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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS ÂNGELA KROETZ DOS SANTOS IDENTIDADES ENTRE LÍNGUAS E CULTURAS: VOZES E OLHARES EM WALACHAI Porto Alegre 2016

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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

ÂNGELA KROETZ DOS SANTOS

IDENTIDADES ENTRE LÍNGUAS E CULTURAS: VOZES E OLHARES EM

WALACHAI

Porto Alegre

2016

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ÂNGELA KROETZ DOS SANTOS

IDENTIDADES ENTRE LÍNGUAS E CULTURAS: VOZES E OLHARES EM

WALACHAI

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro Universitário Ritter dos Reis como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras.

Orientadora: Profa. Dra. Valéria Brisolara

Porto Alegre

2016

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Ficha catalográfica elaborada no Setor de Processamento Técnico da Biblioteca

Dr. Romeu Ritter dos Reis

S237i

Santos, Ângela Kroetz dos.

Identidades ente línguas e culturas: vozes e olhares em

Walachai / Ângela kroetz dos Santos – 2016.

145 f. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Letras) – Centro Universitário Ritter dos Reis, Faculdade de Letras, Porto Alegre - RS, 2016.

Orientador: Profª. Dra. Valeria Silveira Brisolara

1. Literatura. 2. Cultura. 3. Identidade I. Título. II. Brisolara,

Valeria Silveira

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AGRADECIMENTOS

A aventura do mestrado só foi possível com o auxílio de pessoas especiais

que, cada qual à sua maneira, contribuíram para que eu conseguisse realizar esse

projeto. Assim, não há como deixar de agradecer a essas pessoas mais do que

especiais, que merecem, neste momento, todo o meu carinho:

À minha querida orientadora, professora Dra. Valéria Brisolara, agradeço por

ter-me “adotado” como orientanda já na metade do curso. Obrigada pela acolhida,

pelo olhar comprometido, pelas palavras de incentivo e pela compreensão. Pode ter

certeza que aprendi muito contigo e que levo o exemplo da pesquisadora e da

pessoa que és;

Aos professores Noeli Reck Maggi e Adail Ubirajara Sobral, por terem

prontamente aceitado participar da banca de qualificação e de defesa desta

dissertação. Obrigada pelas preciosas considerações que certamente enriqueceram

o trabalho;

Às queridas professoras do PPG em Letras da UniRitter, Dinorá, Leny,

Márcia, Neiva, Noeli, Regina, Rejane, Valéria e Vera, pessoas maravilhosas com

quem tive o prazer de compartilhar os dois anos do mestrado. Aprendi muito com

vocês, seja em sala de aula, em conversas informais, nos eventos de que

participamos, nos projetos... Agradeço pela oportunidade da convivência e pelo

carinho com que sempre me receberam;

Aos queridos colegas de mestrado da turma de 2014, pela convivência, pelos

almoços e pelas partilhas de conhecimento em sala de aula. Aprendi muito com

todos vocês! Em especial, agradeço à Yordanna, parceira de todas as horas, e à

Sandra, Lilia, Cris e Beth, pelas conversas no Whatsapp e por todo o apoio nos

momentos cruciais de entrega de trabalhos e da dissertação;

À CAPES/FAPERGS, pela bolsa de estudos que possibilitou a realização

deste projeto;

Aos amigos que compartilharam comigo esses dois anos de estudos, sempre

me incentivando e fazendo com que eu não desanimasse com as dificuldades. Em

especial, a Cleverson, Grazi, Priscila, Eduardo, Dani, Mônica, Alexandre, Milla,

Adriana e Esequiel, irmãos que a vida me deu. À Mônica um agradecimento muito

especial por ter realizado a leitura atenta desta dissertação. Vocês são muito

especiais para mim!

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À minha irmã e companheira de todas as horas, Isabel, muito obrigada por

existires e por me apoiar incondicionalmente. Obrigada pelas conversas, pelo amor,

pela partilha de vida. Amo-te muito!

Aos meus maravilhosos sobrinhos e afilhados, Nati, Eric e Nicolas... vocês

são uma benção! Obrigada pelas brincadeiras, pelos sorrisos, pela convivência tão

bacana que temos sempre que nos encontramos. Estar perto de vocês é bom

demais... E aos meus queridíssimos afilhados, que fazem minha vida mais colorida:

André, Larissa, Amanda e Arthur. Vocês são especiais e iluminados, e cada um, do

seu jeito, me ensina a ser melhor. Amo muito vocês!

Aos meus amados pais, Iria e Ricardo, que não mediram esforços para me

tornar quem hoje sou, fazendo-se presentes quando eu necessitava e também

compreendendo, por vezes, a minha ausência. Muitas vezes, no silêncio, me

ensinaram coisas valorosas. Minhas conquistas sempre serão de vocês também!

Amo vocês infinitamente!

À minha sogra, Anita, e à tia Helena, que sempre me apoiaram e são

exemplos de luta. Obrigada pela preocupação de sempre, pelas ligações, pelo

carinho e pela acolhida. Vocês são muito especiais para mim!

Com muito amor, dedico essa conquista ao meu esposo Rodrigo. Você esteve

ao meu lado todos os dias, me apoiou incondicionalmente, foi mais do que um

companheiro. Nós sabemos que muitas coisas aconteceram nesses dois anos, e

que não foi nada fácil esse percurso. Entretanto, as dificuldades são menores com

você, pois juntos somos melhores e mais fortes. Não há como agradecer o suficiente

pelos teus sacrifícios para que eu pudesse realizar os meus sonhos. Obrigada por

acreditar, antes de mim mesma, nas minhas capacidades! Amo-te para sempre!

Obrigada a Deus pela vida, pelos sonhos, pelas coisas boas e pelas

dificuldades que enfrento e que me fazem ser melhor. Obrigada pelas oportunidades

de crescimento e por estares presente em todos os momentos da minha vida.

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A maior riqueza do homem é sua incompletude.

Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou – eu não aceito.

Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas,

que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 da tarde,

que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.

Perdoai.

Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas.

Manoel de Barros

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RESUMO

As comunidades de imigrantes alemães fundadas em várias regiões brasileiras a partir do início do século XIX são marcadas por traços que mesclam características das culturas brasileira e alemã, a ponto de serem visualizadas e de se autocompreenderem como grupos distintos. Muitas delas vivem em contextos de entre-línguas e entre-culturas, situação que traz marcas para a sua constituição. Com base em tal realidade objetiva-se problematizar, nesta pesquisa, a construção identitária dos habitantes de uma dessas comunidades de colonização alemã, processo que é forjado na tensão que se estabelece nesses contextos interlinguísticos e interculturais que são resultado, em grande parte, das ondas de globalização e de seus desdobramentos. As diversas culturas são produto de hibridização cultural e linguística, de modo que se pode afirmar que são formadas pela alteridade, caracterizando-se por ser resultado de vários “dizeres” e de múltiplas “vozes”. A pesquisa em questão centra-se em uma representação fílmica da localidade de Walachai, povoado fundado em 1829 por imigrantes alemães e ainda hoje habitado por descendentes desses colonizadores. Dessa forma, a análise é realizada com base no documentário Walachai (2009), obra cinematográfica brasileira dirigida e roteirizada por Rejane Zilles, que recolhe impressões dos descendentes de imigrantes que ainda vivem no distrito a respeito da vida, do tempo, da língua, da cultura e da identidade, de modo a instigar o estudo do plurilinguismo que se estabelece nos enunciados apresentados. A realidade de vivência entre-línguas e entre-culturas experienciada pela comunidade teuto-brasileira em questão justifica o trabalho analítico que leva em consideração as falas expressadas no documentário pelos habitantes do lugar. Assim, como procedimento metodológico, efetua-se uma análise dos enunciados registrados no filme, a fim de se evidenciarem marcas culturais e traços identitários resultantes de fenômenos como hibridismo, multilinguismo e plurilinguismo.

Palavras-chave: Língua. Cultura. Identidade/Alteridade. Multilinguismo. Walachai.

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ABSTRACT

German immigrants communities founded in many Brazilian regions since the beginning of the XIX century are marked by features of Brazilian and German cultures, which makes them see and understand themselves as distinct groups. Most of them live in contexts in-between languages and in-between cultures, a situation that constitutes those communities. In this context, the objective of this thesis is to examine the process of identity construction of the habitants of a German community, which is forged by the tension established in interlingual and intercultural contexts, which are the result of the globalization and its unfoldings. Cultures are a product of cultural and linguistic hybridization, and we may say they are constructed by alterity and result from many “calls” and many “voices”. This research focuses on a filmic representation of the Walachai district, founded in 1829 by German immigrants and still inhabited by descendants of the first settlers. Therefore, the analysis focused on the documentary Walachai (2009), a Brazilian film directed and written by Rejane Zilles. She gathered impressions of the immigrant’s descendants that still live in the district about life, time, language, culture and identity, with the aim of investigating plurilingualism present in their utterances. The reality of life between-languages and between-cultures experienced by the German-Brazilian community justified the analysis of the population’s expressions. This way, the methodological procedures include an analysis of utterances produced in the film, in order to evidence cultural marks and identifying features that are the result of phenomena such as hybridism, multilingualism and plurilingualism.

Keywords: Language. Culture. Identity/Alterity. Multilingualism. Walachai.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Foto 1: Placa da Comunidade de Walachai, na entrada do distrito ........................... 57

Foto 2: Livro A História de Walachai (2009) .............................................................. 58

Foto 3: Vista da cidade de Dois Irmãos a partir de Walachai .................................... 60

Foto 4: Estrada de chão batido, na comunidade de Walachai .................................. 61

Foto 5: Antiga casa colonial em que hoje funciona um antiquário ............................. 62

Foto 6: Vista das moradias da comunidade. Em primeiro plano, uma roça familiar .. 63

Foto 7: Igreja de São Nicolau, fundada em 1917 ...................................................... 69

Foto 8: Capa do Filme Walachai ............................................................................... 78

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 10

2 IDENTIDADE, LÍNGUA E CULTURA .................................................................... 18

2.1 IDENTIDADES PÓS-MODERNAS FORJADAS PELA LÍNGUA E PELA

CULTURA: CONSTITUIÇÃO DO HÍBRIDO .............................................................. 18

2.2 TENSÕES ENTRE LÍNGUA MATERNA E ADICIONAL: DO BILINGUISMO AO

MULTILINGUISMO ................................................................................................... 32

2.3 PLURILINGUISMO: ALTERIDADE QUE COMPÕE DISCURSOS ..................... 46

3 CONSTITUIÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL DE WALACHAI ...................................... 57

3.1 HISTÓRIA ........................................................................................................... 58

3.2 ASPECTOS SOCIOCULTURAIS ........................................................................ 61

3.3 RELIGIOSIDADE ................................................................................................ 68

3.4 EDUCAÇÃO ........................................................................................................ 70

3.5 IMIGRANTES ALEMÃES E IDENTIDADE NACIONAL: A PÁTRIA PERDIDA .... 72

4 ASPECTOS METODOLÓGICOS .......................................................................... 75

4.1 FILME DOCUMENTÁRIO ................................................................................... 75

4.2 DOCUMENTÁRIO WALACHAI: CORPUS DE ANÁLISE .................................... 77

4.3 METODOLOGIA DA PESQUISA ........................................................................ 80

4.4 DIMENSÕES DE ANÁLISE ................................................................................. 82

5 DOCUMENTÁRIO WALACHAI: VOZES E OLHARES QUE CONSTITUEM

IDENTIDADES .......................................................................................................... 86

5.1 “ISSO É UMA MISTUREBA AQUI”: VIVER ENTRE-LÍNGUAS NA COMUNIDADE

DE WALACHAI .......................................................................................................... 87

5.2 “O QUE A GENTE FALA NÃO É ALEMÃO NEM BRASILEIRO”:

AUTOCOMPREENSÃO LINGUÍSTICA E (NÃO) PERTENCIMENTO

CONSOLIDADO PELA LÍNGUA ............................................................................... 95

5.3 “NÃO SE APRENDE UMA LÍNGUA POR DECRETO”: TENSÕES ENTRE

LÍNGUA MATERNA E LÍNGUA DO OUTRO ........................................................... 100

5.4 “VOU ENSINAR A MINHA FILHA”: RELAÇÕES DE GÊNERO E TRADIÇÃO

CULTURAL ............................................................................................................. 104

5.5 “OS COLONO, ELES NÃO PRECISAM MUITO DO RELÓGIO”: CONCEPÇÕES

DE VIDA E DE TEMPO EM WALACHAI ................................................................. 111

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5.6 “O MEU LUGAR É AQUI”. PERTENCIMENTO CULTURAL DOS HABITANTES

DE WALACHAI ........................................................................................................ 119

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 125

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 133

APÊNDICE A: ENUNCIADOS DO DOCUMENTÁRIO WALACHAI ....................... 139

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1 INTRODUÇÃO

A compreensão profunda da cultura de um povo acontece quando os limites do cotidiano são rompidos e os fatos

históricos passam a ser melhor conhecidos pelos cidadãos que compõem a sociedade.

(WEFFORT, 1999).

A epígrafe acima, há muito tempo, é significativa para mim. Talvez seja

porque sempre gostei de História, tanto do que ela revela, quanto do que ela

esconde. A História é dinâmica, é origem, é reveladora e, portanto, nos conta. Todos

temos uma história, que a uns interessa mais, a outros menos. Todavia, ela é

essencial para compreendermos a nossa existência e para entendermos muitos dos

elementos que constituem a sociedade em que vivemos. Ainda assim, apesar de ser

reveladora, a História também esconde facetas de nossa vida que não conhecemos,

mas que, apesar disso, nos constituem. Dessa forma, acredito que não podemos

negligenciar a História, muito menos a nossa história, que começou já desde antes

do nosso nascimento e que se escreve todos os dias, ainda que não seja em

páginas de livros.

Posso dizer que a minha história é marcada pela vivência entre línguas e

culturas. Sou descendente de imigrantes alemães, e como tal fui imensamente

influenciada pela cultura germânica do povoado em que meus pais nasceram e onde

muitos de meus familiares continuam vivendo. Ainda hoje, já como município, a

cidadezinha de Santa Maria do Herval parece perdida no tempo. Trata-se de uma

localidade pequena, com hábitos rurais, apesar de estar próxima a centros urbanos,

o que faz com que muitas pessoas que ali residem tenham hábitos híbridos,

marcados tanto pela cultura do interior quanto pela cultura de massa das grandes

cidades. O mesmo processo acontece com a língua: torna-se híbrida ao sofrer e

receber interferências de outras línguas.

Imersa nessa cultura, aprendi as primeiras palavras utilizando um dialeto

alemão. Até os três anos de idade, esse foi o único idioma que falei. Antes de

ingressar na escola, contudo, ensinaram-me a língua portuguesa, para evitar um

choque cultural que pudesse ser penoso. Essa parte de minha história revela o forte

envolvimento que tenho com a cultura germânica e com o dialeto alemão, situação

que muito influenciou a minha própria constituição identitária. Assim, mesmo não

guardando muitas recordações de minha infância e, igualmente, lembrando muito

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pouco sobre o tempo em que eu só falava alemão e, ainda, apesar de ter

praticamente perdido a fluência nesse dialeto, tenho consciência de que as histórias

mais remotas da minha vida me constituem e muito contam sobre quem sou. Várias

dessas histórias me foram contadas pelos outros, de modo que sou constituída pelo

olhar da alteridade de uma cultura híbrida.

Com esse relato inicial, procuro mostrar que o estudo do tema da imigração

alemã e do contexto multicultural e multilíngue que tal processo engendra é

relevante em um âmbito pessoal. Voltando à epígrafe, julgo que é essencial a um

sujeito conhecer a cultura de suas origens para se compreender, e que é igualmente

essencial que os indivíduos de um modo geral vislumbrem o que está além de seu

próprio mundo, porque só na comunhão com as outras culturas é que se tem uma

compreensão mais aguçada das próprias raízes.

É no panorama descrito acima que se insere a presente dissertação, estudo

que tem por base o contexto da imigração alemã no estado do Rio Grande do Sul.

No escopo da pesquisa, procuro contextualizar os processos de construção

identitária dos habitantes da colônia alemã de Walachai, considerando os variados

aspectos culturais, linguísticos e sociais responsáveis pela constituição desse grupo

social. Como objeto de pesquisa, utilizo o documentário Walachai, produção

cinematográfica nacional, de 2009, roteirizada e dirigida por Rejane Zilles,

descendente de imigrantes alemães que viveu na localidade que dá nome ao filme.

Para elaborar o documentário, a diretora voltou ao local de sua infância para

recolher percepções das pessoas que ainda vivem no distrito, a respeito da vida, do

tempo, da língua, da cultura e da identidade. Os enunciados dos habitantes locais

registrados na obra são analisados com a finalidade de se estabelecer possíveis

traços identitários de uma cultura existente no Brasil há quase dois séculos e que

muitos brasileiros ainda desconhecem.

Destaco, com base no postulado de Stübe (2011, p. 38), que “a identidade é

ilusória e só existe como construção imaginária”. Assim, não há como apropriar-se

dela, mas apenas captá-la “por irrupções esporádicas no fio do discurso, quando

inconscientemente resvala, na enunciação, a heterogeneidade do discurso e do

enunciador”. (STÜBE, 2011, p. 38). Dessa forma, a identidade não é palpável,

concreta, e sim subjetiva e, muitas vezes, inconsciente. Por esse motivo, a análise

dos discursos dos sujeitos é matéria relevante nos estudos que procuram elucidar

aspectos identitários de uma comunidade. Com base nesse pressuposto, é por meio

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dos enunciados de uma representação fílmica que, no âmbito deste trabalho,

procuro estudar como emergem traços constitutivos da identidade de uma

determinada comunidade germânica.

Desde o início da era moderna intensificou-se o fluxo intercontinental de

pessoas e de informações, de modo que é impossível que haja culturas puras, isto

é, que não tenham sofrido influência de outras culturas. Tal contexto é amplamente

observado no estado do Rio Grande do Sul, cuja população se caracteriza por ser

um produto híbrido de várias culturas. Essa situação foi fortemente determinada pelo

processo de imigração, que trouxe ao solo gaúcho alemães, italianos, espanhóis e

africanos, que se juntaram aos portugueses e aos índios, dando origem à população

que hoje habita o estado. Com base nessa realidade, busco analisar fenômenos

linguísticos e culturais que podem ser relacionados à imigração, como hibridismo,

multilinguismo e plurilinguismo, verificando como esses fenômenos influenciam a

concepção identitária de um grupo social, que se configura como resultado de vários

“dizeres” e de múltiplas “vozes”.

De um modo geral, os povoados alemães, fundados a partir do início do

século XIX em várias regiões do país, são marcados por traços que mesclam

características das culturas brasileira e alemã, a ponto de serem visualizados e de

se autocompreenderem como grupos à parte. As manifestações culturais e

linguísticas evidenciadas em muitas dessas comunidades distinguem-se a ponto de

causar estranhamento a um visitante não acostumado, que pode imaginar-se

viajando no tempo ao entrar em contato com elas. A fundação de tais núcleos foi

resultado da imigração de europeus ao chamado novo continente, em consequência

dos efeitos nefastos da industrialização. Esse processo, que pode ser entendido

como uma forma de globalização, tornou o Brasil um lar para diversas pessoas que

aportaram no país em busca de uma vida melhor e de condições de sobrevivência.

Diante dessa realidade, é pertinente problematizar elementos identitários dos

germânicos que aqui chegaram. É provável que as primeiras gerações, nascidas no

continente europeu, tenham sofrido com as diferenças culturais e geográficas e com

a distância da pátria de origem. Todavia, os seus descendentes, já nascidos no

Brasil, mas ainda fortemente vinculados à cultura alemã e bastante isolados da

cultura anfitriã, a brasileira, como se sentem em relação à sua identidade nacional?

Como a tensão entre as duas culturas envolvidas em tal processo contribui para a

construção de identidade desses descendentes? É evidente que questões tão

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complexas não podem ser esgotadas no âmbito deste trabalho, entretanto julgo que

elas podem suscitar importantes reflexões ou até mesmo oferecer a possibilidade de

elucidar aspectos relevantes no que concerne ao corpus estudado.

Assim, abordo temas que inter-relacionam identidade linguística, nacional e

social, para chegar ao entendimento do que se configura como hibridismo cultural e

linguístico em comunidades multilíngues. À luz desses conceitos, procuro observar

as interações culturais possibilitadas pela língua, já que ela é um importante

elemento constituidor da identidade de um grupo social. Também explicito

elementos sobre a história da colonização alemã e sobre a constituição de Walachai,

a fim de criar um panorama que facilite a compreensão das características da

comunidade em questão. Nessa perspectiva, também problematizo de que forma os

discursos interculturais que prevalecem na localidade atuam na autocompreensão

identitária dos sujeitos e estabelecem certo preconceito (e até mesmo um

autopreconceito) linguístico sobre/entre esses falantes.

Um ponto basilar para um trabalho acadêmico-científico como o proposto é a

composição do estado da arte da pesquisa. Em consulta feita ao banco de teses da

CAPES1, encontrei vários títulos que versam sobre identidade e alteridade, e alguns

que tratam sobre hibridismo, plurilinguismo, multilinguismo e bilinguismo. Constatei,

entretanto, que nenhum trabalho foi realizado no Brasil sobre o documentário

Walachai e poucos estudos foram efetuados sobre a abordagem dos conceitos de

identidade/alteridade, hibridismo, multilinguismo e plurilinguismo no contexto da

imigração alemã. A seguir, detalho a busca que realizei no referido banco de teses

nacional.

A primeira palavra utilizada como filtro foi “identidade”. A essa consulta

resultaram 4320 registros. Em uma rápida avaliação dos 100 primeiros títulos,

percebi que a maioria dos trabalhos se refere à construção de identidade em obras

literárias ou remete a uma abordagem identitária profissional (como de

professores, por exemplo). Assim, em função do grande número de títulos, optei

por realizar nova consulta utilizando as palavras “identidade étnica”. Nessa

segunda consulta, obtive 134 registros. Analisei os títulos e constatei que mais da

metade se relaciona a trabalhos sobre a cultura indígena (35 títulos) e cultura afro

1 A pesquisa foi realizada, pela primeira vez, no dia 05 de outubro de 2014, repetida no dia 09 de janeiro de 2015 e concluída em 20 de janeiro de 2015. É importante destacar, conforme informa o próprio site de Banco de Teses da CAPES, que os trabalhos disponibilizados datam de 2011 em diante.

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(40 títulos). Encontrei apenas um trabalho que estuda a identidade étnica teuto-

brasileira2. O trabalho em questão é uma pesquisa empírica que utiliza relatos de

vida para analisar o processo de construção de identidade étnica teuto-brasileira

na cidade de São Lourenço do Sul entre a década de 1980 e a atualidade.

(MALTZAHN, 2011). Embora tal estudo tenha sido desenvolvido na área de

História, percebo afinidades com a dissertação que proponho, especialmente

porque faz uso de relatos orais da população para abordar o tema da identidade

em uma comunidade germânica.

A busca que realizei com os termos “identidade alemã” resultou em 17 títulos.

Alguns deles versam sobre gastronomia, literatura, teatro, docência em língua alemã

e outros assuntos, restando apenas um trabalho afim à proposta desta pesquisa3.

Este se trata de um estudo empírico realizado com imigrantes alemães e seus

descendentes sobre a construção do imaginário de brasilidade e sobre o

apagamento da identidade alemã, impostos pela política do Governo Vargas.

(GAELZER, 2012). Tal abordagem também tem afinidade temática com esta

dissertação, já que um dos pontos que discuto é justamente a interdição da língua

alemã sofrida pelos imigrantes durante o Estado Novo. Igualmente, o trabalho de

Gaelzer (2012) também executa uma análise de discursos, focada, entretanto, em

entrevistas realizadas com imigrantes alemães e seus descendentes.

Ao filtro “teuto-brasileiro” resultaram 2 pesquisas, apenas uma afim a este

estudo, porém já anteriormente citada. Já quando pesquisei a expressão “língua

alemã”, constatei que os 52 títulos encontrados versam majoritariamente sobre

tradução e literatura e teatro de língua alemã, não aparecendo nenhum novo título

com afinidade com o tema proposto.

Ao pesquisar o termo “multilinguismo”, localizei 14 trabalhos. Os temas são

bem variados, sendo que se destacam 3 referentes ao ensino da diversidade

linguística, 3 ao contexto indígena, 2 que reportam ao multilinguismo em outros

países cuja língua oficial é a Portuguesa (Moçambique e Timor Leste), e outros 6

2 A referência do trabalho em questão é: MALTZAHN, Paulo Cesar. A Construção da Identidade Étnica Teuto-Brasileira em São Lourenço do Sul (Década de 1980 aos dias atuais). 01/07/2011 335 f. Doutorado em História. Instituição de Ensino: Universidade Federal de Santa Catarina. Biblioteca Depositária: Biblioteca Universitária UFSC 3 A referência do trabalho em questão é: GAELZER, Vejane. Construções Imaginárias e Memória Discursiva de Imigrantes Alemães no Rio Grande do Sul. 01/05/2012. 319 f. Doutorado em Letras. Instituição de Ensino: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Biblioteca Depositária: BSCSH.

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com temáticas diversas, dentre os quais um menciona as crosslinguistic influences4.

Assim, também não foi encontrado trabalho sobre multilinguismo em comunidade de

imigração alemã.

A consulta com o termo “bilinguismo” resultou em 55 registros. Na análise dos

títulos, encontrei a seguinte dinâmica temática: 14 trabalhos versam sobre

bilinguismo no contexto de povos indígenas, e outros 14 abordam bilinguismo e

libras. A seguir, 7 trazem as vantagens do bilinguismo, contextualizando a atuação

do bilinguismo sobre a memória de trabalho. Logo após, aparecem 5 trabalhos sobre

práticas pedagógicas bilíngues e outros 5 sobre aquisição e/ou desenvolvimento

infantil bilíngue. Na sequência, 4 trabalhos abordam o bilinguismo na fronteira. Os

demais títulos abordam temas variados, cada um com uma ocorrência: música e

bilinguismo, bilinguismo em obra literária, bilinguismo e formação de professores,

bilinguismo no contexto português-espanhol, bilinguismo no contexto português-

italiano e bilinguismo no contexto português-alemão5, sendo que identifiquei apenas

este último em área afim à pesquisada. O referido trabalho busca entender quais

são os fatores que estão subjacentes na manutenção e na regressão da língua e da

cultura alemãs no município de Missal, no estado do Paraná. (ROSA, 2011).

Acredito que ao abordar a língua e a cultura alemãs de Walachai pela perspectiva

dos enunciados de um documentário, ainda que indiretamente tangenciarei aspectos

de manutenção e de regressão linguística e cultural.

Quando realizei pesquisa com o termo “plurilinguismo”, surgiram 12 trabalhos.

Nenhum, entretanto, aborda a dinâmica interativa entre as línguas alemã e

portuguesa. O resultado foi igual em relação aos 50 títulos que apareceram na

consulta em que utilizei a expressão “heterogeneidade discursiva”. A pesquisa com o

termo “entre-lugar” resultou em 41 títulos, divididos entre as temáticas de história,

geografia, literatura e educação, o que significa que a maioria dos trabalhos aborda o

lugar físico, territorial, ou ainda, o lugar nas criações literárias.

O termo hibridismo talvez tenha sido o que encontrou resultados mais diversos.

A busca apontou 164 registros envolvendo mais de 15 diferentes áreas do

conhecimento. Percebe-se que se destacam as áreas de educação, artes, música e,

4 Termo que pode ser traduzido por “influência translinguística”. 5 A referência do trabalho em questão é: ROSA, Eliane Kreutz. Fatores de Manutenção e Regressão da Língua e Cultura Alemãs no Município de Missal Paraná. 01/11/2011. 194 f. Mestrado Acadêmico no Programa de Pós-Graduação em Letras. Instituição de Ensino: Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Biblioteca Depositária: Biblioteca Central – UNIOESTE.

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majoritariamente, literatura. Alguns trabalhos mencionam hibridismo cultural e

discorrem sobre identidade, entretanto nenhum deles contextualiza a interação

cultural brasileiro-alemã. Com isso, a busca que efetuei no banco de teses da CAPES

e que rapidamente citei revela que ainda há um vasto campo a ser explorado no que

diz respeito à concepção identitária dos descendentes de imigrantes alemães, que

vivem há quase dois séculos em comunidades do sul do Brasil.

É importante mencionar, ainda, um ponto relevante no que diz respeito às

delimitações do escopo de estudo do presente trabalho. Embora o objeto de

pesquisa seja uma obra cinematográfica, optei por limitar a análise aos enunciados

produzidos e registrados no filme, retirando do escopo de interpretação, dessa

forma, os elementos imagéticos e extraverbais. Entendo que tais elementos muito

contribuem para a construção de sentidos, mas, para utilizá-los, seria necessária

uma abordagem teórica mais aprofundada de conceitos cinematográficos e

semióticos, o que suscitaria questões que certamente desviariam a discussão

principal, ou seja, a construção identitária pelos discursos enunciados.

Com base nos aspectos que apresentei nesse apanhado introdutório, julgo

que além da relevância pessoal já mencionada, a pesquisa também suscita

importantes reflexões para os campos social e científico, já que são abordados

temas atuais como as várias nuances de identidade, a saber, identidade linguística,

nacional e social, além de conceitos como hibridismo, multilinguismo e

plurilinguismo, elementos que constituem as diversas culturas e que alteram

constante e permanentemente as relações intra e interculturas.

Assim, sustento que o objetivo geral desta pesquisa é analisar os enunciados

dos imigrantes alemães e seus descendentes no filme Walachai, identificando os

diálogos interculturais e os sentidos que eles produzem, a fim de reconhecer

possíveis traços identitários que constituem tal população. O objetivo geral é

desmembrado nos seguintes objetivos específicos:

a) problematizar, a partir de uma visão pós-moderna, os temas identidade,

cultura e língua e alguns de seus desdobramentos (hibridismo, multilinguismo e

plurilinguismo), de modo a perceber de que maneira cultura e língua podem ser

elementos constituidores de identidade;

b) contextualizar a constituição histórico-social de Walachai e um panorama

geral da imigração alemã ao sul do Brasil, a fim de embasar a análise do corpus; e

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c) analisar os enunciados do documentário Walachai na perspectiva da

teoria dialógica do discurso, procurando perceber traços identitários que

constituem os descendentes de imigrantes alemães de Walachai em um contexto

de representação cinematográfica documental.

Para alcançar os objetivos propostos, estruturei a dissertação em 6

capítulos, os quais apresento a seguir. Primariamente, na introdução, elenco as

principais motivações pessoais e acadêmico-científicas que originaram o projeto de

pesquisa. Após, esboço o estado da arte do tema, a partir de consulta realizada ao

banco de teses da CAPES. No capítulo 2, intitulado “Identidade, Língua e Cultura”

busco problematizar tais realidades com base em autores da chamada pós-

modernidade, lançando um olhar sobre as várias nuances identitárias do sujeito

dito pós-moderno, bem como sobre a relação desse sujeito com a língua.

No capítulo 3, cujo título é “Constituição Histórico-Social de Walachai”,

abordo aspetos histórico-culturais do povoado de Walachai, a fim de traçar um

panorama da localidade que possa embasar as análises dos enunciados do filme.

No capítulo 4, “Aspectos Metodológicos”, contextualizo a base teórica que envolve

o filme documentário, bem como elementos que concernem à pesquisa qualitativa

que proponho realizar. Apresento, também, as dimensões analíticas sob cuja

sombra se situa a análise dos enunciados fílmicos.

No capítulo 5, “Documentário Walachai: Vozes e Olhares que Constituem

Identidades”, faço uma discussão qualitativa dos enunciados fílmicos na

perspectiva da teoria dialógica do discurso. Por fim, nas considerações finais, faço

as reflexões conclusivas, mostrando os dados mais significativos da análise e a

adequação dos resultados aos objetivos inicialmente propostos.

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2 IDENTIDADE, LÍNGUA E CULTURA

“Se queres ser universal, fala da tua aldeia”. Tolstoi

A epígrafe acima é apresentada no decurso do documentário Walachai, e

expressa a importância de se valorizar as raízes para se encontrar um lugar no

mundo. De fato, independentemente de onde vá, o sujeito carrega consigo, de modo

consciente ou não, uma identidade, uma origem, que está definitivamente gravada

no íntimo de seu ser. Essa identidade, que não é única, de modo que se pode falar

em identidades, é produzida no interior de uma cultura e a partir de uma língua.

Cultura e língua são, pois, elementos que se entrelaçam constituindo identidades.

Nessa perspectiva, para fundamentar esta pesquisa, busca-se inicialmente

problematizar língua, cultura e identidade e seus desdobramentos. A base teórica é

construída pela visão de autores que discutem os temas apontados sob uma

perspectiva que pode ser considerada pós-moderna: Hall (2005), Coracini (2003,

2007a e 2007b, 2011 e 2014), Woodward (2005), Bhabha (2007), Rajagopalan

(1998), Mello (1999, 2010), Derrida (2001), Revuz (1998), Cavallari (2011) e Eckert-

Hoff (2010) e Bakhtin (1990). Por meio da abordagem de concepções desses

teóricos, pretende-se construir um aparato que embase as análises dos enunciados

do filme Walachai e, consequentemente, proporcione entender como a trama do

discurso possibilita perceber traços identitários constitutivos de um grupo social.

2.1 IDENTIDADES PÓS-MODERNAS FORJADAS PELA LÍNGUA E PELA

CULTURA: CONSTITUIÇÃO DO HÍBRIDO

O termo pós-moderno foi usado inicialmente pelo filósofo francês François

Lyotard (1924-1998) para definir “o estado da cultura após as transformações que

afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do final do

século XIX”. (LYOTARD, 1988, p. xv). O autor cita o advento de um conflito entre a

ciência e os relatos, o que resultou em uma situação de incredulidade em relação às

metanarrativas. Isso equivale a dizer que o período contemplado como pós-moderno

(mais ou menos a partir dos anos 60 do século XX) é marcado pela perda de crença

nas visões totalizantes que pautaram parte da história ditando regras políticas e

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éticas à humanidade. Lyotard (1988) explicita que metanarrativas como as filosofias

iluminista e marxista mostraram-se frágeis, motivo pelo qual há, na pós-

modernidade, desconfiança em relação a qualquer discurso que se preste a formar

consensos universais.

Harvey (2010) explicita as características da pós-modernidade contrastando-

as aos princípios do pensamento modernista. Destaca, assim, que enquanto o

moderno universal é ligado ao positivismo, ao tecnocentrismo e ao pensamento

racionalista na busca do “progresso linear”, de “verdades absolutas” e de

“planejamento racional de ordens sociais ideais”, bem como de “padronização do

conhecimento e da produção” (HARVEY, 2010, p. 19), o pós-moderno foge de

padrões e procura redefinir o discurso cultural, científico e filosófico por meio da

heterogeneidade e da diferença, refutando qualquer conceito predeterminado e

totalizante. Dessa forma, assim como os ideais iluministas pautaram a história da

modernidade marcando a cultura, a filosofia, as artes, etc., também a ruptura com as

“doutrinas de igualdade, liberdade, fé na inteligência humana e razão universal”

(HARVEY, 2010, p. 23) e com o ideal do “eterno e imutável” (idem, p. 27) passa a

ser o foco quando, no século XX, a racionalidade iluminista mostra suas

contradições.

A pós-modernidade, quando comparada à modernidade, reage particularmente

ao fato de haver, nesta última, “um único modo correto de representação” das coisas.

(HARVEY, 2010, p. 35-36). Os teóricos pós-modernos admitem, assim, uma

“pluralidade de formações de poder-discurso” ou de “jogos de linguagem” (idem, p. 50)

que dão origem a “determinismos locais” (idem, p. 51). Nessa perspectiva, o pós-

moderno, entre outras características, visualiza a cultura pelo prisma da alteridade,

dando voz a todos os que outrora não podiam falar por si mesmos.

Como consequência dessa nova forma de olhar para a cultura, observam-se

evidentes mudanças nos sujeitos, centradas no deslocamento das identidades antes

consideradas como padrão. Tais transformações são profundas e originam

concepções distintas das tradicionais, rompendo com as estruturas estáveis do que

se pode chamar de velhas identidades. Igualmente, as identidades assumiram

perspectivas plurais, não mais únicas, de modo que se pode perceber a coexistência

de “identidades” na constituição do sujeito pós-moderno.

As mudanças advindas com a pós-modernidade são abordadas por Hall (2005)

ao conceituar identidade. O autor explicita o conceito de identidades múltiplas para se

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referir ao quadro contemporâneo da cultura. O velho sujeito cartesiano, centrado e

estável, perdeu lugar a partir de vários eventos descentralizantes: a teoria do

inconsciente de Freud, a teoria da evolução de Darwin, os estudos linguísticos de

Saussure, a teoria das relações de poder de Foucault, além de movimentos político-

sociais como o feminismo. Todas essas transformações desestruturam a sociedade,

fazendo surgir dúvidas de toda a ordem, terminando por deslocar e fragmentar o

sujeito, que passa a assumir “identidades diferentes em diferentes momentos,

identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente”. (HALL, 2005, p.

13). Sobre esse aspecto, Coracini (2007b, p. 167) discute que se vive em um contexto

em que “reinam as contradições e os conflitos entre o desejo da completude e da

totalidade e a contingência do inefável e do incerto”. Muitos estudos da autora em

questão centram-se na noção de completude que os sujeitos perseguem como um

ideal, objetivo que se encontra cada vez mais distante em função da perda de

referenciais estáveis e definitivos que “asseguravam a existência de um centro –

religioso, filosófico ou cultural”. (CORACINI, 2007b, p. 167).

Para problematizar esse complexo panorama de múltiplas identidades que se

contradizem e se sobrepõem, é preciso, inicialmente, conceituar identidade. Há, na

literatura, uma vasta abordagem do tema, de modo que é relevante delimitar os

conceitos que são pertinentes no âmbito deste trabalho. Primeiramente, Houaiss

(2009) explicita identidade como “conjunto de características que distinguem uma

pessoa ou uma coisa e por meio das quais é possível individualizá-la”. Percebe-se,

pois, o cunho essencialmente individual da identidade. Entretanto, ao lado dessa

noção que particulariza e que permite diferenciar os seres humanos entre si na

medida em que cada um é único, existem também outras facetas identitárias que

atuam no sentido de agrupar sujeitos em torno de objetivos comuns, sugerindo um

pertencimento a uma ou várias culturas.

Dessa forma, seria possível dizer que o sujeito se alia a distintas identidades

individuais e culturais, todas elas em crise e, por isso, deslocadas, itinerantes,

contraditórias e em constante jogo, numa busca incansável e nunca finalizada de

identificação. Por esse motivo, a identidade é “[...] formada e transformada

continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou

interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”. (HALL, 2005, p. 13).

De acordo com Woodward (2005, p. 8), as identidades são marcadas por uma

série de dimensões e adquirem “[...] sentido por meio da linguagem e dos sistemas

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simbólicos pelos quais elas são representadas”. No escopo de seus estudos, a

autora define que a identidade é: a) relacional; b) marcada pela diferença que é, por

sua vez, sustentada pela exclusão; c) marcada por meio de símbolos. Dizer que a

identidade é relacional pressupõe que uma identidade só é o que é em comparação

a outra identidade. Isso determina o caráter exterior de uma identidade, que para

existir precisa de algo “fora dela”: de uma identidade que ela não é. A esse respeito,

Woodward afirma que “a identidade é [...] marcada pela diferença”, que é

“sustentada pela exclusão” (2005, p. 9), de modo que ao possuir determinada

identidade um sujeito deixa de portar outras.

No âmbito da cultura, Woodward (2005) identifica um sistema de significação

que é produzido pelas representações que os próprios indivíduos atribuem ao que

são e ao que experienciam. Assim, por meio de discursos e de sistemas de

representação, os indivíduos podem se posicionar e falar, constituindo posições de

sujeito. Tal representação, segundo a autora, permeia todas as relações sociais e

conduz a processos de identificação que, pode-se dizer, são antes construções

sociais do que determinações essencialistas. Ela explicita que “as posições que

assumimos e com as quais nos identificamos constituem nossas identidades”.

(WOODWARD, 2005, p. 55). Isso significa dizer que as identidades são posições

discursivas.

Dessa forma, por um lado seria possível dizer que, na pós-modernidade, as

identidades são oriundas de situações de identificação, vinculando-se muito mais a

escolhas pessoais do que a antigos padrões historicamente estabelecidos por uma

determinada cultura, e isso faz com que sejam plurais e móveis. Por outro lado,

entretanto, ao caracterizar cultura como “sistemas partilhados de significação”,

Woodward (2005, p. 41) evidencia, ainda, que cada grupo social tem uma forma

única de ver o mundo, o que concede características similares a seus membros.

Nessa perspectiva, a cultura tem autoridade, já que leva os sujeitos a concordarem

com uma determinada estrutura pelo fato de ela já ter sido validada por outros

membros da sociedade. Tal aspecto determina que as escolhas identitárias não são

tão livres assim, precisando ser negociadas no interior da cultura. Nessa

perspectiva, uma identidade é sempre algo em que se investe e que se negocia, a

fim de se tornar aceito em um determinado contexto social.

Para deixar a questão mais complexa, entretanto, quando se trata de

identidade nem tudo faz parte de uma dinâmica de escolha consciente. Conforme

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Woodward (2005), parte importante do processo de investir em determinada

identidade está situada na subjetividade. A subjetividade “sugere a compreensão

que temos sobre o nosso eu”, “envolve nossos sentimentos e pensamentos mais

pessoais”, incluindo a dimensão inconsciente das estruturas do sujeito. Dessa forma,

pode-se inferir que a subjetividade interfere nas posições identitárias assumidas

pelos indivíduos, de modo que “quaisquer que sejam os conjuntos de significado

construídos pelos discursos, eles só podem ser eficazes se eles nos recrutam como

sujeitos”. (WOODWARD, 2005, p. 55). Nessa perspectiva,

ocupar uma posição-de-sujeito determinada como, por exemplo, a de cidadão patriótico, não é uma questão simplesmente de escolha pessoal consciente; somos, na verdade, recrutados para aquela posição ao reconhecê-la por meio de um sistema de representação. (WOODWARD, 2005, p. 61).

Seguindo essa linha de raciocínio, talvez fosse possível dizer que, na

construção de identidades, parte do processo é determinada por escolhas

conscientes motivadas pelo meio social, e outra parte, ainda, é definida por escolhas

conscientes de âmbito pessoal. Por fim, mas não menos importante, uma última

parte é estabelecida de forma inconsciente, de modo que nem tudo está ao alcance

do próprio sujeito, que, nesse plano, está à mercê de forças que vão além do seu

controle.

Nessa direção, Woodward (2005) aponta contribuições da psicanálise para

seguir com suas reflexões. Como ela, outros teóricos também apontam a teoria

lacaniana do inconsciente estruturado como linguagem como relevante para o

estudo da subjetividade. Aqui é essencial retomar, conforme já citado, que o

princípio do inconsciente (postulado por Freud e amplamente abordado por Lacan) é

considerado um dos importantes eventos descentralizantes do homem em relação

às suas escolhas que acabaram por abalar a cristalizada imagem do homem

cartesiano centrado e unificado. Nessa perspectiva, o entendimento do homem

como um ser dividido em consciente e inconsciente, ou seja, não completamente

capaz de controlar o seu ser pelo simples fato de não poder acessar uma parte de si

(o inconsciente), nas palavras de Hall (2005, p. 36), “arrasa com o conceito do

sujeito cognoscente e racional provido de uma identidade fixa e unificada – o ‘penso,

logo existo’, do sujeito de Descartes”. Nesse sentido, a psicanálise é utilizada como

um referencial epistemológico que pode auxiliar na compreensão das reflexões

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motivadas pelo tema desta dissertação. Assim, a seguir, explicitam-se brevemente

algumas ideias postuladas por Lacan.

Para Lacan, o sujeito é estruturalmente clivado, o que equivale a dizer que ele

é dividido em consciente e inconsciente, sendo, constitutivamente, um sujeito da

falta, eternamente em busca da completude, da unificação de seu ser. Para explicar

de onde vem essa falta que constitui o ser humano, Lacan argumenta que uma

criança exerce, em relação à mãe, o papel do falo, ou seja, ocupa o lugar de algo

que a genitora não tem. A criança cumpre, nesse sentido, uma função de completar

a falta da mãe. Pela perspectiva da criança, esta se compreende como parte da mãe

e, portanto, ocupa o lugar do falo, completando-a naquilo que lhe falta. Perto do

chamado “estádio do espelho”6, o infante passa, aos poucos, a reconhecer-se como

ser independente, distinguindo-se da imagem da mãe e, portanto, adquirindo

autonomia em relação a ela e conquistando a imagem do seu próprio corpo,

alcançando uma identidade. Nesse momento, o pai interfere na relação mãe-filho a

fim de privar tanto a mãe de possuir esse objeto que a completa, a saber, o filho,

quanto o próprio filho de ser esse objeto que completa a mãe. Esse episódio é vivido

“pela criança sob a forma de interdição e de frustração”, de modo que o pai se torna

aquele que interdita a satisfação do impulso, assumindo, portanto, um papel

castrador. Nessa perspectiva, o pai interdita, frustra e priva a criança da mãe e vice-

versa. (DOR, 1989).

Dessa saudável intervenção do pai na relação mãe e filho, que orienta a

entrada da criança no universo simbólico, restam fortes desejos insatisfeitos e

reprimidos que se depositam no inconsciente e se tornam censurados pela mente

consciente, podendo ser acessados somente por meio da leitura do inconsciente

(WOODWARD, 2005). Isso se dá por meio de intervenção psicanalítica ou ainda de

sonhos, atos falhos, chistes e, especialmente, de associações que a pessoa elabora

por meio da fala. Para Lacan, “é na palavra que o inconsciente encontra sua

articulação essencial” (DOR, 1989, p. 12). Dessa forma, é possível dizer que a

palavra revela o desconforto e a dor do sujeito, assim como a interdição do pai. O

desejo do sujeito de pertencer a uma comunidade, e de falar a sua língua, é uma

forma de reeditar as primeiras imagens introjetadas e de buscar alternativas para os

6 Criada por Jacques Lacan em 1936, a expressão “estádio do espelho” designa um momento da evolução psíquica humana que ocorre entre os 6 e os 18 meses de idade. Durante esse período, a criança antecipa o domínio da unidade corporal por meio de uma identificação com a imagem do semelhante e da percepção da sua própria imagem no espelho. (LAPLANCHE; PONTALIS, 1992).

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conflitos experimentados nessa comunidade. Tal desejo pode ter origem na

interdição e também na frustração de ter acesso limitado a determinado espaço e

tempo na vida dos sujeitos que constituem a história desse grupo social. Assim, tem-

se que a interdição instaura a falta, e que a falta instaura o desejo.

Conforme Joel Dor (1989, p. 83), “a função paterna é operatória, determinando,

para a criança, seu próprio acesso ao simbólico. A falta significada pela castração é,

antes de tudo, como formula Lacan, uma dívida simbólica”. Para Coracini (2003), os

sentimentos contraditórios que acompanham essa difícil passagem para o mundo

simbólico deixam o sujeito cindido, fragmentado, dividido por toda vida. De fato, de

acordo com Woodward (2005, p. 63), “para Lacan, o sujeito unificado é sempre um

mito”.

Apesar disso, como é na fase do “estádio do espelho” que se dá o início da

formação da identidade a partir de uma percepção corporal unificada,

desencadeia-se, no sujeito, um sentimento ilusório de ser integrado e unificado. A

criança passa a enxergar-se como um ser distinto de outro, passa a ter uma

identidade própria que, contudo, só se afirma pela existência do outro, do diferente,

respaldando a percepção de Woodward acerca do fato de que a identidade é

marcada pela diferença. Tal reconhecimento é, contudo, segundo Lacan,

“imaginário” (DOR, 1989, p. 80) e pressupõe um “destino de alienação no

imaginário”, já que “o re-conhecimento de si a partir da imagem do espelho efetua-

se – por razões óticas – a partir de índices exteriores e simetricamente invertidos”,

de modo que também a suposta unidade do corpo é exterior ao sujeito e invertida.

Assim, conforme Coracini (2003, p. 203), “embora partido, cindido, o sujeito

vivencia sua própria identidade como se ela estivesse reunida e resolvida ou

unificada”, o que resulta “da fantasia de si mesmo como uma pessoa unificada,

formada na fase do espelho”. Esse processo vital operado no interior do sujeito

marca-o profundamente e passa a orientar a sua subjetividade. Entretanto, tal

realidade dilui-se, restando apenas a ilusão de uma identidade unificada.

Esse sistema complexo que determina a constituição identitária do indivíduo

pode ser percebido, também, no que concerne às identidades nacionais. Ao

vincular-se a uma identidade nacional, o sujeito mais uma vez procede a uma

tentativa de unificação, buscando a completude em uma identidade cultural que o

acolha. Nesse contexto, Hall busca averiguar como o sujeito fragmentado da

atualidade se posiciona em termos de identidades culturais, considerando, neste

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ínterim, as identidades nacionais, já que também estas, antes unificadas,

homogêneas, centradas e coesas “estão agora deslocadas pelos processos de

globalização”. (HALL, 2005, p. 50). É condição amplamente aceita o fato de que a

nacionalidade é elemento constituidor primário da identidade cultural de um

indivíduo. Em razão disso, nasce-se brasileiro, americano, português, etc. Tal

identidade nacional é importante porque, segundo Scruton (1986, p. 156),

A condição do homem exige que o indivíduo, embora exista e aja como um ser autônomo, faça isso somente porque pode primeiramente identificar a si mesmo como algo mais amplo – como um membro de uma sociedade, grupo, classe, estado ou nação [...] que ele reconhece como seu lar.

Gellner (1983, p. 6) explicita que “Ter uma nação não é um atributo inerente

da humanidade, mas aparece, agora, como tal”, numa menção à realidade de que,

na modernidade, parece essencial que o homem tenha uma nacionalidade. Nessa

perspectiva, Hall (2005, p. 48) argumenta que “as identidades nacionais não são

coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior

da representação”. Isso significa que por trás da nacionalidade há uma ideia de

nação, uma construção simbólica que define que tais atributos constituem, por

exemplo, a brasilidade. Ao conceito de nação está intrínseco o poder de gerar “um

sentimento de identidade e lealdade”, de modo que se extrapola o sentido político,

afirmando-se um “sistema de representação cultural”. (HALL, 2005, p. 49). E essas

identidades nacionais acabam por criar fronteiras fixas, estabelecendo a dicotomia

entre o que é conhecido e o que é estranho. (BHABHA, 2007). Nesse sentido, Hall

(2005) explicita que uma nação procura elementos em torno dos quais se organiza

para criar uma identidade própria: língua única vernacular, cultura homogênea e

manutenção de instituições culturais como o sistema educacional nacional.

Ao abordar a identidade nacional como algo igualmente imaginado, tal como

as identidades individuais, Hall (2005) explicita cinco elementos principais que

possibilitam essa articulação: a) a existência da narrativa da nação, ou seja, de uma

história que passa de geração em geração, conectando cada indivíduo ao destino

nacional; b) a ênfase nas origens, na tradição e no caráter imutável da

essencialidade nacional; c) a invenção da tradição, ou seja, a construção de um

conjunto de valores e normas pela repetição de comportamentos tidos como

adequados para representar uma cultura; d) o mito fundacional, que procura

localizar a origem da nação; e e) a ideia de um povo puro, original. A partir desses

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princípios, é possível visualizar que a existência de uma cultura nacional não é um

conceito atual, mas que perpassa a história, a ponto de haver uma inter-relação

entre as glórias de um passado épico e de um futuro promissor que se deseja para a

pátria/nação. (HALL, 2005).

Hall (2005, p. 59) respalda, com base em Gellner, que há um impulso de

unificação das culturas nacionais, ou seja, uma tendência que procura colocar sob o

prisma da identidade cultural membros de diferentes classes, raças ou gênero, “[...]

para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande família nacional”.

Todavia, essa percepção é ilusória, e, assim, torna-se relevante pensar se as

culturas nacionais e as identidades nacionais que elas constroem são realmente

passíveis de unificação. Sobre esse aspecto, Hall argumenta que “Uma cultura

nacional nunca foi um simples ponto de lealdade, união e identificação simbólica. Ela

também é uma estrutura de poder cultural”. (2005, p. 59).

Para explicar a cultura nacional a partir do poder, Hall (2005) esclarece que a

maioria das nações foi constituída por processos de unificação que resultaram de

conquista violenta, ou seja, por imposição de uma cultura sobre outra. Da mesma

forma, converge para a questão do poder o fato de que as nações ocidentais

modernas exerceram hegemonia cultural sobre os seus colonizados. Assim, as

culturas nacionais “são atravessadas por profundas divisões e diferenças internas

sendo unificadas apenas através do exercício de diferentes formas de poder

cultural”. (HALL, 2005, p. 62).

Bhabha (2007) explora amplamente as relações de dominação e de poder

que estão imbricadas nas narrativas coloniais, explicitando a maneira com que o

discurso colonial cria estereótipos que são tomados como verdades a fim de

respaldar supremacias culturais. Para se fixar, os discursos hegemônicos procuram

negar o que é diferente a partir da recusa do outro, como se ao domesticar o outro

se pudesse apagar a sua ‘marca cultural deficitária’. Entretanto,

as culturas vêm a ser representadas em virtude dos processos de iteração e tradução através dos quais seus significados são endereçados de forma bastante vicária a – por meio de – um Outro. Isto apaga qualquer reivindicação essencialista de uma autenticidade ou pureza inerente de culturas que, quando inscritas no signo naturalístico da consciência simbólica, frequentemente se tornam argumentos políticos a favor da hierarquia e da ascendência de culturas poderosas. (BHABHA, 2007, p. 95).

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Vale ressaltar que Bhabha, para estabelecer a sua tese sobre o discurso

colonial, também menciona o esquema lacaniano do imaginário, explicitando que o

mesmo processo alienante e, portanto, de confronto que se estabelece no indivíduo,

que apenas é completo e inteiro em uma perspectiva ilusória, se manifesta no

estereótipo do discurso colonial, cuja “completude” está sempre ameaçada pela

“falta”. O autor completa que o narcisismo e a agressividade são duas formas de

identificação associadas ao imaginário, as quais “constituem a estratégia dominante

do poder colonial exercida em relação ao estereótipo que, como [...] crença múltipla

e contraditória, reconhece a diferença e simultaneamente a recusa ou mascara”.

(BHABHA, 2007, p. 119).

Ainda de acordo com Bhabha, o hibridismo cultural é uma forma de

enfrentamento do poder colonial. O hibridismo reporta a elementos que “não são

nem o um [...] nem o outro [...] mas algo a mais, que contesta os termos e territórios

de ambos”. (BHABHA, 2007, p. 55). Assim,

[...] o hibridismo colonial não é um problema de genealogia ou identidade entre duas culturas diferentes, que possa então ser resolvido como uma questão de relativismo cultural. O hibridismo é uma problemática de representação e de individuação colonial que reverte os efeitos da recusa colonialista, de modo que outros saberes “negados” se infiltrem no discurso dominante e tornem estranha a base de sua autoridade – suas regras de reconhecimento. (BHABHA, 2007, p. 165).

O excerto acima marca que contra todo o sistema de poder estabelecido

surgem formas de resistência, vozes que tentam se impor a fim de ter legitimado o

seu próprio saber, a sua própria voz, de modo que, apesar de haver um poder

instituído, este não está sozinho, pelo contrário, precisa do outro para existir. A

resistência de uma cultura faz com que o saber da autoridade cultural seja

“destituído de sua presença plena”, e este passa a ser articulado “com as formas de

saberes ‘nativos’ ou confrontados com aqueles sujeitos discriminados que [a

autoridade tem] de governar, mas que já não pode representar”. (BHABHA, 2007, p.

167). Esse permanente jogo entre as relações de poder, que são constantemente

legitimadas, e as forças de resistência, que colocam a autoridade à prova, tornam

“as nações modernas [...], todas, híbridos culturais” (HALL, 2005, p. 62), pode-se

dizer, desde a sua constituição.

A mesma tensão entre força e resistência que se estabelece no processo de

conquista colonial e que acaba por requerer uma negociação entre as culturas

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envolvidas, é observada, com particularidades próprias, no movimento de

globalização. Tal fenômeno surge como um processo de atravessamento de

fronteiras através do qual as distâncias espaciais e temporais diminuem e a

integração entre as diversas culturas torna-se efetiva. Essa interação pode se dar

em vários níveis: cultural, econômico, social, etc. Hall (2005) identifica que a

globalização comprime o espaço-tempo e acelera os processos globais, “de forma

que se sente que o mundo é menor e as distâncias mais curtas, que os eventos em

um determinado lugar têm um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a

grande distância”. (HALL, 2005, p. 69). Assim, como resultado das várias nuances

da globalização, é importante destacar que, na cultura atual, é praticamente

impossível pensar em “lugares fechados”, “etnicamente puros” e “culturalmente

tradicionais”, já que as sociedades da periferia também estão “abertas às influências

culturais ocidentais”. (HALL, 2005, p. 79). Ainda de acordo com o autor, “a periferia

também está vivendo seu efeito pluralizador, embora num ritmo mais lento e

desigual”. (HALL, 2005, p. 80).

Os processos migratórios em várias fases da história da humanidade

influenciaram e ainda vem contribuindo para o hibridismo cultural ao redor do

mundo. Historicamente, houve três ondas de globalização. A primeira relaciona-se

às grandes navegações, lideradas por Portugal e Espanha, a segunda reporta-se à

industrialização, protagonizada pela Inglaterra, e a terceira correlaciona-se ao

mundo pós-segunda guerra mundial, sob o comando dos Estados Unidos.

(KUMARAVADIVELU, 2006).

Como consequência da segunda fase acima exposta, originou-se uma onda

migratória, que pode ser entendida como uma forma de globalização. Esse

movimento trouxe ao continente americano grande massa de europeus que sofriam

com os efeitos nefastos da industrialização, a saber, a miséria, a falta de

qualificação especializada para atuar nas novas indústrias, a quebra da indústria

artesanal doméstica e a falta de terras para os camponeses oriundos da decadente

estrutura feudal. Além disso, como causa das migrações pode-se citar, ainda, a

profunda desestabilização política dos países europeus devido às guerras

napoleônicas (1803-1815) e ao regime ditatorial instalado por Napoleão Bonaparte.

(IMIGRAÇÃO, 2014; BREDEMEIER, 2010). Dessa forma, o Brasil tornou-se, nos

séculos XIX e XX, o lar de diversos grupos sociais, como os germânicos, que

buscavam uma vida melhor ou condições de sobrevivência.

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Em pesquisa realizada por Bredemeier (2010) no Museu da Emigração de

Bremen, na Alemanha, cidade portuária de onde partiram muitos dos emigrantes

europeus no século XIX, “entre 1821 e 1914, 44 milhões de europeus deixaram a

Europa rumo aos Estados Unidos da América, ao Canadá, à Austrália e à América

do Sul”. (BREDEMEIER, 2010, p. 60). A mesma autora ainda indica que cerca de

250.000 imigrantes de fala alemã teriam ingressado no Brasil entre 1824 e 1947. É

importante sublinhar que a Alemanha, até 1871, “não formava uma unidade, e sim

era uma livre associação de inúmeros estados territoriais que compunham o Sacro

Império Romano de Nação Germânica”. (MINISTÉRIO, 2003, p. 64). Assim, os

chamados imigrantes alemães não possuíam nacionalidade alemã, mas prussiana,

bávara, pomerana, etc. O que unia esses imigrantes era o uso que faziam da língua

alemã, ainda que sob a forma de muitos e variados dialetos. Somente em 1871, com

Otto Bismark, foi fundado o Deutsches Reich, ou Império Alemão, por meio de um

processo de unificação dos antigos principados, ducados e condados, o que fez

emergir a Alemanha como nação. Nesse contexto, o uso do termo “alemães” para

designar tais imigrantes pode ser percebido como contraditório, motivo pelo qual

Bredemeier (2010) emprega a expressão “imigrantes de fala alemã” no escopo do

seu trabalho.

É interessante destacar que Bredemeier (2010) procura mostrar uma imagem

diversa da que tradicionalmente a historiografia revela sobre a imigração alemã.

Conforme a autora, os imigrantes configuravam um grupo heterogêneo e não

homogêneo. Com esse intuito, cita Meyer, que argumenta que esses imigrantes

eram oriundos de diferentes regiões e estados, por vezes de diferentes países; muitos deles eram camponeses e servos, outros tantos marginalizados urbanos e excluídos do processo de industrialização que se iniciava; alguns poucos poderiam ser enquadrados como intelectuais em exílio político e, [...], nos primeiros grupos havia muitos indivíduos ‘socialmente indesejáveis’, libertados das prisões sob a condição de que emigrassem. (MEYER, 2000, p. 38).

Com base em tais constatações, percebe-se que os próprios imigrantes

constituíam um grupo heterogêneo entre si, motivo pelo qual é vedada a possibilidade

de as comunidades constituídas por eles serem coesas e unificadas. Tais fatos

tornam o hibridismo cultural uma realidade latente em solo brasileiro. Hall destaca,

ainda, que a globalização contesta e desloca identidades centradas e fechadas,

pluralizando-as, mas, paralelamente, há um movimento contraditório, sendo que

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algumas identidades gravitam ao redor daquilo que Robins chama de ‘Tradição’, tentando recuperar sua pureza anterior e recobrir as unidades e certezas que são sentidas como tendo sido perdidas. Outras aceitam que as identidades estão sujeitas ao plano da história, da política, da representação e da diferença e, assim, é improvável que elas sejam outra vez unitárias ou puras; e essas, consequentemente, gravitam ao redor daquilo que Robins chama de ‘Tradução’. (HALL, 2005, p. 87).

Para um grupo tradicional, a tradução cultural poderia ser entendida,

conforme Bhabha (2007), como subversão da autenticidade da tradição. Nessa

perspectiva, em relação às diversas colônias europeias fundadas no Brasil, é

comum haver uma tensão originada na luta que se estabelece entre a tradição e a

tradução no que diz respeito aos costumes, à língua e ao modo de vida. Segundo

Hall (2005), o conceito de tradução

descreve aquelas formações de identidade que atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades. Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens, e das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas nunca são e serão unificadas no sentido velho, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias “casas”. As pessoas pertencentes a essas culturas híbridas têm sido obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural perdida [...]. Estão irrevogavelmente traduzidas. [...]. As culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidade distintivamente novos produzidos na era da modernidade tardia. (HALL, 2005, p. 88-89).

Com base no disposto, faz-se uma leitura da situação dos imigrantes

germânicos no Brasil e se percebe que eles, ainda hoje, vivem em solo brasileiro a

dicotomia entre a tradição e a tradução, oscilando entre o desejo de conservar ou

recuperar as origens perdidas e a vontade de negociar com a nova cultura,

admitindo que não são um grupo unificado, mas um produto irrevogável de várias

culturas interconectadas.

Esse processo de hibridização que se dá no âmbito da cultura é igualmente

forjado no que diz respeito à língua. Em um contexto de hibridização cultural

aparecem fenômenos como multilinguismo e plurilinguismo, características que

marcam profundamente uma população, já que a língua se configura como um dos

aspectos mais importantes no que concerne à constituição identitária de uma

comunidade. Assim, julga-se pertinente analisar como se configura, em um âmbito

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teórico, a identidade linguística na pós-modernidade. Nessa perspectiva estão

estudos como os de Rajagopalan (1998), que confluem para uma noção de

multilinguismo, abrindo caminho para a multiplicidade das identidades construídas

pela língua.

Nesse sentido, são questionadas as tradicionais abordagens de purismo

linguístico e de monolinguismo. No escopo de seu trabalho, Rajagopalan faz uma

crítica à abordagem cartesiana que a linguística estrutural de Bloomfield e Chomsky

aponta como caminho para uma investigação racional. Para Chomsky, não haveria

“região da mente do nativo que em princípio [fosse] inacessível ao escrutínio

introspectivo”. (RAJAGOPALAN, 1998, p. 32). Vê-se, nessa posição, um descrédito

em relação à teoria do inconsciente, o que torna o falante de uma língua “uma

pessoa plenamente autossuficiente no que se refere aos propósitos da ciência

linguística”. (RAJAGOPALAN, 1998, p. 28). Disso advém a categoria de falante

ideal, de nativo, caracterizando aquele que traz a língua nata, que domina

autenticamente a língua e que, portanto, dificilmente erra. (RAJAGOPALAN, 1998).

O mesmo autor ainda menciona que a linguística, historicamente, tem

procurado resguardar as línguas, sentindo-se ameaçada pelos “fenômenos que de

algum modo não se encaixam em seu acalentado modelo de identidade pura,

perfeita e plenamente totalizada”. (RAJAGOPALAN, 1998, p. 38). Nesse ínterim,

discute as questões de interesses e de poder que rondam toda a discussão

linguística, de modo a excluir todos aqueles que não se enquadram em um

determinado padrão de aceitabilidade. Assim, a identidade linguística reveste-se de

ideologia, ditando o que é socialmente aceitável ou não, bem como o que é culto e o

que não é, tornando-se um mecanismo de exclusão social. No escopo desses

pensamentos, o autor refere acreditar que é justamente a identidade múltipla de uma

língua que lhe confere o status de universal. Nesse sentido, a hibridização linguística

é a vocação ilimitada das línguas, que se contaminam entre si, vivem em contato

umas com as outras, “criando possibilidades novas e nunca sonhadas”.

(RAJAGOPALAN, 1998, p. 39).

Nessa perspectiva, “a identidade de um indivíduo se constrói na língua e

através dela”, de modo que “o indivíduo não tem uma identidade fixa anterior e fora

da língua”. (RAJAGOPALAN, 1998, p. 41). Dessa forma, no âmbito do pensamento

do autor, não há como separar a língua do indivíduo que a fala, e se esse falante

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está em constante mudança, não se pode sublimar o fluxo da língua, cuja identidade

é interdependente da identidade do sujeito que a fala e vice-versa.

Esta seção procurou abordar as múltiplas nuances da identidade e as novas

posturas assumidas no tocante à identidade na atualidade. Contextualizou-se, pois,

a noção de identidade em um âmbito individual, cultural, nacional e linguístico,

mostrando que as múltiplas identidades que o sujeito manifesta ao longo da vida são

construções imaginárias e, portanto, não palpáveis, mas subjetivas e, por vezes,

inconscientes, devendo sempre ser negociadas no âmbito da cultura.

2.2 TENSÕES ENTRE LÍNGUA MATERNA E ADICIONAL: DO BILINGUISMO AO

MULTILINGUISMO

Em um mundo em constante transformação, o multilinguismo figura como

manifestação linguística decorrente dos processos de colonização e de globalização,

e de seus desdobramentos. Conforme Rajagopalan (1998, p. 41), “a identidade de

um indivíduo se constrói na língua e através dela” e “o indivíduo não tem uma

identidade fixa anterior e fora da língua”, o que equivale a dizer que a língua é um

fator determinante na constituição identitária de um sujeito e de seu grupo social.

Assim, é relevante refletir sobre as tensões que se estabelecem quando há

interação de línguas e culturas, de modo a se problematizar as consequências

advindas dessa situação de habitar um entre-lugar.

Para Bakhtin (1990), a língua é um fato social cujo propósito fundamental é a

necessidade de comunicação. O teórico concentra seus estudos na fala/

enunciação, visto que para ele a interação verbal é a realidade elementar da língua.

Na mesma direção, Mello (1999, p. 23) acentua que “uma língua é um

comportamento social e como tal está intrinsecamente ligada à vida, à cultura e à

história de um povo”. Nessa perspectiva, o papel da língua excede o de instrumento,

tornando-se elemento constitutivo de identidades individuais e sociais e, portanto,

determinando subjetividades e criando singularidades que assemelham ou

diferenciam as culturas umas das outras. Na medida em que as histórias das

culturas se cruzam, intersectam-se também as suas línguas, que se “mesclam, se

misturam em um mesmo território, sem obedecer aos limites geográficos de

fronteiras [...]”. (MELLO, 1999, p. 23).

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Em uma situação de interação cultural, conforme Revuz (1998), estabelece-

se, entre língua materna e línguas adicionais (a autora usa o termo estrangeiras7),

um tensionamento que se situa entre o desejo dos sujeitos de conhecer um outro

lugar e o risco do exílio que isso oferece. Para a autora, a língua adicional é uma

segunda língua, aprendida depois, e tendo como referência uma primeira língua, a

da infância. (REVUZ, 1998). O sujeito só tem acesso à língua adicional porque já

ingressou na linguagem através da primeira língua, a materna. Revuz (1998, p. 215)

pontua que “essa língua chamada ‘materna’ pode não ser a da mãe, [e que] a língua

‘estrangeira’ pode ser familiar, mas elas não serão jamais da mesma ordem”, pois o

status da língua materna é o de onipresença, desencadeando no indivíduo um

sentimento de nunca a ter aprendido, ou seja, de sempre a ter conhecido. No que

tange à língua adicional, ela precisa ser aprendida, sendo, portanto, fruto de um

processo de racionalização. O sujeito nunca passa incólume pelo encontro das

duas, já que a língua adicional traz à tona algo do laço muito específico que ele

mantém com a primeira língua. Nesse sentido, qualquer encontro com outra língua

perturba, questiona e modifica o que está inscrito no sujeito com as palavras da

primeira língua, pois, “muito antes de ser objeto de conhecimento, a língua é o

material fundador [do] psiquismo e [da] vida relacional”. (REVUZ, 1998, p. 217).

Coracini (2014) apresenta as históricas dicotomias adquirir/aprender e

saber/conhecer uma língua, com base nos precursores de tais teorias. Assim, cita

Krashen, que situa a língua materna como um idioma que seria adquirido, sendo que

as demais línguas seriam aprendidas. Segundo essa dinâmica, a língua materna

seria assimilada sem um conhecimento formal, ou seja, “sem que se conheça sua

gramática” (CORACINI, 2014, p. 6) e de modo inconsciente. Já as demais seriam

aprendidas geralmente em contextos formais e de maneira consciente. Completando

essa ideia, conforme Melman (1992 apud CORACINI, 2014), a língua materna seria

aquela que se “sabe” e as demais as que apenas se “conhece”. Nessa perspectiva,

a língua materna seria aquela que ‘conta’ o sujeito, que lhe é intrínseca, enquanto a

língua adicional seria um instrumento de comunicação, impossível de ser assimilada

e, portanto, exterior ao próprio sujeito. Foucault também aponta a mesma dicotomia,

de modo que, para esse teórico, conhecer vislumbra um processo formal e

7 No âmbito desde trabalho optou-se por utilizar a nomenclatura e o conceito de língua adicional. Os motivos dessa escolha são elucidados posteriormente, entretanto cabe destacar que as expressões língua estrangeira e segunda língua só são utilizadas em citações, ou seja, quando são utilizadas as palavras ipsis litteris dos autores pesquisados, em respeito a eles.

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consciente e saber se vincula a processos informais e, portanto, inconscientes.

(CORACINI, 2014).

A visão exposta acima, entretanto, coloca a língua adicional em uma situação

de sujeição, e lhe atribui um papel secundário, de completa dependência em relação

à língua materna e, por isso, tem sido muito questionada. Essa percepção poderia

desestimular a aprendizagem de línguas, uma vez que os sujeitos se sentiriam

sempre incapazes de aprender um outro idioma, considerando-se eternamente

devedores em relação a uma língua-cultura aprendida posteriormente. Nessa

perspectiva, Coracini (2014) cita autores (Noyau, Porquier et al., Deville e Portine e

Pekarek) que deslocam a relação entre conhecer e saber, fazendo cair por terra a

distinção entre aquisição e aprendizagem, ou seja, entre os aspectos conscientes e

inconscientes do aprendizado de uma língua. A própria autora prova, por meio de

pesquisa, que “é possível assimilar uma língua sem passar pelos aspectos formais

da aprendizagem” (CORACINI, 2014, p. 9), evidenciando que há autodidatas que, ao

se servirem de recursos informais, não apenas aprendem uma língua, mas a

assimilam, porque “a língua cultura do outro [entrou neles] pela porta do desejo”.

(CORACINI, 2014, p. 16).

Essa nova abordagem pressupõe que há aspectos subjetivos envolvidos na

aprendizagem de línguas, elementos muitas vezes difíceis de precisar devido à

história peculiar de cada ser humano, mas que, mesmo assim, são fundamentais

para que se entenda a relação particular que cada sujeito tem com uma língua, seja

ela materna ou adicional. Nessa perspectiva, a relação com qualquer língua seria

pautada na aprendizagem, uma vez que até a língua materna precisaria ser

aprendida, evidentemente por meio de dispositivos cognitivos e mecanismos

distintos dos necessários para aprender uma outra língua. Brisolara (2012)

contextualiza a relação que se estabelece entre língua materna e adicional e

explicita, com base em Granger, que a aprendizagem da língua adicional reconfigura

a identidade do sujeito. Da mesma forma, Lantolf (2000, p. 5, tradução da autora)

argumenta que “aprender uma segunda língua, sob certas circunstâncias, pode levar

a mudanças no sistema mental, inclusive no conceito de si mesmo”8.

Nessa perspectiva, seria muito mais apropriado se falar em “Língua Adicional

em substituição [a] língua estrangeira, [o que] indica uma intenção em se pensar a

8 Original: “Learning a second language, under certain circumstances, can lead to the reformation of one’s mental system, including one’s concept of self.”

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respeito dos processos de negociação identitária envolvidos no aprendizado de uma

nova língua”. (BRISOLARA, 2012, p. 2144). Quando se fala em língua estrangeira,

subentende-se um distanciamento, uma lacuna quase inatingível, uma vez que

prevalece o mito do nativo, ou seja, do falante ideal, cuja existência é questionável,

já que, conforme Derrida (2001), ninguém possui o domínio absoluto da língua, e

nem ela se deixa apropriar. O conceito de língua adicional, por sua vez, tem uma

conotação agregadora, pressupõe adição de saber, não fazendo “referência à ordem

de aprendizagem de línguas e sim à relação dos sujeitos com as línguas e [...] aos

efeitos de uma nova língua em um sujeito”. (BRISOLARA, 2012, p. 2148). A

concepção de língua perseguida no âmbito deste trabalho é, pois, a de língua

adicional.

A visão que confere às línguas um status de serem passíveis de serem

aprendidas instaura uma nova relação entre o sujeito e as línguas, não mais

considerando uma outra língua como exterior ao sujeito, mas como aspecto

igualmente constituidor de identidade do indivíduo. Nessa perspectiva, Cavallari

(2011) assinala que a maneira de lidar com a língua materna nunca mais é a mesma

depois do contato com a língua adicional, pois o sujeito “é investido por uma língua

outra [...] passa a falar de si e de sua ‘língua mãe’ de um outro lugar. [...] passa a ser

constituído tanto pela língua materna como pela língua estrangeira e, ao ser

constituído por elas, também constitui a ambas”. (CAVALLARI, 2011, p. 136).

Apesar disso, língua materna e adicional “ocupam estatutos distintos, já que incidem

diferentemente sobre a constituição subjetiva do sujeito [...]”. O contato com a língua

materna é único e irrepetível, já que “o sujeito se constitui na/pela língua materna” e,

nesse sentido, a língua materna é “uma experiência inaugural e definitiva”, pois é por

ela que “um corpo não falante passa a ser um sujeito falante ou de linguagem”.

(CAVALLARI, 2011, p. 128-129).

Revuz (1998) explicita a perspectiva de que a criança, desde o nascimento,

se encontra imersa na língua, pois “um outro” a descreve e interpreta seus

sentimentos e necessidades, de modo que muito antes da aprendizagem formal da

língua, o sujeito é, irremediavelmente, constituído pelo olhar e pelo desejo do outro,

e pela linguagem que esse outro lhe apresenta. Assim, a língua materna estará para

sempre imbuída de afetividade, e jamais será, apenas, “um instrumento de

designação objetivo das coisas do mundo”. (REVUZ, 1998, p. 219). A partir disso,

tomando a língua como elemento estruturador do próprio psiquismo do ser humano,

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é pertinente afirmar que o contato com uma língua adicional não pode ser da mesma

ordem que a relação com a língua materna, o que determina que a dinâmica entre

as duas seja complexa. Dessa forma, a língua adicional provoca um “deslocamento

das marcas anteriores”, “um outro recorte do real [...]” (REVUZ, 1998, p. 223).

Voltando à psicanálise, pode-se dizer que, em primeiro lugar, o sujeito deseja o

desejo do outro, desejando a língua do outro, que lhe é ensinada pelos seus pares e

que passa a ser a sua língua materna. Em segundo lugar, ele se desloca e diferencia

o seu desejo do desejo do outro, encontrando novas possibilidades: “o desejo do e

pelo outro, o desejo de ser o desejo do outro” e “o desejo de ser o outro, que ‘imagina’

(representa) como ideal" é uma marca que “impulsiona o sujeito na sua busca

incessante pelo preenchimento da falta que o constitui”. (CORACINI, 2014, p. 16).

O desejo do sujeito origina-se quando ele é nomeado pela linguagem em

determinada instância. A partir daí, ele passa a vivenciar uma condição de faltante,

seja na língua materna, seja na adicional. O desejo de envolver-se ou não com uma

determinada língua/cultura pode ser entendido como um sentimento de

pertencimento ou não a ela, o que é desencadeado por aspectos subjetivos de cada

falante. Assim, aprender uma língua é estabelecer novos pertencimentos, é fazer

com que velhos e novos pertencimentos sejam negociados. A esse respeito,

Kramsch (1998) afirma que falar uma língua é ser membro de uma certa

comunidade. Através do sotaque, do vocabulário e de padrões de discurso, os

falantes identificam a si próprios e são identificados como membros desta ou

daquela comunidade de fala ou discurso. Dessa sociedade, eles retiram força

pessoal e orgulho, como também um sentimento de importância social e

continuidade histórica por usar a mesma língua usada pelo grupo ao qual

pertencem. (KRAMSCH, 1998, p. 65).

Da mesma forma, é possível que quando, por diversas razões, não existe

identificação com uma língua, ou seja, quando não existe sentimento de

pertencimento, se instaure a dificuldade de aprender ou de lidar com um idioma. Em

uma situação como essa, entende-se que o desejo também pode estar presente,

embora dissimulado nos sujeitos sob a forma de não querer aprender/pertencer, seja

por questões de interdição (como no caso dos imigrantes alemães no Brasil que

foram impedidos de usar a língua alemã por questões políticas) ou porque os

indivíduos se julgam incompetentes quanto ao uso da nova língua (no caso dos

mesmos imigrantes, a língua portuguesa), sentindo-se constantemente devedores

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em relação à língua/cultura de adoção. Dessa forma, é plausível concluir, com

Edwards (2009, p. 255), que “muito além de utilitarismo e instrumento sem emoção,

o coração do bilinguismo é pertencimento9”. Conforme Revuz (1998, p. 223),

o que se estilhaça ao contato com a língua estrangeira é a ilusão de que existe um ponto de vista único sobre a coisas, é a ilusão de uma possível tradução termo a termo, de uma adequação da palavra à coisa. Pela intermediação da língua estrangeira se esboça o descolamento do real e da língua. O arbitrário do signo linguístico torna-se uma realidade tangível [...].

Com o postulado acima, percebe-se que ingressar em outra língua é

pertencer, é inserir-se em outra cultura, que tem uma forma própria e original de

enxergar o mundo e de se relacionar com ele. Tal processo é sempre um deslocar-

se em relação à língua/cultura materna, de modo que, conforme Revuz (1998, p.

227), “aprender uma língua é sempre, um pouco, tornar-se um outro”, o que

também, interpreta-se, vale para a língua materna, já que também é pelo outro que

nos constituímos e ingressamos na linguagem. Dessa forma, seja no âmbito da

língua materna ou da adicional, o que impera é a alteridade, que faz o sujeito

experienciar a língua e a cultura a partir do olhar constitutivo do outro.

O fato de se falar uma ou mais línguas adicionais está, portanto, associado a

fatores psicológicos e sociais, uma vez que tal evento desloca o sujeito de um

posicionamento relativamente estável enquanto falante da língua materna e

enquanto conhecedor proficiente da cultura materna, para o lugar novo e instável de

outra língua/cultura, ação que acaba por desestabilizar identidades já erigidas,

conferindo-lhes um novo olhar e acrescentando-lhes novos traços constitutivos. De

acordo com Coracini (2014, p. 12), aprender

uma língua estrangeira significa adentrar em outra língua-cultura, em discursividades outras que modificam a subjetividade daquele que nela imerge, sem, contudo, abandonar a sua língua-cultura primeira que sempre estará ali como vozes que servem de parâmetro para a compreensão e apreensão do diferente.

Depois de estabelecer a conexão entre língua materna e adicional e

identidades, procura-se focar os processos de inter-relação entre as línguas, ou seja,

as situações em que duas ou mais línguas, uma materna e outra(s) adicional(is),

passam a coabitar um mesmo espaço, disputando, cada uma, o seu lugar no escopo

9 No original: Beyond utilitarian and unemotional instrumentality, the heart of bilingualism is belonging. (EDWARDS, 2009, p. 255).

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de uma comunidade linguística. Dessa forma, busca-se estudar o fenômeno

conhecido como bilinguismo que, na atualidade, passa a adquirir um status muito mais

de multilinguismo, dado que, não raro, há a coexistência de mais de duas línguas.

Além disso, mesmo o falante de um único idioma, que seria comumente reconhecido

como monolíngue, acaba por se mostrar multilíngue, já que uma língua não se

encerra em si: nunca é única, sempre é múltipla. (DERRIDA, 2001).

Seguindo essa linha de raciocínio, busca-se percorrer, a seguir, o caminho

evolutivo que foi traçado para se chegar de uma noção de bilinguismo a uma

concepção de multilinguismo. De acordo com o postulado por Mello (2010, p. 118), o

bilinguismo “é um campo de ensino e pesquisa bastante controvertido, tanto no nível

teórico quanto no prático”, apresentando nuances complexas e “pressupostos

difusos e variados”. A maior parte dos estudos realizados na área é norte-

americana, e as poucas referências encontradas no Brasil baseiam-se no escopo

desses precursores. Ao lado disso, muitos teóricos (CAVALCANTI, 1999; BORTONI-

RICARDO, 1994 apud MELLO, 2010; BAGNO, 2002) afirmam que ainda existe, no

Brasil o mito da língua homogênea e única, ou seja, da monolíngua, o que respalda

o histórico “silenciamento dos povos que falam uma língua diferente daquela tomada

como a língua nacional” (MELLO, 2010, p. 127) e a incipiente implantação, nas

escolas, do que a mesma autora chama de “bilinguismo de fato”, ou seja, “a

capacidade de um indivíduo de usar a língua estrangeira nas suas diversas

modalidades (fala, escrita, leitura e compreensão)”. (MELLO, 2010, p. 128).

Dessa forma, a educação bilíngue segue muitas vezes, no Brasil, o modelo

transicional, que objetiva a assimilação, por parte dos falantes de línguas

minoritárias, dentre eles os imigrantes, da cultura e da língua majoritária. Tal prática,

que pressupõe o uso da língua materna apenas como um meio de transição para a

aprendizagem da língua oficial, torna-se uma “orientação subtrativa de línguas” na

perspectiva de Mello (2010).

Segundo Ferreira (2006), até 1970 a abordagem do bilinguismo não foi uma

questão considerada como relevante, e as pesquisas realizadas, principalmente por

norte-americanos que seguiam a linha teórica hereditária10, tendiam a investigar o

fenômeno avaliando-o em termos de vantagens ou desvantagens sobre o QI. Muitos

10 Teoria segundo a qual a inteligência é herdada. Se os imigrantes (bilíngues) apresentavam menor desempenho nos testes de inteligência, isso era determinante para serem considerados geneticamente inferiores, sendo que não se levava em consideração a sua deficiência linguística na nova língua em aquisição. (FERREIRA, 2006).

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dos resultados encontrados em estudos efetuados com imigrantes situavam o

bilinguismo como um aspecto que atuava negativamente sobre a inteligência.

Percebe-se que tais olhares inibiram a importância social do fenômeno, restringindo-

o a aspectos físicos/mentais/hereditários. Embora tais perspectivas estejam

ultrapassadas e hoje os estudos encontrem benefícios ligados ao bilinguismo, como

por exemplo, uma maior “flexibilidade cognitiva” dos sujeitos que falam mais de uma

língua (FERREIRA, 2006), o fenômeno ainda é gerador de tensões, sendo que

“muitas vezes a aparente vantagem de falar duas línguas com grande desenvoltura

esconde conflitos identitários difíceis de explicar e equacionar”. (UPHOFF, 2007, p.

229).

A questão do bilinguismo é perpassada pela subjetividade a tal ponto que é

difícil, se não impossível, defini-la a contento. Conforme Mello (1999), um sujeito

bilíngue é popularmente percebido como alguém que fala perfeitamente duas

línguas. Entretanto, é insensatez precisar o que significa “falar perfeitamente”, já que

a constituição de cada sujeito na língua é única, irrepetível, de modo que se poderia

afirmar que cada sujeito fala a sua própria língua, pois apesar de ser um fato social,

a língua também é um fato individual. Além disso, de acordo com a autora, “ninguém

conhece uma língua em todos os seus aspectos”. (MELLO, 1999, p. 41-42).

Analisando esse senso comum que ronda o conceito de bilinguismo, é fácil

constatar, como também o faz a autora em questão, que as tentativas de definição

do termo realizadas ao longo do tempo por diversos estudiosos da linguagem

acabam sendo limitadas.

Uma das primeiras abordagens do conceito de bilinguismo foi realizada por

Bloomfield, em 1933. O linguista norte-americano considerou bilíngues os falantes

que têm “controle de duas línguas de maneira semelhante à do nativo”. (MELLO,

1999, p. 42). Definição muito semelhante é a de Thiery, que em 1978 conceituou

como bilíngue um sujeito capaz de se comunicar sem sotaque e de forma fluente em

duas línguas, passando por membro de ambas as comunidades linguísticas. Os dois

conceitos, conforme Melo (1999) reportam um falante ideal, cuja existência, sabe-se

hoje, é praticamente impossível.

Em 1953, Haugen expôs a teoria de que o bilinguismo existe quando o falante

de uma língua é capaz de se comunicar utilizando expressões completas e

significativas em outra língua. (GROSJEAN,1982 apud FERREIRA, 2006). Em 1964,

Diebold introduz a ideia do que se pode chamar de níveis de bilinguismo, usando a

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expressão bilinguismo incipiente para fazer referências aos estágios iniciais de uso

de uma segunda língua. Com isso, entende-se que não é preciso ter desenvolvidas

todas as habilidades linguísticas para ser bilíngue, evidenciando-se que existem

graus de bilinguismo. (ROMAINE, 1995 apud FERREIRA, 2006).

De acordo com Mello (1999, p. 45), enquanto as concepções acima se

vinculam fortemente à estrutura da língua e consideram o desempenho do indivíduo,

uma nova dimensão interativa de “indivíduo-língua-sociedade” surge na abordagem

dos teóricos seguintes. Assim, em 1953, Weinreich (ROMAINE, 1995 apud

FERREIRA, 2006, p. 4) apresenta os conceitos de bilinguismo composto e

bilinguismo coordenado. De acordo com essa concepção tem-se “um bilíngue

composto quando a aquisição de dois códigos der lugar a uma representação mental

comum a ambos” e um bilíngue coordenado quando a aquisição “conduzir a duas

representações distintas”, uma para cada idioma. Mello (1999) equaciona que para

Weinreich bilinguismo é o uso alternado de duas línguas.

Em 1968, Mackey expõe que o bilinguismo é relativo. Tal posicionamento

advém da ideia de que o ponto em que um falante de uma segunda língua se torna

bilíngue é arbitrário, sendo impossível determiná-lo. Nessa perspectiva, para o autor,

o bilinguismo é uma simples alternância de duas ou mais línguas. (HAKUTA, 1986

apud FERREIRA, 2006). Para Mackey, o bilinguismo envolve quatro pontos: grau (o

quanto o sujeito conhece as línguas que usa), função (para que o sujeito usa as

línguas), alternância (quando e porque o sujeito muda de uma língua para outra) e

interferência (até que ponto uma língua interfere na outra). Percebe-se que esses

pontos estão fundamentados no uso da língua, de modo que, conforme Mello (1999,

p. 47), em tal perspectiva, “o bilinguismo não é um fenômeno per se”, mas surge por

causa de fatores como migração, casamentos inter-raciais, interesses políticos das

nações, etc.

Estudos mais recentes, realizados no Brasil, (BORSTEL, 2006 apud

FERREIRA, 2006) entendem o bilinguismo como uma situação de coexistência de

duas línguas como meio de comunicação. Tal fenômeno é relativo, pois depende de

fatores socioculturais que compreendem a aprendizagem, a manutenção ou o

abandono das línguas envolvidas em função de questões sociais, regionais e

situacionais. Nessa perspectiva, “a história das línguas associa-se intimamente à

história social do povo que a fala” (FERREIRA, 2006, p. 12) e depende das relações

sociais da comunidade para com as línguas envolvidas, seja a materna ou a “de

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adoção”. Isso significa que são questões sociais como ensino formal e informal,

prestígio, peculiaridades de uso social e familiar, etc., que vão determinar a relação

entre língua majoritária e minoritária, que pode ser de supremacia de uma em

detrimento da outra ou, ainda, de coexistência das duas, em uma situação de

diglossia11.

De acordo com Ferreira (2006, p. 14), em comunidades de imigrantes é muito

comum o fenômeno a que ela se refere como code switching, conceito que diz

respeito à “justaposição, dentro do mesmo diálogo, de dois diferentes sistemas

gramaticais”, de modo que as duas línguas usadas pelos falantes são alternadas

nos discursos. Tal característica foi vista por muito tempo como negativa, pois

indicaria uma falta de competência linguística por parte do falante, que, por essa

razão, recorrentemente voltaria à sua primeira língua. No entanto, a percepção a

respeito do fenômeno mudou, já que ele não revela necessariamente falta de

competência do falante, mas, ao contrário, pode indicar um sinal de competência

bilíngue. (CAVALCANTI; BORTONI-RICARDO, 2007). Mais recentemente, autores

como Jarvis e Pavlenko (2007) situam fenômenos como o code switching no escopo

da Cross-Cultural Influence, conceito que aborda o uso alternado de duas línguas

não mais como interferência, que trazia intrínseca uma implicação negativa, mas sim

do ponto de vista da influência e da complementação que se estabelece entre as

línguas quando um falante faz uso de dois ou mais sistemas linguísticos. A

alternância entre as línguas estaria influenciada, nesse sentido, por fatores outros,

tais como o contexto de uso e fatores afetivos.

Numa perspectiva sociolinguística, o bilinguismo aparece como um conceito

mais plural, não fechado na percepção de duas línguas. Tanto isso é verdade que a

obra “Bilinguismos: subjetivação e identificações nas/pelas línguas maternas e

estrangeiras” organizada por Elzira Yoko Uyeno e Juliana Santana Cavallari,

menciona “bilinguismos”, marcando o fato de que não há um bilinguismo estanque,

mas plural, que remete às infinitas possibilidades oferecidas pelas línguas. Assim,

percebe-se que há um progresso que vai do entendimento do bilinguismo a uma

aceitação de bilinguismos, o que culmina, como se verá mais adiante, no

11 De acordo com Ferguson, diglossia é uma situação em que “duas variedades de uma língua coexistem na mesma comunidade, cada uma desempenhando um papel definido”. Já para Grosjean, o conceito “tem sido estendido às situações em que duas línguas quaisquer estão em contato ou em que duas ou mais variedades de uma mesma língua são usadas em ocasiões sociais diferentes”. (MELLO, 1999, p. 38 e 40-41).

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questionamento sobre a própria existência do bilinguismo: não existe bilinguismo,

como também não existe monolinguismo. (CORACINI, 2011). Nessa perspectiva,

talvez se pudesse abrir caminho ao conceito de multilinguismo, a fim de

contextualizar uma noção que possa dar conta de acompanhar a abordagem plural

da pós-modernidade. Em artigo publicado em 2007, Coracini (2007a) toma os

conceitos de bilinguismo, multilinguismo e plurilinguismo como ainda fechados,

totalizantes. Entretanto, percebe-se que assim como o conceito de bilinguismo

evoluiu de uma perspectiva de falar idealmente duas línguas para uma noção de

bilinguismos (conceito mais amplo que aborda uma multiplicidade de falares),

também a percepção de multilinguismo poderia ir além de significar a fala ideal de

mais de duas línguas. A autora em questão prefere, entretanto, usar a expressão

ser/estar entre-línguas para manifestar o fenômeno de inter-relação de línguas em

uma cultura.

O conceito de entre-línguas se refere a um fenômeno comumente encontrado

nas diversas culturas e que remete à comunhão entre duas ou mais línguas que

entrecruzam as fronteiras de países e comunidades para coabitar em locais em que

inicialmente imperava uma língua dita única. Tal processo intensificou-se pelo fluxo

cada vez mais frequente de pessoas que circulam pelo mundo, mas teve origem no

colonialismo e nas migrações humanas em todas as fases da história. De acordo

com Coracini (2007a) e Eckert-Hoff (2010), o conceito de entre-línguas pressupõe a

inter-relação entre duas línguas, o que gera uma terceira, que não é uma nem a

outra, mas um produto delas, a exemplo do exposto por Bhabha (2007) sobre o

hibridismo. Nas palavras de Coracini (2014, p. 19), “Habitar uma língua, seja ela qual

for, implica em ser e estar entre línguas, o que significa entre culturas”.

Quando se assume a subjetividade como perspectiva de análise, renuncia-se

à ideia de que há uma percepção única que pode dar conta de interpretar todas as

vivências. Ao contrário, aceita-se que cada sujeito tem uma história particular com a

língua e uma constituição própria, de modo que cada ser humano é único. Isso

equivale a dizer que as histórias não se repetem. Pode até haver identificação de

uma vida com outra, mas duas histórias pessoais iguais não há jamais. Assim, na

perspectiva do viver entre-línguas, cada sujeito teria uma narrativa diferente para

trazer à pauta, o que igualmente ocorre com muitos teóricos, cujas experiências com

tal realidade são abundantes na literatura. No âmbito deste trabalho, optou-se por

contextualizar o exemplo de Derrida, tanto para ilustrar uma situação real de

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vivência entre-línguas e entre-culturas, quanto para tomar emprestadas as reflexões

do autor sobre a dinâmica da linguagem visando, a partir delas, a estabelecer

percepções próprias acerca do tema.

Inicialmente, destaca-se que Jacques Derrida (1930-2004) é um dos

precursores da corrente teórica conhecida como desconstrução. Por meio dessa

abordagem, o autor procura descontruir verdades estabelecidas no pensamento

metafísico ocidental, de modo a abalar as relações binárias constituídas. Segundo

Rajagopalan (2000, p. 121),

Um dos pontos chaves da estratégia desconstrutivista tem sido a de interrogar sem piedade as oposições binárias com que nos acostumamos a raciocinar. Estamos nos referindo aos pares de termos como natureza/cultura, realidade/aparência, causa/efeito, língua/fala, fala/escrita, significante/significado, homem/mulher [...].

Nessa direção, segundo Pedroso Junior (2010, p. 11), a teoria da

desconstrução procura “decompor os discursos com os quais opera”, apontando

suas ambiguidades e contradições e, ao mesmo tempo, buscando “ampliar seus

limites ou limiares”. Opera no campo “da ambivalência, da duplicidade e da

dubiedade” preocupando-se em colocar as “oposições dialéticas numa posição

horizontal e paritária, não em escalas hierárquicas, como a metafísica o fazia”.

(PEDROSO JUNIOR, 2010, p. 11). Assim, a desconstrução insere-se na tendência

de desnaturalizar dicotomias, considerando-as não mais como naturais, mas como

construções produzidas por discursos.

Nessa dinâmica se inserem as reflexões realizadas por Derrida na obra O

Monolinguismo do Outro, classificada pelo próprio autor como “escrita

desconstrutiva”. (DERRIDA, 2001, p. 91). O texto em questão propõe, desde o início,

situar a discussão sobre premissas antagônicas e, em princípio, incompatíveis, não

lógicas, como: “eu não tenho senão uma língua e ela não é minha” (DERRIDA,

2001, p. 13) e “não falamos nunca senão uma única língua e não falamos nunca

uma única língua”. (DERRIDA, 2001, p. 19).

Para explicar as aparentes discrepâncias adjacentes às premissas acima,

Derrida recorre à sua própria experiência no tocante à língua, procurando, na sua

vivência única, encontrar parâmetros que possam ser universais, tais como o lugar

ocupado pela língua materna (falta, interditos), se de fato existem sujeitos

monolíngues, etc. Nessa perspectiva, o filósofo situa-se como franco-magrebino

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nascido na Argélia e com cidadania francesa. Essa situação de cidadania elencada

como "nacional francesa” é, de acordo, com o próprio autor, única no mundo. O país

colonizador, a França, atribuiu aos nascidos na nação colonizada, a Argélia, uma

espécie de “cidadania intermediária”. Tal realidade acaba por marcar fortemente a

noção de identidade do autor, que se sente interditado tanto na língua/cultura

argelina quanto na língua/cultura francesa. Assim, ele cita a sua experiência de girar

entre “clausuras sociolinguísticas”. (DERRIDA, 2001, p. 57). O filósofo expõe ter

vivido em um país cuja língua originária, o árabe, era tratado como um idioma

estrangeiro, de ensino facultativo. A língua prestigiada, ensinada nas escolas e

falada cotidianamente, era a francesa, a língua do outro. Tal situação fez com que

Derrida sentisse, ainda jovem, não possuir uma língua materna: o árabe, via como

“língua do vizinho” (2001, p. 53); já o francês, era a “a língua da metrópole”,

considerada pelos outros como língua materna, mas que representava, para ele, “o

substituto de uma língua materna [...] a língua d[e um] outro”. (DERRIDA, 2001, p.

59).

O autor descreve o sentimento de distância que sentia em relação ao francês,

a língua que falava, mas que lhe vinha do outro, do desconhecido: “entre o modelo

dito escolar, gramatical, ou literário, por um lado, e a língua falada, por outro, havia o

mar, um espaço simbolicamente infinito, um precipício para todos os alunos da

escola francesa na Argélia” (DERRIDA, 2001, p. 61). Somente aos dezenove anos é

que Derrida atravessa, pela primeira vez, o Mar Mediterrâneo com destino a Paris,

com o objetivo de lá estudar e, finalmente, conhecer “a língua da Metrópole” (idem,

p. 59). Lá, acaba por apegar-se à língua e à cultura francesa, já que lhe ensinam

apenas essa cultura, em detrimento à do país em que nasceu, a Argélia. Assim,

Derrida sente-se interditado na língua e na cultura de seu país de origem,

experienciando que, de fato, “toda cultura se institui pela imposição unilateral de

alguma ‘política’ de língua”. (DERRIDA, 2001, p. 55).

Com base nessa premissa, Coracini (2011), parafraseando Derrida, explicita

que não existe monolinguismo (como também não existe bilinguismo). Na visão

desses dois autores, cada língua é constituída por outras línguas, anteriores ou

sobrepostas, já que as diferentes línguas são formadas pela evolução de outros

idiomas e pelo contato intercultural entre as línguas. Assim, ainda que um sujeito se

comunique apenas pela sua dita língua materna, ele não se classifica como

monolíngue, pois fala, mesmo que indiretamente, todas as línguas que constituíram

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o idioma em questão. (DERRIDA, 2001). Ainda com base em Derrida, Coracini

(2011, p. 11) afirma que “Toda língua [...] se constitui de inúmeras outras que

deixam seus rastros naquela que denominamos uma língua”. Da mesma forma,

quando se aprende uma segunda língua, a primeira língua está sempre presente,

pois constitui irrevogavelmente o sujeito, que é o que é a partir daquela língua mãe.

Nessa perspectiva, “não há duas línguas como não há uma única língua”

(CORACINI, 2011, p. 11), de modo que sempre há, no jogo da enunciação, a

comunhão de várias línguas. Essa perspectiva está em consonância com o

postulado por Bakhtin, cuja teoria será contextualizada a seguir, a respeito de que

nenhuma língua é só uma língua, e o que torna uma língua única é o sujeito.

Essa discussão é relevante também para que se situe o lugar da língua

materna na vida do sujeito:

A língua dita materna nunca é puramente natural, nem própria nem habitável. Habitar, eis um valor bastante desorientador e equívoco: não se habita nunca o que estamos habituados a chamar habitar. Não existe habitat possível sem a diferença deste exílio e desta nostalgia. Sem dúvida. É demasiado sabido. Mas daqui não se segue que todos os exílios sejam equivalentes. A partir, sim, a partir desta margem ou desta derivação comum, todos os expatriamentos permanecem singulares. (DERRIDA, 2001, p. 90).

Com essas reflexões, o autor chega à impossibilidade de se apropriar uma

língua. (DERRIDA, 2001, p. 96). De acordo com Coracini (2011, p. 12), “o desejo de

uma língua única e una, pura e sem mácula nos persegue como um ideal, a tal

ponto de nós, [...] pesquisadores da chamada língua materna, a denominarmos de

‘nossa’, ‘minha’ língua”, como se fosse possível que alguém pudesse apropriar-se

dela, ou que ela se deixasse apropriar. A língua, portanto, não tem proprietário e é

transmitida a cada homem sempre através do outro, sendo esse o motivo do

exposto por Derrida (2001, p. 39) quando diz: “eu não tenho senão uma língua e ela

não é minha, a minha própria língua é-me uma língua inassimilável. A minha língua,

a única que me ouço falar e me ouço a falar, é a língua do outro”.

Derrida explicita que a impossibilidade de ver realizado o desejo de língua

una e homogênea leva o homem a um sentimento de “falta”, de “alienação

originária” que é “constitutiva” do ser humano. (DERRIDA, 2001, p. 39). Os muitos

interditos sofridos pelo autor inserem nele essa falta, essa incompletude: “Ser

franco-magorebino, sê-lo como eu, não é, não é sobretudo, sobretudo não é, um

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acréscimo ou uma riqueza de identidades, de atributos ou de nomes. Traz antes, em

primeiro lugar, uma perturbação de identidade”. (DERRIDA, 2001, p. 28).

No âmbito desta seção, procurou-se problematizar as tensões existentes

entre língua materna e adicional, bem como as noções que possibilitaram a

evolução de um conceito de bilinguismo para uma percepção de multilinguismo, que

se julga ser mais conforme a realidade de globalização e a uma dinâmica social da

língua. Nesse ínterim, apresentou-se a realidade do viver entre-línguas,

exemplificando-a e problematizando-a a partir da vivência de Derrida. A seguir,

contextualiza-se uma última perspectiva teórica e efetua-se um fechamento do

capítulo, procurando correlacionar as ideias discutidas nesta abordagem teórica.

2.3 PLURILINGUISMO12: ALTERIDADE QUE COMPÕE DISCURSOS

Os estudos bakhtinianos se situam em uma linha plural e dinâmica,

respaldando uma sociedade múltipla, que é resultado de muitas vozes que se

sobrepõem e que estão em permanente interconexão. Na perspectiva do autor, tudo

acontece pela linguagem, que é uma manifestação essencialmente social, já que é

por meio das enunciações dos sujeitos que se constroem os conceitos e

preconceitos sociais.

A percepção da língua como fato social exclui as perspectivas do subjetivismo

idealista e do objetivismo abstrato, tendências da filosofia da linguagem negadas por

Bakhtin, cuja teoria refuta as premissas de que a realidade fundamental da língua

sejam os atos de fala individuais, como prega a primeira escola, bem como de que o

centro organizador dos fatos da língua seja o sistema linguístico (nele incluídas as

formas fonéticas, gramaticais e léxicas da língua), como preceitua a segunda escola.

(BAKHTIN, 1990). Para o autor em questão, as duas vertentes são antagônicas

entre si e igualmente falhas na compreensão da realidade fundamental da língua. O

problema primordial do que Bakhtin chama de objetivismo abstrato evidencia-se na

tese de que “a língua se opõe à fala como o social ao individual”, ou seja, de que “a

12 O Dicionário de Linguística da Enunciação (FLORES, 2009a) situa o termo plurilinguismo como equivalente a heteroglossia, plurivocidade e plurivocalidade. Silva (2016), em resenha sobre a nova versão traduzida por Paulo Bezerra de Teoria do Romance, cita que esse tradutor aponta certas “incoerências que afetam algumas edições em português da obra de Bakhtin”. Para corrigir incoerências, o autor teria optado, por exemplo, “pelo termo heterodiscurso para o conceito anteriormente traduzido como heteroglossia ou plurilnguismo”. (SILVA, 2016, p. 266-267).

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fala é absolutamente individual” (BAKHTIN, 1990, p. 87). Para Bakhtin, a fala é um

processo social, que não se encerra em limites predeterminados, mas é viva,

variável e flexível, de modo que “a língua, no seu uso prático, é inseparável de seu

conteúdo ideológico ou relativo à vida”. (BAKHTIN, 1990, p. 96). O autor faz

menção, igualmente, ao fato de que não é a “atividade mental que organiza a

expressão [...] mas a expressão que organiza a atividade mental”. (BAKHTIN, 1990,

p. 112).

Assim, no estudo da linguagem, o entendimento do signo ideológico é basilar.

Para Bakhtin e seu círculo, um corpo físico, por si só, “não significa nada e coincide

inteiramente com sua própria natureza”. (BAKHTIN, 1990, p. 31). Entretanto, todo

“produto natural, tecnológico ou de consumo pode tornar-se signo e adquirir, assim,

um sentido que ultrapasse suas próprias particularidades”. E todo corpo, ao tornar-

se signo, passa a estar imbuído de ideologia, não mais fazendo parte apenas de

uma realidade, mas também refletindo e refratando uma outra realidade. (BAKHTIN,

1990). Os signos ideológicos surgem no seio dos grupos humanos socialmente

organizados e não da consciência individual. A própria consciência individual,

igualmente, só pode ser explicada a partir da ideologia do meio social. Nas palavras

de Bakhtin (1990), tanto o psiquismo quanto a ideologia são sociais, de modo que

mesmo a fração percebida como individual do ser humano, também é social:

todo pensamento de caráter cognitivo materializa-se em minha consciência, em meu psiquismo apoiando-se no sistema ideológico de conhecimento que lhe for apropriado. Nesse sentido, meu pensamento, desde a origem, pertence ao sistema ideológico e é subordinado a suas leis. Mas, ao mesmo tempo, ele também pertence a um outro sistema único, e igualmente possuidor de suas próprias leis específicas, o sistema do meu psiquismo. O caráter único desse sistema não é determinado somente pela unicidade de meu organismo biológico, mas pela totalidade das condições vitais e sociais em que esse organismo se encontra colocado. (BAKHTIN, 1990, p. 59).

Disso apreende-se que cada dizer, ou ainda mais, cada saber e fazer de um

indivíduo se articulam a um conjunto de experiências e de influências às quais ele foi

exposto, bem como às noções culturais latentes no meio em que ele vive, de modo a

originar uma espécie de representação identitária social, que retroalimenta a

identidade de cada indivíduo. É nessa dialética entre homem e sociedade, entre o

signo interior e exterior, entre psiquismo e ideologia, que se estabelecem as

relações de linguagem. Conforme Bakhtin (1990, p. 66), “em toda enunciação, por

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mais insignificante que seja, renova-se sem cessar essa síntese dialética viva entre

o psíquico e o ideológico, entre a vida interior e a vida exterior”.

Nesse sentido, a teoria bakhtiniana evidencia a visão dialógica da linguagem.

Flores et al. (2009a, p. 80) definem dialogismo como “princípio de linguagem que

pressupõe que todo discurso é constituído por outros discursos, mais ou menos

aparentes, desencadeando diferentes relações de sentido”. Assim, o dialogismo é o

discurso interativo entre o “eu e o outro”, que permite encontrar em cada enunciado

intencionalidades e finalidades específicas, que são permeadas pelos aspectos

ideológicos que constituem os interlocutores. Conforme Di Fanti (2003), o dialogismo

remete a uma noção de diferença, de inconclusividade, de alteridade, uma vez que

se fundamenta na troca que acontece entre os sujeitos que participam de um

discurso, de modo que “o sujeito e os sentidos constroem-se discursivamente nas

interações verbais na relação com o outro”. (DI FANTI, 2003, p. 98).

A teoria dialógica tem base nas visões neokantista e fenomenológica, que

introduzem a ideia de que parte do conhecimento que o homem tem de si vem do

outro, ou seja, de que o indivíduo aprende a se reconhecer como pessoa também

através das impressões do outro. A consciência desse fato leva o ser humano a

encarar o outro, já que nada do que fala é dito pela primeira vez. Ao expressar algo,

o enunciador baseia-se no que já ouviu sobre o tema. Entretanto, quando reproduz

uma ideia que já foi enunciada anteriormente, não a repete da mesma maneira,

porque coloca um acento pessoal, uma vez que cada ser é único. Dessa forma, ao

reproduzir o discurso do outro, o falante não o faz fortuitamente, mas com juízo de

valor, com acento apreciativo, valorativo e ideológico. (BAKHTIN, 1990, p. 146).

Cada enunciado adquire, nessa perspectiva, um sentido, dependendo do contexto e

da interação específica em que é empregado. A palavra, para Bakhtin,

[...] não é uma unidade ‘neutra’, uma forma abstrata da língua à espera de um falante que individualmente atualize seu sentido e a faça renascer para o fluxo contínuo da linguagem. Segundo Bakhtin, a palavra é sempre interindividual e reúne em si as vozes de todos aqueles que a utilizam ou a têm utilizado historicamente. (...) palavra é indissociável do discurso; palavra é discurso. Mas palavra também é história, é ideologia, é luta social, já que ela é a síntese das práticas discursivas historicamente constituídas. (CEREJA, 2005, 203-204).

A palavra é, pois, no escopo das ideias bakhtinianas, “o fenômeno ideológico

por excelência”. (BAKHTIN, 1990, p. 36). Enquanto os demais sistemas de signos

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atuam em campos particulares de criação ideológica, o signo linguístico pode

“preencher qualquer espécie de função ideológica: estética, científica, moral,

religiosa”. (BAKHTIN, 1990, p. 37). Daí a importância fundamental que a palavra

exerce no estudo da ideologia, já que “todas as manifestações da criação ideológica

[...] banham-se no discurso e não podem ser nem totalmente isoladas e nem

totalmente separadas dele”. (BAKHTIN, 1990, p. 38). A palavra, portanto, forja

tensionamentos entre as vozes que constituem os discursos: “a palavra revela-se,

no momento de sua expressão, como o produto da interação viva das forças

sociais”. (BAKHTIN, 1990, p. 66). Assim, a “verdadeira substância da língua [...] [é o]

fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das

enunciações”. (BAKHTIN, 1990, p. 123).

Nesse ponto, percebe-se que é relevante elucidar conceitos que permeiam a

teoria bakhtiniana da linguagem, a fim de que se possa discutir algumas questões

com mais clareza. Dessa forma, primeiramente, caracteriza-se discurso. O discurso

surge do “entrelaçamento de interações sociais complexas” (FLORES et al., 2009a,

p. 84), ou seja, é concebido como interação entre o “eu e um outro” num

determinado contexto. Essa concepção dá a entender que todo e qualquer discurso

é produzido com base em outros, já emitidos, de modo que não existe discurso

totalmente “novo” ou desprovido de falas ou posicionamentos anteriores que, ao

serem reiterados, desencadeiam novas relações de sentido. Assim, o discurso é

“constitutivamente ideológico, dialógico e histórico”. (FLORES et al., 2009a, p. 84).

Percebe-se que os conceitos de discurso e de enunciação são intimamente

relacionados. Como enunciação entende-se “o produto da interação de dois

indivíduos socialmente organizados”. (BAKHTIN, 1990, p. 112). Nesse sentido, o

autor argumenta que toda palavra comporta duas faces: ela procede de alguém e se

dirige para alguém, “é uma ponte lançada entre o mim e o outro”. (BAKHTIN, 1990,

p. 113). Flores et al (2009a) não fazem distinção entre a concepção de enunciação e

a de enunciado. Assim explicitam, com base em Bakhtin, que enunciado é “a

unidade mínima da comunicação discursiva e um elo entre vários enunciados; por

isso, preserva ressonâncias de diferentes dizeres ao mesmo tempo em que antecipa

outros”. (FLORES et al., 2009a, p. 99). Os enunciados comportam um lado verbal e

um extraverbal, facetas que se articulam a fim de indicar a dinâmica heterogênea,

dialógica e social do enunciado. Por seu caráter dialógico, o enunciado está sempre

em interação com outros enunciados, entre os quais há um entrecruzamento de

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vozes discursivas que exibem diferentes visões de mundo. (BAKHTIN, 1990). Dessa

maneira, evidencia-se que todo enunciado é apenas uma “fração de uma corrente

de comunicação verbal ininterrupta” que, por sua vez, é “apenas um momento na

evolução contínua [...] de um grupo social determinado”. (BAKHTIN, 1990, p. 123).

Intrínseco ao conceito de enunciado está o fato de que ele sempre se

relaciona à situação concreta em que se realiza. Nessa perspectiva, insere-se a

discussão acerca da significação linguística. Bakhtin estabelece que os enunciados

se constroem em uma relação dialética entre significação e tema. Basicamente, a

significação diz respeito aos aspectos enunciativos que são “reiteráveis e idênticos

cada vez que são repetidos” (BAKHTIN, 1990, p. 129), enquanto o tema renova-se a

cada novo enunciado, já que deve adequar-se à situação histórica e comunicacional.

Conforme Bakhtin (1990) há uma espécie de “capacidade de significar”

inferior e superior. A capacidade inferior de significar fica a cargo da significação, por

esta se referir ao significado da palavra no sistema da língua, reportando a um

sentido dicionarizado e, portanto, fixado. Já a capacidade superior de significar diz

respeito ao tema, pois se refere à “significação contextual de uma dada palavra nas

condições de uma enunciação concreta”. (BAKHTIN, 1990, p. 131). Assim, “o tema

da enunciação é determinado não só pelas formas linguísticas que entram na

composição (as palavras, as formas morfológicas ou sintáticas, os sons, as

entonações), mas igualmente pelos elementos não verbais da situação”. (BAKHTIN,

1990, p. 128). O autor também explicita que “o tema da enunciação é concreto, tão

concreto como o instante histórico ao qual ele pertence”. (BAKHTIN, 1990, p. 129).

Dessa forma, pode-se dizer que o tema tem sentido completo, pois é a

expressão social e histórica de falantes e ouvintes em um determinado tempo. O

tema, ao contrário da significação, é sempre individual e não reiterável; é a

atualização do significado dentro do contexto de uso. O tema não é o assunto

específico de um texto, mas a forma como se aborda o assunto, envolvendo o modo

próprio de comunicação do autor, a sua experiência de vida, a sua avaliação social e

a sua relação com o interlocutor sendo, portanto, uma primeira refração da

realidade. (BAKHTIN, 1990).

A esse respeito, conforme Cereja (2005, p. 202), “enquanto a significação é

por natureza abstrata e tende à permanência e à estabilidade, o tema é concreto e

histórico e tende ao fluido e dinâmico, ao precário, que recria e renova

incessantemente o sistema de significação, ainda que partindo dele”. Percebe-se,

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nesse sentido, que o tema possui tais características justamente por recriar-se a

cada novo contexto comunicacional e a cada nova interação entre os falantes. O

tema é individual e não reiterável na medida em que todo ser humano é único, não

havendo duas pessoas no mundo que têm a mesma visão sobre um assunto ou que

expõem o seu pensamento de forma semelhante. Além disso, mesmo que uma

pessoa reiterasse a própria fala, ainda assim o faria com um acento diferenciado.

Ao analisar os estudos de Bakhtin sobre o sentido (tema) e relacioná-los à

concepção de dialogismo, Brait (1997, p. 97) argumenta que o escopo da questão

parece levar em conta “a história, o tempo particular, o lugar de geração do

enunciado [...] e os envolvimentos intersubjetivos que dizem respeito a um dado

discurso”. Na abordagem da autora, a inter-relação entre essas duas abordagens, a

histórica e a subjetiva, pressupõe uma avaliação social por parte do interlocutor, no

sentido de que este “reitera a ideia de particularidade da situação em que se dá um

enunciado”. (BRAIT, 1997, p. 97). Nesse contexto, percebe-se que há permanente

diálogo entre o indivíduo e a sociedade, no que se compreende, exemplarmente, a

marca dialógica.

Ainda na perspectiva do tema e da sua constante atualização a cada

enunciado, reitera-se o já mencionado discurso do outro. Se é verdade que o sujeito

se reconhece na relação com o outro e só se torna humano na interação com o

outro, também é preciso admitir que os diversos acentos temáticos do discurso não

partem exclusivamente do sujeito. Tudo o que um indivíduo expressa já foi, de certa

forma, dito. E quando ele fala, reproduz um universo de ideias, conceitos e

experiências que lhe são passados, seja pelas leituras que faz, pela mídia, pela

educação que obteve, ou pelas pessoas com quem dialoga. Assim, o discurso do

sujeito é perpassado pelo “discurso do outro”, já que cada ser humano é constituído

pelos “vários outros” que passam pela sua vida. Dessa forma, ao abordar um tema

em um determinado contexto, o homem o faz “contaminado”, pois não pode

simplesmente deixar de lado tudo o que já viveu e ouviu, já que tais elementos são

constituintes da sua identidade, que é, por sua vez, produto de todas as

experiências e dos discursos que o formam. Dentro dessas complexas relações

dialógicas que se estabelecem, o tema figura como o elemento que é atualizado em

cada situação comunicacional, trazendo em si ecos de outros discursos e de outros

enunciadores, atualizando-se a cada nova situação de uso no interior dos gêneros

de discurso produzidos.

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Ainda condizente com a questão dialógica da linguagem está a dimensão

axiológica que cada enunciado reitera. Bakhtin/Voloshinov (apud ROJO, 2005, p.

184) expressam que

A mudança do acento avaliativo da palavra em função do contexto é totalmente ignorada pela linguística e não encontra nenhuma repercussão na sua doutrina da unicidade da significação. Embora os acentos avaliativos sejam privados de substância, é a pluralidade de acentos que dá vida à palavra. O problema da pluriacentuação deve ser estreitamente relacionado com o da polissemia. [...] A linguística se desembaraça dos acentos avaliativos ao mesmo tempo que da enunciação, da fala.

Nessa perspectiva dialógica é válido analisar os discursos enunciados

percebendo de que forma eles constituem identidades, considerando que tais

discursos não são unos, mas múltiplos, revelando, portanto, identidades também

múltiplas e ambíguas, formadas pela alteridade. As identidades são constituídas

pela linguagem, por meio do plurilinguismo que, de acordo com Bakhtin, é a

“combinação de diferentes linguagens, vozes sociais, falares, que formam uma

unidade superior”. (FLORES et al., 2009a, p. 187). Nessa direção, o plurilinguismo é

definido como “o discurso de outrem na linguagem de outrem” (BAKHTIN, 2010, p.

127). Conforme Di Fanti (2003), o plurilinguismo assume uma abordagem maior do

que simplesmente a de diversidade de línguas nacionais, abrangendo uma

perspectiva de diversidade de vozes discursivas, ou de posições constitutivas do

discurso. Tal característica de pluralidade da língua destitui o posto das línguas

oficiais das sociedades, cedendo espaço às variedades linguísticas, de modo que

a língua não se reduz a um sistema padronizado, mas sim se materializa em vozes sociais que se cruzam, em diferentes dialetos, jargões profissionais, linguagens de gerações familiares. Há linguagens de momentos, de lugares, transitórias, que possuem estruturas e finalidades próprias a determinados contextos. A linguagem, assim, está em movimento, ou seja, há uma orquestração discursiva que a constitui. (DI FANTI, 2003, p. 103).

Assim, o plurilinguismo atua no sentido de tensionar vozes sociais: “enquanto

as forças centrípetas se empenham em manter a ‘unidade’ e procuram resistir às

divergências, as forças centrífugas se empenham em manter a variedade, as

diferenças”. (DI FANTI, 2003, p. 103). Ainda, pelo plurilinguismo, a palavra da língua

é semialheia, apenas se tornando “própria” quando tomada pela intenção do falante,

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ou seja, quando dominada pelo discurso. Até esse momento de assimilação, a

palavra é do outro, serve às intenções desse outro, de modo que

em cada momento da sua existência histórica, a linguagem é grandemente pluridiscursiva. Deve-se isso à coexistência de contradições socioideológicas entre presente e passado, entre diferentes épocas do passado, entre diversos grupos socioideológicos, entre correntes, escolas, círculos, etc. Estes “falares” do plurilingüismo entrecruzam-se de maneira multiforme, formando novos “falares” socialmente típicos. (BAKHTIN, 1998, p. 98).

Assim, com base em uma perspectiva plurilinguística, postula-se que é

possível encontrar, pelo discurso, traços identitários característicos de uma dada

população, marcas que não são unas e tampouco estanques, mas que revelam o

caráter ambíguo, transitório e altero de qualquer comunidade linguística.

No escopo teórico até aqui contextualizado, diversos são os autores citados

cuja teoria parece contribuir para escrutinar a constituição identitária de uma

população de imigrantes a partir de um olhar híbrido sobre as perspectivas cultural e

linguística. Talvez seja um risco trabalhar com autores tão diversos e densos como

proposto. Assume-se que há grande diversidade quando se abordam autores da

teoria cultural, da teoria da subjetividade, da teoria da linguagem e da filosofia da

linguagem. Coracini, ao realizar trabalhos aproximando autores como Derrida, Lacan

e Bakhtin, explicita que apesar das diferenças profundas que há entre tais teóricos,

eles trazem, também, similaridades: criticam a concepção de ciência, baseada na razão, na verdade absoluta, como um fim em si mesma, na ausência de toda e qualquer subjetividade. Como contemporâneos que foram, suas concepções de linguagem e sujeito eram contrárias à racionalidade que vigorava nas Ciências Humanas até a década de 60. (CORACINI, 2014, p. 6).

Devido a essa confluência de aspectos gerais encontrada nos autores em

questão no que tange ao estudo do sujeito e da linguagem, buscaram-se outras

aproximações possíveis que pudessem contribuir para tecer os fios que compõem a

presente dissertação. Assim, verifica-se que esses autores evidenciam uma

concepção plural de sujeito, postulando que o homem se reconhece em relação ao

outro (BAKHTIN, 1990) e, ao necessitar do outro para se constituir, manifesta-se

nele uma perspectiva de não ser unificado, mas sim um sujeito incompleto, conforme

preconizado por Lacan e assumido por outros teóricos aqui citados. (BHABHA,

2007; DERRIDA, 2001; CORACINI, 2003, 2014; WOODWARD, 2005). Assim, a

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aparente percepção de ser unificado que permeia o imaginário do homem não passa

de um sentimento ilusório. (DOR, 1989). Tal característica marca profundamente o

ser humano, que busca incessantemente a completude, seja na cultura, na língua,

na nacionalidade ou nas relações pessoais, procurando formas de identificação que

lhe conferem múltiplas identidades. Estas advêm do jogo forjado entre indivíduo e

meio social, entre consciente e inconsciente.

A mesma construção imaginária de unificação das identidades individuais

tende a constituir as identidades nacionais, que são instigadas a visualizar seus

aspectos culturais e linguísticos como puros, genuínos. Tal posicionamento vai de

encontro à noção do hibridismo (BHABHA, 2007), fenômeno que impera na história

desde sempre, dada a constituição da maioria dos grupos sociais, a saber, por meio

de relações de dominação e de poder, que resultam na imposição de uma cultura

sobre a outra. Mais recentemente, os processos de globalização, dentre os quais se

destacam as migrações, também contribuíram e seguem contribuindo para os

encontros culturais e linguísticos, fomentando, mais uma vez, as relações

interculturais, e acabando por consolidar os espaços chamados entre-línguas e

entre-culturas (CORACINI, 2007b) como provas incontestáveis da supremacia do

híbrido.

Por meio desses fenômenos, percebem-se as tensões que se estabelecem

entre as culturas que recebem ou que são recebidas, mas que, independentemente

de sua situação de “adotantes” ou de “adotadas” são obrigadas a negociar (HALL,

2005) com o outro, a se deixar traduzir (HALL, 2005), conformando-se com o fato de

não serem mais “o um” ou “o outro”, mas um produto de todos “os outros” (BHABHA,

2007; HALL, 2005) envolvidos em sua história. Nesse jogo, como parte do processo

de negociação, cada cultura procura encontrar o seu lugar e se autoafirmar,

traduzindo-se em relações às outras com as quais convive, o que não significa o

apagamento de suas identidades, mas a adição de novas identidades (DERRIDA,

2001; HALL, 2005), sempre com o objetivo de “pertencer” a determinados

lugares/culturas/línguas e, com esse sentimento de pertencimento sanar, mesmo

que ilusoriamente, a falta que lhe é inerente.

Com isso, verifica-se uma tendência de se abordar língua e cultura em uma

perspectiva múltipla, ou seja, por meio de um olhar multicultural e multilíngue. No

que diz respeito à língua, percebe-se a evolução de uma tendência bilíngue,

inicialmente encarada com desconfiança, para uma dinâmica multilíngue que, como

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preceitua o hibridismo, em tese, propõe a aceitação do falar e da língua do outro.

Esse processo nunca é livre de tensões, pois há, entre língua materna e as línguas

adicionais, certa dicotomia que circula em torno da completude X desejo

(CAVALLARI, 2011; CORACINI, 2014), da segurança daquilo que é conhecido X

risco/prazer daquilo que é desconhecido (REVUZ, 1998). Embora o status conferido

à língua materna seja distinto, visto que o sujeito se constitui na/pela língua materna

(CAVALLARI, 2011), o contato com outra língua modifica a subjetividade do sujeito,

de modo que se pode falar que o sujeito multilíngue agrega traços identitários

(CAVALLARI, 2011; BRISOLARA, 2012), processo que, igualmente, requer

negociação.

Tal experiência de contato pode ser tanto positiva quanto negativa, e

repercute diferentemente sobre cada sujeito, dados os aspectos subjetivos que

permeiam a questão. O exemplo de Derrida mostra marcas de não pertencimento a

nenhuma das culturas envolvidas na vivência entre-línguas e entre-culturas do autor,

de modo que ele evidencia situar-se em uma clausura sociolinguística, explicitando a

perspectiva de poder que envolve as questões linguísticas, tal como expressado por

Bhabha (2007). Assim, a percepção de Derrida (2001) é que a sua própria situação

de viver entre-línguas lhe causa uma perturbação identitária em lugar de lhe conferir,

o que seria positivo, novos traços identitários. O contato com outra língua impacta,

pois, identitariamente, fixando marcas de pertencimento, quando o sujeito se sente

acolhido na/pela outra língua/cultura, ou de não pertencimento, quando o sujeito se

sente devedor em relação à outra língua/cultura. Em ambas as situações, entretanto,

o desejo está presente, mesmo que seja representado por sentimentos

contraditórios.

De acordo com Coracini (2011) e Revuz (1998), o contato com uma língua

adicional (e também com as variantes de uma língua materna) faz com que o sujeito

se depare com outras realidades além das que lhe foram inscritas pela língua

materna, quebrando o mito de língua/cultura puras e homogêneas, explicitando, em

consonância com Derrida (2001), que ninguém é proprietário da língua que, por sua

vez, não se deixa apropriar. Assim, a consciência de que há um outro que exerce

influência sobre si e sobre a sua cultura acaba por obrigar o sujeito a tornar-se, um

pouco, o outro. A alteridade discutida por todos os teóricos apresentados é, pois, o

núcleo que forja o sujeito, deslocando-o de um lugar único para outras realidades,

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fazendo-o viver permanentemente em um estado de ser/estar entre-línguas e entre-

culturas, tornando o hibridismo uma realidade inquestionável.

Nessa perspectiva, conforme Derrida (2001), não há duas línguas, como

também não há uma única língua, sendo que no jogo da enunciação coexistem

várias línguas, o que acaba sendo respaldado igualmente por Bakhtin (1990). Para

Bakhtin (1990), a natureza da língua é o plurilinguismo, de modo que o autor admite

a existência de múltiplas vozes discursivas que constituem identitariamente os

sujeitos. A fala, para Bakhtin (1990), é um processo social, motivo pelo qual é pelos

enunciados, ou seja, pelas falas imbuídas de ideologia das pessoas, que são

constituídos conceitos e identidades. Assim, a análise dos discursos dos sujeitos é

matéria relevante em um estudo que procura elucidar aspectos identitários de uma

comunidade. Nessa direção, no capítulo a seguir, retratam-se aspectos da história e

da cultura do povoado de Walachai, a fim de embasar a posterior análise dos

enunciados fílmicos.

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3 CONSTITUIÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL DE WALACHAI

“A tradição oral muitas vezes é incorreta como já descobri. Mas é melhor existirem falhas, do que esperar até tudo estar ‘evaporado’”. (WENDLING, 2013).

Foto 1: Placa da Comunidade de Walachai, na entrada do distrito

Fonte: Registrado pela autora (2015)

Aborda-se, neste capítulo, aspectos socioculturais do distrito de Walachai, a

fim de esboçar um panorama que auxilie a interpretar o objeto de estudo em

questão, a saber, o documentário Walachai. Para tanto, apresentam-se aspectos

históricos do lugarejo, contextualizando-se o episódio fundacional, a formação

populacional, os hábitos, a cultura, a religiosidade, o trabalho e a participação dos

primeiros moradores em episódios políticos de um Brasil ainda em formação,

abalado por recorrentes conflitos internos e externos.

É importante destacar que os dados históricos e culturais aqui trazidos

baseiam-se essencialmente na obra A História de Walachai, livro que apresenta

uma pesquisa minuciosa realizada pelo professor e morador de Walachai João

Benno Wendling (2013). Ressalta-se que, afora tal obra, não se encontrou

bibliografia acerca da vida da comunidade, motivo pelo qual a análise da história e

cultura do povoado aqui realizada respalda-se nessa obra do professor Wendling.

Como pessoa influente na comunidade, o docente passou nove anos colhendo

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relatos históricos com moradores e buscando reconstruir fatos, a fim de escrever a

história da localidade em que nasceu e na qual viveu durante toda a vida. Muito do

que é descrito acerca do povoado revela as próprias percepções do autor, que

reconhece o inacabamento da obra ao dizer que “a tradição oral muitas vezes é

incorreta [...]. Mas é melhor existirem falhas, do que esperar até tudo estar

‘evaporado’” (WENDLING, 2013, p. 73). A História de Walachai (foto 2) foi

publicada em 2013, já após a morte do seu autor (que ocorreu em 2009), e foi

editada pela mesma equipe que produziu o filme Walachai, em 2009.

Foto 2: Livro A História de Walachai (2009)

Fonte: Registrado pela autora (2015).

O objetivo deste capítulo é construir um panorama histórico do povoado, a fim de

estruturar a posterior averiguação dos enunciados do filme Walachai. Dessa forma, a

seção está disposta da seguinte forma: primeiramente são contextualizados aspectos

históricos e é delineada uma ampla visão sociocultural, e após são apresentados

elementos da vida religiosa e educacional que permearam a vida da comunidade.

3.1 HISTÓRIA

O povoado de Walachai foi fundado em 1829 pelo imigrante Mathias

Mombach, e pouco mais tarde a região foi habitada por famílias alemãs do

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Hunsrück13. (PORTAL BRASIL-ALEMANHA, 2014). Wendling (2013), em A História

de Walachai, contextualiza a chegada ao Brasil de Mombach e sua família, que seria

datada de 18 de março de 1829. Os documentos consultados pelo autor situam o

imigrante como lavrador, então com idade de 45 anos, e de naturalidade

prussiana14. Ele embarcou no porto de Bremen, no norte da Alemanha, no dia 26 de

setembro de 1828, em um grande veleiro chamado “Olbers”, que levava 874

pessoas a bordo. Viajou durante 83 dias, aportando no Rio de Janeiro em 17 de

dezembro de 1828. Mathias Mombach, sua esposa e cinco filhos ficaram alojados no

armazém do porto do Rio de Janeiro durante sete semanas, quando então um navio

português os levou ao porto de Rio Grande, em viagem de sete dias. De lá, em mais

cinco dias de viagem, chegaram a Porto Alegre e, em 18 de março de 1829,

finalmente aportaram em São Leopoldo.

A cidade de São Leopoldo havia sido fundada em 25 de julho de 1824, por

ocasião da chegada das primeiras famílias alemãs de imigrantes, que foram trazidas

pelo imperador Dom Pedro I para habitar a região e defender as fronteiras

constantemente ameaçadas de invasão pelos castelhanos. Até 1824, tratava-se de

uma localidade conhecida como Feitoria do Linho-cânhamo, habitada por índios

carijós e imigrantes açorianos. A colonização alemã ditou tão fortemente a

identidade local que em março de 2011 a cidade recebeu o título de Berço da

Colonização Alemã no Brasil15, pela Lei Federal nº 12.394. (BRASIL, 2011).

Mathias Mombach, portanto, teria chegado a São Leopoldo apenas cinco

anos após o início da colonização alemã. Entretanto, seu destino final não teria sido

esse, mas um território ainda mais distante, situado a cerca de 40 quilômetros dali.

Essa distância não era facilmente percorrida, já que a região era coberta por densa

mata e uma das únicas alternativas de transporte eram os animais. Sobre esse

primeiro morador de Walachai, Wendling (2013, p. 32) explicita:

13 O Hunsrück é uma região da Alemanha. Caracteriza-se como uma serra de montanhas baixas, localizada no estado da Renânia-Palatinado, no sudoeste da Alemanha. É cercada pelos vales do rio Moselle, ao norte, do rio Nahe, ao sul e do rio Reno, ao leste. Na Alemanha de hoje, a maioria dos falantes do Hunsrück é bilíngue: utiliza o dialeto ancestral nos lares e em situações informais, mas lê e estuda em Hochdeutsch, que tem gramática formalmente mais organizada e é a língua oficial da Alemanha. Na época das emigrações, entretanto, poucos eram os letrados em Hochdeutsch, motivo pelo qual os imigrantes levaram para o Sul brasileiro, com raras e notáveis exceções (caso de professores e profissionais mais graduados) apenas seus falares locais. (HUNSRÜCK, 2014). 14 É importante atentar para o fato, já mencionado, de que a Alemanha, até 1871, não era unificada, sendo que os imigrantes que vieram ao Brasil não eram identificados como alemães, mas como prussianos, bávaros, pomeranos, etc. 15 O título, até então, era disputado com a cidade de Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro.

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Mathias Mombach fez parte da guarda do imperador da França, Napoleão Bonaparte, como alferes de cavalaria. Para mostrar a sua coragem e valentia de velho soldado, transpôs com sua família o Morro Wolf e fundou a localidade que denominou Wallachei. Antes de vir morar aqui com sua família, veio primeiro construir sua casa. Foi preciso abrir uma picada até o local de seu lote de terras com 100 braças de frente e 1600 braças de fundo que recebera do governo imperial.

O excerto acima revela que muitos imigrantes, de fato, desbravaram regiões

inteiramente virgens a fim de se estabelecerem e iniciarem uma nova vida. Além

disso, mostra que o governo imperial brasileiro tinha interesse no povoamento das

zonas inexploradas do país, visando, sobretudo, à defesa e à soberania do território

nacional no período pós-independência. Dessa forma, prometia lotes de terras aos

imigrantes o que, de acordo com Wendling (2013), é comprovado pela existência de

“títulos de posse”. Assim, verifica-se que havia um sistema constituído que visava

trazer ao Brasil populações europeias em massa.

As fotos 3 e 4 mostram vistas atuais do povoado. Pode-se perceber que se

trata de uma comunidade interiorana, com paisagens ainda bastante virgens:

Foto 3: Vista da cidade de Dois Irmãos a partir de Walachai

Fonte: Registrado pela autora (2015)

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Foto 4: Estrada de chão batido, na comunidade de Walachai

Fonte: Registrado pela autora (2015)

3.2 ASPECTOS SOCIOCULTURAIS

A História de Walachai revela importantes aspectos socioculturais do povoado

de Walachai e arredores. Dentre os elementos sociais mais relevantes,

contextualiza-se, aqui, o relato da vida dos primeiros imigrantes, com destaque às

suas profissões e ao modo de sobrevivência nas colônias. Explicita-se, também, a

rotina e as opções de lazer e, por fim, traça-se um perfil da comunidade entre os

anos de 1881 e 1985, com base em dados informados pelo texto estudado.

Ao nomear os primeiros moradores de Walachai, Wendling (2013) cita as

profissões da maioria deles. Dentre as ocupações estão ferreiros, moleiros (donos

de moinho), agricultores, alfaiates, marceneiros, professores, carpinteiros,

apicultores, barbeiros, funileiros, pedreiros, fabricantes de cestos e de vassouras,

trançadores de artigos de couro, pequenos comerciantes, sapateiros, músicos.

Embora a gama de profissões seja grande, boa parte desses profissionais não

conseguia viver apenas de sua ocupação principal, sendo que muitos tiveram que

aprender a agricultura para prover o sustento da família. Wendling (2013) cita, ainda,

ocupações peculiares que algumas pessoas exerciam na comunidade: um homem

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conhecedor de ervas e “doenças” exercia a função de homeopata; outro atuava

como dentista e, ao extrair dentes, anestesiava os pacientes com cachaça; outro era

fabriqueiro16; havia também um sensor (conselheiro da diretoria da comunidade) (p.

60); e, por fim, um senhor que exercia atividades de veterinário, tratando de animais

doentes.

A vida dos primeiros moradores de Walachai parece não ter sido fácil. Os

próprios imigrantes tiveram que abrir estradas, com foices, para chegar às suas

terras, as quais apenas era possível acessar com cavalos e burros. As casas eram

construídas em mutirões, com madeira extraída da mata e, portanto, “cerrada a

muque” (WENDLING, 2013, p. 109). As casas geralmente possuíam alicerce alto

para a construção de porão e contavam com área social com sala e dormitório

principal, sótão que funcionava como quarto das crianças e área de cozinha

separada da casa principal, com o objetivo de evitar que um possível incêndio

pudesse destruir toda a propriedade. A iluminação era obtida através de candeeiros

alimentados com banha ou azeite de amendoim, sendo que a rede elétrica foi

instalada apenas em 1961.

Foto 5: Antiga casa colonial em que hoje funciona um antiquário

Fonte: Registrado pela autora (2015)

16 Fabriqueiro é membro do conselho paroquial, encarregado de recolher os rendimentos de uma igreja, administrar-lhe o patrimônio e zelar pela conservação de alfaias e paramentos. Disponível em: http://www.dicio.com.br/fabriqueiro/. Acesso em: 17 de abril de 2015.

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Foto 6: Vista das moradias da comunidade. Em primeiro plano, uma roça familiar

Fonte: Registrado pela autora (2015)

Como os imigrantes trouxeram ao Brasil poucos pertences, quase tudo o que

precisavam teve que ser confeccionado. Assim, tanto os móveis quanto os utensílios

domésticos foram fabricados pelos próprios colonos a partir das matérias-primas que

tinham à disposição: panelas e gamelas eram feitas de ferro fundido ou de folhas de

flandres; móveis e instrumentos agrícolas como saraquás e ancinhos eram talhados

com madeira oriunda das matas. Todos os processos eram rudimentares. Após a

colheita de cereais, por exemplo, Wendling (2013) explica que para soltar os grãos

das vagens ou das espigas (no caso de milho, feijão, ervilha), estas deveriam estar

bem secas, ser colocadas em trilhos (lonas de linho ou de algodão) e pisadas por

animais ou batidas pelos colonos. Já os grãos menores, como trigo, centeio, cevada,

aveia e arroz eram batidos sobre uma pedra bem chata, também em cima de

tecidos. Para limpar os grãos dos resíduos de casca, os colonos utilizavam

ventiladores, chamados de windmühle.

A agricultura era a principal fonte de renda e subsistência familiar. Os primeiros

colonos receberam cerca de 50 hectares17 de terra cada um, utilizando a área para o

plantio de produtos como batata, fumo, feijão, arroz, milho, trigo, cevada, centeio,

17 A área, entretanto, nunca era totalmente utilizável, devido ao terreno acidentado em que se localizavam os lotes. Chegou-se à informação de 50 hectares transformando-se em hectares a medida de 100 baças de frente por 1600 braças de comprimento, conforme apresentado por Wendling (2013, p. 32).

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linhaça, amendoim, abóbora, melancia, melão, linho (para fabricar os tecidos para as

roupas) e outros. Também a pecuária de subsistência tinha importante espaço, com a

criação de vacas, galinhas, patos e gansos. Os produtos eram usados para o

consumo das famílias e o excedente transportado pelos comerciantes até os

povoados de Hamburgo Velho e São Leopoldo para venda e/ou permuta. Da cidade,

os comerciantes traziam encomendas de produtos que os colonos não conseguiam

produzir, como açúcar, sal, erva-mate, fósforo, café, etc. A movimentação dessas

cargas era realizada essencialmente por tropas de burros ou de cavalos, sistemática

em que os animais eram acoplados uns aos outros em colunas. Segundo Wendling

(2013) tal método era muito utilizado no inverno, quando as carroças atolavam devido

à má conservação das trilhas. O transporte por carroças movidas à tração animal

intensificou-se após a Segunda Guerra Mundial, quando a situação das estradas

melhorou sensivelmente. Mais tarde, passou-se também a utilizar bois e vacas no

transporte, o que perdura até hoje em Walachai e arredores.

No que diz respeito à acessibilidade, o relato de Wendling (2013)

contextualiza que tanto a construção de estradas quanto a conservação delas

estava a cargo dos colonos, que se reuniam em mutirões para executar essa tarefa.

Bem mais tarde (data não explicitada pelo autor) o governo municipal de São

Leopoldo tomou a iniciativa de recrutar os próprios colonos para o serviço nas

estradas, remunerando-os pelo trabalho. Tal atividade era executada geralmente no

mês de fevereiro de cada ano, época de entressafra e, portanto, de folga dos

colonos. Somente em 1956 a tarefa de conservar e abrir estradas deixou de ser

responsabilidade dos colonos.

Os primeiros imigrantes viviam praticamente isolados, mantendo pouco

contato com os povoados maiores e encontrando dificuldades para se comunicar

com os parentes e amigos que deixaram na Europa. As correspondências

endereçadas às localidades de origem seguiam um grande fluxo: eram entregues

pelos imigrantes aos comerciantes, que as deixavam em Dois Irmãos com outros

comerciantes que, por sua vez, as encaminhavam a conhecidos de São Leopoldo ou

Porto Alegre que, por fim, as colocavam no correio. As cartas que chegavam da

Europa seguiam o fluxo contrário, demorando muitos meses para chegar. Wendling

(2013, p. 237-239) transcreve uma dessas cartas, enviada da Alemanha a um

parente imigrante morador de Walachai. O documento, datado de 1868, noticia

mortes de conhecidos do destinatário, uma epidemia de escarlatina que já havia

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vitimado 23 pessoas das redondezas de Masterhausen e Salzburg e a péssima

colheita, devido a uma tempestade que dizimou tudo, dando indícios de que a vida

do outro lado do Atlântico também não era fácil.

Um comerciante de Walachai era quem buscava, semanalmente, às quintas-

feiras, o jornal semanário católico “Deutsches Volksblatt18” em Dois Irmãos,

oportunidade em que também levava e trazia a correspondência comum. Para se

comunicarem com as pessoas de casa, os primeiros imigrantes utilizavam chifres de

bois cortados que, ao serem soprados, produziam sons de longo alcance. Com esse

instrumento, as famílias se comunicavam entre si, avisando, por exemplo, que o

almoço estava pronto ou que uma visita havia chegado. Quanto aos modernos

meios de comunicação, em 1934 chegou a Walachai o primeiro rádio e, na década

de 60, as primeiras televisões, após a instalação da rede elétrica em 1961.

No que diz respeito à rotina de vida, esta seguiu basicamente o mesmo fluxo

desde o início da colonização até os anos de 1960, de acordo com Wendling (2013):

trabalho de segunda a sábado à noite, cumprimento das obrigações religiosas no

domingo de manhã e visita a parentes e amigos no domingo à tarde. Nessas

oportunidades, além de conversas sobre o cotidiano, os homens e mulheres

separavam-se, e cada grupo jogava diferentes jogos de cartas. O autor também faz

menção a uma época em que aconteciam jogos de azar, como corridas de cavalo,

em que eram feitas apostas em dinheiro, e relata os encontros dos “amigos da

bodega” (WENDLING, 2013, p. 200), que visitavam o bar para “bater um papo”,

“tomar um trago”, “fazer um joguinho de cartas” ou “fofocar”.

Os nascimentos eram bastante festejados, ao contrário dos aniversários, que

geralmente passavam em branco. Os casamentos aconteciam durante a semana,

pela manhã, com a noiva vestida de preto. Após a celebração religiosa, era

oferecido, na casa de um dos noivos, um almoço aos convidados e, à tarde, uma

espécie de café colonial.

18 O jornal foi fundado por Hugo Metzler em 1871. Durante a Segunda Guerra Mundial, com a proibição do alemão, o periódico passou a ser ediado em Português, com o nome de “A Nação”. (WENDLING, 2013). O autor cita, ainda, uma série de jornais e revistas que também foram lidos em Walachai: “Jornal do Dia” ou “Michelsblatt” (editado a partir de 1946 pelos padres do Verbo Divino em Porto Alegre), “Correio Riograndense” (editado pelos padres capuchinhos de Caxias do Sul), “Deutsche Post” (editado em São Leopoldo a partir de 1877), “Serra Post” (editado em Ijuí a partir de 1910). Também se destacam revistas e almanaques como “Familienfreud – Kalender” (editado em Porto Alegre a partir de 1912), “Kalender für Deutschen in Brasilien” (editado em São Leopoldo a partir de 1881), “Riograndenser Marienkalender” (editado em Porto Alegre a partir de 1916), entre outros.

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Uma das festas populares mais importantes era o Kerb, festa de acepção

religiosa, comemorada anualmente na data da “kirchenweihfest”, ou festa de sagração

da igreja. A comunidade era totalmente enfeitada para tal festa, que começava com

missa solene e seguia com jogos populares, apresentação de banda e cortejo aos

salões de baile, onde os moradores e visitantes confraternizavam com bebidas e

danças. Perto do almoço, as pessoas dirigiam-se às suas casas, acompanhadas dos

parentes que vinham de perto ou de longe. Para muitas famílias, essa era a única

data do ano em que recebiam os parentes de longe. Estes ficavam hospedados na

casa dos anfitriões por vários dias, dormindo em instalações improvisadas.

O baile de kerb iniciava no domingo seguinte à festividade de sagração da

igreja, antes do pôr-do-sol e, por volta da meia-noite, era servido o jantar de kerb. Os

bailes seguiam por 3 noites seguidas e eram, para muitos, a oportunidade de

conhecer pessoas e de iniciar relacionamentos amorosos. Houve sensível mudança

na festividade com a Segunda Guerra Mundial, quando a proibição de falar alemão

em público acabou com as brincadeiras populares. Atualmente, o kerb está reduzido

a um baile no sábado à noite, à missa festiva, e ao almoço dominical com algum

parente que visita a casa, porém não mais nos moldes de antigamente, porque,

como não há mais dificuldade de locomoção, as pessoas não precisam ficar para

pernoitar na casa do anfitrião.

Outras festividades importantes celebradas pelos colonos eram o fim de ano e

a entrada de ano novo. Havia um grupo organizado, chamado “Foguetório”, que na

noite de ano novo passava de casa em casa recitando poesias e desejando aos

moradores um feliz ano novo. (WENDLING, 2013, p. 68). Durante a Segunda Guerra

esse hábito também foi suspenso, voltando apenas em 1946. No Natal, um Papai

Noel percorria as casas intimidando as crianças: os malcomportados recebiam

castigos a promessas de que seriam levados em sacos. Atualmente, as famílias

confraternizam-se isoladamente, e o hábito das “serenatas” e das festas

compartilhadas desapareceu.

Wendling (2013) divulga, em seu estudo, uma listagem de sócios da

comunidade católica de Walachai do ano de 1881. Segundo o autor, essa é a

relação mais antiga de que se tem conhecimento e foi retirada de um livro

pertencente à comunidade em questão, nomeado “Rechenbuch für die Gemeinde

Walachei”, ou livro dos contribuintes da comunidade de Walachai. Ao todo,

aparecem na listagem 46 pessoas (os nomes são de homens ou de mulheres

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viúvas), o que provavelmente equivale a 46 famílias. À parte as questões

religiosas, o documento revela o número de sócios da comunidade católica,

possibilitando a construção de um panorama social parcial do que seria o vilarejo

no final do século XIX, pouco depois de 50 anos de sua fundação. É preciso levar

em consideração que tal perspectiva exclui as famílias evangélicas, entretanto

revela um número mínimo de famílias já residentes na localidade no ano de 1881.

Além disso, há, ao lado dos nomes, a informação de que 13 dessas famílias

emigraram para outras localidades, sendo que 2 delas destinaram-se à cidade

gaúcha de Estrela. Quanto às demais famílias, não foi explicitado no documento o

local para onde emigraram.

Já em uma segunda relação de sócios apresentada por Wendling (2013),

datada dos anos de 1915 a 1917, triênio de construção da capela de Walachai,

aparecem listados 52 nomes, de modo que se pode analisar que, em 35 anos,

considerando-se os emigrantes que saíram da comunidade e os novos imigrantes

que chegaram, a população manteve-se relativamente estável. Nessa segunda lista

aparecem apenas três nomes de famílias que teriam emigrado no triênio, uma delas

para Brochier, também no Estado de Rio Grande do Sul.

Considera-se relevante o alto número de emigrações intra ou interestaduais

dos alemães ou de seus descendentes, especialmente nos primeiros anos de

imigração, porque esse aspecto revela, certamente, a falta de adaptação de muitos

deles ao local que lhes fora destinado, seja por falta de infraestrutura ou por

dificuldades de sobrevivência, já que a agricultura era essencial naquele contexto.

Assim, os que não se adaptavam à agricultura, tinham poucas chances de ali

permanecer, restando a emigração como alternativa. Ao lado desse aspecto, está

também a possibilidade de haver parentes ou amigos morando em outras regiões do

estado em melhores condições de vida, motivando os colonos a transferirem suas

residências. Wendling (2013, p. 190) respalda essa situação dizendo que o

enfraquecimento da terra foi a razão de muitos colonos terem emigrado para

“Estrela, mais tarde para Cerro Largo, Santo Cristo, Campina das Missões, Selbach

e Itapiranga”. O autor acrescenta que “os colonos que ficaram finalmente

encontraram uma saída com o surgimento do adubo químico”. (idem, p. 190-191).

A última relação de sócios da comunidade católica de São Nicolau

apresentada pelo autor data de 1985 e conta com 80 nomes, evidenciando que,

após 70 anos, apesar de ter havido aumento do número de habitantes, não houve

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crescimento algum se se levar em consideração os anos transcorridos. Quanto à

comunidade evangélica, Wendling (2013) apenas apresenta dados informais. O

levantamento incompleto realizado identificou 15 sócios de tal comunidade no ano

de 1929 e 22 sócios no ano de 1986. (WENDLING, 2013). Assim, tais dados são

apenas complementares, mas não contribuem para um perfil completo da

população.

3.3 RELIGIOSIDADE

Ao fazer um levantamento pormenorizado dos primeiros moradores de

Walachai, Wendling (2013) faz referência à religião de cada um deles, mostrando a

relevância que o tema tinha na comunidade. Os dados pesquisados e

disponibilizados pelo autor revelam que os primeiros imigrantes eram ou católicos ou

evangélicos. O perfil religioso é importante para compreender os hábitos desses

habitantes e o funcionamento da comunidade. No que tange aos católicos, há um

extenso calendário religioso de datas e comemorações que acaba por ditar toda a

rotina comunitária, o que é exemplarmente descrito por Wendling (2013), ele mesmo

católico fervoroso. O autor narra, portanto, com riqueza de detalhes a vida religiosa

da comunidade católica, deixando muitas lacunas em relação aos exercícios

religiosos dos evangélicos.

Um ponto relevante é o fato de que, até o ano de 1849, o distrito não teve

nenhum amparo religioso, a não ser uma visita anual do pároco de São Leopoldo.

Assim, de uma só vez, o sacerdote batizava todas as crianças nascidas no intervalo

de tempo decorrido desde a sua última visita, efetuava casamentos em série e ouvia

confissões: “Um fato curioso é que o pároco não entendia alemão e para atender

uma confissão individual valia-se de uma lista, da qual constavam os principais

pecados em português, espanhol e [...] alemão. O penitente indicava nessa lista os

seus pecados [...]” (WENDLING, 2013, p. 129). Em 1849 chegou ao distrito de Dois

Irmãos um padre que falava alemão, e foi construída a primeira capela da região, na

localidade de Rioloch, perto de Walachai, pelas mãos dos imigrantes.

Wendling (2013) evidencia a religiosidade das famílias explicitando que o

catecismo era matéria obrigatória de estudo das crianças. Os pais eram os

primeiros responsáveis pela formação religiosa dos filhos, ensinando-lhes orações,

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mandamentos e sacramentos. A rotina de orações em família era intensa, sendo

que longas meditações eram realizadas pela manhã e à noite. A missa dominical

mais próxima, inicialmente, era rezada na comunidade de Dois Irmãos, distante

cerca de 20 quilômetros e, mesmo assim, muitas famílias procuravam acompanhá-

la. Wendling (2013, p. 133) lista, ainda, as capelas que mais tarde foram sendo

construídas, todas ligadas à “primitiva paróquia de Dois Irmãos”: Morro Reuter,

Picada São Paulo, Walachai, São José do Herval, Santa Maria do Herval, Boa

Vista do Herval, Padre Eterno, Marcondes, Renânia, Serra Grande, Pinhal Alto,

Jammerthal e Morro dos Bugres, apresentando uma prova incontestável da fé e do

espírito de religiosidade dos imigrantes.

A primeira capela de Walachai, cujo padroeiro é São Nicolau, foi inaugurada,

conforme Wendling (2013), no 5º Domingo da Páscoa do ano de 1917, depois de 3

anos de construção. Até aquele ano, os imigrantes festejavam o kerb na data do

padroeiro do povoado de Dois Irmãos, São Miguel, no dia 29 de setembro. Com a

construção de capela própria, puderam “emancipar-se” do distrito vizinho,

adquirindo, mesmo que parcialmente, uma identidade religiosa própria.

Foto 7: Igreja de São Nicolau, fundada em 1917

Fonte: Registrado pela autora (2015)

No que tange à comunidade evangélica, Wendling (2013) não aprofundou sua

pesquisa, mas explicita que as pessoas dependeram da comunidade do povoado de

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Dois Irmãos por mais tempo do que os católicos, até 1929, quando construíram seu

primeiro templo em Walachai. Ponto importante é o fato narrado pelo autor de que

as duas comunidades, católica e evangélica, sempre conviveram pacificamente,

ajudando-se reciprocamente e participando juntos dos festejos populares.

3.4 EDUCAÇÃO

Nos primeiros anos de colonização não havia educação formal em Walachai.

As crianças recebiam em casa a instrução que seus pais podiam dar. Entretanto,

logo as famílias tiveram que se dedicar integralmente ao trabalho na roça, e os filhos

passaram a se reunir em casas de pessoas que se dispunham a ensiná-los. Em

1866, por iniciativa da comunidade, foi construída uma escola particular paroquial e

escolhido um professor “com instrução um pouco mais aprimorada” (WENDLING,

2013, p. 161), que era pago semestralmente pelos pais, para tomar conta da

instrução infantil. Segundo Wendling (2013, p. 161), “A duração do tempo escolar foi

estabelecida em quatro anos. Não havia férias, sendo que o ano escolar iniciava na

terça-feira após o domingo ‘in Albis19’ e terminava no sábado anterior ao domingo ‘in

Albis’” do ano seguinte.

As aulas aconteciam em período integral e consistiam em “aprendizagem da

leitura, escrita, redação de cartas, matemática prática, canto e principalmente do

ensino religioso, tendo como guia o catecismo e a História Sagrada, que era um

resumo da Bíblia” (WENDLING, 2013, p. 161-162). Utilizava-se como material uma

cartilha ABC (Buch ou Fiebel, impressa desde 1832 em Porto Alegre), lousa, pena

de pedra, régua, pano para apagar a lousa e um vidro com água para molhar o

pano. Chama a atenção o relato do autor acerca dos métodos pedagógicos

utilizados na comunidade. Verifica-se que os castigos físicos eram frequentes e que

a base da aprendizagem era a memorização:

Os alunos da 3ª e 4ª séries tinham de decorar até as explicações do catecismo que se seguiam às respostas das perguntas. Quem não sabia, apanhava ou tinha de estudar durante o recreio ou tinha de se ajoelhar na soleira da porta da escola com as mãos para o alto e com um cartaz preso nas costas com os dizeres: ‘aqui está ajoelhado o burro’. Naquela época os castigos físicos eram bastante brutos e abundantes. Se o aluno não

19 Na tradição católica, o Domingo “in Albis” é o segundo domingo de Páscoa.

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aprendia por bem, era por mal, sem se tomar em consideração a sua capacidade de aprendizagem. (WENDLING, 2013, p. 162).

O autor narra que, de tempos em tempos, havia reuniões entre os professores

das várias picadas, a fim de trocarem experiências e receberem diretrizes de ensino.

Essas reuniões eram presididas pelo pároco, o que revela a forte influência da

religião sobre a atividade educacional, mas também possibilita inferir que havia certa

organização pedagógica.

Outro ponto importante é o relato de Wendling (2013) acerca da língua, da

identidade e da responsabilidade do governo local acerca da trajetória que se seguia

em Walachai: “O ensino era tão somente em alemão. Nem se desconfiava que se

estivesse no Brasil e que a língua pátria passara a ser o português. O grande

omisso nessa questão não foram os imigrantes, mas sim o próprio governo, alheio à

sorte dos colonos” (WENDLING, 2013, p. 163).

A partir de 1937, o presidente Getúlio Vargas proclamou o Estado Novo e,

com ele, a nacionalização do ensino. Como consequência, passou a haver

interferência do estado no formato educacional, causando descontentamento dos

religiosos, que até então tinham nas mãos a administração escolar. Assim, em 1940

foi aberta no distrito uma escola pública, de caráter gratuito. O padre queria que os

pais mandassem os filhos durante 4 anos à escola paroquial e somente depois à

nova escola pública. O assunto gerou enorme tensão entre os moradores e atritos

com o poder público. (WENDLING, 2013). Nessa nova escola, foram introduzidas

matérias como Geografia e História do Brasil, Hino Nacional Brasileiro, Hino à

Bandeira e Língua Portuguesa. As duas instituições conviveram em tensão até o ano

de 1945, quando o Brasil declarou guerra à Alemanha e o uso da língua alemã foi

proibido no território nacional, causando nova crise à escola paroquial, que foi

fechada. Assim, em 1945 a escola pública passou a ser a única alternativa,

chegando a ter 56 alunos matriculados.

Em pouco tempo, porém, novos problemas surgiram. Os professores, que

moravam em São Leopoldo, tinham que ficar durante a semana em Walachai e voltar

à sua cidade nos finais de semana. Como a escola era de difícil acesso e o transporte

precário, a instituição acabava funcionando de quarta a sábado, desgostando a

comunidade. Além disso, a troca de docentes era constante, motivando mais

descontentamento. Com esse cenário, em fevereiro de 1947 a escola pública também

fechou, ficando o distrito de Walachai sem instituição educacional.

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Para que os alunos não ficassem sem escola, foi improvisada uma sala de aula

na sala de estar da casa de uma das famílias, e convidado a lecionar um morador do

distrito que estudara fora e se formara em um seminário de São Paulo. Como tudo era

improvisado, mais uma vez a comunidade se organizou para obter fundos e construir

uma nova escola, já que sabiam que não podiam contar com a ajuda da prefeitura.

Assim, em dezembro de 1947, foi inaugurada a escola municipal Inácio Montanha,

que pouco depois foi arrasada por uma tempestade. A alternativa, assim, foi a escola

voltar a funcionar no prédio da antiga escola paroquial de 1866, sendo tal imóvel

alugado pelo pároco ao município de São Leopoldo. (WENDLING, 2013).

Wendling (2013) afirma que os professores da zona colonial alemã muitas

vezes foram acusados, pelas autoridades de ensino, como incompetentes para

alfabetizar devido ao baixo rendimento dos alunos. Entretanto, não era levada em

consideração a situação peculiar das crianças, que nada compreendiam do idioma

português até entrar na escola. Segundo o autor, era necessário, ao mesmo tempo,

“nacionalizar e alfabetizar a criança” (WENDLING, 2013, p. 171) e levava-se, nesse

processo, no mínimo dois anos. A partir da década de 1960, melhorou muito a

qualidade de material didático e das instalações escolares, e passou a ser exigida a

permanência dos alunos na escola até os 14 anos de idade. Atualmente, a escola

continua funcionando em um prédio completamente reformado.

3.5 IMIGRANTES ALEMÃES E IDENTIDADE NACIONAL: A PÁTRIA PERDIDA

Com base na análise sociocultural realizada, verifica-se que, embora o distrito

tenha sido colonizado por agricultores e profissionais pobres20, diferentemente do que

ocorreu em algumas outras regiões do Brasil que foram povoadas por alemães

intelectuais e que possuíam profissões mais valorizadas e de maior relevância social,

essa localidade também se manteve fiel às origens germânicas, constituindo-se como

uma cultura à parte dentro do contexto brasileiro. Uma das razões para isso foi, sem

dúvida, a distância geográfica de qualquer outra cultura e, consequentemente, a

solidão a que foram expostas essas pessoas, que viviam isoladas em um lugarejo de

difícil acesso e com quase nenhuma assistência do governo local.

20 É importante destacar que aos alemães intelectuais e com formação profissional foram distribuídas terras melhores e mais bem localizadas. Essas pessoas, sendo mais politizadas, reivindicavam seus direitos, ou seja, exigiam o que o governo brasileiro lhes havia prometido.

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Bredemeier (2010), em seu trabalho, expõe que a colonização alemã muitas

vezes é estigmatizada pela historiografia, que procura mostrar que os imigrantes

viviam isolados em suas comunidades. A autora, entretanto, contesta essa

percepção, mostrando que há evidências de que os alemães não se isolaram, mas

dividiam vilarejos com luso-brasileiros e com outros grupos étnicos, bem como

faziam reivindicações às autoridades e tentavam se inserir na vida política vigente

nas colônias. Embora se julgue ser pertinente o ponto de vista da autora, pondera-

se, contudo, que a realidade de colônias mais longínquas, dentre as quais se inclui o

povoado de Walachai, era, possivelmente, distinta. Tal comunidade e tantas outras

eram realmente isoladas e fechadas, diferentemente de colônias maiores, como São

Leopoldo e Santa Cruz do Sul, por exemplo. Assim, com a difícil tarefa de

sobreviverem como agricultores num mundo distante da sua pátria e passando por

inúmeras privações, muitos imigrantes iniciaram a sua vida no ‘novo mundo’

fortemente arraigados à cultura mãe, a germânica. Conforme Eckert-Hoff (2010, p.

87), nesses povoados, “a língua alemã foi o idioma oficial por muitos anos”.

Além disso, pairava sobre os sujeitos o espírito alemão, traduzido pela ideia de

“Heimatland”21, um forte sentimento de nacionalismo em relação à Pátria distante, que

revela exemplarmente a ideia de comunidade imaginada exposta por Hall no capítulo

anterior. Tal construção simbólica serve-se da narrativa da nação, da ênfase nas

origens e da noção de um grupo social puro para se edificar. Outrossim, o Heimatland

acaba por revelar uma condição de vulnerabilidade identitária, já que esses imigrantes

ansiavam por ter uma nação com a qual se identificar e à qual serem leais, como

também explicitado por Hall (2005). Nas palavras de Eckert-Hoff (2010, p. 88),

estabelecia-se um “conflito subjetivo da busca de uma identidade nacional”, de um

sentimento de pertencimento que tais pessoas não encontravam na terra “adotiva”.

Tal sentimento era intensificado pelo aparente descaso das autoridades

brasileiras. No caso dos imigrantes pobres, eram ainda mais acirradas as

dificuldades encontradas, sendo que a percepção que tinham é a de que estavam

entregues à própria sorte. Quando nas décadas de 1930 e 1940 inicia-se uma

espécie de perseguição mundial aos alemães em decorrência da política nazista de

Hitler, o governo brasileiro proíbe o uso da língua alemã, fechando escolas,

impedindo o uso da língua nas igrejas e interditando os jornais redigidos em língua

21 Terra natal, pátria.

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alemã. (ECKERT-HOFF, 2010). Outra motivação para tal medida foi a política

nacionalista de Getúlio Vargas, que buscava propagar, no Brasil, uma identidade

cultural unificada, construída, especialmente, a partir da obrigatoriedade de uso da

língua nacional, a portuguesa.

Conforme Labes (2007 apud ECKERT-HOFF, 2010, p. 88-89), o período de

interdição do Estado Novo foi “de silenciamento linguístico e de castração de uma

cultura, pois silenciou não somente um povo, como emudeceu uma cultura, tudo

fortemente vigiado para instituir o sentimento de Nação, de brasilidade”. Assim,

esses imigrantes “tiveram que se tornar brasileiros” (ECKERT-HOFF, 2010, p. 89)

por decreto, ou seja, foram arbitrariamente aculturados. Todavia, um decreto

governamental pode calar a voz dos que não sabem se expressar na nova língua

oficial, mas não muda o sentimento das pessoas em relação à língua de origem, a

única capaz de lhes transmitir certos sentidos. Além disso, um processo de

interdição de uma língua e de assimilação compulsiva de outra deixa sequelas

profundas, já que a língua é um dos elementos identitários primordiais de um grupo

social. Nesse contexto experienciado pelos imigrantes alemães que habitaram o Sul

do Brasil, é latente o sentimento de exílio e de não pertencimento:

Os descendentes se encontravam fora-da-língua, fora da Nação que habitavam, num não-lugar, num território que não era o mesmo habitado pela língua, logo estavam desterritorializados, estranhos na própria casa, o idioma falado pela e na nação não lhes pertencia. (ECKERT-HOFF, 2010, p. 92).

A partir da realidade apresentada, percebe-se que o processo de

hibridização entre a cultura dos imigrantes alemães da região de Walachai e a

cultura brasileira não foi livre de tensionamentos. Ao contrário, pelos diversos

motivos expostos, essa interação acabou se dando de maneira arbitrária, através

do exercício do poder, o que também respalda a teoria de Hall (2005) e de Bhabha

(2007), deixando profundas consequências na constituição da comunidade em

questão. Tais efeitos são vislumbrados e discutidos no capítulo 5 da presente

dissertação, por meio da análise dos enunciados do filme elaborado sobre a

região. A seguir, apresentam-se os aspectos que situam metodologicamente esta

dissertação.

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4 ASPECTOS METODOLÓGICOS

Considerando que o objeto de estudo desta dissertação é um documentário,

no início deste capítulo se faz uma breve referência ao arcabouço teórico que

envolve esse tipo de filme. Num segundo momento, faz-se referência específica ao

documentário abordado como objeto de estudo desta dissertação, evidenciando o

que se julga ser o objetivo dessa obra cinematográfica documental. Além disso,

explicita-se brevemente a estrutura fílmica e contextualiza-se a macrorregião em que

ocorreram as filmagens. Em outra seção, delimitam-se os aspectos metodológicos,

elucidando as dimensões de análise e, por fim, na última seção, apresenta-se como

os dados serão analisados.

4.1 FILME DOCUMENTÁRIO

De acordo com Penafria (1999), o filme denominado documentário presta-se a

uma multiplicidade de manifestações de caráter documental, assumindo diversas

formas, a ponto de se tornar difícil defini-lo a contento. O documentário comumente

cumpre a função de documentar a vida das pessoas e os acontecimentos do mundo.

(PENAFRIA, 1999). Na maioria das vezes, requer que as imagens e sons com que se

pretende trabalhar sejam obtidos nos locais em que as pessoas vivem ou em que os

acontecimentos ocorrem. Além disso, esse tipo de filme impõe que a temática

abordada seja tratada em profundidade e, para tanto, exige uma linha de abordagem.

O elemento que provê a unidade do documentário, de acordo com Penafria

(1999), é o documentarista. Este estabelece uma relação próxima com a temática e,

por meio de criatividade e da ótica pela qual decide abordar o assunto, deve efetivar

a montagem coerente da sucessão de imagens e sons que capta. Assim, o

documentário é uma construção a partir da perspectiva do documentarista. Ainda

conforme a mesma autora, “o documentário é um espaço onde existe, e deverá

existir sempre, a possibilidade de construção de significados a partir das imagens e

dos sons do mundo que nos rodeia”. (PENAFRIA, 1999, p. 2-3).

Coutinho (1997) afirma que um documentário “não é a filmagem da verdade.

Admitindo-se que possa existir uma verdade, o que o documentário pode pressupor

[...] é a verdade da filmagem”. (1997, p. 167). De acordo com o autor, há que se ter

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em mente que cinema não é ciência, e que o cinema está muito mais situado “no

campo do imaginário e do subjetivo”. (1997, p. 167). Dessa forma, um documentário

se prestaria exemplarmente a mostrar a subjetividade das pessoas, que ao falarem

de si, expõem muito mais do que a sua realidade íntima, mas revelam todo o jogo

societário em que estão envolvidas, e mais, revelam não só a verdade, mas aquilo

que elas imaginam ser a verdade. A reunião desses posicionamentos ou dessas

“verdades” é realizada pelo viés, também imaginativo, do documentarista.

Coutinho (1997) ainda revela que é mito o fato de que a presença da câmera

provoque artificialidade dos gestos, mudando as pessoas. Pelo contrário, o

interessante é justamente verificar o processo de interpretação das pessoas, o que

acaba por revelar uma superverdade delas. Também é importante a perspectiva de

que não se deve ter preconceitos ou pré-julgar o outro sem conhecer o seu universo

cultural, ou ainda tentar interpretar o mundo do outro através do próprio sistema de

valores. Dessa forma, conclui-se que o relevante em um documentário é o diálogo, o

que é respaldado por Coutinho (1997) ao afirmar que é preciso tanto a voz do

interlocutor quanto a do próprio pesquisador, ou seja, daquele que faz perguntas, já

que esse processo de provocar respostas acaba por estabelecer a unidade do

documentário, como expressado por Penafria (1999). De acordo com Coutinho

(1997, p. 165-166)

o único interesse do filme documentário que trabalha com som direto, com pessoas vivas, não com natureza morta, é um diálogo, e esse diálogo tem que estar presente no filme [...]. As perguntas são essenciais como demonstrativo de uma voz que vem de fora, é algo que provoca e que gera um confronto.

O autor deixa claro, todavia, que o diálogo operado no interior de um projeto

documental é assimétrico, já que há, por parte do pesquisador, um instrumento de

poder, a saber, a câmera, cujos materiais captados podem ser manipulados pelo

documentarista. (COUTINHO, 1997). Nesse sentido, é essencial que o pesquisador

atente a limites éticos, de modo a não destorcer o que é dito, apesar de, às vezes,

discordar do ponto de vista do entrevistado. No tocante a essa questão, Coutinho

(1997, p. 169) argumenta que é necessário “respeitar sua integridade, seja ele um

escravo que ama a servidão, seja ele um escravo que odeia a servidão”. O autor

conclui dizendo que se o cineasta só ouvir o que quer ouvir, acumulará um grande

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número de respostas previsíveis que, entende-se, não contribuem para a criação de

algo novo ou original.

Um último ponto levantado pelo autor, diz respeito a uma possível concorrência

entre ficção e documentário, fato que deixaria o segundo gênero em desvantagem:

90% dos jovens cineastas e videastas querem fazer ficção, porque o documentário criou esta aura de ser didático, de ser moral, de ser educativo, de ser verdadeiro. Isto é uma lástima porque os documentários que rompem com esse esquema raramente passam na TV, e na verdade não é assim, o documentário trabalha com o imaginário, com a subjetividade, e pode ser tão falso como a ficção e a ficção pode ser tão verdadeira quanto um documentário. A diferença, entre outras coisas, é que, trabalhando num documentário, você se expõe de início a uma limitação que não é só ética, é a limitação de que você trabalha, no caso do som direto, com pessoas, e não pode mudar o que elas falam; você tem que respeitar uma certa estrutura de pensamento na comunidade e é obrigado a respeitar coisas que a ficção não precisa. (COUTINHO, 1999, p. 184).

Nesse contexto, tem-se que a responsabilidade ética do documentário é

maior do que a do filme ficcional. Assim, embora a edição seja necessária, é preciso

manter uma preocupação em preservar o mundo cultural da comunidade ou a

“verdade” das personagens com quem se interage. A seguir, explana-se a ficha

técnica do documentário Walachai.

4.2 DOCUMENTÁRIO WALACHAI: CORPUS DE ANÁLISE

O filme Walachai foi produzido por Zilles e Okna Produções, em 2009,

recebendo patrocínio, apoio e financiamento de vários colaboradores regionais e

estaduais, bem como do Ministério da Cultura, vinculado ao governo federal. Sobre

a diretora, Rejane Zilles, e sobre o seu objetivo ao produzir o filme, assim se

referencia o site oficial do documentário:

A ideia de documentar a singularidade deste povoado está ligada à história pessoal da diretora do filme. Rejane Zilles nasceu nesta região e lá passou toda a sua infância. Aprendeu a falar português somente aos sete anos de idade quando ingressou na escola. Hoje mora no Rio de Janeiro, é atriz e diretora. Ainda fala o dialeto local e mantém laços familiares na comunidade – o que lhe permitiu uma abordagem especial do assunto. Ao realizar este filme, Rejane trilhou um simbólico caminho de volta para o universo mágico e desconhecido do Walachai, que segue lhe impressionando, a cada imersão em seu interiores. (WALACHAI, 2015).

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O documentário tem duração de 1h24min com os créditos, e foi inteiramente

filmado na localidade de Walachai e arredores. É constituído por depoimentos de 40

diferentes pessoas, sendo 17 mulheres e 23 homens. Os 40 enunciadores ainda se

subdividem em 14 adultos, 17 idosos, 7 jovens e 2 crianças, de modo que se

evidencia um grupo heterogêneo, com boa representatividade no tocante ao gênero

e a faixa etária. Alguns desses atores aparecem apenas uma vez no filme, enquanto

outros surgem mais de uma vez, com falas sequenciais ou intercaladas com

enunciados de outros sujeitos. É importante mencionar que, quando transcritas as

falas, obtiveram-se 118 diferentes enunciações.

Os participantes foram, pois, filmados na sua comunidade, durante as suas

atividades corriqueiras. Assim, os cenários em que se passa o documentário são as

casas, os postos de trabalho, os locais de entretenimento dos enunciadores ou

simplesmente as estradas de terra de Walachai. As percepções individuais que os

atores expõem sobre diversos temas vão se sobrepondo e construindo unidades que

revelam formas de vida, sentimentos, rotinas, enfim, múltiplas identidades

amplamente forjadas pela linguagem e marcadas nos enunciados. Assim, a obra

cinematográfica documental apresenta-se como um elemento que intervém na

história, com o objetivo de mostrar “Um Brasil que os próprios brasileiros ainda

desconhecem”. (WALACHAI, 2009).

Foto 8: Capa do Filme Walachai

Fonte: Walachai (2009).

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É importante destacar que Walachai é apenas uma das muitas localidades

existentes na região. Inclusive, na obra cinematográfica, o trabalho de pesquisa

realizado não se resume ao distrito de Walachai (atualmente município de Morro

Reuter), mas contempla também as colônias de Frankenthal e Batatenthal (também

pertencentes à Morro Reuter), de Padre Eterno (atualmente município de Santa Maria

do Herval) e de Jammerthal (atualmente município de Picada Café). Assim, entende-

se ser importante discorrer, brevemente, sobre tais localidades e municípios.

O nome Jammerthal significa “Vale das Lamentações”. Reza a lenda que um

cavaleiro, ao chegar ao topo de um morro da região, olhou para trás e, vendo a

paisagem bucólica e abandonada, chamou-a, em alemão, de Vale das

Lamentações, dando origem ao nome. Essa lenda é passada de geração em

geração pela cultura oral, apesar de não poder ser historicamente comprovada. O

distrito inicialmente pertencia a São Leopoldo (desde 1824), depois ao município de

São Sebastião do Caí (desde 1875), após a Nova Petrópolis (desde 1954) e, desde

1992, pertence ao município de Picada Café, que conta, atualmente, com população

total de 5.498 habitantes. (LISTA, 2015; IBGE, 2014).

O distrito de Padre Eterno, cujo nome é popularmente alusivo à visita de certo

padre à comunidade, inicialmente pertencia a São Leopoldo (desde 1824), depois à

cidade de Dois Irmãos (desde 1959) e, desde 1988, pertence ao município de Santa

Maria do Herval, que possui, atualmente, população total de 6.312 habitantes.

(LISTA, 2015; IBGE, 2014).

Frankenthal, ou Vale dos Frank, tem seu nome ligado, provavelmente, ao fato

de ter sido colonizado pela família Frank. Já Batatenthal, que significa Vale das

Batatas, é assim chamado por estar localizado em região favorável ao cultivo de

batatas. (WENDLING, 2013). Quanto à Walachai, a palavra significa, em alemão

antigo, lugar longínquo, distante de tudo. Respaldando o nome que recebeu, o

distrito encontra-se literalmente perdido entre os morros de um acidentado terreno.

Frankenthal, Batatenthal e Walachai inicialmente pertenciam ao município de São

Leopoldo (desde 1824), depois a Dois Irmãos (desde 1959) e, desde 1992,

pertencem à cidade de Morro Reuter, que conta, atualmente, com população total de

6.056 habitantes. (LISTA, 2015; IBGE, 2014).

As cinco localidades citadas acima, embora divididas entre três diferentes

municípios por questões geopolíticas, limitam-se territorialmente entre si e mantêm

unidade cultural no que diz respeito à língua, aos hábitos e às rotinas de suas

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populações. Além disso, foram constituídas de maneira similar, a saber, pela

colonização de imigrantes alemães. Assim, não há mudanças significativas no seu

processo de formação histórico-social, motivo pelo qual o seu estudo não deve

levar em consideração limites territoriais. O filme a ser analisado contextualiza

essas diversas localidades, mas convencionou abarcá-las todas em uma unidade

maior, Walachai, que merece tal destaque por ter sido o primeiro desses povoados

a ser fundado. Dessa forma, seguindo a mesma linha da obra cinematográfica,

neste trabalho também não se faz distinção entre as diferentes colônias

documentadas. Apresentam-se, a seguir, aspectos metodológicos que norteiam a

pesquisa em questão.

4.3 METODOLOGIA DA PESQUISA

Neste estudo, pretende-se realizar uma análise qualitativa dos enunciados

vinculados ao filme Walachai (2009). Os estudos qualitativos caracterizam-se por

estudar profundamente os fenômenos sociais, entendendo que os significados são

construídos nas interações e nas relações com o outro. Nessa perspectiva, Triviños

(1987, p. 117) apresenta que um dos enfoques da pesquisa qualitativa é o crítico-

participativo com visão histórico-estrutural, que se baseia na “dialética da realidade

social que parte da necessidade de conhecer (através de percepções, reflexão e

intuição) a realidade para transformá-la em processos contextuais dinâmicos

complexos”. Como características principais desse tipo de pesquisa, Triviños (1987)

cita 5 aspectos:

a) A pesquisa qualitativa tem o ambiente como fonte direta dos dados e o

pesquisador como instrumento-chave: o meio é instrumento crucial “na

configuração da personalidade, problemas e situações de existência do

sujeito”. (TRIVIÑOS, 1987, p. 128). O meio deve ser tomado como uma

realidade ampla e complexa, na qual aspectos econômicos, políticos,

religiosos, etc. conferem significados essenciais à vida humana. O

pesquisador deve, pois, estar imbuído dessa visão ampla do meio;

b) A pesquisa qualitativa é descritiva: os fenômenos sociais são descritos na

pesquisa qualitativa, de modo a “captar não só a aparência do fenômeno,

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como também sua essência”. Além disso, procuram-se “as causas da

existência [do fenômeno] [...], sua origem, suas relações, suas mudanças

e se esforça por incluir as consequências que ter[á] para a vida humana”.

(TRIVIÑOS, 1987, p. 129);

c) Os pesquisadores qualitativos estão preocupados com o processo e não

simplesmente com os resultados e o produto: importa o desenvolvimento

do fenômeno, “não só em sua visão atual [...], como também [...] em sua

estrutura íntima, latente, inclusive não visível ou observável” em uma

análise superficial, “para descobrir suas relações e avançar no

conhecimento de seus aspectos evolutivos, tratando de identificar as

forças decisivas responsáveis por seu desenrolar característico”.

(TRIVIÑOS, 1987, p. 129);

d) Os pesquisadores qualitativos tendem a analisar seus dados

indutivamente: o ponto de partida da pesquisa é o fenômeno social, que

acontece fora da consciência. “Ele é real, concreto e, como tal, é

estudado. Isto significa enfocá-lo indutivamente”. Entretanto, ao mesmo

tempo, “ao descobrir sua aparência e essência, está-se avaliando um

suporte teórico que atua dedutivamente, que só alcança a validade à luz

da prática social”. (TRIVIÑOS, 1987, p. 129); e

e) O significado é a preocupação essencial na abordagem qualitativa: a

pesquisa qualitativa busca detectar os significados que as pessoas dão aos

fenômenos, ultrapassando uma compreensão simples, superficial e estética.

Procura as “causas de sua existência, suas relações, num quadro amplo do

sujeito como ser social e histórico, tratando de explicar e compreender o

desenvolvimento da vida humana e de seus diferentes significados no devir

dos diversos meios culturais”. (TRIVIÑOS, 1987, p. 130).

A abordagem explicitada acima é a seguida pela presente dissertação, tendo

em vista que se busca estudar em profundidade o fenômeno social de configuração

identitária de uma comunidade de imigrantes alemães, levando-se em consideração

as múltiplas interações do meio com os sujeitos e as relações histórico-sociais

responsáveis pela concepção identitária da população.

Os dados analisados são gerados a partir dos enunciados do documentário.

Assim, é preciso levar em consideração as características específicas do objeto de

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pesquisa, já que a produção de um documentário impõe a ocorrência de situações

como:

a) falta de espontaneidade dos participantes do documentário, visto que se

encontram em uma situação de tensionamento provocada,

principalmente, pela presença de uma câmera de filmagem, de uma

equipe de produção e de um entrevistador que motiva as falas por meio

de perguntas. Pelo fato de o objeto de pesquisa contemplar uma

comunidade interiorana e de as pessoas apresentarem forte sotaque ao

falar português, verifica-se, por vezes, sentimentos como timidez ou

vergonha ao ocorrer a exposição diante da câmera;

b) as questões são elaboradas por um entrevistador, motivo pelo qual não

há imparcialidade, mas um certo direcionamento dos temas, a fim de se

alcançar determinadas respostas; e

c) toda obra cinematográfica sofre edição, ou seja, cortes, que determinam o

material que deve ser exibido em detrimento do que não deve fazer parte

do resultado final. Algumas partes, ainda, são realocadas, ou inseridas

em outros contextos a fim de se otimizar o espaço/tempo da obra

cinematográfica. Tal manipulação evidencia escolhas por parte de quem

edita, estando o material final à mercê de quem executa tal tarefa.

Dessa forma, verifica-se que um documentário nunca é isento de ideologia, já

que se constitui por recortes, ou seja, por frações de imagens, histórias e relatos que

parecem pertinentes ou afins aos objetivos do autor da obra. Isso significa que um

filme acaba por revelar um recorte de uma realidade e nunca retrata uma realidade

per se. A próxima seção abrange aspectos que norteiam a rota trilhada para realizar

a análise dos dados.

4.4 DIMENSÕES DE ANÁLISE

A fim de analisar os dados, tomou-se como temas norteadores as linhas

mestres que embasam a pesquisa teórica, a saber, língua e cultura. Como se

procura averiguar de que maneira ‘língua e cultura’ podem ser elementos

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constituidores de identidade, percebe-se que é pertinente partir desses grandes

temas norteadores. Para dar conta de contemplar dimensões tão amplas, contudo,

considerou-se delimitar a análise, recorrendo-se, inicialmente, às próprias falas dos

participantes do documentário. Assim, por meio de uma leitura atenta de todos os

enunciados, procurou-se verificar os temas explícitos ou implícitos em cada um

deles, categorizando-os por meio de palavras-chave.

Conforme pode ser observado no Apêndice A, que traz a relação completa

dos enunciados do filme com os indicadores temáticos encontrados, as falas dos

moradores de Walachai marcam posições de sujeito, que se firmam pela alteridade

a partir de um constante jogo que flui por meio do que se poderia chamar de pares

dicotômicos: alemão X português, brasileiro X alemão, urbano X rural, etc. Os

enunciados marcam, assim, posições de sujeito que ainda respaldam o pensamento

binário, como por exemplo, “se sou alemão, não sou brasileiro”, como se os

elementos fossem excludentes. Entretanto, o que se quis trazer até aqui é que o

hibridismo é justamente a tensão entre elementos tidos inicialmente como opostos,

mas que não se encerram em si, mostrando que há muito mais do que apenas um

ou outro. Há todo “o meio” a ser considerado, de modo que categorias hierárquicas e

excludentes não dão mais conta de narrar o atual estado da cultura. Assim, há que

se colocar as “oposições dialéticas numa posição horizontal e paritária, não em

escalas hierárquicas, como a metafísica o fazia”. (PEDROSO JUNIOR, 2010, p. 11).

É importante, pois, teorizar brevemente acerca do que se entende, aqui, por

par dicotômico. Dicotomia, conforme Houaiss e Villar (2009, p. 682), é um termo que,

no universo da dialética platônica, significa “partição de um conceito em outros dois,

geralmente contrários e complementares (por exemplo, seres humanos: homens e

mulheres)”. Nessa perspectiva, o termo não admitiria a exclusão de um desses

elementos contrários, mas revelaria a complementaridade que existe entre eles. As

clássicas dicotomias atribuídas a Saussure (língua X fala, sincronia X diacronia,

sintagma X paradigma, significante X significado), contudo, situam o autor no escopo

da tradição clássica logocêntrica e, consequentemente, no estruturalismo.

Entretanto, conforme aponta Flores (2009b), a leitura excludente que comumente se

faz de Saussure, com exclusão da história, do sujeito, da escrita e da variação

linguística, nem sempre é confirmada em uma leitura mais atenta do legado do

linguista. Assim, para Flores (2009b, p. 8), Saussure nunca teria tomado as

dicotomias “como dicotomias stricto sensu”, e mais, o teórico teria se referido a

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um terceiro elemento mediador da relação binária. Saussure pensou em uma relação que facilmente seria aprovada aos olhos dos dialéticos. Veja-se: para a dicotomia significante/significado, há o signo; para paradigma/sintagma, há o sistema; para diacronia/sincronia há a pancronia; para língua/fala, há a linguagem. Tudo orquestrado pela noção de valor. Em suma: tese, antítese e síntese. E tudo sob a égide de um grande terceiro: o valor. (FLORES, 2009b, p. 8-9).

Nessa direção, Flores argumenta que o princípio organizador de toda a teoria

de Saussure é a diferença, o que desvencilharia o linguista de muitas concepções

do início do século XX. O autor questiona, pois, a própria categoria de estruturalista

imposta a Saussure. (FLORES, 2009b).

Com base no pensamento de Flores e na teoria apresentada, talvez seja

possível ancorar o presente trabalho de análise em pares dicotômicos, porém

entendendo-os como complementares entre si, não enxergando apenas dois limites,

“o um ou o outro”, mas “os terceiros” elementos, os quais remetem ao híbrido, ainda

que muitos dos enunciados estejam pautados em uma perspectiva dicotômica que

não percebe a complementaridade que pode existir entre os polos. Lembra-se, com

isso, que os pares propostos não foram definidos a priori, mas surgiram dos

enunciados do filme. Isto posto, a seguir, no Quadro 1, está disposta a dinâmica

que norteia a parte analítica da pesquisa. Entende-se que todas as falas do

documentário podem ser inseridas em alguns desses temas e em algum desses

pares dicotômicos. Ressalta-se que, muitas vezes, um enunciado poderia se situar

em mais de uma dessas combinações, devido à estreita relação entre língua e

cultura. Entretanto, optou-se por ligar cada enunciado a apenas um tema norteador

e a um par, para não estender demasiadamente as análises.

Quadro 1: Temas norteadores da análise de dados

TEMAS NORTEADORES PARES DICOTÔMICOS

LÍNGUA

Alemão X Português

Pertencimento X Não Pertencimento

Língua Materna X Língua do Outro

CULTURA

Masculino X Feminino

Rural X Urbano

Pertencimento X Não Pertencimento

Fonte: Elaborado pela autora (2015).

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No quadro acima, estão dispostos alguns pares dicotômicos que podem ser

percebidos nos enunciados. Esses pares, embora possa parecer, não são

antagônicos, mas complementares, de forma que dialogam entre si, tornando

evidente a alteridade que os constitui. É importante ressaltar que a alteridade é um

elemento essencial na abordagem que se pretende efetuar, visto que uma realidade

nunca pode ser interpretada isoladamente, mas sempre em relação, isto é, em

diálogo com outra, conforme postula Bakhtin. Os pares elencados, portanto, inserem

no escopo desta dissertação o viés dialógico, pelo qual se pretende trazer à pauta a

alteridade que constitui os sujeitos e seus discursos. Nessa perspectiva, os

elementos rurais encontrados em um enunciado, por exemplo, são reconhecidos em

relação aos elementos urbanos com os quais contrastam, de modo que os primeiros

só podem ser reconhecidos mediante uma interação com os segundos. Igualmente,

os elementos rurais e urbanos não são entendidos como realidades fixas, mas como

unidades intercambiantes, que podem vir a mesclar-se entre si.

Com base nos pares apresentados, delimitou-se a análise a 74 enunciados

que mais expressivamente representam os temas norteadores e os pares que lhes

correspondem. Todos os enunciados encontram-se discriminados no Apêndice A, de

modo que se pode consultar, nesse documento, os dados completos da enunciação.

Vale destacar, ainda, que esses enunciados são respostas a motivações dirigidas

pela produção do filme. As perguntas, entretanto, na maioria das vezes, não

aparecem explícitas no documentário. Assim, quando for necessário para a análise,

faz-se um esforço para inferir, ao menos em parte, por meio das marcas

enunciativas, qual foi a pergunta que motivou determinada resposta.

A próxima seção abarca, pois, a parte analítica desta dissertação. Conforme

já contextualizado, analisa-se um recorte de uma realidade por meio de uma

representação fílmica. Apesar disso, as interpretações realizadas à luz do corpus

podem constituir um microcosmo que, embora não generalizável a todos os

contextos, pode manifestar um retrato, necessariamente parcial e incompleto, de

uma sociedade que vive entre-línguas e entre-culturas.

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5 DOCUMENTÁRIO WALACHAI: VOZES E OLHARES QUE CONSTITUEM

IDENTIDADES

Diante da realidade da imigração e das diferenças culturais e linguísticas

impostas aos imigrantes, é relevante questionar como eles e seus descendentes

estabelecem identidades. Da mesma forma, importa entender como a tensão entre-

línguas e entre-culturas e a consequente necessidade de negociação com o outro

contribuem para a construção dessas identidades.

Entende-se que, em uma comunidade de imigrantes, fenômenos linguísticos e

culturais como hibridismo, plurilinguismo e multilinguismo são recorrentes, de modo

que é viável estudar o discurso como elemento constituidor de identidades. Reitera-

se que a identidade é imaginária e que não se pode apropriá-la, mas apenas captá-

la por “irrupções esporádicas no fio do discurso, quando inconscientemente resvala,

na enunciação, a heterogeneidade do discurso e do enunciador”. (STÜBE, 2011, p.

38). Assim, muitos aspectos identitários só podem ser percebidos por meio de

associações que a pessoa elabora por meio da fala. Com o objetivo de estudar esse

processo, procede-se, a seguir, uma análise discursiva de enunciados produzidos no

decurso do documentário Walachai.

A fim de otimizar as reflexões, as três primeiras subseções contextualizam

aspectos relacionados à língua: viver entre-línguas na comunidade de Walachai (5.1),

autocompreensão linguística e (não) pertencimento consolidado pela língua (5.2) e

tensões entre língua materna e língua do outro (5.3). No que diz respeito aos

elementos culturais, os temas abordados dividem-se em outras três subseções, a

saber, relações de gênero e tradição cultural (5.4), concepções de vida e de tempo em

Walachai (5.5) e pertencimento cultural dos habitantes de Walachai (5.6). Destaca-se

que os enunciados pautados pela temática de pertencimento situam-se tanto na língua

como na cultura, motivo pelo qual a relação de pertencimento X não pertencimento faz

parte tanto do tema norteador “língua” quanto do tema norteador “cultura”.

No que diz respeito a questões práticas que tangem às análises enunciativas,

é importante destacar que foram transcritas, sequencialmente, todas as falas de um

mesmo ator. Esses enunciados foram numerados para uma melhor organização

deste trabalho. Assim, quando se cita E1, por exemplo, refere-se ao enunciado 1

falado pelo primeiro ator do filme. O E2 e o E3 também são falados por esse

primeiro enunciador, mas em momentos diferentes do filme. Os E4 a E14 são

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falados, não sequencialmente, pelo segundo ator, e assim sucessivamente. Para

saber quem é o enunciador, basta recorrer ao Apêndice A. Ali estão dispostos todos

os enunciadores, e também as sua respectivas falas, não respeitando a ordem

fílmica. É importante dizer que, na transcrição, manteve-se a linguagem utilizada

pelos enunciadores, ou seja, os enunciados não foram adaptados à norma padrão

da língua portuguesa. Os enunciados falados em alemão aparecem traduzidos de

acordo com a legenda disponibilizada no próprio filme. Por fim, é necessário dizer

que a coluna “tema” do apêndice traz a divisão temática que ancora as análises. No

que se refere a essa coluna, os enunciados que apresentam a palavra “não” não

foram analisados.

5.1 “ISSO É UMA MISTUREBA AQUI”: VIVER ENTRE-LÍNGUAS NA COMUNIDADE

DE WALACHAI

Nesta seção, são analisados enunciados que versam sobre o tema norteador

“língua”, bem como sobre a relação entre Alemão X Português. Como

desdobramento desses temas, também serão elucidados aspectos condizentes às

relações inter-geracionais. No que diz respeito à língua, a comunidade de Walachai

classifica-se como multilíngue. Os atores do documentário explicitam a experiência

de viver entre-línguas, não obstante evidenciem a preferência pelo alemão. Abaixo,

veem-se os enunciados que reportam à língua que os moradores utilizam para se

comunicar no cotidiano:

ENUNCIADO 5: “Isso aí é a canga, que vai em cima dos boi. Eu falo em alemão com eles. Por aí todo mundo fala em alemão com o gado, assim é”.

ENUNCIADO 37 “Em casa a gente sempre fala em alemão. Quando chega alguém que só sabe brasileiro, aí nós falamos em brasileiro. Eu gosto de falar o alemão, mas também me viro com o português”.

ENUNCIADO 48 “É, eu digo, o português, se é pra, se tem que fala, se tem gente que às vezes não entende o alemão”.

ENUNCIADO 80: “A gente fala assim em alemão, todos sabem falar assim, né, daí a comunicação é mais fácil assim”.

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Os enunciados marcam a importância que tem o dialeto alemão na vida dos

habitantes de Walachai, sendo que até aos animais eles se dirigem usando esse

idioma (E5). Essa premissa é interessante, pois revela uma tradição, que é repetida

por gerações, a ponto de tornar-se quase imperativa: “assim é”. Isso significa que

uma ação reiteradamente aprendida e transmitida, passa a parecer natural. As falas

pressupõem que o alemão é a língua materna dos moradores da localidade, o

idioma que imaginariamente habitam (E37), e que o português acaba sendo uma

língua outra, falada majoritariamente quando “chega alguém que só sabe brasileiro”

ou quando “tem gente que [...] não entende o alemão” como expressam E37 e E48.

Dessa forma, sob o ponto de vista dos participantes do filme, a comunicação é

facilitada com o uso do dialeto alemão, já que todos os habitantes locais o

conhecem (E80).

Entende-se que as expressões “todo o mundo fala em alemão” (E5) e “todos

sabem falar assim” (E80) constituem-se como marcas plurilinguísticas, respaldando

que os conceitos, hábitos e tradições sociais se estabelecem pela linguagem, como

preconizado por Bakhtin. Enunciados como esses não têm origem nos sujeitos, mas

nos discursos sociais, de modo que a eleição do alemão como força motriz daquela

cultura, não obstante os habitantes terem acesso à língua do país em que moram,

evidencia que “o sujeito e os sentidos constroem-se discursivamente nas interações

verbais na relação com o outro”. (DI FANTI, 2003, p. 98).

As duas enunciações abaixo marcam a preferência pelo idioma alemão por

parte das pessoas mais velhas da comunidade:

ENUNCIADO 2: [Intervenção: Bertha, você não sabe falar em brasileiro?] “Não. Quando eu era jovem, sabia um pouco de brasileiro... mas depois eu desaprendi tudo”.

ENUNCIADO 27: [Intervenção: E aí, a gente pode falar Português ou como é que nós vamos conversar? Português ou alemão?] “Pode... alemão também...” [Intervenção: O que é melhor pra ti?] “Alemão pra mim é melhor...” [Intervenção: Mas aí as pessoas não vão te entender...] “Elas precisam me entender assim...”.

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O E2 foi enunciado por uma idosa de 91 anos que só se comunica por meio

do dialeto alemão22. O fato de a senhora ter “desaprendido” o português revela que

ela não fazia uso de tal língua em suas práticas diárias, sendo que, para a

realidade dela, o português tornou-se obsoleto ou, ainda, que seu pouco

conhecimento da língua não permitia uma comunicação eficaz, e, por isso, a língua

foi abandonada. Mais ainda, é possível que haja desconforto com a língua que não

é entendida como “sua”, mas do outro, e que foi imposta à sua geração (esse

aspecto será mais bem detalhado na seção 5.3). Todavia, o fato de alguém

“desaprender” uma língua marca um não pertencimento, uma distância em relação

ao idioma. A idosa ainda intensifica a questão dizendo que desaprendeu “tudo”,

evidenciando que não ficou nada da língua portuguesa “marcado” nela. Entretanto,

uma língua sempre modifica o sujeito, conferindo-lhe traços identitários

(CAVALLARI, 2011), de modo que ele nunca passa incólume ao encontro com

outra língua. (REVUZ, 1998).

Situação de distanciamento similar encontra-se no E2723, quando uma

senhora é questionada sobre a melhor forma para se comunicar: “alemão é melhor”.

Nota-se que há certa provocação da entrevistadora ao dizer à idosa que as pessoas

que a assistirem falando alemão talvez não a compreendam. A isso ela responde

“elas precisam me entender”, em uma alusão ao fato de que não é ela quem está

pedindo para falar, mas alguém está querendo que ela fale e, dessa forma, quem a

quiser ouvir é que deve se esforçar para entendê-la da maneira que ela consegue se

expressar. O episódio pode indicar a vontade da enunciadora de ficar no seu mundo,

na sua linguagem, e de não se envolver com a linguagem que o outro lhe apresenta

para não correr os riscos de que fala Revuz (1998) e, de certa forma, para não se

confrontar com o sentimento de falta de competência linguística em relação à língua

portuguesa. Além disso, o excerto evidencia a estreita relação entre língua e

identidade, indicando a vinculação que o sujeito tem com a língua, pois, já que é a

língua materna que o constitui, é por ela que o sujeito quer ser contado, e é por meio

dela que ele espera ser entendido.

22 Sobre esse aspecto depreende-se, com base na totalidade dos enunciados do filme, que apenas os indivíduos bem mais velhos não falam português. A maioria, embora com forte sotaque, consegue se comunicar utilizando a língua portuguesa. 23 Para uma melhor compreensão dessa sequência enunciativa, é preciso relatar que, no caso em questão, a idosa estava visivelmente contrariada em ser filmada. Disse, inclusive: “Isso nem era para estar acontecendo... não sei por que vocês vieram aqui para me filmar” (vide E28).

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Não obstante o alemão ser a língua materna da população de Walachai, o

idioma ensinado na escola é o português. Isso marca os sujeitos que participam do

filme como multilíngues, já que possuem “competência mínima em uma das quatro

habilidades linguísticas – compreender, falar, ler e escrever – em uma língua

diferente da sua”. (DABÈNE, 1994 apud SERRANI-INFANTE, 1998, p. 241). Nessa

perspectiva, ao aprenderem formalmente o português, as crianças de Walachai

adquirem uma língua adicional, uma vez que já são proficientes no dialeto alemão.

Ainda que não saibam ler e escrever o alemão, comunicam-se por meio dele, pois

possuem as competências de compreensão e de fala. A esse respeito discorrem,

respectivamente, os depoimentos de uma mãe e de duas professoras de educação

infantil:

ENUNCIADO 38 “Os filhos também, só na escola falam português".

ENUNCIADO 51: “As crianças quando entram na escola, elas só falam alemão, né, o português elas aprendem aqui, né, a gente em sala de aula, com atividades envolvendo a escola. Porque também em casa só se fala essa língua, né, o dialeto. Então as crianças quando vem pra educação infantil na escola, começam só falando alemão e a gente interage dessa forma até que ele consiga ter o domínio escutando os colegas, perguntando, ter o domínio do português”.

ENUNCIADO 53 “Aí tem que às vezes tá podando, porque deixar só falar o alemão depois complica também na alfabetização deles”.

É interessante notar que, no que concerne à identidade linguística dos

habitantes de Walachai, a situação é no mínimo curiosa: a sua língua materna é

uma variante do idioma falado na Alemanha, país distante daquele em que

nasceram e em que vivem. Da mesma forma, o idioma oficial do país em que

residem, o português, é para eles uma língua adicional, já que a aprendem, na

maioria das vezes, apenas quando chegam à escola (E38 e E51). Assim, a língua

materna (o dialeto alemão) é normalmente adquirida sem rigor científico, muitas

vezes apenas na modalidade oral e na forma coloquial. Já a língua aprendida na

escola, na forma culta, com acesso à estrutura gramatical, é a língua adicional, a

saber, a portuguesa, que acaba se tornando, por sua vez, uma língua de escrita e

não de fala (E38 e E51). Esse fato por si só já determina certa tensão identitária na

comunidade, pois, por um lado a sua “língua oficial” não é sequer compreendida

pela maioria da população do país em que vivem e, por outro lado, na escola

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aprendem uma língua descolada da sua realidade pois, como retrata o E38, as

crianças “só na escola falam português”.

O E53 traz à pauta a questão discutida por Mello (2010) sobre a

aprendizagem da língua oficial X a manutenção da língua materna em grupos

minoritários. A autora aponta que no Brasil, muitas vezes, segue-se o modelo

transicional, que usa a língua materna apenas como um meio de transição para a

aprendizagem da língua oficial, não estimulando a manutenção da língua minoritária.

No enunciado não fica evidente o formato educacional seguido nas escolas de

Walachai, mas verifica-se que há um tensionamento quando a professora fala que é

preciso “podar” os alunos para que o alemão não complique a alfabetização. Nota-

se, com isso, que ainda há uma ideia de que uma língua interfere negativamente na

aprendizagem de outra, e por isso uma delas precisa ser podada, o que é refutado

por autores como Jarvis e Pavlenko (2007), que visualizam uma dimensão de

influência e de complementaridade entre as línguas usadas em um contexto

multilíngue.

Ainda em relação às línguas, destaca-se que a tensão que se estabelece

entre o dialeto alemão e a língua portuguesa pode ser percebida, também, quando

se relaciona o alemão falado em Walachai com o utilizado na Alemanha. Nesse

sentido, é fundamental frisar que eles não são a mesma língua. Infere-se que o que

se fala hoje na comunidade é uma variante do dialeto Hunsrück, já que, depois de

quase dois séculos do início da imigração, a língua original sofreu mudanças em

decorrência do uso, o que aconteceu tanto no Brasil quanto na Alemanha,

distanciando muito o dialeto falado lá do utilizado aqui. Isso explica o seguinte

excerto:

ENUNCIADO 13 “Chegaram uns alemão aqui na nossa casa. Mas eles falavam um alemão diferente. Nem uma palavra eu entendi eles. Nem uma. Falavam bem mais ainda diferente”.

O episódio descrito no E13 revela, inicialmente, uma ambivalência: ao mesmo

tempo em que o enunciador diz não ter entendido nada da fala dos visitantes, usa

uma estrutura frasal típica do alemão ao dizer “nem uma palavra eu entendi eles”.

Com isso, é possível inferir que mesmo quando fala português o sujeito é marcado

pela língua alemã, utilizando sua sintaxe, em um caso típico do que Jarvis e

Pavlenko (2007) chamam de Cross-Cultural Influence. A fala possibilita refletir,

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ainda, sobre o fato de que a língua alemã falada em Walachai é híbrida, formada

pela mistura de um dialeto do século XIX e o português falado no Brasil. Assim, não

corresponde a uma nem a outra, mas a um produto das duas, resultando em algo

singular. Tem-se, então, que a suposta ilusão de que no sul do Brasil se fala “a

língua da Alemanha” se esvai quando se depara com uma realidade como a de

Walachai, de modo que não existe, de fato, uma unidade linguística entre as duas

realidades citadas, mas diferenças dependentes do contexto cultural. O enunciado

acima remete ao viver entre-línguas contextualizado por Coracini (2007a) e Eckert-

Hoff (2010), situação que também é explicitada nos excertos abaixo:

ENUNCIADO 108: “Aí é uma coisa meio misturada, fala 2 palavra em português, 3 em alemão, e assim vai. Isso é uma mistureba aqui”.

ENUNCIADO 52: “Natan é mäkelig24.

A “mistureba” a que o E108 se refere diz respeito ao code switching

(FERREIRA, 2006), fenômeno que materializa o viver entre-línguas. Tal conceito

remete à alternância, em um mesmo diálogo, de dois diferentes sistemas

gramaticais, revelando uma complementação que se estabelece entre as línguas

quando são usados dois ou mais sistemas linguísticos intercalados. Tal

característica foi vista por muito tempo como negativa, pois indicaria uma falta de

competência linguística por parte do falante, que, por essa razão, recorrentemente

voltaria à sua primeira língua. No entanto, a percepção a respeito do fenômeno

mudou, já que ele não revela necessariamente falta de competência do falante, mas,

ao contrário, pode indicar um sinal de competência bilíngue. Apesar disso, é

interessante observar a carga semântica da palavra mistureba. O termo, de uso

popular e pejorativo, remete a uma grande mistura, feita de forma desordenada.

Dessa forma, a dinâmica linguística da comunidade parece ser menospreza pelo

falante, que revela, ainda que de forma inconsciente ou por meio de uma

brincadeira, que o modo de se comunicar na comunidade é intuitivo, informal e não

competente.

O E52 mostra a fala de uma criança que mistura os idiomas ao falar. Vê-se

que a primeira parte da sentença é comunicada em português e a segunda em

alemão, o que possivelmente indica que “faltam palavras” para completar a frase na

24 A palavra significa “mimado, enjoado para comer”.

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língua portuguesa. Como o enunciador é uma criança, pode-se inferir que ela

apenas está iniciando a aprendizagem do português e, consequentemente, seu

vocabulário nessa língua ainda é limitado.

Na mesma direção, os depoimentos seguintes mostram termos que, na visão

dos entrevistados no filme, não podem ser expressados em português. Essa

situação também exemplifica a dependência da língua alemã, a única capaz de

construir determinados sentidos:

ENUNCIADO 6: “Eu não sei como é que se diga certo em Português. Hoit un har. Em alemão é hoit e har”. Em Português eu só sei que é direita e esquerda. Chama um, direita, puxa pra direita, outro pra esquerda. Isso, ele vai ser aprendido assim".

ENUNCIADO 42: “Esse equipamento aqui se chama ‘butterfass’ em alemão. Em Português daí não tem um nome específico”.

ENUNCIADO 65 “Wind, wind. Em brasileiro nem tem nome certo. Só para tirar o pó, é o wind, só faz um vento. Prá milho, limpá feijão, arroz... Não sei como se fala em brasileiro isso... explicar o nome da máquina”.

As marcas enunciativas acima dão conta de que, no que tange às rotinas

diárias, há uma forma muito peculiar e particular de comunicação na comunidade.

Como as pessoas estão se dirigindo a um interlocutor, sentem-se obrigadas a falar

em português, no entanto o alemão acaba vindo à tona no momento em que se

deparam com o fato de talvez nunca terem se questionado sobre como certas

coisas são nomeadas em português (E42 e E65). Nesse sentido, embora o

arbitrário da língua esteja presente, já que existe uma outra língua que se poderia

utilizar, há inconscientemente a ideia de que não há outra forma de comunicar ou

de que os termos em alemão expressam mais do que os equivalentes em

português. Esse parece ser o caso do E6, quando a pessoa diz que “em alemão é

hoit e har” e que em português ele só sabe que é “direita e esquerda”. Com essa

descrição, imagina-se, preliminarmente, que a significação já tenha sido dada. No

entanto, parece que o sentido extrapola essa simples significação, tomando uma

outra dimensão no contexto de uso explicitado, conforme o evidenciado por

Bakhtin ao referenciar significação e tema. Esse aspecto é interessante porque traz

à tona o fato de que, em uma tradução para outra língua, nunca se consegue

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explicitar completamente o que uma palavra significa em seu contexto cultural

original, já que nunca há um equivalente “perfeito” em outra língua.

O enunciado abaixo reporta, ainda, a uma situação que remete ao hibridismo

linguístico. Ao falar o nome da localidade em que mora, o enunciador percebe que

as pessoas acham graça, pois a palavra parece reunir um termo em português e

outro em alemão. Tal fusão repercute estranhamente aos ouvidos de quem não está

acostumado, por isso a atitude de gozação:

ENUNCIADO 76 “Batatenthal. Isso até tem gente que já tá gozando, né, Batatenthal, onde fica isso, deve ser no fim do mundo até. Ah, eu tô tranquilo”.

Não obstante o termo parecer realmente uma fusão de duas palavras de

línguas diferentes, ele, contudo, é um termo da língua alemã. O verbete batate faz

referência a um tipo de batata doce. (BATATE, 2003). Assim, o caso não se

configura como hibridismo linguístico entre português e alemão, mas, devido à

semelhança de grafia nas duas línguas envolvidas, fica a impressão contrária.

Nos enunciados dispostos nesta seção, percebe-se a forte vinculação que as

pessoas têm com o dialeto alemão, de modo que o uso desse idioma tem se

perpetuado por gerações e está tão enraizado que é parte significativa da identidade

dos enunciadores, já que, conforme Rajagopalan (1998, p. 41), “a identidade de um

indivíduo se constrói na língua e através dela”. E, ao concederem o status de língua

materna ao alemão, acabam por, aparentemente, distanciar o português. Pondera-

se que o fato de tais falantes preferirem o alemão pode estar vinculado,

primeiramente, ao fato de pretenderem ser, imaginariamente, uma comunidade

unificada em torno de elementos comuns, dentre eles, a língua (HALL, 2005), bem

como ao desejo reprimido (inconsciente) pelo português, língua na qual se julgariam

pouco competentes. Além disso, a própria realidade desses interlocutores faz com

que praticamente não necessitem do português no seu dia a dia.

Assim, a aparente falta de conhecimento e de interesse no português pode

evidenciar mais do que um mero distanciamento dessa língua, pode representar o

desejo reprimido de “apropriar-se”, ainda que esse “apropriar-se” não seja possível

em seu sentido pleno, conforme explicita Derrida (2001). Apesar de tudo isso, não

há como negar a influência da língua portuguesa, do idioma letrado, que também

assume o seu lugar nos enunciados, ainda que como língua minoritária e como a

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língua do desejo, consciente ou reprimido. Embora muitos entrevistados no

documentário revelem não necessitar de outras representações (linguísticas, no

caso) para fortalecer suas próprias identidades, é o confronto com o outro (com o

diferente) que potencializará o reconhecimento mútuo e a experiência da relação de

alteridade. Dessa forma, a identidade dos enunciadores do filme revela-se

efetivamente marcada pela vivência entre-línguas, de modo que estes evidenciam

habitar uma fronteira linguística e cultural.

5.2 “O QUE A GENTE FALA NÃO É ALEMÃO NEM BRASILEIRO”:

AUTOCOMPREENSÃO LINGUÍSTICA E (NÃO) PERTENCIMENTO

CONSOLIDADO PELA LÍNGUA

Nesta seção, são contextualizados enunciados orientados pelo tema

norteador “língua”, bem como pela relação Pertencimento X não Pertencimento. No

que tange a esse aspecto, o primeiro enunciador evidencia que é brasileiro, mas

sinaliza que sua forma de viver e de falar pode colocar sob suspeita a sua

nacionalidade:

ENUNCIADO 20: "Eu sou brasileiro, mas me sinto um alemão assim, eu tô aqui falando. Assim eu sou brasileiro, mas não sei. É um costume né, ser alemão aqui”.

O E20 explicita claramente que condição civil e sentimento não coincidem. O

enunciador se diz brasileiro, visto que nasceu no Brasil, entretanto sente-se alemão,

pois os hábitos, a cultura e a língua o identificam como tal. Da mesma forma, não há

um processo de identificação linguística e cultural com o Brasil. Entende-se que o

segmento “é um costume ser alemão aqui” é altamente revelador da subjetividade

daquele indivíduo, e também da comunidade, já que “ser alemão” é um costume

comunitário, uma marca de pertencimento. Nesse aspecto, há a marca

plurilinguística postulada por Bakhtin, uma vez que é evidente no enunciado uma

voz que vem da sociedade, ou seja, uma percepção que não surgiu do indivíduo,

mas do meio em que ele vive, passando a determinar a sua forma de pensar e a

maneira com que ele se relaciona com o próprio meio, com os seus pares, e com os

que são exteriores à comunidade.

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É interessante notar, também, que a fala “é um costume ser alemão aqui” faz

menção à comunidade imaginada problematizada por Hall (2005). O autor em

questão preconiza que as identidades nacionais não são atributos natos do ser

humano, mas são formadas no interior da representação, de modo que há uma

construção simbólica que determina o que é ser alemão, por exemplo. Todavia, os

habitantes de Walachai vivem a milhares de quilômetros do país cujos hábitos

acreditam seguir e cuja língua imaginam falar, e surpreendem-se quando encontram

alemães e, conforme o E13 (analisado no item anterior, 5.1), não os entendem.

Assim, ao se depararem com a realidade de serem tão diferentes do povo alemão e

também ao se autocompreenderem tão diferentes em relação aos brasileiros, restam

as questões: quem somos? A que pertencemos? Tal dinâmica parece marcar

profundamente a relação identitária de tal comunidade.

Os depoimentos a seguir marcam um sentimento de não pertencimento à

língua portuguesa (E25 e E104) e de estranhamento da própria língua alemã (E104),

o que coloca os sujeitos em uma condição de não saber, de não entender, de falar

errado, o que talvez seja uma autocompreensão preconceituosa em relação ao que

falam:

ENUNCIADO 25: “Isso é difícil pra falar em Português. Eu tenho vergonha”. [Em alemão]: “Eu sou brasileira, sim. Eu só não consigo falar direito a língua... Entendo a maioria das coisas, mas pra falar é difícil”.

ENUNCIADO 104: “Hoje é meu ‘aniversário’” [não consegue falar a palavra em português]. “A gente tem que tomar um trago primeiro” [rsrsrsr]. “Se a gente toma um trago fica mais fácil. Aí a língua se solta. A gente fala tudo misturado. Quando os alemães estiveram aqui a gente só dizia ‘não sei’, ‘não sei’. Alemão é alemão. Eles não entendem nada do que falamos, o que a gente fala não é alemão nem brasileiro”. [INTERVENÇÃO: O que é isso então?] “Não sei, isso não é nada. É falar errado. Faltou escola!”

O E25 explicita uma situação de vergonha, de incapacidade de falar “direito a

língua” portuguesa. O entrevistado conclui a fala utilizando o alemão, dizendo que

entende o português, mas que não consegue falar o idioma. Percebe-se que a

vergonha advém da consciência de que sua fala em português é marcada pelo

sotaque e por constantes tropeços, diferente das pessoas de fora da comunidade, que

teriam uma relação mais familiar com o idioma brasileiro. Nessa perspectiva, o

enunciado postula um autojulgamento de incompetência no que diz respeito à fala em

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português, revelando uma dinâmica de falta e de não pertencimento em relação ao

idioma, o que dificulta a sua aprendizagem. É relevante, contudo, observar que esse

sentimento se dá por contraste, ou seja, quando a pessoa se dá conta de que fala

português de uma forma diferente de outros sujeitos considerados por ela como mais

instruídos. Ao falar alemão, contudo, tais sentimentos negativos não afloram, porque o

falante se identifica como membro da comunidade em que vive, já que, conforme

Kramsch (1998), a língua marca o pertencimento de um sujeito a uma comunidade.

Situação semelhante pode ser observada no E104. Igualmente, o entrevistado

termina a frase falando alemão, porque não consegue pronunciar algumas palavras

em português. Ao relatar o episódio da visita dos alemães, o enunciador

complementa que não houve entendimento entre eles, e termina dizendo que o que

a comunidade fala “não é alemão nem brasileiro”. Com isso, verifica-se uma situação

de distanciamento tanto da língua alemã quanto da língua portuguesa, o que

provoca uma crise de identidade e de não pertencimento a nenhuma dessas

culturas. Ao final, o sujeito questiona o que seria, enfim, o produto de sua fala, e

responde à própria questão dizendo “Não sei, isso não é nada. É falar errado”.

Essa constatação é bastante inquietante, visto que revela a vulnerabilidade

identitária do falante, que manifesta que o seu falar é “nada”, é “errado”. Isso

explicita um falante que se autocompreende como não competente. O fato de falar

diferente, o que poderia ser interpretado como normal dada a situação intercultural

em que vive o sujeito é, entretanto, uma forte marca identitária negativa para ele,

que habita um país cuja língua oficial não sabe usar. Nesse contexto, como já visto

em excertos acima, é bem possível encontrar pessoas que se autocompreendam

como diferentes, que tenham vergonha do produto da sua fala, desvalorizando, elas

mesmas, a sua identidade própria, ou seja, aquilo que deveria ser privilegiado

justamente por torná-las únicas. Com isso, há um desprestígio do viver entre-

línguas, situação que, no entanto, deveria ser positiva, já que determina a

capacidade do indivíduo de entrecruzar as fronteiras de diferentes línguas, ainda

que por meio de suas formas não padrão. O E104 revela, pois, uma identidade que

se sente devedora tanto em relação à língua materna (alemã) quanto em relação à

língua de adoção. É importante marcar, porém, que muito provavelmente a

comunidade não tenha problemas com o uso concreto da língua, e que esse

sentimento de falar errado vem à tona quando os interlocutores interagem com

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aqueles que falam diferente deles, com aqueles que supõem que falam um

português padrão ou mais correto.

Uma última marca de pertencimento em relação à língua é a encontrada no

depoimento de um artista, cuja fala é interessante por expressar tanto a sensação

de isolamento dos habitantes de Walachai no tocante ao idioma quanto o afeto que

a língua é capaz de suscitar no ser humano:

ENUNCIADO 106: “Eu sou um daqui, penso que nem eles, claro com influências já com algumas influências culturais, porque tenho formação acadêmica. Sou filho de uma família de colonos, pobre, aprendo a falar português com 10 anos na escola, e até ali só falava o dialeto. O sentimento que se tinha era muito estranho porque todo mundo, os alemães que vinham pra cá e os alemães que falavam o gramatical aqui na região diziam que ninguém nos entendia na Alemanha, e no Brasil também ninguém nos entendia. Então o sentimento era de que nós éramos um grupinho, um bolinho de gente que não se comunicava com o resto das pessoas do mundo, não só do Brasil, do mundo todo. Então esse sentimento de ser isolado, fez com que eu quisesse, menino, me comunicar com as pessoas e com o planeta, e aí eu optei pela pintura. Mas até hoje, eu ainda, as coisas da alma, as coisas quando eu quero me expressar, os sentimentos da alma, eu tenho que usar o dialeto, porque no português eu não sei, sempre sai frio. Aqui tá as coisas da minha alma e quando eu quero satisfazer a minha alma, eu tenho que voltar para cá, para achar a paz”.

O E106 é expressado por alguém que vive na comunidade de Walachai, e

que, apesar de ter sofrido influências culturais exteriores e de ter formação

acadêmica, sente-se, pertencente àquele universo. O ator revela que nasceu em

uma típica família de colonos, e que só aprendeu a falar português aos 10 anos de

idade, na escola. O enunciador revela uma identidade formada pelo sentimento de

não pertencimento às línguas alemã e portuguesa, uma vez que tanto falantes de

alemão gramatical quanto de português não entendiam a fala dos moradores da sua

localidade. Nesse contexto, a comunidade vivia uma experiência de exílio linguístico,

marcado pela incapacidade de comunicação com o resto do mundo. Em função

desse sentimento, o entrevistado diz ter se tornado pintor, para encontrar uma

maneira universal de se expressar, a fim de se libertar desse isolamento. Tal

perspectiva é reveladora do quanto a língua pode incluir ou excluir o sujeito,

interferindo na sua subjetividade, visto que o fato de se sentir parte de “um grupinho,

um bolinho de gente que não se comunicava com o resto das pessoas do mundo”

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fez com que o indivíduo procurasse outras formas de contato com o mundo, o que

foi possível por meio da arte.

Apesar desses sentimentos de falta, de isolamento e de incomunicabilidade

causados pela situação peculiar de ser falante de uma entre-língua no seio de um

grupo minoritário, o sujeito revela que o dialeto alemão é, para ele, o único capaz de

comunicar verdadeiramente, a ponto de os “sentimentos da alma” não poderem ser

expressados em outro idioma. Isso revela as marcas deixadas pela língua materna,

que se configura como “uma experiência inaugural e definitiva” ao tornar um corpo

não falante em um sujeito de linguagem. (CAVALLARI, 2011, p. 128-129). Nessa

perspectiva, a língua, ao mesmo tempo, isola e inclui, afasta e aproxima, mas,

sobretudo, marca identitariamente um grupo social, que por meio do seu idioma

consegue expressar, também, “os sentimentos da alma”, conforme elucidado no

depoimento.

As análises realizadas no interior desta seção dão conta de mostrar que

apesar de os enunciadores viverem entre-línguas e entre-culturas, muitas vezes se

encontrem à margem tanto da língua/cultura alemã quanto da portuguesa, por não

se sentirem falantes competentes nem de uma língua e nem de outra, e por se

perceberem distantes também dessas duas culturas. Nessa direção, verifica-se que

há muitas questões subjetivas envolvidas nas relações de pertencimento ou não

pertencimento que as pessoas estabelecem com um idioma, seja ele o materno ou o

adicional, de modo que também os fatores inconscientes interferem nessa relação.

Os enunciados reportados citam sensações como “costume de ser alemão”,

“vergonha”, “falar errado”, “satisfação da alma”. Entende-se que todos esses

sentimentos são marcas da subjetividade dos indivíduos, que muitas vezes não

sabem explicar a origem do que sentem, já que tais marcas estão no inconsciente.

(WOODWARD, 2005). Apesar disso, são essas marcas inconscientes que

determinam parte da relação que o sujeito estabelece com a língua e,

consequentemente, o sentimento que esse indivíduo terá em relação ao(s) idioma(s)

que o constitui(em).

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5.3 “NÃO SE APRENDE UMA LÍNGUA POR DECRETO”: TENSÕES ENTRE

LÍNGUA MATERNA E LÍNGUA DO OUTRO

Nesta última seção que abarca o tema norteador “língua”, evidencia-se a

relação entre língua materna X língua do outro, considerando os episódios de

interdição da língua alemã experienciados pelos imigrantes alemães e seus

descendentes em Walachai. É importante observar que o que aqui se postula como

“língua do outro” se refere à língua imposta por um outro, numa clara alusão à

hierarquização linguística. Um dos enunciadores do filme, um professor, explicita

uma das causas dessa imposição:

ENUNCIADO 60: “Uma sala de aula com 40, 50, 60 alunos, onde não tinha ninguém que falava português, a não ser aqueles que já estavam nas séries maiores. Inicialmente não tinha, assim, grandes problemas, mas piorou quando o Brasil, quando estourou a segunda guerra mundial contra o eixo e depois em 42 quando o Brasil entrou na segunda guerra mundial, participou, aí a coisa ficou mais complicada ainda, aqui foram anos difíceis pra colônia”.

O contexto de Segunda Guerra Mundial, da qual o Brasil participou em

posição contrária a do chamado eixo, em que estava a Alemanha, fez com que

praticamente o mundo inteiro se voltasse contra a política nazista de Hitler,

motivando, de diversas formas, o boicote daquela cultura. Uma dessas formas foi a

proibição do uso da língua alemã. No Brasil, além dessa realidade da guerra, com o

advento do Estado Novo (1937-1945) do governo de Getúlio Vargas, instaurou-se

uma política de homogeneidade linguística, que interditou os idiomas estrangeiros

no país com a finalidade de criar uma identidade nacional pela língua. (ECKERT-

HOFF, 2010).

Nessa perspectiva, parece merecer destaque a citação de uma das muitas

leis que determinaram o espírito de brasilidade. O Decreto-Lei nº 406, de 4 de maio

de 1938, conhecido como “Lei da Nacionalização”, exigiu que o ensino passasse a

ser totalmente realizado na língua nacional. Além disso, o decreto proibiu a

circulação de revistas e livros em língua estrangeira e determinou o fechamento das

escolas estrangeiras no país. (BRASIL, 1938). Os artigos 41, 42, 85, 86 e 87 da lei

em questão, transcritos abaixo, esclarecem essas e outras proibições:

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Art. 41 Nos núcleos, centros ou colônias, quaisquer escolas, oficiais ou particulares, serão sempre regidas por brasileiros natos. Parágrafo único. Nos núcleos, centros ou colônias é obrigatório o estabelecimento de escolas primárias em número suficiente, computadas as mesmas no plano de colonização. Art. 42 Nenhum núcleo, centro ou colônia, ou estabelecimento de comércio ou indústria ou associação neles existentes, poderá ter denominação em idioma estrangeiro. Art. 85 Em todas as escolas rurais do país, o ensino de qualquer matéria será ministrado em português, sem prejuízo do eventual emprego do método direto no ensino das línguas vivas. § 1º As escolas a que se refere este artigo serão sempre regidas por brasileiros natos. § 2º Nelas não se ensinará idioma estrangeiro a menores de quatorze (14) anos. § 3º Os livros destinados ao ensino primário serão exclusivamente escritos em língua portuguesa. § 4º Nos programas do curso primário e secundário é obrigatório o ensino da história e da geografia do Brasil. § 5º Nas escolas para estrangeiros adultos serão ensinadas noções sobre as instituições políticas do país. Art. 86 Nas zonas rurais do país não será permitida a publicação de livros, revistas ou jornais em línguas estrangeira, sem permissão do Conselho de Imigração e Colonização. Art. 87 A publicação de quaisquer livros, folhetos, revistas, jornais e boletins em língua estrangeira fica sujeita à autorização e registro prévio no Ministério da Justiça. (BRASIL, 1938).

Conforme o E60, a interdição da língua alemã representou uma dura

sentença para os imigrantes e descendentes que se comunicavam exclusivamente

por meio desse idioma, de modo que o período foi difícil para as colônias de fala

alemã (e também de outras línguas estrangeiras), que se sentiam acuadas por não

poderem se comunicar em sua língua materna na escola e em demais locais

públicos:

ENUNCIADO 16: “Também era uma época que era proibido falar alemão e a gente ficava quieto, não sabia, os pais não sabiam falar português e daí a gente ficou quieto. Que fazer então? Não sabia falar, a gente não abriu a boca”.

ENUNCIADO 9 “É, aqui tinha um homem na bodega. Ele tava acostumado a tomá uns trago e depois cantá, em alemão. É, e daí tinha um estranho, chamou a polícia e ficou preso”.

O E16 revela a proibição imposta à população, a que Labes (2007 apud

ECKERT-HOFF, 2010) se refere como silenciamento linguístico e castração de

uma cultura. Nota-se que as expressões “a gente ficava quieto” e “a gente não

abria a boca” são reveladoras de um sentimento de incompreensão perante aquela

situação que os impedia de fazer uso da língua materna. O forçado exílio pela

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língua e o medo das consequências que podiam sofrer caso não se adequassem

às regras de um outro que não os representava, fez com que silenciassem, já que

todos “os estranhos” (vide E9), ou seja, os que não eram pertencentes à

comunidade, podiam estar vigiando o cumprimento da ordem governamental.

Assim, até uma inofensiva cantoria de bêbado podia tornar-se motivo de prisão,

conforme o E9.

O enunciado seguinte explicita a situação dos sujeitos marcados pela

interdição e revela a incoerência da legislação:

ENUNCIADO 8: “A gente aprendeu ler, mas não sabia o que que a gente ia ler. A gente aprendeu escrever, escrever uma palavra, mas não sabia o que que a gente escrevia. Porque a gente não tinha ideia e o professor ele não podia explicar em alemão. Aí ele ia ir preso. Era difícil [...]. Como falar, como aprender? Era difícil”.

Percebe-se que os indivíduos das gerações que vivenciaram esses episódios

de interdição são fortemente marcados por um sentimento negativo em relação à

língua portuguesa, já que foram forçados a aprender uma língua, para eles, artificial,

porque exterior a sua realidade. Assim, o enunciador de E8 diz que aprendeu a ler

sem saber o que lia, e a escrever palavras isoladas, de modo descontextualizado.

Evidentemente, tal fato pode forçar um distanciamento da língua que é imposta, bem

como criar grandes dificuldades na aprendizagem do idioma, que tem que ser

aprendido sem o mínimo apoio da língua materna e, ainda, sob a perspectiva da

ameaça e do medo.

Os depoimentos abaixo são de professores de Walachai, e são interessantes

porque marcam a percepção dos membros da comunidade que eram proficientes

nas línguas portuguesa e alemã:

ENUNCIADO 54: “Eu lecionei quase todo o tempo aqui em Walachai, muitos e muitos anos. O governo aí não se importava com os colonos. A gente foi vivendo então assim. Até que veio o fim, Getúlio, e agora com Getúlio não pode mais falar em alemão. A criança chegava na escola e o que a gente ia fazer? Transgredir a lei para se comunicar com o aluno, coitado do aluno não tinha culpa e exigiu-se uma coisa que na realidade não foi dado ao colono. E era severo o negócio do alemão, tinha que parar com o negócio do alemão e aí dava castigo. Um castigo não muita coisa, mas mostrar que, mais para o governo, sabe, que a gente estava ensinando o português”.

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ENUNCIADO 55: “Ponto aqui. Alemão foi e aqui está o português. Esqueçam aquilo lá. Aquela bobagem. Se aparecesse alguém que não sabe quem é, fecha a boca, deixa ele se manifestar primeiro pra vê o que que é”.

ENUNCIADO 61 “Eu acredito que foi uma medida assim correta em realmente todo mundo aprender a falar a língua, do seu país, para ser mais cidadão, né. Mas a maneira como foi feito. A maneira como foi feito, porque não se aprende, volto a dizer, não se aprende uma língua através de decreto. Isso não vai funcionar, em nenhum lugar vai funcionar”.

O E54 expressa o descaso do governo brasileiro para com os colonos, o que

determinou que eles vivessem isolados em comunidades como a de Walachai. Não

obstante esse abandono, o governo passou a sentir-se ameaçado pelos polos

estrangeiros que se formavam em seu território, e decidiu “abrasileirar” esses

núcleos para que se encaixassem no perfil do povo brasileiro. Os sujeitos foram,

então, pressionados para que se tornassem cidadãos brasileiros, quando outrora

tal prerrogativa não lhes foi outorgada. Para dar conta de tal intento, era preciso

apagar as marcas culturais (BHABHA, 2007) que eles traziam, vigiando-os e

punindo-os, conforme explicitado pelo ator no E54. O professor argumenta que,

apesar de sentir pena dos alunos, que eram vítimas daquela situação, precisava

castigá-los caso não falassem português, com o objetivo de mostrar às autoridades

que buscava cumprir a legislação. O E55 revela o sentimento do enunciador

perante o fato de a sua língua materna ser tratada como “bobagem”, como algo

que deve ficar para trás para ser substituído por algo tido como melhor. Reitera-se,

mais uma vez, as marcas identitárias negativas que ficaram impressas na

subjetividade dos sujeitos como resultado desse processo de “descarte” de algo

tão caro quanto a língua materna.

O E61 apresenta um olhar diferente acerca do mesmo tema. O enunciador,

um professor, argumenta entender a medida governamental, na medida em que,

para ele, firmar a identidade nacional pela língua seria um processo benéfico e

necessário ao país e aos próprios imigrantes, uma vez que a aprendizagem do

português os tornaria mais cidadãos e mais próximos da cultura brasileira.

Entretanto, o docente julga a maneira forçada e arbitrária com que a medida foi

posta em prática ao afirmar que “não se aprende uma língua através de decreto”,

evidenciando, com isso, a artificialidade da situação. Os enunciados anteriores dão

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conta de demonstrar que, do ponto de vista da população, a obrigatoriedade foi mais

dura. Como não sabiam se comunicar em outro idioma, sofreram com a censura da

única língua que lhes transmitia sentidos e pela qual podiam se expressar. Assim,

entende-se que a interdição do alemão não mudou o sentimento das pessoas em

relação à língua materna, e tampouco efetivou o reconhecimento da identidade

linguística brasileira. De fato, a língua imposta encontrou dificuldades para se

instaurar no seio da comunidade estudada, sendo que até hoje há pessoas que não

conseguem fazer uso dela. Percebe-se, com isso, que há traços que indicam que

uma parcela da população, em vez de se aproximar da língua brasileira, se

distanciou ainda mais dela. Por esse motivo, estabelecem uma relação mais

saudável com a língua portuguesa os sujeitos mais jovens, que não passaram por

esse processo de interdição da língua materna.

Nas próximas três subseções são analisados os enunciados que versam

sobre o tema norteador “cultura”. Nessa perspectiva, são discutidas relações de

gênero, percepções sobre a vida e o tempo e aspectos que tangem ao

pertencimento cultural dos sujeitos.

5.4 “VOU ENSINAR A MINHA FILHA”: RELAÇÕES DE GÊNERO E TRADIÇÃO

CULTURAL

Nesta seção, são contextualizados enunciados orientados pelo tema

norteador “cultura”, bem como pela relação masculino X feminino. Como um dos

pontos basilares que caracteriza a população de Walachai é a estima extrema pelo

trabalho, o que pode ser percebido em muitos dos enunciados do documentário, o

universo laboral é rico para se inferir identidades assumidas por homens e mulheres,

já que, no que tange à questão de gênero, observam-se diferentes perspectivas

enunciativas. Inicialmente, verifica-se, nos depoimentos de muitos homens, o apreço

pela liberdade e o consequente desejo por não se sentirem presos:

ENUNCIADO 17: “Mais é sê teu patrão próprio, sabe... Cê trabalha como qué, sabe, começa assim quando qué sabe, para quando qué, sabe. As vezes sabe tem que i num lugar sabe, se tá enfermo sabe dai tu já tem que pedi licença, uma coisa assim, ou atestado sabe. Na roça não tem nada disso sabe. Eu prefiro aqui sim”.

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ENUNCIADO 19: “Eu gosto mesmo de andá solto né, assim, andando com o gado, né, por isso que eu gosto, né. Eu gosto mais disso, de vivê no meio dos bicho".

ENUNCIADO 23: “Eu e o sogro trabaiemo na roça, nosso sustento é da agricultura mesmo, da roça, nós plantamo pra vende, né, tamo vivendo disso”.

ENUNCIADO 24: “Eu sempre trabalhei na roça. Desde guri já ajudava o meu pai na roça”.

ENUNCIADO 64 “É difícil de trabalhá, mas só que é terra boa. Para trabalhá com trator nós quase não temo terra. Muito morro e muita pedra ali por cima. Se não dá lucro mas é divertido".

ENUNCIADO 75: “Eu sempre trabalhei e pretendo trabalhar prá sempre, né. Na roça, isso, não pretendo saí da roça. Só se acontece uma coisa e eu não pudé mais trabalhá, né, senão eu vô... É complicado as vezes, mas o importante é o que, conseguimo levá. A roça é nosso sustento, sim. É chato de trabalhá na fábrica, sempre tem aquele contramestre, o cara ali que diz, ah, tem que fazê isso, tem que fazê isso, mas e o trabalho no mesmo não ajuda assim, né. Daí na roça não... na roça eu vô na hora que eu quisé, volto na hora que eu quisé, né... e é outra vida, né, na roça”.

Os E17, E19, E23, E24, E64 e E75 provavelmente respondem à pergunta se

sempre trabalharam na roça e se preferem essa profissão a outras. Boa parte dos

enunciadores respondeu que a roça é o seu sustento e que gostam dessa ocupação

por diversas razões: ser o próprio patrão, ter um horário flexível e não precisar dar

satisfação (E17 e E75) e ter liberdade e poder andar solto em meio aos animais

(E19). Nota-se, nessas falas, que os homens em questão demostram ter um espírito

livre e gostar de se sentir “donos do próprio nariz”, como diz o ditado popular.

Apesar de classificar como complicada a lida no campo, o ator do E75 diz que é

“chato de trabalhá na fábrica”, porque naquele ambiente sempre há alguém para

mandar fazer um trabalho “que não ajuda”. Entende-se que essa última expressão

se refira a um trabalho repetitivo, que não dá satisfação a esse interlocutor. O

agricultor do E64 também indica a dificuldade de trabalhar na roça, pois o terreno de

que dispõe é acidentado e pedregoso. Mesmo assim, o sujeito argumenta que “se

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não dá lucro [...] é divertido”25, sinalizando que não há separação entre trabalho e

diversão na sua concepção. Os E23 e E24, por sua vez, marcam linguisticamente

que quem trabalha na roça são os homens: “Eu e o sogro” e “desde guri já ajudava o

meu pai”.

Quando as falas acima são comparadas aos depoimentos das mulheres, no

entanto, verifica-se uma mudança enunciativa:

ENUNCIADO 36: “Levanto às 5h da manhã, daí eu faço um pouquinho o serviço da casa ainda, daí eu me arrumo, tomo café, depois vô prá fábrica. Daí eu chego 5:45 em casa. Daí eu faço ainda alguma coisa na roça ou às vezes trato o gado. Todos os dias aí, até o sábado chegá, daí no sábado ainda tem as roupas prá lavá, daí tem que fazer os pães ou cucas. Nunca compramo pão, sempre fizemos mesmo. Daqui a pouco eu vou ensiná a minha filha a fazê”.

ENUNCIADO 85: "Eu sempre gostei de trabalhá na roça, só que na roça isso não compensa. Eu comecei na fábrica aos 16 anos de idade”.

ENUNCIADO 86: “Os que vão tipo trabalhá numa esteira, eles ficam o dia inteiro no mesmo lugar, às vezes não dá tempo de tomá água porque a esteira vem cheia, porque o sapato vem, ele não pode passar por ti sem tu fazê a tua operação”.

ENUNCIADO 88: “Fui sempre agricultora... até os 32 anos... aí eu mudei... prá fábrica”.

ENUNCIADO 89: “Eu não aprendi nada na roça. Daí quando, eu estudava, né, de manhã, daí quando eu fiz 14 anos em outubro, daí em dezembro eu fui prá fábrica. Daí é mais fácil, pegar o dinheiro, né, é mais garantido, né. A gente não tem outra escolha, né, não tem outra opção aqui no município, não vem nada, né, de outro emprega, nada. Ou tu vai prá roça ou prá fábrica de calçados ou tu sai, né, mora fora. Uma rotina boa, eu gosto. Eu acho isso uma rotina”.

Observa-se que a rotina de vida da maioria das mulheres de Walachai é

pesada, com jornada laboral dupla, já que trabalham dentro e fora de casa. Assim,

evidenciam uma realidade de luta que, no entanto, não é encarada como dura, pelo

contrário, parece naturalizada. Enquanto muitos homens argumentam que não

querem deixar a roça para trabalhar nas fábricas em nome da liberdade e da

25 É curioso o fato de que esse mesmo enunciador, quando lhe fizeram a pergunta: “E vocês não sentem falta, assim, de mais coisas prá divertimento?”: respondeu: “Não, também não”. Não sô muito assim, prá se divertir” (E67).

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possibilidade de não ter um chefe, as mulheres nem citam essa opção. Quase todas

as mulheres em idade laboral entrevistadas no documentário são funcionárias de

alguma fábrica de calçados da localidade. Com isso, verifica-se que elas estão mais

sujeitas a trabalharem sob supervisão e a serem privadas da liberdade ao terem que

cumprir horários e ordens. Tal situação, apesar de parecer natural naquela

sociedade é, no entanto, socialmente construída.

Outra constatação possível é a de que muitas mulheres ingressam no

universo fabril relativamente cedo, muitas vezes em busca de uma vida melhor.

Percebe-se essa realidade em E85 e E89, em que as entrevistadas revelam ter

começado a trabalhar em fábricas aos 16 e 14 anos, respectivamente. Nos mesmos

depoimentos está marcada a motivação de tal decisão: “na roça isso não compensa”

(E85) e “daí é mais fácil, pegar o dinheiro, né, é mais garantido, né” (E89). Verifica-

se que os excertos contrapõem-se aos dos homens que, por sua vez, parecem não

se preocupar com a garantia de uma renda fixa e tampouco pensam em abandonar

a profissão por não compensar.

Uma linha de análise também viável diz respeito às múltiplas atividades

exercidas por algumas mulheres, que se dividem entre o trabalho dentro e fora de

casa. Além de todo o cuidado com o lar, elas ainda lidam com a roça, com os

animais, e responsabilizam-se pela alimentação da família (E36). No que tange à

atividade nas fábricas, percebe-se que a carga de trabalho não é leve. O E86 narra

um ciclo de trabalho repetitivo, em que as peças chegam em esteiras e cada

operário tem que dar conta do que lhe cabe, sendo que muitas vezes não há tempo

para suprir as necessidades básicas do ser humano. Apesar disso, percebe-se que

esse trabalho foi escolhido pela maioria das mulheres, ou seja, que elas optaram por

sair da roça para atuar nessa atividade (E85, E88 e E89) da qual expressam gostar:

“Uma rotina boa, eu gosto”. (E89). A mesma percepção não é compartilhada pelos

homens, como já detalhado.

É possível também identificar, nos enunciados, a reprodução dos modelos

familiares. Sobre esse aspecto, é rico o E36, em que a mulher, ao dizer que passa o

sábado fazendo os pães e cucas que a família irá consumir durante a semana,

expressa: “Daqui a pouco eu vou ensiná a minha filha a fazê”. A filha a que ela se

refere é uma menina de cerca de 10 anos, que, pelas imagens do documentário,

parece já a acompanhar durante essa lida. Tal enunciação marca uma forte

tendência cultural de reprodução dos padrões das gerações anteriores, no caso,

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ensinar a criança, a menina, a fazer o trabalho doméstico para aliviar a carga da

mãe e para aprender, também ela, a ser uma boa dona de casa. Percebe-se, pois, o

viés ideológico de tal enunciação.

Na mesma linha, situa-se o excerto abaixo, enunciado por uma senhora

idosa:

ENUNCIADO 71: “Tô enchendo o pote com feijão mexido, com farinha, farinha de mandioca, eu torro ela um pouquinho aqui na frigideira, e agora vô colocá um arroz, assim, prá leva prá roça, pros homens lá da roça, o seu Linos, o meu marido, os meus filhos estão esperando lá na roça o almoço. O meu filho mais novo ele vem ao encontro, ele é encarregado sempre de apanhar o almoço. Mais ou menos eu saio ali 11h40min e ele sai certamente de lá também no mesmo horário. Certamente eles tão com fome trabalhando duro a manhã inteira”.

O E71 explicita a fala de uma senhora idosa que cuida do lar. Ela é

responsável por providenciar a alimentação da família e levá-la à roça. Destaca-se,

do enunciado em questão, a forma de tratamento que a mulher utiliza para se referir

ao marido, “seu Linus”, revelando uma postura respeitosa em relação a ele, o que

manifesta a hierarquia que se estabelece naquele ambiente familiar. A expressão

“pros homens lá da roça” também indica o estabelecimento de papéis bem definidos

para os membros familiares: os homens trabalham na roça e as mulheres nos

afazeres domésticos. Pela enunciação, evidencia-se que a família tem hábitos

tradicionais, que reproduzem papéis historicamente estabelecidos naquela

sociedade, manifestando uma dinâmica plurilíngue. Evidenciam-se, assim, vozes

sociais e falares, que formam a unidade superior (FLORES et al., 2009a) da cultura,

que impõe, por sua vez, papeis e formas de vida que os indivíduos devem seguir.

Destacam-se, ainda, depoimentos que relatam a expectativa das mulheres

em relação ao futuro, bem como os seus sonhos e sentimentos. Os excertos abaixo

apresentam tal perspectiva:

ENUNCIADO 40: “Tinha vontade de viajá, mas... não sei se um dia chega prá mim. Que eu sô feliz assim mesmo”.

ENUNCIADO 115: “Pra minhas filhas eu imagino assim um futuro mais adiante, que nem estudar ou ter uma profissão melhor, sabe, não precisar trabalhar nas fábricas de calçados ou que elas querem ser professoras, quem sabe isso, aí eu espero quem sabe poder dar isso prá elas. Sabe, um futuro assim um pouquinho melhor que o nosso”.

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No E115 visualizam-se duas questões importantes: primeiramente vê-se a

preocupação de uma mãe em dar um futuro melhor às filhas, duas meninas

pequenas, oportunizando profissões diferentes da sua (operária em fábrica) e do

marido (agricultor). Provavelmente a menção a um futuro melhor, nesse contexto,

significa um trabalho menos pesado e talvez melhor remunerado do que o dos pais.

Uma segunda abordagem diz respeito à oportunidade de trabalho visualizada pela

mãe: professora. Apesar da grande dignidade da profissão, há, no imaginário da

enunciadora, a visão de que ser professora é o ofício ideal para as mulheres, que

podem, através do exercício do magistério, dividir-se mais facilmente entre a

profissão e a vida do lar.

O E40, por fim, traz um relato feminino de sonho. A mulher revela que tem

vontade de viajar, de conhecer o mundo, mostrando que embora viva no interior não

tem uma vida alienada das coisas que estão no mundo exterior ao seu. Entretanto,

não sabe se vai conseguir realizar esse sonho. Interpreta-se que tal fato pode

acontecer tanto por questões financeiras como por questões de comodismo, já que

nem sempre os maridos compactuam com os mesmos sonhos de suas

companheiras. É preciso ressaltar que, em um universo como o estudado, uma

viagem é geralmente visualizada como artigo de luxo, sendo, portanto, algo

supérfluo e desnecessário. Entretanto, apesar da possibilidade de não realizar seu

sonho, a mulher diz que é feliz, mostrando que não precisa de coisas externas ao

seu mundo para se sentir realizada. Tal característica também é traço identitário

importante, pois estabelece que os laços familiares e comunitários são suficientes

para, no caso exemplificado, alcançar a felicidade.

Um enunciado interessante que talvez caminhe no sentido contrário ao de

seguir as vozes padrão daquela sociedade, é o de uma mulher que assume não

querer casar:

ENUNCIADO 87 (primeira parte): “É que realmente eu não penso em me casá e muito menos em tê um namorado. Acho que eu sô que nem o vento, livre. Eu gosto de sê assim. Fazê o que eu gosto, né? Cada um tem uma opinião, né?”.

Evidencia-se, no E87, que algumas características mais comumente

encontradas nas sociedades urbanas também passam a encontrar lugar em

comunidades do interior. Talvez a iniciativa dessa enunciadora ainda seja isolada,

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mas já revela uma possibilidade dificilmente considerada no passado. Essa situação

pode ilustrar a dinâmica já trazida por Hall (2005) de que fora dos grandes centros

também se evidenciam os efeitos pluralizadores das identidades, embora num ritmo

mais lento.

Outros pontos poderiam ser ainda explorados nesta análise, mas acredita-se

que os destacados são os mais relevantes para a discussão de gênero. Através

deles, percebe-se que o trabalho é ponto crucial para compreender a identidade dos

enunciadores, que passam grande parte de seu tempo justamente trabalhando, seja

dentro ou fora de casa. Outro elemento de destaque é a reprodução de papéis, tanto

masculinos quanto femininos, tendência que parece se acentuar em comunidades

interioranas como Walachai, não obstante a ruptura de padrões já seja verificada em

alguns aspectos daquela sociedade.

Entende-se, ainda, que parece haver uma distinção no modo de agir de

homens e mulheres: enquanto os primeiros assumem características mais rurais,

tendendo a trabalhar com a terra e o gado a fim de serem os próprios patrões, as

mulheres evidenciam identidades, nesse aspecto, mais urbanas, já que ao deixarem

o trabalho na roça e migrarem para as fábricas, acabam ingressando na forma de

vida massificada das grandes cidades. Talvez tenha sido intenção da direção do

documentário mostrar essa fronteira de papéis no tocante ao exercício laboral. Não

obstante essa possibilidade, o fato é que nenhum dos entrevistados homens

trabalha em fábricas, como também a maioria das enunciadoras mulheres em idade

laboral (salvo as aposentadas) diz ter a roça como atividade principal. Algumas

apenas explicitam auxiliar na roça em horários alternativos, quando voltam das

fábricas (E36).

Por fim, entende-se que em aspectos como casamento e realização de

sonhos, assuntos não discutidos por homens no âmbito do documentário, as

enunciadoras femininas mostram-se abertas ao novo, embora ainda cumpram

papéis estabelecidos pela sociedade. Há, portanto, uma constante tensão entre

tradição e tradução, como citado anteriormente com base em Hall (2005).

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5.5 “OS COLONO, ELES NÃO PRECISAM MUITO DO RELÓGIO”: CONCEPÇÕES

DE VIDA E DE TEMPO EM WALACHAI

Nesta seção, são contextualizados enunciados orientados pelo tema

norteador “cultura”, bem como pela relação rural X urbano. Nesse sentido, algumas

falas relacionam-se com o tempo e o espaço. O tempo no meio rural em questão,

segundo os enunciadores, toma uma dimensão bem diferente da que se percebe no

meio urbano, o que é explicado no E4, abaixo:

ENUNCIADO 4: “Assim os colono, eles não precisam muito do relógio. Eles tem que trabalhá até que tão pronto. Eu não olho pro relógio quando vô trata o gado, quando vô trata os porco, isso... Isso eu faço assim sem sabê que hora é”.

Apesar de os colonos também trabalharem muito, como acontece com as

pessoas das grandes cidades, percebe-se que seguem uma dinâmica de liberdade

no que tange ao tempo. Igualmente, pode-se dizer que há um respeito muito maior

aos ciclos naturais da vida, já que levam a rotina quase que intuitivamente. Nessa

perspectiva, não se percebe, em Walachai, a mesma correria das cidades, de modo

que os sujeitos podem seguir uma lógica interior e não exterior, representada na fala

pelo relógio. O relógio seria, pois, nesse contexto, um elemento urbano. A mesma

relação peculiar é estabelecida com o espaço:

ENUNCIADO 18: “É, eu gosto de colhê batata, colhê milho, moranguinho. Às vezes quando a gente vem com os boi daí eu também guio os boi. Aqui não tem barulho, na cidade grande tem muito barulho. Aqui dá pra ouvir os canto dos passarinho, lá não tem roça, na cidade grande. Gosto de vim prá roça. Só às vezes eu não posso vim, porque agora eu tô de férias daí eu posso vim. Quando eu não tô de férias de tarde eu vô na escola”.

ENUNCIADO 84 “Eu posso chegar às 7h30min do serão, ligo as luzes, varro o pátio. Isso já é quase um ritual. Vamo supor eu vô morá num apartamento, só que lá não ia tê folha prá varrê, eu não ia tê pátio, eu não ia podê andá de biquíni como eu faço aqui, ia prá roça de biquíni, tranquilamente, fins de semana no verão eu ando com meu biquíni, eu tô no meu território, ninguém não tem nada a vê com isso, né? Pego sol, trabalhando”.

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O E18 é interessante por mostrar o posicionamento de uma criança.

Percebem-se, na primeira parte da fala, elementos pueris, que remetem aos

produtos que o menino gosta de cultivar quando vai à roça. Nota-se, também, o

orgulho da criança por “guiar os bois”, o que sugere uma possível tendência de

reprodução cultural por parte de alguns membros das novas gerações. Os

elementos rurais e urbanos são explicitamente citados no enunciado: barulho (meio

urbano) e silêncio (meio rural); possibilidade de ouvir o canto dos pássaros (meio

rural) e impossibilidade de ouvi-los (meio urbano); existência de roça (meio rural) e

inexistência de roça (meio urbano). Ao citar os contrastes que enxerga entre a roça

e a cidade grande, o menino reproduz, à sua maneira, o discurso de outrem, ou seja,

as percepções que os outros lhe passaram a respeito do mundo. E ao repetir esse

discurso com o seu acento próprio, o garoto revela posicionamentos ideológicos

(BAKTHIN, 1990), explanando a sua preferência pelo meio rural.

O E84 também segue a tendência de comparação entre os elementos tidos

como rurais e urbanos: casa X apartamento, contato com a natureza X contato

exíguo com a natureza, liberdade X convenções sociais. No que tange a esse último

aspecto, a mulher revela praticar ações como trabalhar em casa e na roça de biquíni

e dá a entender que no meio urbano uma atitude similar não seria possível. O

enunciado também deixa claro que não há horário certo para os afazeres (varrer o

pátio à noite, por exemplo), que podem ser mais livremente distribuídos ao longo do

dia, o que muitas vezes não acontece na cidade, onde as pessoas vivem mais

enclausuradas e sem tantas possibilidades de fugir de regras, por questões como

segurança, por exemplo.

As marcas inter-geracionais são valorosas dimensões de estudo da

perspectiva rural X urbano. No que tange a esse aspecto, observa-se o

posicionamento de uma senhora de 91 anos e o quanto algumas questões

suscitadas por ela divergem em relação ao pensamento e modo de vida das

pessoas mais novas. Há, nos depoimentos dela, apontamentos sobre fé e trabalho,

elementos que se interconectam em sua rotina diária:

ENUNCIADO 1: “Quando o sol nasce eu vou tocar o sino. Eu nunca faltei. Tenho 91 anos. Há 56 anos que eu toco o sino diariamente. Os outros têm esse horário novo... eu não! Isso não existe pra mim... Esse horário de verão. Deus faz o sol nascer como sempre. Ele também não tem horário de verão”.

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Percebe-se no E1, primeiramente, uma forte religiosidade que faz a mulher

diariamente tocar o sino da sua comunidade, muito embora tenha 91 anos de idade.

Nesse ínterim, observa-se que a tarefa não é pesada, pois é ancorada em um

sentimento de estar cumprindo uma missão perante Deus. Tal espírito explicita a

religiosidade das mulheres imigrantes ou descendentes de imigrantes alemães,

especialmente as das gerações mais antigas, o que mostra que a fé dos primeiros

colonizadores do distrito foi cultivada pelos sucessores, principalmente pelos que

não têm contato frequente com os meios de comunicação de massa, ou seja, pelos

que são menos influenciados pelas culturas urbanas globalizadas. Em um segundo

momento, vê-se certo desprezo pela modernidade, dando a entender que as coisas

inventadas pelos homens não são relevantes como o são as instituídas por Deus. A

mesma senhora dá outro depoimento referindo-se a um serviço que presta

espontaneamente à comunidade, a saber, capinar em um cemitério perto de sua

casa, tirando os inços que crescem ao redor dos túmulos:

ENUNCIADO 3: “Sempre que tenho tempo eu venho aqui capinar... venho antes da noite, quando não faz muito calor e de manhã... no meio da tarde eu não venho. É muito quente... eu gosto de fazer isso. Acho que ninguém mais faz isso, né? Há 57 anos que faço este trabalho aqui”.

O enunciado expressa uma grande lucidez da senhora, que revela estar

consciente de que a tarefa não é realizada por mais ninguém, ou seja, de que se

trata de algo obsoleto, ultrapassado, a ponto de ninguém mais fazê-lo. Isso significa

que o trabalho que é repetido há 57 anos não terá continuidade, pois não é

valorizado pelas pessoas mais jovens. Assim, parece haver certo isolamento em

relação ao idoso, cujos princípios, rotinas e formas de pensar são peculiares. Além

disso, as ações de tocar o sino e de capinar o cemitério, que são voluntariamente

praticadas, demonstram um espírito comunitário, de doação e de solidariedade para

com o próximo, dinâmica um pouco mais difícil de encontrar no meio urbano.

Os próximos enunciados analisados contemplam falas que apresentam

elementos concretamente marcados como típicos do meio rural:

ENUNCIADO 7: “Pra mim, uma junta de boi e uma carreta vale mais do que um auto, porque com um auto eu não posso fazê nada na roça... é... mas com a carreta e os boi eu faço muita coisa”.

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No E7 aparece uma correlação entre os meios de transporte utilizados no

meio rural e no meio urbano. O enunciador expõe que na roça uma junta de bois tem

muito mais valor do que um carro, evidenciando que o valor das coisas é

determinado pela sua utilidade em determinado contexto. Assim, um carro pode até

ter um valor comercial mais alto do que o de um boi, mas na roça o boi é um

elemento mais importante. Tal perspectiva mostra o valor diferenciado que as coisas

adquirem no meio urbano e no rural.

Uma jovem comerciante que trabalha com o pai, que é agricultor, pequeno

comerciante e avicultor é a enunciadora de E41, E43 e E44:

ENUNCIADO 41: “Tô secando manteiga. A nata se forma e vira manteiga. Isso daqui eu aprendi aí com a minha vó, por causa que quem mais criou eu né foi a minha vó, porque desde pequena eu sempre morei com ela e quando eu via ela fazendo eu também, e com o tempo eu fui aprendendo. Eu prefiro isso daqui, por causa que aí depende, olha só quanta nata, vamo supor que eu tenha muita nata, aí eu não vô podê botá toda essa nata aí no liquidificador, e daí eu vô tê que botá aos poucos, vô tê que bota e desliga e aí isso ocupa muito tempo”.

ENUNCIADO 43: “Nas sextas-feiras é um dia bastante puxado assim prá mim, eu tenho bastante tarefas, né. Daí de manhã eu acordo, tomo café, e aí depois eu amasso as cuca, e daí eu vou pro aviário. E de tarde eu carrego as kombis com as mercadorias que a gente leva junto prá vendê nos sábados e depois lá pelas 17h eu me arrumo aí para ir prá UNISINOS. Eu faço Pedagogia habilitação em gestão e supervisão”.

ENUNCIADO 44: “[...] Antes de eu nascer meu pai já vendia verduras. Aí a gente já tem clientela fixa já mais de anos. Aí quando nós carneamo um porco daí meu pai ele dá a facada e daí o resto quem faz sou eu, né? E daí eu limpo, tiro o coro, daí eu tiro as tripa tudo, daí eu faço linguiça, e pico em pedacinhos. Daí eu guardo”.

Os três depoimentos dão conta de que a própria ruralidade é construída no

meio social, na medida em que hábitos e costumes são passados de geração em

geração. O negócio que a família mantém iniciou antes do nascimento da jovem,

notadamente com a participação da avó, e hoje é tocado por ela e pelo pai, em

uma visível sucessão geracional. A moça cumpre tarefas que não são usuais para

os jovens de hoje, como carnear animais (E44), fazer manteiga (E41) e cucas para

vender e cuidar de um aviário (E43). Ela argumenta que aprendeu a fazer

manteiga com a avó, e hoje repete a tarefa inclusive utilizando o mesmo

maquinário antigo, que é mais prático, segundo ela, do que os aparelhos

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modernos. Tal perspectiva também evidencia a herança familiar dos hábitos e da

cultura.

A interlocutora em questão é universitária, cursando Pedagogia em São

Leopoldo, cidade que fica a cerca de 40 quilômetros de Walachai (E43). A jovem,

pois, concilia uma rotina de intenso trabalho com os estudos, manifestando que

circula bem entre as duas realidades, a saber, a rural e a urbana. Percebe-se, mais

uma vez, que para as novas gerações é mais fácil assumir características híbridas,

habitando não apenas um espaço, como postulado por Bhabha (2007), e

convivendo mais naturalmente com outras realidades diferentes daquela de sua

cultura materna.

Os E11, E29, E30 e E68 explicitam a relação dos enunciadores com os meios

de comunicação:

ENUNCIADO 11: “[...] Eu não gosto de olhar o TV. Não, eu não gosto. É... olhá assim sempre prá TV... isso eu não gosto. Aí eu me sento aqui, tomo chimarrão e fumo meu palheiro [...]”.

ENUNCIADO 29: “Eu não tenho televisão. Nunca gostei... Rádio tenho sim”.

ENUNCIADO 30: “Gosto muito de rádio. Na roça às vezes eu levo, pra não perdê nada, né? Capinando, roçando, lavrando, plantando milho, tanto faz. Eu deixo pendurado aqui na camisa, assim, aí trabalho e... deixo pendurado na camisa”.

ENUNCIADO 68: "Nem gosto de olhá muito, principalmente nos domingos, se não tem, se não vem futebol direto, às vezes ninguém liga a TV”.

Os enunciadores acima afirmam preferir o rádio em detrimento da televisão.

Essa situação é interessante, pois a televisão é tida como um dos aparelhos mais

importantes nos lares brasileiros. Através dela, a globalização se torna uma

realidade latente, já que os acontecimentos do mundo são instantaneamente

transmitidos a todos os continentes. Com exceção de uma senhora mais idosa, que

diz não ter televisão (E29), os outros enunciadores não negam ter o aparelho, mas

explicitam não gostar de assistir (E11, E29 e E68). Entende-se que essa aparente

recusa pela televisão talvez possa estar vinculada ao fato de que ela apresenta

fundamentalmente realidades urbanas e uma glamorização que não faz parte do

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gosto e do estilo de vida de muitos moradores de Walachai. Para esse

entendimento corrobora o argumento do enunciador de E68, que diz que o que lhe

interessa na televisão são os esportes: “se não vem futebol direto, às vezes

ninguém liga a TV”.

Não obstante essa falta de interesse pela televisão, um dos enunciadores

marca que não é alienado do mundo. Ele diz levar o rádio até para a roça, “pra não

perdê nada” (E30). Percebe-se, assim, que o rádio está muito mais próximo da vida

daquela população, pois permite acesso tanto a informações universais quanto à

programação local, noticiando ocorrências e eventos que interessam aos moradores

do meio rural. Com isso, nota-se a importância que os enunciadores dão à cultura

local. Para essa mesma perspectiva confluem os enunciados abaixo: o primeiro

deles, E46, é a resposta de uma jovem à pergunta feita pela direção do

documentário sobre o que ela faz para se divertir; os seguintes, E39 e E116, são

respostas de duas mulheres à questão sobre como conheceram seus parceiros:

ENUNCIADO 46: [INTERVENÇÃO: E o que tu faz prá te divertir aqui?] “Ah, daí às vezes eu vô no baile, ou às vezes a gente vai, ali embaixo tem uma sociedade, daí eu me reúno com nossos amigos, daí a gente conversa. Mas que nem quando vai ter a festa da batata, então nos domingos daí, a gente vai numa festa assim, na festa do figo, tem essas festas, né”.

ENUNCIADO 39: “Também tava no colégio, daí nós se conhecemo, mas foi num baile onde que eu moro, que eu morava, quando eu era guria. Se largamo, daí ficamo um ano, aí ele foi visitá uma outra guria. Daí, foi num jogo de futebol, daí nós se encontramo de novo”.

ENUNCIADO 116: [INTERVENÇÃO: “E onde é que vocês se conheceram os dois] “Nós no conhecemos num baile de kerb”. [INTERVENÇÃO: E vocês gostam de baile?] “Sim, nós gostamos de baile. De vez em quando a gente sai... principalmente baile, festa, né... é pouco que a gente sai, mas quando a gente sai a gente aproveita também, né. É, a gente dançá as bandinhas que eles tocam nos baile, né.

O E46 expressa o depoimento de uma jovem, que argumenta que para se

divertir vai a bailes e festas populares e se reúne com os amigos em uma sociedade.

O E116 é enunciado por um adulto que igualmente faz menção aos bailes como

forma de divertimento e como ponto de encontro, já que muitos casais se conhecem

nessas festividades, como pode ser visualizado em E39 e E116.

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Percebe-se que as opções de lazer na localidade são restritas, praticamente

se restringindo a bailes26, a jogos de futebol e a festas populares, como as citadas

festas da batata e do figo (E46), que acontecem nos municípios vizinhos à

comunidade de Walachai, a saber, Santa Maria do Herval e Nova Petrópolis,

respectivamente. É possível verificar que tais atividades são comunitárias, indicando

que os atores estimam os eventos sociais que reúnem a comunidade, em detrimento

de atividades de lazer isoladas típicas das cidades (dois ou três amigos saem para

jantar, um casal vai ao cinema ou shopping, etc.). A característica de viver

majoritariamente em comunidade é, portanto, ponto chave na construção identária

de parte daquela população.

Vinculada à questão da vivência comunitária, também se observa o espírito

de ajuda mútua, que já foi contextualizado no E3 e que também impera na fala do

enunciador de E32:

ENUNCIADO 32: “[...]. Tô morando sozinho. Sem problema. Se tu precisa alguém é só falá prá alguém, um vizinho, um amigo, sempre tem ajuda, sempre. Ninguém nega, por exemplo, um meio dia de serviço, trocá um com o outro, por exemplo eu ajudo um dia ele, outros ajuda, o vizinho ajuda prá mim. Ninguém nega isso. Isso ainda é uma coisa que ainda existe aqui”.

O depoimento acima explicita que as pessoas, em Walachai, podem contar

umas com as outras quando precisam, e que inclusive existe permuta de turnos de

trabalho entre os agricultores, o que acontece porque muitos deles trabalham

sozinhos. Dessa forma, por vezes os trabalhadores precisam do auxílio de mão de

obra extra, o que conseguem facilmente solicitando ajuda a vizinhos e amigos. O

ator diz que ninguém nega um pedido de ajuda, ao que acrescenta “isso ainda é

uma coisa que ainda existe aqui”, marcando tal postura como comum no interior,

mas não tão usual em outros contextos, numa provável referência à diferença entre

o universo rural e urbano. Chama-se atenção para o uso duplo do advérbio “ainda”

no excerto acima. Ao utilizar duplamente o advérbio de tempo, o enunciador enfatiza

o fato de que até hoje a conduta de cooperação tem acontecido, mas permite inferir

26 Os bailes são reuniões dançantes que acontecem em várias comunidades do interior do Rio Grande do Sul. Caracterizam-se por tocar música alemã com acompanhamento de banda, o que é popularmente chamado de “música de bandinha”, conforme o E116. Tais bailes são frequentados por pessoas de todas as idades, inclusive por crianças, como mostram as imagens do documentário Walachai.

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que a realidade pode ser diferente no futuro. Entende-se, com base no E32, somado

ao E33 do mesmo interlocutor, que o sujeito preocupa-se com uma possível

vulnerabilidade das identidades comumente encontradas no interior, o que seria

consequência do sistema econômico capitalista:

ENUNCIADO 33: “A situação, aqui, nessa região, tá difícil. Os grandes, é... os grande, tão terminando com nós. Aí é que tá a diferença, por isso o pequeno agricultor vai, daqui a dez, quinze anos não vai mais tê. Não tem mais... não tem como sobrevier. Essa é a grande dificuldade”.

Interpreta-se que o enunciador de E32 e E33 possa estar inter-relacionando,

ainda que inconscientemente, o declínio do pequeno agricultor diante das políticas

econômicas agressivas do capitalismo (em que “os grandes” terminam com “os

pequenos”) com a perda das próprias marcas identitárias da população da sua

localidade. Assim, poderia haver uma espécie de assimilação do rural pelo urbano, o

que se daria, primeiramente, em um nível econômico e depois, consequentemente,

também em um nível subjetivo, resultando em um apagamento das identidades

rurais, que passariam a ser absorvidas pela lógica urbana capitalista, perdendo a

sua essência.

Não obstante essa possível percepção de vulnerabilidade, evidenciam-se,

também, marcas discursivas de manutenção identitária, que podem ser

compreendidas como resistência (BHABHA, 2007) frente a um discurso urbano

consagrado como superior:

ENUNCIADO 87 (parte 2): “Olha, eu até gostava de uma pessoa de Novo Hamburgo, né, mas ele era de um mundo diferente, daí eu vi que meu lugar é aqui. Porque nos finais de semana que eu tava lá no apartamento dele eu quase morria. Eu ficava doente ali. E ele disse assim prá mim que ele jamais ia querê morá num lugar que nem esse aqui. Isso não faz parte da vida dele. Então eu acho assim: eu fico aqui, ele lá, né. Eu não saio daqui. [INTERVENÇÃO: Por nada?] Por nada. [INTERVENÇÃO: Nem por um grande amor?] Não, só no caixão”.

O E87 apresenta um confronto entre os dois mundos que são objeto de

estudo desta seção, a saber, o rural e o urbano. De acordo com o enunciado, parece

não haver possibilidade de existir um “entre-lugar”, restando uma oposição entre

dois polos que se repelem. Apenas 30 quilômetros separam o município de Novo

Hamburgo da comunidade de Walachai, de modo que parece exagerado considerar

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tamanha diferença cultural. Entretanto, a fala da mulher que saiu do interior e foi à

cidade traz elementos que para ela são negativos do meio urbano, a saber, morar

em um apartamento, o que lhe desperta sensações como “ficar doente” e “quase

morrer”. Da mesma forma, o homem que saiu da cidade e foi conhecer o interior

também identificou elementos negativos com relação à roça, de modo a revelar que

“jamais ia querê mora num lugar que nem esse aqui”, numa fala quase pejorativa e

desrespeitosa em relação ao local. Assim, por uma questão de incompatibilidade de

mundos e de diferentes expectativas, o casal se separou, o que leva a crer que as

raízes identitárias podem, por vezes, ser tão fortes que se sobrepõem ao sentimento

amoroso.

A parte final da fala “Eu não saio daqui por nada, só no caixão” pode soar

exagerada. No entanto, acredita-se, conforme trazido por Coutinho (1997), que o

processo de interpretação das pessoas (aqui considerando a escolha lexical de

impacto) é importante porque pode revelar uma superverdade dos sujeitos. Nessa

perspectiva, as palavras escolhidas podem de fato querer impressionar, a fim de

defender uma identidade que é cara a esse enunciador e que ele, de alguma forma

(através das palavras do namorado), sentiu ameaçada.

5.6 “O MEU LUGAR É AQUI”. PERTENCIMENTO CULTURAL DOS HABITANTES

DE WALACHAI

Nesta seção, são analisados enunciados orientados pelo tema norteador

“cultura”, bem como pela relação Pertencimento X não Pertencimento. Observa-se

que as relações de pertencimento já foram analisadas no tocante à língua e que,

embora língua e cultura estejam intimamente imbricadas, algumas falas revelam

peculiaridades sobre o pertencimento cultural, motivo pelo qual se optou por fazer

uma divisão dos depoimentos entre essas duas linhas de análise.

Um primeiro ponto de vista diz respeito à vinculação que as pessoas da

comunidade mostram ter com a localidade em que moram:

ENUNCIADO 14: “Walachai era um lugar afastado. E era afastado, sim, aham. Contra outros lugares, muito longe de tudo. Eu gosto de morar aqui. Walachai é um lugar bonito. Eu acho bonito aqui em Walachai. Nunca vô saí pra outro lugar”.

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ENUNCIADO 34: “Eu prefiro morá aqui do que numa cidade. Aqui é mais tranquilo, tu qué dexá a porta aberta de noite tu dêxa e ninguém incomoda. Fica bem tranquilo. Tu acorda de manhã com o canto dos pássaros, e essas coisas. Eu nasci aqui e acho que quero terminar a minha vida aqui também. Esse lugar chama Jammerthal. Dizem que há muitos anos atrás um cara que tava subindo de cavalo chegou lá no morro e olhou para trás e disse: mas que Jammer is thal. Aí veio a origem de Jammerthal. Jammerthal quer dizer vale das lamentações”.

Os enunciados acima marcam o sentimento de pertencimento dos

enunciadores ao seu local de origem. Os depoimentos “eu gosto de morar aqui” e

“nunca vô saí prá outro lugar” (E14) e “eu nasci aqui e acho que quero terminar a

minha vida aqui” (E34) revelam que tais pessoas têm fortes raízes estabelecidas na

comunidade, evidenciando não sentir necessidade de vivenciar outras realidades.

Pode-se inferir, também, que esses enunciadores nunca moraram fora da

localidade. O E34 ainda apresenta motivos pelos quais o entrevistado não pretende

deixar o lugar em que vive: é mais tranquilo, é possível deixar a porta aberta (ou

seja, não há violência) e ninguém incomoda, elementos que também permitem

contrastar o rural e o urbano. Os E14 e E34 ainda retomam algumas referências

populares que situam a região como longínqua e solitária: “Walachai era um lugar

afastado. [...], muito longe de tudo” (E14) e “Jammerthal quer dizer vale das

lamentações” (E34). Tais enunciados são baseados no significado dos nomes das

localidades em questão. É interessante notar que esses nomes, por si sós, emanam

uma sensação de isolamento, de solidão, que é marca histórica daquelas

localidades. Assim, entende-se que há um intercâmbio entre o meio e o que ele

evoca e o próprio espírito bucólico que parece estar presente nas manifestações dos

enunciadores. A história do meio confunde-se, pois, com a história dos moradores,

deixando marcas subjetivas nesses sujeitos.

Nessa mesma linha de pertencimento cultural estão os E105 e E107, que são

depoimentos de um artista local:

ENUNCIADO 105: “Comecei a fazê sobre a temática dessa região, e durante 32 anos faço sobre a vida desses colonos, porque eu sempre tinha muita saudade e vontade de voltar prá cá. Já são mais de 6.000 quadros sobre essa realidade, e sempre enfatizando as comidas típicas, as diversões típicas, os plantios, as semeaduras, as famílias”.

ENUNCIADO 107: “Uma vez eu vi um filme e o cara tava dizendo que bem poucas pessoas no mundo acharam seu lugar. Eu achei o meu lugar.

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O meu lugar é aqui. E eu acho mesmo que o artista é a materialização da vibração de um povo. Me emociona muito ver as pessoas plantando canteiros de flores ao lado da estrada que não são prá venda, são prá enfeitá. É a beleza das coisas, né?”

Na seção 5.2 já foi discutido o E106, do mesmo enunciador acima. Naquele

momento, analisou-se a autocompreensão linguística desse sujeito, que dizia ter

recorrido à pintura para comunicar-se com o mundo, já que se sentia integrante de

um grupo que vivia isolado. No E105, entretanto, o mesmo ator revela que começou

a pintar “porque [...] tinha muita saudade e vontade de voltar prá cá”. Com isso,

revela que esteve distante da comunidade e que tentou manter a proximidade

retratando os ciclos de vida do povoado de sua infância em quadros. Esse aparente

lapso ou incoerência que se evidencia nos discursos pode marcar uma conexão

entre as realidades de sair e de voltar: primeiramente, o sujeito saiu da comunidade

para se comunicar com o mundo, descobrindo na arte um caminho para essa

realização; em um segundo momento, tomou essa mesma arte como caminho de

volta, reaproximando-se da comunidade que havia deixado. De certa forma, a sua

“saída”, representada pela tentativa de se comunicar com o mundo, só se efetiva

com a sua “volta”, ou seja, quando passa a falar para “esses outros” a partir de sua

origem. Entende-se que esse fluxo entre ir e vir marca exemplarmente o

pertencimento desse sujeito à sua cultura materna.

No E107, ao dizer “eu achei o meu lugar. O meu lugar é aqui”, o artista

estabelece um sentimento de pertencimento que é fruto de uma escolha, já que teria

condições de viver em qualquer outro lugar. E quando explicita “acho mesmo que o

artista é a materialização da vibração de um povo”, mostra que se sente

representante de seu povo, uma vez que materializa, pela pintura, a alma e a cultura

desse povo, que através da arte podem tornar-se conhecidas em outros contextos.

Finalmente, há uma marca de orgulho na fala desse sujeito, que diz se emocionar ao

ver as pessoas cuidando das flores, que não são para vender, “são prá enfeitá”. Tal

perspectiva revela que esse enunciador percebe nos seus conterrâneos uma

sensibilidade, um modo de viver focado não em ganhar dinheiro, mas em valorizar a

“beleza das coisas”, em harmonia com a natureza.

Um segundo ponto a ser discutido diz respeito à vinculação que as pessoas

da comunidade mostram ter com o Brasil. Nesse contexto, veem-se os seguintes

enunciados:

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ENUNCIADO 82: “Lógico, né. Em primeiro lugar brasileiro. Daí, depois vamos olhá, né, quem é o outro time, né. Se o Brasil não tá mais jogando, é, daí dá pra torcer pra outro time, mas...”

ENUNCIADO 109: "Eu torço somente pro Brasil, não tem essa coisa de torcer pra Alemanha. Não desce”.

ENUNCIADO 114: “Se é Brasil contra Alemanha, sô brasileiro”.

Os três enunciadores respondem à pergunta sobre a que seleção de futebol

torcem. Os atores em questão são jovens que foram filmados durante um jogo de

futebol em um clube fundado por eles mesmos. As respostas marcam um claro

pertencimento à nacionalidade brasileira: “em primeiro lugar brasileiro” (E82), “Eu

torço somente pro Brasil” (E109) e “Se é Brasil contra Alemanha, sô brasileiro” (E114).

Percebe-se que uma parcela da população sente-se genuinamente brasileira, de

modo que, por meio de seus enunciados, esvai-se a percepção de que na localidade

só há pessoas “germanizadas”, que seriam mais alemãs do que brasileiras.

Paralelo aos enunciados que reforçam o sentimento de pertencimento à

nacionalidade brasileira, estão algumas falas que remetem a um distanciamento da

Alemanha:

ENUNCIADO 12: “Da Alemanha? Oia, eu não sei muito. Não sei, não sei muito da Alemanha. É... é, porque a gente nunca tava lá. Ééé...”.

ENUNCIADO 110: “Não sei nada de Alemanha, nem tenho ideia, né, não... [INTERVENÇÃO: Tem ideia onde fica?] “Nem sei”.

ENUNCIADO 112: “Claro, de vez em quando a gente vê na TV, né, mas assim, assim, não conheço nada”.

ENUNCIADO 113: [INTERVENÇÃO: Sabe quem da tua família veio da Alemanha?] “Ah, não sei, não sei. Eu sou brasileiro”.

O E12 é enunciado por um idoso, que diz não saber muito da Alemanha

porque nunca esteve lá. O distanciamento geográfico e o fato de não ter tido uma

experiência de visitar aquele país revelam-se pontos de impedimento para uma

aproximação com aquela cultura. Também é interessante vincular tal enunciado ao

E13, já discutido na seção 5.1, que remete ao fato de o ator não ter entendido a fala

dos alemães que foram visitá-lo. Essa experiência de não entender e, portanto, de

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não pertencer (E13), pode ter motivado o enunciado em questão (E12), rompendo

com a ideia da suposta proximidade desse enunciador com a cultura alemã pelo fato

de ele falar majoritariamente alemão e apresentar hábitos que são atribuídos à

cultura alemã (vide E5).

Os E110, E112 e E113 são falas de indivíduos mais jovens. É visível que

muitos dos enunciadores que pertencem às gerações mais novas não conhecem e

tampouco se mostram interessados em conhecer a Alemanha: “não sei nada de

Alemanha” (E110) e “assim, não conheço nada” (E112). Apesar de terem traços da

cultura daquele país e de se comunicarem essencialmente usando o dialeto alemão,

para esses indivíduos o passado ficou para trás, e sentem-se, hoje, inscritos na

cultura brasileira, foram “traduzidos”, no conceito de Hall, a ponto de dizer: “eu sou

brasileiro” (E113). Por meio dessa percepção, é possível verificar que as gerações

mais novas, que não enfrentaram as situações de interdição de seus antepassados,

conseguem estabelecer uma vinculação mais próxima com a nação brasileira, ainda

que se autocompreendam diferentes em relação a sua forma de viver e,

principalmente, de falar.

Entretanto, quando o escopo de estudo são as pessoas mais velhas, observa-

se, nos depoimentos, um orgulho de ter ascendência alemã:

ENUNCIADO 31: “Música de bandinha. Bandinha... Não nego as minhas origens. Gosto da bandinha, de alemão”.

ENUNCIADO 118: “De manhã eu levanto e vô na roça, né, volto de noite, volto de meio dia, vô de tarde, volto de noite. E música pode chamá de meia noite que eu levanto e vô junto. Eu gosto. Nelson Fassbinder... da Alemanha. Deve tê um lá. Porque eu já vi uma vez passou filme na TV eu li os nomes e eu vi um Fassbinder, acho que é diretor de cinema, tenho quase certeza que é parente meu, que a gente veio de lá mesmo”.

Nos E31 e E118, acima, percebe-se um sentimento de que, seja por costume

ou por ideologia, carregam alguma herança da nação alemã. No primeiro

depoimento (E31), o entrevistado afirma gostar de música de bandinha, atribuindo

tal gosto musical às suas origens germânicas. Entende-se que “bandinha de

alemão” é uma construção simbólica, já que muito da música popular cultivada nas

comunidades brasileiras tidas como de origem alemã foi produzida no Brasil. Assim,

ainda que muitas canções sejam recitadas na língua alemã (algumas também já são

em português), há nelas elementos brasileiros, o que prova que a expressão

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“bandinha de alemão” é resultado do plurilinguismo que estabelece o intercâmbio de

vozes sociais que vão construindo os significados culturais.

O E118 também reporta a um sujeito orgulhoso por ser descendente de

imigrantes alemães. Ao ser questionado provavelmente sobre o seu nome e origem,

ele responde: “Nelson Fassbinder... da Alemanha”. Em um primeiro momento,

entende-se que o indivíduo tenha nascido na Alemanha. Entretanto, na sequência, ele

anuncia: “Deve tê um lá. Porque eu já vi, uma vez passou um filme na TV eu li os

nomes e eu vi um Fassbinder, acho que é diretor de cinema, tenho quase certeza que

é parente meu, que a gente veio de lá mesmo”27. A sequência da fala subverte a

primeira impressão, e deixa claro que o sujeito não tem certeza do que está dizendo:

“deve ter”, “tenho quase certeza”. Certamente o fato de ter visto um sobrenome igual

ao seu nos créditos de um filme estrangeiro não é indicativo de que aquela pessoa

seja seu parente. Isso leva a crer que talvez a cultura germânica seja idealizada por

esse sujeito, que se sente feliz por acreditar ser descendente dela. Pode-se imaginar,

nesse contexto, que existe todo um discurso que situa a Europa em uma posição

cultural e intelectual mais desenvolvida e civilizada do que a do Brasil, o que motivaria

a vontade do sujeito de pertencer àquela cultura e não à do país em que efetivamente

nasceu. Observa-se que também nessa situação possa estar instaurada a falta, ou

seja, o desejo por algo que está além das possibilidades de ser alcançado.

Verifica-se, com as análises realizadas nesta seção, que parece haver

posições bem definidas no tocante ao pertencimento cultural. Por um lado, há

sujeitos que nem sequer sabem onde fica a Alemanha e que não se interessam pela

conexão que pode existir entre a cultura de lá e a da sua comunidade. Por outro

lado, alguns indivíduos revelam o desejo de manter o contato com traços da cultura

que imaginam ser a alemã, evidenciando o quanto a subjetividade é marcante na

comunidade, já que cada um experiencia o estado de ser/estar entre línguas e

culturas de uma forma muito particular. Assim, as marcas de pertencimento cultural

se evidenciam de modo diferente em cada sujeito entrevistado, revelando a

heterogeneidade dessa população estudada sob a perspectiva documental. Dessa

forma, as relações não são livres de tensões, já que as identidades não são

unificadas, estando sempre no âmbito do precário, do incompleto, necessitando do

processo de negociação.

27 Existiu, de fato, um diretor de cinema alemão chamado Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), que foi representante do novo cinema alemão.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Iniciei esta dissertação narrando um pouco da minha experiência pessoal com

o viver entre línguas e culturas em Walachai. Apesar de nunca ter morado na

localidade, fui influenciada pelo hibridismo linguístico e cultural que impera nessa

comunidade em que meus pais nasceram. Com o lançamento do documentário

Walachai (2009), fui motivada a estudá-lo para contribuir, assim como ele, para

tornar mais visíveis a língua e a cultura de uma comunidade minoritária cujas

características são desconhecidas pela maior parte da população brasileira. No meu

ponto de vista, é essencial que os sujeitos conheçam o que está além de seu próprio

mundo, porque só na comunhão com as outras culturas é que terão uma

compreensão mais aguçada das próprias raízes. Por vezes, costuma-se dar menos

importância aos grupos minoritários, visto que representam uma parcela pequena da

população e, com isso, perde-se uma ilimitada riqueza cultural. Assim, da mesma

forma com que o filme procurou lançar luzes sobre um grupo desconhecido e pouco

estudado, busquei mostrar a importância de se vislumbrar esse universo com um

olhar mais profundo, procurando compreender as representações identitárias

implícitas ou explícitas nos enunciados ditados por membros desse grupo no filme

em questão.

Para atingir o objetivo de analisar os enunciados dos imigrantes alemães e

seus descendentes no filme Walachai, identificando os diálogos interculturais e os

sentidos que eles produzem, a fim de reconhecer possíveis traços identitários que

constituem tal população, primeiramente fiz um percurso teórico discutindo temas

como a inter-relação entre língua e cultura, e verificando como estas dimensões

acabam por constituir identidades. As múltiplas identidades que o sujeito manifesta

ao longo da vida no chamado mundo pós-moderno são construções imaginárias, por

vezes inconscientes e, portanto, subjetivas. A psicanálise explica que o homem é

originariamente um sujeito da falta, e que a percepção de ter uma identidade

unificada é apenas ilusória. Nesse sentido, o sujeito usa instrumentos pelos quais

busca consagrar a sua “completude”, como por exemplo, a vinculação a uma

nacionalidade, a uma língua e a uma cultura que lhe despertam um sentimento de

pertencimento.

Apesar desse impulso de unificação do homem, o arcabouço teórico

estudado admitiu compreender que tal possibilidade não pode se efetivar. As

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culturas são atravessadas por divisões e diferenças, sendo unificadas apenas

arbitrariamente, pelo exercício do poder. Tem-se, assim, que em todos os âmbitos a

“completude” está sempre ameaçada pela “falta”. O hibridismo é, pois, uma marca

da pós-modernidade, já que a existência de identidades, nacionalidades, línguas e

culturas puras é cada vez menos viável.

O hibridismo cultural foi abordado com base na imigração alemã no estado

do Rio Grande do Sul. Evidenciei que os próprios imigrantes germânicos não

constituíam um grupo homogêneo, e tampouco eram homogêneas as comunidades

que eles fundavam em solo brasileiro. A imigração requer um processo constante e

complexo de reavaliação identitária, já que pressupõe, ao inter-relacionar

diferentes culturas, a tensão entre a tradição e a tradução dos sujeitos envolvidos.

Além disso, pressupõe a existência de outros elementos que lhe são inerentes,

como o multilinguismo e o plurilinguismo, fenômenos que influenciam a concepção

identitária de um grupo social, que se configura como resultado de vários “dizeres” e

de múltiplas “vozes”. Isso significa que, no âmbito da imigração, ainda reside a

tensão entre a língua materna dos imigrantes e a língua de adoção (adicional) que

é falada no país que os acolhe. Cada uma dessas línguas age sobre a

subjetividade dos sujeitos, marcando-os de diferentes maneiras. Também essa

vivência entre-línguas exige que haja negociação entre os sujeitos, que

constantemente devem posicionar-se identitariamente frente às línguas com as

quais convivem.

Nessa direção, os sujeitos constantemente se confrontam com o fato de não

serem mais “o um” ou “o outro”, mas um produto de todos “os outros” que compõem

a sua história. Nesse jogo, procuram se autoafirmar, traduzindo-se em relações aos

outros com os quais convivem, o que não significa a perda de suas identidades, mas

a adição de novas identidades, sempre com o objetivo de “pertencer” a

determinados lugares/culturas/línguas e, com esse sentimento de pertencimento

sanar, mesmo que ilusoriamente, a falta que lhes é inerente.

Ainda buscando atingir o objetivo desta dissertação, na segunda parte da

pesquisa efetivei a análise dos enunciados do documentário Walachai. Esse

processo permitiu-me inferir que o mundo em constante transformação produz

sujeitos complexos, igualmente em transformação, já que a interação com o meio e

com os outros, ou seja, as relações de alteridade, são fundamentais para a

compreensão de si mesmo e da sociedade. Assim, acredito que o objeto de estudo

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amplamente abordado ao longo desta pesquisa constituiu-se como importante

corpus para estudar em profundidade o fenômeno social de configuração identitária

de uma comunidade de imigrantes alemães, levando-se em consideração as

múltiplas interações do meio com os sujeitos e as relações histórico-sociais que

erigem identidades da população.

Nessa direção, percebo que vários são os traços identitários que pautam a

vida dos atores do documentário em questão. Dentre as múltiplas dimensões

possíveis de análise, optei por delimitá-las a alguns pares dicotômicos, tomando-os

não como excludentes, mas como complementares entre si. Assim, sob o prisma da

língua, averiguei enunciados pautados pelos temas Alemão X Português,

Pertencimento X Não Pertencimento e Língua Materna X Língua do Outro. Já sob o

prisma da cultura, estudei enunciados marcados pelas relações entre Masculino X

Feminino, Rural X Urbano e Pertencimento X Não Pertencimento. Apesar de não ter

sido possível esgotar tais enunciados, dada a riqueza que lhes é intrínseca, espero

ter suscitado pontos que problematizam as questões identitárias lançando luzes para

uma compreensão mais profunda de uma comunidade de imigrantes.

Nesse sentido, inicialmente no que tange à língua e à cultura, é possível

perceber, nas falas, diferenças marcadas pela dimensão inter-geracional. Alguns

dos descendentes das primeiras gerações de imigrantes entrevistados no filme

idealizam a nação de suas origens, voltando-se a uma tradição, a uma ideia de

nação genuína, a uma pátria que ficou para traz, mas que carregam consigo, na sua

forma de viver, nos seus hábitos, na sua língua. Já os sujeitos mais jovens mostram-

se mais traduzidos, ou seja, consideram-se brasileiros, muito embora cultivem os

mesmos hábitos de seus pais ou avôs/bisavôs. Percebo que as novas gerações

encaram com mais naturalidade o fato de serem um produto híbrido e de se

situarem em um contexto de entre-língua. Todavia, para jovens e idosos, permanece

o estigma de que falam errado, de que não sabem, de que o que falam é uma

“mistureba”. Dessa forma, o falar numa perspectiva entre-línguas não é uma

realidade valorizada, mas desprestigiada.

Assim, entendo que essa depreciação, que se situa mais especificamente no

âmbito da língua, tem uma dupla origem: de um lado, o olhar das pessoas que não

pertencem ao povoado, que interpretam que a comunidade não fala nem português

e nem alemão e, de outro, a autocompreensão de que não sabem se expressar e de

que, por isso, devem envergonhar-se ao falar com pessoas não pertencentes ao

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meio, visão esta forjada historicamente dentro da própria comunidade como

consequência das reiteradas impressões de que a língua que falam é errada. Assim,

penso que a própria população acaba por desvalorizar aquilo que melhor a identifica,

a saber, a sua linguagem única e a sua cultura peculiar. Nessa perspectiva, o viver

entre-línguas deveria ser visto como algo que caracteriza positivamente a

comunidade em questão, pois determina a capacidade dos indivíduos de

“entrecruzarem” as fronteiras de duas diferentes línguas, ainda que por meio de uma

forma não padrão. Além disso, ao reconhecerem que falam diferente tanto do

alemão quanto do português, os enunciadores evidenciam um distanciamento

linguístico que, de certa forma, os exila, de modo que até mesmo os sujeitos que se

mostram mais “traduzidos” revelam certa vulnerabilidade no que tange à identidade

linguística.

Em uma visão psicanalítica lacaniana, considerando que é a falta que instaura

o desejo, poder-se-ia dizer, em relação aos atores do documentário, que, por um

lado, a falta da língua alemã, outrora interditada por políticas governamentais,

ocasionou o desejo pela língua alemã. Entretanto, por outro lado, a percepção de

incompetência e de falta em relação à língua portuguesa também os faz desejar

esse idioma, ainda que isso não seja evidente e que fique resguardado em um nível

inconsciente, ou que tal desejo seja por não aprender, por não se envolver. A

aparente falta de conhecimento e de interesse na língua portuguesa pode, assim,

significar mais do que um simples distanciamento dessa língua, pode representar o

desejo reprimido de “apropriar-se”.

É reveladora também a questão de que os atores do documentário

evidenciam que há praticamente uma dicotomia entre a língua de escrita e a língua

de fala. Enquanto os enunciadores falam alemão no dia a dia, são alfabetizados

em português na escola. Dessa forma, há um descolamento do real, na medida em

que nos ambientes familiar e laboral não se utiliza o idioma que a escola ensina.

Não obstante, a língua letrada também assume o seu lugar nos enunciados, ainda

que como língua minoritária e como a língua do desejo, consciente ou reprimido.

Dessa forma, a identidade dos enunciadores do filme é marcada pela vivência entre-

línguas, realidade que por vezes é desprestigiada porque os enunciadores se

sentem devedores tanto em relação à língua materna (alemã) quanto em relação à

língua de adoção (portuguesa). Tal sensação, por fim, acaba repercutindo no

sentimento de pertencimento de algumas dessas pessoas, que embora se percebam

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brasileiras, sentem-se alemãs: “é costume ser alemão aqui” (E20), “mas até hoje, as

coisas da alma, [...] os sentimentos da alma, eu tenho que usar o dialeto, porque no

português eu não sei, sempre sai frio” (E106). Manifestações como essas poderiam

consolidar a perspectiva de que, talvez, o dialeto alemão bastaria à comunidade, e

de que o português seria uma língua obsoleta para os moradores de Walachai.

Entendo que, ao usar o português perante pessoas que hipoteticamente sabem

melhor tal idioma, os descendentes de imigrantes parecem sentir-se menos

competentes, achando que falam errado. Ao falar o dialeto alemão perante alemães,

também se sentem inferiorizados. Entretanto, o uso dessas duas línguas no interior

da comunidade permite a efetividade da comunicação entre a população local.

Nesse âmbito, percebo que para os interlocutores do filme é mais difícil falar

português perante brasileiros de fora da comunidade, pois estes supostamente

seriam falantes competentes da língua portuguesa e, portanto, “dominariam” tal

idioma e poderiam “julgar” os que não falam da mesma forma, respaldando o fato de

que sentir-se diferente nem sempre é encarado com naturalidade. Dessa maneira,

muitos entrevistados revelem não necessitar de outras representações (linguísticas,

no caso) para fortalecer suas identidades, sem se dar conta de que é no confronto

com o outro, com o que fala diferente, que potencializam o reconhecimento mútuo e

a alteridade, bem como o sentimento de pertencimento a uma língua/cultura.

No que tange aos aspectos culturais, percebo que as questões que permeiam

o universo investigado são universais, a saber, família, trabalho, preocupação com o

futuro, tensão entre gerações, rotina, diversão, etc., mas que as relações com esses

âmbitos da vida se dão de forma peculiar nos atores cujos enunciados foram

analisados. Em muitos depoimentos são percebidas tensões, seja na perspectiva

inter-geracional ou na dicotomia que se estabelece entre conservar elementos

culturais locais ou assimilar traços da cultura urbana brasileira contemporânea. Assim,

as identidades interagem e se constituem em espaços entre-culturas, estabelecendo

conexões entre diferentes realidades. Uma das questões que abordei amplamente no

decurso deste trabalho, foi a relação de gênero, explorando aspectos condizentes ao

feminino X masculino. Nessa dimensão, constatei que o universo laboral é importante

para a compreensão da identidade assumida por homens e mulheres. Enquanto os

primeiros presam por liberdade e são muito mais ligados a aspectos rurais, as últimas

assumem múltiplas funções dentro e fora do lar, sujeitando-se a ter uma vida menos

livre e mais controlada por horários e obrigações. A atuação das mulheres nas

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fábricas de calçados e dos homens na roça, todavia, faz com que ambos ingressem

precocemente no mercado de trabalho, o que muitas vezes implica no abandono dos

estudos.

No que tange às questões de gênero, percebo, em muitos aspectos, a

reprodução de papéis sociais. Nesse ínterim está o respeito à hierarquia familiar,

sendo os homens considerados os chefes da casa, bem como o entendimento de que

é obrigação da mulher dar conta das atividades domésticas, o que se soma às vozes

culturais que dão conta de afirmar que existem ocupações apropriadas para homens e

mulheres. Algumas atitudes, porém, situam as mulheres como mais abertas ao novo:

preocupam-se com geração de renda, falam mais abertamente sobre seus sonhos e

sentimentos e demonstram vontade de conhecer novas realidades, evidenciando,

assim, identidades mais urbanas, já que também se mostram mais adaptadas ao

modo de vida das cidades.

No que tange à distinção entre os elementos tipicamente rurais e urbanos,

percebo que o documentário é particularmente rico, trazendo uma infinidade de

elementos que contrastam esses dois universos. Dois objetos marcadamente urbanos

apresentados no decurso dos enunciados são o relógio e a televisão, ambos

mostrados como não muito necessários em Walachai, dada a relação diferenciada

que os moradores têm com o tempo e o espaço. O primeiro deles é exemplo máximo

da correria do dia a dia dos centros urbanos, e se opõe à rotina mais respaldada nos

ciclos da natureza seguida no vilarejo; o segundo é o marco máximo da globalização,

muitas vezes desprezado em Walachai porque a população se interessa mais por

elementos da cultura local. A isso está ligada a característica da população rural de

Walachai de viver majoritariamente em grupo, prezando pelo espírito comunitário, o

que inclui divertir-se comunitariamente e também ajudar-se mutuamente.

No quesito rural X urbano, a dinâmica inter-geracional é igualmente importante.

Enquanto alguns enunciadores mais velhos mostram certo isolamento em relação à

sua maneira de pensar e agir, desprezando as modernidades e mantendo-se

afastados dos meios de comunicação de massa, muitos dos mais jovens parecem

circular bem entre as realidades urbana e rural, assumindo características híbridas. Os

atores também dão conta de mostrar que a ruralidade é construída no meio social

quando hábitos e costumes são passados de geração em geração.

Em suma, no nível rural X urbano, percebo um duplo movimento que é

importante para a compreensão da população de Walachai: por um lado, alguns

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enunciadores mostram uma preocupação com a vulnerabilidade da identidade rural,

que veem como ameaçada tendo em vista uma mescla de aspectos econômicos e

subjetivos; por outro, há evidências de resistência que denotam a manutenção da

identidade rural, o que respalda os sentimentos de pertencimento ao local, discutidos

na última unidade de análise.

Assim, no tocante ao pertencimento cultural, percebo novamente um duplo jogo

em que alguns indivíduos, apesar de se sentirem fortemente vinculados, o são de

duas maneiras distintas: uns apresentam forte vinculação com o local, enquanto

outros mostram forte ligação com uma cultura germânica idealizada. Os primeiros,

pois, não sabem onde fica a Alemanha e não se interessam pela conexão que pode

existir entre a cultura de lá e a da sua comunidade. Já o segundo grupo revela o

desejo de manter o contato com traços da cultura que imagina ser a alemã. Revela-

se, assim, a heterogeneidade da população, que oscila entre tradição X tradução,

local X global, alemão X português. As múltiplas vozes que constroem os discursos

mostram a alteridade como elemento constituinte da cultura estudada. Nesse sentido,

observo que as enunciações não são unas, mas trazem resquícios de outros tempos,

de outras gerações, de outros hábitos, de outras rotinas e de diferentes perspectivas

de relações humanas.

A colônia alemã de Walachai, que estudei no âmbito deste trabalho sob a

ótica do filme Walachai, é uma comunidade agrupada em torno de elementos

culturais comuns, dentre os quais se destaca a linguagem. Todavia, a comunidade

está longe de possuir uma cultura homogênea, caracterizando-se, pelo contrário, por

apresentar elementos híbridos. No conjunto das análises que realizei no corpo desta

pesquisa, é inquestionável a existência do hibridismo cultural, do multilinguismo e do

plurilinguismo, fenômenos que marcam irrevogavelmente a população, que se

constitui por ser produto de várias histórias, línguas e culturas interconectadas, de

modo que a identidade dos sujeitos torna-se, por vezes, ambígua. Tal situação é

resultado da dicotomia entre tradição e tradução, já que os descendentes de

imigrantes alemães em questão oscilam entre o desejo de conservar as origens

perdidas e a vontade de negociar com a nova cultura, admitindo que não são um

povo unificado, mas multicultural.

No início desta dissertação, utilizei a seguinte epígrafe: “A compreensão

profunda da cultura de um povo acontece quando os limites do cotidiano são

rompidos e os fatos históricos passam a ser melhor conhecidos pelos cidadãos que

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compõem a sociedade”. (WEFFORT, 1999). Penso que, talvez, a compreensão da

cultura e dos aspectos identitários que fazem um grupo social ser como é seja um

intento um tanto audacioso, ainda mais quando se faz uso de um corpus tão exíguo.

Apesar de conhecer as limitações que impus à pesquisa ao optar por estudar não

uma realidade em si, mas a representação fílmica dessa realidade, entendo que as

interpretações realizadas à luz do material escolhido constituem um microcosmo,

que embora não possa ser generalizado para todos os contextos, manifesta um

retrato, ainda que parcial e incompleto, de uma sociedade que vive entre-línguas e

entre-culturas. Dessa forma, acredito que uma das grandes contribuições que o

presente trabalho pretende trazer à pauta é motivar os estudos de cunho

sociolinguístico no sentido de compreendê-los como elementos que podem trazer

respostas que ajudam a entender as influências que o estado de ser/estar entre-línguas

e entre-culturas pode desencadear sobre a subjetividade dos sujeitos e,

consequentemente, sobre a compreensão que uma comunidade tem de si. Essa

percepção de si, por sua vez, repercute no modo como o grupo se posiciona frente a

outros grupos, determinando atitudes que remetem a pertencimento ou não

pertencimento a uma determinada cultura.

Por fim, entendo que as vozes e os olhares que conduziram esta pesquisa

ao resultado atual, constituem um mosaico que nunca estará pronto, mas que

sempre pode ser analisado sob um outro prisma, sob um novo olhar, marcando a

transitoriedade, a precariedade do humano. Não obstante essa impossibilidade de

encontrar verdades, as vozes e os olhares, ou as línguas e as culturas que foram

escopo de pesquisa, permitem problematizar realidades constitutivas da

sociedade.

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WALACHAI. Portal do Filme Walachai. 2015. Disponível em: <http://walachai.com/2013/06/14/conheca-walachai/>. Acesso em: 13 dez. de 2015.

WEFFORT, Francisco. Apresentação. In: FREITAS, Décio et al. Missões Jesuítico-Guaranis. São Leopoldo: UNISINOS, 1999.

WENDLING, João Benno. A História de Walachai. Porto Alegre: Companhia Rio-grandense de Artes Gráficas, 2013.

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138

WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: uma introdução conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.). Identidade e Diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 7-72.

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139

APÊNDICE A: ENUNCIADOS DO DOCUMENTÁRIO WALACHAI

(Continua)

TABELA DE DADOS

N. NOME IDADE GÊNERO ATUAÇÃO LÍNGUA TEMPO Nº ENUNCIADO TEMA

0 Rejane Zilles

Adulto Fem. Diretora do Filme

Português

2:15 * “Volto ao lugar da minha infância, de onde sai com 9 anos de idade. O longe sempre esteve perto. O tempo ainda segue o mesmo ritmo lento. O som das carroças de madeira sob o chão da estrada, e as rodas incandescentes, como eram forjadas na ferraria do meu pai”

NÃO

24:46:00 * “Mathias Mombach partiu do porto de Bremen em dezembro de 1828. Ele foi soldado do exército de Napoleão Bonaparte. Na Romênia havia uma localidade de nome Walachei, lugar de difícil acesso, muito longe dos outros povoados. Nas guerras napoleônicas Mathias Mombach teria passado por aquela região, e seria essa a origem do nome Walachai, que em alemão antigo significa lugar longínquo, distante de tudo”

NÃO

47:35:00 * “Meu pai era ferreiro e herdou o ofício do meu avô. Ainda hoje algumas carroças feitas por eles rodam pelos caminhos de terra do Walachai” NÃO

1:19:12 * “Antigamente a festa do kerb durava 4 dias. E os bailes eram a possibilidade dos encontros. Tempo de rever os parentes, amigos de fora, e amores de outros kerbs. Meus pais também se conheceram num baile de kerb. Um dia eles resolveram sair daqui, ir prá cidade, imaginando um futuro melhor para as filhas. Lembro que numa manhã de inverno os vizinhos vieram se despedir. Eu, que ainda nada sabia do mundo, não queria ir embora”

NÃO

1 Bertha

Strassburger Idoso Fem.

Voluntária

Alemão

4:40:00 1 “Quando o sol nasce eu vou tocar o sino. Eu nunca faltei. Tenho 91 anos. Há 56 anos que eu toco o sino diariamente. Os outros têm esse horário novo... eu não! Isso não existe pra mim... Esse horário de verão. Deus faz o sol nascer como sempre. Ele também não tem horário de verão”

Rural X Urbano

05:36 2 [“Bertha, você não sabe falar “brasileiro?”] “Não. Quando eu era jovem, sabia um pouco de brasileiro... mas depois eu desaprendi tudo” Alemão X Port.

28:30:00 3 “Sempre que tenho tempo eu venho aqui capinar... venho antes da noite, quando não faz muito calor e de manhã... no meio da tarde eu não venho. É muito quente... eu gosto de fazer isso. Acho que ninguém mais faz isso, né? Há 57 anos que faço este trabalho aqui”

Rural X Urbano

2 Lidio Klaus Idoso Masc. Agricultor Alem/Port.

06:20 4 “Assim os colono, eles não precisam muito do relógio. Eles tem que trabalhá até que tão pronto. Eu não olho pro relógio quando vô trata o gado, quando vô trata os porco, isso... Isso eu faço assim sem sabê que hora é”

Rural X Urbano

07:31 5 “Isso aí é a canga, que vai em cima dos boi. “Eu falo em alemão com eles. Por aí todo mundo fala em alemão com o gado, assim... é...” Alemão X Port.

07:49 6 “Eu não sei como é que se diga certo em Português. Hoit un har. Em alemão é hoit e har”. Em Português eu só sei que é direita e esquerda. Chama um, direita, puxa pra direita, outro pra esquerda. Isso, ele vai ser aprendido assim".

Alemão X Port.

7

"Pra mim, uma junta de boi e uma carreta vale mais do que um auto, porque com um auto eu não posso fazê nada na roça... é... mas com a carreta e os boi eu faço muita coisa"

Rural X Urbano

21:35 8 “A gente aprendeu ler, mas não sabia o que que a gente ia ler. A gente aprendeu escrever, escrever uma palavra, mas não sabia o que que a gente escrevia. Porque a gente não tinha ideia e o professor ele não podia explicar em alemão. Aí ele ia ir preso. Era difícil [...]. Como falar, como aprender? Era difícil”

Língua mat. X Língua outro

22:58 9 “É, aqui tinha um homem na bodega. Ele tava acostumado a tomá uns trago e depois cantá, em alemão. É, e daí tinha um estranho, chamou a polícia e ficou preso”

Língua mat. X Língua outro

41:06:00 10 “Antigamente, quando eu entrei com isso, a roça deu dinheiro. Os filhos me ajudaram até que eles foram trabalhar nas fábricas, e a roça não deu mais nada, deu prejuízo. Aí eles acharam quanto mais que eles me ajudam quanto... tanto mais prejuízo que eu faço”

NÃO

53:53:00 11

"Eu gosto de sai, sim. É, eu gosto”. [INTERVENÇÃO DA MULHER: Mas não sai]. “Éééé... mas assim, a gente trabalha a semana inteira na roça, em domingo a gente se sente bem em casa”. [INTERVENÇÃO DA MULHER: Eu quero, gosto de sair e tem que ficar em casa]. “E a gente tá cansado de sai. E eu não gosto de olhar o TV. Não, eu não gosto. É... olhá assim sempre prá TV... isso eu não gosto. Aí eu me sento aqui, tomo chimarrão e fumo meu palheiro... é... é... é... Eu acho que quando a gente fuma tantos anos, daí não é bom deixar... é... não... é... fumando tantos anos e deixá de fuma, ainda prá sofrê. É a gente sofre um pouco. É... a vontade, de tudo isso, daí fumô tantos anos e agora, no fim, a gente vai sofrê ainda por causa do cigarro, então continua fumando, é”

Rural X Urbano

58:25:00 12 “Da Alemanha? Oia, eu não sei muito. Não sei, não sei muito da Alemanha. É... é, porque a gente nunca tava lá. Ééé... " Pert. X não-

pert. (Cultura)

58:25:00 13 "Chegaram uns alemão aqui, chegaram uns alemão aqui na nossa casa. Mas eles falavam um alemão diferente. Nem uma palavra eu entendi eles. Nem uma. Falavam bem mais ainda diferente”

Alemão X Port.

01:13:40 14 Walachai era um lugar afastado. E era afastado, sim, aham. Contra outros lugares, muito longe de tudo. Eu gosto de morar aqui. Walachai é um lugar bonito. Eu acho bonito aqui em Walachai. Nunca vô saí prá outro lugar”

Pert. X não-pert. (Cultura)

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140

(Continuação)

N. NOME IDADE GÊNERO ATUAÇÃ

O LÍNGUA TEMPO Nº ENUNCIADO TEMA

3 Iria Klaus Idoso Fem. Do lar Alem/Port.

06:42 15 “Ai, ai, ai, pintada, por favor!” NÃO

21:20 16 “Também era uma época que era proibido falar alemão e a gente ficava quieto, não sabia, os pais não sabiam falar Português e daí a gente ficou quieto. Que fazer então? Não sabia falar, a gente não abriu a boca”

Língua mat. X Língua do outro

4 Emilio

Schmitz Adulto Masc. Agricultor Português 09:18 17

“Mais é sê teu patrão próprio, sabe... Cê trabalha como quê, sabe, começa assim quando qué sabe, para quando qué, sabe. As vezes sabe tem que i num lugar sabe, se tá enfermo sabe dai tu já tem que pedi licença, uma coisa assim, ou atestado sabe. Na roça não tem nada disso sabe. Eu prefiro aqui sim”

Masculino X Feminino

5 Gustavo Pilatte

Criança Masc. Estudante Português 09:43 18 “É, eu gosto de colhê batata, colhê milho, moranguinho. Às vezes quando a gente vem com os bo i daí eu também guio os boi. Aqui não tem barulho, na cidade grande tem muito barulho. Aqui dá pra ouvir os canto dos passarinho, lá não tem roça, na cidade grande. Gosto de vim prá roça. Só às vezes eu não posso vim, porque agora eu tô de férias daí eu posso vim. Quando eu não tô de férias de tarde eu vô na escola”

Rural X Urbano

6 Gerson Closs

Adulto Masc. Agricultor Português

11:11 19 “Eu gosto mesmo de andá solto né, assim, andando com o gado, né, por isso que eu gosto, né. Eu gosto mais disso, de vivê no meio dos bicho". Masc. X Fem.

20 "Eu sou brasileiro, mas me sinto um alemão assim, eu tô aqui falando. Assim eu sou brasileiro, mas não sei. É um costume né, ser alemão aqui” Pert. X não-

pert. (Língua)

11:38 23 “Eu e o sogro trabaiemo na roça, nosso sustento é da agricultura mesmo, da roça, nós plantamo pra vende, né, tamo vivendo disso” Masc. X Fem.

7 Iricênio Müller

Idoso Masculino Agricultor Alem/Port. 11:47 24 “Eu sempre trabalhei na roça. Desde guri já ajudava o meu pai na roça” Masc. X Fem.

8 Elvédia Müller

Idoso Fem. Do lar Alem/Port. 11:55 25 “Isso é difícil pra falar em Português. Eu tenho vergonha”. [em alemão]: “Eu sou brasileira, sim. Eu só não consigo falar direito a língua... Entendo a maioria das coisas, mas pra falar é difícil”.

Pert. X não-pert. (Língua)

9 Imelda Weiand

Idoso Fem. Do lar? Alem/Port.

12:19 26 INTERVENÇÃO: “Assim é mais bonito. Que blusa bonita, você está elegante...” “Elegante nada, é roupa de roça...” NÃO

12:34 27 [“E aí, a gente pode falar Português ou como é que nós vamos conversar? Português ou alemão?”] “Pode... alemão também...” [“Que que é melhor pra ti?”] “Alemão pra mim é melhor...” [“Mas aí as pessoas não vão te entender.”] “Elas precisam me entender assim...”

Alemão X Port.

13:00 28 [ “O que você está achando da gente estar aqui hoje?”] “Eu nunca imaginei uma coisa dessas. Isso nem era para estar acontecendo... não sei por que vocês vieram aqui para me filmar”

NOTA DE RODAPÉ

13:22 29 “Eu não tenho televisão. Nunca gostei... Rádio tenho sim” Rural X Urbano

10 Arsênio Schaab

Adulto Masc. Agricultor Português

13:34 30 “Gosto muito de rádio. Na roça às vezes eu levo, pra não perdê nada, né? Capinando, roçando, lavrando, plantando milho, tanto faz. Eu deixo pendurado aqui na camisa, assim, aí trabalho e... deixo pendurado na camisa”

Rural X Urbano

14:06 31 “Música de Bandinha. Bandinha... Não nego as minhas origens. Gosto da bandinha, de alemão” Pert. X não-

pert. (Cultura)

39:57:00 32

“Ah, eu levanto às 6 da manhã, e tiro o leite, trato os bichinho, depois tomo café, e depois vô prá roça. Meio dia eu chego, 11:30, faço minha comida, lavo a louça, faço pão, cozinho, lavo roupa, tudo que tive que fazê eu faço. Tô morando sozinho. Sem problema. Se tu precisa alguém é só falá prá alguém, um vizinho, um amigo, sempre tem ajuda, sempre. Ninguém nega, por exemplo, um meio dia de serviço, trocá um com o outro, por exemplo eu ajudo um dia ele, outros ajuda, o vizinho ajuda prá mim. Ninguém nega isso. Isso ainda é uma coisa que ainda existe aqui”

Rural X Urbano

40:45:00 33 “A situação, aqui, nessa região, tá difícil. Os grandes, é... os grande, tão terminando com nós. Aí é que tá a diferença, por isso o pequeno agricultor vai, daqui a dez, quinze anos não vai mais tê. Não tem mais... não tem como sobrevier. Essa é a grande dificuldade"

Rural X Urbano

01:03:57 34

“Eu prefiro morá aqui do que numa cidade. Aqui é mais tranquilo, tu qué dexá a porta aberta de noite tu dêxa e ninguém incomoda. Fica bem tranquilo. Tu acorda de manhã com o canto dos pássaros, e essas coisas. Eu nasci aqui e acho que quero terminar a minha vida aqui também. Esse lugar chama Jammerthal. Dizem que há muitos anos atrás um cara que tava subindo de cavalo chegou lá no morro e olhou para trás e disse: mas que Jammer is thal. Aí veio a origem de Jammerthal. Jammerthal quer dizer vale das lamentações"

Pert. X não-pert. (Cultura)

01:11:10 35 “Eu saio muito pouco. Geralmente quartas, as vezes, de noite a gente joga carta... e na missa domingo de manhã. Sou solteiro há oito anos. Se um dia desses aparecê a minha cara metade... chegá um dia a conhecê alguém, que vale a pena, aí sim..."

NÃO

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141

(Continuação)

N. NOME IDADE GÊNERO ATUAÇÃ

O LÍNGUA TEMPO Nº ENUNCIADO TEMA

11 Julieta Steffen

Adulto Fem. Fábrica/ Do lar

Alem/Port.

15:10 36 “Levanto às 5h da manhã, daí eu faço um pouquinho o serviço da casa ainda, daí eu me arrumo, tomo café, depois vô prá fábrica . Daí eu chego 5:45 em casa. Daí eu faço ainda alguma coisa na roça ou às vezes trato o gado. Todos os dias aí, até o sábado chegá, daí no sábado ainda tem as roupas prá lavá, daí tem que fazer os pães ou cucas. Nunca compramo pão, sempre fizemos mesmo. Daqui a pouco eu vou ensiná a minha filha a fazê”

Masculino X Feminino

17:14 37 “Em casa a gente sempre fala em alemão. Quando chega alguém que fala brasileiro, aí nós falamos em brasileiro...”. [em português]: “Eu gosto de falar o alemão, mas também me viro com o português”

Alemão X Port.

17:36 38 “Os filhos também, só na escola falam Português" Alemão X Port.

01:09:21 39 “Também tava no colégio, daí nós se conhecemo, mas foi num baile onde que eu moro, que eu morava, quando eu era guria. Se largamo, daí ficamo um ano, aí ele foi visitá uma outra guria. Daí, foi num jogo de futebol, daí nós se encontramo de novo"

Rural X Urbano

01:09:51 40 “Tinha vontade de viajá, mas... não sei se um dia chega prá mim. Que eu sô feliz assim mesmo" Masc. X Fem.

12 Liane Klaus Jovem Fem.

Comerciante/Do

lar/ Estudante

Português

15:52 41

“Tô secando manteiga. A nata se forma e vira manteiga. Isso daqui eu aprendi aí com a minha vó, por causa que quem mais criou eu né foi a minha vó, porque desde pequena eu sempre morei com ela e quando eu via ela fazendo eu também, e com o tempo eu fui aprendendo. Eu prefiro isso daqui, por causa que aí depende, olha só quanta nata, vamo supor que eu tenha muita nata, aí eu não vô podê botá toda essa nata aí no liquidificador, e daí eu vô tê que botá aos poucos, vô tê que bota e desliga e aí isso ocupa muito tempo.”

Rural X Urbano

42 “Esse equipamento aqui se chama ‘butterfast’ em alemão. Em Português daí não tem um nome específico” Alemão X Port.

36:06:00 43 “Nas sextas-feiras é um dia bastante puxado assim prá mim, eu tenho bastante tarefas, né. Daí de manhã eu acordo, tomo café, e aí depois eu amasso as cuca, e daí eu vou pro aviário. E de tarde eu carrego as kombis com as mercadorias que a gente leva junto prá vendê nos sábados e depois lá pelas 17h eu me arrumo aí para ir prá UNISINOS. Eu faço Pedagogia habilitação em gestão e supervisão”

Rural X Urbano

37:01:00 44 “Eu tô botando a uva dentro da massa, prá ela fica, né? Essa uva aqui algumas nós colhemos, outras aí meu pai foi pegá lá em Gramado. Antes de eu nascer meu pai já vendia verduras. Aí a gente já tem clientela fixa já mais de anos. Aí quando nós carneamo um porco daí meu pai ele dá a facada e daí o resto quem faz sou eu, né? E daí eu limpo, tiro o coro, daí eu tiro as tripa tudo, daí eu faço linguiça, e pico em pedacinhos. Daí eu guardo”.

Rural X Urbano

37:26:00 45 “Depois que eu me formá, aí eu pretendo, né, mas daí eu quero fazê concurso, prá vê se eu passá em concurso público, e daí prá dá aula, daí 20 horas, por enquanto é assim o planejamento, né, 20 horas eu vô querê dá aula e no outro turno vô querê ficá em casa prá cuidá do aviário”

NÃO

37:48:00 46 INTERVENÇÃO: “E o que tu faz prá te divertir aqui?” “Ah, daí às vezes eu vô no baile, ou às vezes a gente vai, ali embaixo tem uma sociedade, daí eu me reúno com nossos amigos, daí a gente conversa. Mas que nem quando vai ter a festa da batata, então nos domingos daí, a gente vai numa festa assim, na festa do figo tem, essas festas, né”

Rural X Urbano

37:58:00 47 INTERVENÇÃO: “Tu namora?” “Não. Eu não namoro por enquanto” NÃO

13 Paulo

Steffen Adulto Masc. Agricultor Alem/Port.

17:28 48 “É, eu digo, o português, se é pra, se tem que fala, se tem gente que às vezes não entende o alemão” Alemão X Port.

01:09:40 49 “A gente sai fim de semana às vezes, prá visita os parente, os cunhado, os irmãos. E às vezes, se a gente fica um domingo em casa brinca com os filhos, né, jogamo uma bola”

NÃO

01:09:59 50 “Eu também... sô feliz” NÃO

14 Dirce

Sauzen Adulto Fem. Professor Português 18:13 51

“As crianças quando entram na escola, elas só falam alemão, né, o português elas aprendem aqui, né, a gente em sala de aula, com atividades envolvendo a escola. Porque também em casa só se fala essa língua, né, o dialeto. Então as crianças quando vem pra educação infantil na escola, começam só falando alemão e a gente interage dessa forma até que ele consiga ter o domínio escutando os colegas, perguntando, ter o domínio do português”

Alemão X Port.

15 Criança na

escola Criança Fem. Estudante Alemão 18:56 52 “Natan é mäkelig” Alemão X Port.

16 Rosane Weimer

Adulto Fem. Professor Português 19:03 53 “Aí tem que às vezes tá podando, porque deixar só falar o alemão depois complica também na alfabetização deles” Alemão X Port.

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142

(Continuação)

N. NOME IDADE GÊNERO ATUAÇÃ

O LÍNGUA TEMPO Nº ENUNCIADO TEMA

17 Benno

Wendling Idoso Masc.

Professor/

Agricultor/

Aposentado

Português

19:50 54

“Eu lecionei quase todo o tempo aqui em Walachai, muitos e muito anos. O governo aí não se importava com os colonos. A gente foi vivendo então assim. Até que veio o fim, Getúlio, e agora com Getúlio não pode mais falar em alemão. A criança chegava na escola e o que a gente ia fazer? Transgredir a lei para se comunicar com o aluno, coitado do aluno não tinha culpa e exigiu-se uma coisa que na realidade não foi dado ao colono. E era severo o negócio do alemão, tinha que parar com o negócio do alemão e aí dava castigo. Um castigo não muita coisa, mas mostrar que, mais para o governo, sabe, que a gente estava ensinando o Português”

Língua materna X Língua do

outro

22:38 55 “Ponto aqui. Alemão foi e aqui está o português. Esqueçam aquilo lá. Aquela bobagem. Se aparecesse alguém que não sabe quem é, fecha a boca, deixa ele se manifestar primeiro pra vê o que que é”

Língua mat X Língua do outro

23:24 56 “Professor era tudo na comunidade naquela época. Vinha uma pessoa doente, o professor deve saber. Vinha um animal doente, o professor deve saber. E a gente ajudava então, né, mas...”

NÃO

25:31:00 57 “Até hoje não está no fim ainda. Por isso eu vivo ainda” NÃO

26:33:00 58 “Tenho vontade de escrever uma carta uma coisa assim, de resto eu também não me lembro mais das coisas assim como antigamente, gastei a minha ‘pólvera’.

NÃO

01:12:58 59 “Eu sempre sento aqui. Ah, aqui eu posso ficar horas. Porque eu não tenho outra coisa que fazê. Aí eu sento aqui. Ah, às vezes eu tô pensando nada, tô aí deitado, aí, olhando pro pessoal em volta também olha daí. E a vida vai indo. Cada minuto que passa, passou”

NÃO

18 Donato Braum

Idoso Masc. Professor Português

20:48 60 “Uma sala de aula com 40, 50, 60 alunos, onde não tinha ninguém que falava Português, a não ser aqueles que já estavam nas séries maiores. Inicialmente não tinha, assim, grandes problemas, mas piorou quando o Brasil, quando estourou a segunda guerra mundial contra o eixo e depois em 42 quando o Brasil entrou na segunda guerra mundial, participou, aí a coisa ficou mais complicada ainda, aqui foram anos difíceis pra colônia”

Língua materna X Língua do

outro

23:09 61 “Eu acredito que foi uma medida assim correta em realmente todo mundo aprender a falar a língua, do seu país, para ser mais c idadão, né. Mas a maneira como foi feito. A maneira como foi feito, porque não se aprende, volto a dizer, não se aprende uma língua através de decreto. Isso não vai funcionar, em nenhum lugar vai funcionar”

Língua materna X Língua do

outro

19 Paula

Wendling Adulto Fem. Do lar? Português

23:40 62 “Ele era professor 42 anos. E depois de aposentado ele começou a escrever a história de Walachai. Quando eu queria limpar o quarto dele ele sempre falava: não mexe na minha mesa porque ali tem um tesouro guardado. E esse tesouro era o livro que ele escrevia. Ele saiu muitas vezes para pegar fotos e entrevistar as pessoas, sabe, a história aqui de Walachai, os mais velhos, ele fez as pesquisas e de noite ele escrevia”

NÃO

25:49:00 63 “Ele levou 9 anos. Isso era noites e noites, dias de chuva, anos e anos. A maioria do tempo dele era aqui na mesa sentado e escrevendo. Ele sempre gostou de escrever. Muitas vezes as pessoas vieram aqui, queriam ler o livro, daí eu não emprestei o livro pra eles porque, é porque a gente não qué que estragam o livro, e que a gente que publicá um dia ele ainda... é um sonho”

NÃO

20 Irmãos Kuhn

Adulto Masc. Agricultor Alem/Port.

29:57:00 64 “É difícil de trabalha, mas só que é terra boa. Para trabalhá com trator nós quase não temo terra. Muito morro e muita pedra ali por cima. Se não dá lucro mas é divertido"

Masculino X Feminino

31:00:00 65 “Wind, wind. Em brasileiro nem tem nome certo”. “Só para tirar o pó, é o wind, só faz um vento”. “Prá milho, limpá feijão, arroz...”. “Não sei como se fala em brasileiro isso... explicar o nome da máquina”

Alemão X Port.

01:10:14 66 INTERVENÇÃO: “E vocês não sentem falta, assim, de mais coisas prá divertimento?” “Não, eu não”. NÃO

01:10:18 67 INTERVENÇÃO: “E tu, Elísio?” “Não, também não”. Não sô muito assim, prá se divertir” NOTA

01:10:24 68 "Nem gosto de olhá muito, principalmente nos domingos, se não tem, se não vem futebol direto, às vezes ninguém liga a TV” Rural X Urbano

01:10:44 69 “Nós queríamos fazê a assinatura de um jornal, mas quem vai trazê? Não tem como”. NÃO

01:10:50 70 “Nunca eu tinha namorada, ainda. Nunca namorei. [porque?] Ah, não sei, não sei” NÃO

21 Natália

Wendling Idoso Fem. Do lar Português 31:35:00 71

“Tô enchendo o pote com feijão mexido, com farinha, farinha de mandioca, eu torro ela um pouquinho aqui na frigideira, e agora vô colocá um arroz, assim, prá leva prá roça, pros homens lá da roça, o seu Linos, o meu marido, os meus filhos estão esperando lá na roça o almoço. O meu filho mais novo ele vem ao encontro, ele é encarregado sempre de apanhar o almoço. Mais ou menos eu saio ali 11h40min e ele sai certamente de lá também o mesmo horário. Certamente eles tão com fome trabalhando duro a manhã inteira”

Masculino X Feminino

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143

(Continuação)

N. NOME IDADE GÊNERO ATUAÇÃ

O LÍNGUA TEMPO Nº ENUNCIADO TEMA

22 Claci

Hoffmann Idoso Fem. Do lar? Português 33:19:00 72

“Alô. Sim. Quem fala?” “Um dia eu passei por aí, eu tava com esse telefone ali e daí eu pensei assim eu tem que descobrir um lugarzinho aonde ele pega. Daí eu andei por ali e de repente eu vi que ali ele pegava. Daí eu falei pro meu marido sabe o que, lá embaixo o meu telefone tá pegando. Tem que arrumar um lugarzinho lá prá pendurar ele ali. Daí me essa deu essa ideia de cortar esse [recipiente] prá coloca ele ali dentro aí ele não apanha sol, nem chuva, e nada. E daí prá frente agora eu tô feliz porque tá pegando ali. Só não posso andá muito. Posso virá ele um pouquinho, mas muito não, daí cai a ligação"

NÃO

23 Werno

Hoffmann Idoso Masc.

Agricultor/

Comerc. Português

34:15:00 73

“Tô carregando ali as verdura, quero leva lá prá vende no Morro Reuter. O homem do fuquinha azul. O nome a maioria não sabe, mas se falam do fuquinha azul pode pergunta prá quem quisé ali eles conhecem todos quem é que é. Os clientes todos são certinho, já há 25 anos que eu tenho aqueles clientes ali e só perdi aqueles que morreram até hoje. Se eu não abro o fuquinha eles chegam ali e abrem logo ali, querem olhá o que que tem ali atrás. Lá dentro tem ainda batatinha, tem vassoura, tem balaio, tem feijão, também cebola, tem caqui, tem tomate, tem banana. Eu gosto de fazê isso, se eu um dia não vô consegui mais trabalhá na roça daí eu tô acabado mesmo, porque aí, porque eu gosto de fazê isso ali. Eu só vendo coisas naturais. Não coloco nada de veneno nisso ali. Tudo bem natural. Hora de saí agora porque senão os fregueses tão esperando ali e daí eles pensam que aconteceu uma coisa que eu não apareço hoje de manhã ali”

NÃO

35:44:00 74 “Eu acho muito lindo isso aí. Isso eu nunca esperei na minha vida. Com esse fuquinha velho ainda sê filmado ali e eu trabalhando ainda” NÃO

24 Adilson

Hoffmann Jovem Masc. Agricultor Alem/Port.

38:20:00 75

“Eu sempre trabalhei e pretendo trabalhar prá sempre, né. Na roça, isso, não pretendo sai da roça. Só se acontece uma coisa e eu não pudé mais trabalha, né, senão eu vô... É complicado as vezes, mas o importante é o que, conseguimo levá. A roça é nosso sustento, sim. É chato de trabalhá na fábrica, sempre tem aquele contramestre, o cara ali que diz, ah, tem que fazê isso, tem que fazê isso, mas e o trabalho no mesmo não ajuda assim, né. Daí na roça não... na roça eu vô na hora que eu quisé, volto na hora que eu quisé, né... e é outra vida, né, na roça”

Masculino X Feminino

01:05:12 76 “Batatenthal. Isso até tem gente que já tá gozando, né, Batatenthal, onde fica isso, deve ser no fim do mundo até. Ah, eu tô tranquilo” Alemão X Port.

01:05:24 77 INTERVENÇÃO DA DIRETORA, em Português: “Quando tu quer sair o que que tu faz?” “Isso, por exemplo saio sexta de noite e quase volto domingos de noite, né. Ah, isso aí é... não é só aqui no Batatenthal, mas daí tu pega o carro, né, tem festas e bailes por aí, né daí... às vezes tem torneio, né o sábado inteiro. Jogo futebol 7, né, um torneio assim. Eu sou fanático por uma bola”

NÃO

01:06:07 78 “Durante a semana as vaca tão solta aqui em cima. Podem pastá um pouco. Nós sempre saímo ganhando assim porque nós somo acostumado a jogar aqui. Campo inclinado, né, daí é... o outro time vem aqui e tão estranhando logo. Pro nosso futebol isso aqu i tá bom”.

NÃO

01:06:38 79 Eu sô o técnico, eu sô o capitão, sô massagista, assim, sô presidente, e jogador, né, isso é o principal, né, jogador. Esporte Clube Batatenthal” NÃO

01:07:15 80 “Ah, a gente fala assim em alemão, assim, todos sabem falar assim, né, daí a comunicação é mais fácil assim” Alemão X Port.

01:07:31 81 “Adriano, chuta prá frente... chuta prá fora, entrega a bola” NÃO

01:08:11 82 “Lógico, né. Em primeiro lugar brasileiro. Daí, depois vamos olhá, né, quem é o outro time, né. Se o Brasil não tá mais jogando, é, daí dá pra torcer pra outro time, mas...”

Pert. X não-pert. (Cultura)

25 Silvane Klaus

Jovem Fem. Fábrica Português

41:33:00 83 “Ajudamo muito meu pai. Não sei se ajudamo, porque daí ele abria cada vez mais roça” NÃO

41:43:00 84 “Eu posso chegar às 7h30min do serão, ligo as luzes, varro o pátio. Isso já é quase um ritual. Vamo supor eu vô morá num apartamento, só que lá não ia tê folha prá varrê, eu não ia tê pátio, eu não ia podê andá de biquíni como eu faço aqui, ia prá roça de biquíni, tranquilamente, fins de semana no verão eu ando com meu biquíni, eu tô no meu território, ninguém não tem nada a vê com isso, né? Pego sol, trabalhando..."

Rural X Urbano

85 "Eu sempre gostei de trabalhá na roça, só que na roça isso não compensa. Eu comecei na fábrica aos 16 anos de idade” Masc. X Fem.

42:38:00 86 “Os que vão tipo trabalhá numa esteira, eles ficam o dia inteiro no mesmo lugar, às vezes não dá tempo de tomá água porque a esteira vem cheia, porque o sapato vem, ele não pode passar por ti sem tu fazê a tua operação”

Masculino X Feminino

01:11:40 87

(1 e 2)

“É que realmente eu não penso em me casá e muito menos em tê um namorado. Acho que eu sô que nem o vento, livre. Eu gosto de sê assim. Fazê o que eu gosto, né? Cada um tem uma opinião, né? [Tá certo. E tu acha que se tu casá tu vai ficar presa?] Olha, eu até gostava de uma pessoa de Novo Hamburgo, né, mas ele era de um mundo diferente, daí eu vi que meu lugar é aqui. Porque nos finais de semana que eu tava lá no apartamento dele eu quase morria. Eu ficava doente ali. E ele disse assim prá mim que ele jamais ia querê mora num lugar que nem esse aqui. Isso não faz parte da vida dele. Então eu acho assim: eu fico aqui, ele lá, né. Eu não saio daqui. [Por nada?] Por nada. [Nem por um grande amor?] Não, só no caixão”

Masculino X Feminino

26 Operária Adulto Fem. Fábrica Português 43:02:00 88 “Fui sempre agricultora... até os 32 anos... aí eu mudei... prá fábrica” Masc. X Fem.

27 Marli

Backes Jovem Fem. Fábrica Português 43:09:00 89

“Eu não aprendi nada na roça. Daí quando, eu estudava, né, de manhã, daí quando eu fiz 14 anos em outubro, daí em dezembro eu fui prá fábrica. Daí é mais fácil, pegar o dinheiro, né, é mais garantido, né. A gente não tem outra escolha, né, não tem outra opção aqui no município, não vem nada, né, de outro emprega, nada. Ou tu vai prá roça ou prá fábrica de calçados ou tu sai, né, mora fora. Uma rotina boa, eu gosto. Eu acho isso uma rotina”

Masculino X Feminino

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144

(Continuação)

N. NOME IDADE GÊNERO ATUAÇÃ

O LÍNGUA TEMPO Nº ENUNCIADO TEMA

28 Ivo Lechner Adulto Masc. Ferreiro Português

45:30:00 90

“Será que ficô duro ou não? Tá bonito, a cor tá certa”. “Uma chapa, essa chapa tem um ano de garantia. Um ano dá garantia. Se entorta, pode trazê, eu vô temperá de novo e não custa nada. Se cobra um casinho fora, vô ajeitá de novo e não custa nada. Eu tinha 13 ano eu fiz o primeira foicinha. Quando eu tinha 13 ano. A primeira foicinha que eu fiz e quase igual que nem essa ali, ó. .. quase igual que nem essa ali. Como? Minha mãe disse: não pode sê ele fica mais sabido que nós prá trabaiá. Assim é”

NÃO

46:25:00 91 "Esta é uma ferramenta para fazer tigelas, bacias de madeira. Foice... foice com cabo de aço. Uma chapa se não dé certo ele não entra, no arado, nem uma armação de arado se fosse bom, não entra. Arado sempre pula e essa aqui se a chapa tá certa que nem essa aqui, ó, ele entra. Ele faz até barulho se entra na terra, assim”

NÃO

59:13:00 92

“Tem muitas coisa que eu faiz que os outros não fazem aqui. Que nem eu arruma relógio. Relógio, assim, eu arruma relógio. Se tá estragado eu arrumo... ajeita. Máquina de costura, eu arruma. Pode trazê tudo em pedaço eu arruma. Que eu faço essas coisa, eu faço mesmo. Quem tem signo de libra... primeiro canato: aí eles tá assim, como se diz. São gentes, às vezes tem gente que fica perdida. Que nem, que nem o signo de libra, que sempre tem capacidade prá fazê horóscopo, né, eu sou horoscopoteiro, né... horoscopoteiro. Diz a sorte também. Diz muitas coisa que a gente não pensa, né”

NÃO

01:00:16 93 “Essa carta chama-se carta do horoscopoteiro. Em alemão se diz ‘khodschrehe schol’.” NÃO

01:00:28 94 ["Tu vai fazer a minha previsão, então, Ivo? O que eu tenho que fazer?”] “Tem que fazê três montinho”. Então vamo vê. Na cidade grande, se não cuida bem, tu pode consegui um acidente"

NÃO

01:00:44 95 [“Mas não tem nada previsto, assim?”] “Mais prá perigo, prá, prá, isso não. Em cima dos letra e dos número ali sai o resultado da pessoa, como é que ele tá, sua vida, como funciona ou não funciona. Assim é”

NÃO

01:01:10 96 “Eu toco muitas vez com uma banda junto. Toca sanfona e gaita de botão. E canta”. NÃO

29 Querino

Klein Idoso Masc.

Agricultor?

Português

47:49:00 97 “O teu pai eu aprendi a conhecê quando era aluno de aula, assim, nas casa, né. Era um dos melhor ferreiro por todo redondeza por aí que tinha. 1960 assim, foi naquela época quando recebemo as carreta, né”

NÃO

48:19:00 98 “Tá muito satisfeito com a carreta, hoje tá andando com ela ainda, né?” NÃO

30 Padre Idoso Masc. Padre Português 50:40:00 99 “Em nome do pai, do Filho e do Espírito Santo.” [Canto de aleluia] “O Senhor esteja convosco”. “Eles está no meio de nós” NÃO

31 Bêbado no

bar Idoso Masc. ? Português 51:49:00 100

“Dada bronca ou bronquite, tenho quatro namorada, prá cá prá mim faz o convite, eu quero casá com as quatro, quase morreu de apetite, falei pro adevogado me diz que a lei não permite. Vocês quatro me desculpe que eu vô ficá solteirão”

NÃO

32 Helga Kieling

Idoso Fem. Comerc. Português 52:45:00 101 “Eu vô fazê, no dia 02 de abril, 84. Trabalho o dia inteiro. Todo dia. Sempre tem companhia” NÃO

33 Paulo/Ivo Morschel

Idoso Masc. Agricultor Alem/Port.

55:54:00 102 [Alemão] “O fumo vai ficar bom este ano. Está cheirando bem”. [Português] “Sempre falta fogo. Isso ali sempre falta. O fogo do Morschel que se diz”. [Alemão] “Duas vezes por dia temos que fazer isso. Conforme o clima, às vezes três vezes por dia”.

NÃO

56:27:00 103

[Alemão] “Já precisei trabalhar muito na vida. Antigamente não tinha as fábricas de calçado. Os filhos todos em casa... era preciso trabalhar muito para ter uma peça de roupa. Os filhos nem podiam ir para a escola. Não havia dinheiro. Iam só um pouquinho na aula... [Português] “5º ano, 6º ano, não tinha condições de mandar para a escola... era 7 filho, bem junto”. [Alemão] “Eu vou parar agora, estou cansado... Este é o último ano neste trabalho”. “Terminou. Último ano. Tô cansado”.

NÃO

57:13:00 104

[“Então, hoje é um dia especial?”] [Alemão] “Hoje é”. [Português] “80 anos hoje”. “Hoje é meu ‘aniversário’ [não consegue falar a palavra em português]. [Alemão] “A gente tem que tomar um trago primeiro [rsrsrsr]. Se a gente toma um trago fica mais fácil. Aí a língua se solta... a gente fala tudo misturado... Quando os alemães estiveram aqui a gente só dizia ‘não sei’, ‘não sei’. Alemão é alemão... eles não entendem nada do que falamos, o que a gente fala não é alemão nem brasileiro”. [“O que é isso então?]” “Não sei, isso não é nada. É falar errado. Faltou escola!”

Pert. X não-pert. (Língua)

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145

(Conclusão)

N. NOME IDADE GÊNERO ATUAÇÃ

O LÍNGUA TEMPO Nº ENUNCIADO TEMA

34 Flavio

Scholles Adulto Masc. Artista Português

01:01:57 105 “Comecei a fazê sobre a temática dessa região, e durante 32 anos faço sobre a vida desses colonos, porque eu sempre tinha muita saudade e vontade de voltar prá cá. Já são mais de 6.000 quadros sobre essa realidade, e sempre enfatizando as comidas típicas, as diversões típicas, os plantios, as semeaduras, as famílias”.

Pert. X não-pert. (Cultura)

01:02:23 106

“[...] Eu sou um daqui, penso que nem eles, claro com influências já com algumas influências culturais, porque tenho formação acadêmica. Sou filho de uma família de colonos, pobre, aprendo a falar Português com 10 anos na escola, e até ali só falava o dialeto. O sentimento que se tinha era muito estranho porque todo mundo, os alemães que vinham pra cá e os alemães que falavam o gramatical aqui na região diziam que ninguém nos entendia na Alemanha, e no Brasil também ninguém nos entendia. Então o sentimento era de que nós éramos um grupinho, um bolinho de gente que não se comunicava com o resto das pessoas do mundo, não só do Brasil, do mundo todo. Então esse sentimento de ser isolado, fez com que eu quisesse, menino, me comunicar com as pessoas e com o planeta, e aí eu optei pela pintura. Mas até hoje, eu ainda, as coisas da alma, as coisas quando eu quero me expressar, os sentimentos da alma, eu tenho que usar o dialeto, porque no português eu não sei, sempre sai frio. Aqui tá as coisas da minha alma e quando eu quero satisfazer a minha alma, eu tenho que voltar para cá, para achar a paz”.

Pert. X não-pert. (Língua)

01:14:32 107 “Uma vez eu vi um filme e o cara tava dizendo que bem poucas pessoas no mundo acharam seu lugar. Eu achei o meu lugar. O meu lugar é aqui. E eu acho mesmo que o artista é a materialização da vibração de um povo. Me emociona muito ver as pessoas plantando canteiros de flores ao lado da estrada que não são prá venda, são prá enfeitá. É a beleza das coisas, né?"

Pert. X não-pert. (Cultura)

35 André

Siedekum Jovem Mas.

Jogador Fut.

Alem/Port.

01:07:21 108 “Aí é uma coisa meio misturada, fala 2 palavra em português, 3 em alemão, e assim vai. Isso é uma mistureba aqui” Alemão X Port.

01:07:24 109 "Eu torço somente pro Brasil, não tem essa coisa de torcer pra Alemanha. Não desce” Pert. X não-

pert. (Cultura)

36 Felipe

Dapper Jovem Masc.

Jogador Fut.

Português

01:07:43 110 “Não sei nada de Alemanha, nem tenho ideia, né, não... [“Tem ideia onde fica?] ”“Nem sei” Pert. X não-

pert. (Cultura)

01:09:03 111 “40 anos atrás tinha um time aqui já. O meu pai e os meus vizinhos jogaram futebol aqui embaixo, no campinho, ali, né. Isso é antigamente, né. Esse é o Roberto Dapper, é meu pai” [mostrando uma foto].

NÃO

37 Ademir

Hoffmann Jovem Masc.

Jogador Fut.

Português

01:07:52 112 “Claro, de vez em quando a gente vê na TV, né, mas assim, assim, não conheço nada” Pert. X não-

pert. (Cultura)

01:07:59 113 [“Sabe quem da tua família veio da Alemanha?”] “Ah, não sei, não sei. Eu sou brasileiro” Pert. X não-

pert. (Cultura)

01:08:07 114 “Se é Brasil contra Alemanha, sô brasileiro”. Pert. X não-

pert. (Cultura)

38 Marlise

Closs Adulto Fem. Fábrica Português

01:15:34 115 “Pra minhas filhas eu imagino assim um futuro mais adiante, que nem estudar ou ter uma profissão melhor, sabe, não precisar trabalhar nas fábricas de calçados ou que elas querem ser professoras, quem sabe isso, aí eu espero quem sabe poder dar isso prá elas. Sabe, um futuro assim um pouquinho melhor que o nosso"

Masculino X Feminino

01:15:45 116 [“E onde é que vocês se conheceram os dois”] “Nós no conhecemos num baile de kerb.” [E vocês gostam de baile?] “Sim, nós gostamos de baile”. “De vez em quando a gente sai... principalmente baile, festa, né... é pouco que a gente sai, mas quando a gente sai a gente aproveita também, né? É, a gente dançá as bandinhas que eles tocam nos baile, né"

Rural X Urbano

39 Homem no

Baile Adulto Masc. ? Português 01:17:24 117

“Baile de Kerb é sempre o aniversário de uma comunidade, né, daí eles fizeram isso, kerb né, isso é o aniversário da paróquia, assim no salão, né, e daí os ‘deus’ tem o seu dia, né, aí chamam isso de kerb. Todo local tem o seu kerb, né, baile de kerb”

NÃO

40 Nelson

Fassbinder Idoso Masc.

Agricultor/

Músico Português 01:18:23 118

“De manhã eu levanto e vô na roça, né, volto de noite, volto de meio dia, vô de tarde, volto de noite. E música pode chamá de meia noite que eu levanto e vô junto. Eu gosto. Nelson Fassbinder... da Alemanha. Deve tê um lá. Porque eu já vi uma vez passou filme na TV eu li os nomes e eu vi um Fassbinder, acho que é diretor de cinema, tenho quase certeza que é parente meu, que a gente veio de lá mesmo”

Pert. X não-pert. (Cultura)