Programa de Tópicos - Serge Gruzinski
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7/24/2019 Programa de Tpicos - Serge Gruzinski
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Universidade Federal do ParPrograma de Ps-graduao em Histria
Programa de curso (45 horas)
Turma de 2014 (Mestrado/Doutorado) Agosto a Outubro de 2014
Da histria colonial histria global:
a mundializao ibrica e a histria da Amaznia (sculos XVI-XXI)
Prof. Dr. Serge GruzinskiEcole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Frana)Princeton University (EUA)
Introduo
Que histria escrever no contexto de um mundo globalizado quando as abordagens nacionais
e continentais tornam-se insuficientes para alimentar a reflexo sobre o passado e o mundo
contemporneo? Consideraremos primeiro o caminho metodolgico aberto pelos estudos sobre
mestiagens, logo analisaremos as questes especificas colocadas por uma abordagem
sistematicamente luso-espanhola o laboratrio imperial constitudo pela Unio das coroas
(1580-1640)antes de centrarmo-nos sobre o caso amaznico.
A antropologia histrica e a histria global: a perspectiva das mestiagens
Novos paradigmas historiogrficos: os limites da World Historye das histrias conectadas;
o caminho da histria global; a herana da antropologia histrica.
O estudo da formao das sociedades coloniais nos leva a estudar os processos de
mestiagem e a explorar horizontes que implicam pelo menos quatro continentes. No livro O
pensamento mestio, partimos de textos e imagens para mostrar de que maneira a construo
social, poltica e cultural no Novo Mundo mobilizou dinmicas europeias, amerndias, africanas
e asiticas que interagiram nos espaos americanos durante vrios sculos.
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abordagem global dos mundos ibricos ajuda a reconstituir as dinmicas que animavam os
novos espaos percorridos pelas naves ibricas tanto no Atlntico quanto no Pacfico. Convm
lembrar que uma das manifestaes cruciais da modernidade europeia consistiu em abrir rotas
transformando o globo numa rede, cada vez mais densa, de movimentos de dinheiro,
mercadorias, crenas e ideias.
Tentaremos explorar aqui os papis respectivos e complementares da Amaznia, porta do
Peru, da Flrida porta do serto norte-americanoe caminho setentrional para a sia, e das
Filipinas, porta da China. Colocaremos os trs casos no contexto de uma expanso ibrica
que procurou de maneira sistemtica identificar e desenvolver vias estratgicas para estabelecer
redes de comrcio, monopolizar circulaes continentais e ocenicas e fortalecer bases de
invaso militarCuba para o Mxico no Caribe, Malaca na Indonesia para a China, a Flrida
e o Gro Par e Maranho frente aos intrusos franceses, holandeses e ingleses.
A Amaznia Porta do Peru
Vejamos agora como a histria da bacia amaznica pode ser lida na mesma perspectiva. A
carta do cronista Gonzalo Fernndez de Oviedo ao cardeal Bembo (1543) colocou muito cedo
a zona do rio das Amazonas num contexto planetrio, mas o fez privilegiando o ngulo da rota
fluvial, falando da navigazione del grandssimo fiume Maragnon. Considerou que a proezaera uma coisa nova para os cristos e per se to grande e maravilhosa. A navegao sobre o
rio aparece to importante quanto a circum-navegao que fez a nave Vittoria, carregada com
os sobreviventes da expedio de Magalhes. O cronista que escreve de Santo Domingo para
Veneza insiste sobre os fabulosos recursos da zona percorrida: a canela (que compara com a
canela asitica) e o ouro to cobiado. Cabe observar que a preocupao por esta parte do
mundo foi exatamente contempornea das expedies para a Flrida e as ilhas Filipinas.
Escreve o cronista Lpez de Gmara :
El ro de Orellana, si es como dicen, es el mayor ro de las Indias y de todoel mundo, aunque metamos entre ellos al Nilo. Unos lo llaman mar Dulce, y
le ponen de boca cincuenta y ms leguas; otros afirman ser el mismo queMaran, diciendo que nace en Quito, cerca de Mullubamba.1
Com o descobrimento das fabulosas minas peruanas (1547), o rio e a bacia cobrem uma
importncia sem precedente.E alimentam esperanas que atraem muitas naes europeias. No
1Francisco Lpez de Gmara,Historia de las Indias, Antwerpia, Martn Nucio, 1554, cap. LXXXVI
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No entanto nos anos 1640 o panorama poltico muda por completo. A regio deixa de ser
um espao de rivalidades constantes entre as potncias europias. A Inglaterra, a Frana e a
Holanda se retiram da zona e dirigem os seus olhos e navios para outros horizontes. A
Restaurao portuguesa acabou com os sonhos de navegao entre o Peru e o Par.
Porm no se esgotou a capacidade da regio para alimentar projetos planetrios. Ao
contrrio, carregou-se de um potencial de esperanas e ameaas metafsicas para os espritos
desejosos de conhecer a histria do futuro. Em Camet, em 1659, o padre Antnio Vieira
redige as esperanasde Portugal, famoso programa anunciador do Quinto imprio. Em 1661,
o mesmo Vieira denuncia a existncia no Gro Par da ptria do Anticristo: o teatro das
palavras em Vieira e a teatralizao do universo, no barroco em geral, fizeram do Gro Par o
locus do fim dos tempos.6Estes episdios no so nada anedticos, pois, por uma parte, nos
lembram o papel constante que tiveram as esperanas messinicas e milenaristas relacionadas
Amrica na expanso ibrica e na difuso duma conscincia-mundo: desde Cristovo
Colombo at Frey Jaboato, passando pelo limenho Francisco de la Cruz e os apstolos
franciscanos do Mxico.7Ao mesmo tempo vemos como a Amaznia de porta do Perutorna-
se porta do cu ou do inferno segundo Vieira.
Na verdade, esta poderosa dimenso imaginria representa outro trao que liga a regio
amaznica com a Flrida e as Filipinas numa histria global do Novo Mundo, a capacidade de
despertar sonhos de riquezas ilimitadas e de salvao da humanidade.
Como escrever uma histria global da Amaznia
Podemos contar a histria da Amaznia desde Belm ou desde Manaus. Podemos abordla
desde Braslia ou de qualquer outra parte do Brasil. O que pretendemos fazer aqui distinto.
Nos queremos estud-la desde fora, como parte de uma histria internacional e mesmo mundial.
Hoje, na mdia, fala-se muito da globalizao, insistindo sobre as relaes, os laos que se tecem
entre todas as partes do globo. Se sabe menos que a Amaznia foi uma das zonas nas quais
diferentes pases e distintas sociedades do mundo comearam a encontrar-se e a conectar-se.
Pois bem, desde o sculo XVI, a Amaznia cristalizou a ateno, nunca desinteressada, das
naes europeias que viram nela uma zona chave do globo que estavam descobrindo,
explorando e colonizando.
6Geraldo Mrtires Coelho, A ptria do Anticristo ; a expulso dos jesuitas do Maranho e Gro Par eo mesianismo milenrista de Vieira,Luzo-Brazilian Review, XXXVII, 2000, p. 29.
7Serge Gruzinski, Qu horas sol, no outro lado ?, Belo Horizonte, Autntica, 2012.
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Porque insistir tanto sobre a dimenso global do passado da regio? Como dar conta da
relevncia deste lugar to privilegiado e ameaado sem entender a singularidade do seu destino
histrico? No passado a canela, as drogas do serto, a mo de obra indgena barata j que
escrava atraram colonos, empresas e estados para a Amaznia. A regio sempre teve uma
existncia fora dela mesma: os espanhis do sculo XVI sonhavam com as espcies e as
amazonas da floresta, os ingleses esperavam chegar ao Dourado, os portugueses do sculo XVII
achavam que encontrariam produtos facilmente aproveitveis, enquanto os jesutas acreditavam
que aqui estava a base do quinto imprio No sculo XIX, os europeus no podiam fazer sem
a borracha e hoje os metais raros e a diversidade biolgica alimentam a cobia do resto do
planeta.
Esta outra histria fica pouco conhecida. Para muitos Brasileiros, a Amaznia s uma
periferia do pas, uma regio extica, distante e pobre que no se visita, em grande parte coberta
pela floresta. Para o resto do mundo, a Amaznia exclusivamente conhecida como uma terra
de ndios onde reina ainda uma natureza virgem, mesmo se muito ameaada pelo
desmatamento, pelos garimpeiros e pela cobia das grandes empresas multinacionais. Todos
esquecem que a partir do momento em que os Europeus tiveram conhecimento, mesmo se muito
superficial e distante, desta regio, a Amaznia chegou a ocupar um lugar singular na histria
da Amrica e do mundo. Um lugar que desde aquele tempo no perdeu nunca.
Bibliografia
Serge Gruzinski.A Guerra das imagens. So Paulo: Companhia das Letras, 2006.
. O pensamento mestio. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.
. Que horas so l, no outro lado? Amrica e Isl no limiar da poca moderna. Belo
Horizonte: Autntica, 2012.
.Las cuatro partes del mundo. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 2011.. From The Matrix to Campanella: cultural hybrids and globalization.European Review,
vol. 14, issue 1 (2006), pp 111-127.
A.J.R. Russel-Wood. Um mundo em movimento: os portugueses na Africa, Asia e Amrica
(1415-1808). Miraflores: DIFEL, 1998
Peter Sloterdijk.Esferas II. Madrid: Siruela, 2004, tomo II.
Carl Schmitt.El nomos de la tierra. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1979.