Profecia, Glossolalia e Entusiasmo Carismático no...

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO LEANDRO FORMICKI Profecia, Glossolalia e Entusiasmo Carismático no Cristianismo Primitivo do Primeiro Século: Uma Análise Exegética de 1Coríntios 14,1-25. SÃO BERNARDO DO CAMPO 2013

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PROGRAMA DE PS-GRADUAO

EM CINCIAS DA RELIGIO

LEANDRO FORMICKI

Profecia, Glossolalia e Entusiasmo Carismtico

no Cristianismo Primitivo do Primeiro Sculo:

Uma Anlise Exegtica de 1Corntios 14,1-25.

SO BERNARDO DO CAMPO

2013

LEANDRO FORMICKI

Profecia, Glossolalia e Entusiasmo Carismtico

no Cristianismo Primitivo do Primeiro Sculo:

Uma Anlise Exegtica de 1Corntios 14,1-25.

Dissertao apresentada em cumprimento s

exigncias do Programa de Ps-Graduao

em Cincias da Religio da Universidade

Metodista de So Paulo, para obteno do

grau de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet

SO BERNARDO DO CAMPO

2013

FICHA CATALOGRFICA

F767p

Formicki, Leandro Profecia, glossolalia e entusiasmo carismtico no cristianismo primitivo do primeiro sculo : uma anlise exegtica de I Corntios 14, 1-25 / Leandro Formicki-- So Bernardo do Campo, 2013. 118fl.

Dissertao (Mestrado em Cincias da Religio) Faculdade de Humanidades e Direito, Programa de Ps Cincias da Religio da Universidade Metodista de So Paulo, So Bernardo do Campo Bibliografia Orientao de: Etienne Alfred Higuet

1. Biblia N.T. - Profecias 2. Bblia N.T. Corntios I. Ttulo

CDD 227.87066

A dissertao de mestrado sob o ttulo Profecia, Glossolalia e Entusiasmo Carismtico

no Cristianismo Primitivo do Primeiro Sculo: Uma Anlise Exegtica de 1Corntios

14,1-25, elaborada por Leandro Formicki foi apresentada e aprovada em 29 de agosto

de 2013, perante banca examinadora composta por Dr. Etienne Alfred Higuet

(Presidente/UMESP), Dr. Paulo Augusto Nogueira (Titular/UMESP) e Dr. Jonas

Machado (Titular/ FTBSP).

__________________________________________

Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet

Orientador e Presidente da Banca Examinadora

__________________________________________

Prof. Dr. Helmut Renders

Coordenador do Programa de Ps-Graduao em Cincias da Religio

Programa de Ps-graduao em Cincias da Religio

rea de Concentrao: Linguagens da Religio

Linha de Pesquisa: Literatura e religio no mundo bblico

DEDICATRIA

Ao Prof. Milton Schwantes (in memorian),

Por seu trabalho, ensino, dedicao e amizade.

AGRADECIMENTOS

Realizando esta pesquisa constatei mais ainda o que j sabia: no possvel construir nada importante sem a ajuda dos outros. Ao concluir, reconheo a enorme divida que tenho com vrias pessoas. Fica, ento, expressa minha gratido:

A Deus, o doador da vida, pela sabedoria, fora e amparo, e, com isso, a possibilidade da inquirio e da pesquisa;

A meu pai, minha me e minha irm pelas horas de compreenso, apoio e carinho, por tolerarem minhas ausncias e pela ajuda to necessria;

Ao Prof. Dr. Milton Schwantes (in memorian), por ensinar, alm da paixo pela exegese, a busca constante pela ajuda ao prximo;

Ao Prof. Dr. Paulo Nogueira, por sua amizade e orientao;

Ao meu orientador, professor Dr. Etienne Alfred Higuet. Sua erudio, amabilidade e prontido em me atender foram fundamentais para a concluso desta obra. Muito obrigado pela amizade, pelo apoio e orientao.

Aos professores da Ps-Graduao, por abrirem meus horizontes;

A CAPES, pelo sustento na realizao desta pesquisa;

Agradeo aos amigos e amigas da Ps-Graduao, lcio, Francisco, Geraldo, Lucas, Samuel, Suehellen pela amizade, compartilhamento, emoo, aprendizado e descontrao. Estes dois anos no seriam os mesmos sem vocs.

38

39

.

(Rom 8:38-39 BNT) 38 Porque eu estou bem certo de que nem

a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do

presente, nem do porvir, nem os poderes, 39 nem a altura, nem a profundidade,

nem qualquer outra criatura poder separar-nos do amor de Deus, que est

em Cristo Jesus, nosso Senhor. (Rom 8:38-39 ARA)

FORMICKI, Leandro. Profecia, Glossolalia e Entusiasmo Carismtico no Cristianismo Primitivo do Primeiro Sculo: Uma Anlise Exegtica de 1Corntios 14,1-25. So Bernardo do Campo: Umesp, 2013. Dissertao (Mestrado em Cincias da Religio) Faculdade de Humanidades e Direito, Universidade Metodista de So Paulo (UMESP).

RESUMO

O presente estudo exegtico tem por objetivo analisar o fenmeno da profecia e da

glossolalia no cristianismo primitivo a partir da Primeira Carta aos Corntios. Para tanto,

revisa-se algumas discusses exegticas acerca do texto. O movimento cristo emergiu

como uma seita judaica, mas amadureceu em um contexto greco-romano, sendo

profundamente impactado pela cultura e tradies ocidentais. Por um lado, sofreu as

influncias das tradies israelitas antigas e do Judasmo do Segundo Templo, e por

outro, sofreu as influncias das tradies greco-romanas, embora em menor grau. Com

isso, esta pesquisa mostra que a profecia e a glossolalia em 1 Corntios so fenmenos

extticos, no qual seu contexto mais prximo o misticismo apocalptico judaico.

Palavras-chave: Profecia, Glossolalia, Entusiasmo, Corinto.

FORMICKI, Leandro. Prophecy, Glossolalia and Enthusiasm Charismatic in Early Christianity of the First Century: An Exegetical Analysis of 1 Corinthians 14,1-25. So Bernardo do Campo: Umesp, 2013. Thesis (Master of Science in Religion) - Faculty of Humanities and Law, Methodist University of So Paulo (UMESP).

ABSTRACT

This exegetical study aims to analyze the phenomenon of prophecy and glossolalia in

early Christianity from the First Letter to the Corinthians. For this, we review a few

discussions about exegetical text. The Christian movement emerged as a Jewish sect,

but matured in the Greco-Roman environment, being deeply affected by Western

culture and traditions. On the one hand, suffered the influences of ancient Israelite

traditions and Judaism of the Second Temple, and on the other, suffered the influences

of Greco-Roman traditions, although to a lesser degree. Thus, this research shows that

the prophecy and glossolalia in 1st Corinthians are ecstatic phenomena, in which

context is the nearest Jewish apocalyptic mysticism.

Keywords: Prophecy, Glossolalia, Enthusiasm, Corinth.

SUMRIO

INTRODUO .............................................................................................................. 12

CAPTULO 1 - A Profecia no Mundo Religioso do 1 Sculo ..................................... 15

1. A Profecia Israelita Antiga ......................................................................................... 15

2. A Profecia no Judasmo Primitivo .............................................................................. 22

2.1. Profecia e Apocalptica ........................................................................................ 23

2.2. A Profecia Escatolgica ....................................................................................... 27

2.3. A Profecia Clerical ............................................................................................... 29

2.4. A Profecia Sapiencial ........................................................................................... 30

3. O Orculo Greco-Romano .......................................................................................... 31

3.1. O Local de Culto .................................................................................................. 33

3.2. Os Tipos de Orculos ........................................................................................... 35

3.3. As Formas e Funes dos Orculos ..................................................................... 38

3.4. Os Orculos Sibilinos .......................................................................................... 45

CAPTULO 2 - O Fenmeno da Glossolalia no Mundo Religioso do 1 Sculo .......... 48

1. A Glossolalia e a Religio Entusistica Helenstica ................................................... 48

1.1. O xtase Religioso ............................................................................................... 48

1.2. O Orculo de Delfos ............................................................................................ 52

1.3. Os Cultos de Dionisio .......................................................................................... 55

1.4. Flon e a Inspirao .............................................................................................. 57

1.5. Os Papiros Mgicos ............................................................................................. 58

2. A Glossolalia no Judasmo Primitivo ......................................................................... 61

2.1. O Misticismo Judaico .......................................................................................... 61

2.2. Os Textos da Tradio Mstica Apocalptica Judaica ....................................... 64

3. A Glossolalia na Perspectiva Antropolgica .............................................................. 72

CAPTULO 3 - ANLISE EXEGTICA DE 1 CORNTIOS 14,1-25......................... 79

1. Texto Grego e Traduo de 1 Corntios 14,1-25 ........................................................ 79

2. Critica Textual de 1 Corntios 14,1-25 ....................................................................... 82

3. Caractersticas Formais .............................................................................................. 84

3.1. Delimitao .......................................................................................................... 85

3.2. Coeso Interna ..................................................................................................... 87

3.3. Gnero Literrio ................................................................................................... 89

3.4. poca e Ambiente Vivencial ............................................................................... 92

3.5. Anlise do Contedo ............................................................................................ 97

CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................... 108

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ......................................................................... 111

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INTRODUO

Segundo Lewis1, no centro de toda religio, est a tomada do homem pela

divindade. Esses encontros so encorajados em todas as religies em alguma fase de

suas histrias, entretanto com diferentes nfases. Experincias msticas (de encontro do

sagrado com o profano), tipicamente concebidas como estados de possesso conferem

aos msticos a reivindicao nica de conhecimento experimental com o divino.

O termo xtase contm vrios significados diferente. Segundo a etimologia

da palavra significa estar fora de si ou fora dos seus sentidos. Alguns o utilizam

para designar violentas agitaes do corpo, dana, canto, inspirao, arrebatamentos

inefveis, vises e alucinaes. Os estudiosos tm sido imprecisos no uso do termo

xtase, embora prevalea a indefinio do termo em suas obras, muitos parecem

compreender o xtase como o meio pelo qual a comunicao divino-humana opera.

Portanto, os fenmenos extticos carismticos como a profecia e a glossolalia

so recorrentes no cristianismo primitivo (1Corntios 14,1-25). Parece ser um tema-eixo

da religiosidade crist primitiva, principalmente na comunidade crist presente em

Corinto e subsequentemente na comunidade crist dos dias atuais.

A proposta deste trabalho, portanto, realizar um estudo desses fenmenos

extticos - carismticos a partir da anlise exegtica do texto de 1Corntios 14,1-25,

relacionando-o com a religiosidade judaica no perodo do ps-exlio e contrastando com

a religiosidade grega do primeiro sculo.

No passado alguns telogos adotaram uma interpretao que esvazia o sentido

da profecia e glossolalia como fenmenos extticos carismticos praticados na poca

do cristianismo primitivo. Esse posicionamento hermenutico reflexo, por exemplo,

de Rudolf Bultmann que se apoiando num esquema interpretativo existencialista, muito

influenciado por Martin Heidgger utilizou mtodos histrico-criticos para eliminar do

texto bblico (Novo Testamento) os elementos resistentes ao sistema filosfico

existencialista. Ele se prope para a teologia a tarefa de desmitologizar a proclamao

crist, ou seja, a humanidade contempornea, que se acostumou com os avanos da

cincia, no pode aceitar o conceito mitolgico do mundo expresso nos escritos

1LEWIS, Ioan. xtase Religioso: Um Estudo Antropolgico da Possesso por Esprito e do Xamantismo, 1977. p.17-18.

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bblicos. Sendo assim, ele no nega a existncia do Jesus histrico, mas interpreta a

realidade dos eventos msticos que o envolveram.

Outro telogo que orbita nessa linha de pensamento Joo Calvino, no qual o

mesmo afirma que a profecia no o dom de predio, mas so pregao e ensino dos

escritos bblicos.

Quando o cristianismo privado de sua misticidade, cujo fundamento a

influncia que o mesmo sofreu do entorno religioso da sua poca como: o imaginrio

mstico apocalptico e as religies de mistrio gregas que anunciavam a interveno

livre e sobrenatural de Deus na histria, esse cristianismo se torna somente racional,

uma abstrao, um idealismo sem razes.

Sendo assim, surgem algumas questes em relao aos fenmenos extticos

como profecia e a glossolalia na comunidade crist situada em Corinto: a profecia

pregao e ensino? At que ponto a idia paulina de profecia em Corinto representa uma

continuidade ou uma descontinuidade com a tradio proftica judaica pr-exlica? De

que maneira o conceito helenstico de inspirao proftica influncia o entendimento e a

prtica da profecia na comunidade crist em Corinto? A glossolalia crist primitiva

encontra paralelo fenomenolgico, conceitual ou terminolgico nas tradies da religio

greco-romana no contexto do Novo Testamento? Qual a diferena entre xtase e transe?

e qual o objetivo da manifestao do xtase como fenmeno religioso? Por fim, havia

uma superioridade carismtica na comunidade de Corinto?

Observamos, portanto, que o tema da pesquisa nos apresenta algumas questes a

serem analisadas e discutidas, a fim de cumprirmos nossos objetivos.

Nesta pesquisa, procurar-se- demonstrar que as evidncias apresentadas pelos

pesquisadores nem sempre so convergentes. Esta pesquisa, porm, caminhar pelas

evidncias mais contundentes, procurando abrir novos caminhos s pesquisas sobre a

profecia e glossolalia no entorno religioso do Cristianismo primitivo e especificamente sobre

a percope de 1Corntios 14,1-25. A fim de responder aos problemas levantados

anteriormente, chegamos a algumas hipteses.

A primeira hiptese para discutirmos em nossa pesquisa se relaciona com a

caracterstica da profecia. Em nossa pesquisa, seguiremos a hiptese de que a profecia

um fenmeno exttico, onde ocorre a manifestao misteriosa do sagrado em uma

situao revelatria.

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Analisando a profecia desde o Judasmo antigo at a poca do Cristianismo

primitivo, a nossa segunda hiptese mostrar que a profecia em Corinto uma

continuidade da forma proftica do Antigo Testamento.

A terceira e quarta hipteses consiste no conhecimento da glossolalia. Nossa

proposta que a glossolalia crist primitiva no encontra paralelo fenomenolgico,

conceitual ou terminolgico nas tradies da religio greco-romana no contexto do

Novo Testamento, mas o seu contexto mais prximo o misticismo apocalptico

judaico. E, que este fenmeno no se aprendia como se aprende uma lngua estrangeira,

mas era ininteligvel e um falar exttico no contexto cultual.

A quinta e sexta hipteses esto relacionadas com o meio de se ter uma profecia

e falar uma lngua ininteligvel na comunidade religiosa. Nossa proposta que o xtase

ocorre na busca da manifestao misteriosa do sagrado e no xtase religioso existe a

memria do ocorrido, j no transe no existe esta memria.

A seguinte hiptese sobre a caracterizao da comunidade de Corinto.

Buscaremos mostrar que na comunidade de Corinto existia o grupo dos espirituais que

tinham um grande interesse pela glossolalia, porque, era uma fala misteriosa e

ininteligvel que estabelecia a superioridade dos espirituais em relao aos demais na

comunidade.

Reconhece-se a constante necessidade de estudar a Bblia levando em conta as

pesquisas recentes de carter exegtico. Constatando que os fenmenos extticos-

carismticos (profecia, glossolalia), carecem de mais estudos em solo brasileiro, a

presente pesquisa tem a proposta de colaborar para o entendimento dos fenmenos

extticos praticados pelas comunidades crists primitivas, resgatando seu lcus de

produo e sua finalidade pragmtica. Desta forma, a pesquisa prope-se a ser mais uma

ferramenta de estudo e interpretao dos fenmenos extticos.

Nossa pesquisa prope-se a definir a origem, funo e a caracterstica da

profecia e glossolalia como fenmenos extticos no cristianismo primitivo.

Quanto aos objetivos especficos, prope-se: Mostrar como se desenvolveu o

fenmeno da profecia em diferentes pocas (desde o mundo religioso do Judasmo

antigo at o mundo religioso do cristianismo primitivo); analisar o fenmeno da

glossolalia no mundo religioso do Judasmo ps-exlico e no mundo religioso grego-

romano para definir sua origem; atravs da anlise exegtica de 1Corntios 14,1-25,

demonstrar o significado que a comunidade de Corinto atribua profecia e a

glossolalia.

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CAPTULO 1

A Profecia no Mundo Religioso do 1 Sculo

1. A Profecia Israelita Antiga

Entre todos os intentos, reais ou ilusrios, histricos ou msticos, de relacionar o

divino com o humano, tem um lugar prprio a experincia proftica. A profecia implica

de uma forma ou de outra, uma relao entre a eternidade e o tempo, um dilogo entre

Deus e o homem2. Esta relao verificada em pocas remotas, como no perodo que

abrange o Judasmo antigo. Desde ento, traado uma relao entre o mundo do divino

e o mundo do homem natural, no qual, a profecia tem um destaque como uma das

formas de se obter esta comunicao.

Segundo Neher3, a profecia no pode contentar-se com uma revelao que,

mostra o misterioso, permanece ntima e oculta. A profecia no pode limitar-se a

descobrir a voz divina, ou seu silncio, na natureza exterior e em seus espetculos, nem

sequer na natureza interior e em suas emoes; no contemplao nem orao.

Superando o marco de uma comunho pessoal, a experincia proftica atravessa o

homem para doar-se aos demais.

Para muitos Judeus Palestinos do perodo do Segundo Templo, que foi concludo

com a captura e destruio de Jerusalm pelos romanos no ano 70 d.C., a profecia foi

um fenmeno que pertenceu tanto ao passado distante como ao futuro escatolgico4.

Muitos grupos apocalpticos e sectrios acreditavam que o fim dos tempos era iminente,

ento, para eles a profecia podia ser parte da experincia presente5.

Em relao ao passado distante, as primeiras referncias bblicas a profecia se

acham fixadas na camada elosta do Pentateuco, que no somente menciona vrios

profetas, mas tambm fornece o quadro narrativo para os orculos de Balao (Nm 22-

2NEHER, Andr. La Esencia Del Profetismo. Salamanca: Ediciones Sigueme, 1975. p.9. 3Ibid. p.10. 4AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the Ancient Mediterranean World. Michigan: Grand Rapids, 1983. p. 82. 5 Ibid. p.82.

16

24)6. Alm de fornecer documentao sobre intermedirios estrangeiros como Balao,

fontes efraimitas tambm descrevem atividade proftica durante o perodo das andanas

pelo deserto (Nm 11-16; Ex 14.10-14; 15.22-25; 16; 17.1-7)7.

De acordo com Wilson8, a afirmao mais minuciosa de vises efraimitas sobre

profecia provm de literatura produzida pelos deuteronomistas. Esta literatura cobre o

perodo da conquista e toda a histria da monarquia de Israel. Leis bblicas que tratam

de profecia s se encontram no corpus deuteronmico (Dt 18.9-22)9. Estas leis

fornecem muitas regulamentaes que governam o comportamento dos profetas.

Entretanto, as poucas informaes coligidas sobre o que poderamos chamar de

perodo arcaico do profetismo israeltico so suficientes para estabelecer alguns fatos

significativos10. Nab , ao invs, a designao do personagem annimo que lana em

rosto aos filhos de Israel o fato de terem correspondido aos benefcios de Deus, desde a

sada do Egito at a conquista de Cana, com a culpa da idolatria (Jz 6.7)11. Segundo

Wilson12, esta atividade proftica no deserto mencionada pela primeira vez em Nm

11, neste captulo mencionado que Israel reclamou sobre um problema no

especificado e que Iahweh respondeu sua reclamao enviando fogo para consumir o

entorno do acampamento. A figura de Moiss aparece ao interceder pelo povo israelita

que o chama, com isso, obtm a cessao do incndio. Neste perodo existia uma

hierarquia de profetas, em cujo topo acha-se o profeta mosaico, que ouve a palavra de

Deus diretamente e cujas palavras so sempre exatas13.

No perodo dos juzes h alguns indcios que os deuteronomistas acreditavam

que existiram profetas em Israel. Em Jz 4.4 chama-se a Dbora de profetisa nebah, ela

descrita como juza a que o povo recorre em busca de decises jurdicas14. Contudo,

segundo Jz 4.6-7, ela deu a Baraque o que tem a aparncia de ser orculo proftico,

6WILSON, R. R. Profecia e Sociedade no Antigo Israel. Traduo: Joo Rezende Costa. So Paulo: Targumin e Paulus, 2006. p.181. 7Ibid. p.187. 8Ibid. p.193. 9 Ibid. p.194. 10BALLARINI, T.; BRESSAN, G. O Profetismo Bblico: Uma introduo ao profetismo e profetas em geral. Petrpolis: Vozes, 1978. p.16. 11Ibid. p.16. 12WILSON, R. R. Profecia e Sociedade no Antigo Israel. Traduo: Joo Rezende Costa. So Paulo: Targumin e Paulus, 2006. p.187. 13Ibid. p.193. 14Ibid. p.203.

17

ordenando a guerra contra a Ssara15. Para Wilson16, se a narrativa de Dbora for na

verdade guia confivel para as funes de outros profetas, ento o profeta neste perodo

pode ter dado o orculo divino que punha em andamento a guerra santa. Porm, em Dt

18 no mencionado nada sobre profetas com funes militares, ou seja, de anunciar

orculo divino para estabelecer uma guerra santa e de acompanhar os soldados na

guerra. Mas conforme Wilson17, isso indicaria que entre grupos deuteronmicos as

atividades militares do profeta, se que afinal existiram, se restringiram histria

primitiva de Israel.

Em seguida, apresentado um profetismo com caractersticas bem mais

definidas em relao ao perodo anterior. Na metade do sculo XI a.C. , sem dvida,

um momento bastante crtico para as tribos de Israel, ainda profundamente divididas

entre si, e expostas aos ataques dos cultos cananeus preexistentes e persistentes18. Neste

contexto surge Samuel com papel proftico em trs conjuntos narrativos: 1) vocao

proftica (1Sm 3.1- 4.1); 2) em conexo com o estabelecimento da monarquia (1Sm 7-

12); 3) envolvido com o declnio de Saul e o surgimento de Davi (1Sm 13-18)19. Ele

aparece na tradio bblica com caractersticas bem diversas; heri na guerra contra os

filisteus, juiz ao qual recorre Israel, vidente em relao s jumentas de Saul, sacerdote

oferecendo sacrifcios20. Mas, para Sicre21, a funo mais sublinhada pela tradio

bblica o carter proftico de Samuel. Em (1Sm 10.5-13; 19.18-24), apresentado um

grupo que viviam em comunidade, s vezes presididos por Samuel, que pelo menos em

uma ocasio caminham com saltrios, tambores, flautas e ctaras e descem de um

outeiro sagrado (bam)22. Este grupo proftico, s vezes tirava suas vestes e se deitavam

no cho em um estado de xtase. Alguns acreditam que se tratava de escolas profticas

fundadas por Samuel, onde os jovens se preparavam para uma possvel eleio divina

ou se transformavam em doutores religiosos de Israel23.

15Ibid. p.204. 16Ibid. p.204. 17Ibid. p.204. 18BALLARINI, T.; BRESSAN, G. O Profetismo Bblico: Uma introduo ao profetismo e profetas em geral. Petrpolis: Vozes, 1978. p.16. 19WILSON, R. R. Profecia e Sociedade no Antigo Israel. Traduo: Joo Rezende Costa. So Paulo: Targumin e Paulus, 2006. p.206. 20SICRE, Jos Luis. Profetismo em Israel: O profeta. Os profetas. A mensagem. Rio de Janeiro: Vozes, 1996. p.234. 21Ibid. p.234. 22Ibid. p.235. 23Ibid. p.235.

18

Segundo Aune24, o primeiro profeta israelita apareceu em nossas fontes no

sculo XI a.C. Esse tipo de profeta, exemplificado por figuras tais como Samuel, Elias e

Eliseu, combina as caractersticas do homem santo, o sbio, o operador de milagres, e o

adivinho (1Sm 9; 1Rs 17; 2Rs 1.2-17; 6.1-7; 8-10; 13.14-21; 20.1-11). Os profetas

foram rigorosamente associados com lugares santos e rituais religiosos (1Sm 7.17;

9.11), e podiam combinar as funes de sacerdote e profeta, como Samuel (1Sm 2.18-

20; 3.1, 19-20). Como itinerantes, moviam-se com alguma liberdade, aparentemente

vivendo dos presentes e ofertas daqueles que eles serviam. Profetas seniores recebiam o

titulo de pai (1Sm 10.12) e presidiam sobre grupos profticos chamados filhos dos

profetas (1Rs 20.35; 2Rs 2.3-15; Ams 7.14). Tanto Samuel como Elias presidiram

tais associaes profticas (1Sm 19.20-24; 2Rs 4.38; 6.22). Estes profetas costumavam

profetizar em grupos (1Sm 10.5; 1Rs 18.17-29) e usavam um manto de ovelha peludo e

uma tanga de couro (2Rs 1.8; Zc 13.4).

As atividades oraculares dos profetas israelitas antigos do tipo xamanstico eram

associadas com lugares santos e rituais religiosos. Como Samuel, os ltimos profetas

Ezequiel e Jeremias eram associados com o sacerdcio. Sacerdotes e Profetas so

frequentemente mencionados juntos, como se eles compartilhassem uma esfera de

atividade em comum. Esta associao, contudo, atestada somente para a regio de

Jud e a cidade de Jerusalm25.

Nos sculos subsequentes a Samuel que vo desde a instaurao da monarquia

at o aparecimento de Ams, o florescimento proftico, seja de figuras singulares seja

de grupos ou corporaes, aumenta e nos conduz ao perodo dos profetas escritores (sc.

VIII-IV/III a.C.)26. Os profetas escritores foram homens de ao tanto quanto os

profetas no escritores que os precederam, sobre os quais levam a vantagem de que a

narrativa das atividades deles , muitas vezes, mais fcil de reconstituir, com a ajuda

dos seus escritos27. Podemos destacar nesta poca trs etapas de atitude que o profeta

adota diante do rei e do povo: 1) a proximidade fsica e distanciamento crtico em

relao ao monarca (1Sm 22,5; 2Sm 24.11-18); 2) o distanciamento fsico entre o

profeta e o rei (1Rs 11,29-39; 14.1-8); 3) o distanciamento progressivo da corte com a 24AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the Ancient Mediterranean World. Michigan: Grand Rapids, 1983. p. 83. 25Ibid. p.84. 26BALLARINI, T.; BRESSAN, G. O Profetismo Bblico: Uma introduo ao profetismo e profetas em geral. Petrpolis: Vozes, 1978. p.17. 27Ibid. p.19.

19

aproximao cada vez maior com o povo. O exemplo mais visvel o de Elias (1Rs

18.10-19; 21)28. Entorno de Elias e Eliseu se movimentavam os filhos dos profetas

(1Rs 20.35; 2Rs 2.3; 5; 7; 15), expresso equivalente a profetas (1Rs 20.41), dos

quais fazem parte, muito provavelmente, os profetas isolados annimos deste perodo

(1Rs 20.13; 22.28)29.

O fenmeno da free prophecy30 (profecia livre), em contrate com as profecias do

templo e da corte, desenvolveu-se dramaticamente durante a metade do oitavo sculo

a.C., com a atividade dos profetas Ams e Osias em Israel e Miquias e Isaas em

Jud. Profetas livres no eram funcionrios da corte real nem do templo. A funo das

autoridades reais e clticas era manter e preservar os tradicionais valores e costumes

sociais e religiosos de Israel. Os profetas livres, por outro lado, que ficaram na periferia

institucional da sociedade israelita, tentavam provocar mudanas religiosas e sociais.

Segundo Ballarini; Bressan31 parece inegvel que tenha havido uma evoluo no

sentido de menor recurso s formas de exaltao entusistica e de maior contato com a

vida do Estado e da corte. Por outro lado, um maior contato com a vida poltica e social

no impede o profeta ou grupos profticos de terem experincias profticas por meio do

xtase.

A evoluo da atividade proftica, ao qual, se referiu Ballarini; Bressan parece

ter mais sentido com o processo de canonizao das Escrituras Hebraicas, completado

durante o primeiro sculo I a.C., o qual elevou a profecia israelita clssica ou escrita ao

patamar de nica, sacrossanta e paradigmtica, e com isso, criou uma descontinuidade

entre profecia cannica e as formas subsequentes de revelao proftica que emergiram

durante o perodo do Segundo Templo (516 a.C. 70 d.C.), sendo impossvel fazer um

tratamento sincrnico das duas formas de fala proftica com sucesso32.

Em relao natureza da atividade proftica, ainda que fontes efraimitas falem

s vezes de profetas que receberam mensagens divinas atravs de vises (1Rs 22.17-23;

28SICRE, Jos Luis. Profetismo em Israel: O profeta. Os profetas. A mensagem. Rio de Janeiro: Vozes, 1996. p.237-238. 29BALLARINI, T.; BRESSAN, G. O Profetismo Bblico: Uma introduo ao profetismo e profetas em geral. Petrpolis: Vozes, 1978. p.18. 30AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the Ancient Mediterranean World. Michigan: Grand Rapids, 1983. p. 85. 31Ibid. p.19. 32AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the Ancient Mediterranean World. Michigan: Grand Rapids, 1983. p. 81.

20

Jr 1.11-19), processo que pode ter implicado migrao de alma33. Porm, os efraimitas

parecem ter considerado a possesso de esprito34 como o meio comum de

intermediao que est claramente indicada nas seguintes descries: 1) a mo do

Senhor caiu sobre mim (1Rs 18.46; 2Rs 3.15; Jr 15.17); 2) o esprito repousou sobre

eles (Nm 11.25-26); 3) o esprito do Senhor revestiu Gideo (Jz 6.34). Ao passo que

a tradio proftica efraimita descrevia o processo de intermediao em termos da

palavra que Deus falava ao profeta, autores de Jud parecem ter enfatizado os aspectos

visuais da comunicao divino-humana35. Ainda que mencione uma palavra divina, o

profeta, diz-se com frequncia, viu a palavra (Am 1.1; Mq 1.1; Hb 1.1; Ez 1.1; Na 1.1;

Is 2.1; Zc 13.4; Jl 3.1)36. Como os efraimitas, parece que profetas de jud receberam

suas vises possudos pelo esprito de Iahweh. Possesso de esprito est indicada

claramente por frases como a mo do senhor estava sobre mim (Ez 1.3; 3.14,22; 8.1;

33.22; 37.1; 40.1; Is 8.11)37.

Segundo Aune38, uma das formas mais comum de adivinhao aprovada foi a

oneiromancy ou adivinhao por sonhos. Muitos sonhos revelatrios no Antigo

Testamento tinham significados de evidncia prpria, porque o recipiente foi

diretamente endereado por Deus (Gn 20.3, 6-7; 28.12-15; 31.10-13; 1Rs 3.5-15), ou

porque o simbolismo do sonho era transparente (Gn 37.5-11; Jz 7.13-14). Os sonhos

no requeriam a habilidade tcnica do intrprete de sonhos, afirma o autor, eles so

relativamente raros no Antigo Testamento (Gn 40.5-8; 41.1-8; Dn 1.17; 2.1-11). Outras

tcnicas de adivinhao foram usadas, como, a adivinhao pelo uso da sorte sagrada

para identificar o individuo culpado (Js 7.14-15; Sm 14.41-42; Jn 1.7), ou para

selecionar algum para uma tarefa especial ou servio (1Sm 10.20-21; Cr 24.5; 7-19;

25.8; 26.13; Nm 10.34). A sorte sagrada era usada tambm para selecionar o bode para

Azazel e para Yahweh no Dia da Expiao (Lv 16.7-10), e para dar o sim ou no

em resposta as perguntas. O Urim e o Tumim foram uma importante tcnica de 33WILSON, R. R. Profecia e Sociedade no Antigo Israel. Traduo: Joo Rezende Costa. So Paulo: Targumin e Paulus, 2006. p.179-180. Teoria de no-possesso que implica na crena que a alma ou o esprito do individuo pode deixar o corpo e viajar para o mundo sobrenatural (em sonhos e vises). p.62. 34Ibid. p.180. Teoria cultural que explica como ocorre contato entre mundos sobrenatural e natural. O comportamento distintivo de certas pessoas se explica dizendo que um esprito ou divindade penetrou nos seus corpos. p.55. 35Ibid. p.305. 36Ibid. p.305. 37Ibid. p.306. 38AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the Ancient Mediterranean World. Michigan: Grand Rapids, 1983. p. 82.

21

adivinhao por sorte sagrada, esta forma especial foi supervisionada pelos sacerdotes e

tinham a importante funo de responder as perguntas do povo (Dt 33.8; Nm 27.21).

Toda fala proftica inspirada, no qual, religiosos especialistas ou novatos fazem

contato com o mundo sobrenatural baseado na experincia de transe revelatrio ou

xtase. Podemos fazer vrias distines em relao aos tipos de caractersticas

comportamentais de transe da profecia israelita antiga. Em primeiro lugar, importante

distinguir entre transe de possesso que (pode ser medinico) e transe visionrio. No

transe de possesso acredita-se que um ser ou poder externo sobrenatural toma o

controle da pessoa, j no transe visionrio a alma da pessoa a deixa ou ela est sujeita a

ter vises e alucinaes. Passaremos a identificar os dois tipos de experincias extticas

no Antigo Testamento. notrio que experincias iniciais de transe revelatrio so

frequentemente de uma natureza involuntria, incontrolada e imprevisvel (1Sm 10.6;

19.23-24), j os especialistas religiosos podem aprender a controlar experincias de

transe praticadas subsequentemente (1Sm 10.5; 19.20), e por fim, a estrutura

experiencial e comportamental que socialmente comunicada pode ser aprendida pelos

religiosos que tem aparentemente estas experincias espontneas. Na poca do Israel

antigo as pessoas no geral tanto da parte dos leigos como da parte dos religiosos

acreditavam que o Esprito de Deus causava a experincia do transe revelatrio.

Devido a esta concepo o profeta era popularmente designado um homem do esprito

(Os 9.7). Os profetas do Antigo Testamento tambm se referem as suas experincias de

transe revelatrio como a mo de Yahweh estando sobre eles (Ez 3.14; 8.1; 33.21-22;

Is 8.11; Jr 15.17), estas citaes mostram que os profetas podiam ter tido um transe

revelatrio do tipo de possesso ou controle divino. Outro tipo de transe revelatrio

podia tambm ser experienciado em termos de uma percepo visionria pelo profeta

(Am 1.1; 7.1; 4.7; 8.1; Os 12.10; Is 1.1; 1Rs 22.19-23)39.

De fato, o ato de profetizar era envolvido em um ou mais tipos de transe ou

xtase revelatrio, no qual, os intermedirios da comunicao do mundo natural com o

sobrenatural passavam por estas experincias e tentavam comunic-las de uma forma

que fosse o mais compreensvel para os destinatrios de sua poca. Esta comunicao

envolvia alguns tipos de frmulas de revelao, dentre as quais, as mais comuns eram

assim o Senhor Deus mostrou-me (Am 7.1,4,7; 8.1), o Senhor disse para mim/ele

(Os 1.4; 3.1; Is 7.3; 8.3; 21.16; Ez 44.2; Jn 4.10; Jr 4.27; 6.6), e a palavra do 39Ibid. p.86.

22

Senhor/Deus veio para mim/ele (1Rs 12.22; 19.9; 1Sm 15.10; 2Sm 24.11; Ag 2.1,20;

Zc 7.1,8; 8.1; Os 1.2)40. Estas expresses que aparecem no inicio da fala oracular tem o

objetivo de fazer uma afirmao objetiva da revelao ocorrida. Infelizmente, a natureza

destas expresses oculta mais do que revela o tipo de transe revelatrio experienciado

pelos profetas41.

Entretanto, notrio que tanto as experincias de transe de possesso como as

de transe visionrio no ocorriam desligado do estado de xtase, isto , a suspenso

momentnea da atividade dos sentidos exteriores, por causa da intensa ocupao

interior. Alguns textos profticos nos mostram que o profeta no perdia a conscincia de

si e do que estava acontecendo, pelo contrrio, lembrava nitidamente da sua experincia

exttica. A experincia do profeta Isaas um caso tpico, o qual, na presena de

Yahweh, sente mais vivamente a prpria indignidade, a ponto de crer-se j perdido (Is

6.5)42.

Por fim, compreendemos que o profeta israelita antigo e a sua mensagem

passaram por mudanas no decorrer dos sculos, como por exemplo, de profetas

nmades para coletores e organizadores de orculos, de grupos profticos para profetas

solitrios, de profetas livres para profetas da corte, de profetas no escritores para

escritores, de mensagens restritas ao individuo para mensagens voltadas para o povo e o

interesse da nao. No entanto, diante dessas mudanas, uma caracterstica fundamental

se manteve evidente no profeta e na sua mensagem, a presena do xtase como

mediador e facilitador da comunicao do homem com o sagrado.

2. A Profecia no Judasmo Primitivo

A opinio que muito difundida no meio cristo e judaico que a profecia

cessou no Judasmo durante o quinto sculo a.C., surgindo novamente com o aumento

do Cristianismo. Segundo Hill43, o movimento proftico que tinha florescido em vrias

40Ibid. p.91. 41Ibid. p.91. 42BALLARINI, T.; BRESSAN, G. O Profetismo Bblico: Uma introduo ao profetismo e profetas em geral. Petrpolis: Vozes, 1978. p.40. 43HILL, David. New Testament Prophecy. Atlanta: John Knox Press, 1979,p.21.

23

formas do inicio da monarquia israelita eventualmente veio ao fim no perodo seguinte

com o exlio babilnico: seus ltimos representantes foram Ageu, Zacarias e Malaquias.

A razo para essa compreenso teve origem na concepo rabnica, no qual,

associa o Esprito de Deus a profecia. Um destes textos mostra a cessao da

profecia, o texto o Tosefta Sotah 13.2 quando o ltimo dos profetas Ageu, Zacarias

e Malaquias morreram, o esprito santo cessou em Israel. A despeito disto eles foram

informados por meio de orculos44. Esta passagem identifica o esprito santo com a

atividade proftica, isso mostra que para o Judasmo Rabnico ambos eram sinnimos.

No entanto, esta passagem enfatiza que a viso da revelao divina continua, mas de

forma diferente, por meio de orculos e no de profecia. Isto mostra que para alguns

rabinos a profecia cessou porque o esprito santo deixou Israel, mas, este texto tem

um carter terico e apologtico, no qual, os sbios rabinos tentaram enfraquecer a

reivindicao proftica dos cristos primitivos45.

Na presente pesquisa, pelo contrrio, aderimos posio de Aune46, segundo o

qual afirma que a profecia israelita no desapareceu. Ao invs disso, definida como

mensagem inteligvel de Deus em linguagem humana, atravs, de mediadores humanos

inspirados, a profecia pode assumir uma ampla variedade de formas: apocalptica,

escatolgica, clerical e sapiencial.

2.1. Profecia e Apocalptica

A palavra apocalptica deriva-se de uma palavra grega que significa

descobrir, desvelar, em geral em referncia a algo que estava oculto, mas agora foi

revelado. Ao usar a expresso literatura apocalptica, referimo-nos a um estilo de

escrito de revelao produzido em ambientes judaicos entre mais ou menos 250 a.C. e

100 d.C.47. A revelao a um receptor humano mediada por um ser sobrenatural,

desvendando uma realidade transcendente que tanto temporal, na medida em que

vislumbra salvao escatolgica, quanto espacial, no qual envolve o mundo

44AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the Ancient Mediterranean World. Michigan: Grand Rapids, 1983. p. 103. 45Ibid. p.104. 46Ibid. p.103. 47RUSSEL, D. S. Desvelamento divino. So Paulo: Paulus, 1997, p.25.

24

sobrenatural48. A essncia da revelao mostrar a destruio da presente era malvola

dominada pelas foras demonacas que usurparam o governo de Deus no universo e a

instaurao de uma nova era na qual Deus reinar soberano. A transformao

acompanhada pelo castigo dos mpios e a recompensa dos justos.

Segundo Grudem49, experincias revelatrias esto registradas muito

frequentemente na literatura rabnica. Como por exemplo, a experincia do Rabi Meir

(140-164 d.C.) que viu algumas mulheres vindo visit-lo, e ele viu pelo Esprito Santo a

essncia da disputa que uma das mulheres tinha com o seu marido (Lev. R. 9.9; cf.

13.5), a do Rabi Gamaliel II (80-120 d.C.) tambm teve uma experincia similar ao

conhecer um gentil desconhecido na estrada, e ele viu pelo Esprito Santo que o seu

nome era Mabgai (Lev. R. 37.3; c.f. b. erub. 64b). O autor tambm relata que Josefo

informa vrios incidentes em alguns detalhes. Como o de Joo Hircanus (135-105 a.C.),

que ouviu uma voz no templo que permitiu a ele predizer o resultado de uma batalha

quilmetros de distncia (A. 13.282-83)50.

interessante notar que Flon admite a possibilidade que em sono profundo a

mente discernir absolutamente profecias verdadeiras a respeito de coisas que esto por

vir (Mig. 190), e afirma sobre si mesmo que a voz em sua prpria alma frequentemente

adivinha o que no pode ser conhecido (Cher. 27)51.

Em relao aos manuscritos do Mar Morto, conforme Grudem52, no existe

afirmao detalhada e explicita sobre revelao contempornea, mas est registrado que

o autor dos cnticos tem a sabedoria do Esprito de Deus (1Qh 13.18-19; c.f. 11.9 e

12.11-13), e que para o Mestre da Justia, Deus fez conhecer todos os mistrios das

palavras do deus servos os profetas (1QpHab. 7.4-5), por fim, parece ter um tipo de

predio implcita no fragmento 1Q livro dos mistrios, linha 8: esta palavra

certamente vir passar; este fardo verdade.

Ns devemos considerar que existe uma grande quantidade de literatura

apocalptica e mstica no Judasmo do Segundo Templo, e que as experincias

revelatrias reivindicadas por supostos autores frequentemente pode refletir estas 48COLLINS, John J. A imaginao apocalptica: Uma introduo literatura apocalptica judaica. So Paulo: Paulus, 2010, p.22. 49GRUDEM, Wayne A. The Gift of Prophecy in I Corinthians. Eugene: Wipf and Stock Publishers, 1999, p.27. 50Ibid. p.30. 51Ibid. p.30. 52 Ibid. p.30.

25

mesmas experincias pelos autores reais. evidente o fato da continuidade, no qual,

fenmeno de revelaes foi inteiramente consistente com a crena posterior no entorno

religioso do Judasmo primitivo. No entanto, qual a relao entre a profecia e a

apocalptica neste contexto de continuidade revelatria?

Muitos estudiosos argumentaram que a profecia do Antigo Testamento exerceu

influncia primria sobre a apocalptica judaica. Segundo Russel53, a profecia a raiz

principal de que a apocalptica se nutre e se capacita para chegar a plena florao em

torno dos incios do sculo segundo a.C. Entretanto, para Aune54, a literatura

apocalptica judaica primitiva (Daniel, 1 e 2 Enoque, 2 Baruque, e o Apocalipse de

Abrao) exibe ntido contraste com a profecia pr-exlica do Antigo Testamento.

Contudo, o autor afirma que a trajetria da profecia para apocalptica se torna claro

quando o exlio e a literatura proftica posterior so trazidos para a considerao.

Em um influente estudo publicado em 1975, Paul Hanson55 argumentou que a

aurora da apocalptica deveria ser localizada na profecia ps-exlica do final do sexto

sculo a.C. A idia principal do autor era que a configurao bsica do pensamento

apocalptico j podia ser encontrada em textos profticos tardios. Dentro desta

perspectiva Aune56 diz que muito das caractersticas essenciais do tipo de literatura

apocalptica que floresceu de 200 a.C. a 100 d.C. tem origem na literatura proftica do

sexto e quinto sculos a.C. O autor tambm afirma que a apocalptica , portanto um

desenvolvimento dentro do Judasmo.

A literatura apocalptica frequentemente distinguida da profecia por enfatizar a

funo interpretativa dos apocalpticos em contraste com a caracterstica da revelao

direta da profecia clssica do Antigo Testamento57. Mas, no sexto sculo a.C. ocorre

uma mudana de pensamento, no qual, a profecia agora tem que ser interpretada, isto

reflete a viso crescente da distancia e transcendncia de Deus, o qual, no revela sua

palavra diretamente para os apocalpticos, como ele fez para os profetas do Antigo

53RUSSEL, D. S. Desvelamento divino. So Paulo: Paulus, 1997, p.41. 54AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the Ancient Mediterranean World. Michigan: Grand Rapids, 1983. p. 112. 55HANSON, P.D. The Dawn of Apocalyptic.Filadlfia: Fortress, 1975. Citado por: COLLINS, John J. A imaginao apocalptica: Uma introduo literatura apocalptica judaica. So Paulo: Paulus, 2010, p.48. 56AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the Ancient Mediterranean World. Michigan: Grand Rapids, 1983. p. 112. 57Ibid. p.113.

26

Testamento, mas, no perodo do Segundo Templo as revelaes so dadas

indiretamente, por meio de vises e escritura58.

Finalmente, o fenmeno da profecia e apocalptica tem sido diferenciado pelo

impulso bsico da mensagem de cada uma. Para P. Hanson59 a nica caracterstica da

profecia do Antigo Testamento a tenso mantida entre viso e realidade. Conforme o

autor, os profetas do Antigo Testamento tentaram traduzir suas vises de tal modo que a

realidade poltica, social e religiosa foi vitalmente afetada. Somando-se a isto, a autor

afirma que a profecia se transformou em apocalptica, no momento em que a tenso

entre viso e realidade foi relaxada e, portanto interrompida. Nesta concepo, a

profecia se torna apocalptica quando a tentativa de relatar viso csmica para as

realidades da vida contempornea abandonada. Por outro lado J.J. Collins60 afirma

que a distino fundamental entre profecia e apocalptica est no tipo de mensagem que

apresentada. Para o autor, o orculo proftico foi endereado diretamente para as

pessoas e deixou aberta a possibilidade de arrependimento e mudana de corao em

vista do julgamento iminente de Deus, mas, por outro lado a apocalptica no tem

aspecto condicional para a ameaa de julgamento, somente o veredicto que j tinha sido

predeterminado por Deus.

Segundo Aune61, o ponto de vista de Hanson mais persuasivo, realmente a

base para a tenso entre viso e realidade social, e a transformao da profecia para

apocalptica foi inevitvel. J a perspectiva de Collins enfraquecida pelo fato que

profetas clssicos do Antigo Testamento no foram to condicionais como muitos tem

suposto. importante notar que tanto para os profetas do Antigo Testamento como para

os apocalpticos do Judasmo Primitivo o julgamento de Deus se destaca como uma

realidade sombria em face de sua pessoa.

Podemos concluir que a literatura apocalptica e a profecia foram uma dentre

muitos meios de revelao dentro do Judasmo Primitivo e da religio Israelita62.

Entretanto, somos da opinio que a literatura apocalptica derivada historicamente dos

58Ibid. p.113. 59HANSON, P.D. Old Testament Apocalyptic Reexamined. Interpretation, 25 (1971), p.454-479. Citado por: AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the Ancient Mediterranean World. Michigan: Grand Rapids, 1983. p. 113. 60COLLINS, John J. The Apocalyptic Vision of the Book of Daniel. Missoula, 1977, p.75-76. Citado por: AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the Ancient Mediterranean World. Michigan: Grand Rapids, 1983. p. 114. 61Ibid. p.114. 62Ibid. p.114.

27

vrios meios de revelao do Judasmo Antigo, no qual a profecia israelita foi o mais

importante exemplar.

2.2. A Profecia Escatolgica

A escatologia apocalptica a crena que Deus intervir logo na histria humana

para trazer um fim catastrfico para o mal em todas as suas formas, este pensamento foi

muito difundido no Judasmo Palestino de 200 a.C. a 100 d.C.63 Entretanto, Machado64

afirma que escatologia e apocalptica no so termos sinnimos, porque a segunda no

lida s com o futuro. Este no o eixo central da apocalptica. O eixo central esta na

ascenso aos cus e revelao de mistrios celestiais. Mas, importante salientar que na

escatologia apocalptica o aspecto futurista ganha fora, principalmente como forma de

resposta sobrenatural que pareceu para muitos judeus ser um dilema insolvel no senso

comum: a ansiedade, a alienao, o abandono e a privao vivenciada nas esferas

poltica, econmica, social e religiosa da vida Palestina65. Na escatologia apocalptica a

experincia visionria de conhecimento dos mistrios celestiais ganha mais um

elemento, a esperana que estes mistrios revelados sero cumpridos em um futuro

prximo.

Muitas tentativas de respostas surgiram para as diversas causas das frustraes

dos judeus no perodo do Segundo Templo, mas ao longo do tempo estas respostas

comearam a vir de grupos organizados em torno desses ideais e eram chamados de

movimentos milenaristas. Estes movimentos tinham caractersticas em comum: tinham

um lder carismtico que era dotado de poder sobrenatural para conduzir seus

seguidores a realizar os objetivos em comum do grupo66. Na Palestina os profetas ou

messias foram considerados lideres dos movimentos milenaristas, pelo fato, deles terem

sido escolhidos por Deus e dotados de poderes sobrenaturais, com o objetivo de

preparar o caminho para a realizao completa do governo escatolgico de Deus. Estes

63 Ibid. p.121. 64MACHADO, Jonas. O Misticismo Apocalptico do Apstolo Paulo: Um novo olhar nas Cartas aos Corntios na perspectiva da experincia religiosa. So Paulo: Paulus, 2009, p.83-84. 65AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the Ancient Mediterranean World. Michigan: Grand Rapids, 1983. p. 121. 66Ibid. p.121.

28

movimentos foram revitalizantes, ao propor a restaurao dos ideais religiosos e

nacionalistas dos Israelitas primitivos dentro de uma estrutura escatolgica67.

Duas categorias de comunicadores escatolgicos foram distinguidas

cuidadosamente pelos estudiosos. messias e profetas. Ambos tm funo social

ntida, como por exemplo, o que eles dizem e fazem formam uma unidade que

providencia legitimao sobrenatural para eles mesmos e para o grupo que os

acompanha. Em outras palavras, a profecia e o operador de milagres caminham juntos68.

O messias associado imagem de um rei ideal em resposta a aliana davdica,

considerada incondicional e eterna (2 Sam 7; Sl 89; 132. 11-12). O messias davdico

esperado pelo povo foi concebido como uma figura militar que teve como primeira

tarefa destruir os inimigos de Israel, purificar Jerusalm e o Templo, e ajuntar os

israelitas dispersos como preldio a idade de ouro. Este messias no funcionaria como

profeta, pregador de arrependimento, ou um operador de milagre69.

Em relao natureza dos comunicadores escatolgicos, segundo Aune70, os

estudiosos apresentam duas concepes: o messias davdico humano, que tinha a funo

militar, nacionalista e poltica, e o messias transcendente, designado de Filho do

Homem. Estes dois tipos messinicos no esto realmente separados, pois as tradies

do Filho do Homem na apocalptica judaica representam uma transformao

transcendental das tradies messinicas davdicas. Durante a ltima quarta parte do

primeiro sculo depois de Cristo, a designao Filho do Homem usada como um

titulo messinico nos evangelhos cannicos e na sexta viso do apocalipse de Esdras

(IV Esdras). A designao tambm usada para a figura do redentor celestial nas

Similitudes de Enoque (I Enoque 37-71)71.

O outro comunicador escatolgico a figura do profeta. Desse foi esperado

que desempenhasse um papel mais minuciosamente religioso como: pregao de

arrependimento em preparao para o dia de Yahweh, a interpretao definitiva da

Torah, intercesso para Yahweh em favor de Israel, o desempenho de milagres como

uma amostra de poder sobrenatural e autoridade72. Profetizar, no sentido de predizer

julgamento ou salvao como consequncia do comportamento presente ou passado, 67Ibid. p.121. 68Ibid. p.122. 69Ibid. p.123. 70Ibid. p.123. 71Ibid. p.123. 72Ibid. p.126.

29

no faz parte da funo dos profetas escatolgicos. Esta designao, conforme Aune,

atribuda parcialmente viso que profeta escatolgico parte do cumprimento da

profecia do Antigo Testamento, seja atravs da volta do profeta Elias, ou atravs do

surgimento de um profeta semelhante a Moiss, segundo a interpretao possvel, mas

no demonstrvel, de Dt 18.15-18. Por fim, algumas passagens nos evangelhos indicam

que a concepo de um profeta escatolgico podia ser uma figura rudimentar

representando uma composio de idias tiradas de vrias imagens profticas e

messinicas (Mc 6.15b; 8.28c; Lc 7.16,39; 24.19; Jo 4.19).

2.3. A Profecia Clerical

A profecia clerical faz parte das formas variadas de fala e escrita revelatria no

Judasmo do Segundo Templo. Primeiramente um fenmeno oral, um tipo de

historizao (narrar acontecimentos), e uma profecia no escatolgica associada ao

sacerdcio.

No Israel Antigo, os sacerdotes foram associados rigorosamente com atividade

oracular em uma variedade de caminhos. Embora, o uso sacerdotal do Urim e Thumim

aparentemente tenha cessado depois do tempo de Davi, no entanto, outras formas de

atividade oracular parece ter continuado. A noo de profecia clerical (sacerdotal) ou

profecia levtica tem um importante lugar no trabalho do cronista, no qual, no tem a

assimilao das associaes profticas pr-exlica em relao aos cantores levticos do

Templo, mas um paralelo, e talvez um fenmeno rival da profecia fora do culto73. A

conexo prxima entre o sacerdcio e a adivinhao oracular est indicada em Esdras

2.63 e Ne 7.65, onde ns encontramos a frase o governador lhes disse que no

comessem das coisas sagradas, at que se levantasse um sacerdote com Urim e Tumim.

Outra referncia importante a profecia atribuda ao sumo sacerdote Caifs (18-36 d.C.)

que est em Joo 11.49-52: Caifs, porm, um dentre eles, sumo sacerdote naquele

ano, advertiu-os, dizendo: Vs nada sabeis, nem considerais que vos convm que morra

um s homem pelo povo e que no venha a perecer toda a nao. Ora, ele no disse isto

de si mesmo; mas, sendo sumo sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus estava para

73Ibid. p.138.

30

morrer pela nao e no somente pela nao, mas tambm para reunir em um s corpo

os filhos de Deus, que andam dispersos.

Segundo Aune74, Josefo, um historiador Judeu de quem ns temos sido

dependentes para nosso conhecimento do fenmeno proftico durante o perodo do

Segundo Templo, aparentemente se considerou como um profeta (embora ele nunca

usasse o termo a si mesmo) ele viu um relao prxima entre seus dons profticos e sua

posio sacerdotal. Ele tambm se considerou como um interprete inspirado de sonhos e

um interprete inspirado de profecias bblicas. No entanto, o diferencial em Josefo, era a

forma como se considerava um hbil discernidor do tempo de cumprimento dos

orculos profticos antigos.

Contudo, verificamos que a profecia clerical estava vinculada aos dons inerentes

ao sacerdcio (interpretao de sonhos e profecias), principalmente aos seus lideres,

como tambm a ligao com a atividade revelatria (sonhos, vises, profecias). Por fim,

interessante ressaltar que este tipo de profecia praticada no ambiente sacerdotal no

estava em conexo com a profecia escatolgica que ficava a margem desse contexto.

2.4. A Profecia Sapiencial

A profecia sapiencial no escatolgica, e no est conectada com os dons

inerentes do sacerdcio, mas est conectada com a faculdade da sabedoria, que

especialmente particular do homem santo, sbio, ou filsofo75. Na dispora havia

uma associao muito prxima entre sabedoria e profecia, particularmente nos escritos

de Flon de Alexandria (20 a.C. 50 d.C.), figura de crucial importncia para nosso

conhecimento do Judasmo Egpcio durante o perodo greco-romano. Como muitos de

seus contemporneos Flon foi um filsofo platnico ecltico, no como os filsofos

platnicos gregos, mas ele tinha suas peculiaridades com Judeu. Ele acreditava que o

conhecimento mais elevado, o conhecimento das idias, e isso era comum no meio

platnico, a partir desse entendimento, ele substitui o termo profecia pelo termo

platnico memria, recordao. Neste sentido considera-se como um profeta. Em

74Ibid. p.139 75Ibid. p.144.

31

seguida Flon declara que o homem sbio tem o dom proftico e considera os homens

justos como os possuidores do esprito proftico (Wis. 7.27).

Segundo Flon76, a experincia proftica envolve possesso divina e frenesi

descontrolado, sem mencionar a experincia psicofsica pessoal que ele descreve,

como experincia de possesso divina. Para ele o caminho que leva a experincia

proftica o xtase.

Alm do mais, Aune77 afirma que Flon foi um profeta s no senso que ele

conscientemente considerou a experincia revelatria proftica como a mais alta fonte

de conhecimento, e teve a experincia de uma intensa viso dentro da realidade

sobrenatural. Por causa de uma associao prxima entre viso e inspirao proftica

que ele estabeleceu. O autor tambm destaca que Flon parece ter transformado algumas

das falas de Moiss em anncios visionrios de salvao ou julgamento.

importante destacar que Flon aproxima o pensamento filosfico platnico (no

qual, o conhecimento mais elevado, o conhecimento das idias) ao pensamento

judaico primitivo (a respeito da importncia da profecia como comunicao do mundo

sobrenatural com o natural) para afirmar que a mais alta fonte de sabedoria provm da

experincia proftica, que no contempla a viso do passado ou do futuro no presente

proftico. Isto mostra que sua hermenutica no est desassociada da sua tradio

judaica.

3. O Orculo Greco-Romano

A religio grega, bem como a Cultura grega em geral, est delimitada local e

temporariamente pela esfera de ao da lngua e da literatura grega. No existem

fundadores da religio ou documentos da revelao78.

Os orculos e a adivinhao desempenharam uma funo regular e significante

na vida dos gregos e romanos na antiguidade at o triunfo do Cristianismo sobre as

76Ibid. p.147. 77Ibid. p.152. 78BURKERT, Walter. Religio Grega na poca Clssica e Arcaica. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1993, p. 34-35.

32

religies pags no quarto sculo d.C. Segundo Aune79, a maioria dos gregos no

colecionava revelaes divinas em uma forma escrita permanente e autoritria. Na viso

Greco-Romana em contraste com a viso Judaica primitiva, a revelao divina no foi

confinada a uma poca passada, mas ao invs disso, a cincia da adivinhao foi um

meio regular e contnuo de determinar a vontade dos deuses em quase toda questo

concebvel.

Os mtodos de conceder orculos so quase to diversos como as formas de

culto. No entanto, o fato espetacular de um deus falar diretamente por meio de um

mdium que cai no estado de entusiasms passa a primeiro plano80. A adivinhao pode

ser definida como a arte ou cincia de interpretar mensagens simblicas de deus.

Orculos em contrapartida so mensagens de um deus em linguagem humana, recebidas

como confirmaes deste deus, em resposta a perguntas81. Existiam vrias formas de

adivinhao praticada no mundo Greco-Romano incluindo a interpretao de: 1) lanar

dados para tirar a sorte (cleromancia), 2) o vo e comportamento de pssaros

(ornitomancia), 3) a condio e comportamento de animais que vo para o sacrifcio, ou

seus rgos vitais, antes e depois do sacrifcio (hepatoscopia, hieromancia, piromancia),

4) vrios pressgios ou sons (cledonomancia), e 5) sonhos (oneiromancia). A

cleromancia e a oneiromancia foram comumente usadas para assegurar respostas

oraculares de vrias adivinhaes, um fato que reala a relao prxima entre

adivinhao oracular e outras formas de adivinhao82.

O termo que os gregos usavam mais frequentemente para o profissional de

adivinhao era mantis, que traduzido por adivinho, prognosticador, vidente ou

menos apropriado profeta83. Os pensadores Greco-Romanos cuidadosamente

distinguiram entre adivinhao tcnica e adivinhao natural. A adivinhao tcnica

depende do conhecimento, treino e habilidade dos mantis em observar e corretamente

interpretar sinais, sacrifcios, sonhos, pressgios, prodgios, em contrapartida, a

adivinhao natural a inspirao direta do mantis atravs do xtase, transe ou viso84.

79AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the Ancient Mediterranean World. Michigan: Grand Rapids, 1983. p. 23. 80BURKERT, Walter. Religio Grega na poca Clssica e Arcaica. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1993, p. 233. 81AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the Ancient Mediterranean World. Michigan: Grand Rapids, 1983. p. 23. 82Ibid. p.23. 83Ibid. p.23. 84 Ibid. p.23-24.

33

Entretanto, a mntica de inspirao secundria, presume-se em geral que ela no seja

nem sequer de provenincia grega, pelo fato que no Oriente, mulheres delirantes a

partir das quais o deus fala encontra-se muito antes, em Mari, no segundo milnio e na

Assria, no Primeiro milnio85.

Passaremos abordar os lugares e as pessoas no contexto da tradio oracular

Greco-Romana, com o propsito de identificar as caractersticas dos orculos gregos

presentes na literatura da poca.

3.1. O Local de Culto

De acordo com um esquema corrente de desenvolvimento, a caverna teria sido a

habitao mais primitiva do homem que, posteriormente, foi mantida como local de

inumao e, finalmente, como domiclio dos deuses86. No entanto, as cavernas-

santurios so uma peculiaridade da Creta Minica, onde, foi confirmada a existncia de

pelo menos quinze. notrio que se procurava o encontro com o sagrado em locais de

difcil acesso e tenebrosamente escuros87. Podemos verificar como exemplo desta

prtica, as Cavernas pintadas do Paleoltico Superior, nas quais os caadores criaram

para si um mundo transcendente de imagens, outro exemplo a caverna Vernafeto que

contm desenhos gravados de uma deusa dos animais, nua, com os braos levantados,

com arcos e setas, entre animais da caa e da pesca88.

No menos caracterstico que as cavernas de culto so os santurios em picos.

Eles encontram-se em cumes montanhosos particularmente altos, afastados da morada

dos Homens e para alcan-los necessria at uma hora de caminho89. O que

caracterstico destes santurios so o amontoado de argila formando um altar simples, as

figuras de animais, principalmente vacas e ovelhas, a seu lado estatuetas de homens e

mulheres, em p, em gesto de venerao devota90. Pela forma simples de ser e pelas

figuras de animais como vaca e ovelha, evidente que o culto era mantido por pastores

85BURKERT, Walter. Religio Grega na poca Clssica e Arcaica. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1993, p. 238. 86Ibid. p.66. 87Ibid. p.66. 88Ibid. p.66-67. 89Ibid. p.69. 90Ibid. p.70.

34

dos montes. Mais de vinte santurios em picos foram encontrados. A Caverna de Zeus

no Iuctas perto de Cnossos pertence a esse nmero. O ato mais impressionante da

festividade nos picos era a fogueira acesa ao anoitecer, onde as figuras de argila eram

deixadas cair sobre as brasas, depois o local era limpo, e tambm ossos de animais

estavam presentes91.

Na Iconografia, principalmente nas imagens dos anis de ouro, aparece uma

imagem distintiva de uma rvore enorme, quase sempre rodeada de um muro, ou seja,

isolada, e que era considerada sagrada92. Na maioria das vezes, as rvores parecem ser

figueiras e oliveiras, no entanto, danadores movem-se com gestos extticos defronte da

rvore, ou uma divindade aparece aos seus adoradores93. Estas rvores estavam

localizadas em campos abertos e no eram presentes nos montes ou em complexos

palacianos. No abrigo das rvores as pessoas comuns se dirigiam para buscar a presena

da divindade que aparecia no momento da dana exttica.

Comeando a descoberta da cultura minica com a escavao dos palcios de

Cnossos, foram descobertos pequenos espaos cultuais dentro dos palcios e das casas,

os quais so identificveis por oferendas solenes, utenslios de culto e smbolos (chifres

e machados duplos)94. Este espao era conhecido como santurio domstico, cuja

caracterstica a presena das deusas-cobras, ou seja, a presena feminina sempre

vista, diferente nas cavernas ou nos santurios em picos que isto no ocorre. Outra

caracterstica do culto domstico so as representaes de cobras. Nos santurios

domsticos minicos, principalmente em Grnia, foram encontradas imagens de cobras

nas canecas ao redor da mesa de sacrifcios, simbolizando o mundo dos mortos, dos

heris, e dos deuses do mundo subterrneo95.

Durante o perodo Helenstico (350 a.C. 50 d.C.), os grandes santurios

oraculares tinham experimentado um demorado, mas contnuo declnio, alcanando sua

queda mais baixa no comeo do perodo romano (50 d.C.). Entretanto, muitos destes

orculos experimentaram uma renascena no segundo e terceiro sculos d.C., um

perodo que muitos tem erroneamente considerado como um declnio social e cultural96.

91Ibid. p.71. 92Ibid. p.73. 93Ibid. p.73. 94Ibid. p.74. 95Ibid. p.77. 96AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the Ancient Mediterranean World. Michigan: Grand Rapids, 1983. p. 24.

35

Com certeza, o declnio dos grandes centros oraculares pode ter sido causado pela

mudana da situao poltica das cidades-estados Grega.

Durante o segundo sculo d.C., quando os santurios oraculares local foram

experimentando uma renascena, pouco dos primeiros centros oraculares ilustres ainda

funcionavam. O orculo de Apolo em Delfos, o orculo de Zeus Ammon ao Oasis de

Siwah na Lbia, de Mopsos e Anfilocos a Mallos na Cilcia, e de Trofonios na Lebadia

estavam ainda operando no comeo do segundo sculo d.C.97.

Nos santurios oraculares local, onde consultas foram direcionadas para tais

deuses como Apolo (existiam mais do que 30 orculos Apolneos), Zeus, e Dionsio, ou

tais heris como Anfloco, Trofnio, Anfiarus, exibiram um nmero de caractersticas

comum98. Tanto os orculos dos deuses como os orculos dos heris que tiveram um

carter ctnico (relativo terra; ao mundo subterrneo em oposio s divindades

olmpicas), foram inseparavelmente conectados com o lugar tradicional de seus cultos.

No culto ctnico, o animal era morto em um poo ou cmara profunda, j no culto

as divindades olmpicas, pelo contrrio, o animal era sacrificado sobre um altar

elevado.

Em cada santurio oracular local lendas preservadas falavam como o lugar tinha

originalmente sido descoberto, como o culto tinha sido institudo, ou como o lugar tinha

recebido suas potncias oraculares99. Como exemplo, temos a lendas que enfatizaram a

descoberta de Delfos na antiguidade. Na estria, anteriormente sendo levado por Apolo

da Terra, o orculo volta para Terra para Temis, Temis para Febe, e finalmente Febe

colocada aos cuidados de Apolo100.

3.2. Os Tipos de Orculos

Nos cultos realizados nos santurios esto presentes os deuses e os seus sinais

divinos, entretanto, o xito na interpretao desses sinais pode propagar a fama de um

97Ibid. p.24. 98Ibid. p.27. 99Ibid. p.27. 100Ibid. p.27.

36

deus e do santurio que o representa. Segundo Burkert101, desde o sculo VIII,

determinados lugares adquirem significado supraregional, no qual, um deus concede

conselho a quem busca um servio, os gregos denominavam os lugares de chresms,

chrestrion ou manteon, os romanos de oraculum.

No Israel Antigo e nas religies Greco-Romana a sorte sagrada foi muito usada

para conhecer a vontade de deus sobre determinado assunto da vida cotidiana. Esta

forma de buscar o sagrado consolidada como o primeiro tipo de orculo, o orculo de

sorte. Muitas questes dos orculos que sobreviveram so formuladas em um caminho

que deus apresentado com uma alternativa para que possa responder apenas

positivamente ou negativamente102. Formas tpicas de perguntar so: eu devo, eu no

devo fazer tal e tal coisa? ou, melhor e mais benfico que as pessoas da cidade X

tenham fundado uma colnia na cidade Y?" As questes so designadas para exigir

somente um sim ou no de resposta, um tipo de resposta para que a sorte fosse

eminentemente adequada. Como exemplo, ns temos o orculo de Apolo para Delfos,

embora seja mais famoso pelas respostas oraculares inspiradas da sacerdotisa Ptia, o

orculo de sorte foi usado mais frequentemente para providenciar respostas oraculares a

perguntas do que a fala inspirada de Ptia103.

O segundo tipo de orculo muito difundido no mundo Greco-Romano foram os

orculos de sonhos, ou orculos de incubao, quando exigido da pessoa que pergunta

que gaste a noite no santurio mais profundo de um templo (o abaton ou adyton) onde

um sonho revelatrio pode ser concedido104. O termo enkoimesis, incubao, significa

um sono no Templo para buscar sonhos oraculares e cura. Os sacerdotes esto a

postos para ajudar a interpretar os sonhos. Esta incubao vai florescer depois,

sobretudo na esfera dos deuses curandeiros, em Amfereon perto de Oropos105. Muitos

orculos de incubao foram orculos de cura e muitos orculos de cura foram esses do

deus Asclpio, no qual, foi estimado que existisse mais de duzentos santurios desse

101BURKERT, Walter. Religio Grega na poca Clssica e Arcaica. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1993, p. 238. 102AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the Ancient Mediterranean World. Michigan: Grand Rapids, 1983. p. 25. 103Ibid. p.25. 104Ibid. p.25-26. 105BURKERT, Walter. Religio Grega na poca Clssica e Arcaica. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1993, p. 235.

37

deus por toda parte do mundo Greco-Romano no fim do terceiro sculo d.C.106. Em

Patara, na Lcia, ns temos o exemplo da sacerdotisa que era encerrada no templo

noite e ento, ela era possuda pelo deus que lhe transmitia a profecia107.

Em contraste com os mtodos adivinhatrios usados pelos orculos de sorte e de

incubao, as respostas oraculares para perguntas feitas pelos inquiridores aos orculos

inspirados tomaram a forma de pronunciamentos feita por um culto oficial108. As

respostas oraculares so quase sempre facilmente inteligveis. Os orculos inspirados

so o terceiro tipo de orculo no mundo Greco-Romano. Em geraes anteriores

inspirao oracular foi amplamente considerada como um fenmeno no grego que

tinha invadido a Grcia do norte ou leste com a chegada do culto de Dionsio109.

Entretanto, mais recentemente o fenmeno de inspirao oracular tem sido aceito como

um fenmeno completamente Grego. Todavia, fenmenos de inspirao religiosa j

eram praticados desde tempos mais antigos, como por exemplo, no Judasmo do

Segundo Templo, mas com certeza, o fenmeno grego tem suas caractersticas

peculiares, como fornecer ajuda subsidiria nos processos clarificao que j se

encontra em curso, diferentemente do fenmeno de inspirao realizado no Judasmo do

Segundo Templo que se preocupava com acontecimentos futuros que mudariam a

condio do homem justo.

Os gregos acreditavam que respostas oraculares por meio de fala humana no

eram apenas divinamente inspiradas, mas elas foram s expresses de deus atravs de

intermedirios humanos110. Esta convico confirmada pela forma de muitos orculos:

eles so frequentemente apresentados como a fala dirigida da divindade oracular. Na

lenda Dfica de Koretas temos um exemplo de inspirao oracular, um pastor que

acidentalmente caiu na fenda depois do santurio de Apolo e comeou pronunciar

profecias involuntariamente em um estado incontrolado de transe de possesso111.

106AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the Ancient Mediterranean World. Michigan: Grand Rapids, 1983. p. 26. 107BURKERT, Walter. Religio Grega na poca Clssica e Arcaica. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1993, p. 235. 108AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the Ancient Mediterranean World. Michigan: Grand Rapids, 1983. p. 26-27. 109Ibid. p.27. 110Ibid. p.32-33. 111Ibid. p.34.

38

3.3. As Formas e Funes dos Orculos

Na Grcia, uma das utilizaes mais antigas da escrita, que comeou a difundir-

se cerca de 730 a.C., foi certamente a fixao dos enunciados oraculares. Os velhos

enunciados foram colecionados em forma escrita para permanecerem disposio das

pessoas112. Segundo Aune113, muitos orculos gregos eram curtos, consistindo de uma a

quatro linhas, entretanto, orculos mais longos foram ocasionalmente entregues para

importantes visitantes dos santurios oraculares famosos.

Os orculos gregos exibem uma uniformidade de estilo impressionante, eles so

curtos e escritos em versos, usualmente em forma potica: hexmetro datlico (consiste

de seis versos) sendo cada um datlico (uma sequncia de trs slabas poticas, a

primeira longa e as duas seguintes breves). Este tipo de forma potica encontrado na

literatura grega mais antiga de Homero e Hesodo (do oitavo ao stimo sculo a.C), e

tambm no orculo de Delfos:

De toda a Terra, Pelasgo Argos o melhor,

Cavalos de Tesslia, mulheres de Lacedemnia,

E homens que bebe as guas da justa Aretusa.

Ainda destes o melhor so aqueles que habitam

Entre Tirinto e Arcdia rica em rebanhos,

Argivos com corpetes de linho, incentivos para batalha.

Mas voc de Aegium nem so terceiro nem quarto

Nem dcimo segundo, nem em inteligncia ou nmero114.

As oito linhas deste orculo so em hexmetro datlico, entretanto, outros

orculos dlficos foram produzidos em imbico trimtrico (consiste de trs versos)

sendo cada um imbico (uma sequncia de duas slabas poticas, a primeira breve e a

segunda longa). Os orculos em forma de prosa se tornaram comum durante o primeiro

e segundo sculos d.C.

112BURKERT, Walter. Religio Grega na poca Clssica e Arcaica. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1993, p. 239. 113AUNE, David E. Prophecy in Early Christianity and the Ancient Mediterranean World. Michigan: Grand Rapids, 1983. p. 49. 114Ibid. p.50.

39

A forma potica dos orculos foi considerada como uma indicao de sua

origem divina no perodo Helenstico e Romano, desde que os gregos aceitaram

amplamente a inspirao divina da poesia115. Para os gregos, as belas formas que os

orculos foram formados revelam a sua natureza divina.

A obscuridade parece ter sido um elemento essencial no gnero dos orculos

antigos. Como exemplo tem a fala de Herclides: o Senhor de quem o orculo est em

Delfos nem declara nem oculta, mas d um sinal (semainei)116. Isto mostra que

orculos gregos requeriam algum tipo de interpretao particular, mas que isso

demonstra o ceticismo at que o cumprimento fosse bvio.

Este uso de enigmas oraculares revela alguns aspectos interessantes da

perspectiva religiosa Grega: 1) fala oracular, embora difcil para entender, um meio

absolutamente confivel de como a vontade dos deuses comunicada para o homem, 2)

a relao entre deuses e homens um tipo de jogo, no qual, sagacidade e esperteza so

habilidades absolutamente essenciais por parte do homem, 3) apesar de tentar controlar

os deuses atravs de rituais religiosos apropriados, os deuses e o destino pode s vezes

agir por caminhos caprichosos e imprevisveis117. Todavia, a obscuridade foi sempre

uma caracterstica das respostas oraculares, no qual, foi mais importante ocultar do que

revelar a resposta oracular dos deuses, este modo de ver foi particularmente muito

difundido durante o perodo Greco-Romano. Portanto, no pensamento Grego antigo, a

obscuridade e a forma proftica sugeriram a origem divina da fala oracular.

Passaremos a analisar os dois tipos gerais de respostas oraculares, as respostas

solicitadas e as no solicitadas. Segundo Aune118, a grande maioria dos orculos que

tem sido preservado na literatura antiga, papiro, e inscries so respostas oraculares

solicitadas. Estas respostas foram muito curtas, consistindo de no mais do que uma ou

duas linhas. A primeira parte das respostas oraculares agrupada em trs categorias

primarias que correspondem s trs maiores funes das respostas119:

115Ibid. p.51. 116Ibid. p.51. 117Ibid. p.51. 118 Ibid. p.55. 119Ibid. p.56.

40

1) Orculos Preditivos:

Este tipo de orculo revela o futuro curso dos eventos. Os inquiridores

solicitavam orientao para minimizar os riscos inerentes em vrios tipos de

empreendimento ou situaes problemticas.

Como exemplo tem o orculo de seis linhas em prosa, no qual, foram uma parte

de uma tabela preparada para pergunta e resposta, as chamadas Sortes Astrampsychi:

Voc no () ir escapar da calnia.

Voc no () ser o herdeiro de sua esposa.

Voc no (obtem) obter o dote.

Voc no () ser reconciliado com seus mestres.

A pessoa que est doente vai se recuperar.

O beb no () ser trazido120.

O verbo em cada resposta est no tempo presente, mas o significado o presente

futurstico oracular.

2) Orculos de Diagnstico:

Este orculo fornece informao no conhecida para o inquiridor sobre o

passado ou o presente. Como exemplo tem o orculo produzido por Glauco Asclpio no

meio do segundo sculo d.C., no qual, quando perguntado o que Epicurus estava

fazendo no Hades, ele respondeu:

Com pesados grilhes nos ps, ele se senta na lama imunda121.

3) Orculos Prescritivos:

O inquiridor intimado ou ordenado para tomar um curso particular da ao.

Este tipo de orculo favorece o modo imperativo. O orculo responde qual atitude o

inquiridor deve tomar. Como exemplo tem os livros rficos que so orculos cantados

por Orfeu e escritos por Musaios no segundo sculo d.C. A pergunta feita ao Orculo

de Apolo em Didima:

Seu profeta Damiano pergunta: no seu santurio prximo ao recinto do altar para todos os deuses voc no v ainda um altar construdo para sua irm mais santa, a deusa Ster Cor surgida a partir do prprio pai. Mas, um

120Ibid. p.56. 121Ibid. p.57.

41

amigo de deus, aflito a um tal estado de negcios, pergunta a voc, Senhor de Didima, Hlio Apolo, para profetizar para ele se voc permite ele erigir um altar de sua criana prximo ao altar de frutificao de Demtrio.

O deus declarou por um orculo: execute esta honra para Ster Cor no arredor do altar122.

A resposta indica o que deve ser feito, por isso, o uso do imperativo

apropriado. Os orculos preditivos e diagnsticos podem ser distinguidos dos orculos

prescritivos em que os dois primeiros tipos so basicamente respostas de pedidos para

vrios tipos de data, ou seja, levando em considerao mais a questo do tempo

(passado, presente, futuro), no entanto, o ltimo tipo uma resposta para perguntas

considerando o tipo de ao que o inquiridor deve tomar, ou seja, um orculo que

profere conselhos imperativos.

A primeira parte das respostas oraculares solicitadas foi analisada, no qual,

verificamos uma estrutura mais simples na composio do orculo, vamos analisar

como a estrutura da primeira parte modificada e expandida para formar a segunda

parte das respostas oraculares.

A segunda parte agrupada em trs tipos de respostas oraculares:

1) Orculos Expositivos:

A estrutura tpica destes orculos ilustrada por estas seis respostas oraculares

das Sortes Astrampsychi:

Voc no vai ser vendido ainda. No conveniente para voc.

Voc tem sido envenenado. Ajude a voc mesmo.

Sua propriedade no para ser vendida em leilo. No tenha medo.

Voc no ser insultado agora. No se preocupe.

Voc no vencedor. Persevere.

Voc no para herdar. Silncio123.

Segundo Aune124, o primeiro elemento de cada orculo uma afirmao

preditiva no tempo futuro ou presente futurstico (com exceo da segunda resposta),

quando o segundo elemento (na primeira instncia) est no modo imperativo. Em

relao s funes do segundo elemento presente no orculo notria a variedade de 122Ibid. p.58. 123Ibid. p.59. 124Ibid. p.59.

42

caminhos, mas sempre como uma elaborao, explanao ou exposio da afirmao

bsica. Nos exemplos citados acima o segundo elemento fornece: 1) conforto para o

desapontamento do inquiridor, 2) encorajamento para o inquiridor que tem recebido

boas notcias, 3) uma razo ou fundamento para a afirmao primria feita na

resposta125.

2) Orculos Condicionais

Este um dos mais comuns tipos de respostas oraculares da segunda parte.

Quando a condio ou condies descritas na prtase (primeira parte de um perodo)

introduzida por tais partculas como se e quando fosse cumprida, ento a predio

expressada na apdose (segundo membro da frase) estava esperada para ocorrer.

Segundo Aune126, esta forma oracular de relevncia particular para o estudo das

formas de fala proftica crist primitiva desde que se assemelha ao pronunciamento de

lei sagrada.

Um tpico exemplo de um orculo condicional o orculo de duas linhas e

preservado na forma de hexmetro em uma inscrio no santurio de Grynaion Apolo

em Aetolia:

Quando voc honrar o filho de Leto, Febo (Apolo) e Zeus Patroios,

Voc receber fama, ento aperte suas algemas aqui na rvore127.

A afirmao preditiva na segunda linha deste orculo est dependendo do

cumprimento da prescrio redigida na primeira linha.

3) Orculos Adversativos

Os orculos adversativos so caracterizados pela reverso repentina da situao

ou uma crtica abrupta. Uma bem-aventurana que prediz uma reverso de sorte citada

por Ateneu:

Feliz, tu Sibarite, todos felizes para sempre.

Estar em tua abundncia, enquanto honrando a raa deles que vivem para sempre.

Mas quando tu mantiveres um homem mortal em reverncia ao invs de um deus,

Ento, guerra e conflitos civis vir sobre ti128.

125Ibid. p.59. 126Ibid. p.60. 127Ibid. p.60.

43

O pronunciamento de beno domina as primeiras duas linhas, quando a

afirmao adversativa nas ltimas duas tem a forma de um orculo condicional com um

modelo quando x, ento y.

A partir do quarto sculo a.C. durante o perodo Greco-Romano comeou a

surgir com mais frequncia o segundo tipo das respostas oraculares, os orculos no

solicitados. Eles tinham a tendncia de ocorrer tambm com maior frequncia no

Oriente do que nas terras do Mediterrneo Ocidental e tambm nos tempos de crises

sociais. Este tipo de orculo no foi suscitado por questes, mas foi a expresso

espontnea dos mdiuns em um estado de possesso de transe ou transe. Segundo

Aune129, talvez o mais antigo tipo de orculo espontneo o orculo de sonho no

solicitado.

Orculos no solicitados foram pronunciados por mdiuns cultos no santurio do

orculo. Por exemplo, aproximadamente cinco por cento dos orculos Dlficos

sobreviventes parece ser pronunciamentos espontneos da Ptia. Muitos destes orculos

foram considerados esprios, e s foram aceitos como autnticos, depois que fossem

padronizados a partir dos modelos genunos.

Como exemplo tem um dos orculos de Glauco Asclpio no meio do segundo

sculo d.C., o seguinte orculo espontneo pronunciado durante uma praga que

alcanou o Imprio Romano em 166 d.C. uma exceo:

Febo (Apolo) as protees no cortadas fora da nuvem da peste130.

Este orculo um exemplo de uma resposta no solicitada durante um tempo de

crises sociais. Diante do terror muito difundido pela praga, a aplicao do orculo teria

sido bvia para todos. O orculo foi inscrito em casas como um amuleto mgico

apotropaico (que tem poder de afastar influncias malficas), afirma Aune131.

Uma categoria maior dos orculos no solicitados o orculo de legitimao,

que tem trs tipos:

128Ibid. p.61. 129Ibid. p.66. 130Ibid. p.67. 131Ibid. p.67.

44

1) Orculos de Reconhecimento

um tipo de fala oracular ou proftica encontrad