Programa%20Sombras

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SombraSa nossa tristeza é uma imensa alegria

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Poema

Faz-se luz pelo processode eliminação de sombrasOra as sombras existemas sombras têm exaustiva vida próprianão dum e doutro lado da luz mas no próprio seio delaintensamente amantes loucamente amadase espalham pelo chão braços de luz cinzentaque se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luznão ilumina realmente os objectosos objectos vivem às escurasnuma perpétua aurora surrealistacom a qual não podemos contactarsenão como os amantesde olhos fechadose lâmpadas nos dedos e na boca

Mário CesarinyIn Pena Capital. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 44.

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o Rio das LágRimas

Desde Saudades: Um Hetero-Cabaret-Erosatírico (1978) que Ricardo Pais iniciou uma muito auto--rizada poética de espectáculos músico-teatrais, distantes dos estereótipos formais dos “musicais digestivos” de importação, cruzando linguagens, criadores e intérpretes – músicos, bailarinos, ac-tores, mágicos, coreógrafos, compositores, realiza-dores, cenógrafos, figurinistas e iluminadores –, até à exposição pessoal e a solo em Grátis (2003), irrepreensível concerto das (suas) canções de uma vida. Eis, pois, mais uma rêverie.Sombras: Sons, Músicas e Palavras resgatadas à me-mória imperativa de um Corpo Colectivo, objecto onírico de imagens indeléveis projectadas pelos cor-

pos a caminho, como nuvens, formas antropomórfi-cas que sugerem cavalos, presságios, crimes e casti-gos, desejos castiços – desenhos identitários de um património autobiográfico em movimento. O corpo autocitacionista e cativo do autor, ampliado pelos ecos de outros tantos duplos expressivos, organi-zando uma nova dramaturgia fantasmática e simbó-lica, com pudor, limpeza e ordem: bilhetes-postais, telegramas, cartas, coplas e murmúrios, a confirma-rem o regresso dos amores por vir e outras perdas.Resta-nos agradecer o regresso do desejante portu-guês que nos vai dando notícias da sua peregrinação ficcional.

Nuno CarinhasDirector Artístico do TNSJ

sombRasA nossa tristeza é uma imensa alegria

Uma criação de Ricardo Pais

Vídeos Fabio Iaquone, Luca AttiliiMúsica original e direcção

musical Mário LaginhaCoreografias Paulo RibeiroCenografia Nuno Lacerda LopesFigurinos Bernardo MonteiroDesenho de luz Rui SimãoDesenho de som Francisco LealVoz e elocução João HenriquesConsultor musical (fados) Diogo ClementeGuião e encenação Ricardo PaisAssistência de encenação Manuel Tur

Interpretação José Manuel Barreto, Raquel Tavares (fadistas); Emília Silvestre, Pedro Almendra, Pedro Frias (actores);

Carla Ribeiro, Francisco Rousseau,

Mário Franco (bailarinos); Mário Laginha (piano), Carlos Piçarra Alves (clarinete), Mário Franco (contrabaixo), Miguel Amaral (guitarra portuguesa), Paulo Faria de Carvalho/Diogo Clemente (viola); Albano Jerónimo, António Durães, João Reis e Teresa Madruga* (participação especial

em vídeo)

Produção TNSJEm co-produção com Centro Cultural Vila Flor, Teatro Viriato,

São Luiz Teatro MunicipalColaboração OPARTDuração aproximada 1:45Classificação etária M/12 anos

Um agradecimento especial

a André Dourado, Jacinto Lucas

Pires, Joaquim Santana, José

Alberto Sardinha, Teresa Madruga,

Mario Rossi e Stefano Sacconi.

Teatro Nacional São João (Porto)

18/28 Novembro 2010Terça-feira a Sábado 21:30

Domingo 16:00

Centro Cultural Vila Flor (Guimarães)

4 Dezembro 2010Sábado 22:00

Teatro Viriato (Viseu)

13/15 Janeiro 2011Quinta-feira a Sábado 21:30

Teatro Municipal São Luiz (Lisboa)

28/30 Janeiro 2011Sexta-feira e Sábado 21:00

Domingo 17:00

Teatro Aveirense (Aveiro)

19 Fevereiro 2011Sábado 21:30

TEMPO – Teatro Municipal de Portimão 26 Fevereiro 2011Sábado 21:30

Teatro Micaelense (Açores)

19 Março 2011Sábado 21:30

Théâtre de la Ville (Paris)

11/12 Abril 2011Segunda e Terça-feira 21:00

Digressão Brasil (São Paulo/Santos/

Belo Horizonte)

Junho/Julho 2011

* Imagens do registo do espectáculo

Ninguém: Frei Luís de Sousa, enc. Ricardo

Pais, realizado por Hélder Duarte para

a RTP (Teatro da Trindade, 1978). Nos

excertos figuram também João Perry,

José Eduardo, Glicínia Quartin, Luís

Santos, Leonor Pinhão, entre outros.

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Episódio ioLhos tuRvos

(Escuro em cena. Raquel Tavares sozinha, acompanhando-se à guitarra, canta.)

aRdinitaLetra João Linhares Barbosa Música Popular (Fado das Horas)

Oh minha mãe, minha mãeOh minha mãe, minha amadaQuem tem uma mãe tem tudoQuem não tem mãe, não tem nada

O ardinita, o João,Levantou-se muito ledoPorque tinha de estar cedoÀ porta da redacçãoTrincou um naco de pãoQue lhe soube muito bemAntes de partir, porém,Beija a mãe adormecidaDizendo, cá vou à vidaOh minha mãe, minha mãe

A mãe com todo o carinhoDeitou-lhe a bênção, beijou-oE depois aconselhou-oSempre muito juizinhoToma conta no caminhoNão fumes, não jogues nadaPode ficar descansadaDiz ele, prà iludirE tornou-se a despedirOh minha mãe, minha amada

Uma narradora solitária glosa o inevitável

amor de mãe, contando-nos a história do filho.

Gente simples do nosso bairro. Entre o sorriso

e os olhos marejados. insinua-se o ruído

branco do motor de uma rotativa de jornal.

Cruzou toda a MadragoaSatisfeito a assobiarUma marcha popularDo Santo António em LisboaNisto pensou: como é boaA minha mãe e, contudo,Como a engano, a iludoE lhe minto, coitadinhaGramo tanto essa velhinhaQuem tem uma mãe tem tudo

Nesse calão repelenteDa gíria da malandragemExiste um quê de homenagemNessa boquita inocenteMarcha prò jornal, contente,Sempre d’alma levantadaE como o calão lhe agradaRepete, como eu a gramoTanto lhe quero, tanto a amoQuem não tem mãe, não tem nada

(Raquel Tavares senta-se no final do fado. Prossegue com os harpejos, que se vão tornando esparsos. Emília Silvestre inicia o monólogo da Corcunda, lendo uma carta de luz. Os “capítulos” – entrecortados pelas guitarras – marcam movi-mentos progressivos de apropriação do público, de transformação da sofredora em performer. Abandona a carta e avança pelo cais, enquanto o microfone sobe lentamente. É durante este texto que surge, pela primeira vez, o tema musical “Sombras”.)

Uma segunda mulher, solitária e compulsiva, guincha

a aridez do seu drama. Ao fundo escorrem fagulhas

pelo meio das pernas de um serralheiro em contraluz.

sombRasGUião do EspEctácUlo

Marginalia Ricardo Pais

Para o Paulo Eduardo Carvalho, que conseguiu escrever um sentido para a minha vida e perdeu a sua antes de me ajudar a esclarecer o que se segue.

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tava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu às vezes me envergonha de não saber, porque estive a ver coisas que não podem ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda por cima ter vontade de chorar.Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque ninguém julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que explicar por que é que estive distraída.Ainda me lembro daquele dia que o senhor pas-sou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia que parecia o próprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ela mas com outra qual-quer, porque eu não pensei senão em si, e foi por isso que invejei toda a gente, o que não percebo mas o certo é que é verdade.Não é por ser corcunda que estou aqui sempre à janela, mas é que ainda por cima tenho uma espécie de reumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse paralítica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me aceitar que o senhor não imagina. Eu às vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver--me na rua como uma macaca, com as pernas à vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é não como tinha vontade de ser – e enfim porque lhe estou eu a escrever se não lhe vou mandar esta carta?O senhor que anda de um lado para o outro não calcula qual é o peso de a gente não ser ninguém.

Eu estou à janela todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de vida e gozar e falar a esta e àquela, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui à janela por tirar de lá.O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saúde o que é a gente ter nascido e não ser gente, e ver nos jornais o que as pessoas fazem, e uns são ministros e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros estão na vida da sociedade e casam e têm baptizados e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos médicos, e outros partem para as suas casas aqui e ali, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e há artigos assinados por outros e retratos e anúncios com os nomes dos homens que vão comprar as modas ao estrangei-ro, e tudo isto o senhor não imagina o que é para quem é um trapo como eu que ficou no parapeito da janela de limpar o sinal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por causa da água.Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de de vez em quando me dizer adeus da rua, e eu gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais, que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá para onde se vai se soubesse que o senhor me dava os bons dias por acaso.A Margarida costureira diz que lhe falou uma vez, que lhe falou torto porque o senhor se meteu com ela na rua aqui ao lado, e essa vez é que eu senti inveja a valer, eu confesso porque não lhe quero mentir, senti inveja porque meter-se alguém connosco é a gente ser mulher, e eu não sou mulher nem homem, porque ninguém acha que eu não sou nada a não ser uma espécie de gente que está para aqui a encher o vão da janela e a aborrecer tudo que me vê, valha-me Deus.Adeus senhor António, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa

a CaRta da CoRCunda PaRa o seRRaLheiRoFernando Pessoa

Senhor António:

O senhor nunca há-de ver esta carta, nem eu a hei-de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo.O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto à janela quando o senhor passa para a oficina e eu olho para si, por-que o espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importância na corcunda do primeiro andar da casa amarela, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquela rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja dela mas não tenho ciúmes de si porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir à rua e falar consigo ainda que o senhor não me desse razão de nada, mas eu estimava conhecê-lo de falar.O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguém que gostasse de mim como se gosta das pessoas que têm o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e também tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguém.Eu gostava de morrer depois de lhe falar a pri-meira vez mas nunca terei coragem nem maneiras de lhe falar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mes-mo [sic] não vou procurar saber.Eu sou corcunda desde a nascença e sempre se riram de mim. Dizem que todas as corcundas são

más, mas eu nunca quis mal a ninguém. Além disso sou doente, e nunca tive alma, por causa da doença, para ter grandes raivas. Tenho 19 anos e nunca sei para que é que cheguei a ter tanta idade, e doente, e sem ninguém que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me dói, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor.Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu nunca posso ter – e agora menos que nem vida tenho – gostava de saber tudo.Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vai ler isto, e mesmo que lesse nem sabia que era consigo e não ligava importância em qualquer caso, mas gostaria que pensasse que é triste ser marreca e viver sempre só à janela, e ter mãe e irmãs que gostam da gente mas sem ninguém que goste de nós, porque tudo isso é na-tural e é a família, e o que faltava é que nem isso houvesse para uma boneca com ossos às avessas como eu sou, como eu já ouvi dizer.Houve um dia que o senhor vinha para a oficina e um gato se pegou à pancada com um cão aqui defronte da janela, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim para a janela, e viu-me a rir e riu também para mim, e essa foi a única vez que o senhor esteve a sós comigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar.Tantas vezes, o senhor não imagina, andei à espera que houvesse outra coisa qualquer na rua quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito para os meus.Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um estrado para poder estar à altura da janela. Passo todo o dia a ver ilustrações e revistas de modas que emprestam à minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando me per-guntam como era aquela saia ou quem é que es-

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Quando eu eRa PeQueninoPopular

Quando eu era pequeninoAcabado de nascerAinda mal abria os olhos Já eram para te ver Acabado de nascer

Quando eu já for velhinhoE estiver para morrerOlha bem para os meus olhos Qu’ainda estão para te verAcabado de morrer

(Raquel Tavares senta-se no último barrote do cais. Carla Ribeiro, Mário Franco e Francisco Rousseau entram e dirigem-se ao cais. Momento de “fandango letal”: a Morte da Castro.)

Assassinato prematuro da rainha morta,

antes mesmo de ter sido viva.

CASTRO: Rege tu, minha ama, este meu peito.O súbito prazer engana, e erra.

AMA: Encobre teu segredo.

CASTRO: N’alma o tenho.António Ferreira – Castro

(Pedro Almendra faz uma evocação que plana sobre o momento da morte.)

enquanto Carla Ribeiro permanece em morte expressionista.)

os meus oLhosLetra António Botto

Música José Joaquim Cavalheiro (Fado Menor do Porto)

Meus olhos que por alguémDeram lágrimas sem fimJá não choram por ninguém– Basta que chorem por mim

Arrependidos e olhandoA vida como ela éMeus olhos vão conquistandoMais fadiga e menos fé

Sempre cheios de amarguraMas se a vida é mesmo assimChorar alguém – que loucura– Basta que chorem por mim

(Raquel Tavares sai. Cruza-se com Emília Silvestre, que vem ocupar o seu lugar.)

Episódio iitRáfiCo

(Uma cegada sebástica: o episódio começa com intenso ruído, redundando em pesadelo. Entram Pedro Almendra e Pedro Frias, munidos de apetre-chos ruidosos. A sua entrada faz-se sob o som de cascos de cavalo: enuncia-se uma ponte entre o fandango e a batalha de Alcácer-Quibir. Estacam no fundo do cais. Dizem.)

desejar e que nunca saiba de mim para não rir porque eu sei que não posso esperar mais.Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida. Aí tem e estou a chorar.

Maria José

(Raquel Tavares entra em cena e sobe ao cais. Pedro Almendra e Pedro Frias evocam uma lembrança.)

PEDRO: Uma vez ofereci um ramo de gerúndios brancos a uma mulher. Ela olhou pra mim e fez “oh”. Só “oh”. Não a vi nem nunca mais.Jacinto Lucas Pires – Figurantes

(Raquel Tavares canta “Rapariga do Cais”, com guitarra de “Ardinita” como um objecto luminoso, coberto de swarovskis.)

primeiros sinais de outros fados. Mário laginha

e orquestra numa primeira insinuação musical

sobre a ambiguidade de solidões que se

confessam.

(Emília Silvestre desce o cais e sai. Pedro Almendra e Pedro Frias, mais informais, cumprimentam-se e apresentam “Rapariga do Cais”. Procuram uma memória perdida.)

Dois momentos. A força, a fragilidade, a falta, a paralisia, a continuidade… Conclui-se que a realidade é infinitamente maior que o sonho. É realmente assim como vimos e ouvimos. Belas canções que ouvimos enquanto o tempo passa, respectivamente… E voltamos à realidade e fica convosco e connosco mais uma voz, uma panóplia de uma voz… Federico… Fellini! Valério. Fernando Santos. Rapariga do Cairo. Rosa púrpura do Cairo. Rapariga do Cais…

Fernando pessoa encontra Henrique Mendes.

É para esquecer, claro!

RaPaRiga do CaisLetra Fernando Santos Música Frederico Valério

Não sei que língua falavaNão sei o que me diziaSei que quando me beijavaEu nem sei o que sentia

Não sei que barco o levouNão sei em que mar navegaSei que foi e não voltouSei que esta dor não sossega

Diz-me onde te perdes para te ir lá buscarMeus olhos tão verdes de olharem para o marSou barco ao sabor das ondas perdidasAchei o amor mas perdi a vida

(Breve suspensão entre o final de “Rapariga do Cais” e o início de “Quando eu era pequenino”. Pedro Frias canta.)

Uma terceira solitária confunde olhos e lágrimas

e mares. o homem que lhe ensinou o amor foi de vela.

É o costume. Voltará quando ninguém se lembrar dele.

os olhos que se abrem e fecham, sem traição nem

poder, à coisa amada. o amador é pastor. talvez

desmaie sem rebanho.

(Emília Silvestre avança para o fundo do cais. Cruza-se com Pedro Almendra e Pedro Frias, que entram dançando um fandango. Comentários em tom de compère.)

É o contrário da irmãesse rapaz. Isso é,Porque ele é José MariaE ela é Maria José.Fernando Pessoa

castro morre de olhos abertos, secos. Alguém

os fechará, lá mais para o fim.

INFANTE: Ó Castro, Castro, meu amor constante!Quem me de ti tirar, tire-me a vida.António Ferreira – Castro

(Mário Franco e Francisco Rousseau saem. Raquel Tavares canta “Os meus olhos”,

o contrabando dos choros. As lágrimas não celebram,

nem redimem – reclamam os olhos do outro. Negócios.

os apresentadores e o seu carnaval. como numa

cegada, provocam quem está, ameaçando revelar-lhes

os pecados cometidos na última temporada. Vão sendo

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mas receio a fortuna que mais possacom seu furor, que tu com teu amor brando.Por estas minhas lágrimas, por estamão tua, que em sinal de fé me deste,pelos doces amores, doce fruito,que deles tens diante: se me devesamor igual ao meu, ou se algü’ horafui a teus olhos vista alegre, e doce,me segures, me guardes, me conservescontra os duros mandados de teu pai,contra importunas vozes dos que podemmudar acaso teu constante peito.Ou quando minha estrela, e cruel géniote puder arrancar dest’alma minha,com teu armado braço envolta em sanguem’arranques deste corpo, que não vejatão triste dia, tão cruel mudança:eu tomarei por doce a minha morte,por piadoso amor tal crueldade.António Ferreira – Castro

(Pedro Frias, com uma coroa, inicia a sua jura.)

D. SEBASTIãO: Já mastigaste areia? Já provaste pedras? Arrima-te à ideia que estás quase a ter de mim. Que eu sairei em corpo inteiro do teu sonho para o teu desejo palpável. Como o lacrau do deserto espero debaixo da pedra a minha vez. Mil guitarras despentearam-se e gemeram no areal por mim. Agora são mil bandulhos cheios de pedras e areia. O que houve de Bastião ficou no vento, o que houver virá pelo sonho. Com este S saberás sempre se sou eu ou se são supostos sinais de mim os que te sejam sugeridos sabe-se lá por que embustes.Alexandre O’Neill – in Ninguém

(José Manuel Barreto entra em cena, vestido com um casaco azul de militar. Está de costas para o público. Fuma. Do vídeo emerge a imagem equívoca do seu rosto, como se visto num espelho. Canta.)

PântanoLetra Pedro Homem de Mello

Música Franklin Godinho (Fado Franklin)

Amar por amar não posso.Amar por amar não sei.Amar por amar não posso.Amo aquilo só que é nosso,Amando à margem da lei.

Amar por amar não posso.Amar por amar não sei.

Quem compra, compra e não paga,Vende o que nunca lhe dão.Quem compra, compra uma chaga.Quem compra, compra e não paga,Compra ou vende uma ilusão.

Quem compra, compra e não paga,Vende o que nunca lhe dão.

os compères sublimam a sua própria fantochada.

Auto-encenam-se num voto matrimonial secreto.

No coro pairam fantasmas de outros actores. Um

adeus, uma lágrima. A impotência do amor anónimo,

escuro e ilícito, sem remissão ou poder. incorporação

final num voodoo sebástico.

CASTRO: Nesta tua mão te ponho firme, e fixaminh’alma; por infante te nomeio, do meu amor senhora, e do alto estado que me espera, e teu nome me faz doce. O grande movedor dos céus, e terras invoco, e chamo aqui: o alto céu me ouça,e meu intento santo aprove e cumpra.António Ferreira – Castro

(Pedro Almendra e Pedro Frias, em uníssono, incorporam D. Sebastião. Depois, saem.)

morro de vergonha… morro, morro de vergonha… Almeida Garrett – Frei Luís de Sousa (adaptado)

(Num gesto de resistência, Pedro Almendra e Pedro Frias espantam os assombramentos, retomando a cegada.)

PEDRO: Capitão Furillo. Gina Lollobrigida. Rosa púrpura do Cairo. Federico Fellini. Cuore mio. Super-oito. Nikki Lauda. Michael Jackson. Amazónia. C.E.E.!Jacinto Lucas Pires – Figurantes (adaptado)

(Enquanto Carla Ribeiro sai, novo assombramento, por Pedro Frias.)

INFANTE: Ó Castro, Castro, meu amor constante! Quem me de ti tirar, tire-me a vida.António Ferreira – Castro

(Último acto de resistência, regresso da cegada.)

PEDRO: Capitão Furillo. Gina Lollobrigida. Rosa púrpura do Cairo. Federico Fellini. Cuore mio. Super-oito. Nikki Lauda. Michael Jackson. Amazónia. C.E.E.!Jacinto Lucas Pires – Figurantes (adaptado)

(Momento coral de vídeo: vozes e rostos dos ensombramentos. Pedro Almendra, estático e ofegante.)

CASTRO: O medo ousa às vezes mais que o esforço. Tomo os filhos co’as lágrimas nos olhos, rosto branco, a língua quasi muda, em choro soltaant’ele assi começo: – Meu senhor,soam-me as cruéis vozes deste povo,vejo del-rei a força, e império gravearmado contra mim, contra a constânciaque em meu amor tégora tens mostrado.Não receio, senhor, que a fé tão firmequeiras quebrar a quem tua alma deste;

PEDRO: Uma vez ofereci um ramo de gerúndios brancos a uma mulher. Ela olhou pra mim e fez “oh”. Só “oh”. Não a vi nem nunca mais.Jacinto Lucas Pires – Figurantes

(Retomam a cegada. Avançam, proferindo expressões soltas.)

PEDRO: Capitão Furillo. Gina Lollobrigida. Rosa púrpura do Cairo. Federico Fellini. Cuore mio. Super-oito. Nikki Lauda. Michael Jackson. Amazónia. C.E.E.!Jacinto Lucas Pires – Figurantes (adaptado)

(Pedro Frias algo apneico ou asmático, no micro-fone da frente.)

D. SEBASTIãO: Venho, quase como veio à outra Maria o Emanuel. Nem véus, nem nevoeiros, nem o hidromel que haveis provado, relva abaixo, relva acima, na fabulosa Ilha dos Amores, oh expectantes, especados. Bastião, Sebastião e Basta. Uma ideia, um sopro, uma levedura quase imperceptível de tão espiritual. Querias mão aberta, mão fechada, músculos no braço, Maria? Mas eu convoco-te para outros regressos, para outros areais.Alexandre O’Neill – in Ninguém

(Projecção vídeo do rosto dos nossos actores, envoltos em nevoeiro: os ensombramentos. Emília Silvestre declara.)

É aquela voz, é ele, é ele! São eles… São eles... Minha mãe, meu pai, cobri-me bem estas faces, que

possuídos do demónio guerreiro que usaram como

disfarce. Escapam ao desejo por entre invocações

e brumas. Assexuam-se. incorporam mediunicamente

os grandes amores pátrios. Actuam na companhia

suave e areosa de outros actores da sua pátria paralela

– o teatro. Jacinto lucas pires infiltra gerúndios na

correspondência de guerra.

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MADALENA: Que fazes?... que fizeste? Oh, meu Deus!

MANUEL: Ilumino a minha casa para receber os muito poderosos senhores governadores destes reinos. Suas Excelências podem vir quando quiserem.

MADALENA: Meu Deus, meu Deus!... Ai, o retrato de meu marido!... Salvem-me aquele retrato!D. SEBASTIãO: Bastião, Sebastião e Basta. Uma ideia, um sopro, uma levedura quase imperceptível de tão espiritual. Querias mão aberta, mão fechada, músculos no braço, Maria? Mas eu convoco-te para outros regressos, para outros areais. Com este S saberás sempre se sou eu ou se são supostos sinais de mim os que te sejam sugeridos sabe-se lá por que embustes.*

MARIA: Voz do povo, voz de Deus, minha senhora mãe […]. Mas ora o que me dá pensar é ver que […] ninguém nesta casa gosta de ouvir falar em que escapasse o nosso bravo rei, o nosso santo rei D. Sebastião. Meu pai, que é tão bom português, que não pode sofrer estes castelhanos, em ouvindo duvidar da morte do meu querido rei D. Sebastião […] põe-se logo outro, muda de semblante, fica pensativo e carrancudo; parece que o vinha afrontar, se voltasse, o pobre do rei. Ó minha mãe, pois ele não é por D. Filipe de Espanha, não é, não?Almeida Garrett – Frei Luís de Sousa

*Alexandre O’Neill – in Ninguém

(José Manuel Barreto entra, senta-se à boca do cais e canta.)

PReCeLetra Pedro Homem de Mello

Música Joaquim Campos (Fado Tango)

Talvez que eu morra na praiaCercado em pérfido banho;Por toda a espuma da praiaComo um pastor que desmaiaNo meio do seu rebanho

Talvez que eu morra dum tiroCastigo de algum desejoE que à mercê desse tiroO meu último suspiroSeja o meu primeiro beijo Talvez que eu morra entre grades No meio duma prisãoE que o mundo, além das gradesVenha esquecer as saudadesQue roem meu coração

Talvez que eu morra no leitoOnde a morte é naturalAs mãos em cruz, sobre o peitoDas mãos de Deus tudo aceitoMas que eu morra em Portugal

(Durante a variação das guitarras, ouvem-se Emília Silvestre e Pedro Frias, enquanto saem.)

choram agora os homens? o negócio está

selado – “siga para bingo!”

Que nada perturbe a carga de um corpo

finalmente morto! cumpra-se a lenda.

Ninguém me faça perguntas!Trago o coração já frio...Ninguém me faça perguntas,Que as minhas lágrimas juntasDavam para encher um rio...As minhas lágrimas juntasDavam para encher um rio!

pedro com inês nos braços: um corpo que não pode

salvar e de que, ao mesmo tempo, não se consegue

libertar. Uma coreografia para ouvir.

Nem todo o arfar é indiscreto.

Episódio iiifogo-fátuo

(Vozes fantasmas. Realização de dobragem, que decorre paralelamente à projecção vídeo. Emília Silvestre, Pedro Almendra e Pedro Frias.)

ENtrEActotRaição

(Pedro e Inês: fandango silencioso. Francisco Rousseau e Carla Ribeiro.)

revelação sintética da gesta nacional.

toda a revolta acaba em trambolhão. Que limpe

o trânsito quem o atrapalhou. o inimigo difunde-se,

perdoa. o pai queima-se em efígie. A filha

(aqui Alexandre o’Neill) sublima a virgindade

(que nunca perderá…) numa hemoptise sebástica.

tudo se desculpa a uma heroína solitária, condenada

que esteja a morrer antes de um primeiro orgasmo.

MARIA: E eles, os tiranos governadores, ainda estarão muito contra meu pai? [...] Meu nobre pai! Passar os dias retirado nessa quinta tão triste dalém do Alfeite e não poder vir aqui senão de noite, por instantes, e Deus sabe com que perigo!

(Francisco Rousseau toma Carla Ribeiro nos braços. Cruzam-se, ao fundo do cais, com José Manuel Barreto, no momento em que este sai.)

CASTRO: Rege tu, minha ama, este meu peito.O súbito prazer engana, e erra.

AMA: Encobre teu segredo.

CASTRO: N’alma o tenho.António Ferreira – Castro

MANUEL: Meu pai morreu desastrosamente caindo sobre a sua própria espada. Quem sabe se eu morrerei também nas chamas ateadas por minhas mãos? Seja. Mas fique-se aprendendo em Portugal como um homem de honra e coração, por mais poderosa que seja a tirania, sempre lhe pode resistir, em perdendo o amor a coisas tão vis e precárias como são esses haveres que duas faís-cas destroem num momento... Como é esta vida miserável que um sopro pode apagar em menos tempo ainda!

MARIA: Jardim, meu lugar de mim, para mim, restituo-te uma a uma as flores, aquelas a que arranquei os nomes para as rebaptizar comos no-mes que tenho: Hora clara, Hora escura, Amantina, Malmaria, Sofrência, Olhos Pisados, Benquerença, Mansanoite, Jubilouca, Bastião dos Sonhos, essa a que chamam o cravo vermelho. Bastião dos sonhos, essa que é sangue aflorado à boca ou derramado nas areias, essa que está em oposição às minhas queridas dormideiras, que dá sonhos como vigílias, e solta, cor, sabor, perfume, num quadrado de pano ou de terra a sua estridência. A ti as entrego, jardim, canteiro da memória. Voltarão, por um breve crepitar, a ter os nomes que têm. Os nomes que lhes dei, esses, levo-os comigo.*

A corcunda que se confunde com Maria de Noronha.

Uma teatrice irresistível, este recurso ao desdo-

bramento dos actores, tão a gosto do público.

As incorporações mediúnicas são só um tique,

um truque ou uma pontuação consciente

do espectáculo?

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Como eu ReCoRdo as tuas mãosLetra L. Lauer, A. Amaral, V. Sequeira, F. de Brito (adaptado) Música Frederico Valério

Tenho saudades, ando quase loucaFaltam-me as tuas mãos brutais, senhorQue me queimavam, sem qualquer pudorMais que os teus olhosMais que a tua boca

Como eu recordo as tuas mãosOh mãos de escultorQue me tocaram todaMe perderam todaD’um perdido amor

Como eu recordo as tuas mãosMãos fortes, morenasDe toque tão frioO leque de penas Do meu arrepio

Como eu recordo as tuas mãosDe falsa poesiaQue só escrevem versos Para os deixar impressosNesta carne fria

(Suspensão. Pedro Frias canta.)

Poema das mãosLetra Miltinho Música Luiz Antônio

Nas tuas mãos deixei meu sonhoNas tuas mãos deixei bondadeAlegre sonho, ficou tristonhoNas tuas mãos virou saudade

Nas minhas mãos o teu perfumeNas minhas mãos o teu cabeloO meu ciúme, o meu queixumeNas minhas mãos um triste apeloAs tuas mãos estão mais friasEstão vazias de meus beijosAs minhas mãos talvez não sintasEstão famintas de desejosNas minhas mãos a despedidaNas tuas mãos a minha vida

TELMO: Perigo nenhum; todos o sabem e fecham os olhos. Agora é só conservar as aparências aí mais uns dias, e depois fica tudo como dantes. Almeida Garrett – Frei Luís de Sousa

nós PoRtugueses somos CastosPedro Homem de Mello

Nós, portugueses, somos castos.Ninguém nos peça o que não somos.Por isso, em nós, andam, de rastos,Árvores de oiro com mil pomos.Em nossos olhos moram lutos.Os pomos de oiro estão nos ramos.Às vezes tentam-nos os frutos.(Os pomos de oiro estão nos ramos!)

Nós, portugueses, somos castos.Ninguém nos peça um rosto alheio.Árvores de oiro andam, de rastos,Partidas todas pelo meio.

(Saem Emília Silvestre e Pedro Frias. Com a entra-da dos bailarinos, Pedro Almendra abandona o seu lugar. Momento de chorus line.)

(José Manuel Barreto retoma a última estrofe de “Prece”. A quadra é altamente performativa: os equívocos patrióticos são exacerbados.)

Talvez que eu morra no leitoOnde a morte é naturalAs mãos em cruz, sobre o peitoDas mãos de Deus tudo aceitoMas que eu morra em Portugal

(José Manuel Barreto sai. Pedro Almendra volta-se para nós, com os olhos postos no chão e auscultadores na mão.)

PEDRO: Estamos onde o lugar este lugar é.Jacinto Lucas Pires – Figurantes

Episódio iVQuando a gente vai “Lá foRa”

(Momento de cabaré internacional: algo que avança na direcção do musical, mas fica patetica-mente parado. No fim do chorus line, os bailari-nos saem, dançando. Desce uma cortina ao fundo do cais. Raquel Tavares canta. Pedro Almendra e Pedro Frias sentam-se no cais. Olham-na.)

para que se queimam terras lavradas e palácios

frouxos? para esquecer? Não surpreende

a amnésia de que sofrem os compères.

A pátria que me sobra de um mundo de aventuras,

ficcionadas ou breves, como fagulhas de serralharia.

Num rasgo de dislexia, uma epígrafe do país.

ENtrEActoPátRia

(Emília Silvestre e Pedro Frias juntam-se a Pedro Almendra. Nas mãos têm auscultadores que trazem as suas próprias vozes. Ouve-se um poema, aparente ou literalmente saído dos auscultadores. A voz de Pedro Almendra autonomiza-se.)

o exercício de dobragem resolve-se agora no que

sempre pretendeu ser: uma voz que se empresta,

se solta de nós, se fantasmiza. Um travelling gélido,

por entre paredes de porcelana branca, avança para

uma máquina ancestral, obsoleta, ao fundo. caminho

aberto para o deserto luso.

Fechemos, mudos, a porta do país à chave.

Vêm aí as férias.

Mãos que nos segurassem, nos guardassem,

nos conservassem, ao menos. Mas sendo Musical,

é turismo. Voltamos a casa quando cair a noite.

No vídeo, realmente, nada é o que parece, nem nada

do que parece, é. dos faróis de um desfile militar faz-se

a iridescência das luzes de um cabaré. Maravilhas do

digital. dedos por mãos. A cada um a sensualidade que

merece. Frederico Valério, genialmente sórdido em 1937.

Miltinho, Maysa e as coisas que nós aprendemos,

apesar deles. como cantar o que parece estar cantado

para sempre? como fadista, que é sempre mais do que

isso ou menos do que isso, ou como actor, que é de

palavras só.

(Pedro Almendra canta.)

as suas mãosLetra Antônio Maria Música Pernambuco

As suas mãos onde estão?Onde está o seu carinho?Onde está você?Ah... se eu pudesse buscarSe eu soubesse onde encontrarSeu amor, você...Um dia há de chegarQuando ainda não seiVocê vai procurarOnde eu estiverSem amor, sem vocêAs suas mãos onde estão?Onde está o seu carinho?Onde está você?Um dia há de chegarQuando ainda não seiVocê vai procurar onde eu estiverSem amor, sem vocêAs suas mãos onde estão?Onde está o seu carinho?Onde está você?

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o silêncio de um instante de poesia… Conclui-se que a realidade é infinitamente maior que o sonho. É realmente assim como vimos e ouvi-mos. Textos que ouvimos, páginas que nos leram, enquanto o tempo passa, respectivamente… E voltamos à realidade e fica convosco e connosco mais uma voz, várias vozes…

(Início da “Casa Portuguesa”. Momento festivo. Os bailarinos dançam. Raquel Tavares canta.)

LimãoLetra e Música Arlindo de Carvalho

Ó luar da meia-noiteAlumia cá pra baixoQue eu perdi o meu amorE às escuras não o acho

Ó limão, ó verde limãoSolteirinha sim… casadinha nãoÓ limão, ó verde limãoAmor da minh’alma... dá-me a tua mão

Os olhos do meu amorSão grãozinhos de pimentaNamorei-os na igrejaAo tomar da água benta

(Actores, fadistas e bailarinos fora de cena. Tema “Fado” acompanhará orgia de vídeo. Regressam Emília Silvestre, José Manuel Barreto, Raquel Tavares, Pedro Almendra e Pedro Frias para a celebração da “Casa Portuguesa”. Pedro Almendra anuncia, José Manuel Barreto canta.)

Mário laginha e os clássicos. o fado no seu mais

nobre. subtil duelo entre temas “populares”.

Comunicado pelo Engenheiro NavalSr. Álvaro de Campos em estadode inconsciênciaAlcoólica.Álvaro de Campos – “Ai, Margarida”

ai, maRgaRidaLetra Álvaro de Campos Música Mário Laginha

Ai, Margarida,Se eu te desse a minha vida,Que farias tu com ela?– Tirava os brincos do prego,Casava c’um homem cegoE ia morar para a Estrela.

Mas, Margarida,Se eu te desse a minha vida,Que diria tua mãe?– (Ela conhece-me a fundo.)Que há muito parvo no mundo,E que eras parvo também.

E, Margarida,Se eu te desse a minha vidaNo sentido de morrer?– Eu iria ao teu enterro,Mas achava que era um erroQuerer amar sem viver.

Mas, Margarida,Se este dar-te a minha vidaNão fosse senão poesia?– Então, filho, nada feito.Fica tudo sem efeito.Nesta casa não se fia.

(Raquel Tavares, Pedro Almendra e Pedro Frias, deitados, rematam o cabaré.)

Boa noite!

(A cortina sobe. Carla Ribeiro está ao fundo do cais e avança, enquanto Raquel Tavares canta um pregão, distendido como um chamamento da Beira Baixa.)

me dizia chorando, ali chorandomas tornava a dizer. E eu o detinhaapertado em meus braços, senão quandoacordava abraçada só comigo.Aqueles meus enganos me sustinhamdas noites para os dias. E esta noiteperdia estes enganos com a vida.António Ferreira – Castro

(Raquel Tavares, Pedro Almendra e Pedro Frias saem. A cavalgada intensifica-se. No final do solo, Emília Silvestre dirige-se a Carla Ribeiro e fala--lhe, intimamente, ao ouvido. Pedro Frias e Pedro Almendra regressam para se juntarem ao Coro.)

CORO: Fuge, coitada, fuge; que já soamas duras ferraduras, que te trazemcorrendo a morte triste. Gente armadacorrendo vem, Senhora, em busca tua.[…]Ó príncipe tão cego!Ó príncipe tão duro![…]Tu dormes, ou passeias,e pelos campos vemdo Mondego correndoa cruel morte em buscada tua doce vida,do teu amor tão doce.António Ferreira – Castro

(Pedro Almendra e Pedro Frias retomam o discurso dos apresentadores.)

Há pessoas profundamente curiosas. Pessoas infinitamente curiosas. Eu soube de um indivíduo que um dia procurou saber a razão do êxito. Foi mais longe até, tentou descobrir o segredo… Eu tenho fraca memória, mas posso, ainda, preci-sar algumas palavras que esse indivíduo escreveu: primeiro, nos seus olhos que guardam segredos inescrutáveis; segundo, nos seus cabelos que gritam revolta; terceiro, na sua boca que guarda

Ó luar da meia-noiteAlumia cá pra baixoQue eu perdi o meu amorE às escuras não o acho

Episódio VQuando a gente voLta “a Casa”

(No plano sonoro, episódio atravessado por uma cavalgada. Solo dançado, de Carla Ribeiro, à boca do cais.)

castro, de olhos blindados, fecha d. pedro a cadeado

entre as suas pernas. Fala sozinha, dorme sozinha,

claro. delira.

trânsito, crossover, fusão, e outras frivolidades.

A alegria dos simples – a lua quando nasce é para

todos.

CASTRO: Não sei que hei.Não sei que peso é este, que cá tenhoassi no coração, que me carrega.Soía ser que, quando só ficava,como agora me vejo, em meu senhoreram todos meus sonhos tão alegres,que desejava a noite, pera nelame lograr dos enganos, que com elese me representavam. Ali o via,ali cria que o tinha, e que falavacomigo, e eu com ele: e muitas vezesmuitas palavras, que ele em se partindo

Apoteose. prepara-se o cruzamento final entre

o arraial fadista – fumo, sardinhas e tudo e tudo

e tudo – e a repetida memória das guitarras

portuguesas abandonadas em Marrocos.

os “olhos garotos” que pessoa escondeu por detrás

dos óculos, mascarilha de carnaval da sua intraficável

literatura. António Ferreira já passeia inês pelos

corredores da casa do Alfeite. Garrett começa a bater

à porta.

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Abraçada c’os filhos a mataram,que inda ficaram tintos do seu sangue.António Ferreira – Castro

Episódio VioLhos CeRRados

(José Manuel Barreto canta.)

voLta atRás vida vividaLetra João de Freitas Música Filipe Pinto (Fado da Meia-Noite)

Volta atrás vida vividaPara eu tornar a verAquela vida perdidaQue nunca soube viver

Voltar de novo quem deraA tal tempo – que saudadeVolta sempre a PrimaveraSó não volta a mocidade

O tempo vai-se passandoE a gente vai-se iludindoOra rindo, ora chorandoOra chorando, ora rindo

Meu Deus, como o tempo passaDizemos de quando em quandoAfinal, o tempo ficaA gente é que vai passando

(Pedro Frias retoma, ao ouvido de Pedro Almen-dra, a “triste nova”. Seguir-se-á a imprecação de D. Pedro, enquanto Raquel Tavares trauteia a melodia de “Olhos Garotos”.)

MENSAGEIRO: Ó triste nova, triste mensageirotens ante ti, senhor.[…]É morta Dona Inês, que tanto amavas.

[…]Teu pai, com gente armadafoi hoje salteá-la. A inocente,que tão segura estava, não fugiu.Não lhe valeu o amor com que te amava;não teus filhos com quem se defendia;não aquela inocência, e piedade,com que pediu perdão aos pés lançadadel-rei teu pai, que teve tanta forçaque lho deu já, chorando. Mas aquelescruéis ministros seus, e conselheiros,contr’aquele perdão tão merecido,arrancando as espadas se vão a ela,trespassando-lh’os peitos cruelmente.Abraçada c’os filhos a mataram,que inda ficaram tintos do seu sangue.

Eis pedro, sobre quem construímos o templo da nossa raiva

e da nossa impotência. A crueza das nossas vinganças e os

nossos amores esvaziados de respon sabilidade ou sentido.

INFANTE: […] Como poderei ver aqueles olhoscerrados pera sempre? Como aquelescabelos já não de ouro, mas de sangue?Aquelas mãos tão frias, e tão negras,que antes via tão alvas, e fermosas?Aqueles brancos peitos trespassadosde golpes tão cruéis? Aquele corpo,que tantas vezes tive nos meus braçosvivo, e fermoso, como morto agora,e frio o posso ver? Ai como aquelespenhores seus tão sós? Ó pai cruel,tu não me vias neles? Meu amor,já me não ouves? Já não te hei-de ver?Já te não posso achar em toda a terra?Chorem meu mal comigo quantos me ouvem,chorem as pedras duras, pois nos homenss’achou tanta crueza. E tu, Coimbra,cubre-te de tristeza pera sempre.Não se ria em ti nunca, nem se ouçasenão prantos, e lágrimas: em sanguese converta aquela água do Mondego.As árvores se sequem, e as flores.

(Raquel Tavares canta.)

oLhos gaRotosLetra João Linhares Barbosa

Música Jaime Santos (Fado Jaime)

Diz aos teus olhos garotosVivos marotos, pretos rasgadosQue não andem pelas esquinasFeitos traquinas e malcriados

Que não sigam as meninasSimples, ladinas dos olhos meusDe tudo acho capazesOs maus rapazes dos olhos teus

Teus olhos amendoadosSão comparados a dois cachoposQue quando topam meninas,Pelas esquinas, dizem piropos

É preciso que lhes digasQue as raparigas nem todas sãoComo as pedras que há nas ruasGastas e nuas, sem coração

Diz-lhes tudo sem ralharesSem te zangares, tem mil cuidadosSim, que para entristecê-losPrefiro vê-los nos seus pecados

Não quero os teus lindos olhosCorrendo abrolhos, livre-nos DeusQue causassem tais ruínasEstas meninas dos olhos meus

(José Manuel Barreto canta.)

aRRaiaLLetra e Música João Ferreira-Rosa

Acabou o arraialFolhas e bandeiras já sem cor

Tal qual aquele dia em que chegasteTal qual aquele dia, meu amorPara quê cantarSe longe já não ouvesO nosso canto ainda está na fonteE o nosso sonho nas estrelas do horizonte

Ainda nasce a lua nos moinhosAinda nasce o dia sobre os montesAinda vejo a curva do caminhoAinda o mesmo som, as mesmas fontes

Sabes, meu amor, não estou sozinhoPelas salas do silêncio em que te escutoAbro as janelas ainda cheira a rosmaninhoOlho-me ao espelho, ainda vejo luto

(Fim da “Casa Portuguesa”. Pedro Frias traz a notícia da morte da Castro.)

A fala do Mensageiro desdobrar-se-á em dois tons:

o trágico, que interrompe despropositadamente

a festa, e o político, que acicata o que de mais

subterrâneo há em d. pedro.

MENSAGEIRO: Ó triste nova, triste mensageirotens ante ti, senhor. […]É morta Dona Inês, que tanto amavas.[…]Teu pai, com gente armadafoi hoje salteá-la. A inocente,que tão segura estava, não fugiu.Não lhe valeu o amor com que te amava;não teus filhos com quem se defendia;não aquela inocência, e piedade,com que pediu perdão aos pés lançadadel-rei teu pai, que teve tanta forçaque lho deu já, chorando. Mas aquelescruéis ministros seus, e conselheiros,contr’aquele perdão tão merecido,arrancando as espadas se vão a ela,trespassando-lh’os peitos cruelmente.

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entr’os homens reinar, e sempre os olhosde todos a verão com melhor nome.

Real amor lhe dará real nome.Ó que coroa lhe aparelha a morte!Depois que lhe cerrou os claros olhosindignos d’ante tempo irem à terra,sem quem só fica, e desarmado Amor;sem quem quão triste, Infante, a tua vida!

Tu és o que morreste, aquela vidaera tua; já agora aquele nomeque tão doce te fez sempre o amor,triste to tem tornado a cruel morte.Chorando a andarão sempre na terraté que nos Céus a vejam esses teus olhos.

Nem haverá já nunca no mundo olhos,que não chorem de mágoa de üa vidaassi cortada em flor. E quem a terrafor ver, em que estiver escrito o nomedela, dirá: – Aqui está chorando a Mortede mágoa do que fez, aqui o Amor.

Amor, quanto perdeste nuns sós olhos,que debaixo da terra pôs a morte,tanto eles mais terão de vida, e nome.António Ferreira – Castro

(O solo de piano evolui de algo sem tempo para algo com tempo do fado. Raquel Tavares inerte, de olhos fechados, a luz toda nela, canta. Tudo quieto.)

noCtuRnoLetra Pedro Homem de Mello

Música Alfredo Marceneiro (Fado Versículo)

Pedi à noite não a sombra e a LuaNem as palavras trémulas do vento.Como quem pede o próprio pensamentoPedi-lhe carne, carne ardente e nua.

O que pedi não foi a expressão langueDe sofredoras almas silenciosas.

Ah! não! o que pedi, pedia rosas...Ah! não! o que pedi, pedia sangue.

Pedi-lhe amor... Pedi-lhe, de mãos postas,Que tudo me trouxesse. Tudo ou nada.Pedi-lhe a minha mão, ressuscitada,No vinco, longo e azul, das tuas costas!

Pedi-lhe a madressilva junto à fonte,E, mais adiante, o aroma dos pinheiros.Pedi-lhe, firmes, pálidos, inteirosDois ombros de marfim, por horizonte.

Episódio ViiRessuRReição

(As vozes de Raquel Tavares e Emília Silvestre fundem-se neste passo do Frei Luís de Sousa.)

A partir daqui: lugar à concupiscência dramatúrgica,

à libertinagem formal, à comoção, à indigestão do

nosso amor-próprio, à infinita liberalidade do palco,

à recusa dos sentimentos, à troca com a indigente

inteligência erótica, à perplexidade perante a estupi-

dez da vida e a grandiosidade insignificativa da morte.

lugar ao tempo que persiste em sobreviver, límpido,

à descrença dos corpos, a esta solidão africana,

ao nevoeiro no deserto, ao desalento de ser igual aos

nossos pares, à luxúria ascética de se construir sobre

o desejo de nada ou ninguém…

MADALENA: Este amor, que hoje está santificado e bendito no Céu, porque Manuel de Sousa é meu marido, começou com um crime, porque eu amei--o assim que o vi… e quando o vi, hoje, hoje… foi em tal dia como hoje! D. João de Portugal ainda era vivo. O pecado estava-me no coração; a boca não o disse… os olhos não sei o que fize-ram, mas dentro da alma eu já não tinha outra

Ajudem-me pedir aos céus justiçadeste meu mal tamanho.Eu te matei, senhora, eu te matei.Com morte te paguei o teu amor.Mas eu me matarei mais cruelmentedo que te a ti mataram, se não vingocom novas crueldades tua morte.Para isto me dá, Deus, somente vida.Abra eu com minhas mãos aqueles peitos.Arranque deles uns corações feros,que tal crueza ousaram: então acabe.Eu te perseguirei, Rei meu imigo.Lavrará muito cedo bravo fogonos teus, na tua terra; destruídosverão os teus amigos, outros mortos,de cujo sangue s’encherão os campos,de cujo sangue correrão os rios,em vingança daquele. Ou tu me mata,ou fuge da minh’ira, que já agorate não conhecerá por pai. Imigome chamo teu, imigo teu me chama.Não m’és pai, não sou filho, imigo sou.Tu, senhora, estás lá nos céus; eu ficoenquanto te vingar; logo lá voo.Tu serás cá rainha, como foras.Teus filhos, só por teus serão infantes.Teu inocente corpo será postoem estado real; o teu amor m’acompanhará sempre, té que deixeo meu corpo c’o teu, e lá vá est’almadescansar com a tua pera sempre.António Ferreira – Castro

(Emília Silvestre enuncia um poema sobre o pano de fundo do Fado Lágrima.)

dRamaPedro Homem de Mello

Como inventar palavras ou dinheiroPara deter o Sol em nossa mão?Ó meu amor, amor de escuridão,Um de nós dois tem de partir primeiro!

Como trazer à tona da água, inteiro,Teu corpo de beleza e de segredo?Ó meu amor, amor feito de medo,Um de nós dois tem de partir primeiro!E o mar?E o vento?E a Lua?E esse veleiroA que o Poeta chama “Coração”?

Separarmo-nos?Nós?Não!Ainda não!Um de nós dois tem de partir primeiro?

Ó meu amor, amor de que me abeiro,De olhos azuis à noite prometidos!Amor! Ó perdição dos meus sentidosUm de nós dois tem de partir primeiro!

(Emília Silvestre retoma o Coro da Castro. Vai fechando os olhos a todos os que estão em cena.)

CORO: Já morreu Dona Inês, matou-a amor;Amor cruel! Se tu tiveras olhos,também morreras logo. Ó dura morte,como ousaste matar aquela vida?Mas não mataste: melhor vida, e nomelhe deste do que cá tinha na terra.

Este seu corpo só gastará a terra,por quem estará chorando sempre o Amor,honrando-se somente do seu nome.Mas quem a quiser ver com outros olhos,outro nome, outra glória, outra honra, e vidalhe achará, contra a qual não pode a morte.

Aqueles matas tu somente, ó morte,cujo nome s’esquece, e a quem na terrafica de todo sepultada a vida.Mas esta viverá, enquanto o amor

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ROMEIRO: Quereis lembrar-me que estou abusan-do da paciência com que me têm ouvido?

MADALENA: Deixai, deixai, não importa, eu folgo de vos ouvir: dir-me-eis vosso recado quando quiserdes... logo, amanhã...

ROMEIRO: Hoje há-de ser. Há três dias que não durmo nem descanso, nem pousei esta cabeça, nem pararam estes pés dia nem noite, para chegar aqui hoje, para vos dar meu recado... e morrer de-pois... ainda que morresse depois; porque jurei... faz hoje um ano... quando me libertaram, dei jura-mento sobre a pedra santa do Sepulcro de Cristo...

MADALENA: Pois éreis cativo em Jerusalém?

ROMEIRO: Era; não vos disse que vivi lá vinte anos?

MADALENA: Sim, mas...

ROMEIRO: Mas o juramento que dei foi que, antes de um ano cumprido, estaria diante de vós e vos diria da parte de quem me mandou...

MADALENA: E quem vos mandou, homem?

ROMEIRO: O seu nome, nem o da sua gente, nun-ca o disse a ninguém no cativeiro.

MADALENA: Mas, enfim, dizei vós...

ROMEIRO: As suas palavras trago-as escritas no coração com as lágrimas de sangue que lhe vi chorar. Ninguém o consolava senão eu... e Deus! Vede se me esqueceriam as suas palavras.

JORGE: Homem, acabai!

ROMEIRO: Agora acabo; sofrei, que ele também sofreu muito. Aqui estão as suas palavras: “Ide a D. Madalena de Vilhena e dizei-lhe que

um homem que muito bem lhe quis... aqui está vivo... por seu mal... e daqui não pôde sair nem mandar-lhe novas suas, de há vinte anos que o trouxeram cativo”.

MADALENA: Deus tenha misericórdia de mim! E esse homem, esse homem... Jesus! Esse homem era... esse homem tinha sido... Levaram-no aí donde?... De África?

ROMEIRO: Levaram.

MADALENA: Cativo?...

ROMEIRO: Sim.

MADALENA: Português?... cativo da batalha de...

ROMEIRO: De Alcácer-Quibir.

MADALENA: Meu Deus, meu Deus! Que se não abre a terra debaixo dos meus pés?... Que não caem estas paredes, que me não sepultam já aqui?...

JORGE: Calai-vos, D. Madalena! A misericórdia de Deus é infinita. Esperai. Eu duvido, eu não creio... estas não são coisas para se crerem de leve. Oh! inspiração divina... Conheceis bem esse homem, Romeiro, não é assim?

ROMEIRO: Como a mim mesmo.

JORGE: Se o víreis... ainda que fora noutros trajes... com menos anos, pintado, digamos, conhecê-lo-eis?

ROMEIRO: Como se me visse a mim mesmo num espelho.

JORGE: Procurai nestes retratos, e dizei-me se algum deles pode ser.

ROMEIRO: É aquele.

imagem senão a do amante… já não guardava a meu marido, a meu bom… a meu generoso mari-do… senão a grosseira fidelidade que uma mulher bem nascida quase que mais deve a si do que ao esposo. Permitiu Deus… quem sabe se para me tentar?... que naquela funesta batalha de Alcácer, entre tantos, ficasse também D. João…Almeida Garrett – Frei Luís de Sousa

(Os actores em cena. Momento de teatro, acom-panhado por uma trama musical repetitiva, obsessiva.)

JORGE: Que é precisa muita cautela com estes peregrinos! A vieira no chapéu e o bordão na mão às vezes não são mais do que negaças para armar à caridade dos fiéis. E nestes tempos revoltos...

MARIA: E ele vem aí… É aquela voz, é ele, é ele! São eles… São eles... Minha mãe, meu pai, cobri-me bem estas faces, que morro, morro de vergonha…*

JORGE: Entrai, irmão, entrai. Esta é a senhora D. Madalena de Vilhena. É esta a fidalga a quem desejais falar?

ROMEIRO: A mesma.

JORGE: Sois português?

ROMEIRO: Como os melhores, espero em Deus.

JORGE: E vindes?...

ROMEIRO: Do Santo Sepulcro de Jesus Cristo.

JORGE: E visitastes todos os Santos Lugares?

ROMEIRO: Não os visitei; morei lá vinte anos cumpridos.

MADALENA: Santa vida levastes, bom Romeiro.

ROMEIRO: Oxalá! Padeci muita fome, e não a sofri com paciência; deram-me muitos tratos, e nem sempre os levei com os olhos n’Aquele que ali tinha padecido tanto por mim... Queria rezar e meditar nos mistérios da Sagrada Paixão que ali se obrou... e as paixões mundanas e as lembran-ças dos que se chamavam meus segundo a carne travavam-me do coração e do espírito, que os não deixavam estar com Deus, nem naquela terra, que é toda sua.

D. SEBASTIãO: Nem véus, nem nevoeiros, nem o hidromel que haveis provado, relva abaixo, relva acima, na fabulosa Ilha dos Amores, oh expectan-tes, especados. Bastião, Sebastião e Basta. Uma ideia, um sopro, uma levedura quase impercep-tível de tão espiritual. Querias mão aberta, mão fechada, músculos no braço? Mas eu convoco-te para outros regressos, para outros areais.**

ROMEIRO: Oh! eu não merecia estar onde estive: bem vedes que não soube morrer lá.

JORGE: Pois bem; Deus quis trazer-vos à terra de vossos pais; e quando for sua vontade ireis morrer sossegado nos braços de vossos filhos.

ROMEIRO: Eu não tenho filhos, padre.

JORGE: No seio de vossa família...

ROMEIRO: A minha família... Já não tenho família.

MADALENA: Sempre há parentes, amigos...

ROMEIRO: Parentes!... Os mais chegados, os que eu me importava achar... contaram com a minha morte, fizeram a sua felicidade com ela; hão-de jurar que me não conhecem.

JORGE: Bom velho, dissestes trazer um recado a esta dama: dai-lho já, que havereis mister de ir descansar...

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MADALENA: Minha filha, minha filha, minha filha!... Estou... estás... perdidas, desonradas... infames! Oh! minha filha, minha filha!...

JORGE: Romeiro, Romeiro, quem és tu?

ROMEIRO: Ninguém!Almeida Garrett – Frei Luís de Sousa

*Almeida Garrett – Frei Luís de Sousa (adaptado)

**Alexandre O’Neill – in Ninguém

(Pedro Almendra faz uma fuga para a frente.)

PEDRO: Ohhhh!.... (Pausa.) Hum. Pedrão, peç... Peço perdão. (Pausa.) Eu ia, sim, de facto e gravata. Tinha-me vestido a pronto, mesmo. Era uma noite até já bastante pacífica, tudo parecia encaminhar-se. Não conhecia os meandros. Ela – toda a gente à volta dela, sorrisos caídos, mãos com pastilhitas de cores, oh. Estava pela prima volta tão romântico. Para me acalmar dizia para dentro “Federico! Federico! Federico Fellini!” Re-sultava um pouquinho. Trazia-lhe, bem, um ramo de gerúndios brancos. Disse-lhe “Por vapor... Por favor.” […] E ela: “Oh.”Jacinto Lucas Pires – Figurantes

(Passos de Figurantes e Frei Luís de Sousa sobrepõem-se nas vozes de Pedro Almendra e Pedro Frias.)

PEDRO: Nem disse mais nada. “Oh.” Recusando--me. Quase sem me olhar. Cheirou-lhe que eu não era da laia dela e despejou-me assim na rua. Sem contempracções, sim. Desde esse dia não mais quis sair da rua. Quero ser da vida dela se ela é da vida.

Capitão Furillo. Gina Lollobrigida. Rosa púrpura do Cairo. Federico Fellini. Capitão Furillo. Gina Lollobrigida. Rosa púrpura do Cairo. Federico Fellini. Federico Fellini! Cuore mio, Super-oito, Nikki Lauda. Michael Jackson, Amazónia, C.E.E.!Plimplezas! Ternura! Superavit! Federico! Fede-

…ao vazio absoluto do espectáculo e à comoção

única que ele provoca, do fundo do seu esquecimento,

da sua insignificância.

rico! Federico Fellini! Supra-sumo! Tom Sawyer! Coconuts! Astronave... Quero ser da vida dela se ela é da vida. Davidavi-davidavida.Jacinto Lucas Pires – Figurantes (adaptado)

MADALENA: Minha filha, minha filha, minha filha!... Estou... estás... perdidas, desonradas... infames! Oh! minha filha, minha filha!..

JORGE: Calai-vos, D. Madalena! A misericórdia de Deus é infinita. Esperai. Eu duvido, eu não creio... estas não são coisas para se crerem de leve. Oh! inspiração divina... Conheceis bem esse homem, Romeiro, não é assim?

ROMEIRO: Como a mim mesmo.

JORGE: Se o víreis... ainda que fora noutros trajes... com menos anos, pintado, digamos, conhecê-lo-eis?

ROMEIRO: Como se me visse a mim mesmo num espelho.

JORGE: Procurai nestes retratos, e dizei-me se algum deles pode ser.

ROMEIRO: É aquele.

MADALENA: Minha filha, minha filha, minha filha!... Estou... estás... perdidas, desonradas... infames! Oh! minha filha, minha filha!...

JORGE: Romeiro, Romeiro, quem és tu?

ROMEIRO: Ninguém! Almeida Garrett – Frei Luís de Sousa (adaptado)

A versão do guião que aqui se publica corresponde à versão em

uso no dia 26 de Outubro de 2010, no primeiro ensaio de palco

no TNSJ, podendo, em alguns pontos, diferir da versão final.

O guião integra excertos das versões cénicas de Castro, de

António Ferreira, texto fixado por Frederico Lourenço, em

colaboração com Carlos Mendes de Sousa e Ricardo Pais (TNSJ,

2003); Figurantes, de Jacinto Lucas Pires (TNSJ, 2004);

Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, dramaturgia de Ricardo

Pais e António Cabrita (TNSJ, 2006); e Ninguém: Frei Luís de

Sousa, com textos de Almeida Garrett, Maria Velho da Costa

e Alexandre O’Neill (Produções Cine-Teatro/Os Cómicos, 1978).

As intervenções dos Apresentadores nos Episódios I e V glosam

o discurso de apresentação de Henrique Mendes no programa

da RTP Convite Para Ouvir Maysa, realizado por Fernando Frazão.

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uma estétiCa da desenCaRnaçãoBruno Di Marino*

A multimedialidade – conceito que é hoje, na era do hipertexto e das novas tecnologias, especial-mente abusado – é uma forma antiga na história do espectáculo, muito provavelmente contem-porânea do nascimento do teatro. A recitação, a dança e a música são três elementos que sempre se fundiram desde o fim da Antiguidade Clássica. A estes junta-se agora o vídeo, enquanto disposi-tivo tecnológico capaz de fundir estas formas ex-pressivas num diálogo gerador de novos significa-dos, criando uma estrutura visual no interior da qual os elementos recitados, performativos e mu-sicais possam encontrar uma outra dimensão espa-cial e uma maior respiração narrativa. Ainda que, como sublinha Ricardo Pais na entrevista publica-da nestas páginas, Sombras seja “um espectáculo escrito. Pouco interessa em que parte do corpo. É dramatúrgico, técnica e disciplinadamente”.A cenografia concebida por Nuno Lacerda Lopes di-vide o espaço cénico em duas partes. À esquerda, os músicos dirigidos por Mário Laginha, entre os quais se encontram duas outras figuras que – para além do próprio compositor – participaram já em espectáculos de Ricardo Pais: Diogo Clemente, o jovem guitarrista que assegurou a direcção musi-cal de Cabelo Branco é Saudade [2005], e o clari-netista Carlos Piçarra Alves, que tomou parte em Figurantes [2004] e D. João [2006]. À direita, os performers (fadistas, bailarinos e actores), sobre um estrado de madeira que sugere a plataforma de um porto: o cais é um lugar simbólico da cul-tura portuguesa, de onde se parte (Quando a gente vai “lá fora”) e a que se regressa (Quando a gente volta “a casa”). De resto, o tema da separação, sobretudo da separação amorosa, atravessa todo o espectáculo, revelado neste contraste paradoxal entre a aparente fixidez da cena e um contínuo movimento conceptual, estilístico, cronológico que contamina o mito musical (o fado) com o literário (Fernando Pessoa), histórico e teatral

(Castro, Frei Luís de Sousa…). A própria divisão em capítulos (sete episódios, dois entreactos) procura sistematizar um espectáculo que – obstinadamente – reivindica uma fragmentariedade estrutural, e a sua densa tessitura de associações, reenvios, sobre-posições e dissoluções não chega nunca a fechar-se (não por acaso, o último alicerce da sua construção dramatúrgica é um falso final, que sublinha o facto de Sombras ser um fluxo, figurativamente capaz de voltear sobre si mesmo e recomeçar de novo, pre-cisamente porque não tem princípio nem fim).E, no entanto, a dispersão fantasmática destas som-bras que encarnam mitos e sentimentos da cultura lusitana, personagens que vagueiam entre a dimen-são real (o palco) e virtual (os ecrãs onde Fabio Iaquone e Luca Attilii projectam as suas criações vídeo), articula-se no interior do contentor cénico, cuja quarta parede é um ecrã negro de tule que, para além de conter músicos, actores e bailarinos no espaço da representação e da fábula, os desmateria-liza, tornando-os ainda mais sombras, fundindo-os com as imagens em movimento. Graças ao DVT (Di-gital Versatile Theatre), teorizado e praticado por Fabio Iaquone, as imagens electrónicas ganham cor-po no espaço cenográfico a partir de uma modelação realizada com uma precisão milimétrica: o virtual redesenha a arquitectura física de uma cena inten-cionalmente estilhaçada, à semelhança dos vários fragmentos que compõem o texto escrito de Som-bras. O teatro, como a realidade, é tridimensional, mas sabemos que, como no cinema, o espectador assiste ao espectáculo a partir de um único ponto de vista; assim, a representação teatral é com efeito bidimensional. E, todavia, através da projecção so-bre superfícies de várias dimensões – dos painéis verticais que permitem jogar com diversos níveis de profundidade de campo a outros elementos ceno-gráficos, acabando no grande ecrã quadrado que de-limita o fundo do palco – a cena adquire um relevo concreto e convida o espectador para uma experiên-cia “imerssiva”, no sentido literal da palavra.Não faz sentido pensar em Sombras – adverte Ri-cardo Pais na entrevista – como um espectáculo

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ta pessoana da corcunda – como um atributo sexu-al do serralheiro: as fagulhas parecem sair da bra-guilha das suas calças, o fogo da paixão dissolve-se nas grades que aprisionam a jovem mulher (as pa-lavras da corcunda são lidas de um fôlego por Emí-lia Silvestre, quase como um mantra), condenada a uma deformidade que conduz à morte; um mo-mento visualmente paródico, que atenua e torna parcialmente grotesca a tragédia da sua condição. E depois, naturalmente, o Ar, ou antes, o nevoeiro que invade fisicamente a cena através de fumos, o nevoeiro que recobre não apenas os corpos dos músicos, actores, cantores e bailarinos mas, ideal-mente, de toda a equipa criativa deste espectácu-lo, como demonstram os retratos feitos por João Tuna para o programa de sala. O nevoeiro é outro dos topoi da história portuguesa, elemento concre-to da paisagem, para além de dispositivo natural a partir do qual se realiza o Mito: o desejo que num dia de nevoeiro regresse o Rei D. Sebastião, desa-parecido na batalha de Alcácer-Quibir, onde tam-bém foi dado como desaparecido D. João de Portu-gal. O sentido da espera – espera do amor e espera da morte – é outro motivo, congénito à separação, que invade Sombras. O nevoeiro demarca um limite incerto, aquele entre a vida e a morte (a paisagem nebulosa do Hades), a realidade e a representação.

A Terra, por fim, como último elemento. A Terra é Portugal, as visões fugazes da sua paisagem, resti-tuídas por imagens em movimento. Imagens quase descoloradas que mantêm apenas alguns elemen-tos cromáticos e que remetem um pouco para o universo do cinema mudo, apesar de manterem o grau de estilização dos signos. Mas a Terra é o pró-prio teatro, o chão do palco pisado pelos intérpre-tes. É difícil subtrairmo-nos a uma leitura meta- -artística de Sombras, lá onde as “sombras” não são senão imagens, representações, figuras alegó-ricas e arquétipos de uma tradição literária e mu-sical que se transmuta em escrita cénica; são ecos, reverberações, reflexos da existência e da História. E pegando uma vez mais nas palavras do Blanchot de L’espace littéraire, poderíamos concluir: “O re-flexo não parece sempre mais espiritual do que o objecto real? Não é desse objecto a expressão ide-al, a presença liberta da existência, a forma sem matéria? E os artistas que se exilam na ilusão das imagens, não têm eles como missão idealizar os seres, elevá-los à semelhança desencarnada?” Sombras poderia ser lido como o poema desta desen- carnação.

* Ensaísta italiano, curador e investigador de media art

Trad. João Luís Pereira

circunscrito à portugalidade. Temas, motivos, per-sonagens, situações e referências assumem uma dimensão universal, partilhável com espectadores de outras latitudes. Sombras representa antes uma viagem às raízes culturais de Portugal, numa os-cilação contínua entre tristeza e alegria, amor e morte, sonho e realidade, fado e fandango, drama e cabaré; mas também pode ser lido como uma excursão pessoal de Ricardo Pais ao seu imaginário teatral: o encenador, na verdade, revisita e reinter-preta fragmentos de alguns dos seus espectáculos de um passado recente ou mais longínquo. À in-fância e ao crescimento histórico da cultura portu-guesa sobrepõe-se assim a vida artística de Ricardo Pais, a sua poética, a sua estética, as suas paixões, as suas obsessões. E estas duas linhas entrelaçam--se continuamente. Integrado no fluxo de imagens criadas para o espectáculo, assoma também um momento de found footage, isto é, uma sequên-cia filmada do espectáculo Ninguém: Frei Luís de Sousa, encenado por Ricardo Pais em 1978, um documento de época que revive numa dimensão live, num confronto entre os fantasmas de ontem e os fantasmas de hoje, personificados por Emília Silvestre, Pedro Almendra e Pedro Frias.Sombras é naturalmente atravessado pelo fado, o género musical por excelência, e pelas suas can-ções. O fado, a que as vozes de José Manuel Bar-reto e Raquel Tavares dão esplendidamente corpo, é definido com perspicácia por Ricardo Pais como “flamengo impotente” e, acrescentaríamos nós, exangue, literalmente dessangrado: nas imagens projectadas, duas das personagens-intérpretes vo-mitam sangue (alusão à figura da jovem Maria de Frei Luís de Sousa, tuberculosa). Imagem de uma “beleza convulsa”, diriam os surrealistas, simboli-za a doença da paixão ou a paixão como doença e restitui de um modo perfeito o mood contaminado de Sombras, uma mistura de romântico e gótico a deslizar em direcção ao grand guignol e, por fim, ao cabaré, naturalmente metafísico, isto é, sem corpo, mas pleno de ironia. Intensifica-se um contí nuo intercâmbio de atributos entre as personagens, a

diluição de fronteiras entre actores, performers e músicos nas duas metades do espaço cénico (Mário Franco assume o duplo papel de contrabaixista e bailarino), a pulverização de qualquer limite físico que alude naturalmente à pulverização de todas as fronteiras entre géneros, numa lógica que torna ainda mais labiríntica a arquitectura dramatúrgica e a encenação de Ricardo Pais.Em Sombras, o luto (a imagem de grãos de milho cobertos por um oleado negro) reveza-se com a festa (os caixotes de peixe fresco do mercado que invadem a cena como uma prateada textura abs-tracta), e esta alternância traduz em cena, numa espécie de reverberação visual, o esclarecedor subtítulo do espectáculo: “A nossa tristeza é uma imensa alegria”. “A arte é sobretudo a consciência da infelicidade”, escreveu Maurice Blanchot, “não uma sua compensação”.

Sombras abre com a imagem de um motor, mas todo o espectáculo está repleto de manómetros, roldanas, cadeias de montagem, visões que reme-tem iconograficamente para o ideário futurista--construtivista típico das vanguardas históricas. O imaginário industrial, que aparentemente con-trasta com o lirismo de certas situações, eviden-cia na realidade o conflito entre um Portugal ain-da apegado às suas raízes rurais, aos valores da tradição, e a inevitável atracção pela vertigem da modernidade. A própria coreografia de Paulo Ri-beiro, de grande eficácia e essencialidade, atinge em alguns momentos um nível quase schlemmeriano de geometrismo e estilização: um corpo a corpo entre os bailarinos e o espaço que se inscreve perfeita-mente na arquitectura video-cenográfica; atente-mos na portentosa sequência da morte da Castro, impregnada de uma trágica sensualidade, dançada por Carla Ribeiro e Francisco Rousseau.Os elementos naturais sucedem-se e sobrepõem--se em Sombras: a Água, antes de mais, seja sob a forma do mar que invade e quase submerge a cena ou de uma chuvada que cai à luz de um lampião. O Fogo aparece num dos primeiros quadros – a car-

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“aRmamos uma RatoeiRa ao nosso imagináRio”

Entrevista com Ricardo PaisPor Pedro Sobrado

Pode falar um pouco sobre a génese deste espec-táculo, ou ela é tão longínqua que exigiria um grande esforço genealógico?A génese talvez seja, de facto, um tanto longín-qua… Mas valerá a pena dizer que, quando há um ano estivemos no Brasil a apresentar o Turismo Infinito, me perguntaram porque é que nós não fazíamos um espectáculo de fado “a sério”. Ao que respondi: “Mas já fizemos várias coisas de fado a sério!” Referia-me não só àqueles felicíssimos cru-zamentos que fizemos com o Mário Laginha nas Raízes Rurais. Paixões Urbanas [1997] – e que me parecem fazer a redenção daquilo a que miseravel-mente se chama “música de fusão” –, mas também ao Cabelo Branco é Saudade [2005]. Seja como for, essa proposta dos nossos amigos brasileiros aconte-ceu porque a identificação do público de São Paulo com o Turismo Infinito e com o Fernando Pessoa foi absolutamente fascinante. E boa parte do fascínio decorreu do facto de as pessoas ouvirem portu-gueses a dizer Fernando Pessoa. Portanto, quando apresentámos o Turismo Infinito com a “escola” que é a do Teatro São João – há que reconhecer que não é um grupo qualquer de actores que granjeámos para levar ao Brasil; é um conjunto de pessoas que tem vindo ao longo dos anos a exercitar como se diz e porque se diz e quanto se diz –, foi uma coisa completamente hipnótica. Pela minha parte, acho que se fazem poucas coisas “a sério” sobre o fado, porque não há muito por onde fazer: o fado são três ou quatro coisas; depois, é a imensa variedade da interpretação. Ele tem os seus próprios circuitos e meios e lugares. Mas a verdade é que fiquei a pensar naquilo muito seriamente. Como um projecto que o Fabio Iaquone tencionava fazer sobre mim (e que curiosamente começou por se chamar Sombras) foi suspenso, propus ao Nuno Carinhas fazermos uma

coisa que correspondesse, na medida do possível, à encomenda brasileira: uma incursão no território da nossa língua, aí incluindo o fado. Pensando nisso, ocorreu-me que seria engraçado brincar um pouco às nossas próprias histórias, ao nosso próprio sis-tema lendário, com remissões para a Castro, para a mitologia sebástica, etc.

As sombras que dão nome ao seu espectáculo começam por ser, portanto, os assombramentos daquilo a que se convencionou chamar “portuga-lidade”.São as coisas – temas, figuras, referências – que fantasmizam o nosso ideário e o nosso imaginário, nomeadamente o meu imaginário teatral. Temos, enquanto portugueses, um problema de auto--identidade de que a melhor metáfora é o jogo de retratos do Frei Luís de Sousa… Mas reconheçamos que alguns dos mitos ditos fundadores do nosso imaginário popular ou colectivo configuram uma realidade algo artificial. O próprio fado é uma espécie de fenómeno mantido artificialmente. A mitologia do fado, as referências do fado – do Ma-rialva à Severa, passando mais recentemente pelas femininas espigas do Alentejo ou pelos masculinos cacilheiros do Tejo… –, tudo isso não diz efectiva-mente nada a ninguém. Já ninguém olha para as gaivotas com enlevo ou comoção. Há muito tempo que os nobres foram para a sacocha, como acontece no Ubu, e os que voltam são uns tesos pindéricos. Quem os representa são uma espécie de cantores de blazer, mais parecidos com agentes bancários do que com monárquicos de Sintra. Tudo isto é, de facto, um fenómeno mantido artificialmente. Mas a verdade é que propicia uma forma de canto que é nossa. Conseguiu o prodígio de convergir em Lis-boa e, naquela cidade-cais, transformar-se na única forma de canção urbana genuinamente portuguesa, mantendo-se ao mesmo tempo um território aberto à experimentação musical, nomeadamente no que diz respeito à interpretação vocal. Nesse sentido, sempre achei que, por muito que se fale do pathos do fado, do ritus do fado, do xamanismo do fado e

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apelam à virilidade, etc. Há ali uma vitalidade ibéri-ca, algo ancestral, nomeadamente quando se assiste às pegas de touros, que – apesar de estar apoiada no aparelho teórico mais idiota e de ser normal-mente veiculada pelos mais cretinos e analfabetos praticantes das artes tauromáquicas –, na verdade, não deixa de ser uma coisa altamente expressiva. Quando falamos de fandango, estamos já a falar de uma forma de dança que, tendo sido exercitada em muitos sítios do país desde o século XVIII, foi codificada – e um pouco espartilhada, sobretudo pelo Estado Novo – na sua versão ribatejana, na versão em que, no fundo, o homem é metade cavalo. Curioso é o facto de o fandango se ter transforma-do numa coisa diabolicamente viril e agressiva en-quanto despique e, ao mesmo tempo, ser uma arte de imensas subtilezas. Refiro-me em particular às improvisações com os pés, dançadas entre bailador e bailador. Não é que a alegria do Ribatejo com-pense a tristeza de Lisboa. Não há sequer “cidades tristes” e “cidades alegres”, embora sejamos, neste momento, segundo as estatísticas, o país da União Europeia com o maior potencial para a infelicidade. Eu acredito que no mais recessivo pode estar o mais progressivo. Acredito sinceramente que ao receder, ao cair para dentro de si próprio, ao convocar o passado, não se tem forçosamente de ser autocom-placente. E uma forma precisamente de se vencer a autocomplacência é pelo esforço da interpretação, e uma das explosões interpretativas mais interessan-tes na música folclórica portuguesa é o fandango. Donde falei com o “internacional” Paulo Ribeiro sobre esta hipótese de trabalharmos a partir do fandango, que, como verá, começa logo na cena dos “Apresentadores” a ser um leitmotiv do espectáculo.

“como se lá fora o povo dançasse enquanto um drama ocorre aqui…”

Quando falamos das sombras deste espectáculo, não falamos apenas das sombras da “portuga-lidade”. Falamos também das sombras do seu próprio percurso como encenador, do Ninguém

que fez em 1978 ao Figurantes, de Jacinto Lucas Pires, em 2004…O título evoca, de facto, os meus fantasmas re-correntes. Nos anos 70, tive a ousadia de fazer o Frei Luís de Sousa, peça de que então nem gostava especialmente. Pensei que iria agitar os fantasmas do nosso Portugal. Estava muito motivado pelo livro do Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, aca-bado de publicar, que falava do Frei Luís de Sousa como a teatralização de Portugal como “povo que já só tem ser imaginário (ou mesmo fantasmático)”. Nessa altura, achei que tínhamos de ir à procura de qualquer coisa de que toda a gente pudesse dizer: “É nosso”. E, realmente, o passo do teatro portu-guês que toda a gente sabe de cor é o “Romeiro, Romeiro, quem és tu? Ninguém”. Ao mesmo tempo, era a época “áurea” do teatro independente, de mil mistificações à volta do teatro ideologizado, das chamadas técnicas de comunicação do teatro engagé. Muitas delas não eram técnicas nenhumas e o tempo veio provar que estavam completamente erradas: não há hoje brechtiano que não chore como uma Madalena numa cena de funeral de telenovela, tentando fazê-lo o mais stanislavskianamente que pode! O teatro parecia uma coisa cada vez mais reservada, uma espécie de coutada, como de alguma forma acabou por se manter ao longo destes anos todos, e achei que devíamos tentar uma coisa que desbloqueasse essa relação e nos reconciliasse. Na altura, pretendia reunir uma espécie de palmarés de actores maduros que tivessem a experiência e a memória dos vários Frei Luís de Sousa, incluindo o do filme de António Lopes Ribeiro. E que pudes-sem agitar essa memória teatral portuguesa, pro-curando um pouco freudianamente o que estava por detrás de tudo aquilo… Pretensão absurda. Não tinha meios técnicos, nem domínio de linguagem, nem os actores estavam suficientemente à-vontade. O espectáculo tinha ideias geniais e foi um fracas-so. Lembro-me agora que o Carlos Zíngaro comprou propositadamente uma guitarra portuguesa para o Ninguém e que o espectáculo incluía já harpejos de guitarra portuguesa. Originalmente, tinha pen-

da incorporação do sofrimento que o fado encena nos seus lugares, o que na verdade importa é a vi-talidade com que se canta. O cantar – como, aliás, o dizer – é uma forma de expurgação…

Uma forma de espantar os males.As sombras. Digamos que se canta para que o dia nasça. Realmente, o fado é cantado noite fora, e é como se se cantasse para que o dia nasça mais claro e para que possamos assistir a essa nascença ainda de goela aberta. E isso é um sinal de vida, porque tem que ver com o empréstimo do corpo à arte, que é afinal do que trata o teatro.

Isso poderia levar-nos ao paradoxo que escolheu para subtítulo do espectáculo: “A nossa tristeza é uma imensa alegria”.De uma dor qualquer pode nascer uma alegria grande. E não é o princípio romântico de que o sofrimento e a separação são necessariamente mo-tivo de missão, não é da alegria sofrida que falo. É mesmo da alegria como aquilo que resulta de termos destapado finalmente a tristeza. E destapar a tristeza é aquilo que a gente faz de cada vez que sobe o pano, não é?

Disse que não há muito por onde fazer coisas sobre o fado, mas fez o Fados, no âmbito da Lisboa‘94; o Raízes Rurais. Paixões Urbanas em 1997, pouco tempo depois de chegar ao TNSJ; o Regressos em 2004, que juntava a D. Argentina Santos e o Camané ao Rabih Abou-Khalil; e o Cabelo Branco é Saudade no ano seguinte, um espectáculo que foi apresentado em importantes palcos europeus…Na verdade, eu gosto de fado. Acho o fado uma forma nobre de cantar. E acho que raramente tem espaço para ser bem produzido, isto é, para as pes-soas estarem no seu melhor, à procura do melhor e relacionando o seu melhor com o melhor dos outros. O fado é esporádico, são pequenas canções, levanta--se um, que é brilhante, e canta, levanta-se outro a seguir, que é péssimo, e canta também… É uma

coisa convivencial, “antropológica”. De algum modo, é um bocadinho como as coisas ciganas na Andalu-zia: é fácil vender gato por lebre. Mas se se continua a gostar de ouvir as pessoas cantar é porque o fado é uma forma peculiar de canto, tem semelhanças com poucas coisas. Claro que há traços de união com a música judia, a música árabe, coisas dos Balcãs inclusive. Ouve-se também muita coisa na canção da Beira Baixa que remete para o fado, o que, de resto, é frequente acontecer com formas de arte popular que são objecto de transmissão oral. Mas o fado é mais qualquer coisa porque traz agarrado a si uma espécie de expansão cultural portuguesa, que não pode deixar de estar personalizada na Amália, é evidente. Porque não se trata de uma fadista; trata--se de um génio. Quando a Amália diz “Na gelada solidão que tu me dás coração…”, ninguém diz “solidão” tão expressivamente, tão onomatopeica-mente como ela o faz. E isto leva-nos directamente ao teatro, à nossa velha luta por encontrarmos uma verdade para cada actor, em que o texto se trans-forma numa espécie de implante físico, de implante cardíaco, ao mesmo tempo que se desenvolve uma técnica precisa para controlar esse texto que está implantado e para o modificar, de forma a dar dele a imagem do inesperado comportamento humano.

Em Sombras conjuga a tristeza do fado com a alegria do fandango, a introspecção de um com a extroversão do outro?Sempre achei que o fado é uma espécie de flamenco impotente, porque é uma coisa que faz espiral para dentro, não faz espiral para fora. Não abre como o flamenco, não irradia e portanto não exige o corpo e a dança. No flamenco, há um momento em que o canto inevitavelmente conduz à explosão do corpo. E nós, essa explosão não a temos connosco. Curio-samente, quando fizemos o Raízes Rurais. Paixões Urbanas, já então com o Mário Laginha, fiquei muito fascinado pelo fandango. No Ribatejo há um regis-to de extroversão grande, porque – como estamos sempre a ouvir – a lezíria é uma alegria, porque o milho é muito bonito, porque os cavalos e os touros

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seda muito reles, impressos normalmente com a fotografia de uma criatura qualquer que tinha as-sassinado a mulher ou coisa parecida, ali colocada para fazer crer que a história era verídica. O fado com que o espectáculo abre – é mais uma litania, praticamente – e que a Raquel canta, por assim di-zer, na sua solidão absoluta, faz parte desse tipo de fados. Fui criado a ouvir à quinta-feira, no mercado da Maceira-Liz, pares de cegos a cantar estes fados. Quando vim de Inglaterra, descobri em casa do meu pai, em Viseu, um folheto com o fado da história do Amor de Perdição. Tinha uns 8 ou 9 anos quando o ouvi pela primeira vez, e ainda sei a primeira qua-dra de cor. É um fado típico de folheto, com verso de pé quebrado, não é propriamente um Linhares Barbosa, que era um grande poeta popular, ou um Henrique Rêgo. Eram coisas mais simples ainda, mas foi também com essas formas de narração que cres-cemos. Mas devo dizer que não me move nenhuma preocupação com as questões históricas do fado. Na verdade, no momento em que um óvni chamado Amália Rodrigues aterra em Portugal, para o bem e para o mal a história do fado pulveriza-se, assim como se pulverizou a história da canção francesa quando apareceu a Piaf.

Está a falar dos fados narrativos e estou a lem-brar-me da “Carta da Corcunda para o Serra-lheiro”, que figurou no Turismo Infinito e que retoma aqui…De facto, nunca mais me esqueci de que, quando li o monólogo da corcunda, a sensação que tive foi a de que estava perante um daqueles folhetos. Parece a história da ceguinha, a história da desgraçadinha. Claro que se trata de um texto que está comple-tamente minado. Não é nada disso, é uma coisa infinitamente mais misteriosa. Tem que ver com conseguir ou não aceitar-se a si mesmo, e se se vai viver sem corpo até à morte. Está-se no apogeu da idade, a morte está cerca e, no momento em que o corpo poderia celebrar-se finalmente, ele não vai sequer ser reconhecido como corpo, e nem sequer é masculino ou feminino. É uma coisa infinitamente

mais complexa do que a desgraça da rapariga que ama um homem em silêncio. Lido que foi o texto, era já um fado.

Os fados de tipo narrativo, o fandango, os textos pessoanos escolhidos… Sombras faz um tributo a um certo espírito popular português?Sempre me comoveu muito a maneira como as pes-soas conseguem fazer bem a partir do simples, da-quilo que não tem qualquer pretensão de ser arte. Quando há dias estávamos a mostrar aos bailarinos as danças do rancho folclórico de Riachos no vídeo do Raízes Rurais, eles estavam sempre a repetir: “Mas isto é espantosamente bem dançado!” Aquela gente trabalha arduamente! Depois, quando se per-cebe, por exemplo, a imensa elegância do olhar do Sr. Joaquim Santana sobre a dança ou se via dançar o Veríssimo Gomes – que era uma pessoa positi-vamente tocada pelo espírito da dança –, quando estas coisas ocorrem, comovem-me imenso. Nessas alturas, acho infinitamente mais vulgar ser actor de teatro, e penso naquela gente que pratica as formas ditas cénico-dramáticas e não tem metade da sensibilidade nem põe metade do esforço que, às vezes, uma pessoa de um rancho folclórico investe no seu vira. É preciso lembrar que a minha geração reagiu muito a estas coisas da cultura popular por causa da intoxicação dos Bailados Verde Gaio e da propaganda do SNI [Secretariado Nacional de In-formação]. Mas, enquanto a maior parte dos meus colegas se estava a borrifar para essas coisas, eu estava masoquisticamente preso a elas. Ficava em frente da televisão a odiá-las, a odiar tudo aquilo que nos apequenava, intuindo, todavia, que por detrás podia estar qualquer coisa. Esse “qualquer coisa” só a maturidade é que me explica. Acho que isto nasce de um grande respeito pelas pessoas. Qualquer pessoa que tem um talento e consciente-mente o cultiva, e tem coragem para abrir a boca e o fazer ouvir, ou para se mexer e dançar, torna-se para mim objecto imediato de respeito máximo. Quando estive em Londres no final da década de 1960, o meu programa dilecto era o Come Dancing

sado fazer um espectáculo com a banda da Guarda Nacional Republicana no Coliseu dos Recreios, uma coisa “verdiana”… Daí em diante, por uma razão ou por outra, voltam sempre algumas coisas. “Volta sempre a Primavera, só não volta a mocidade”, como canta a D. Argentina! [risos] A visita ao Aquilino Ribeiro [Teatro de Enormidades, 1985] foi um mer-gulho directo na Beira Alta e num país-país, segu-ramente um que eu conhecia muito bem… Penso também na maneira como na Castro [2003] se foi lentamente infiltrando a ideia de uma relação com o fado, que tinha presumido teoricamente quando li a peça, e que, francamente, não pensei que vies-se a tornar-se tão pacata e minimalmente óbvia, como se torna no fim do espectáculo. O próprio Dom Duardos [primeira encenação de Ricardo Pais no TNSJ, 1996] era curiosamente uma coisa muito portuguesa, tratando-se de um romance de cava-laria de origem saxónica. Os ensombramentos são essas coisas: vestígios, sobras, restos de imaginário que se vão infiltrando aqui e ali…

Logo na sessão de apresentação do projecto, pe-diu à Raquel Tavares que experimentasse ensom-brar uma fala do D. Pedro da Castro trauteando o fado “Olhos Garotos”. Sombras designa também um programa, um método de encenação?Isso sim. O espectáculo vive desse método, confia--se ao seu próprio método. Em princípio, tudo pode sombrear ou assombrar tudo o mais. Uma coisa pode nascer da outra. Os próprios fados podem prolongar--se, ou retomar-se mais adiante. Podem nunca co-nhecer um acorde final, como acontecia no Cabelo Branco é Saudade. Idealmente, as cenas não termi-nam: esvaem-se. É o esbatimento da fronteira – na verdade, das fronteiras entre nós todos, entre os intérpretes, entre os criadores – que me interessa. Em relação ao caso que cita (e que não posso ga-rantir que ficará no espectáculo), aconteceu que na noite anterior estava a ler o guião e perguntei-me: mas como é que este desabafo se vai relacionar, e com o quê? Aquela explosão de D. Pedro no final da Castro – a imprecação contra Coimbra, contra o

pai, contra a política, contra tudo, e o reconheci-mento de que finalmente (e digo “finalmente” com toda a perfídia) o corpo da Castro está morto – é uma coisa extraordinária. Pensei que esse momento deveria conter um pico de arte popular porque, no fundo, no fundo, toda a gente se compraz naquele sofrimento. Do que nós gostamos na lenda não é apenas do facto do príncipe se ter vingado e posto Inês lugubremente, como rainha morta, como lhe chamou Montherlant, a ser saudada com beijos de mão pela Corte. Ao propor esse “ensombramento” do texto pelo fado, estava a pensar nesta propensão tão portuguesa que é a de desatarmos a dançar o vira em cima da maior tragédia. Tratou-se de justapor um fado corrido, popular e repetitivo, que serve uma letra totalmente narrativa, e pôr esse modo, que é um modo extrovertido, um modo maior, con-tra o modo menor do texto de D. Pedro, e ver como as coisas se relacionam. E como viu, relacionam-se bem. Talvez se relacionem bem porque as vemos ambas como nossas. Mas, essencialmente, estava a tentar uma justaposição que perspectivasse aquele sofrimento para o exterior, como se lá fora o povo dançasse enquanto um drama ocorre aqui. Depois, ao ensaiar estas justaposições, a gente descobre imediatamente uma série de coisas de que não es-tava à espera. E isso é o que pode chamar-se parte da minha metodologia: experimentar o impensável para ver se o inesperado ocorre. E ocorre muitas vezes.

“Conforme se canta assim o folheto o indica”, lembrava ontem o José Manuel Barreto. De onde vem este gosto pelo fado de tipo narrativo?Preferiria não entrar por aí porque, desde a publi-cação do livro de José Alberto Sardinha [A Origem do Fado], que veio incomodar o status quo do fado e a blindagem eventualmente científica a que al-guns o submeteram, a questão está envolta nalguma polémica. “Canta-se como o folheto manda” porque os fados eram transmitidos por cegos e cantores ambulantes, e o que eles ganhavam era o que se pagava pelos folhetos, uns folhetos em papel de

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principalmente quando se está realmente a falar de amor, que é quase sempre aquilo de que ele fala. Queria, de resto, ter visitado mais poetas. Li o António Botto. Andámos a ler outras coisas, mas, na maior parte dos casos, não eram propriamente cantabile, ao contrário dos poemas, por exemplo, do José Luís Gordo, de outros poetas, populares e não só, que são feitos para música. A ideia era arejar um bocadinho o nosso ideário. Fadistas com grandes repertórios como a Amália, a Beatriz da Conceição ou a D. Celeste Rodrigues cantaram muitas coisas e cantaram-nas de maneiras muito díspares. Se qui-sermos fazer uma coisa um bocadinho original e lembrar “isto também pode ser assim”, temos de trabalhar. Fui então pela obra do Pedro Homem de Mello, ao encontro de coisas que se escrevessem bem com estes outros textos que compõem o guião. Um dos poemas que escolhi segue-se ao monólogo do Infante, por exemplo. Houve outra coisa: senti, a dada altura, que o Pedro Homem de Mello tinha poemas para todos os momentos. E, sobretudo, que oferecia poemas para todas aquelas vozes.

“Os actores cantam!” era o subtítulo de um ou-tro espectáculo seu. Agora, não só os actores cantam, como também os cantores representam (o que não acontecia propriamente com Cabelo Branco é Saudade) e os bailarinos tocam e di-zem. É um contrabando lucrativo?Não houve qualquer programa prévio de pluridisci-plinaridade, de pôr toda a gente a fazer tudo, para se dizer que somos muito “modernos”, ou porque temos alguma coisa à venda. Sombras é um espec-táculo escrito. Pouco interessa em que parte do corpo. É dramatúrgico, técnica e disciplinadamente.

Essa pretensa pluridisciplinaridade a que se re-fere é uma coisa que, normalmente, o irrita…Muito. Mas aqui não se trata de dizer que sim, que tudo se cruza: a dança, a fala, a música, o vídeo, etc. Se aqui os fadistas ou os bailarinos dizem, é apenas para permitir que, em determinados momen-tos, o intérprete faça a derradeira coisa. Quando a

Raquel Tavares fala, fala porque já não pode fazer outra coisa. De algum modo, se as célebres três frases de diálogo entre a Ama e a Castro, no final da primeira cena do I Acto da Castro, são ditas pela Carla Ribeiro, pelo Francisco Rousseau e pelo Mário Franco, é porque nesse ponto, não se enunciando aquelas palavras, não chega a haver proferição – a proferição ritual do crime que dá origem àquela tragédia e àquela lenda. Aqui, é preciso que as pa-lavras irrompam a determinada altura, para que reponham o texto no lugar litúrgico certo. Se, nesse ponto, é um bailarino quem assume a cena, é a ele que cumpre o desígnio de falar. Se é uma fadista, é uma fadista. Não é mais do que isso.

Teve em tempos a ambição de fazer um espec-táculo sobre a música de Frederico Valério, que está representada neste espectáculo. Por estas Sombras perpassa a melancolia do nacional--cançonetismo?Não há nada do nacional-cançonetismo no espectá-culo! Boa música é boa música. A “Rapariga do Cais” não se pode considerar uma nacional-cançoneta, de todo. É uma coisa infinitamente mais liberta e poética, muito pouco doméstica e muito pouco codificável. Primeiro, porque é um poema muito aberto; depois, porque concatena metáforas sim-ples e coerentes entre si; finalmente, porque é um poema curto, que não tem pretensões de se abrir e fechar como unidade dramática, que fica em aber-to. Não há incursões no nacional-cançonetismo. Há talvez qualquer coisa desse universo nas magníficas cançonetas brasileiras, que, quando era adolescente, invadiram a rádio portuguesa. Nos próprios palcos da Revista, tínhamos grandes saisons das compa-nhias brasileiras, convém lembrar.

Os compères evocam, pelo menos, a memória das variedades…Sempre tive um fascínio kitsch, altamente repro-vável, pelas variedades. Sempre achei graça àquela coisa de agora entrar uma criatura e fazer uma coisa, e, em seguida, vir uma outra e mostrar uma

da BBC, um concurso de dança gravado em salões de baile de província que tinha uma grande final no Empire Ballroom de Leicester Square. Eu não perdia o Come Dancing a preço absolutamente nenhum. Tenho ainda em Viseu três cibachromes lindíssimos que o Paulo Nozolino fez sobre as imagens televisi-vas do Come Dancing. É verdade que caía do sofá a rir, mas ao mesmo tempo comovia-me a precisão e a codificação foleira daqueles olhares, toda aquela coisa que não tem razão nenhuma de ser, mas que para eles obedece a uma lógica porventura análoga à de quem decora a casa. Como temos de ter um terno de sofás na sala, também temos de pôr a cabeça desta ou daquela maneira, conforme é tango ou fox-trot. Faz parte dos códigos. Faz tudo parte dos códigos de sublimação do que é mais vulgar e triste no quotidiano. Tenho estas coisas comigo, não sei explicar. Nunca foi propriamente o gosto do kitsch, sabe? Penso é que o mau gosto se sublima precisa-mente quando o investimento anímico é especial, e investimento anímico nestes casos – nos casos do palco – é sempre um investimento na superação do corpo. Em tornar o corpo mais belo, melhor do que nós o vemos, e portanto devidamente autorizado a ser gozado pelo público.

“as variedades são metafísicas, o cabaré é meta­físico.”

Ao ler o guião, ocorreu-me pensar que, para um espectáculo que versa sobre uma alma – a putativa “alma portuguesa” –, há precisamen-te demasiado corpo: olhos, mãos, “carne nua e ardente”…Essencialmente, fui pelo lado menos celebratório da “carne portuguesa”. [risos] Ou antes, fui pelo lado mais pudico dos portugueses – “Nós portugueses somos castos” está lá pelo meio –, tentando dar a entender que, no fundo, mesmo nas entrelinhas da poesia renascentista se esconde uma profusa sensualidade. A Castro ressoa corpo e sexo por toda a parte, ao contrário do que a forma arcádica possa fazer pensar, e essa foi uma importante questão que

nos pusemos quando a fizemos. Os motivos aqui são muito mais o corpo, a carne, as mãos, os olhos… No fundo, é entre o abrir e o fechar de olhos que este espectáculo está. Acho que um recital de fado ou um recital de coisas portuguesas, que podem ir de António Ferreira a Jacinto Lucas Pires, de Linhares Barbosa a Pedro Homem de Mello, será sempre uma coisa entre abrir e fechar olhos. É sempre uma coisa entre o aceitar que vivemos uma realidade e o fe-char os olhos para não pensarmos nela, e podermos poetizar à vontade. Não é por acaso que os fadistas fecham os olhos para cantar. Não é só para se con-centrarem, como se diz. É porque o fado tem tudo que ver com o quebra-luz, com o fecho da realidade. A tragédia da Castro acontece por falta de noção da realidade: D. Pedro ausenta-se, Inês ilude-se, pensando que vai ser rainha e é assassinada no IV Acto. E, ao ser assassinada, empresta finalmente a dimensão de Deus ao amor e ganha um nome para sempre. Esta passagem pelos temas mais próximos do corpo tem que ver com o acordar e adormecer, tem que ver, naturalmente, com o nascer e morrer e, depois, com a nossa capacidade de nos libertarmos e vivermos felizes com o que temos.

Foram estes temas que ditaram uma preferência pela poesia de Pedro Homem de Mello, que foi classificado como “o maior dos poetas menores”?É um poeta que versa recorrentemente o desejo proibido, a liberdade ou não de amar… Os poemas que escolhemos do Pedro Homem de Mello andam à volta da supressão, à volta do inalcançável. Da supressão do desejo, ou da felicidade inalcançável, ou da felicidade oculta. A imagética dele é brutal. Ele é aquilo que o Ary dos Santos gostaria de ter sido quando fosse grande. Não é nenhum sub-Llorca, nenhum sub-Eugénio. É um poeta de uma veemên-cia rara. Normalmente, ficamo-nos pelo “Povo que lavas no rio” e escapa-nos o que seja “Pedi-lhe, firmes, pálidos, inteiros / Dois ombros de marfim, por horizonte”, ou o “vinco, longo e azul, das tuas costas”. São imagens de uma sensualidade e ao mesmo tempo de um classicismo surpreendente,

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a humildade fantástica de um grande artista e de um grande amigo.

Sombras é um espectáculo sobre coisas de Portu-gal. Mas, ao lermos o guião, encontrámos remis-sões ao cabaré alemão, canções brasileiras, refe-rências aos Current 93 e a Kurt Weill, sugestões de variações judaicas… Retomando uma célebre máxima de Goethe, pergunto-lhe: quem não co-nhece outra “língua” nada sabe da sua própria?Claro. Arriscamo-nos, aliás, a falar demais de Portu-gal nesta entrevista, porque o espectáculo vai valer e falar por si. Os materiais que o compõem são, de resto, vistos por um olhar, mesmo que apesar de mim próprio, profundamente cosmopolita. O que inevitavelmente acontecerá é um espectáculo mui-to pouco português no seu estilo. O que ele tem é muita coisa portuguesa, o que é bem diferente. Nunca achei que valesse a pena pensar sequer em nós próprios se não pensarmos nos outros. Desde miúdo, desde os caramelos de Badajoz, que acho que não conseguimos existir dentro das nossas próprias portas, a não ser com alguma dor e alguma infe-licidade. Aliás, temos no espectáculo aqueles dois episódios – “Quando a gente vai ‘lá fora’” e “Quando a gente volta ‘a casa’” – que, por si, já dirão alguma coisa. Sombras é, afinal, um espectáculo em várias línguas. Quando ouço aquelas passagens da Castro,

por exemplo, a minha reacção imediata não é a de dizer: “É D. Pedro de Portugal”. A densidade da última cena do II Acto do Frei Luís de Sousa, que é um absoluto prodígio de escrita dramática, seria fascinante em qualquer dramaturgia, em qualquer parte do mundo. Qualquer pessoa que tenha o dra-ma minimamente enunciado perceberá que é uma cena brutal, e reconhecerá a força verdiana que é a dela. É verdade que implica com Alcácer-Quibir, com D. Sebastião, com um marido tipicamente teimoso que nunca conseguiu despertar desejo na mulher, mas que, mesmo assim, vinte e um anos depois, re-gressa pensando que vai dar finalmente a queca do século. Isso será português. [risos] Mas toda a gente captará a tensão que a cena é capaz de desencade-ar por si. Começamos com coisas portuguesas, por razões de programa. Eu queria, de resto, fazer uma última incursão no fado, indo por outras palavras, pelo Pedro Homem de Mello, pelo Fernando Pessoa. E achei que era altura de cruzar o fado com os gran-des textos dramáticos que trabalhámos, em vez de o cruzar apenas, como antes fizemos, com outras formas de expressão popular. O que se tenta aqui é uma espécie de nivelamento, no melhor sentido, da palavra. Depois de todos estes anos, podemos fi-nalmente sentar-nos todos à mesma mesa. De facto, é um espectáculo à mesa, mas o menu pode muito bem ser nouvelle cuisine.

diferente; agora, vem o ilusionista, depois a patina-dora… Aliás, sempre achei que Portugal é um país de apresentadores. O país são os apresentadores. Alguns políticos são verdadeiros compères. Anun-ciam a entrada desta vedeta e depois daquela, que infalivelmente nunca chegam a horas: os achados económico-sociais, os choques tecnológicos, as fu-sões, os aviões low-cost, etc. São rapazes treinados para estar ao microfone. Este borrão que era o “acto de variedades” funcionava normalmente como um escape altamente alienatório, sem qualquer critério intrínseco, possuindo um capital de auto-esvazia-mento muito significativo. E o esvaziamento é uma coisa que me seduz. Esta coisa do apresentador que vem para fazer nada diz-me imenso. Há algo do teatro do absurdo nesta minha memória, não sei explicar-lhe bem. Tenho uma compulsão de trazer aquelas criaturas de volta, não sei porquê, não sei realmente para quê. Foi engraçado ver, no ensaio de ontem, o Pedro Almendra e o Pedro Frias a fazer os apresentadores, porque, a dada altura, ensaiámos um exercício de perda de memória: entram em cena, começam a apresentar, mas esquecem-se do que têm para dizer, já não sabem bem quem foi o autor, não se recordam do ano da canção, e desaparecem. É preciso ver que tudo o que neste espectáculo é óbvio é completamente metafísico. As variedades são metafísicas, o cabaré é metafísico. Não no sen-tido filosófico da métaphysique, mas no sentido eti-mológico: caminha-se para uma corporização que realmente nunca se quis. Digamos que a realização física e pluridimensional do “acto de variedades”, dos apresentadores, ou desta ou daquela coisa em parti-cular, acaba por ser um exercício perdido à partida. É uma espécie de ratoeira que armamos ao nosso imaginário. “Vê se te lembras que sentido é que isto fazia…” E nunca fez… Estou certo de que nunca fez.

“sombras é, afinal, um espectáculo em várias línguas.”

Volta agora a contar com Fabio Iaquone, depois de se ter gorado a possibilidade da sua parti-

cipação em Turismo Infinito. O facto de ser um criador italiano, apesar de tudo distante dos lugares-comuns do nosso imaginário, revelou--se importante?A escolha do Fabio Iaquone teve que ver, antes de mais, com a espantosa novidade que ele trouxe à Castro, que era um espectáculo aparentemente denso, fechado sobre o seu próprio idioma. Depois, foi a necessidade de criar uma dimensão em que não ficássemos à mercê dos corpos numa plataforma, em que a visualidade pudesse ser mais fluida, de maneira a não impor um desenho, um perfil tão per-manente e ritualizado como, por exemplo, acontecia no Cabelo Branco é Saudade, em que os intérpretes ficavam inscritos quase graficamente contra aquele fundo e ali actuavam. Apesar de tudo, o espectá-culo sublinhava o ritus tanto quanto a alegria e a comunicação. Aqui, estamos a tentar que isso não aconteça, que haja uma espécie de território outro no qual estas coisas depois entram. Não estão lá antes: acedem a ele. É como se tivéssemos montado o dispositivo todo com o Fabio, antes mesmo de ensaiarmos essas coisas.

Ao contrário do que sucedeu em muitos dos seus espectáculos, a cenografia não comporta pro-priamente uma metáfora cénica, como acontecia com o D. João ou o Turismo Infinito. Pretende-se sobretudo um dispositivo mais neutro de acolhi-mento ou recepção? Acolhimento da “orquestra”, dos bailarinos, recepção das projecções vídeo…Acho que vai reflectir muito mais do que nos parece à primeira vista. Não há nada de neutro naquela plataforma (que é uma espécie de pontão, de cais), nem naquele ecrã, nem naquela cortina. Acho até que vai ser uma coisa entre o negrume e o flashy. O que se pretendeu foi que houvesse, por um lado, espaço para a imagem electrónica viver e respirar sem constrangimento, mas também sem exibição; por outro, que se gerasse aquela espécie de cosiness de palco que nos permite ainda estar em convivên-cia com aquelas personagens. Foi esse equilíbrio que o Nuno tentou encontrar, e encontrou-o com

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em atelier próprio, no âmbito da ar-

quitectura, design, cenografia e mul-

timédia. Tem participado em inúmeras

exposições individuais e colectivas,

com trabalhos que lhe valeram vários

prémios e destaques em diversas pu-

blicações nacionais e internacionais.

Trabalhou pela primeira vez com Ri-

cardo Pais há vinte anos (Minetti, de

Thomas Bernhard, Teatro Nacional

D. Maria II, 1990). Entre outras cola-

borações com o encenador, destaque-

-se o espectáculo Mandrágora, que lhe

valeu em 1993 o prémio para Melhor

Cenografia, atribuído pela Associação

Portuguesa de Críticos de Teatro.

BERNARDO MONTEIROColaborador permanente da ASSé-

DIO, concebeu os figurinos da quase

totalidade dos seus espectáculos a

partir de 2000. Desde 2006, colabora

regularmente com o Ensemble. Tem

assinado os figurinos para múltiplas

produções do TNSJ. Em 2010, pelo tra-

balho realizado para Tambores na Noi-

te e Breve Sumário da História de Deus

– encenações de Nuno Carinhas –,

foi-lhe atribuída uma Menção Especial

da Associação Portuguesa de Críticos

de Teatro, que assim distinguiu um

percurso que se “tem vindo a afirmar

de forma segura no panorama do tea-

tro português, muito particularmente

desde a criação dos figurinos de UBUs,

na encenação de Ricardo Pais”.

RUI SIMãONasceu em Lisboa, em 1971. Direc-

tor de Palco do TNSJ, realizou para o

ciclo de concertos O Piano Agarrado

pela Cauda o seu primeiro trabalho

de desenho de luz (TNSJ, 2006). Tem

trabalhado especialmente com os en-

cenadores Nuno Carinhas – refiram-

-se os recentes Tambores na Noite de

Brecht (2009) e Antígona de Sófocles

(2010) – e Nuno M Cardoso. Colaborou

pela primeira vez com Ricardo Pais ao

desenhar a luz do concerto de Rabih

Abou-Khalil Group com Ricardo Ribei-

ro e Tânia Oleiro (2007).

FRANCISCO LEALResponsável pelo Departamento de

Som do TNSJ, tem assinado múltiplos

trabalhos de sonoplastia em peças de

teatro ao longo de mais de 20 anos,

a par de espectáculos de música. Em

2003 – ano em que assinou o desenho

de som de espectáculos como Castro

e um Hamlet a mais, encenações de

Ricardo Pais –, foi-lhe atribuída uma

Menção Especial pela Associação Por-

tuguesa de Críticos de Teatro, “um

prémio para distinguir a contribuição

sensível e inovadora de Francisco Leal

para o desenvolvimento e renovação

das linguagens cénicas em Portugal”.

JOãO HENRIQUES“Um colaborador de luxo, profundo

conhecedor da voz e do canto, amante

letrado de todos os géneros teatrais.”

Foi assim que Ricardo Pais descreveu

João Henriques, com quem, em 2004,

dirigiu Sondai-me! Sondheim. Forma-

do em Canto pela Escola Superior de

Música de Lisboa e pós-graduado em

Teatro Musical pela Royal Academy

of Music (Londres), trabalha no TNSJ

desde 2003, assegurando a preparação

vocal e elocução de múltiplas produ-

ções. Assinou, nos últimos anos, a di-

recção cénica de várias produções do

TNSJ e da Casa da Música, como María

de Buenos Aires, de Piazzolla/Horacio

Ferrer (2006), e O Castelo do Duque

Barba Azul, de Béla Bartók (2007).

DIOGO CLEMENTEÉ integralmente fadista: toca viola,

compõe e escreve fados. Começou a

tocar viola de fado em 1998, com 13

anos apenas. Desde então, tem co-

laborado com grandes intérpretes do

fado: Argentina Santos, Beatriz da

Conceição, Carlos do Carmo, Mariza,

entre tantos outros. Tem também

trabalhado com músicos estrangei-

ros de grande projecção, como Chico

Buarque, Dominic Miller ou Concha

Buika. Entre os palcos em que tem

actuado, contam-se o Carnegie Hall,

Walt Disney Concert Hall, Paulau de

la Musica, Royal Albert Hall, Barbi-

can, etc. Na altura em que assegurou

a direcção musical de Cabelo Branco

é Saudade (2005) de Ricardo Pais, o

crítico João Lisboa observou: “Diogo

Clemente. Dezanove anos. Na realida-

de, com a idade inteira do fado que

continuamos sem saber exactamente

qual é”.

MANUEL TURNasceu em 1985. Licenciado em

Teatro/Interpretação pela Escola

Superior de Música e das Artes do

Espectáculo, estreou-se profissio-

nalmente como actor em 2003, num

espectáculo de Luís Mestre. Dos es-

pectáculos em que tem participado,

refira-se That Pretty Pretty, ou a Peça

de Violação, de Sheila Callaghan, en-

cenado por Nuno M Cardoso (Teatro

Oficina/O Cão Danado e Companhia,

2009). Tem assinado trabalhos de

encenação para a companhia A Tur-

RICARDO PAISNasceu em 1945. Foi Director do Tea-

tro Nacional São João entre 1996 e

2009, com um interregno de dois

anos. Do seu percurso de encenador,

iniciado em Londres em 1972, fazem

parte mais de 50 espectáculos tea-

trais e criações cénicas. Sem progra-

mar, acabou por se ocupar da mais

alta literatura em língua portuguesa,

trabalhando autores como Fernando

Pessoa, Padre António Vieira, Almeida

Garrett, António Ferreira e Gil Vicen-

te. A palavra, a língua e a literatura

tornaram-se, aliás, o eixo ético de

toda a sua acção, quer como encena-

dor quer como Director do TNSJ. Vê-se

como “encenador de música”, tendo

nela encontrado uma fabulosa capa-

cidade de libertação de imaginários

cénicos: citem-se os casos de Raízes

Rurais. Paixões Urbanas, um retrato

melódico de Portugal encomendado

pela Cité de la Musique, com direcção

musical de Mário Laginha (1998), e de

Cabelo Branco é Saudade (2005), onde

deu a ver o Fado tal como era cantado

antes de se ter tornado espectáculo.

FABIO IAQUONEVideasta italiano, formou-se no Cen-

tro Sperimentale di Cinematografia de

Roma. Opera na cena artística inter-

nacional desde os anos 1980, distin-

guindo-se como um dos mais inventi-

vos pioneiros da arte multimédia e do

uso do vídeo em teatro. Tem trabalha-

do com destacados encenadores, em

especial com Giorgio Barberio Corset-

ti, Robert Wilson e Ricardo Pais. Dos

vídeos criados para Castro (2003), a

crítica italiana destacou o “equilíbrio

perfeito” e a “precisão milimétrica”

com que as imagens “evanescentes e

fantasmáticas” (Lara Nicoli) se articu-

lavam com a encenação, funcionando

como “um formidável mecanismo me-

tafórico” (Bruno Di Marino). Ganhou,

entre outros prémios, o Pixel Movie

Award.

LUCA ATTILIIArtista plástico e videasta italiano,

formou-se em Design Gráfico e Indus-

trial e tornou-se especialista em com-

posição digital e novas tecnologias.

Trabalhou com encenadores como Al-

fredo Arias e Lorenzo Mariani, com as

cantoras Antonella Ruggiero e Ivanna

Gatti, entre outros. Especialmente im-

portante revelou-se o encontro com

Fabio Iaquone, em 2004, com quem

fundou o IaquoneAtilli Studio, crian-

do objectos de video-arte, video-clips,

instalações, performances e espectá-

culos, como Matematico e Impertinen-

te, com o célebre matemático e lógico

italiano Piergiorgio Oddifreddi.

MÁRIO LAGINHAA sua casa é o jazz, mas recusa en-

cerrar-se lá dentro. Na sua música po-

demos encontrar quase tudo, porque

não fecha as portas a quase nada. Com

mais de uma dezena de discos, o duo

com a cantora Maria João resultou

num dos casos mais originais da ac-

tual música portuguesa. Gravou discos

com Bernardo Sassetti e Pedro Bur-

mester, e criou o Trio Mário Laginha

com o contrabaixista Bernardo Mo-

reira e o baterista Alexandre Frazão.

Tem tocado e gravado com músicos

excepcionais, como Wayne Shorter,

Wolfgang Muthspiel, Trilok Gurtu,

Gilberto Gil, Lenine, Ralph Tower,

Manu Katché, Dino Saluzzi, Julian Ar-

güelles e Django Bates. Trabalhou com

Ricardo Pais em Raízes Rurais. Paixões

Urbanas (1997). “Mário Laginha não

tem já nada a provar a ninguém. Com

elegância, tem vindo a desenvolver

uma carreira feita de verdade, rigor

e uma rara sensibilidade musical”

(Público, 21Jun2010).

PAULO RIBEIROIniciou a sua carreira em França e na

Bélgica, nos anos 1980. Compôs obras

para diversas estruturas de renome,

nacionais e internacionais: Ballet

Gulbenkian, Nederlands Dans Thea-

ter, Grand Théâtre de Genève, Ballet

de Lorraine, entre outras. Fundou a

Companhia Paulo Ribeiro em 1995,

para a qual já assinou quase duas

dezenas de coreografias, e dirigiu o

Ballet Gulbenkian entre 2003 e 2005.

Tem sido galardoado com múltiplos

prémios. Das suas colaborações com

Ricardo Pais, destaque-se a participa-

ção em Fados (1994). No final do ano

passado, a crítica francesa saudou o

“regresso triunfante” do coreógrafo a

Paris, destacando o facto de as suas

peças “não terem uma única ruga”,

bem como “o seu talento para uma

geometria coreográfica atravessada

por fulgurações”. “Ver em grande, mas

também atentar nos detalhes, é uma

das suas especialidades” (Le Monde,

30Nov2009).

NUNO LACERDA LOPESÉ doutorado em Arquitectura pela Fa-

culdade de Arquitectura da Universi-

dade do Porto. Divide a sua actividade

profissional entre o ensino na FAUP e

o trabalho criativo que desenvolve,

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FRANCISCO ROUSSEAUFoi durante duas décadas bailari-

no do Ballet Gulbenkian. Trabalhou

com vários dos mais importantes

coreógrafos da cena internacional,

como Hans van Manen, Jirí Kylián,

Paul Taylor, Nacho Duato, William

Forsythe, entre muitos outros. No

panorama nacional, destaque-se a

colaboração com Vasco Wellenkamp

e Paulo Ribeiro, bem como com a

Companhia Olga Roriz. Paralelamen-

te, tem desenvolvido uma carreira

nas artes plásticas como pintor, ex-

pondo regularmente o seu trabalho

em galerias nacionais e estrangeiras.

Volta a participar num espectáculo

de Ricardo Pais, depois de na déca-

da de 1980 ter integrado o elenco de

Só Longe Daqui (Vasco Wellenkamp/

Ricardo Pais) e Presley ao Piano (Olga

Roriz/Ricardo Pais).

MÁRIO FRANCOBailarino, contrabaixista e compo-

sitor. É bailarino da Companhia Na-

cional de Bailado desde 1986, tendo

trabalhado com grandes mestres de

dança clássica. Dançou grande parte

do repertório da CNB, onde se des-

tacam coreografias de George Ba-

lanchine, Kenneth MacMillan, Lar

Lubovitch, Michael Corder, Robert

North, Olga Roriz, entre muitas ou-

tras. Como músico, opera em vários

âmbitos e géneros. Compõe também

para teatro e dança: mencione-se a

colaboração com o encenador Nuno

Carinhas e os coreógrafos David Fiel-

ding, Cláudia Nóvoa ou Rui Horta. O

seu disco This Life, em que partici-

pou o saxofonista David Binney, foi

considerado pela revista All About

Jazz um dos melhores discos de jazz

de 2006: “De onde quer que esta mú-

sica venha, faz-nos querer ir lá – e

ela simplesmente arrebata-nos”.

CARLOS PIçARRA ALVESÉ director artístico do Festival Inter-

nacional de Música de Paços de Bran-

dão, solista da Orquestra Nacional do

Porto, professor de clarinete e mem-

bro da Direcção Artística da Escola

Superior de Música e Artes Aplicadas

de Castelo Branco. É também artis-

ta e professor convidado da Arizona

State University. Actua nas princi-

pais salas de concerto portuguesas e

desenvolve uma intensa carreira in-

ternacional, solística e de música de

câmara. No disco Recital in the West

(2010), gravado nos EUA com Caio

Pagano, a imprensa norte-americana

encontrou “a melhor interpretação

da primeira sonata de Brahms […].

Carlos Alves extrai do clarinete um

som belíssimo e perfeito. O som pre-

cioso e elegíaco que inspirou Brahms

a compor música para clarinete até ao

final da vida” (Arizona Republic, Ju-

lho de 2010). Trabalhou com Ricardo

Pais, musicando ao vivo D. João de

Molière e Figurantes de Jacinto Lucas

Pires.

MIGUEL AMARALNasceu no Porto, em 1982. Estudou

guitarra portuguesa com Samuel Ca-

bral e José Fontes Rocha. Em 2005,

iniciou-se profissionalmente como

guitarrista acompanhador de fados.

Tem-se dedicado à vertente solista

da guitarra portuguesa, trabalhando

com Ricardo Rocha e Pedro Caldeira

Cabral e dedicando-se ao estudo dos

seus repertórios. Dos concertos que

realizou, mencione-se o recital a solo

na Casa da Música, em Outubro de

2009, a propósito do qual a crítica

lhe destacou a “superioridade de

execução” e o “ousado repertório”.

Desde 2007, estuda Composição com

Dimitris Andrikopoulos. É licenciado

em Direito pela Universidade Católica

Portuguesa.

PAULO FARIA DE CARVALHONasceu em 1971, no Porto. Aos 13

anos começou os seus estudos de

viola; aos 19 iniciou a sua carreira

profissional. Tem actuado nas casas

de fado do Porto e participado em

concertos por todo o país, acompa-

nhando muitos fadistas de renome,

entre os quais se contam Fernando

Maurício, Fernando Machado Soares,

Beatriz da Conceição e António Pinto

Bastos. Das salas de concerto em que

actuou, mencione-se o Palácio dos

Congressos de Estrasburgo. Actua

regularmente no restaurante O Fado.

ALBANO JERóNIMOFormou-se na Escola Superior de Tea-

tro e Cinema e estreou-se profissio-

nalmente em 2001. Desde então, tem

trabalhado com encenadores como

Fernanda Lapa, Cristina Carvalhal,

Diogo Infante, Isabel Medina, John

Retallack, Tiago Guedes, João Mota,

Nuno Carinhas e Rui Mendes. É pre-

sença regular na televisão, partici-

pando em várias séries e telenovelas.

Estreou-se no cinema em 2003, com

Luís Fonseca, tendo depois trabalha-

do com os realizadores José Fonse-

ca e Costa, João Farinha, Francisco

Manso, Gonçalo Galvão Telles, Miguel

ma, de que é co-fundador. Sombras

assinala a primeira colaboração com

Ricardo Pais.

JOSÉ MANUEL BARRETOO fado apresentou-se cedo a José

Manuel Barreto, quando ainda pe-

queno, na casa da avó, ouvia pelo

rádio os fadistas que foram talvez a

sua primeira inspiração. Com apenas

13 anos, foi convidado a actuar na

Grande Noite do Fado, realizada no

Coliseu dos Recreios. Nos anos que

se seguiram, percorreu várias casas

de fado de Lisboa, uma deambula-

ção que lhe permitiu conhecer de

perto Fontes Rocha, Francisco Pe-

rez “Paquito”, Pedro Leal e Alfredo

Marceneiro. Em meados da década

de 1980, decidiu, por fim, gravar o

disco de estreia: Amor Presente. O se-

gundo disco, Fado de Santa Luzia, foi

editado em 2001. Mantendo intacta

a sua ligação às casas de fado, deu

concertos em grandes eventos, como

a Expo‘98 e o Porto 2001, e em salas

de concerto em Nova Iorque (World

Music Institute) e na Broadway.

RAQUEL TAVARESA mãe é do Bairro Alto, o pai da Moura-

ria. Nasceu num outro bairro típico de

Lisboa: o Bairro do Alto do Pina. Vive

agora onde o Fado mora – Alfama –,

onde canta na Casa de Linhares. Aos

12 anos, venceu a Grande Noite do

Fado de 1997. Quase uma década de-

pois, edita o seu primeiro disco, com

produção de Jorge Fernando, e em

2008 lança o álbum Bairro, produzido

por Diogo Clemente. A crítica desta-

cou “a maturidade na voz e no estilo”

e a Casa da Imprensa atribuiu-lhe, em

2007, o Prémio Revelação. Defensora

do fado na sua forma mais tradicional,

tem por principais referências Lucília

do Carmo e Beatriz da Conceição.

EMíLIA SILVESTRELicenciada em Línguas e Literaturas

Modernas pela Faculdade de Letras do

Porto, é um dos elementos fundado-

res do Ensemble – Sociedade de Acto-

res. Para além de um vasto percurso

teatral, em que se destaca a parti-

cipação em diversos espectáculos de

Ricardo Pais, tem trabalhado em te-

levisão e exercido funções docentes.

Em 2008, após as “prestações me-

moráveis” em O Cerejal de Tchékhov

(enc. Rogério de Carvalho) e Turismo

Infinito de Ricardo Pais, a Associação

Portuguesa de Críticos de Teatro atri-

buiu-lhe uma Menção Especial, des-

tacando “a desenvoltura, a inequí-

voca versatilidade, o domínio vocal

ímpar, a plasticidade” e “um apurado

sentido de composição que dá à ac-

triz o recorte vibrante dos gigantes”.

PEDRO ALMENDRANasceu em 1976. Licenciou-se em Tea-

tro pela Escola Superior de Música

e das Artes do Espectáculo. Encon-

tra-se ligado ao TNSJ desde 2003,

trabalhando especialmente com os

encenadores Ricardo Pais e Nuno Ca-

rinhas, entre outros. Dirigido por Ri-

cardo Pais, protagonizou D. João, de

Molière (2006), espectáculo que lhe

granjeou amplos elogios na imprensa

italiana, e integrou o elenco de ou-

tros tão emblemáticos como Turismo

Infinito (2007). Em cinema, prota-

gonizou a curta-metragem Acordar,

de Tiago Guedes e Frederico Serra, e

participou em A Bela e o Paparazzo,

de António-Pedro Vasconcelos. Em

2009, co-fundou a Bastidor Público,

estrutura de investigação, formação

e criação artística.

PEDRO FRIASNasceu no Porto, em 1980. O seu

percurso é híbrido: bacharel em Jor-

nalismo pela Escola Superior de Jor-

nalismo do Porto, estudou teatro na

Escola Superior de Música e das Artes

do Espectáculo; é actor, trabalhando

especialmente com o TNSJ e as com-

panhias ASSéDIO e Mau Artista (de

que é co-fundador), mas trabalha

também como cantor, participan-

do em produções musicais e discos

infantis. No cinema, destaque-se a

participação em Une Nuit de Chien,

de Werner Schroeter (2008). Traba-

lhou pela primeira vez com Ricardo

Pais em 2008, integrando o elenco de

O Mercador de Veneza.

CARLA RIBEIROIniciou os seus estudos de dança

clássica e moderna com Igor Ivanoff

e Madalena Victorino e formou-se na

Escola Superior de Dança. Entre 1995

e 1998, trabalhou com a Companhia

Olga Roriz, participando em quase

uma dezena de criações coreográfi-

cas. Destaca-se ainda a colaboração

com companhias como a Pigeons

International, O Útero, A Torneira e

O Bando. Entre os criadores com

quem tem trabalhado, contam-

-se Nuno Carinhas, Paula Massano,

Susana Vidal, entre muitos outros.

Paralelamente à actividade artística,

lecciona em várias instituições, no-

meadamente no Forum Dança.

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Gaudêncio e Marco Martins. No TNSJ,

trabalhou primeiro com Ricardo Pais,

em O Mercador de Veneza (2008), e

depois com Nuno M Cardoso, em Emi-

lia Galotti (2009).

ANTóNIO DURãESActor profissional desde 1984, é pro-

fessor de teatro na Escola Superior

de Música e das Artes do Espectá-

culo. Desde 1998, trabalha regular-

mente no TNSJ. Destaque-se a sua

recente interpretação de Shylock em

O Mercador de Veneza, encenado por

Ricardo Pais (2008), e de Creonte na

Antígona de Sófocles, encenada por

Nuno Carinhas (2010). Tem colabo-

rado com muitos outros encenadores

e companhias (ASSéDIO, Ensemble,

Companhia de Teatro de Braga, Tea-

tro da Rainha, etc.), bem como com os

realizadores Paulo Rocha e Saguenail.

Estreou-se na encenação em 1995,

e tem assinado espectáculos tea-

trais, músico-cénicos e óperas. Des -

taquem-se Variações Sobre a Perver-

são (TNSJ, 2006) e A Cantora Careca

(TEUC, 2008).

JOãO REISEstreou-se como actor em 1989. Com

um muito expressivo percurso teatral

(destaque-se a relação mantida com

o TNSJ e encenadores como Ricardo

Pais e Nuno Carinhas), tem traba-

lhado igualmente em cinema e tele-

visão. Estreou-se na encenação em

1999, no TNSJ, experiência que reto-

mou em 2009, no Teatro Municipal

Maria Matos. O crítico e investigador

teatral Paulo Eduardo Carvalho assi-

nalou: “Os seus extraordinários tra-

balhos de 1998, o Professor em As Li-

ções e o Bobo Festa em Noite de Reis,

a que se poderiam juntar as suas

interpretações das personagens de

Hamlet [2001 e 2004] e de Dom Ubu

[2005], ficarão certamente como al-

guns dos mais inolvidáveis exercícios

de composição e versatilidade do tea-

tro português das últimas décadas”

(Ricardo Pais: Actos e Variedades).

TERESA MADRUGAEstreou-se como actriz em 1976. Tra-

balhou com Ricardo Pais no final da

década de 1970 e princípio da déca-

da de 1980. O seu desempenho em

Ninguém: Frei Luís de Sousa mereceu

o elogio da crítica: “Teresa Madruga

– Maria, pois o espectáculo é quase

só ela. […] Domina a cena com auto-

ridade e poder dramático” (O Jornal,

19Jan1979). Trabalhou com muitos

outros encenadores e companhias,

com destaque para Luis Miguel Cin-

tra e o Teatro da Cornucópia. Tem

uma expressiva carreira no cinema,

tendo participado em filmes de An-

tónio-Pedro Vasconcelos, Manoel de

Oliveira, João César Monteiro, João

Mário Grilo, João Botelho, entre

outros. Protagonizou Dans la Ville

Blanche, filme realizado por Alain

Tanner que lhe trouxe amplo reco-

nhecimento internacional. Trabalhou

em rádio, para programas da RDP, e

participou na dobragem de desenhos

animados.

teatro nacional são joão, e.p.e.

conselho de administração

Francisca Carneiro Fernandes (Presidente), Salvador Santos, José Matos Silva Assessora da

Administração Sandra Martins

Secretariado da Administração Paula

Almeida Motoristas António Ferreira,

Carlos Sousa Economato Ana Dias

direcção artística Nuno Carinhas Assessor Nuno M Cardoso

pelouro da produção

Salvador Santoscoordenação de produção Maria João Teixeira Assistentes Eunice

Basto, Maria do Céu Soares, Mónica

Rocha

direcção técnica Carlos Miguel Chaves Assistente Liliana Oliveira

Departamento de Cenografia Teresa Grácio Departamento de Guarda-

-roupa e Adereços Elisabete Leão

Assistente Teresa Batista Guarda-

-roupa Celeste Marinho (Mestra-

-costureira), Isabel Pereira, Nazaré

Fernandes, Virgínia Pereira Adereços

Guilherme Monteiro, Dora Pereira,

Nuno Ferreira Manutenção

Joaquim Ribeiro, Júlio Cunha,

Abílio Barbosa, Carlos Coelho, José

Pêra, Manuel Vieira, Paulo Rodrigues

Técnicas de Limpeza Beliza Batista,

Bernardina Costa, Delfina Cerqueira

direcção de palco Rui Simão

Adjunto do Director de Palco

Emanuel Pina Assistente Diná

Gonçalves Departamento de Cena

Pedro Guimarães, Cátia Esteves,

Ricardo Silva Departamento

de Som Francisco Leal, António

Bica, Joel Azevedo, João Carlos

Oliveira Departamento de Luz

Filipe Pinheiro, Abílio Vinhas,

José Rodrigues, António Pedra,

José Carlos Cunha, Nuno Gonçalves

Departamento de Maquinaria

Filipe Silva, António Quaresma,

Adélio Pêra, Carlos Barbosa, Joaquim

Marques, Joel Santos, Jorge Silva,

Lídio Pontes, Paulo Ferreira

Departamento de Vídeo Fernando

Costa

pelouro da comunicação e relações externas José Matos Silva

Assistente Carla Simão Relações

Internacionais José Luís Ferreira

Assistente Joana Guimarães Edições

João Luís Pereira, Pedro Sobrado,

Cristina Carvalho Imprensa Ana Almeida Promoção Patrícia Carneiro

Oliveira Centro de Documentação

Paula Braga Design Gráfico João Faria, João Guedes Fotografia

e Realização Vídeo João Tuna

Relações Públicas Luísa Corte-Real Assistente Rosalina Babo Frente

de Casa Fernando Camecelha

Coordenação de Assistência de Sala

Jorge Rebelo (TNSJ), Patrícia

Oliveira (TeCA) Coordenação

de Bilheteira Sónia Silva (TNSJ),

Patrícia Oliveira (TeCA) Bilheteiras

Fátima Tavares, Manuela

Albuquerque, Sérgio Silva

Merchandising Luísa Archer Fiscal

de Sala José Pêra Bar Júlia Batista

pelouro do planeamento e controlo de gestão Francisca Carneiro FernandesCoordenação de Sistemas

de Informação Sílvio Pinhal Assistente Susana de Brito

Informática Paulo Veiga

direcção de contabilidade e controlo de gestão Domingos Costa, Ana Roxo, Carlos Magalhães,

Fernando Neves, Goretti Sampaio,

Helena Carvalho

RetRatos PeLa seguinte oRdem ricardo pais, Fabio iaquone,

luca Attilii, Mário laginha,

paulo ribeiro, Nuno lacerda lopes,

Bernardo Monteiro, rui simão,

Francisco leal, João Henriques,

diogo clemente, Manuel tur,

José Manuel Barreto, raquel tavares,

Emília silvestre, pedro Almendra,

pedro Frias, carla ribeiro, Francisco

rousseau, Mário Franco, carlos

piçarra Alves, Miguel Amaral e paulo

Faria de carvalho

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ficha técnica tnsj

Coordenação de produção Maria João TeixeiraAssistência de produção Eunice Basto, Maria do Céu Soares, Mónica RochaDirecção técnica Carlos Miguel ChavesDirecção de palco Rui SimãoDirecção de cena Pedro GuimarãesCenografia Teresa Grácio (Coor de-

nação); Josué Maia (Construção)

Guarda-roupa e adereços

Elisabete Leão (Coordenação); Teresa Batista (Assistência);

Celeste Marinho (Mestra-costurei-

ra); Adelaide Marinho, Esperança Sousa, Nazaré Fernandes, Maria Alice Vale, Virgínia Pereira (Costureiras); Isabel Pereira (Adereços de guarda-roupa); Dora Pereira, Guilherme Monteiro

(Adereços); Ana Novais (Pesquisa

de materiais)

Luz Filipe Pinheiro (Coordenação), José Carlos Cunha, José RodriguesMaquinaria Filipe Silva (Coorde-

nação), Joaquim Marques, Paulo FerreiraSom Francisco Leal (Coordenação),

Joel Azevedo, Nuno CorreiaVídeo Fernando CostaMaquilhagem Marla SantosFotografia João Tuna

edição Departamento de Edições do TNSJCoordenação Pedro SobradoDocumentação Paula BragaDesign gráfico FBA.Fotografia Fabio Iaquone/ Luca Attilii (imagens de vídeo),

João Tuna (retratos)

Impressão Gráfica Maiadouro

teatro nacional são joão

Praça da Batalha

4000-102 Porto

T 22 340 19 00

F 22 208 83 03

teatro carlos alberto

Rua das Oliveiras, 43

4050-449 Porto

T 22 340 19 00

F 22 339 50 69

mosteiro de são bento da vitória

Rua de São Bento da Vitória

4050-543 Porto

T 22 340 19 00

F 22 339 30 39

www.tnsj.pt

[email protected]

agradecimentos

Teatro Municipal de Almada

Mr. Piano

Pianos Rui Macedo

Direcção Regional de Agricultura

de Entre-Douro e Minho

(Eng. Costa Leme, Eng.a Zulmira

Lopes, Carolina Teles, Maria Emília

Oliveira, Joaquim Ferreira)

Museu da Rádio (Dr. Paulo

Figueiredo, Manuel Lopes)

Papelaria Progresso

Docapesca (Dr. Vasco Fernandes,

Dr.a Elisabete Almeida e Silva,

José Adriano)

Junta de Freguesia de Vairão,

Vila do Conde (Serafim Fernandes)

Alina Maria Pontes, Unipessoal Lda.

(Alina Pontes, Lurdes Azevedo,

Patrícia Azevedo, Conceição Bela,

Albertina Oliveira, São Faria, Maria

José Gomes, Emília Costa, Delmira

Trindade, Susana Almeida, Fátima

Serra, Alice Silva)

Hotel D. Henrique (João Moreira)

Assírio & Alvim

Polícia de Segurança Pública

parceiros media apoios à divulgação apoios

Não é permitido filmar, gravar

ou fotografar durante o espectáculo.

O uso de telemóveis, pagers ou reló-

gios com sinal sonoro é incómodo,

tanto para os intérpretes como para

os espectadores.

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o vendedoR de PeixeErnst Jünger

PONTA DELGADA

Os Açores – uma cadeia de vulcões que se eleva no bordo extremo da Europa. Desde manhã cedo que ando – pelos jardins, nos quais o olhar descobre as flores de um mundo novo, pelos campos que são circundados por muros de lava escura, e pela floresta alta de loureiros. Só quando o sol se en-contrava a pique é que regressei ao porto.As ruas encontravam-se silenciosas à luz do meio--dia; só ao longe ouvi um chamamento cheio de alegria, frequentemente repetido, e senti vonta-de de o seguir. Em breve vi um homem andrajoso, que trazia uma carga de peixes já completamente inertes pelos altos e baixos das ruelas estreitas e adormecidas, que mal tinham uma sombra apesar de um dragoeiro e de uma araucária. Aproximei-me por detrás, sem que ele me visse, e senti prazer em escutar o seu apelo magnífico e musical. Ele gritava uma palavra portuguesa que me era desco-nhecida, talvez se tratasse do nome dos peixes que

transportava. Mas pareceu-me que ele acrescenta-va a esta palavra qualquer coisa em voz bastante baixa; e assim aproximei-me tanto dele que era como a sua sombra.Na realidade, depois de ele ter acabado de lançar o seu apelo sonoro, ouvi-o murmurar ainda num sussurro qualquer coisa que era talvez uma jacula-tória ou praga de cansaço. Pois ninguém saía das casas, nem nenhuma janela se abria.Andámos assim pelas ruelas escaldantes durante bastante tempo, para oferecer peixes que nin-guém queria. E durante muito tempo, escutei as suas duas vozes, aquela que ressoava ao longe, exuberante e apregoadora, e a outra, o monólogo baixo e desesperado. Segui-o deste modo com uma curiosidade ávida, pois sentia bem que aqui já não se tratava de peixes, mas sim que ouvia sobre esta ilha perdida o canto do homem – a sua canção simultaneamente em voz alta, vangloriando-se, e em voz baixa, suplicando.

In O Coração Aventuroso (1938). Trad. Cristina Pontes.

Lisboa: Cotovia, 1991, p. 186-187.

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