemplo, de uma enfermaria hospitalar uma ER se responsabiliza pelos usurios de um conjunto de leitos. Naquela situao de uma ER que responsvel por todos os usurios residentes em um territrio delimitado diz-se que a ER est territorializada. Em geral, as ER da ateno bsica so equipes territorializadas. Nesse sentido, o exemplo mais freqente, mas no nico, so as equipes dos Programas de Sade da Famlia (Carvalho e Campos, 2000, p.511). Segundo Campos (1999), a constituio das ER tambm funciona como dispositivo para aumentar o poder do usurio no cotidiano, quando h padres de vinculo mais qualificados e duradouros entre profissionais e usurios, isso expe os graus de compromisso e de competncia de cada trabalhador, favorecendo uma forma de controle social mais capilarizada no cotidiano dos servios de sade (p.398).

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As ER tambm se destinam a incorporar formas de trabalho em equipe mais participativas e integradas como na concepo de Equipe Interdisciplinar. Utilizo como referncias a discusso dos Campos e Ncleos de Saberes e Prticas em Sade (Campos, 2000) e a definio de interdisciplinaridade de Japiass (2001). A concepo de Ncleo diz respeito s caractersticas relativas identidade de cada Sujeito. A experincia pessoal, os saberes especficos de cada profisso, habilidades, vocao, constituiriam o ncleo de cada sujeito que interage com o mundo. O Campo seria o espao de intersesso, um espao coletivo de luta e composio, em que ocorre a produo de sentido para o coletivo (Campos, 2000, p.141). O conceito de Ncleo tem utilidade na formulao de crtica simplificao das noes de transdisciplinaridade que tencionam o fim das diferenas entre especialidades, profisses e o senso comum. Ressalta que h especificidades entre as diferentes reas do saber, mesmo sendo todas interdisciplinares em algum grau. Prope que a diferena entre as reas seja denominada Ncleo. O Campo representaria as reas de confluncia, onde os saberes se fundem e se confundem e por onde a mudana se insinua criando novos Ncleos (p. 235). Japiass denomina interdisciplinaridade como etapa do desenvolvimento do conhecimento cientfico e de sua diviso epistemolgica, na qual as disciplinas cientficas, em seu processo de interpenetrao, enriquecem-se reciprocamente. Seria o que torna possvel a complementaridade dos mtodos, dos conceitos [...] e dos axiomas sobre os quais se fundam as diversas prticas cientficas. A interdisciplinaridade se diferencia da multi ou pluridisciplinaridade, pois nestas h justaposio das disciplinas, sem relao entre si, sem uma coordenao num nvel superior (Japiass & Marcondes, 2001, p.145). Na interdisciplinaridade a integrao entre as disciplinas permitida, facilitada e orientada pela existncia de uma temtica comum a todas as disciplinas, com a qual elas devero observar o objeto (Silva, 1999, p.7). A discusso da interdisciplinaridade a partir da temtica dos campos e ncleos de saberes me leva a defender a idia de que h conhecimentos/saberes diferentes e no necessariamente maiores e menores, superiores ou inferiores, mais ou menos importantes, apenas diferentes. Sob esse prisma, mais plausvel a troca de saberes, de experincias e tambm a formulao de novos saberes na interao dialgica entre profissionais de sade e usurios.Captulo 1 - O Marco Terico-Conceitual

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O Projeto Teraputico Singular: do que se fala e como chegamos O conceito de projeto teraputico pode assumir vrios aspectos,

segundo diferentes autores. Para produzir uma contextualizao da sua definio faz-se necessrio percorrer os vrios olhares sobre o tema. O percurso que fiz no segue as cronologias das produes dos autores, o intuito no historiar a origem do Projeto Teraputico Singular e sim mostrar ao leitor o caminho que percorri para a construo de um entendimento sobre esse conceito. Iniciaremos por uma perspectiva mais ampla do projeto teraputico como expresso operacional dos modelos de ateno e nas prticas de sade em Merhy (2000). Segundo este autor o projeto teraputico traduz o modo como um modelo de ateno sade equaciona a capacidade de produzir certas prticas de sade com o mundo das necessidades de sade, enquanto ao tecnolgica em funo de um objetivo. Dessa forma, modelos de ateno que seguem a lgica acumulativa do capital no buscariam a defesa da vida individual e coletiva como finalidade. Esses modelos objetivariam a operacionalizao de projetos teraputicos que permitam o controle de tecnologia de alto custo, nem que isso custe a prpria vida do usurio (p.112-116). Ainda Merhy desenvolve a discusso sobre o ato de cuidar no chamado Projeto Teraputico Individual (PTI), no qual todo o profissional de sade pode ser, ao mesmo tempo, operador do cuidado e gestor do cuidado. Dessa forma, a equipe de profissionais de sade ao formular e executar um PTI em um determinado servio de sade para um determinado usurio ou grupo, articula entre si e com o usurio ao mesmo tempo a operao e a gesto do cuidado. Haveria uma possibilidade de se explorar a cooperao entre os diferentes saberes e o compartilhamento decisrio, a partir de um espao semelhante e equivalente de trabalho em equipe: o ncleo cuidador (1998, p.117). A partir da, a incorporao de novos objetivos usurios-centrados, atravs da ampliao das percepes do que sejam as necessidades de sade legtimas, podem transformar o projeto teraputico em dispositivo para reformular a formao e as prticas dos profissionais de sade com centralidade no usurio e no mais no lucro.

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Outras percepes a respeito da importncia do projeto teraputico como dispositivo de integrao e organizao de equipes de profissionais da sade esto no campo da sade mental. O planejamento dos processos teraputicos em alguns servios de ateno psicossocial no se limita ao momento de crise, mas na continuidade da vida do usurio, significando a busca da reabilitao psicossocial. A noo de reabilitar aqui passa pela reconstruo de sentidos e do direito de cidadania. O projeto teraputico, desenvolvido pela equipe de assistncia com a participao do usurio, tambm tem como objetivo ajudar o indivduo a restabelecer relaes afetivas e sociais, reconquistar direitos e poder social, buscar a autonomia afetiva-material-social e o incremento da incorporao desse na vida de relao social e poltica (Zerbetto, 2005, p.116). A concepo de projeto teraputico em muitas experincias no campo da sade mental est vinculada a noo de profissional de referncia. Aquele que assume a gesto da clnica (e do cuidado) em um projeto teraputico em andamento. Na equipe, cada profissional se torna referncia para um certo nmero de usurios inseridos em projetos teraputicos. Funcionando como dispositivo de responsabilizao e de reforo do vnculo (Silva, 2005). Essa responsabilizao operada pela noo de profissional de referncia, quando trazida para o mbito das equipes de referncia na ateno bsica incrementa as possibilidades de superao da simples adscrio de clientela, pelo vnculo com responsabilizao. A emergncia do termo Projeto Teraputico Singular (PTS) apia-se na idia de que o projeto teraputico pode ser utilizado no s para indivduos, mas tambm para coletivos (Cunha, 2005, p.185). O termo singular tambm remete diferena, contexto singular, no passvel de reprodutibilidade e, portanto, menos sujeitado a processos de captura pelo planejamento normativo. Para Cunha o PTS produzido em uma variao da discusso de caso clnico. Configura-se em formato de reunio de equipe em que os profissionais de sade trocam percepes e constituem uma compreenso coletiva do sujeito doente, a qual subsidia o desenho de intervenes sobre o caso. Segundo esse autor, o PTS conteria quatro momentos: o diagnstico, com olhar sobre as dimenses orgnica, psicolgica, social e o contexto singular em estudo; a definio de metas, dispostas em uma linha de

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tempo de gesto da clnica, incluindo a negociao das propostas de interveno com o sujeito doente; a diviso de responsabilidades e tarefas entre os membros da equipe e a reavaliao, na qual se concretiza a gesto do PTS, atravs de avaliao e correo de trajetrias (p.186). Tambm chama ateno que a atuao pela via do PTS pressupe o reconhecimento de uma capacidade/poder das pessoas interferirem na sua prpria relao com a vida e com a doena. equipe caberia exercitar uma abertura para o imprevisvel e para o novo, e lidar com a possvel ansiedade que a proposta traz (p.88-89). A configurao mais prxima do que considero o conceito de PTS neste trabalho, surge no Brasil, no incio da dcada de 90, em plena efervescncia instituinte do movimento antimanicomial e de reforma psiquitrica em Santos. Trazendo referncias do movimento italiano, os atores envolvidos nesse contexto buscavam no s alternativas ao lcus de interveno do manicmio, representadas pela criao dos servios substitutivos como os Ncleos de Ateno Psicossocial (NAPS), mas, sobretudo[..] formas de cuidado e de tratamento que sejam conjuntamente espaos de vida, de estmulo, de confronto, de oportunidades, de relaes interpessoais e coletivas diferentes, que vislumbrem a mudana de cultura e de poltica mais social que sanitria (BASAGLIA, F.O. apud Niccio, 2003).

O desafio de produzir respostas frente complexidade dos problemas dos sujeitos que antes estavam depositados nas profundezas dos manicmios foi enfrentado com a problematizao e o redimensionamento das concepes e prticas do trabalho teraputico e do prprio sentido do processo. Novos arranjos e dispositivos foram formulados e testados nesse sentido de problematizao das prticas na intencionalidade de provocar deslocamentos. O objetivo assumido pelas intervenes deslocou-se da cura como norma ideal para a emancipao, a reproduo social das pessoas, outros diriam, o processo de singularizao e ressingularizao. A inovao dessa forma de pensar est em superar as concepes abstratas de sade como bem-estar fsico-psquico-social ou como reparao do dano, delineando uma nova projetualidade: a produo de vida, a inveno de sade (ROTELLI, 1990a, p. 93 Apud Niccio, 2003).Captulo 1 - O Marco Terico-Conceitual

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A

singularizao

dos

projetos

teraputicos

e

da

relao

equipe-usurio-familiares com uma dupla de referncia formada por um trabalhador universitrio e um auxiliar de enfermagem era produzida na relao, no dilogo com as exigncias, as necessidades, os afetos e os conflitos que emergiam no processo teraputico. Houve um esforo, nesse sentido, de superar as formas de pensar e de agir que dificultassem as possibilidades de contratualidade nas relaes com o louco, anulando sua singularidade e, tambm, um empenho de vigilncia sobre os diversos modos de isolar os familiares, invalidando seus saberes e recursos. Nesse intuito, os dispositivos utilizados eram o contrato de projetos com os usurios e familiares e as discusses freqentes sobre a produo das relaes e dos projetos teraputicos nas reunies dirias de equipe. Os projetos teraputicos implementados na experincia de Santos procuravam incorporar a prtica da liberdade e da singularizao dos processos teraputicos. Diferenciavam-se de um elenco de procedimentos, buscavam operar com a noo de processo: construdo, reconstrudo, repensado, redimensionado, em relao com os usurios e com os familiares e em equipe. Um processo que implicava proximidade, intensidade de redes de afetos e de relaes.A transformao do olhar para as pessoas com a experincia do sofrimento psquico e a projetualidade de produo de autonomia colocaram o desafio de buscar produzir uma prtica teraputica centrada no usurio e orientada para o enriquecimento de sua existncia global, complexa e concreta (ROTELLI et al., 1990, p. 36 Apud Niccio, 2003).

A singularidade a razo de ser do projeto teraputico, o lcus onde, em funo de um ser humano singular ou coletivo singular, determinada a ao de sade oferecida para alcanar o objetivo de produzir Sade (Aranha e Silva, 2005, p.442). O PTS demanda da equipe a operao com menor possibilidade de certezas e maior abertura para a negociao, algumas vezes inclusive, de seus prprios modos de ver o mundo e os processos de adoecimento e de produo de sade.

Captulo 1 - O Marco Terico-Conceitual

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Captulo 2Repensando o Projeto Teraputico Singular:caminhos da construo de uma proposta

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Parte A A prtica profissional do pesquisador como dispositivo Na vivncia em servios de sade de ateno bsica durante a residncia mdica, no municpio de Amparo (SP), percebi que, apesar da minha boa formao em termos de capacidade produtiva de procedimentos e do ponto de vista da prtica clnica tradicional voltada para a dimenso biolgica, havia insuficincias, principalmente em termos de instrumentos para compreender e formular aes frente complexidade das situaes-problema a serem enfrentadas. Esta insuficincia se refletia em baixa capacidade resolutiva apesar do enorme esforo e compromisso empreendidos. Em repetidas situaes a maior dificuldade estava na escassez de instrumentos para compreender e agir sobre os determinantes que interferem no processo sade-doena, pois freqentemente pareciam externos ao setor sade, no limbo da intersetorialidade. A conseqncia geral dessas dificuldades era o processo inexorvel de reduo da complexidade dos problemas das pessoas dimenso biolgica, territrio no qual eu e os meus colegas de trabalho nos sentamos mais potentes em termos de possibilidades de interveno. Processo esse, no s observado em mim e nos companheiros de residncia, mas em muitos dos profissionais mdicos dos servios em que estvamos inseridos. Os trabalhadores inseridos nessa lgica de reduo s intervenes individuais voltadas para a dimenso orgnica transformam os servios em grandes ambulatrios de consultas mdicas, nos quais so necessrios contingentes progressivamente maiores de mdicos e de outros trabalhadores que acabam assumindo papis subsidirios. Nesse contexto, a consulta mdica passa a ter centralidade no processo de trabalho de todos os profissionais. O auxiliar de enfermagem deve preparar os pacientes, executar procedimentos indicados, dispensar medicamentos prescritos e marcar retornos. O agente comunitrio de sade deve convocar para a consulta, marcar e levar encaminhamentos para exames e outros atendimentos em especialistas e conferir se a prescrio feita pelo mdico est sendo seguida pelo paciente no domiclio. A(o) enfermeira(o) deve consultar quem no teve acesso consulta mdica por falta de vagas, controlar a adeso aos tratamentos prescritos pelo mdico e coordenar o trabalho dos demais profissionais. Esse processo se torna to automatizado que o simplesCaptulo 2 - Repensado o Projeto Teraputico Singular

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cumprimento das tarefas acima descritas passa a ser parmetro de resolutividade desses profissionais, desfocando ainda mais do objetivo-fim da produo de sade e da co-produo de sujeitos autnomos. Todo esse processo, em ciclo vicioso, tem produzido o valor de uso da consulta mdica como preciosidade para as populaes de usurios da sade tanto no setor pblico, como no setor privado. Coloco nesses termos, pois acho que pensar desse modo e tentar construir crtica a esse processo constituiu importante motivao para a minha trajetria profissional e mais recentemente a minha entrada no mestrado e a escolha desse objeto de pesquisa. Para mim se tornou essencial e estratgico a readequao da formao dos profissionais de sade com base em concepes de processo sade-doena-ateno, de sade e de cidadania mais amplas, assim como a implementao de processos que se contraponham positivamente centralidade do mdico atravs de dispositivos que promovam experincias de trabalho interdisciplinar. No passa por essa estratgia a idia do incrementalismo (Santos, 2007) j que no considero como possibilidade uma proposta de mudana desse quadro descrito que no contemple mudanas mais amplas nos modelos de gesto e de ateno e contraposies s presses neoliberais no mbito das polticas de sade. Durante o perodo em que fui mdico do Pronto Socorro e da Enfermaria de Clnica Mdica do Hospital Beneficncia Portuguesa de Amparo, tive a oportunidade de internar os usurios que eu mesmo acompanhava na ateno bsica e outros usurios do Programa de Sade da Famlia (PSF) de Amparo, acompanh-los durante a internao e depois no seguimento de volta ao servio de ateno bsica. Construmos, eu e outros colegas, uma rede entre alguns servios de PSF e a enfermaria de clnica mdica do hospital que garantia uma certa continuidade e qualidade no acompanhamento clnico de pacientes graves do SUS municipal, de certo modo, operacionalizando o conceito de projeto teraputico, a constituio de redes de cuidado e a articulao entre diferentes nveis do sistema de sade municipal. No auge dessa experincia sofri muitas ameaas e presses da corporao mdica em funo do conflito de interesses com o setor privado do hospital. Todas essas tenses vividas no cotidiano dos servios em diferentes nveis do sistema de sade trouxeram bagagem e suficiente legitimidade que me levaram a um convite da secretria municipal de Amparo, Dra. Aparecida Linhares Pimenta, ainda naCaptulo 2 - Repensado o Projeto Teraputico Singular

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poca da residncia mdica, para realizar uma capacitao para os 50 agentes comunitrios de sade do municpio. Junto com os residentes realizamos a capacitao que se efetuou em encontros semanais ao longo de quatro meses. Essa minha primeira experincia foi bem avaliada pela secretaria, pelos agentes, pelas equipes e pelos meus colegas residentes. Eu, ao contrrio, fiquei muito insatisfeito com o processo do curso, predominantemente expositivo. O material produzido em forma de apostila comeou a ter peso de protocolo, o que me decepcionou ainda mais. Ouvi muito dos agentes comunitrios: Mas no assim que est na apostila dos residentes.... Minha insatisfao foi tanta que procurei saber mais a fundo o porqu da boa avaliao. Descobri atravs de relatos dos prprios agentes que o que tinha valido mais foram os momentos (muito pequenos) de discusso de situaes cotidianas trazidas pelos agentes no curso. A acendeu uma luz! O curso foi bem avaliado no propriamente porque foi bem organizado e estruturado, mas porque contemplou a necessidade de criao de um espao de discusso dos problemas enfrentados no cotidiano dos servios. De qualquer modo essa capacitao dos agentes de Amparo, em 2001, inaugurou uma nova linha de atuao profissional e de preocupaes na minha vida. Passei a ser convidado para essas capacitaes freqentemente. As experincias acumuladas dessa atividade foram abrindo novas perspectivas e novos problemas para reflexo. Entretanto, o grande salto da capacitao para a Educao Permanente em Sade (EPS) deu-se em 2003, quando fui convidado pelo Prof. Carlos Rivordo 3 , que tinha acompanhado de longe aquele curso de capacitao dos agentes de Amparo, quando era preceptor da residncia mdica em Sade da Famlia e Comunidade. Eu, que j vinha me interessando muito pela discusso da EPS, tive a oportunidade de formular em parceria com o Prof. Rivordo um projeto de EPS abrangente no municpio de Jacare, SP. Nessa experincia participaram cerca de 200 trabalhadores de sade de todas as categorias profissionais. Fomos obrigados a adaptar instrumentos, inventar e foi desenvolvido um certo modo de fazer, agregando metodologias de ensino-aprendizagem, misturando aportes tericos da Sade Coletiva, da educao e das cincias sociais com3

Professor Doutor Carlos Roberto Soares Freire de Rivordo, atualmente professor da rea de Pediatria Social do Departamento de Pediatria da Faculdade de Cincias Mdicas da Universidade Estadual de Campinas.Captulo 2 - Repensado o Projeto Teraputico Singular

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algum grau de inconformismo e ousadia. O resultado foi uma experincia de educao permanente que envolve momentos terico-prticos, converso dos modelos de gesto e de ateno da secretaria de sade e desenvolvimento de metodologias de acompanhamento, apoio tcnico, superviso e avaliao. Entretanto, o grande desafio foi a necessidade de formulao de uma proposta conceitual e ao mesmo tempo operacional que pudesse dar conta da articulao entre prticas individuais e coletivas, ao mesmo tempo em que tiv