Profcssor da Faculdade de Direito de...

33
JORGE REIS NOVAIS Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboa DIREITOS FUNDAMENTAIS: TRUNFOS CONTRA A MAIORIA 3L1 (Ét\ nwoADa.e Coimbra Editora 2006

Transcript of Profcssor da Faculdade de Direito de...

Page 1: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

JORGE REIS NOVAIS Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboa

DIREITOS FUNDAMENTAIS: TRUNFOS CONTRA A MAIORIA

3L1 (Ét\

nwoADa.e

Coimbra Editora

2006

Page 2: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

Para a Geninha

Biblioteca de Ciências Jurídicas-Ciências Jurídicas Editora Revista dos Tribunais Dirieitos fundamentais trunfos contra a maioria Termo. 812012 Registro 509664 Ew R$64,00 01102/2012 DISPENSADEUCITAÇÀO

ti) cc a-

Composição e impressão oimbra Editora, Limitada

ISBN 978-972-32-1445-1

Depósito Legal n,° 247 25512006

Setembro de 2006

Page 3: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

APRESENTAÇÃO

Inten-ogamo-nos, neste livro, acerca do que deva ser uma teoria jurí-dica de direitos fundamentais adequada a um Estado de Direito social e democrático e ensaiamos uma tentativa de resposta Não havendo, na concepção particular de direitos fundamentais que aqui se vai defender, uma qualquer pretensão de que ela constitua a única concepção possível ou correcta, há, todavia, uma ambição de que possa constituir a proposta mais adequada aos pressupostos e natureza constitucionais de utui Estado de Direito dos nossos dias, com a convicção de que, quanto aos aspectos nucleares dessa concepção, eles constituem, mesmo, uma exigênciã deste tipo histórico de Estado, tal como hoje é generalizadamente assumido.

Adoptamos para esta concepção a designação de direitos funda-mentais como trunfos contra a maioria, no que não há pretensão de ori-ginalidade, uma vez que a ideia dos direitos como trunfos, embora com sentido edesenvolvimentos distintos, foi inicialmente proposta por RONALD DWORKIN há cerca de trinta anos. A intenção de originalidade manifesta-se noutros planos.

Em primeiro lugar, assinale-se o carácter relativamente inovatório desta concepção no contexto da doutrina portuguesa, onde, apesar de algu-mas das suas linhas orientadoras aflorarem incidentalmente nas teorizações de GOMES CAN0TILHO (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 2003. págs. 98 ss.) e de JORGE MIRANDA (Manual de Direito Constitucional, IV, págs. 209 ss.) a propósito das relações entre Estado de Direito e democracia, esta posição tem sido em alguns aspectos acolhida, mas noutros expressamente rejeitada ou, pelo menos, consi-derada com algumas reservas pelo Professor de Coimbra (ver, infra, cap. 1). Em segundo lugar, é própria a forma como a ideia dos direi-tos como trunfos surge aqui combinada com a simultânea defesa de uma concepção particular dos direitos fundamentais enquanto garantias

Page 4: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

Direitos Fundamentais: Trunfos Contra a Maioria

jurídicas dotadas do que designamos por reserva geral imanente de pon-deração. Por último, destaca-se a pretensão de que possa constituir uma teoria compreensiva, aplicável, não apenas aos clássicos direitos de liber-dade, mas a todos os direitos fundamentais, independentemente do seu tipo particular ou da sua inserção sistemática no texto constitucional.

Ao longo dos vários textos, aqui reunidos em diferentes capítulos, confrontamos a plausibilidade dogmática desta concepção de direitos fundamentais, enquanto doutrina com pretensões de abrangência, tes-tando-a, sempre com referência comum à ideia dos direitos conto trun-fos, em domínios diversos de relevância jurídica dos direitos funda-mentais, das relações com o Estado às relações entre particulares, do ponto de vista material e procedimental e referida a direitos fundamen-tais específicos com natureza muito diferenciada. Essa a razão por que, não sendo os três últimos capítulos trabalhos inéditos, decidimos incluí-los nesta obra que integra também, para além dos nossos trabalhos sobre direitos fundamentais dos últimos dois anõs, o texto sobre a "renún-cia', escrito nos idos de 1995 e já pouco acessível.

Tendo por objecto temas aparentemente muito diversos, em cada um destes capítulos está subjacente uma comum tentativa de responder, em diferentes áreas, materiais e procedimentais, à mesma interrogação: que significa e que consequências tem, em Estado de Direito, ter um direito fundamental, enquanto garantia jurídica da autonomia e da liberdade individual com nível e televância constitucionais?

E é precisamente porque se pretende atender à força normativa da Constituição, que a busca de respostas é sempre informada pela preo-cupação comum de configurar as garantias jurídicas proporcionadas pelos direitos fundamentais como garantias fortes, efectivas, próprias de direitos a que se cola um atributo de fundamentalidade e que, por isso mesmo, como se diz na Constituição, vinculam directamente o Estado e as entidades públicas e de que, consequenteinente, por definição, os titu-lares do Poder democrático não dispõem.

Oprimeiro capítulo centra-se na problemática nuclear do Estado de Direito democrático dos nossos dias, qual seja a da relação entre direi-

tos fundamentais e democracia enquanto problema jurídico-constitucio-nal. Trata o problema da complexa compatibilização da ideia de demo-cracia, como forma de poder legitimada na participação e livre escolha da maioria, com a ideia de direitos fundamentais, concebidos como garantias individuais fortes oponíveis às decisões daquela mesma maio-ria democrática. Qual é, no quadro do Estado de Direito democrático, o alcance e o sentido desse tipo de garantias quando em confronto com outros fins e objectivos, eventualmente de sentido divergente, para cuja prossecução os diferentes órgãos do Estado estão, não apenas legitima-dos, mas também constitucionalmente obrigados a actuar?

Na resposta a essa interrogações, desenvolve-se, neste primeiro capítulo, uma concepção que haviámos já deixado delineada em As Res-trições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição e que combina um entendimento particular dos direitos fundamentais como trunfos com a concepção própria dos direitos fun-damentais como garantias jurídicas sujeitas a uma reserva geral ima-nente de ponderação.

Este capítulo serviu de base a uma palestra pmferida na Aula Magna dos cursos de pós-graduação da Unibrasil, em Curitiba, em Fevereiro de 2006, e, nessa qualidade, integra a obra colectiva Direitos Humanos e Democracia: intercorrêncías, coordenada por CLÉMERSON CLÊVE, 11160

SARLET e ALEXANDRE PAGLIARINI, a publicar pela Editora Forense, do Rio de Janeiro.

No segundo capítulo rejeita-se a possibilidade de transferir meca-nicamente uma tal concepção de direitos fundamentais - apta a cons-truir uma teoria constitucionalmente adequada dos direitos fundamentais nas relações entre indivíduo e Estado - para o plano das relações jurí-dicas entre particulares. Contra uma tendência doutrinária muito visível, nos últimos anos, ,em Espanha. Portugal e países da América Latina, especialmente o Brasil, contesta-se vivamente a plausibilidade dogmá-tica da chamada teoria da eficácia directa dos direitos fundamentais nas relações entre particulares.

0 que há de novo, no texto que aqui apresentamos, é que a crítica

Page 5: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

to Direitos Fundamentais: Trunfos ConiraaMaioria

a essa teoria é feita, não em nome daàutonomia do Direito privado, mas em nome dos valores e objectivos que também inspiram os defensores da doutrina da eficácia directa, os da efectividade dos direitos funda-mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser, dos direitos fundamentais como trunfos. Mas é, precisamente, porque do outro lado da relação jurídica se encontram agora, não o Estado, mas outros particulares, isto é, outros titulares de outros tantos e idênticos trun-

fos, que se considera ser a aplicabilidade ou a eficácia directa dos direi-tos fundamentais teoricamente insustentável.

Este segundo capítulo será também publicado na obra colectiva

organizada por CLÁUDIO S0UzA NETO e DANIEL SARMEN1D, Constitucio-

nalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas,

Lumen Juris, Rio de Janeiro.

* * *

O terceiro capítulo foi escrito para os Estudos em Homenagem ao Pro-

fessor António de Sousa Franco e discute um tema de há muito contro-

verso na doutrina portuguesa, o da natureza jurídica do jus aediflcandi.

Trata-se, em primeiro lugar, muito simplificadoramente, de saber se o direito fundamental à propriedade privada compreende ou não, à partida,

direito a edificar ou construir em solo próprio. Mas, mais importante, que importa sobrétudo discutir são as consequências jurídicas práticas

da posição que se assuma relativamente a esse problema. O interesse dogmático da abordagem que aqui se propõe para

este tema clássico do Direito do Urbanismo é que ela assenta numa nova perspectiva de análise, ou seja, a questão é tratada enquanto problema de direitos fundamentais e, logo, a partir de um prisma essencialmente constitucional, convergindo, dessa forma, com o con-junto de preocupações que dá razão à existência deste livro. Por outro lado, e uma vez que a solução deste problema se busca na teo-ria dos direitos fundamentais e se inspira na ideia dos direitos como

trunfos, a proposta que aqui se apresenta opõe-se radicalmente às posições que poderemos designar como inspiradas na chamada teoria

interna dos limites aos direitos fundamentais ou na doutrina dos limi-

tes ituanentes, que têm dominado a doutrina e jurisprudência consti-

tucionais portuguesas que se debruçam sobre esta questão, e cujos principais teorizadores, entre nós, serão os Professores de Coimbra VIEIRA DE ANDRADE, na teoria dos direitos fundamentais, e ALVES

CORRETA, no Direito do Urbanismo.

* * *

O quarto capítulo incide sobre a dimensão procedimental da tutela dos direitos fundamentais, mais concretamente, a da sua protecção por parte da justiça constitucional. Com efeito, tomar a sério os direitos fundamentais, e particularemente quando se adopta a sua concepção como trunfos, significa, necessariamente, conferir-lhes uma tutela à altura da respectiva fundamentalidade e da pluralidade de diferentes ameaças e possíveis violações que sobre eles impendem.. Não há ver-dadeiramente nem direitos fundamentais nem Estado de Direito se não estiver adequadamente assegurada a plenitude, pelo menos tendencial, da sua tutela jurisdicional. Ora, o que se procura demonstrar neste tâpí-tulo é que, entre nós, a maior parte das possíveis violações dos direi-tos fundamentais, por acção ou omissão, que os cidadãos podem poten-cialmente ter de suportar - e que são, precisamente, as que são actuadas através de actos políticos, actos individuais e concretos da Administração e decisões do poder judicial - não são sindicáveis pelo Tribunal Constitucional. Pelo menos, não são sindicáveis à luz dos termos e da racionalidade próprios do nosso actual sistema de fis-calização da constitucionalidade. Nesse sentido, propõe-se aí uma reformulação desse sistema, traduzida na proposta de institucionaliza-ção de um recurso de amparo constitucional e de reconfiguração radi-cal do actual sistema de fiscalização concreta.

Este texto, que foi publicado na Revista Themis (n.° 10, 2005) ao

lado de um outro artigo, da Professora MARIA LÚCIA AMARAL, que pro-põe igualmente uma reflexão global sobre a adequação do nosso sistema de fiscalização, mereceu, entretanto, a crítica atenciosa e cuidada, mas de frontal rejeição, por parte do Professor CARLOS ELANCO DE MORAIS

(Justiça Constitucional, II, Coimbra, 2005, págs. 989 ss.). - Não sendo este o local para considerarmos cada um dos argu-

mentos aí expendidos, diga-se, em todo o caso, que neles não colhe-

Page 6: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

13

12 Direitos Fundanientais: Trunfos contra a Maioria

mos motivo de alteração daquela proposta, uma vez que ou não são,

em nosso entender, cabalmente objectadas ou são mesmo confirma-

das as nossas razões fundamentais: as de que a reacção dos cidadãos

contra a maior e mais significativa parte das violações dos seus direi-

tos fundamentais tem, entre nós, o acesso juridicamente vedado ao Tri-

bunal Constitucional; de que para obviar a este inconveniente deci-

sivo, o Tribunal Constitucional se vê obrigado a forçar os limites do

actual sistema, mas a custo de progressiva e incontrolável complexi-

ficação e sofisticação da definição dos pressupostos e requisitos do

recurso de constitucional idade, com os consequentes riscos de inse-

gurança jurídica e de desigualdade jurídica e material; de que o actual

sistema é manipulável e instrumentalizável para fins menores, alheios

ou até incompatíveis com os objectivos de uma justiça constitucional

em Estado de Direito, mas para os quais se captura quase em exclu-

sividade o labor do Tribunal Constitucional, impedindo-o objectiva-

mente, mas também por força da configúração jurídica do actual

-- sistemade fiscalização, de se afirmar como Tribunal dos direitos

fundamentais. Quando, como actualmente acontece, não se permite que, perante

uma determinada violação sensível e drástica de um seu direito funda-

mental, um cidadão português recorra para o Tribunal Constitucional, mas

se permite que possa recorrer, com esse fundamento, para o Tribunal

Europeu dos Direitos do Homem, com a consequente possibilidade de

condenação do Estado português por violação de direitos fundamentais

com assento constitucional - o que tem ocorrido frequentemente

(vejam-se, só de entre as mais recentes condenações, os casos Roseiro

Bento e Urbino Rodrigues, sobre liberdade de expressão e liberdade de

imprensa) -, há que concluir, no mínimo, que há sérias razões para

reflectir sobre o actual sistema.

O problema não é, note-se, que o Tribunal Europeu dos Direitos do

Homem tenha a possibilidade de atalhar a violação e condenar o Estado

português; ainda bem que é assim. O problema é os cidadãos portugueses

só encontrarem neste tribunal a defesa institucional contra certo tipo de

violações aos direitos fundamentais que a Constituição portuguesa lhes

garante, ao mesmo tempo que o seu Tribunal Constitucional está juri-

dicamente impedido de lhes dar essa protecção.

*

* *

No capítulo quinto, a propósito da jurisprudência do nosso Tribunal

Constitucional (o texto foi originariamente publicado na Jurisprudência

Constitucional, n.° 6, 2005), voltamos a um tema recorrente da teoria dos

direitos fundamentais, o da natureza e relevância jurídicas dos direitos

sociais. Sustentamos aí dois princípios-chave, que decorrem da assunção,

atrás referida, da teoria dos direitos fundamentais como trunfos na quali-

dade de doutrina abrangente aplicável a todos os direitos fundamentais,

mas que vão singularmente ao arrepio de algumas ideias feitas da doutrina

tradicional portuguesa sobre direitos fundamentais.

O primeiro desses princípios é o de que o regime constitucional é

comum a todos os direitos fundamentais e de que não há um regime

constitucional específico para direitos, liberdades e garantias e um outro,

igualmente específico, para direitos sociais. Ora, como se sabe, a dou-

trina tradicional, aparentemente apoiada na letra dos arts. 17.° e 18.° da

Constituição, sustenta conclusão contrária. Pensamos, no entanto, ter

demonstrado, no seguimento do que havíamos já dito nos nossos As

Restrições não Expressanzente Autorizadas.., e, sobretudo, Os Princípios

Constitucionais Estníturantes..., que todo o pretenso regime constitucional

aplicável exclusivamente aos direitos de liberdade é, e deve ser, igual-

mente aplicável aos direitos sociais (com excepção da aplicabilidade

directa que, todavia, é mais um elemento da própria definição dos direi-

tos de liberdade que um componente do regime destes direitos).

A segunda ideia é a de que, nestes termos, a eventual afectação

negativa ou desvantajosa dos direitos fundamentais sociais deve ser dog-

maticamente tratada por aquilo que é, ou seja, verdadeira restrição a

direitos fundamentais e, assim, ser integralmente testada em função da

observância dos limites constitucionais aplicáveis às restrições, ainda

que com as especificidades atinentes à salvaguarda da reserva do finan-

ceiramente possível própria deste tipo de direitos.

*

* *

O sexto e último ciipítulo foi escrito em 1995 para a colectânea de

comemoração dos vinte anos da Constituição organizada pelo Professor

Page 7: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

14 - Direitos Fundamentais: Trunfos Contra a Maioria Apresentação

IS

JORGE MIRÃ! 0A e discute a chamada renúncia aos direitos fundamentais,

sustentando Utria posição de admissibilidade de pritnafacie. Sendo o único

texto aqui jbliçado já com alguns anos, deve ser lido com algumas reser-

vas: alguiis tópicos nele abordados ou ainda não aí abordados, como a

garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, a reserva de lei

ou a distinçO entre restrições e intervenções restritivas, foram objecto de

posterior análise e aprofundamento; normas jurídicas expressamente refe-

ridas, como o art. 34? da Constituição, legislação do contencioso admi-nistrativo, de protecção de dados pessoais ou da nacionalidade, foram entre-

tanto objecto de alterações significativas; foi constitucionalmente consagrado,

e com inflgpcia directa no tema tratado, o direito fundamental ao desen-

volvimento da personalidade; várias obras citadas tiveram novas edições.

No entanto, parece-nos justificar-se a republicação e, desde logo, por-

que este texto continua a ser, quanto é de nosso conhecimento, a única

abordagem desenvolvida do tema da renúncia a direitos fundamentais;

em segundo lugar, porque é especialmente adequado no contexto deste

livro, dado que todo o tratamento que nele se faz dos problemas susci-

tados pela renúncia decorre de uma concepção de dignidade da pessoa

humana baseada na livre autodeterminação do indivíduo face ao Estado

que é também o mesmo fundamento em que assenta a teoria dos direi-

tos fundamentais como trunfos.

A renúncia de que aqui se fala é perspectivada exclusivamente no

plano das relações indivíduo/Estado, pelo que fica a faltar o tratamento

do problema especificamente no plano das relações entre particulares. Em

todo o casO, e tendo em conta o que se diz no capítulo II acerca da

eficácia dó§ direitos fundamentais nas relações entre particulares, resulta

claro que também aqui nos orientaremos pela atribuição da maior rele-

vância à autonomia individual, temperada, embora, pelas necessidades de

protecção estatal dos direitos fundamentais. Porém, se já de si esta teo-

ria dos deveres de protecção determina alguma parcimónia na eventual

imposiçãmde limitações à liberdade individual em nome dos direitos

fundamentais, da referida concepção da dignidade da pessoa humana

decorre, agora no plano c'a disponibilidade individual sobre os próprios

direitos, ainda uma maior contenção quanto à admissibilidade, em Estado de Direito, de uma actuação paternalista do Estado que se arrogue o

dever de proteger o indivíduo contra si próprio.

Uma última nota quanto ao sistema de notas de rodapé e de citação.

Os seis capítulos do livro são, na sua origem, textos autónomos e, nesse

sentido, conservam a autonomia sistemática originária. Assim, a nume-

ração das notas de rodapé é reactivada em cada capítulo e as referências

bibliográficas obedecem ao mesmo critério. Isso significa que, em cada

capítulo, na primeira vez a obra é citada com referência bibliográfica

completa e, nas citações seguintes, com referência abreviada Tal pennitirá

que, para aceder à referência completa de qualquer obra, o leitor só

necessite de buscar a sua primeira citação no capítulo em causa.

Page 8: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

CAPÍTULO 1

DIREITOS COMO TRUNFOS CONTRA A MAIORIA

SENTIDO E ALCANCE DA VOCAÇÃO CONTRAMAIORITÁRIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

NO ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁTICO

Sumário: 1 - Estado de Direi:?,, democracia e direitos fundamentais; 11 - Dignidade da pessoa humana e direitos como zntnfos; III - Sentido e alcance dos direitos

fundamentais em Estado de Direito democrático; IV - Direitos como trunfos .e questões de competência V - Direitos como trunfos. e reserva geral unanente de ponderação; VI - Direitos como trunfos e garantia dos direitos fundatuentais

enquanto problema constitucional.

1 - ESTADO DE DIREITO, DEMOCRACIA E DIREITOS FUNDAMENTAIS

Propomo-nos fazer aqui urna reflexãts,gbre as relações complexas entre Estado de Djettg, democraëia e direitos fundamentais, recorrendo basicamente à ideiai &Ï1nTria d-eiiiN segundo a quflTdiH'dfriiS

um trunlo num

desartas: A carta de trunfo prevalece sobre as outras, mesmo sobre as de valor facial mais elevado; a força da qualidade de trunfo, que lhe é reconhecida segundo as regras do jogo, bate a força do número, da quantidade, das cartas dos outros naipes.

Aplicada ao sistema jurídico de Estado de Direito, e tendo em conta que o outro "jogador" é o Estado, já que, primariamente, os direitos fundamentais são posições jurídicas indk'iduais face ao Estado, ter um direito fundamental significiirá, então, ter um trunfo contra o Estado, contra o Governo democraticamente legitimado, o que, em regime pol!-

2

Í

Page 9: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

IS Direitos F,oida,ne,uais: Trunfos Contra a Maioria - Direitos como trunfos contra a maioria 19

tico baseado na regra da maioria, deve significar, a final, que ter um

direito fundamental éter umjpinfQ.contraamaioria, mesmo quando esta

decide segundo os procedimentos democráticos itiituídos (I). Aima-

gern dos direitos fundamentais como trqnfos remete, nesse sentido, para

rnaopção - dir-se ia in&uperavel -

entre os direitos fundamentais e o poder democrático, entre o Estado de

eitoWedemocracia -

1. A concepção mais comum não é, porém, essa, mas antes a que

sustenta a integração ou assimilação entre direitos fundamentais e demo-

cracia no conceito de Estado de Direito democrático (3) ou num conceito

de democracia adjectivada que integre consubstancialmente a presença

e a garantia dos direitos fundamentais (4),

Cí St,wnco Niwo, Etica y Derechos Humanos, Buenos Aires, 1984, pág. 127. Partindo do princípio que o Estado de Direito é o Estado limitado e vin-

culado juridicamente à garantia e promoção dos direitos fundamentais (cl'. J. NovAis, Con-tributo para Etnia Teoria do Estado de Direito, Coimbra, 1987, passin.).

É a solução acolhida por várias Constituições, entre as quais a portuguesa (art. 2.'), a espanhola (art. 1.') ou a brasileira (art. 17) e que encontra grande eco dou-trinário mesmo quando a Constituição, como sucede na Alemanha, não consagra expies-samente o conceito de Estado de Direito democrático. Veja-se, assim, HANS KLEIN, Die (Jrundrechte lo' de,nokratischen Staat, Stuttgart. 1972, págs. 9 ss., com profusas remis-sões para outros autores; DlnLEv MERTEN,.."Dcmokratischer Rcchtssraat und Verias-sungsgerichtsbarkeit" in DITEI, 1980, págs. 773 ss.; KLAus GRIMMER, De,nokratie tind Grundrechte, Berlin, 1980. págs. 179 ss. e 298 ss-; Hesse, Gruit&üge des Verfasswigs-recht der Bundesrepublik Deutschland, Heidelberg, 1991, págs- 110 ss-; BOcKENFOR0C, Estudios sobre ei Estado de Derecho y la Democracia (trad.), Madrid, 2000, págs. 92 ss:

Esta última é a posição dominante na linguagem política corrente do mundo ocidental e é, basicamente, a posição adoptada pelos autores que, propugnando uma concepção deliberativa de democracia (ci., infra, nota 13), reconhecem - com diferentes matizes - o fundamento material dos direitos fundamentais na sua qualidade de con-dições da democracia. E. desde logo, essa também a posição sustentada pelo próprio criador da imagem dos direitos como tninfos, DWORKIN (cf. Freedonz's Law, Cambridge. Mass., 1996, págs. lS ss. e 17; Sovereign Virtue, Cambridge, Mass-, 2000, págs. 353 s. e 362 ss-; Justice in Robes. Cmbridge, 4ass., 2006, págs- 133 ss-). Em perspectiva difè-renciada, mas convergente, é também a posição dos autores que defendem a existência de uma dimensão substancial da democracia (os direitos fundamentais) que acresce à dimen-são formal ou procedimental (a regra da maioria); é o caso de LUIGI FERRAJOU, Los Fun-damentos de los Derechos Fundanientales, Madrid, 2-' ed-, 2005. passi?n.

Esta tese da integração fundamenta-se na existência de uma cone-

xão interna (HABERMAS (5)) e uma força de atracção recíproca entre os

dois pólos, Estado de Direito e democracia, ou, se se quiser considerar

os direitos fundamentais mais directamente associados aos dois concei-

tos, entre a liberdade pessoal (a igual liberdade pessoal) e a liberdade política (a igual liberdade política) (6); esta força de atracção é norma-

tiva, mas é também, de resto, empiricamente verificável, pois que,

quando se consideram as formas políticas do tempo presente, só se

encontra verdadeiro Estado de Direito onde também exista democracia.

O Estado de Direito (direitos fundamentais) exige a democracia,

como consequência imposta pelo reconhecimento do princípio da igual

dignidade de todas as pessoas que estrutura o edifício do moderno

Estado de Direito. Por sua vez, do princípio da dignidade da pessoa

humana decorrem cooriginariarnente (7) exigências de igualdade e liber-

dade individual que conduzem, de forma directa e necessária, à adopção

da regra da maioria como princípio elementar de funcionamento do sis-

tema político, pelo que, à luz dessa construção, se não houver democracia

não há verdadeiro Estado de Direito.

a) Desde logo, sem garantia dos direitos políticos (só plenamente

realizáveis em democracia) o sentido actual de dignidade da pessoa humana

ficaria amputado de uma sua dimensão essencial, a da consideração de

todas as pessoas como livres c iguais e a da consequente igual possibili-

Cf. Facticidad y validez, trad., Madrid, 2000, págs. 164 ss-; La inciusicín dei otre,, trad., Barcelona, 1999, págs. 252 ss.

Ci. AMY Guii.w"w, "Rawis on lhe Relationship betwecn Liberalism and Demo-cracy" in FREEMAN (org.), 77w Cambridge Companion to Rawls, Cambridge, 2003, pág. 169.

Sobre esta cooriginariedade e relação de peso entre as liberdades associadas à autonomia pública (as liberdades dos antigos de BENJAMIN C0NSTANT) e as liberdades da autonomia privada (liberdades dos modernos), ci. HABERMAS, Facttcidad y validez, cit., págs. 168 e 184 ss-; La inclusián dei otto, cit., págs. 254 ss.; e a controvérsia HABERMAS/RAWLS reunida em Debate sobre ei Liberalismo Político, Barcelona, 2000, págs. 117 ss. [RAwI.s}; veja-se, ainda, J. WALDRON, Derecho y desacuerdos, Madrid, 2005, trad. de Law and.Disagreernent, Oxford, 1999, págs. 186 5.; AMY OIJTMANN. "Rawls.,.", cit., pág. 173; J. C. BAVÓN. "Democracia y derechos: problemas de funda-mentación dei constitucionalismo" in Constitución y Derechos Fundamentales, Madrid. 2004, pág. 77, n- 23.

Page 10: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

20 Direitos Funejaoie,uais: Trunfos Contra a Maioria - Direitos conto trunfos contra a maioria 21

dade da sua livre participação na tomada de decisões da comunidade. Por outro lado, num quadro não democrático a separação de poderes tende a desaparecer e, com concentração dos poderes do Estado, os direitos indi-viduais sofrem uma correspondente e inevitável desvalorização. Por último, e no mesmo sentido da íntima atracção entre os dois princípios, sem a legitimação democrática que lhe é conferida pela eleição livre e universal o poder político fica privado da legitimidade que o habilita à intervenção social de promoção das condições fácticas da liberdade individual.

b) A i-eferida integração resulta ainda, num movimento de sentido inverso, do facto de também a democracia exigir o Estado de Direito (direitos fundamentais). Sem um ambiente e uma cultura de direitos fun-damentais não há verdadeira democracia: os direitos fundamentais são condição do regular funcionamento da democracia. Sem a possibili-dade de exercício dos direitos, designadamente os políticos, não se pode garantir a participação de todos, com o que a regra da maioria falha a racionalidade que a justifica; se se priva parte da população de direitos, se não se lhe reconhece igual consideração no processo de deliberação, se se inibe ou não se assegura a sua igual presença na governação, se se diminui o seu estatuto e não se garante a todos uma esfera de igual liberdade de escolha com efectividade e autonomia, a vida democrática não é livre nem igualitária e, logo, o poder não é democrático.

2. Em contrapartida, e pese embora todo este conjunto objectivo, mas quase idiico, de confluência, a harmonia entre democracia e Estado de Direito não é um dado: a ideia da colisão, ou pelo menos, da tensão entre os dois princípios também está sempre presente e, mais que isso,

parece ser ineliminável (8).

(8) É desta ambivalência que ALEXY procura dar conta quando simuItaneamente qua- lifica os direitos fundamentais como sendo profundamente democrálicoC e 'pmfixndamente anti-democráticos". Cf, ALEXY, "Los derechos fundamentales en ei Estado constitucional democratico' ii, Micuri, CARBONELL (ed.), Neoconstitucionalisnw(s), Madrid, 2005, pág. 38.

Cf., também, J. P. MIJLLER, 'Einleitung zu den Grundrechten" in Konunenlar vir Bwi-

desverfassung..., Basel, 1987, págs. 28 ss.; BÕcKENFORDE, Estudios..., cut., págs. 95 ss.

e 118 ss.; GoMes CAN0TIUIO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 2003, págs. 97 ss.; J. NOVAIS, Contributo,.., cir,, págs. 221 ss. e n. 523.

a) Essa tensão verifica-se porque a maioria no poder (mesmo pres-supondo que tal poder teve origem e legitimação democráticas) pode ame-açar os direitos fundamentais. Pode ameaçá-los de forma sistemática e até teorizar essa atitude de hostilidade ou, no mínimo, de funcionaliza-çãafinstrumentalização dos direitos fundamentais. Foi o que ocorreu no Estado autocrático do século XX (de matriz conservadora ou de matriz anti-capitalista (9), nos momentos em que o regime invocava o apoio maio-ritário da população para proceder a violações sistemáticas dos direitos fundamentais) e ocorre no actua] Estado islâmico. Mas, mesmo em Estado democrático, a pressão do poder político sobre os direitos fundamentais ou a possibilidade da sua afectação pontual estão sempre presentes, a partir do momento em que tem de se reconhecer, hoje, que os procedimentos demo-cráticos não garantem uma qualquer identidade natural entre lei e justiça e que, mesmo quando a lei se adequa às exigências materiais da Consti-tuição de Estado de Direito, os actos da Administração e do poder judicial podem constituir intervenções restritivas ilícitas nos direitos fundamentais,

La) Por outro lado, e ilustrando igualmente, embora no sentido inverso, a potencial oposição entre os dois princípios, também a força de resistência dos direitos fundamentais pode inibir um pleno exercício do poder democrático e fazê-lo tão mais efectivamente quanto, em primeiro lugar, um poder não eleito - o poder judicial - tenha, em nome da sal-vaguarda dos direitos fundamentais, a possibilidade constitucionalmente garantida de condicionar, invalidar ou impedir a execução das medidas decididas pelos órgãos legitimamente eleitos pan governar. E pode ini-bir esse poder democrático tanto mais quanto, em segundo lugar (10), a indeterminação ou carácter principial de grande parte das normas cons-titucionais de direitos fundamentais se traduza, tendencialmente, em alar-gamento objectivo da margem de decisão do juiz constitucional relati-vamente ao legislador democrático, já que este fica obrigado a observar aquelas normas na necessária, mas incerta, interpretação/concretização que delas vier a fazer o juiz constitucional.

(9) Cf. J. NovAis, Contributo..., cit., págs. 130 55. e 167 ss. (lO) CL assim, J. C. BAYÓN, 'Democracia y derechos,,,", cit,, págs. 71 s.

- - -

Page 11: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

22 Direitos Fund,nnentais: Trunfos Contra a Maioria

/ - Direitos corno trunfos contra a maioria 23

Não raras vezes acontecerá, então, que a minoria derrotada no Par-

lamento venha, a posteriori, a obter no Tribunal Constitucional, ou no

órgão judicial responsável pela jurisdição constitucional, vencimento sobre a maioria democraticamente eleita, o que, obviamente, constitui a mais directa contestação institucional ao princípio da maioria.

c) Por último, mesmo que a prevalência do princípio do Estado de Direito sobre o princípio democrático não se manifeste tão ostensi-vamente, há sempre uma compressão ou privação da margem de livre decisão do legislador democrático, da maioria, que resulta, por definição, da existência de uma Constituição rígida que lhe coloca limites intrans-poníveis. Nesse sentido, os direitos fundamentais, enquanto núcleo substantivo que delimita uma área de competência negativa (fl) que o

legislador democrático não pode invadir, ou só pode invadir condicio-nada e excepcionalmente, assumem uma natural vocação contramaiori-tária ou até um carácter de algum modo denegridor da democracia (12).

3. É precisamente sobre esta dimensão de tensão entre Estado de Direito (direitos fundamentais) e democracia ou, como por vezes vem designadas entre constitucionalismo e democracia, que continua no cen-tro do debate político e filosófico do nosso tempo, que aqui nos pre- tendemos debruçar mais de perto.

Numa sociedade pluralista e aberta, a questão das relações entre Estado de Direito e democracia, independentemente das aparências de consenso induzidas pela progressiva aceitação da associaçãofcomple-mentaiidade entre os dois princípios, nunca está encerrada. Ela renasce, aberta ou implicitamente, em cada nova polémica em que a liberdade individual se confronte com os interesses e a decisão da maioria (veja-se, no plano político, a controvérsia que atravessou a Europa a propósito do

(II) Cf. J. NOVAIS. As Restrições aos Direitps Fundamentais não Expressainente Autorizadas pela Constituição, Coimbra. 2003, pág. 72, n. 87, e pág. 606.

(12) Cf.. a propósito da teoria rawlsiana da justiça, JosnuA CORCN. "For a Demo-cralic Socicty" à! FREEMAN (org.), lhe Canbridge Conipanion to Rawis, cit., págs. 121 ss.;

AMY GUTMANN. "Rawis on Lhe Relationship between Liberalisni and Democracy", cit.,

págs- 168 55.

episódio das caricaturas) e ocupa perenemente o debate jurídico, cons-titucional e de filosofia política. De uma ou outra forma, a competição entre liberalismo, comunitarismo, republicanismo, o debate sobre a natu-reza da democracia (agregativa, substancialista, procedimental, delibe-rativa (13)), o ressurgimento da controvérsia acercã da justiça constitu-cional ou as interrogações e inquietudes políticas despertadas pelo difícil relacionamento entre princípios do Estado de Direito e as novas reali-dades inspiradas no fundamentalismo islâmico remetem, de forma con-tinuadamente renovada, para tal problemática.

Sucede que muitas vezes, mesmo quando essa tensão é reconhecida, o protagonismo da potencial oposição ao princípio democrático não é directamente atribuído aos direitos fundamentais. Normalmente, fala-se, a propósito, em dfficuldade ou objecção contramaioritária, como ori-ginariamente lhe chamou Btcxa (14), mas para designar genericamente os constrangimentos que, não tanto os direitos fundamentais, mas mais a Constituição rígida e, sobretudo, a jurisdição constitucional impõem à margem de livre decisão da maioria política (15). Porém, por detrás da discussão sobre a natureza contramaioritária dessas instituições está a incindível ligação entre Constituição e direitos fundamentais; é que, seja na sua origem histórica, seja na sua reconstrução teorética, a racionali-dade do pacto fundador do Estado de Direito ou do contrato social em

Para uma visão geral. cf. I-IABEItMAS. Facticidad y validez, cit.; La inciusiótz dei otro, cit.. págs. 231 ss.; RAwLS. Politicai Liberalism, New York, 1993; 'Public Reason Revisited' in U. Chicago L R., 64, 1997. págs. 765 ss.; SAN'nAGo NIN0, La Constitución de la Democracia Deliberativa, Barcelona, 1997; B0I4MAN/Rcno (orgs.), Deliberative Democracy, Cambridge, Mass., 1997; JOSMuA CoHEN, "For a Democratic Society", cit,, págs. 86 55.: J0N ElsTezt (org.), La democracia deliberativa, trad., Barcelona, 2001; H. KoWR. SLYE (orgs3, Democracia deliberativa y den'chos humanos, uad., Barcelona, 2004. Em português. cí GOMES CANUTILHO, Direito Constitucional.... cit., págs. 1409 ss.; JÓNA-TAS MACHADO. Libeizlade de Expressão, Coimbra, 2002, págs. 135 ss.: M. NoGuu DE Bgrro, A Constituição Constituinte, Coimbra, 2000. págs. 192 ss. e 365 ss.; e, sobretudo, C. Sou-LA Nro, Teoria Constitucional e Democracia Deliberativa. Rio de Janeiro. 2006.

CL ALEXANDER BICICEL The Least Dangero:ts Branch, 2.' ed.. Vale. New Haven, 1986 (1.' cd,, 1962). págs. 16 ss.

(IS) Cí. L. PRino SANCHIS. Justicia Constitucional y Derechos Fundamnentales, Madrid, 2003, págs. 137 55.; J. C. BAYÓN. "Derechos, democracia y Constitución" in Neo-constitucionalismo(s), cit., págs. 213 s.

Page 12: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

24 Direitos Fw,danienlais: Trunfos contra a Ma,oria

que assenta o Estado constitucional - e donde resultam as instituições em causa - está intimamente associada à preservação dos direitos do

homem e sua garantia enquanto direitos fundamentais; o pacto social só

cobra sentido enquanto compromisso de as instituições estatais garanti-

rem aos indivíduos, através desse pacto, a preservação dos seus direitos

naturais/fundamentais (16).

a) A nossa abordagem situa-se, precisamente, nesse plano - o do

sentido e alcance contramaioritário dos direitos fundamentais - e faz-se de uma perspectiva jurídico-constitucional, o que significa que nos cen-

tramos nas implicações dogmáticas que aquela contraposição induz na

protecção dos direitos fundamentais enquanto garantias jurídicas. Ora, quanto a nós, e de uma perspectiva jurídico-constitucional (admite-se que

no domínio da filosofia política as necessidades específicas da discussão

apontem noutro sentido (ti)), a questão da relação Estado de Direito

(direitos fundamentais) e democracia é mais adequadamente enquadrada

através de uma técnica construtiva de separação, baseada no apelo à

especificidade de conteúdo que cada um daqueles conceitos apresenta.

Ou seja, consideramos vantajoso colocar a tónica do conceito de

Estado de Direito na função garantista individual (a da garantia dos

direitos fundamentais) e, em contrapartida, atribuir à regra da maioria o

papel principal no conceito de democracia, o que significa, desde logo,

favorecer a adopção de uma tese orientada pela perspectiva da tensão

potencial entre os dois princípios. E consideramos essa via preferível por-que, como se verá, partindo da compreensão do que há de específico em

('6) Cf,, por último, KLAUS STERN, 'Die Idee der Menschen- und Grundrechte" in MErrEN/PAP1ER (orgs.). Handbuch der Grundrechie, 1, Heidelberg, 2004. págs. 3 ss

e 26 ss.; TUOMA5 WORTENBCRGER, 'Von der Aufkhtrung zum Vormürz', ibidein,

págs. 49 ss. e 64 ss. (17) Mas, mesmo aí, não deixa de se ouvir a crítica segundo a qual os integra-

cionistos procurauiam, erroneamente, a superação do problema normativo, constituído pelo conflito latente entre Estado de Direito e democracia, através de uma pretensa solução semântica, isto é, no caso, a da adjectivação da democracia. Assim, ANNÃ PIN-tORE, "Dere-

chos insaciables" in LuiGi FERRAJOLI, Los Fundamentos de los Derechos Fundamenta-les, cit.. pá5. 250; em sentido afim, MIcHCL.ANGELO HovERo, "Democracia y derechos rundentales» itt Isonomia, 16, 2002, págs. 28 ss,; J. C. BAYÕN. "Democracia y dere-chos.,.", cit.. págs. 76 ss.

Cap. 1 - Direitos copio tu tifos contra a maioria -- 25

cada um dos conceitos é possível um mais adequado tratamento dos

casos (difíceis) em que a liberdade individual contende com os senti-

mentos ou a vontade, presumida ou real, da maioria. Isso não significa,

porém, diga-se desde já, que esse conflito deva ser resolvido a priori no

sentido da prevalência do interesse ligado à liberdade individual. É que, para nós, e de um ponto de vista jurídico-constitucional,

mais do que atingir a pureza ou a integridade sistemática dos conceitos

ou pretender construir um ideal normativo de democracia, o que nos

importa é garantir o aperfeiçoamento, racionalidade, objectividade e

adequação dos mecanismos e técnicas de controlo de constitucionali-

dade das restrições e intervenções restritivas que afectam os direitos

fundamentais em Estado de Direito. Esse é o problema do jurista que

labora no inundo dos direitos fundamentais e é em funçãodesse problema

prático que se justificam as presentes considerações teóricas.

Ora, como vimos defendendo (18 ), no mundo dos direitos funda-

mentais são vantajosas as construções que evidenciem, da forma mais

transparente possível, os conflitos de interesses, valores e princípios que

subjazem a todos os casos difíceis de direitos fundamentais. É que o

reconhecimento do conflito é o primeiro pressuposto da sua resolução

constitucionalmente adequada, de forma intersubjectivamente controlá-

vel segundo os princípios constitucionais, com recurso inevitável à meto-

dologia daponderação de bens. Neste mesmo sentido são de rejeitar as construções que, de algum

modo, se traduzem objectivamente na ocultação semântica ou na neutra-

lização teortica do conflito (conflito entre interesse de liberdade e interesse

que justifica a restrição do direito fundamental), como sejam as estratégias

fundadas na pretensa distinção conceptual entre restrições e limites imanentes

dos direitos fundamentais, entre restrições e conformação/hannoniza-

ção/condicionamento/regulamentação de direitos fundamentais ou as cons-

truções orientadas à pretensa superação metódica do conflito, como sejam

as da delimitação apriorística e ultra-restritiva do âmbito de protecção do

direito fundamental, da delimitação do seu pretenso conteúdo essencial

(IS) Cf. J. NovAis. As Restrições aos Direitos Fundamentais... cit.. nzaxlnIe

págs. 354 ss., 528 ss., 542 ss. e 569 ss.

Page 13: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

26 Direitos Fundamentais: Trunfos Contra a Maioria / - Direitos como trunfos contra a maioria - 27

enquanto âmbito de garantia efectivo distinto do âmbito potencial de pro-tecção ou, mesmo, do recurso ao chamado princípio da concordância prá-

tica quando considerado como alternativa metódica à ponderação de bens.

Qualquer delas representa uma diferente forma de jurisprudência dos con-

ceitos que tem como resultado objectivo comum a ocultação do conflito de

interesses que preside efectivamente à restrição e o alargamento da dis-

cricionariedade do aplicador/intérprete, com a consequente falta de aces-

sibilidade à crítica e controlabilidade públicas da decisão.

É, pois, seguindo uma estratégia de evidenciação que recorremos à

metáfora dos direitos fundamentais como trunfos, por entendermos que ela constitui uma referência capaz de orientar adequadamente o opera-dor jurídico que se movimenta no mundo das restrições a direitos fun-

damentais ocorridas em Estado de Direito e se defronta aí, necessaria-

mente, com as coordenadas complexas do conflito entre democracia e

direitos fundamentais.

b) Atente-se, no entanto, que o reconhecimento da separação ou da

tensão entre os dois princípios, o democrático e o de Estado de Direito,

pode conduzir a uma solução de sentido contrário ou, pelo menos, de sen-

tido diverso da solução que aqui ensaiamos e que vem associada à metá-

fora dos direitos como trunfos. Pode, em alternativa, alguém reconhe-cer a tensão, partir mesmo da necessidade de protecção dos direitos

(partir de uma teoria baseada em direitos (19)), mas atribuir, para a

(19) Cf. WALDRON, 'A Right-Based Critique of ConstiLutional Rights' iii Oxford

Journal o! Lega! Studies, 13. 1, 1993, págs. 18 ss., depois reelaborado e reproduzido em Law and Disagreemeni, trad. cit., págs. 251 ss.

Note-se, todavia, que a posição de WALDRON é algo especial. Ele reconhece a sepa-ração entre direitos de liberdade pessoal e direito a igual participação, mas sustenta a exis-tõncia de uma congruência natural entre democracia e direitos fundamentais (op. cit.. pág. 337), procedendo a uma reconstrução que elimina teoreticamente o conflito ou a tensão entre direitos fundamentais e princípio democrático. É que para WALDRON (op.

cii., págs. 295 55.) nunca há verdadeiramente conflito entre a deciso da maioria e os direi-tos fundamentais: o que pode existir e, de facto, segundo ele, existe sempre, é um desa-cordo sobre o conteúdo e o alcance dos direitos fundamentais. Então, a maioria enten-derá que não está a violar os direitos, porque estes não Lerão o alcance ou o conteúdo que a minoria invoca, enquanto que esta pensará exactamente o inverso. Como, na teoria da autoridade que propõe, a arbitragem desse desacordo cabe à deliberação da

consecução desse objectivo, prioridade à democracia, aos direitos de

participação e ao procedimento maioritário. Pode, no mesmo sentido,

reconhecer-se o momento de tensão, mas, em seguida, desqualificar ou

até recusar a actividade judicial de controlo das decisões políticas da

maioria feita em nome da garantia dos direitos fundamentais. Ou, ainda,

reconhecer a tensão, mas apenas admitir a judicial review em termos

excepcionais, isto é, apenas naqueles casos de protecção dos direitos

funcional e especialmente associados à garantia da regularidade dos

procedimentos democráticos ou, quando muito, que constituam condições

da qualidade da vida democrática (20),

c) Da nossa parte, vamos, nos dois pontos seguintes, desenvolver

a estratégia de evidenciação do conflito entre princípio do Estado de

Direito e princípio democrático esclarecido à luz da concepção dos

direitos fundamentais como trunfos contra a maioria, em primeiro lugar

como exigência material do reconhecimento da dignidade da pessoa

representação popular segundo a regra da maioria, o conflito nunca se chega a verifi-car. Nestes termos puramente teoréticos, a maioria é estruturalmente incapa2f de violar os direitos fundamentais: ou entende que não houve violação porque o direito não tem o conteúdo que a minoria lhe atribui e mantém, consequentemente, a decisão de restri-ção (e, então, isso significa que foi o próprio resultado da arbitragem a determinar não existir violação) ou redelibera no sentido da não mstnção (e, logo, a violação não se chega a concretizar). Assim, a maioria nunca viola os direitos fundamentais, quando muito, viola aquilo que a minoria (ou uma elite jurisdicional) diz que são os direitos funda-mentais, discrepância esta que acaba resolvida pela regra da maioria, já que o malori-larismo participazivo é, precisamente, um princípio de autoridade que guia a tomada de decisões sociais nas circunstâncias de desacordo sobre o conteúdo e alcance dos direi-tos (op. ci:.. pág. 295).

(2(3) Vejam-se, nesse sentido, as posturas direrenciadas, mas convergentes de ELv (Democracv and Distrusi, Cambridge. Mass.. [980) e HAnERMA5 (Facticidad. cit., págs. 311 ss.) e a mais radical de J. WALDRON (Derecho y desacuerdos, cit., págs. 18 ss. e 251 ss.). Sobre esta posição de HABCRMA5. cf. PRIErO SANCHI5, Jus-

uda Constitucional..-. cit., págs. 158 ss., e "Tribunal Constitucional e positivismo jurf-

dico" in Doxa, 23, 8. 2000. págs. 164 ss.; sobre WALDRON. cf. 1. C. BAvÕN, "Dere-chos, democracia y Constitución", cit., págs. 216 ss.; "Democracia y derechos...", cit.. págs. 70 ss.; R. GARGARELLA/J. L. MARTI, 'La filosofia dei derecho de Jeremy Waldron: convivir entre desacuerdos", apresentação a J. WALDRON. Derecho y desa-

cuerdos. cit.

Page 14: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

28 Direitos Fundamentais: Trunfos_Contra a Maioria / - Direitos como trunfos contra a maioria - 29

humana e, em segundo lugar, como consequência da consagração cons-titucional da indisponibilidade dos direitos fundamentais e da corres-ponderste vinculação das entidades públicas.

II— DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITOS COMO TRUNFOS

1. A metáfora dos trunfos tem a sua cunhagem em Dw0RKIN (21),

para quem direito como trunfo significa que as posições jurídicas indi-viduais que assentam no direito natural a igual consideração e respeito que o Estado deve a cada indivíduo funcionam como trunfos contra

preferências externas, designadamente contra qualquer pretensão estatal em impor ao indivíduo restrições da sua liberdade em nome de con-cepções de vida que não são as suas e que, por qua'quer razão, o Estado considere como merecedoras de superior consideração. Neste sentido se fala em direitos como trunfos que "entrincheiram' (22) os bens de Liber-dade e autonomia individual contra decisões políticas, mesmo que estas se pretendam justificar na necessidade de limitação da liberdade individual em nome da obtenção do bem da comunidade como um todo ou de uma concepção particular da vida boa.

Note-se que, na sua formulação originária ("rights are best unders-tood as trumps over some background justiflcation for political decisions that states a goal for the community as a whole), a metáfora dos trunfos

inscreve-se no ambiente teórico da distinção dworkiniana entre principies

e policies, pelo que surge aí estilizada segundo os termos dessa distinção: o Estado não poderia, em nome da necessidade de prosseguir utilidades de bem-estar ou fins colectivos do domínio económico, social ou político

(policies), impor aos indivíduos medidas políticas orientadas a fins de uti-lidade social que resultassem em sacrifício dos direitos individuais funda-mentais emergentes de exigências de justiça ou moralidade (principies).

Cf. Dw0RKIN, TakinS Riglus Seriously, London, 1977, págs. xi. 194 e 269;

"Rights as trumps" in J. WALDRON (orgj. Theories of Rights. Oxford, 1984. págs. 153 ss

CL SANTIAGO Nino, Ezica y Derechos Humanos, Buenos Aires, 1984,

págs. 148 ss.

2. Porém, a impossibilidade de sustentar uma distinção dogmática

operativa e talhante entre rightslprincipies e policies, dado que, em Estado

de Direito, a generalidade das medidas políticas pode, sem grande esforço, ser invariavelmente referenciada à protecção de direitos fundamentais, aconselha, em nosso entender, a explorar numa outra direcção o desen-volvimento da metáfora dos trunfos, que, de resto, não viria a ser reto-mada explicitâmente pelo próprio DWORKIN. Ou seja, as virtualidades da metáfora devem ser desenvolvidas segundo uma perspectiva não cate-

goria!, explorando o sentido da indisponibilidade dos direitos funda-mentais por parte da maioria, não em torno dessa pretensa possibilidade de contraposição estanque - direitos fundamentais contra fins colectivos de bem comum -, mas, nos termos que a seguir serão desenvolvidos, enquanto exigência contramaioritária imposta pela necessária observân-cia jurídica do princípio da igual dignidade da pessoa humana.

a) Seguindo essa orientação, diríamos que, apesar da novidade da designação, a ideia dos direitos como trunfos acaba por ter uma ori-gem e fundamento que, em termos substanciais, pode ser buscada numa linha de continuidade doutrinária e institucional profundamente enraizada na história do Estado constitucional.

Doutrinariamente, essa linhagem vem do iluminismo e da sua con-cepção dos direitos fundamentais individuais como algo de natural, pré e supra-estatal; encontra-se posteriormente na reflexão sobre a natureza do Estado de Direito liberal, designadamente no chamado princípio da repartição ou distribuição de SdHMIn, segundo o qual, em Estado de Direito, a liberdade é, em princípio, ilimitada e a possibilidade de o Estado nela intervir é, em princípio, limitada; está na defesa da priori-dade das liberdades de base (RAwLs), na concepção dos direitos funda-mentais como armaduras (SCHAIJER), na definição de direitos funda-mentais como algo tão importante que não pode ser deixado às decisões da maioria parlamentar simples (ALEXY).

Por sua vez, no plano institucional, encontra-se reflectida: na pró-pria ideia de Constituição e de Declarações de Direitos; na prática

norte-americana da judicial review; na descoberta weinzariana das garan-tias institucionais; na defesa e consagração, pelos novos constituciona-lismos, do direito ao desenvolvimento da personalidade entendido como

Page 15: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

30 Direitos Fundamentais: Trunfos Contra a Maioria / - Direitos copio trunfos contra a maioria 31

liberdade gemi de acção jusfundamentalmente protegida; na revitalização da jurisdição constitucional com o ressurgirnento do constitucionalismo do segundo PÓS-guerra; nos documentos e jurisdições internacionais de defesa e garantia dos direitos contra os Estados nacionais.

b) Esta linhagem tem como princípio unificador a ideia de indis-ponibilidade dos direitos fundamentais, de vinculação jurídica do poder político à observância dos direitos, mesmo quando esse poder é demo-craticamente legitimado e orientado à prossecução do bem comum. E essa ideia tem na sua base, em suma e numa síntese actualizadora, o reconhecimento a cada titular de direitos fundamentais de uma dignidade como pessoa que fundamenta a delimitação de uma esfera de autonomia e liberdade individuais de que o Poder não dispõe.

Numa sua concepção compatível com o facto do pluralismo próprio

de uma sociedade aberta, a dignidade da pessoa humana significa a insusceptibilidade de tratamento da pessoa como mero objecto do poder estatal, como instrumentalização ou coisificação da pessoa nas mãos do Estado (veja-se a concepção jurídica da dignidade da pessoa humana ligada à teoria do objecto (23)). Dessa concepção kantiana de dignidade

- que pode constituir o núcleo indiscutível de um princípio juridicamente operativo e generalizável de dignidade da pessoa humana - resulta, para cada indivíduo, uma margem de autonomia e liberdade pessoal que o poder de Estado tem de respeitar.

Dessa forma, e para lá das diferentes fundamentações filosóficas ou políticas - que variam de época para época -, podemos, numa recons-trução feita segundo os olhos de hoje, identificar o ponto firme do con- senso convivial, ainda que aparentemente mínimo, na afirmação de um Estado fundado na igual dignidade da pessoa humana, com a conse- quente consagração constitucional desse princípio: todas as pessoas têm igual dignidade, pelo que têm direito a ser tratadas com igual conside-ração e respeito (DwoRxtN) e com direito a uma igual liberdade.

O princípio da dignidade da pessoa humana acaba, assim, por cons-tituir o fundamento da concepção dos direitos como trunfos, po'rque é

(") Cl'. DOi "Der Grundrechtssatz von der Menschenwürde' in AÔR, 81.

1956, págs. 117 ss. e 152.

dessa igual dignidade de todos que resulta o direito de cada um conformar autonomamente a existência segundo as suas próprias concepções e pla-nos de vida que têm, à luz do Estado de Direito fundado na dignidade da pessoa humana, o mesmo valor de quaisquer outras concepções ou planos de vida, independentemente da maior ou menor adesão social que concitem. Daí resulta a inadmissibilidade de a maioria política, mesmo quando formada democraticamente, impor ao indivíduo concepções ou planos de vida com que ele não concorde, por mais valiosas que essas con-cepções sejam tidas pela maioria. Essa tentativa seria, não apenas moral e politicamente inaceitável, como, sobretudo, e para o que aqui nos importa, juridicamente vedada, já que constituiria uma restrição do livre desenvolvimento da personalidade inadmissível à luz do princípio da dig-nidade da pessoa humana e, enquanto tal, constitucionalmente rejeitada.

À luz do Estado de Direito fundado na dignidade da pessoa humana, a opinião de cada um, e a possibilidade de a exprimir, de lutar por ela e de viver segundo os próprios padrões, é tão valiosa quanto a opinião de outro. Cada um tem, garantida pelo Estado de Direito, uma esfera de autonomia e liberdade individual que a maioria não pode comprimir o& res-tringir pelo simples facto de ser maioria, pelo simples facto de a autono-mia individual se orientar num sentido rejeitado ou hostilizado pela maio-ria. É como concretização e expressão dessa ideia que, em nosso entender, a imagem do trunfo cobra pleno sentido: a decisão democrática de mui-tos, da maioria, não quebra o direito fundamental de um; o trunfo que lhe é dado pelo direito fundamental, o que aqui equivale a dizer, que lhe advém do respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana, trunfa o interesse individual e dá-lhe uma especial força de resistência, de arma-dura, perante a qual se detém e cede a decisão democrática da maioria.

e) Assim entendida, a concepção dos direitos como trunfos não se resume a um programa de protecção privilegiada dos direitos políticos da minoria contra as pretensões hegemónicas da maioria política, isto é, não se restringe ao objectivo de reforço da representação democrática e da desobstrução dos canais da participação política (ELY). Por impor-tante ou nuclear que esse objectivo seja em Estado de Direito demo-crático, a concepção dos direitos como trunfos, como a entendemos, é mais vasta e ambiciosa.

Page 16: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

32 Direitos Fundamentais: Trunfos Contra a Maioria Cap. 1 - Direitos corno trunfos contra a maioria 33

Assente e reinterpretada à luz do princípio da igual dignidade da pes-soa humana, ela não se confina aos direitos políticos, mas é extensiva a todos os direitos fundamentais (incluindo os direitos sociais (24)). Por outro lado, para além de uma função directamente orientada à garantia da qualidade da democracia, a concepção dos direitos como trunfos sig-nifica, também, a protecção de todos os direitos fundamentais da pessoa contra restrições essencial ou determinantemente decorrentes de tentati-vas de imposição de concepções ou mundividências particulares ou de doutrinas compreensivas sustentadas conjunturalmente no apoio de maio-rias políticas, sociais, culturais ou religiosas. por último, é um recurso

especialmente adequado à protecção dos direitos fundamentais dos indi-víduos ou grupos cuja debilidade, isolamento ou marginalidade não lhes permita, mesmo em quadro de vida democrático, a possibilidade de influenciarem as escolhas governamentais e a capacidade de garantia dos seus direitos fundamentais através dos meios comuns da participa-ção política ou da luta social ou sindical.

III - SENTIDO E ALCANCE DOS DIREITOS FUNDA-MENTAIS EM ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁTICO

Na base do problema que aqui consideramos, está, assim, a posição dos direitos fundamentais na relação jurídico-constitucional entre prin-cípio democrático e princípio do Estado de Direito. Como dizíamos noutro local (25), enquanto que o princípio democrático se identifica ou com a legitimação do título e exercício do poder político a partir da livre escolha maioritária do eleitorado - a premissa majoritária - ou

com o regime em que a todos os cidadãos é dada a oportunidade de se constituírem em parceiros activos e iguais de um autogoverno colec-tivo, a premissa de parceria (26), já o princípio de Estado de Direito

assume essencialmente uma irredutível dimensão de defesa ou reserva da

4) Cf., infra, cap. V. (25) Cf. J. NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais .., cit., pág. 605. (16) Cf. DWORKIN, Freedoms Law, cli.. págs. IS ss.; Sovereign Virtue, Cam-

bridge, Mass., 2000, págs. 354 ss.; Jnstice in Robes, págs. 133 ss.

autonomia e liberdade individuais face ao Poder político, a premissa garanlista.

1. Nesse sentido, o princípio de Estado de Direito ou, se se quiser, os direitos fundamentais - já que Estado de Direito é. o Estado juridica-mente limitado pelos direitos fundamentais e juridicamente vinculado à sua defesa e promoção - funcionam, relativamente à decisão da maioria, como limites jurídico-constitucionais. Portanto, mesmo partindo do pres-suposto, que sustentamos, de que o actual Estado de Direito só vive em democracia, consideramos que, num Estado de Direito democrático, o prin-cípio do Estado de Direito é um limite intransponível que se impõe ao poder legítimo e que, por isso, se pode opor ao princípio democrático.

Mesmo que a maioria conjuntural que sustenta o Govemo ou que forma uma maioria parlamentar considere que o interesse público só é realizável através da compressão ou supressão da autonomia e liber-dade individuais, a área de liberdade que disponha da anuadura ou esteja trunfada pela garantia que lhe -é conferida por um direito funda-mental não cede, ou seja, a regra da maioria não quebra, por si só, o prin-cípio de Estado de Direito. A decisão da maioria democrática pode, é certo, acabar. por prevalecer sobre o interesse jusfundamentalmente proT tegido, pois, como assinala justamente WALORON (27), quando ocorre um desacordo envolvendo direitos fundamentais não há nenhuma razão que determine que a maioria esteja necessariamente certa ou que esteja necessariamente equivocada sobre essa questão. Porém, o fundamento da eventual prevalência da posição da maioria não reside no argumento maioritário - precisamente porque os direitos fundamentais são cons-titucionalmente reconhecidos como direitos contra a maioria -, mas sim no resultado de uma ponderação de bens desenvolvida à luz dos parâmetros constitucionais e através da qual se (28) atribua a um outro bem igualmente digno de protecção, em circunstâncias em que essa compressão seja exigível, uma relevância susceptível de justificar a res-trição do direito fundamental.

C') Cf. Derecho y desacuerdos, cit., págs. 21 (25) Deixamos deliberadamente oculta, por enquanto, a identidade deste se.

Page 17: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

34 Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria

- Direitos corno trunfos contra a maioria 35

Nesse sentido, ter um direito fundamental segundo a concepção

dos direitos como trunfos significa duas coisas: de um lado, e no que res-peita às relações entre indivíduo e Estado, significa ter uma posição, juridicamente garantida, forte, entrincheirada, contra as decisões da maioria política; de outro lado, e no que respeita às relações entre par-

ticulares (29), ter um direito fundamental significa também, no mínimo, ter uma particular e concretizada posição de autonomia e liberdade que

Estado de Direito está igualmente vinculado a proteger contra amea-ças ou lesões provindas de terceiros, mesmo quando, ou sobretudo quando, esses terceiros formam uma maioria ou quando o particular está sujeito, nas relações que estabelece com outros particulares ao

desequilíbrio de urna relação de poder assimétrica. Ora, esta natureza de trunfos contra a maioria reivindicada pelos

direitos fundamentais é prenhe de consequências jurídicas de ordem prática que vão muito para além do que poderiam ser consideradas

meras posições teóricas de princípio. Só no reconhecimento deste alcance e desta vocação contramaiori-

tária, entendidos como corolário do princípio jurídico da dignidade da pessoa humana, os direitos fundamentais se defendem das múltiplas

tentações de funcionalização e instrumentalização (30) e desenvolvem

plenamente as suas potencialidades de garantias efectivas da liberdade e autonomia individuais. É precisamente quando se sustenta uma posi-ção que não tem o apoio da maioria ou, mais ainda, que é impopular aos olhos da maioria ou merece a sua rejeição activa e até violenta, que os direitos fundamentais são verdadeiramente úteis e o conceito de Estado de Direito revela a mais-valia, a força e a autonomia relativamente ao

conceito de democracia. Em geral, numa democracia, e é só deste quadro que agora falamos,

e designadamente quando se trata de direitos políticos ou de liberdades

de espírito (31), isto é, sempre que está subjacente uma competição, própria do pluralismo, entre diferentes concepções ou interesses, as posi-ções maioritárias, ou que merecem o apoio tácito da maioria dos cida- dãos, não precisam dos direitos fundamentais para nada; a força do número, o apoio maioritário, é-lhes suficiente, desde que as regras demo-cráticas estejam garantidas, para conservarem, reforçarem ou alcançarem uma posição dominante. Em termos simplistas, pode dizer-se que à maioria bastam as regras democráticas, até porque, sempre que considera não estarem os representantes eleitos a proteger adequadamente os seus interesses, tem a capacidade política de substituir esses mesmos repre-

sentantes (32); os princípios do Estado de Direito não são necessários e, mais, como se viu, podem até ser um empecilho ou um obstáculo à

realização da sua vontade. São precisamente as posições minoritárias, as posições de um indi-

víduo isolado ou acompanhado de outros que como ele se sentem dis- criminados, que estão sujeitos à pressão, muitas das vezes avassaladora e tendencialmente abusiva, por pane da maioria, que têm necessidade de se socorrer da protecção e das garantias do Estado de Direito. - Essa ajuda é tão mais necessária quanto mais a posição que sustentam é impopular ou gera sentimentos de rejeição mais fortes. Pois é afique se revela a natureza e a força do Estado de Direito e das suas instituições:

Estado de Direito, os direitos fundamentais, vêm em auxílio da posi-ção mais débil, mais impopular ou mais ameaçada, não para a fazer prevalecer ou impor à maioria, mas para garantir ao indivíduo ou à minoria isolada o mesmo direito que têm todos a escolher livre e auto-nomamente os seus planos de vida, a expor e divulgar as suas posições junto dos concidadãos, a ter as mesmas possibilidades e oportunidades que quaisquer outros para apresentar e defender as suas concepções, opiniões ou projectos, isto é, a competir com armas iguais no livre mer-

cado das ideias.

Cf., infra. cap. II. Cf., por último, em língua portuguesa, e em perspectiva que nos parece

Convergente, L. ROBERTO BARROSO, Prefácio a DANIEL SARMENTO (org.), Interesses

Públicos versus Interesses Privados. Rio de Janeiro. 2005, págs. XVI 5., e, na mesma obra,

DANIEL SARMENTO, "Interesses públicos vs interesses privados na perspectiva da teoria

e da fitosofia constitucional", págs. 58 ss.

Cf. M. LÚCIA AMARAL "O princípio da igualdade na Constituição portu-guesa" iii Estudos de Hornenajeni ao Professor A. Marques Guedes, Coimbra, 2004,

pág. 55.

Cf. ELY, Dernocracy and Distrust, clt., págs. 77 ss.

Page 18: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

36 - Direitos F,uidanzenzais: Trunfos Contra a Maioria - Direitos como trunfos contra a maioria 37

Sem Estado de Direito, a minoria seria inevitavelmente discriminada e as concepções minoritárias suprimidas ou perseguidas, mas, no final, e como a História exuberantemente demonstra, isso ocorreria não apenas, e só isso seria decisivo, em violação do princípio da dignidade da pes-soa humana que funda as nossas comunidades políticas, mas também em prejuízo do progresso moral, científico, político ou artístico da sociedade no seu conjunto.

2. Mas a ideia dos direitos fundamentais como trunfos contra a maioria não é mera exigência política ou moral ou uma construção teó-rica anificial. Ela é também uma exigência do reconhecimento da força normativa da Constituição, da necessidade de levar a Constituição a sério: por maioritários que sejam, os poderes constituídos não podem pôr em causa aquilo que a Constituição reconhece como direito fundamental.

Se a Constituição proíbe a pena de morte ou a tortura, por mais que a maioria considere que a sociedade ganharia com a introdução de algu-mas- excepções a essas garantias, mesmo que pontuais, e ainda que a maioria da população apoie ou reclame abertamente essas soluções, a natureza de trunfo da garantia constitucional impede absolutamente a realização dos desígnios da maioria. Se a Constituição garante a liber-dade de expressão, a liberdade de imprensa e a pmibição da censura, por mais que um dado Governo, democrático, majoritário, apoiado pelo sen-timento geral da população, considere que a expressão de determina-dos pontos de vista ou opiniões pessoais num jornal põe em causa o rela-cionamento com outros Estados, inviabiliza negócios decisivos para o bem estar da população ou contribui para a difusão de ideias que, do ponto de vista do Governo, são nocivas para a sociedade no seu todo, não podem esse Governo ou essa maioria impedir que um só indivíduo expresse livremente aquelas opiniões ao abrigo da sua garantia consti-tucional, o que equivale a dizer, que faça valer o trunfo de que dispõe

contra a vontade, a opinião ou a decisão da maioria. Foi com este alcance que, do ponto de vista histórico-constitucional,

esta ideia de indisponibilidade dos direitos fundamentais por parte da maioria obteve acolhimento e consagração positiva e substancial, quando, com o chamado novo constitucionalismo da segunda metade do século passado, as Constituições, ainda que com ritmos, textos e gradações dife-

renciados, afirmam expressamente a vinculação do próprio legislador democrático aos direitos fundamentais ou consagram os direitos funda-mentais na qualidade de limites materiais de revisão constitucional.

Neste quadro, é a própria evolução constitucional que responde à dúvida ou objecção metódica de WALDRON (): persistindo o desacordo sobre qual a teoria de direitos fundamentais correcta, haveria que encon-trar previamente um método de tomada de decisões colectivas que per-mitisse decidir qual das teorias concorrentes e rivais de direitos funda-mentais deveria ser consagrada como teoria dos direitos dessa sociedade. Não existindo essa decisão, por que razão deveria, então, ser a concep-ção simples dos direitos como trunfos a prevalecer sobre as formas maioritárías de tomada de decisões?

Ora, se esta objecção podia ou pode ter lugar em sociedades de constitucionalismo débil, já não faz tanto sentido, pelo menos nos- ter-mos acima colocados, no Estado constitucional tal como o conhece-mos. É que, independentemente de uma adesão à concepção particular dos direitos fundamentais como trunfos como aqui a desenvolvemos,-é indiscutível que a generalidade das Constituições do actual Estado de Direito consagram, expressa ou implicitamente, a ideia de indisponibi-lidade e vinculação das entidades públicas (da maioria) aos direitos fun-damentais, o que significa que se trata de uma concepção que obteve, no seu forrem próprio em Estado de Direito, o apoio de uma maioria demo-crática qualificada. Logo, é quem contesta essa solução que tem o ónus de demonstrar a superioridade normativa de uma teoria de direitos fun-damentais alternativa à concepção dos direitos como trunfos e não o inverso.

É que a concepção dos direitos como trunfos encontrou acolhi-mento quando os Estados constitucionais retiraram progressivamente todas as consequências institucionais daquelas indisponibilidade e vin-culação. Fizeram-no internamente, através de uma reestruturação do Estado de Direito que consagrou a sujeição de todos os poderes do Estado à jurisdição constitucional e elevou os Tribunais Constitucionais à responsabilidade de instâncias, por excelência, de defesa dos direitos

(33) Derecho y desacuerdos, cit.. págs. 253 s.

Page 19: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

38 Direitos Fundamentais: Trunfos Contra a Maioria - Direitos como trunfos contra a maioria 39

fundamentais, enquanto tribunais directamente acedidos pelos titulares

individuais dos direitos fundamentais lesados. Fizeram-no analoga-mente, no plano externo, com a progressiva institucionalização da sujeição

do Estado soberano à jurisdição de tribunais internacionais de defesa dos

direitos humanos (com a possibilidade de recurso dos cidadãos nacionais contra actos soberanos e definitivos das instâncias nacionais) e à vincula-

ção jurídica do poder nacional a documentos intemacionais de direitos

fundamentais (com a consequente vinculação dos Estados à observância dos

direitos fundamentais relativamente a todas as pessoas sobre que exerçam

jurisdição e não apenas relativamente aos cidadãos nacionais). No fundo, esta reestruturação traduz a aspiração de garantia de uma

efectividade jurídica aos direitos fundamentais e o reconhecimento implí-

cito da dicotomia/oposição entre direitos fundamentais e democracia que,

respectivamente, justifica e orienta o ressurgimento do constitucionalismo a partir do segundo pós-guerra. A consagração da jurisdição constitucional

como verdadeiro coroamento do Estado de Direito (com a consequente

grande discussão sobre a natureza e limites funcionais da justiça consti-

tucional), a chamada transição do Estado de legislação para o Estado de

jurisdição, a ideia de Estado de Direito como Estado de direitos funda-

mentais, são diferentes expressões destas mesmas ideias de fundo.

3. Mas esta conclusão e esta ideia - direitos fundamentais como

trunfos -, se bem que firmes e prenhes das maiores e mais importan-

tes consequências, são apenas um dos lados da questão, já que o mundo

dos direitos fundamentais é muito mais complexo e menos atreito a con-

clusões simples e absolutas do que se poderia erroneamente supor a par-

tir da terminologia até aqui utilizada. E que, se muitos de nós estarão,

eventualmente com reservas, predispostos a aceitar as premissas que até

aqui estabelecemos, praticamente todos concordaremos, em contrapar-

tida, que, em inúmeras outras situações, ou até na generalidade dos casos,

direitos consagrados na Constituição podem ser limitados ou têm mesmo de ceder completamente perante a maior força ou peso de outros direi-

tos ou interesses, pelo que, nessas situações, se admite ou até se impõe

que o legislador - a maioria - limite os direitos fundamentais. Assim, por exemplo, se alguém publicou ou pretende publicar atra-

vés dos media, e no seu exercício da liberdade de expressão e de

imprensa, um artigo que afecta gravemente o direito à privacidade ou inti-

midade de alguém, ou atenta contra a honra de alguém, ou divulga infor-

mações consideradas segredo de Estado, aí já todos nós, tal como fazem

todos os Estados de Direito, sem excepção, admitiremos limitações, restrições

ou mesmo o impedimento do exercício de tal liberdade de expressão. Ou

seja, nesses casos já admitimos que a maioria política. através de lei e

posterior e consequente actuação da Administração ou dos tribunais, per-

mita ou consagre limitações ao exercício do direito fundamental. Donde

se verifica que umas vezes a vontade da maioria prevalece e outras vezes

não deve prevalecer. Umas vezes o direito fundamental resiste e outras não.

Mas, se é assim, onde fica afinal a natureza de trunfo? O que resta da afir-

mada indisponibilidade dos direitos fundamentais? Estamos perante novas e complexas questões que, no fundo, reme-

tem para a própria natureza dos direitos fundamentais em Estado de

Direito; ou seja, a qualificação dos direitos fundamentais como trunfos

é um princípio, e princípio decisivo, mas apenas analisámos, até agora,

o significado básico dessa afirmação. Importa precisar, concretizar, em

toda a sua extensão, a partir daqui, o seu sentido e alcance, o que

levanta, desde logo, três questões que a seguir se consideram: primeiro,

a quem compete verificar quando a força de trunfo se deve impor em

definitivo ou quando os direitos fundamentais admitem cedências; segundo, quando deve ou não haver lugar a limitações dos direitos fun-

damentais e, terceiro, já que lidamos com normas com assento consti-

tucional, em que medida as limitações, mesmo quando admitidas, são ou

não inconstitucionais. Veremos como na resposta a cada uma destas questões a ideia dos direitos fundamentais como trunfos continua, e

deve continuar, sempre e decisivamente presente.

IV - DIREITOS COMO TRUNFOS E QUESTÕES DE COM-

PETÊNCIA

A primeira questão é de competência - a quem cabe verificar? -

e, apesar de uma complexidade cujo tratamento preenche bibliotecas

inteiras, não pode aqui ser respondida a não ser através da ideia mais

simples e, todavia, mais forte, ou seja, a partir da própria natureza for-

Page 20: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

40 Direitos F,ozdansentais: Ti unfos contra a Maioria Direiios como trunfos contra a maioria 41

malmente constitucional dos direitos fundamentais ou, se se quiser, dos direitos fundamentais quando tomados a sério. Se tratamos da vincula-ção dos poderes constituídos relativamente a normas e princípios cons-titucionalmente consagrados, tratamos, consequentemente, de assegurar a força da Constituição enquanto norma jurídica; isso significa, em Estado de Direito, remeter a última palavra para os tribunais e, no caso, para a jurisdição constitucional, por mais controversa e sempre em aberto que esteja a questão dos limites funcionais da justiça constitucional.

1. Remeter para a decisão democrática das assembleias representativas a arbitragem do desacordo sobre o real conteúdo, contornos e limites do direito fundamental ameaçado, como fazem, em nome da sacralidade

material do direito a igual participação política democrática, os opositores da jurisdição constitucional em Estado de Direito, seria a melhor forma de neutralizar ou recuperar, a favor das posições dominantes, o conteúdo emancipador desse mesmo direito à igualdáde, já que o problema só surge, precisamente, quando essas posições dominantes se enquistam no não reconhecimento da igual dignidade de concepções, grupos ou indivíduos isolados, minoritájios ou mais débeis, mas o fazem num contexto e ao abrigo da observância das regras procedimentais democráticas.

Admite-se que haja ambientes culturais e políticos em que, pelo menos conjunturalmente e em períodos não críticos, não seja desrazoá-vel confiar a garantia dos direitos fundamentais em Estado de Direito à capacidade de deliberação (ou redeliberação (a")) das assembleias par-

lamentares, decidindo segundo os parâmetros da razão pública. Mas, em

geral, no contexto competitivo de democracia representativa mediada por partidos políticos com forte disciplina de funcionamento e marcada distinção ideológica, em sociedades cultural, social e politicamente hete-rogéneas, essa expectativa optimista é comprovadamente infundada.

(34) Note-se que o que se diz no texto tanto se aplica às propostas que, pura e simplesmente, consideram as decisões da maioria democrática insusceptíveis de qualquer apreciação posterior de constitucionalidade, como às que recusam a sua apreciação por

parte de uma jurisdição constitucional, mas admitem, numa esp&ie de constitucionahsnio

débil, a sua reapreciação decisória por parte da maioria parlamentar, eventualmente por

sugestão de uma jurisdição constitucional.

São estes dados de facto que WALORON não tem adequadamente em conta quando elaborou e vem sustentando a mais poderosa e bem fun-damentada contestação à jurisdição constitucional e à constitucionali-zação dos direitos apresentada nos últimos anos (35). A apreciação desta posição tem, para nós, tanto mais interesse quanto o próprio WALORON,

e em nosso entender justamente, identifica basicamente estas instituições - jurisdição constitucional e constitucionalização dos direitos funda-mentais - com a concepção dos direitos fundamentais como trunfos, que ele rejeita com idêntico afinco. Por outro lado, sendo um um debate de sempre, a importância desta discussão é potenciada por factores de con-juntura que não devem ser negligenciados. Referimo-nos à razoável probabilidade de os próximos tempos, designadamente nos Estados Uni-dos da América, serem atravessados por uma renovada e ainda mais vigorosa controvérsia acerca da judicial review, a partir da prática pre-sidencial dos últimos anos de nomeação dos juízes do Supremo Tribu-nal de forma claramente marcada por uma intenção de conquista polí-tica da instituição.

Os danos que essa prática pode provocar, não apenas na ideia de judicial review, mas ao próprio equilíbrio do sistema político, são, por ora, imprevisíveis e pode até eventualmente acontecer que, como ocor-reu no passado, o peso da instituição e das práticas estabilizadas ao longo de décadas, sobrelevem o pecado original inscrito em intenções de nomeação menos nobres. Mas, se isso não suceder, isto é, se a Supreme Coun se transformar em instância militante de imposição de uma particular mundividência, assistir-se-á, seguramente, a um remontar das críticas à judicial review que, mais tarde ou cedo, acabará por repercu-tir no pensamento jurídico europeu.

Ideia fundamental de WALORON (36) é a da persistência, nas nos-sas sociedades, de um desacordo profundo sobre o conteúdo e alcance dos direitos fundamentais, pelo que o problema nuclear do constitucionalismo

Cf. 'A Right-Based Critique of Constitutional Rights". cii; Law and Disa-

greerneur, cii; •'The Core of Um Case Agairist Judicial Review" (drafi).

Assim, J. WALDRON, Derecho y desacuerdos, cit., pàgs. 253 ss. e 290 ss.; J. C.

BAyÕN, 'Derechos, democracia y Constitución", cit., págs. 216 ss.

Page 21: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

42 Direitos Fundamentais: Trunfos Contra a Maioria

/ - Direitos como trunfos contra a ,na,oria 43

e da sua relação com a democracia seria o da decisão sobre a forma mais adequada de arbitragem desse desacordo, ou seja, a necessidade de

complementar as teorias de direitos com uma teoria da autoridade.

Persistindo nas nossas sociedades um desacordo profundo sobre o

conteúdo e alcance dos direitos, todo o problema consistiria em deter-

minar a quem cabe decidir sempre que os membros da comunidade dia-

cordem sobre o sentido da decisão correcta. Ora, para WALDRON, a

resolução deste problema através da judicial review seria errónea, por-

que não faríamos mais que substituir um procedimento democrático de

decisão (o da maioria política, no parlamento) por um outro procedi-

mento, antidemocrático, elitista, de decisão (o da jurisdição constitu-

cional), com o que nada se ganhava em termos de garantia de um

bom resultado (na melhor das hipóteses a comparação entre os dois pro-

cedimentos era inconclusiva) e se perdia notoriamente em termos da

racionalidade inerente ao direito à igual participação própria dos Esta-

dos democráticos (37). De facto, havendo dúvidas sobre o conteúdo e

alcance de algo aprovado pelos representantes do Povo e que o Povo

adoptou como princípio fundamental, por que razão seria melhor per-

guntar a um grupo de juizes - que também está dividido sobre a

mesma questão e também vai decidir segundo a regra da maioria -

em vez de perguntar aos próprios representantes do Povo e no res-peito do direito de todos à igual participação no processo político da

comunidade?

2. Porém, quanto a nós, e pese embora a força dos argumentos de

WALDRON, colocar a questão nestes moldes é falhar, à partida, a natureza

do problema da relação entre direitos fundamentais e princípio demo-

crático ou o próprio problema do desacordo. De facto, o(s) desacordo(s)

sobre os direitos fundamentais não se resume(m), como, no fundo, pre-

tende WALDRON, ao desacordo político sobre o seu conteúdo e alcance,

mas incide e prolonga-se sobre sucessivos e diferentes planos e dimen-

sões de discordância.

(37) Este argumento seria, precisamente. o "com of lhe case'. Cf. Derecho y desa-

duerdos, passim, e 'The Core of lhe Case Against Judicial Review, cap. 5.

a) Uma primeira e potencial instância de desacordo surge relativamente

à existência de um direito: há ou não, por exemplo, um direito ao corpo,

um direito ao livre desenvolvimento da personalidade, um direito à habi-

taçilo, um direito a um mínimo necessário para uma existência condigna?

Mas mesmo após o reconhecimento da existência do direito, quando

alguém diz 'todos têm direito à liberdade de expressão', ou de religião, ou

de profissão, ou de propriedade, um segundo e multifacetado problema é

de determinar o conteúdo originário desse direito: o que significa ter o

direito, quais as suas faculdades ou quais as pretensões que dele derivam,

que, a priori ou pritnafacie, está incluído e o que está excluído?

Há depois, para além destes, o problema do alcance do direito, das

possibilidades do seu exercício, da previsão de eventuais conflitos ou coli-

sões com outros bens, interesses, direitos ou valores, e, consequente-

mente, a eventual necessidade de prever um possível quadro geral e

abstracto de convivência, prevalência, cedência ou composição entre

esses diferentes interesses, elaborado na previsão ou antecipação dos

potenciais conflitos. Acresce, por último, o plano da concretização vivencial do direito,

quando dimensões mais ou menos particulares, específicas e individua-

lizadas das suas diferentes faculdades ou pretensões se exercemóuSão

inibidas de se exercer no mundo dos factos, quando se coloca a ques-

tão concreta de uma individual e actual possibilidade de acesso ao bem

protegido pelo direito ser, poder ser ou dever ser desvantajosa ou nega-tivamente afectada por facto da necessidade de realização ou protecção

de outro bem igualmente digno de protecção. Relativamente a estas quatro instâncias, e mesmo quando os parti-

cipantes na discussão se integram numa área de um pluralismo razoá-

vel, há lugar para um persistente desacordo com origem em diferentes

teorias de justiça, diferentes concepções sobre o relacionamento entre

Estado e cidadãos, diferentes doutrinas compreensivas ou diferentes teo-

rias dos direitos. Há, consequentemente, necessidade de arbitragem do

desacordo. Será, desde logo, necessário que os participantes na discussão

cheguem a acordo sobre os direitos que são reconhecidos na comuni-

dade, acordo esse que, num espectro do referido pluralismo razoável,

será o mais fácil de atingir. Porém, à medida que a discussão prossegue

para as instâncias seguintes, imediatamente se percebe que o acordo é

Page 22: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

44 Direi:cs Fundamentais: Tu-anjos Cotara a Maioria 1 - Direitos como trunfos contra a maioria 45

muito mais difícil, que as áreas de consenso sobreposto se reduzem dras-ticamente e que a arbitragem do desacordo é politicamente controversa, con-flitual, eventualmente dilacerante ou fraccionante da sociedade.

b) Mais ainda, urna nova dimensão de desacordo - transversal àquelas quatro instâncias já referidas - é introduzida quando, perante a complexidade, importância e sensibilidade do que está em jogo, os par-ticipantes na discussão decidem entrincheirar juridicamente os direitos e reconstroem, através das Constituições e das Declarações de Direi-tos, os direitos-naturais do homem enquanto direitos fundamentais, ou seja, garantias jurídicas que, por força do carácter hierarquicamente superior daque!es instrumentos, vinculam todo o poder de Estado e se impõem à observância das próprias assembleias parlamentares repre-sentativas (38). Nessa altura, o desacordo que percorria as quatro ins-tâncias referidas deixa de ser exclusivamente um desacordo de natu-reza política, de busca e decisão sobre o bem, a justiça ou a sociedade bem ordenada, para, sem perder essa qualidade, passar a ser também um desacordo sobre a eventual violação dos direitos ftindamentais enquanto garantias jurídicas e suscitado a propósito de conflitos que a ordem jurí-dica integra agora como problemas a decidir juridicamente. Esta sua natureza fica absolutamente clara quando as Constituições de Estado de Direito do segundo pós-guerra institucionalizam progressiva e generali-zadarnente jurisdições constitucionais de protecção dos direitos funda-mentais e assim convergem com a prática norte-americana de judicial

review que vinha já do século XIX.

3. Nestes termos, e ao contrário do que pretende WALDRON, o desa-cordo deixa de consistir apenas em divergências políticas sobre o con-teúdo e alcance dos direitos. É tal, mas é também um desacordo jurí-

(38) A excepção histórica é a Inglaterra, onde a rufe of fow se impôs sem que a consagraçso jurídica dos tradicionais direitos de liberdade se traduzisse em sinrnliãnea vinculação jurídica da instituição parlamentar (cf. J. NovAis, Contributo.., cii, págs. 46

55.; ZAOREBELSKY, II diriuo ,nige, Torino, 1992. págs. 24 ss.). Daí que, hoje, a proposta de WALORON tenha um alcance radicalmente diferente quando pensada para constitucio-nalismos construídos segundo o modelo de Wesrnunsrer ou, ao invés, para a generalidade dos Estados constitucionais.

dico que percorre e atravessa as quatro instâncias referidas e, assim, coniplementa e transforma dogmaticamente os anteriores desacordos, sucessivamente e seguindo aquela ordem, em desacordos sobre, entre outros, temas como: (i) quais são os direitos fundamentais (direitos de liberdade e direitos sociais, direitos de autonomia e direitos de partici-pação), tipicidade ou não tipicidade de consagração constitucional, direi-tos fundamentais não enumerados e cláusula aberta dos direitos funda-mentais; (ii) delimitação dos bens jurídicos protegidos pelos direitos fundamentais, âmbito de protecção, concepção restritiva ou concepção ampliativa da factis specie; (iii) limitação e restrição de direitos funda-mentais, teoria externa, teoria interna e modelo dos direitos fundamen-tais como princípios, restrições expressa e não expressamente autoriza-das; (iv) restrições e intervenções restritivas (legítimas) nos direitos fundamentais e violação de direitos fundamentais, subsunção e/ou pon-deração na aplicação das nonins jurídicas de direitos fundamentais.

4. Por outro lado, e na medida em que estes desacordos jurídicos são suscitados por necessidades de garantia prática dos direitos funda-mentais e consequente contmlo das decisões e intervenções restritivas que os titulares do poder político, a Administração e os próprios tribunais fazem incidir sobre os direitos, o desacordo tende a deslocar-se, enquanto problema jurídico-constitucional, para as áreas de maior dissenso, ou seja, aquelas duas últimas instâncias, pelo que é sobretudo relativamente a elas que a questão da teoria da autoridade deve ser colocada. E, nes-ses domínios, o problema não é o de saber se há desacordo sobre o conteúdo dos direitos e de encontrar o melhor procedimento para arbi-ti-ar esse eventual desacordo, mas, numa perspectiva já radicalmente diferente, aquilo que importa decidir é se uma actuação do poder público que afectou desvantajosamente as-possibilidades de acesso de um par-ticular a bens jusfundamentalmente protegidos violou ou não as garan-tias jurídicas constituídas pelos direitos fundamentais.

a) Na realidade, o problema real do mundo dos direitos funda-mentais, aquilo que dá corpo ao desacordo na vida jurídica e que apela, contra a opinião de WALrRON, à intervenção da jurisdição constitucio-nal, não é verdadeiramente o problema do conteúdo e alcance dos direi-

Page 23: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

46 fiji-eixos Fundamentais: Trunfos Contra a Maioria Cap. 1 - Direito.ç como trunfos contra a maioria 47

tos; quando muito, essa será a questão que divide as teorias da justiça ou as teorias de direitos fundamentais em competição. O desacordo tem sido decisivamente remetido para um outro domínio e é aí que se coloca, de facto, o problema da sua arbitragem institucional, não tanto quanto à identificação do conteúdo dos direitos, não mesmo quanto à interpretação das normas constitucionais - embora essas questões este-jam sempre de algum modo presentes -, mas, sobretudo e decisivamente, no que respeita à realização prática, à concretização ou à protecção e prõ-moção dos direitos fundamentais num mundo em que essa aspiração ou vocação de realização principial choca inevitavelmente com as neces-sidades de igual realização e concretização de outros princípios, bens e interesses que, nas circunstâncias de um caso concreto, real ou juridi-camente antecipado, se orientam num sentido contrário.

b) O problema do conteúdo e alcance dos direitos fundamentais é tratado no momento constituinte, mas, aí, e avisadamente, os representantes do Povo não podem, na generalidade dos casos, fazer mais que consagrar normas de direitos fundamentais em termos de frases lapidares ou ideias gerais. Daí que, no mundo dos direitos fundamentais, o desacordo que importa posteriormente arbitrar não seja o problema do conteúdo e alcance abstractos da liberdade de expressão, de imprensa ou da liberdade de religião, mas saber se na situação concreta, por exemplo, o Governo dinamarquês poderia ou não proibir a publicação de caricaturas que ofen-dem os sentimentos religiosos islâmicos. E, se o Governo dinamarquês decidisse instaurar uma censura à imprensa ou sancionar a publicação de caricaturas que ofendiam os sentimentos religiosos, o verdadeiro pro-blema de autoridade seria o de saber se era o Parlamento dinamarquês, que apoia o Governo, ou antes um tribunal independente que deveria decidir a questão. não do conteúdo dos direitos, mas da constitucionali-dade da acção governamental. Ora, para proceder a este controlo é indis-pensável o recurso a princípios jurídicos, dogmaticamente elaborados, desenvolvidos e testados ao Longo de décadas de jurisdição constitucio-nal e relativamente aos quais, pese embora a sempre persistente perma-nência de elementos de subjectividade inerente aos processos de valora-ção e ponderação de bens, há também um legado consolidado de objectividade comum às jurisdições constitucionais de Estado de Direito.

e) Do que se trata é, então, não de arbitrar, politicamente, um desa-cordo básico acerca do conteúdo dos direitos fundamentais, mas de decidir, juridicamente, o problema constitucional da eventual contradi-ção entre a decisão, política, da maioria, e os limites jurídicos que a Constituição de Estado de Direito lhe impõe.

O interesse prosseguido pelo Governo deve prevalecer sobre o inte-resse de liberdade? E a proibição ou medida restritiva actuada pelo Governo no cumprimento daquele objectivo respeitou os princípios da igualdade, da aptidão, da indispensabilidade, da proporcionalidade, da razoabilidade, da determinabilidade, da dignidade da pessoa humana, da segurança jurídica?

E quem deve ter a última palavra na decisão destas questões jurí-dicas? O Governo (maioria parlamentar que o apoia) ou os órgãos independentes que em Estado de Direito administram a justiça em nome do Povo? E devem ser todos os tribunais ou um tribunal superior e espe-cializado em questões de constitucionalidade?

Com efeito, a partir do momento em que a liberdade passa a ser pro-tegida juridicamente através dos direitos fundamentais, é para este tipo de questões que se transfere o desacordo, se bem que, é certo, em todas elas estejam sempre e de alguma forma presentes as diferentes concep-ções sobre o conteúdo e alcance dos direitos.

Se a Constituição proíbe a pena de morte, não é pelo facto de exis-tir um desacordo social, político, acerca da bondade desta proibição que o problema deve ser arbitrado no Parlamento, ou seja, decidido politi-camente, e ao saber de lógicas de disputa eleitoral, pela maioria con-juntural; qualquer lei ordinária que reponha ou imponha a pena de morte é, pura e inapelavelmente, inconstitucional. Da mesma forma, se a Constituição garante a liberdade de expressão ou a liberdade de reli-gião face ao Governo instituído e todas as entidades públicas, não é pelo facto de a respectiva norma constitucional ter uma natureza prin-cipial ou um conteúdo mais indeterminado, que um conflito do mesmo tipo - norma ordinária ou acto público eventualmente violadores da garantia constitucional ou colisão, concreta ou legislativamente anteci-pada, entrd os direitos apoiados nessas normas e outros interesses dig-nos de protecção - perde a qualidade de disputa jurídica, a decidir segundo parâmetros jurídicbs, mais ou menos consolidados, mais ou menos pacíficos, que vigoram em determinada ordem jurídica.

Page 24: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

48 Direitos Fundamentais: Trunfos Contra a Ma,o,-,a

Nessas circunstâncias, tal qual como não seria admissível remeter

para o Parlamento a decisão de uma disputa criminal que apaixona e

divide a opinião pública, não seria mais admissível pretender privar o

poder judicial e, em última instância, a jurisdição constitucional, da

decisão da controvérsia jurídico-constitucional só porque há um desacordo

básico sobre a solução correcta da lide, isto é, sobre o alcance e conteúdo

jurídico ou a concretização da norma de direitos fundamentais (39).

d) Portanto, esta primeira questão competencial tem, assim, na pró-

pria afirmação da natureza de trunfos dos direitos fundamentais a sua res-

posta: se os direitos fundamentais são trunfos contra a maioria, não

poderia ser essa mesma maioria, mas antes um órgão próprio, indepen-

dente e especializado, a verificar e reconhecer essa qualidade. Dar ao

"adversário" no jogo a possibilidade de certificar pontualmente a quali-

dade de trunfo, não só subverteria as regras do jogo, como acabaria

com a própria ideia de trunfo; dar à maioria democrática a possibilidade

de determinar, em última instância, a força concreta de resistência de -um

direito fundamental seria subverter as regras do Estado de Direito e pôr

em causa a própria ideia de direitos fundamentais (40).

( 9 ) No recente draft ('The Core of Lhe Case Against Judicial Review"), WÃLDRON

restringe a husca do argumento central do seu ata que à jurisdição constitucional sobre

direitos fundamentais à judicial ,-eview de leis e não já à que incida sobre actos do executivo. Com isso, aparentemente, escaparia ao tipo de críticas como as formuladas acima. Não nos parece, todavia, que assim seja, já que a inaptidão essencial que um Par-

- :- lamento teria para decidir da inconstitucionalidade de uma intervenção restritiva do poder executivo num direito fundamental é exactamente a mesma que tena para apre-ciar a inconstitucionalidade de uma lei que, antecipando o caso concreto, autonzasse o executivo a intervir restritivamente no direito fundamental verificadas que fossem aque-las aquelas circunstâncias concretas. Ou seja, as razões que, em nosso entender, deter-minam que deva ser um tribunal, e, em última análise, a jurisdição constitucional, a deci-dir o caso no exemplo em que o Governo dinamarquês proibia a publicação das caricaturas por ofensa dos sentimentos religiosos dos islâmicos, são exactamente as mesmas razões que determinam que deva ser a mesma jurisdição constitucional a deci-dir da inconstitucionalidade de uma lei que autoriza o Governo dinamarquês a proibir a publicação de escritos ou caricaturas que ofendam os sentimentos religiosos.

(40) Para sustentar a sua posição e ridicularizar a ideia dos direitos como trun-

- ' fos, WALORON (Derecho y desacuerdos, cit., págs. 20 s.) cita Hooses do Leviarhan: apelar à 'iight reason" como juiz para, no fundo, apenas procurar impor a sua própria

1 - Direitos como trunfos contra a "mi orla 49

V - DIREITOS COMO TRUNFOS E RESERVA GERAL !MANENTE DE PONDERAÇÃO

1. A segunda das questões atrás enunciadas -respeitava a saber

quando há ou não lugar a limitações. A regra geral é de que todos os

direitos fundamentais são limitáveis, não há direitos absolutos, no sen-

tido de que todos os direitos, dependendo das circunstâncias concretas

do caso e dos valores e bens dignos de protecção que se lhes oponham,

podem ter de ceder. Pode dizer-se que essa limitabilidade decorre da pró-

pria natureza dos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais, todos

eles, quando são constitucionalmente consagrados são, por natureza,

imanentemente dotados de uma reserva geral de ponderação (41) que

razão à dos demais, seria tão intolerável como 'num jogo de cartas, após se determinar qual é o trunfo, pretender utilizar como tal, em cada momento, o- naipe de que se têm mais car - Las na mão'. Para WAWR0N, a concepção dos direitos como trunfos seria o exemplo desta atitude. Curiosamente, é a proposta de WÃLDRON que verdadeiramente reproduz este comportamento. - De facto, alegar a existência de um desacordo persistente sobre o con-teúdo e alcance dos direitos (os trunfos) para remeter, a cada momento, a arbitragem do desacordo para a decisão da maioria, seria, precisamente, entregar a esta o direito de decidir em cada jogada qual o trunfo que deveria valer. É que, em democracia, quem está em condições de impor a sua razão aos demais como se ela fôra a "right reason" é, afi-nal, a maioria. Dar-lhe ainda a possibilidade de dizer a cada momento qual é o trunfo seria acabar com o jogo, a não ser que, como WAWRON pretende, se parta do princípio que entre maioria e minoria estas coisas não ocorrrtn assim e que "os membros da sociedade se com-portam de boa fé nas questões controvertidas sobre direitos" (ap. cii., pág. 21).

Sustenta WALDRON (op. ci:,, págs. 290 sj que havendo desacordo na resposta à per-gunta que direitos tenho? a resposta correcta será: 'as pessoas cujos direitos estão em causa têm o direito de participar em termos iguais nesta decisão' ao invés de confiar a decisão a uma elite académica ou judiciária- Contudo, quando se passa do mundo das expectativas e pressupostos optimistas sobre a boa fé dos participantes na decisão para o mundo real da decisão tomada através da representação parlamentar, aquela resposta idílica tem uma tradução muito mais prosaica, ou seja, a pergunta que direitos tenho? acaba a ser respondida, por WAL0RON, da seguinte forma: "se há desacordo sobre que direitos tenho, então a solução correcta é entregar essa decisão aos que se opõem aos meus direitos", já que, obviamente, eu só apelo aos meus direitos quando entendo que a maioria política (as entidades públicas legítimas) não estão a atender devidainente ou estão a violar os meus direitos.

(41) Cf. J. NovAis, As Restrições aos Direitos Fundamentais,.,. cit., págs. 569 ss.

Page 25: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

LJJ 1 ÓJd Lj

50 Direitos Fundamentais: Trunfos Contra a Maioria

tem precisamente aquele sentido: independentemente da forma e força constitucional que lhes é atribuida, eles podem ter de ceder perante a maior força ou peso que apresentem, no caso concreto, os direitos, bens, princípios ou interesses de sentido contrário.

Esta ideia de reserva geral imanente de ponderação não deve, em caso algum, ser confundida com a teoria dos limites imanentes dos direitos fundamentais e pode mesmo dizer-se que se lhe opõe radical-mente. A reserva de ponderação de que falamos é o pressuposto lógico ou o fundamento constitucional implícito que justifica a limitabilidade dos direitos fundamentais, enquanto direitos garantidos por normas for-malmente constitucionais. Ao nível da fundamentação, ela constitui o contraponto que garante o equilíbrio entre princípio democrático e prin-cípio do Estado de Direito, conferindo proporção e medida ao simultâ-neo reconhecimento da indisponibilidade dos direitos fundamentais, da ideia de direitos como trunfos.

Assente a limitabilidade dos direitos fundamentais, orientamos, em seguida, todo o esforço dogmático posterior para uma estratégia de controlo adequado das restrições aos direitos fundamentais justificadas como resul-tado da necessária e ineliminável ponderação dos interesses jusfundamen-tais com os interesses ou bens jurídicos que se lhe opõem e que são igual-mente dignos de protecção, o que exige, em primeiro lugar, a evidenciação do conflito e a identificação aberta dos interesses materiais em confronto, como primeiro requisito da sua ponderação adequada. Ora, como procu-ráinos demonstrar abundantemente (42), a teoria dos limites imanentes ou estratégias afins igualmente inspiradai na teoria interna constituem expres-são de uma estratégia de ocultação que tem exactamente o sentido e efeito contrários e que, por isso mesmo, reputamos de totalmente inadequada.

Há, por outro lado, que fazer outra distinção: esta ideia de limi-tabilidade, de reserva gemi imanente de ponderação, é válida quando se pers-pectiva o direito fundamental como um todo, isto é, na sua globalidade, con-siderando o conjunto ou o feixe de todas as posições jusfundamentais referidas a um dado direito fundamental. Quando o legislador constituinte

(42) Ibiden,, págs. 309 ss. e 390 ss.

1 - Direitos como trunfos contra a maioria 51

consagra um direito fundamental com um elevado grau de indeterminação e generalidade, não pode, em seguida, prever, enumerar e regular exausti-vamente todas as incontáveis e hipotéticas situações da vida real em que o bem protegido pelo direito fundamental pode vir a ser desvantajosa-mente afectado por razões de incompatibilidade com a necessidade de pro-teger outros bens ou interesses igualmente dignos de protecção. Antes reconhece, implicitamente, poique a própria natureza das coisas não lhe deixa sequer outra possibilidade, que, apesar da não previsão expressa, o direito fundamental em causa, considerado como um todo, é limitável.

Há, todavia, situações em que a própria Constituição garante uma faculdade, uma garantia, uma pretensão ou uma faceta particular do direito, mas já a título definitivo, absoluto, ou seja, o legislador consti-tuinte fez logo ali, ele mesmo, todas as ponderações que havia a fazer e decidiu-se intencionaimente pela garantia, a título definitivo, do inte-resse jusfundamentai em questão.

Por exemplo, quando o legislador constituinte consagra o direito à

vida, nesta formulação genérica e relativamente indeterminada, fá-lo-nai. sua dimensão de direito como um todo (ALEXY). Neste sentido, apesar da sua importância capital, até mesmo o direito fundamental à vida pode ter de ceder, em casos concretos, e independentemente das dife-renças de opinião que a propósito se suscitam, perante outros interesses que aí apresentem um peso superior e que podem ser o direito à vida de outro ou outros indivíduos, interesses compulsivos de segurança do Estado e da comunidade no seu conjunto, a própria dignidade da pessoa humana (por exemplo, para quem considera que dela decorre o direito, em certas circunstâncias, a pôr termo à própria vida) ou o interesse na prevenção e punição dos crimes (obviamente, também neste caso, só para quem considere que a admissibilidade excepcional da pena de morte não viola o princípio do Estado de Direito).

Já quando o legislador constituinte decide tratar especificamente de faculdades parcelares, garantias, pretensões ou direitos autonomizá-veis (embora integrantes do direito à vida corno um todo) e diz "é proi-bida a pena de morte' óu, relativamente a outros direitos, como o direito à liberdade pessoal, diz que é proibida a prisão perpétua ou que a pri-são preventiva não pode durar mais do que um certo prazo pré-estabe-lecido, ou que são nulas as provas obtidas mediante tortura, aqui, em qual-

- - -

Page 26: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

52 Direitos Fundamentais: Trunfos contra a Maioria / - Direitos como trunfos contra a maioria 53

quer destas situações, legislador ordinário, tribunais e Administração não

têm mais que ponderar ou que considerar a hipótese de limitações a um

direito assim tão clara e definitivamente regulado: só têm que aplicar a

norma constitucional. Se não o fizerem estão a violar a garantia consti-

tucional, estão a cometer uma inconstitucionalidade. Em linguagem dwor-

kiniana ou alexiana diríamos que estas últimas normas constitucionais, ou

normas deste tipo, são regras, têm a natureza de regras.

Mas, no mundo dos direitos fundamentais, sobretudo quando

nos movimentamos no plano constitucional, estas regras são a excepção.

Na generalidade dos casos, sobretudo quando o legislador constituinte

trata o direito fundamental como um todo, na sua globalidade, as nor-

mas constitucionais não assumem a natureza de regras, mas antes de princípios. É o que se verifica quando o legislador constituinte diz que

é garantida a liberdade de religião ou a liberdade de expressão ou o

direito de pmpriedade. Ora, precisamente, esta natureza estrutural de pain-

cípios ou, como preferinios dizer, de direitos sujeitos a uma- reserva-

geral imanente de ponderação, que os direitos fundamentais apresen-

tam em geral, significa que, apesar da sua consagração constitucional, os

direitos fundamentais podem ter que ceder perante outros bens e interesses

que apresentam no caso concreto um peso que força a compressão ou

limitação do direito fundamental.

Pode até suceder, e isso ocorre mais frequentemente do que se

possa pensar, que o candidato a prevalecer sobre o direito fundamental,

ou, mais rigorosarnente, sobre o interesse jusfundamentalmente protegido,

seja um bem, princípio ou interesse que não possua reconhecimento constitucional expresso, mas que, todavia, reivindique nas circunstâncias

do caso concreto, não obstante a sua natureza infraconstitucional, um peso

substancial que se imponha ao peso, de sentido oposto, do bem jusfun-

damental. Ora, esta reivindicação, se bem que aparentemente contrária

à ideia dos direitos fundamentais como trunfos, é no entanto, em nosso

entender, com ela perfeitamente compatível.

Considere-se um exemplo que ilustra adequadamente o que dizemos,

ou seja, que permite compreender o sentido que sustentamos para a

imagem dos direitos como trunfos. Uma manifestação política de um

grupo minoritário convocada para uma avenida central de uma grande

cidade e para uma hora de grande movimento pode ser desviada, con-

dicionada ou até, em circunstâncias extremas, mesmo inviabilizada por

simples, mas consideráveis, razões de bem-estar associadas à fluidez

do tráfego, ou seja, em nome de um interesse que, à partida, não tem

valor constitucional. Já não poderá, todavia, ser desviada, condicio-

nada ou inviabilizada por facto de o Governo legítimo considerar que o sentido político da manifestação é ofensivo para um outro Estado e que

pode afectar negativa e gravemente as relações diplomáticas e a convi-

vência pacífica com esse Estado, isto é, a manifestação não poderá ser

restringida em nome de interesses para os quais se poderia facilmente

encontrar uma cobertura constitucional. Isto é, um interesse infra-

constitucional pode justificar uma restrição ao exercício de um direito fun-

damental, enquatito que um outro interesse, aparentemente de relevo

constitucional formal indiscutível, é incapaz de o fazer (43).

(43) Sobre esta possibilidade de invocação de um interesse fornialmente infra-constitucional para fundamentar restrições a direitos fundamentais, posição que defen-demos contra a generalidade da doutrina tradicional, cL J. NovAis, As Restrições aos Direi-tos Fundamentais..., cit., págs. 602 ss.

Recentemente, GOME5 CANOULHO (cf. Direito Constitucional,.,, cit., págs. 1272 s.) criticou esta nossa posição, com argumentos que, salvos a grande consideração e o muito respeito que nos merece o Professor de Coimbra, não podemos acompanhar. GoMes C.noTiLIIo reconhece o 'realismo' da nossa posição, o que só pode significar, afinal, reconhecer que na realidade dos factos é assim que as coisas se passam. Toda-via, a nossa posição sena de rejeitar porque (i) dissolve a força normativa da Constituição e (ii) entrega os direitos fundamentais a quem, no concreto, tem de ponderar a respec-tiva aplicação, por exemplo, ao "polícia' ou ao "governador civil".

A primeira crítica não colhe- E que a posição alternativa não deixa de aceitar a necessidade de cedência dos direitos fundamentais em situações como as que exempli-ficamos no texto (é o dito "realismo"); simplesmente, para escapar ao reconhecimento da heresia, procede previamente à "elevação" artificial a bem constitucional de tudo quanto possa colidir com os direitos fundamentais e disputar-lhes a prevaléncia nos casos concretos- Ora, em nosso entender, aquilo que dissolve a força normativa da Constituição é precisamente essa operação, ou seja, essa "elevação", meramente for-mal e completamente manipulável. a "bem constitucional" de tudo quanto, na reali-dade, de alguma forma possa conflituar com os direitos fundamentais e justificar a respectiva cedência, o que significa transformar a Constituição, já não apenas em supermercado (F0RSTII0FF), mas em verdadeira grande superf(cie, onde o consumi-dor/intérprete encontra tudo o que necessita para fundamentar aquela cedência; da flui-

Page 27: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

54 Direitos Fundamentais: Trunfos Contra a Maioria - Direitos co/no trunfos co,ztra a maioria 55

2. Este realismo não deve, por último, ser confundido com admis-

sibilidade indiferenciada e irrestrita de qualquer bem ou interesse poder

funcionar na qualidade de candidato bem sucedido a fundamento de

restrição de um direito fundamental. Tal constituiria uma negação aca-

bada da própria ideia de indisponibilidade dos direitos fundamentais ou

dos direitos fundamentais como trunfos contra a maioria (a). Significa,

dez do tráfego ao lazer, do desporto ao património cultural, do bem-estar à paz no mundo, dos direitos das futuras gerações aos direitos dos animais, não há nada que

esteja excluído de potencial consideração como bem constitucional. GoMas CAN0111-lo

censura-nos o facto de fazermos do nível constitucional ou infi-aconstitucional apenas um dos factores a ter em conta na ponderação; porém, para a posição alternativa nem isso acaba por ser. De facto, se tudo pode ser bem constitucional, se qualquer interesse infraconstitucional pode, com a maior das facilidades, ser reconstnsfdo como sendo de nível constitucional, seja porque a Constituição lhe faz uma qualquer menção, seja por-que se encontra para ele uma qualquer referência, por mais remota que seja, a uma norma constitucional (por cxemplo, a uma norma de competência), então, na prática, aquela diferença constitucional/infraconstitucional, pura e simplesmente, já desapare-ceu, já foi privada de qualquer força normativa real, mas a responsabilidade de tal perda cabe à posição doutrinAria tradicional.

A segunda crítica - "entregar os direitos fundamentais ao polícia ou ao governador civil" - erra o alvo, uma vez que confunde a questão de fundo (quais os bens que podem justificar a cedência de um direito fundamental) com o plano competencial (a quem cabe determinar a prevalência). Sem procurar escamotear as diferenças que também nos separam da posição tradicional na questão da margem de intervenção da Administração no domínio dos direitos fundamentais, é óbvio que, também para nós, a última palavra deve ser do juiz e não do polícia ou do governador civil. A diferença está em que, para

nós (cf. As Restrições..., cit., págs. 821 ss), o critério do controlo judicial é um crité-rio materialmente fundamentável - o do peso dos bens ou interesses em colisão —, enquanto que, para a posição tradicional, a tentação é para tudo decidir, em última aná-lise de forma tendencialmente arbitrária, através do argumento da reserva de lei tal como é interpretado/manipulado no altar formalista das distinções conceptuais (quando se pretende fundamentar a não invalidação, o acto da polícia ou do governador civil é qualificado de mera concretização dos limites imanentes do direito fundamental ou de

confonnaçãolcondicionanzento do seu conteúdo ou do seu exercício e, como tal, não vio-ladora da reserva de lei; quando se pretende invalidar, então o mesmo acto passa a ser identificado como uma restrição ao direito fundamental e, nessa altura, restrição ilegí-tima por não dispor da necessária cobertura legal ... ).

(44) Também quanto a este ponto agradecemos ao Professor GoMas CANOnLHO, e às reservas e dúvidas que tem colocado as posições que vimos sustentando, o estímulo para precisarmos e aprofundarmos aquilo que, em todo caso, já estava plenamente con-tido no nosso As Restrições.... cii Basicamente, o Professor de Coimbra (em manifestado

é certo, que questões de precedência material devem ser resolvidas no

terreno dos argumentos materiais atinentes ao peso relativo e à natureza dos

interesses em confronto, e não com o auxílio de prelensas fundamenta-

ções conceptuais ou justificações formalistas que uma concepção material

do Estado de Direito congenitamente repele. E, precisamente por isso,

qualquer candidato a fundamento de restrição de direitos fundamentais,

mesmo que admitido a jogo pela ausência ou inoperacionalidade de pre-

tensos critérios formais de exclusão, como os assentes na distinção entre

bens constitucionais ou infraconstitucionais, terá, ainda, independentemente

do peso, de passar por diferentes e apertados crivos constitucionais.

Terá, em primeiro lugar, que se conformar com a concepção

dos direitos fundamentais como trunfos, o que, desde logo, exclui as

justificações de restrição exclusivamente baseadas em opções políticas

ou mundividenciais particulares, mesmo quando escudadas no períme-

ti-o da livre margem de conformação do legislador democrático; por

maioria de razão, exclui análogas fundamentações provindas da Admi-

nistração ou do judicial. Por outro lado, a força de trunfo que os direi-

tos fundamentais apresentam, obriga o candidato a exibir uma força ou

premência de realização capaz de vencer a força de resistência qualifi-

cada do direito fundamental, envolvendo a necessidade de o próprio

bem candidato a fundamentar a restrição ser, também ele, e indepen-

dentemente de consagração constitucional expressa, especialmente trun-

fada por outras qualidades ou características, estruturais ou conjunturais,

particularmente relevantes numa sociedade democrática.

Tem ainda que visar, exclusivamente, "o reconhecimento e o

respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as

justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa

sociedade democrática", como se diz no art. 29°, n.° 2, da Declaração

o receio de que a nossa reserva geral imanente de ponderação se venha a traduzir na admissibilidade de quaisquer restriçó'es aos direitos fundamentais. Porém, isso sena esquecer que essa nossa tese da reserva geral imanente de ponderação vem combinada, de forma indissociável, com uma concepção dos direitos fundamentais como trunfos

relativamente à qual, ei pour cause, também GoMas CANorlulo parece manifestar reser-

vas que, todavia, não estão perfeitamente esclarecidas.

Page 28: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

56 Direitos Fundamentais: Trunfos Contra a Maioria 1 C'ap. 1 - Direitos como trunfos contra a maioria 57

Universal dos Direitos do Homem e noutros instrumentos internacio-nais de protecção dos direitos, entendidos, não enquanto fundamentos autónomos de limites à liberdade individual, mas na qualidade de stan-

d.ards mínimos de protecção que funcionam como limites aos limites dos direitos fundamentais. Isto é, de todos os eventuais candidatos a fun-damentar a limitação de um direito fundamental, só são admitidos à ponderação os que, para além dos outros requisitos, se destinarem a prosseguir um daqueles fins (45),

A respectiva realização tem, por último, que se conformar, nas circunstâncias do caso concreto, com as exigências positivas e negativas impostas pela observância dos princípios constitucionais estruturantes do Estado de Direito democrático.

Finalmente, e porque se trata de um processo de ponderação, as qualidades atinentes ao peso ou à premência de realização do bem jus-tificador da restrição não operam em abstracto nem em absoluto. A sua prevalência dependerá, também, do maior ou menor peso da facul-dade, pretensão ou situação, sempre parcelar, relativa ao bem jusfunda-mental sujeito à eventual restrição. É certo que o direito fundamental tem uma natureza de trunfo, mas, no caso concreto, nunca ou só muito raramente é o direito fundamental como uni todo que está em causa; logo, mesmo tendo em conta a sua natureza de bem constitucional, a sua força de resistência variará significativamente em função do peso e alcance da particular dimensão afectada nas circunstâncias da situação concreta, real ou antecipada norrnativamente pelo legislador.

VI - DIREITOS COMO TRUNFOS E GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ENQUANTO PROBLEMA CONSTITUCIONAL

Tratamos, finalmente, da terceira das questões delineadas, ou seja, a da garantia dos direitos fundamentais enquanto problema constitucio-

(5) Cf. J. NOVAIS, As Restrições..., cit., págs. 520 ss.

nal no quadro de uma concepção dos direitos fundamentais como trun-fos: quando uma limitação ou restrição de um direito fundamental exi-gida pela necessidade de protecção de um outro bem igualmente digno de protecção deve ou não ser considerada inconstitucional.

A concepção dos direitos fundamentais como trunfos contra a maio-ria defronta-se com uma primeira dificuldade no momento constituinte

originário (46) e chega, no final, a um quase paradoxo. Com efeito,

começando por atribuir aos direitos fundamentais a natureza de trunfos contra a maioria, acabámos a concluir que, na sua generalidade, os direi-tos fundamentais são limitáveis, têm que ceder, podem ser restringidos. E, de acordo com o princípio geral da reserva de lei própria do Estado de Direito, cabe ao legislador ordinário proceder primariamente a essa limitação, seja quando a Constituição expressamente o autoriza a limi-tar o direito fundamental, seja, no silêncio da Constituição, quando o legislador ordinário antecipa conflitos ou colisões entre os direitos fun-damentais e outros bens, que podem ser também direitos fundamentais de outros titulares ou até do mesmo titular, e, nessa ponderação, admite ou prevê a limitação/cedência do direito fundamental em questão. Mas, o legislador ordinário é. em Estado de Direito democrático, a expressão da maioria política, da maioria de governo; logo, dissemos que os direi-tos fundamentais eram trunfos contra a maioria, mas admitimos e defen-demos, agora, que essa mesma maioria possa limitar os direitos funda-mentais. Como resolver a questão?

() Referimo-nos a uma dificuldade cuja análise, todavia, deixamos fora do

âmbito deste trabalho e que respeita à relação entre direitos fundamentais e maioria no momento constituinte originário e à projecção desse momento nas relações entre poder constituinte e poderes constituídos (cf., a propósito, a referida controvérsia

HABERMASIRAWLS, Debate sobre ei Liberalismo Político, cit., págs. 64 ss. IHABERMASJ

e págs. 101 ss. (RAWLS]). De facto, a ideia de direitos como trunfos traduz a ideia de

indisponibilidade dos direitos fundamentais, considerados que eles estão. em Estado de

Direito, como subtraidos à vontade e à decisão da maioria. Porém, há um primeiro

momento em que se teve de considerar quais são os direitos fundamentais, quais são, afi-nal, os limites intransponíveis pela maioria Ora, em Estado de Direito democrático, quem fixa os contornos desse espaço, quem fixa esses limites só pode ser a própna maioria, directa ou indirectamente, de forma simples ou qualificada, mas sempre uma maioria que no momento constituinte se auto-limita em função da protecção dos direitos funda-mentais ou aceita a limitação que os direitos fundamentais lhe impõem.

Page 29: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

58 Diteitos í'u,zclamentais: lr,uz/ bs Contra a Maioria

Cnp. 1 .- Direitos (0H10 Inufos contra a maioria 59

1. O problema é que a qualidade de trunjb deve ser adequada-

mente compreendida; se é verdade que a vontade de muitos vale o

mesmo que a vontade de um para efeitos de peso na ponderação em que

esteja em causa a eventual cedência de um direito fundamental - e aí

se revela a força de trunfo -, isso não significa uma prevalência indis-

criminada dos direitos fundamentais no confronto com outros bens, que

podem, igualmente. ser trunfados por outros princípios ou interesses

jusfundamentais (por exemplo, o princípio da dignidade da pessoa

humana ou direitos fundamentais colidentes).

a) Durante muito tempo, o princípio ia dubio pro libertate (47) foi

visto como princípio basilar do Estado de Direito, mas não pode mais

pretender uma validade generalizável e indiscutível. Num Estado que

assume como seus fins essenciais a garantia da dignidade da pessoa

humana e da autonomia individual e a promoção dos direitos funda-

mentais dos cidadãos, praticamente todos os interesses (estatais, comu-

nitários ou individuais) potencialmente conflituantes com os direitos

fundamentais e que eventualmente justificam a sua restrição são interesses

que, directa ou indirectamente, imediata ou remotamente, possuem tam-

bém uma referência a direitos fundamentais, pelo que a prevalência

indiscriminada de um qualquer direito fundamental redundaria, inevita-

velmente, na restrição ou afectação - que sendo indiscriminada seria

igualmente injustificada - de outro ou outros direitos fundamentais (48).

Qualquer direito fundamental cede, e deve ceder, quando nas cir-

cunstâncias do caso concreto há um outro valor, bem ou princípio que

apresenta maior peso que o interesse jusfundamental. Cabe, então, à juris-

dição constitucional assegurar a força de resistência dos direitos funda-

mentais, verificando quando o peso de um interesse digno de protecção

é suficientemente forte para justificar, à luz dos princípios constitucio-

Segundo o qual. como diziam GOMES CANOTILIIO/V1TAI. MORHRA. "em caso

de dúvida, deve prevalecer a interpretação que conforme os casos. restrinja menos o direito fundamental, lhe dê maior protecção, amplie mais o seu âmbito, o satisfaça em maior grau' (Fundamentos da Constituição. Coimbra, 1991. pág. 143). Criticando Lima

concepção absoluta do princípio, cr.. todavia. GOMES CANOTILIIO, 3! cd. do Direito

Constitucional, Coimbra. 1983, págs. 240

Cf. J. NovAis, As Restrições aos Direitos Fundamentais.... cii., púgs. 708 55.

nais, a cedência do direito fundamental ou quando, pelo contrário, a

invocação de uma razão de interesse público apenas esconde o desígnio

de imposição da mundividência particular dos detentoi'es conjunturais do

poder em atropelo ao sentido dos direitos fundamentais enquanto trun-

fos contra a decisão da maioria.

h) Ora, em todos os casos verdadeiramente difíceis, esta verifica-

ção judicial não pode prescindir de juízos de ponderação e valoi'ação dos

bens, princípios ou interesses em colisão, com o que se entra no domí-

nio mais delicado do exercício da função jurisdicional de controlo da legi-

timidade das restrições aos direitos fundamentais. De facto, sob pena de

violação dos seus limites funcionais, a eventual decisão judicial de inva-

lidação da decisão política dos tituLares do poder político só é legítima

quando, por um lado, se baseia nos valores substantivos constitucionais

- os direitos fundamentais - e, por outro, pode ser fundamentada

segundo parâmetros jurídicos objectivos e não enquanto formulação e con-

cretização de unia política alternativa à do legislador democrático,'para

que o juiz constitucional careceria da necessária legitimidade.

Se estes requisitos não fossem atendidos, estaríamos, como pre-

tende WALDR0N (40), a substituir erroneamente a decisão democráti&a do

legislador pela decisão elitista do juiz constitucional. O que se exige da

jurisdição constitucional, sob pena de violação dos seus limites funcio-

nais, é que a decisão seja tomada, fundamentada e justificada, não de

acordo com as opiniões políticas, religiosas, morais ou filosóficas par-

ticulares de cada um dos juízes, mas segundo critérios jurídicos, inter-

subjectivamente acessíveis, compreensíveis e criticáveis, com recurso

aos instrumentos, princípios e standards próprios da função, e, de acordo

com a ideia rawlsiatia da reciprocidade e da razão pública, recorrendo

a uma argumentação objectiva ou razoavelmente susceptível de ser com-

partilhada por todas as concepções ou niundividências integrantes do

pluralismo razoável das nossas sociedades abertas.

Enquanto que os parlamentos democráticos são os fora adequados

a arbitrar o desacordo através da busca política do que é bom, do que

Assim. J. WALORON. Derecho y desocue,rlos, cii.. págs. 253 ss. e 290 ss.; J C.

BAYÓN." Derechos, democracia y Constitución". cii.. págs. 216 ss.

Page 30: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

60 Direitos Fundamentais: TnmtiJ'os Contra cm Maioria - Direitos como trunfos contra ci maioria 61

é bem ou do que é justo - o que, e aceitando a posição de WAL-

DRON (50) de que esta arbitragem do desacordo, se bem que tendo no con-

senso a lógica interna da deliberação ("argumentar de boa-fé significa

apresentar razões que se pensa que o outro deve aceitar"), não tem que

erigir o resultado consensual em ratio do procedimento democrático de

decisão -.já as jurisdições constitucionais são verdadeiramente os foi-a

da razão pública (SI), buscando jurídica e deliberativamente a solução

do caso através do e no Direito (Constitucional) que está, e não em

termos de resultado produzido pela agregação das concepções políticas

particulares ou das doutrinas compreensivas assumidas por cada um

dos juízes ou das suas concepções de justiça (ainda que ao acha,nento

do Direito Constitucional que está, e porque se lida com princípios e

direitos fundamentais, não sejam indiferentes as pré-compreensões, o

sentido de justiça e os juízos morais de cada um dos juízes). É porque as duas instâncias de arbitragem do desacordo têm uma

natureza diferente que, ao contrário do que acontece na instância parr

lamentar, onde a expressão do desacordo e dovoto de vencido é um fac-

tor e sintoma positivo de vitalidade da democracia, na jurisdição cons-titucional a expressão do voto de vencido é sempre, de algum modo, o

reconhecimento de alguma espécie de fracasso ou de não integral rea-

lização do ideal de realização da justiça constitucional em Estado de

Direito (52)

2. Considerando, porém, que, no domínio dos direitos fundamen-

tais, e sempre que esteja em causa a decisão de um caso difícil, o

recurso sistemático à ponderação de bens é, com todos os seus riscos e

insuficiências, inevitável e, daí, a alta probabilidade de um resultado

de maioria/minoria na própria instância jurisdicional, há, pelo menos, que

desenvolver uma estratégia de redução dos perigos de subjectivismo,

(30) Cf. Derecho y desacuerdos, ele.. págs. III ss. (Si) Em, regime constitucional com judicial rei'ieiv. a Suprenu' Gonri é o exem-

plo institucional da razão pública e a razão pública é a única i-alão que o Tribunal

pratica- Assim, RAwis, Poluira! Libe,-alis,n, cii, pãgs. 231 ,ss. (52) Quando se anuncia o resultado de uma votação parlamentar de maionatmino-

ria é a "democracia a Funcionar"; quando se anuncia uma decisão do Tribunal Consti-tucional de sete juizes a Favor e seis contra "houve alguma coisa que não correu bem"...

decisionismo e intuicionismo que ameaçam estruturalmente esta meto-

dologia (53). Da nossa parte (54), orientamos esse esforço dogmático em

duas direcções de um lado, no plano das exigências de racionalização

e objectivização interna dos procedimentos judiciais de ponderação; de

outio lado, no plano da estruturação desses juízos como recurso a pai'â-

meti'os externos de conformidade, como são os chamados limites aos linii-

tes dos direitos fundamentais.

a) Através da primeira instância, a tónica é colocada numa especial

exigência de fundamentação racional das decisões de ponderação que as

torne intersubjectivamente acessíveis, compreensíveis e abertas à crí-tica pública. Num sentido ainda mais premente, considera-se que as

decisões judiciais fundadas em ponderação de bens só são adequadas quando se puderem sustentar na formulação de uma norma construída a

partir da decisão do caso concreto e capaz de fundamentar racional-mente essa decisão de forma coerente e consistente no sistema de nor-

mas constitucionais vigentes, mas que seja também intrinsecamente sus-

ceptível de generalização e aplicação a todas as situações que repliquem

as mesmas ou análogas circunstâncias de facto (55).

Pode, nesse quadro, revelar-se da maior utilidade, na prossecução' do mesmo fim de racionalização e objectivização das decisões de pon-

deração, o recurso a procedimentos típicamente utilizados pela dogmá-

tica constitucional norte-americana, os standards ou tests diferenciados

de controlo das restrições aos direitos fundamentais, que estruturam e enquadram os juízos de ponderação segundo grelhas pré-estabelecidas e

longamente testadas, criticadas e aperfeiçoadas (56). Dessa forma, incre-

menta-se a previsibilidade e igualdade na aplicação do Direito e reduz-se

o subjectivismo através da construção de uma rede de decisões de pre-

Cf., por último, em esforço convergente de racionalização dos procedimen-

tos de ponderação, A. PAuLA DE BARCELLOS. Ponderação, Racionalidade e Actividade

Jurisdiciotittl, Rio de Janeiro, 2005. De forma desenvolvida, J. Novis, As Restrições aos Direitos Fundatuen-

tais,,., cii, págs. 639 ss. e 727 ss. lbidcm, págs. 892 ss.; A. PAULA DE BARcELLOS, Ponderação.... cit..

pãgs. 125 ss. Ct. J. NovAis, As Restrições aos Direitos Fundamentais... cit', págs. 897 ss

Page 31: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

62 Direitos Fundanien tais: Tizi, fos (,o,,! ia a Maioria - Direitos como trunfos rotina a niaivela 63

cedência traduzidas em regras progressivamente densificadas e estabilizadas

de decisão dos casos concretos, ainda que evolutivamente abertas à crítica

e, dependendo de correspondente e acrescido ónus de argumentação, à

possibilidade de reconsti-ução, de superação ou de revogação.

b) Através da segunda instância, as decisões judiciais no âmbito da

actividade de controlo da constitucional idade das restrições aos direitos

fundamentais estruturam-se com o recurso à aplicação dos parâmetros

constitucionais a que os actos estatais de limitação da liberdade indivi-

dual em Estado de Direito devem invariavelmente observância, como

sejam os princípios da igualdade, da proibição do excesso ou da protecção

da confiança, todos eles, de resto, expressão e corolário do princípio

da dignidade da pessoa humana tal como, atrás, o entendemos (57). Na

aplicação obrigatória destes parâmetros no processo de controlo da cons-

titucionalidade das restrições, o tribunaL fica obrigado a patentear, de

forma clara e estruturada em função da referência aos específicos limi-

tes aplicáveis, o sentido e o processo de construção dos juízos de pon-

deração a que recorre, com os consequentes ganhos em racionalidade e

segurança jurídica das decisões judiciais.

3. Em qualquer destas duas instâncias, a ideia dos direitos como

trunfos, se adequadamente compreendida e aplicada, desempenha um

papel de relevo quando os juízes recorrem à metodologia da ponderação

de bens, seja para determinarem, em primeiro lugar, a eventual preva-

lência do interesse pretensamente justificador da restrição do direito

fundamental, seja para verificarem a constitucionalidade da concreta

medida restritiva.

a) Como se disse, a igual dignidade de todos determina que a opi-

nião e as visões do mundo da maioria tenham para o Estado de Direito

valor igual ao das opiniões e concepções de um só cidadão ou de uma

minoria. Logo, a maioria não se pode fazer prevalecer da força do

(57) CL J. NovAis. Os Princípios Constitucionais Estr,nnran!es da República Portuguesa. Coimbra. 2004. panini.

número para calar a voz da minoria ou para lhe impor visões, concep-

ções e formas e planos de vida alheios; se está em causa a restrição de

direitos fundamentais como efeito necessário da prossecução do inte-

resse público, não é o argumento maioritário, mas unicamente argu-

mentos de razão pública (58) que podem fundamentar a cedência do

direito. A maioria política pode decidir a limitação de direitos funda-

mentais, mas essa intenção vai estar sujeita ao escrutínio da justiça

constitucional, a quem cabe verificar se a pretendida cedência do direito

se deve ao peso específico que apresenta, face ao direito fundamental, o

interesse justificador da restrição (cuja prevalência deve, enquanto tal, ser

fundamentável em razões de razoabilidade e de justiça compartilháveis por

qualquer pessoa razoável e não apenas por aqueles que perfilhem uma dada

concepção particular do bem ou da vida virtuosa, isto é, no caso, a con-

cepção do bem dos titulares do poder) ou se o que está em causa é, no

fundo, a tentativa de sacrifício da liberdade individual ao fim de imposi-

ção dessa particular mundividência a toda a sociedade. Nos casos mais complexos de direitos fundamentais, e mesmo

quando se defende a adequação da existência de uma jurisdição consti-

tucional em Estado de Direito e um exercício pleno das funções que aí

lhe cabem, há uma tendência comum para uma autocontenção judicial

ou, pelo menos, a adopção judicial de uma moratória suspensiva relati-

vamente às escolhas passadas ou futuras do legislador democrático.

Ora, se há situações em que a deferência judicial para com o legis-

lador se aceita, já não deve haver qualquer condescendência sempre

que a ideia dos direitos fundamentais como trunfos, nas circunstâncias

atrás delineadas, cobre aplicação. É precisamente e sobretudo nesses

casos - quando é possível identificar uma intenção da maioria política

ou da mundividência conjunturalmente dominante, assente exclusiva-

mente numa posição de força, de impor a toda a sociedade essa visão

particular ou de comprimir ou suprimir os direitos das posições mino-

ritárias ou mais débeis - que a intervenção da justiça constitucional se

revela mais premente e que não há Lugar para a contenção judicial (59).

8) Cf.. porém. as reccntes criticas de DWORICIN. itistice itt Robes. cit..

págs. 251 ss. (59) CL Dw0RKIN. Justice ia Robes, cli.. págs. 254 ss

Page 32: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

64 Direitos Fundamentais: Trunfos Contra a Maioria Cai. 1 - Dizeiros conto irwzfos confia a maioria (35

Nessas circunstâncias. a concepção dos direitos fundamentais como trun-

fos fundamenta, justifica e orienta o labor judicial de controlo.

b) Desde logo, a necessária observância do princípio da dignidade

da pessoa humana e do direito de cada um a ser tratado com igual con-

sideração e respeito por parte do Estado, determina que, sempre que estejam em causa limitações ou restrições a direitos fundamentais com

presença de categorias ou factores suspeitos (60), o controlo judicial

deva ser muito mais estrito. Ora, em Estado de Direito, factores suspeitos

são todos aqueles em que historicamente têm assentado as mais siste-

maticamente repetidas e injustificadas violações aos direitos fundamen-

tais, actuadas com desconsideração e discriminação dos sectores mino-ritários, marginais, mais débeis ou mais hostilizados pelos interesses e

preconceitos das maiorias. Nas nossas sociedades, factoreÊ suspeitos

são, designadamente, a raça ou a origem étnica, o sexo, a orientação

sexual, as convicções políticas ou ideológicas, as crenças religiosas, a lín-

gua ou a origem territorial. Nessas circunstâncias, isto é, na presença de uma categoria sus-

peita, a força de trunfo do direito fundamental determina que a entidade

que pretenda actuar a restrição seja capaz de ilidir a presunção de incons-titucionalidade, suportando o ónus especial de demonstrar que a afecta-

ção do direito fundamental é independente do factor de suspeição e se

justifica numa outra razão ponderosa e atendível que mereça precedên-

cia relativamente ao interesse jusfundamental restringido. É segundo esta ordem de ideias - onde a lógica dos direitos como

trunfos é particularmente evidente - que, por exemplo, uma manifes-

(60) Sobre esta ideia norte-americana das categorias ou classificações suspeitas.

cf. DUcAr, Modes o! Constitutionai Inierpreranon. Si. Paul, Minn., 1978. págs. 203 ss.;

ELY, Den:ocracy and Disinist. cit., págs. 206 ss.; NowAlc/R0TuNDA. Constitu! zonal Law,

5. cd., Si. Paul. Minn., 1995 págs. 600 ss.; BguccEp, Gn,ndreciue and Verfasswzgs-

gerichibarkeit ii, deu Vereinigten Staaien voz: Atnerika. Túbingen, 1978, págs. 53 ss.;

ALoso GARcIA, La ia! erpretación de ia Coas: iiución, Madrid, 1984. págs. 290 s.;

O'BR'cN. Co,zszünrio,zal Late and Pai iiics, II, New York, 2000. págs. 1279 ss.; J. NovAis,

As Resu-ições aos Direitos Funda,,ze,ztais,.., cit., págs. 923 ss., n. 1676, e Os Pz-znctpios

Coas: itucionais Est,-uzu,-anzes ... . c,t., págs. 113 ss.

tação política conduzida por um grupo minoritário pode ser inviabilizada

porque no lugar escolhido está prevista a realização de uma festa popu-

lar (interesse que, à partida, não tem ,-elei'âncio formal constitucional),

mas já não pode ser inviabilizada apenas porque o Governo considera que o sentido político dessa manifestação repugne ou ofenda os senti-

mentos da maioria da população. Idêntica razão justifica que a publicação jornalística de uma foto-

grafia ou de uma caricatura possa ser impedida porque atenta contra a

honra ou a privacidade de uma só pessoa, mas não já porque o Governo ou a maioiia, segundo a avaliação política particular que fazem da situa-

ção, entendam que ela pode pôr em causa os interesses económicos do

país ou até a sua segurança interna face a previsíveis retaliações.

c) Por último. mesmo quando a prevalência do interesse funda-

mentador da restrição do direito fundamental é aceite, isto é, mesmo quando se considera que um direito fundamental pode ser limitado, fica

ainda por resolver a terceira questão controversa enunciada, ou seja, a

verificação de quando a limitação, mesmo se admitida, é ou não incons-titucional. É que, mesmo se legítima, a restrição será inconstitucional se violar as exigências de Estado de Direito que se impõem a todas as medidas restritivas da liberdade, designadamente, entre outros princí-

pios, a proibição do excesso nas suas diferentes dimensões. Este princípio, que, independentemente de expressa consagração

constitucional, ocupa hoje, em praticamente todas as ordens jurídicas

de Estado de Direito, um lugar central enquanto instrumento de controlo judicial das restrições a direitos fundamentais, nas várias dimensões ou

tesles de controlo em que se decompõe (aptidão, indispensabilidade,

proporcionalidade, razoabilidade e deternjinabilidade (61)) está intimamente

associado ao princípio da dignidade da pessoa humana, ao primado da liberdade e à ideia da indisponibilidade dos direitos fundamentais

(62),

pelo que também ele, naquelas suas diferentes dimensões, deve ser inter-

Cf, J. NovAis, os Princ@ios Constitucionais Es! na arautos....cjt., págs. 167 ss.

Sobre esta associação, cf,, por último. E. ScHMIDT-JORTZIG. "Grundrechte

und Liberalismus" ia FIaR, 1, nt. pá5. 421.

Page 33: Profcssor da Faculdade de Direito de Lisboaesmec.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Jorge-Reis-Novais... · mentais e da força normativa da Constituição, ou, se se quiser,

66 Direitos F,,,w/arnentais: Trunfos Contra a Maioria

/ - Direitos conto trunfos contra a maioria 67

pretado e aplicado em conformidade à ideia dos direitos fundamentais enquanto trunfos contra a maioria.

4. É certo que, mesmo com estes esforços convergentes de redu-ção dos inconvenientes associados ao recurso à metodologia da ponde-ração de bens, permanecerá sempre uma zona de incerteza quanto à correcção das soluções que aí vierem a ser encontradas. Porém, se o caso de direitos fundamentais a decidir é verdadeiramente um caso difícil, essa incerteza é, pura e simplesmente, ineliminável, qualquer que seja a metodologia a que se recorra. Aos factores de redução do subjecti-vismo e intuicionismo aqui propostos não deve, pois, ser exigido mais que aquilo que eles podem objectivamente proporcionar: racionalizar e objectivizar a utilização do método, reduzir, de forma substancial e intersubjectivamente comprovável, aquelas insuficiências, mas sem a pretensão irrealizável de as eliminar em absoluto.

Da mesma forma, a ideia dos direitos fundamentais como trunfos contra a maioria pode desempenhar uma papel importante nesse esforço dog-mático, mas não se lhe pode exigir que proporcione resultados certos e me-

futáveis. Qualquer Governo, designadamente um Governo democrático, sempre que esteja em causa a restrição de um direito fundamental, procu-rará justificar as suas medidas restritivas, não como tentativa de imposição da sua visão particular ao resto da sociedade, mas como expressão da necessidade de prosseguir bens ou interesses objectivamente valiosos.

Caberá, então à jurisdição constitucional discernir quando se está, de facto, na presença de valores cujo peso justifica a compressão ou até a completa cedência do direito fundamental ou quando a invocação da prevalência desse outro interesse apenas oculta a tentativa de apro-veitar a ocupação conjuntural, se bem que democrática, do Poder, para restringir, segundo uma visão particular do que é o bem ou a vida boa,

bens que, por definição constitucional, não se encontram à disposição da maioria no Poder. Embora não possa proporcionar resultados indiscu-tíveis, uma compreensão adequada da natureza dos direitos fundamen-tais como trunfos, não apenas clarifica a legitimidade funcional para o desempenho dessas funções pelo poder judicial em Estado de Direito, como constitui um tópico sólido de referência materialmente orienta-dor da correspondente actividade de garantia dos direitos fundamentais.

No mesmo sentido, mas aí de forma mais objectivamente evidente, a ideia dos direitos fundamentais como trunfos é particulam'iente operativa nas situações em que a esfera de liberdade e autonomia de um indiví-duo, isolado ou como integrante de um grupo marginalizado, minoritá-rio ou mais débil, sofre as ameaças, a invasão ou as pressões, even-tualmente avassaladoras, provindas, não directamente do poder público, mas da parte de um meio social hostil ou de maiorias pouco tolerantes. A natureza de trunfo dos direitos fundamentais coloca, aí, sobre as auto-ridades públicas, especiais exigências, que o poder judicial deve acom-panhar e fazer cumprir, no domínio dos deveres de protecção estatal dos bens jusfundamentalmente protegidos (63).

Mais, a responsabilidade do poder judicial é aí ainda maior porque, objectivamente, a dependência ou condicionamento dos responsáveis políticos por juízos ou prognósticos de sucesso eleitoral os toma mais vulneráveis ao poder fáctico das maiorias ou dos mais fortes. Então, um escrutínio judicial inspirado na ideia dos direitos como trunfos deve ser ainda mais denso relativamente às medidas discriminatórias, diferencia; doras ou restritivas, que, directa ou indirectamente, afectem desvanta-josamente grupos ou indivíduos mais débeis, excluídos, minoritários, sobretudo quando essas medidas beneficiem de uma popularidade que as torne eleitoralmente compensadoras. Em democracia, a hipótese de uma medida restritiva da liberdade ou da igualdade ser eleitoralmente compensadora constitui um factor de suspeição e, como tal, deve mere-cer da parte do poder judicial, à luz da ideia dos direitos fundamentais como trunfos, a utilização de uma malha de controlo especialmente fina e exigente.

(67) Esta dimensão especui3ca dos direitos fundamentais remete para o tema da

sua eficácia nas relações entre particulares. Não desenvolvemos aquí a posição que

sustentamos acerca do problema. mas, como se depreende do texto, orientamo-nos para o seu enquadramento dogmático em termos de relevância da dimensão objectiva dos direi-

tos fundamentais. Nesse sentido, entendemos que os direitos fundamentais não valem directamente como trunfos contra outros particulares. mas que, designadamente em con-textos como os que referimos, a ideia dos direitos como trunfos cobra plena eficácia neste

domínio, através da imposição ao Estado, nessas circunstâncias, dos correspondentes e

especiais deveres de protecção. CL a propósito. infra, cap. II.