PROFA.DRA.ARILDA INES MIRANDA RIBEIRO Livre-Docente...

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1 PROFA.DRA.ARILDA INES MIRANDA RIBEIRO Livre-Docente em Estrutura e Funcionamento da Educação Básica. TEXTOS REFERENTES À FORMAÇÃO EDUCACIONAL BRASILEIRA e DIDÁTICA: PUBLICADOS EM REVISTAS, APRESENTADOS EM CONGRESSOS CIENTÍFICOS, de autoria de Arilda Inês Miranda Ribeiro. Email: arildaribeiro@terra.com.br Obs: Respeite o direito autoral. Ao referir-se a algum dos textos ou bibliografias mencionadas nos mesmos, mencione a referência bibliográfica. 2007

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PROFA.DRA.ARILDA INES MIRANDA RIBEIRO

Livre-Docente em Estrutura e Funcionamento da Educação Básica.

TEXTOS REFERENTES À FORMAÇÃO EDUCACIONAL BRASILEIRA e DIDÁTICA:

PUBLICADOS EM REVISTAS, APRESENTADOS EM CONGRESSOS CIENTÍFICOS,

de autoria de Arilda Inês Miranda Ribeiro.

Email: [email protected]

Obs: Respeite o direito autoral. Ao referir-se a algum dos textos ou bibliografias

mencionadas nos mesmos, mencione a referência bibliográfica.

2007

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1º. Texto) Sobre a Didática em Sala de aula:

Publicado em Junho de 2005 pela Editora Arte & Ciência

São Paulo

No livro organizado por Arilda Inês Miranda Ribeiro e Ana Maria da Costa Santos

Menin. Formação do Gestor Educacional: necessidades de uma ação

democrática.

METODOLOGIA DO ENSINO SUPERIOR: A FACE OCULTA DA SALA DE AULA.

Profa.Dra.Arilda Ines Miranda Ribeiro

Livre-Docente do Depto de Educação da FCT-UNESP

I-INTRODUÇÃO, II

MESTRE, PROFESSOR E EDUCADOR, III-DISCIPULOS,

ALUNOS, EDUCANDOS, III-FASES EDUCATIVAS E DIFERENTES DENOMINAÇÕES

UTILIZADAS PELOS ALUNOS PARA SEUS PROFESSORES IV-ESPAÇO

IDEOLÓGICO EMOCIONAL DA SALA DE AULA, V-ÉTICA PROFISSIONAL

DOCENTE.

I

INTRODUÇÃO.

É muito comum, na nossa época contemporânea, termos a figura do professor

em sala de aula. Ele ministra muitas vezes, várias disciplinas e para um número

considerável de educandos. No entanto, esse profissional não se dá conta dos diversos

aspectos teóricos, físicos, emocionais que o cercam em seu ato educativo.

Um problema que se assevera de imediato é que existem dois tipos de

professores: aqueles, que, tendo tido preparação pedagógica, não puderam valer-se

dela para a solução dos problemas com que se defrontam em suas relações com os

alunos e, por isso, voltaram-se as costas às teorias dos livros de pedagogia. O outro é

aquele dos docentes que, tendo ingressado no ministério de aulas sem formação

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especializada, tem caminhado pelo bom senso , pela imitação de seus antigos

professores, por tentativas e erros, adquirindo uma didática puramente empírica,

daquela denominada dá para o gasto . (Grisi, 1956, p.10) Basicamente esse último, ao

estudar no ensino superior, não cursou as licenciaturas. Sendo bacharel em

determinada profissão, iniciou sua carreira como professor como complemento de sua

atividade específica.

No que tange aos pressupostos teóricos e a conceituação, é mister que esses

profissionais, responsáveis pela transmissão e construção do conhecimento, tenham

acesso a trajetória da construção do conhecimento humano. É importante que

conheçam a antiguidade clássica, desde os pré-socráticos até os pensadores de nossa

época.

Para ser um bom professor, é importante levantar alguns questionamentos dessa

atividade: o que fundamenta a ação docente? Como situar-se como professor em sala

de aula? Quem foram os primeiros professores? Como se dá a relação professor-aluno

em sala de aula?Quais os objetivos a serem alcançados? É sobre essas questões, de

ordem teórica e prática que teceremos algumas reflexões.

II

MESTRE, PROFESSOR E EDUCADOR.

Os chineses podem ser considerados os primeiros pensadores, dentro da

Filosofia Oriental, que cultivaram os caminhos em busca da sabedoria humana.

Chamados de Mestres observavam e refletiam sobre a origem do homem, dos seus

sentimentos, de suas subjetividades, bem como do nascimento do espaço e da

natureza física (o cosmos).

Normalmente abstinham-se de riquezas materiais e envolviam-se na meditação

das razões da ação humana, dos legados de seus antepassados e procuravam incutir

nas pessoas que se aproximavam deles, o exercício da paciência, do silêncio, da

perseverança, para o bom desempenho da convivência humana. Os que se

identificavam com suas filosofias foram denominados de discípulos e tinham como

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objetivo divulgar as idéias do mestre. Confúcio pode ser considerado um dos primeiros

mestres orientais (Luzuriaga, 1969).

Na Antiguidade Clássica Grega, temos como exemplo de mestres e discípulos,

Sócrates, Platão e Aristóteles. Sendo Platão discípulo de Sócrates e Aristóteles

discípulo de Platão. Sócrates não cobrava quando utilizava-se do seu método de

interrogação, a maiêutica. Seu objetivo era que os homens pudessem aprender o

significado suas virtudes para viverm bem em sociedade. (Durant, 2000)

No mesmo período de Sócrates, temos a figura do professor, o sofista. Os

sofistas cobravam pelos seus ensinamentos aos jovens atenienses, o ato da

eloqüência, da persuasão. Ferramentas indispensáveis no Curso de Direito dos nossos

dias.

A denominação Mestre perpassa a Civilização Grega, Romana e a Idade

Média. Jesus Cristo é um grande exemplo de mestre, que junto com seus discípulos,

divulgou a máxima do Cristianismo: Amai ao próximo como a ti mesmo , e assim como

Sócrates, nada escreveu e pouco pediu de seus discípulos.

A partir da primeira fase da Modernidade, começamos a vislumbrar a

possibilidade do povo ter acesso à educação e conseqüentemente, a partir de

Comenius, a escolarização sob a responsabilidade do Estado (Cambi, 1996). Com o

surgimento das escolas públicas, surge o professor, que tem como objetivo a

transmissão dos conhecimentos clássicos e universais. Com ele, temos a presença do

aluno.

Esses dois seres terão a sua convivência estreitada a partir de meados do

século XIX, e indissociáveis no século XX. Atualmente preferimos a denominação de

Educadores e Educandos, visto que a Educação contempla tanto a assimilação dos

conhecimentos enciclopedistas, tanto quanto a humanização ética. Ser formador e

informador. Ter a formação e a informação são objetivos básicos do educando do

século XXI, e nesse sentido adquirir a cidadania necessária a boa convivência em

sociedade.

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III-FASES EDUCATIVAS E AS DIFERENTES DENOMINAÇÕES QUE OS ALUNOS

UTILIZAM PARA SEUS PROFESSORES.

Na nossa contemporaneidade convivemos, na escola, com diversas fases

educativas e em cada uma delas, sob o nosso ponto de vista, existe um perfil de

professor e de aluno.

No período do Ensino Infantil, que perpassa o início da vida da criança dos 0

aos 6 anos, o professor tem um papel fundamental, em que quase substitui os pais em

suas vidas. Quando entram na escola, sofrem uma separação dolorosa dos

familiares. Órfãos dos pais, denominam seus professores de tios porque são os

parentes mais próximos de sua intimidade, de sua afetividade.

É uma fase interessante, onde o ser humano é muito autêntico. Nesse período,

formação de sua identidade, o professor é muito importante. A criança pede para ser

avaliada pelo professor, quando mostra seus rabiscos e procura a sua apreciação. Ë

também nesse período que ela traz à tona seus sentimentos mais profundos de amor

ou de ódio. Inocentemente, afirmam com muita veemência que sentem saudades da

sua professora, que são admiradores. Demonstram afeto através de bilhetes

apaixonados, sofrem quando chegam as férias e ficam sem as tias . Essa paixão, essa

relação de carinho perdura durante a primeira fase do Ensino Fundamental (dos 07 aos

10 anos).

Infelizmente, a criança encerra sua convivência feliz com seus professores das

séries iniciais quando entra na 5a.série do Ensino Fundamental. Nesse período, o

aluno sofre novamente outra separação. Agora, não mais dos pais, mas dos tios . É

que na 5a.série aumenta o número de professores, o número de disciplinas a serem

estudadas, o rigorismo e a exigência da família e dos professores para com as suas

obrigações escolares. O aluno agora não pode mais enfeitar seus cadernos, pintar,

desenhar, cantar, etc. Fica proibido de chamar seus professores de tio . Agora são

pessoas estranhas à sua vida que vão ficar com eles durante muitos anos. Tornam-se

assim estranhos, denominados por Seu fulano de tal ou a Dona de Matemática.

Ficaram órfãos dos tios.

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Se os alunos pudessem escolher ficar na 5a.série ou voltar para a 4a. certamente

uma boa parte retornaria à 4a. série primária, onde havia mais afetividade em suas

vidas. No entanto o sistema não permite e muito menos contorna esse problema.

Conseqüência disso são as evasões e repetências nessa série, denominadas de

Fracasso Escolar , objeto de muitas dissertações e teses acadêmicas.

Como estão órfãos dos tios, e os pais lhes cobram posições mais maduras, seus

pares prediletos agora são os amigos. Copiam os gostos, os vestuários, o

comportamento dos amigos. Assumem papel preponderante na vida dessas crianças

pré-adolescentes.

Também é nesse período, da 5a. série e que se estende até a 8a.série, que a

criança se transforma no Adolescente. Diríamos que é o período crucial para a

convivência entre professores e alunos. Há uma clara ausência de sintonia entre eles.

O professor cobra conhecimento, o aluno cobra compreensão, respostas às suas

perguntas mais íntimas da sua convivência com a sociedade, com o mundo. Ele está

confuso e em processo de mudanças de todo o tipo. Biologicamente o corpo muda. Sua

voz engrossa, criam-se espinhas no rosto, pelos pelo corpo. As meninas menstruam, os

rapazes tem os pênis aumentado, etc. Também é nessa época que os sentimentos de

amor sexual e afetivo, de amizade acentuam-se. Aumenta também o desejo de

consumo, dos bens materiais, do exibicionismo entre os grupos, entre os gêneros.

Não é fácil ser professor desses alunos, se o profissional da educação não

entender o perfil dos mesmos. Tornam-se indivíduos contestadores, irreverentes,

inquietos. Adoram ser desafiados, buscam a liderança. É o período onde os alunos

mais evadem da escola, onde há mais índice de violência, de consumo de drogas, de

meninas grávidas, de consumo de álcool, etc.

No Ensino Médio, os alunos já estão mais calmos. Já possuem romances mais

fixos, mais freqüentes. O corpo já transformou-se e eles já se acostumaram com as

novas regras escolares: muitos professores e conteúdos diversificados. Conseguem, as

vezes, até brincar, quando denominam o professor de Prof ou de Sor . Surge nessa

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época uma outra preocupação: o vestibular. É o primeiro momento da vida do jovem

em que ele vai ser avaliado. A sociedade, a comunidade, a família cobram sua opção

por uma profissão. O aluno sofre com o medo do fracasso, com o medo do

desconhecido. Nesse momento ele também percebe que ficará órfão dos amigos.

Também eles farão o vestibular e partirão, muitas vezes, para lugares distantes. Outros

irão interromper a escola e partirão para o mercado de trabalho. Ele vai ficar só. Sem

os pais, sem os tios , sem os amigos e ele próprio, muitas vezes, partirá. Nesse

momento, os alunos se aproximam de alguns professores, solicitando ajuda para

obterem êxito nesse exame. Principalmente para os professores de redação e

disciplinas mais complexas.

Os poucos que entram no Ensino Superior, deparam-se com uma situação

mais confortável. Usufruem, na Graduação, de uma liberdade que não possuíam nos

níveis educacionais anteriores. Podem sair da sala de aula ou da escola quando

quiserem. O controle da freqüência está contido nas cadernetas dos professores. Não

há mais rigidez dos inspetores de alunos trancando os portões da escola. Alguns

alunos já são casados, são trabalhadores. O tratamento com os professores é mais

calmo. A preocupação é com a aquisição e domínio dos saberes e a obtenção do

diploma. O próprio aluno se cobra e chama o professor pelo nome. Retorna lentamente

o interesse pelo professor, pelo conhecimento. Mas está preocupado, nesse momento,

mais com a profissão a ser conquistada, do que com o aprofundamento do estudo.

Finalmente, na Pós-Graduação, o educando retoma os mesmos valores de sua

fase inicial escolar. Interessa-se pelas disciplinas, que voluntariamente escolheu para

estudar e se aperfeiçoar. Demonstra explicitamente admiração pelos professores.

Mostra seus projetos de pesquisa, pede para ser avaliado em seus escritos, em seus

trabalhos. Tece elogios ao saber e agradece, nas monografias, dissertações e teses, o

benefício que obteve de seus professores.

IV-ESPAÇO IDEOLÓGICO E EMOCIONAL DA SALA DE AULA

A sala de aula é um espaço que comporta dois persongens: o professor e os

alunos. Nesse local se estabelecem relações afetivas, emocionais, racionais, entre

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outras. Vivenciamos esse espaço durante a maior parte da nossa vida, como alunos e

alguns, como professores, e no entanto pouco descrevemos ou refletimos sobre seu

valor simbólico. (Marchand, 1956, p.29)

Originariamente a sala de aula, tal qual a conhecemos, provém da Academia de

Platão, onde o mestre fazia interlocução com os seus vários discípulos. (Durant, 2000)

Daquela época até os nossos dias, muito pouco mudou nessa relação e interlocução.

Geometricamente a sala de aula é de tamanho retangular ou quadrado. O

professor fica centralmente na frente, seguido de filas de alunos, até o final da sala.

Existem vários tipos de professores: os que falam alto, os que quase que sussurram, os

que olham para a janela ou o teto, quando expõem suas idéias, os que ficam com as

mãos nos bolsos, os que ficam parados no mesmo lugar, os que andam rapidamente,

transformando a sala de aula em um cooper . Existem os professores que centram o

olhar em um único aluno, que senta e raras vezes levanta e anda pela sala, enfim, há

inúmeros tipos e que são danosos para o processo de ensino-aprendizagem. Nesse

encontro, seres vivos, seres humanos, confinados dentro dos limites da classe, se

defrontam, se comunicam, se influenciam mutuamente. (Abreu & Masetto, 1989,

p.113).

O professor, por estar em lugar de destaque, deve ter o cuidado para não

chamar muita atenção sobre si. É importante observar seu vestuário. Não deve ser

exuberante, luxuoso ou ostentativo. É de bom senso que utilize uma roupagem

discreta, condizente com o papel que desempenha de catalizador de atenções.

Quanto aos alunos e sua disposição na sala, é bastante conhecida a formação

de suas fileiras. Inicialmente temos a primeira fila, denominada pelos outros alunos de

C.D.F. (desnecessário a tradução, visto que é conhecida pela maioria). Também

chamada de Trem Bala , porque são sempre os primeiros a terminar a tarefa. São os

alunos que os professores, de certa forma, mais apreciam. São sempre corajosos, tidos

com inteligentes, estão sempre com a matéria em dia, e o mais importante: são

solidários com os professores. Atendem os seus pedidos ao menor sinal. São vistos,

pelo restante da classe, como os puxa-sacos , aduladores do professor.

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Se há a primeira fila, existe a última. Essa é muito conhecida dos professores,

que não gostam muito dos alunos que a freqüentam. É denominada de Fundão ,

cozinha e se existe a denominação Trem Bala para os da frente, para o fundão seu

apelido é Maria Fumaça já que os alunos demoram muito mais para acabar os

trabalhos solicitados em sala. É importante salientar que o fundo da sala é mais

descontraído, mais distante geográfica e ideologicamente do professor. Se fizermos

uma reflexão sobre os apelidos, vamos perceber que a cozinha é o lugar mais

agradável da casa. Onde são deixados os formalismos da sala, e entre a degustação

de alimentos, se entabula conversas mais informais.

Mas, quem senta-se no Fundão, na Cozinha da Sala de Aula?

Os professores não percebem, mas muitas vezes encontramos alunos nesse

local, que foram colocados lá, pelos próprios docentes. Por exemplo, quando surge na

sala um aluno de alta estatura, é muito comum o professor solicitar que ele sente lá

atrás, para não atrapalhar a visão dos menores. Com o passar do tempo e de séries,

esse aluno nem vacila mais. Chega no primeiro dia de aula e já vai para o fundo,

evitando o pedido conhecido. Outro tipo de aluno que senta no fundo, é o medroso. É o

educando que tem receio da matéria ou ausência de identificação com o professor por

motivos diversos. Se esconde, para manter-se em sala de aula.

Finalmente, no fundo encontra-se também um tipo de aluno que os professores

geralmente não gostam, tem pouco contato, matem uma certa distância. Esse alunos

que sentam na última fila, são muito parecidos com os alunos da primeira. Possuem

grandes qualificativos: são corajosos, inteligentes, estão para o que der e vier! A

diferença é que eles não são solidários aos professores!! Ao contrário, disputam a

liderança, palmo a palmo com o educador. Na primeira oportunidade de ausência do

professor, eles tomam o controle da classe. São muitas vezes, carismáticos, divertidos,

criativos. Os demais alunos da sala gostam da sua atuação desafiadora. Outros, são

ostensivos, violentos, rebeldes. Não são muitos, mas vivem no imaginário do professor,

que as vezes, esquecendo do restante da sala, se preocupam, intensivamente, em

medir o grau de autoridade com esses alunos. Por diversas razões, eles agem na

direção contrária ao objetivo do professor. São os chamados alunos-problemas. A

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atuação e o êxito de suas potencialidades vai depender do modo de agir do líder, que

no caso, deve ser o professor.

A relação entre ambos devia ser de parceria. No entanto, a percepção de que o

relacionamento em sala de aula é a reprodução, guardadas as devidas proporções, das

relações complexas e ambíguas que existem na sociedade contemporânea, em muitos

casos se agravam, e um dos dois atores é penalizado. Ou o aluno ou o professor. Falta

a compreensão mais aprofundada do desenvolvimento do aluno-problema, na realidade

da sociedade... estes e outros fatores semelhantes contribuem para que o próprio

papel e, conseqüentemente, a ação do professor em sala de aula se tornem cada vez

mais complexos e ambíguos

(Abreu&Masetto, 1989, p.115).

Mas, além da primeira e da problemática última fila, existem os alunos que ficam

no meião . São os intermediários. Alunos completamente desconhecidos dos

professores! Alunos que tiram entre cinco e sete. Às vezes um três, raramente um

nove. Alunos medianos, que não fazem trabalhos excepcionais, nem fracos. Filhos de

classe média, possuem uma religião, uma família com pequenos problemas, enfim, são

aqueles chamados de MAIORIA! É exatamente esse contingente de alunos que deve

ser considerado pelos professores. São os que no futuro, atuarão na sociedade como

farmacêuticos, padeiros, verdureiros, mecânicos, comerciantes, bancários, etc.

Não são alunos rebeldes, nem dóceis. Atendem tanto os reclamos do professor,

como a brincadeira dos alunos do fundão. Vão de acordo com a tendência de liderança.

Nesse sentido, o professor deveria estar mais atento as suas reivindicações, olhar com

mais acuidade suas potencialidades, e descobrir que nem toda à classe é rebelde, é

problemática. A maioria não é! Cuidar não só da maioria, mas de todos,

indistintamente, sem exclusão. (Gentili, 1995)

A preocupação central do professor é com a aprendizagem de todos os alunos,

indistintamente e não com o ensino (do professor). Que todos, da primeira, do meio e

da ultima fila tenham o mesmo tratamento dos professores. Cabe ao professor dar as

diretrizes do relacionamento de sala de aula.

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É necessário a construção de um conhecimento, em sala de aula, que perpasse

a afetividade, e basicamente, a formação do conceito de Cidadania plena. Nesse

sentido o professor é um facilitador da aprendizagem:

Quando um facilitador cria, mesmo em grau modesto, um clima de sala de

aula, caracterizado por tudo que pode empreender de autenticidade, apreço

e empatia; quando confia na tendência construtora do indivíduo e do grupo;

descobre, então, que inaugurou uma revolução educacional (Rogers apud

Abreu & Masetto, 1989, p.117).

Nesse sentido, a aprendizagem se transforma em vida. O ato de aprender e

aprender consiste, portanto, num esforço de clareza e este é feito em proveito do aluno,

mas quando levado a bom termo, o próprio docente aproveita.

V

A ÉTICA PROFISSIONAL

Toda ação humana é pautada por valores e princípios que motivam, orientam

pou tolhem a conduta do homem, em benefício do individuo ou da sociedade. Em todo

e qualquer agrupamento de indivíduos, desde a mais antiga civilização, reconhece-se

um código de conduta, direcionado para objetivos pragmáticos e utilitários. A ética,

entendida como o estudo das finalidades últimas, ideais, dirige a conduta humana para

o máximo de harmonia, universalidade e excelência, como o convívio fraterno e

solidário em sociedade. (MEC/ INEP, 2002)

Infelizmente, nos dias de hoje, se existe uma categoria profissional que

eticamente tem deixado a desejar, na sua atuação pública, é a dos professores. É

muito comum encontrarmos no meio professoral, professores criticando colegas de

profissão, em relação à sua atuação em sala de aula, no seu domínio de habilidades e

competências, no planejamento de suas aulas. Não é raro que colegas da mesma

instituição invadam a intimidade dos colegas professores, denegrindo sua imagem no

que toca à sua crença, à sua opção sexual, à sua raça, mesmo que isso vá contra os

princípios democráticos da Constituição Brasileira em vigência.

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Também é muito comum que, alguns professores e gestores da área

educacional não só permitam que profissionais de outras áreas do conhecimento,

leigos na história do desenvolvimento da Educação teçam comentários jocosos contra

o ensino atual. O pior é que muitas vezes, esses mesmos professores acatam críticas

desconstrutivas, vazias de argumentação e propriedade, reforçam inverdades

fundamentados na filosofia do achismo casuístico.

A postura do professor deveria estar pautada na legislação em vigor. A

consideração pelos colegas de profissão, pelo respeito aos seus superiores

hierárquicos na escola, aos seus alunos, aos funcionários, implica em respeitar a

identidade institucional. O professor, principalmente das escolas públicas, deve ter em

mente que é um profissional como qualquer outro, no desempenho de suas funções.

Deveria cumprir seus deveres, assim com muitas vezes reivindica seus direitos. É seu

dever zelar pela aprendizagem dos alunos de menor rendimento escolar, elaborar e

cumprir a proposta pedagógica de sua escola, ser um professor efetivo, evitando faltas

em demasia, etc (Artigo 13

LDBEN 9394/96).

Concluindo essas questões reflexivas, que estão normalmente ocultas no

cotidiano da escola, dentro das várias reflexões que podemos tercer em Metodologia do

Ensino, poderíamos lembrar que o professor é uma figura pública. Ele é um exemplo

seguido e moldado pelo aluno na sala de aula. Suas atitudes internas e externas à

classe são geralmente acompanhadas pela comunidade, pelos alunos, pelos egressos,

pais, sociedade em geral. Nesse sentido, é de bom tom que lembremos que suas

ações públicas são observadas, e que podem, de certa forma, comprometer à sua

credibilidade, quando o mesmo se envolve em discussões, confrontos, bebedeiras,

atividades duvidosas, etc. A preocupação em manter uma certa discrição, garantindo

os direitos à sua individualidade, contribuem para a manutenção de condutor de

potenciais humanos.

O aluno deseja um professor que o ajude a melhorar sua vida e o objetivo da

escola, desde os tempos mais remotos, é tornar os indivíduos mais felizes. Como

afirma Snyders A maior alegria cultural é sentir-se participante de auto-progresso, do

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progresso da sua comunidade, do progresso do mundo (Snyders, 1996, p.2000) Cabe

ao professor esse grande papel de construtor de progressos e alegrias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

ABREU, Maria Célia & Masetto. O professor universitário em aula. São Paulo:, MG,

1989.

DURANT, Will. A História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

ÉTICA. Adauto Novais (Org) São Paulo, Cia das Letras, 2000.

GRISI, Raphael. Didática Mínima. São Paulo: Do Brasil, 1956.

GENTILI, Pablo. Pedagogia da Exclusão: Crítica ao Neoliberalismo em Educação.

Petrópolis: Vozes, 1995.

LUZURIAGA, A. História da Pedagogia. Barcelona, s.e.e., 1989.

MARCHAND, Max. A afetividade do educador. São Paulo: Summus, 1985.

MEC/INEP. Princípios éticos e orientações de conduta. Diretoria de Estatísticas e

Avaliação da Educação Superior. Brasília: MEC, 2002.

LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL 9394/96.

RIBEIRO, Arilda Ines Miranda & MENIN, Ana Maria da Costa Santos. Formação do

Professor: Contribuições e reflexões dos docentes e discentes dos cursos de pós-

graduação Lato Sensu em Gestão Educacional e O Ensino do Texto: teoria e prática

em sala de aula

(1999-2000). São Paulo: Arte & Ciência/Villipress, 2001.

SNYDERS, Georges. Alunos Felizes: reflexão sobre a alegria na escola a partir de

textos literários. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

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2º.Texto) Sobre a função da escola e do professor:

Ribeiro, Arilda Inês Miranda.

Publicado no Livro Universidade, Formação, Cidadania. Chauí, Marilene. Arroyo,

Miguel e outros. (org. Gisleine Aparecida dos Santos, pela Editora Cortez, 2001).

FORMAÇÃO EDUCACIONAL: INSTRUMENTO DE ACESSO À CIDADANIA?

Profa.Dra.Arilda Ines Miranda Ribeiro. 1

Quem é o cidadão? Por que hoje novamente se discute com afinco a questão da

cidadania na escola e sua função educativa? Afinal, a educação, desde o século XVIII,

teve sempre como função clássica a formação para o exercício da cidadania. Porque o

retorno do tema, com tanta assiduidade, nos debates acadêmicos? Aproveitando a

volta de outros conceitos do século passado, arriscaríamos a noção de uma neo-

cidadania? 2

1. Um pouco de história...

Em verdade, sob o meu ponto de vista, o ressurgimento da questão da cidadania

e educação envolve a explicitação de alguns conceitos básicos ligados à história da

cidadania e a história da educação.

Cidadão vem da raiz latina civitas3, habitante da cidade. É originalmente o

burguês, aquele que habitava os burgos (cidades) no período do feudalismo. A noção

de cidadania, dessa forma, está ligada a ascensão da burguesia, e consequentemente

do capitalismo. Em outras palavras, a sociedade, que esteve centrada no campo

durante a Idade Média, se desloca para as cidades. Portanto, o cidadão é oriundo das

1 Coordenadora do Curso de Especialização Gestão Educacional e Membro do Grupo de Pesquisa Formação de Professores do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp-Campus de Presidente Prudente.

2 O redimencionamento dos conceitos do século XIX seriam: o neo-liberalismo, o neo-positivismo, a pós-modernidade, entre outros.

3 As reflexões feitas nesse texto, tomaram como base o artigo Educação, cidadania e transição democrática , do professor Dermeval Saviani.

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cidades, e consequentemente faz parte do contexto das relações vivenciadas na

sociedade citadina.

De acordo com Saviani (1986) cidade, da sua raiz grega pólis, originou o

político, o polido, que significa aperfeiçoado, cortês, civil. Contrariamente, a esses

atributos dos habitantes das pólis gregas, campo vem da raiz latina rus, de rústico,

grosseiro, e do grego agrós, agressivo, áspero.

Assim, com o passar dos tempos, ser camponês significava ser rustíco,

atrasado, primitivo, grosseiro. Em contrapartida, ser cidadão ficou sendo sinônimo de

sujeito participante do desenvolvimento do progresso, da urbanização, do moderno.

Esses sentidos etimológicos da palavra cidadão nos levam para a noção de que

a vida na cidade exige polidez, e consequentemente o saber sistematizado. É nesse

contexto que a educação surge, a partir do século XIX, como instrumento de acesso ao

cidadão à vida em sociedade, a partir da cultura letrada.

A Educação, dessa forma, auxiliaria o indivíduo a agir segundo convenções

previamente acordadas, na constituição dos chamados direitos e deveres do cidadão.

Caberia, portanto, a educação, nesse momento, a tarefa de formar o cidadão

dentro do princípio de que todos são iguais, e portanto, de terem, indiscriminadamente,

acesso ao conhecimento científico. Daí a crença da escola como redentora da

humanidade, universal e obrigatória.

O chamado senso comum ou conhecimento vulgar foram excluídos dos

estabelecimentos escolares. Neste sentido, os conteúdos das disciplinas estudadas,

discriminaram o folclore, as crenças, supertições, enfim, os conhecimentos oriundos do

campo, da tradição oral.

O capitalismo que emergiu com a urbanização exigiu o desenvolvimento da

indústria, do comércio. Daí a sociedade moderna ter solicitado da educação a

instrumentação da ciência, que se materializou na indústria, e no aperfeiçoamento da

mercadoria e do produto.

O analfabeto, que até então, convivia bem no campo, não teria lugar na cidade,

já que esta possuia regras escritas em textos legais, baseadas no Direito Positivo .4 A

4 O denominado Direito Positivo ulttrapassa o direito natural, dado o seu caráter convencional, formalizado, sistemático. A vida na cidade exige normas em termos escritos.

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forma de trabalho também deveria sofrer alterações: a agricultura camponesa se

modernizaria, através da mecanização da agricultura.

2. A educação como instrumento de cidadania: a educação intelectual x a

educação manual.

Assim, na primeira metade do século XIX os teóricos do liberalismo incentivaram

a criação dos sistemas nacionais de ensino, considerando que a sociedade moderna (e

da cidade) necessitava rapidamente da disseminação do saber científico.

A ciência desenvolvendo-se através da indústria, traria resultados positivos para

o capitalismo. E a indústria, que é a base da existência da cidade, exigia dos

trabalhadores o conhecimento sistemático, expressados muito mais pela forma escrita

do que oral. Daí a importância da educação, da escola, da formação para a cidadania.

Porque ...para ser cidadão, para participar ativamente da vida da cidade, é necessário

o ingresso na cultura letrada, sem o que não se chega a ser sujeito de direitos e

deveres ( Saviani:1986, p.75).

A educação em si, no entanto, não constitui a cidadania. Ela dissemina os

instrumentos básicos para o exercício da cidadania. Para que o cidadão possa atuar no

sindicato, no partido político, etc. é necessário que ele tenha acesso a formação

educacional, ao mundo das letras e domínio do saber sistematizado.

Consequentemente, a formação do cidadão passa necessariamente pela educação

escolar.

Além do próprio burguês, o trabalhador também é um cidadão. Como a

democracia só se consolida na medida em que cada um de seus membros esteja

capacitado para participar das decisões, o proletariado também reivindicou o acesso ao

saber sistematizado. Assim, através dos movimentos dos trabalhadores do século

passado, iniciou-se a ligação entre educação e trabalho.

No entanto, a educação para todos não apresentou-se igualitária, entre os

detentores do capital e os subservientes ao capital. Desde o início, ficou bem clara a

distinção do trabalhador manual do trabalhador intelectual. A criação, pela burguesia.

da Escola Única e Diferenciada , em detrimento da Escola Unitária pretendida pelos

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trabalhaores, internamente, acentuou a desigualdade entre os grupos sociais, através

dos dons naturais ou aptidões pessoais. O chamado Darwinismo social .

Assim, a escola que deveria formar todos os cidadãos nas mesmas condições de

atuação da cidadania, interpretava que a sociedade tendo funções diferenciadas,

também deveria formar diferentemente.

É nesse momento que Saviani introduz o ditado popular: O que seria do amarelo

se todos gostassem do vermelho? (Saviani: 1986, p.78) Em outras palavras, no sentido

educativo, o que seria da sociedade, se todos quisessem ser doutores?

A sociedade tem necessidade de vocações diferenciadas. As cidades precisam

de trabalhadores manuais e intelectuais: de médicos, de lixeiros, de advogados, de

pedreiros, etc.

Nessa ótica, o papel da educação seria o de identificar as aptidões nos

indivíduos e colocá-los no lugar certo. Chamou-se a isso de Orientação profissional. O

problema é que nas escolas, ocorreu uma inversão dos conceitos, quando apregoaram

que a Orientação Vocacional antecedia a Profissional. Primeiro descobrir-se-ía para

que servia o cidadão, através dos testes vocacionais, depois destinar-se-ía uma

orientação para a profissão.

Na verdade, nenhum aluno seriamente, afirmaria sentir-se auto-realizado

desempenhando a profissão de lixeiro, ou de pedreiro. De uma forma geral, o desejo é

de ascensão de classe, profissional e financeira. No fundo, o indivíduo aspira ao papel

de comando, de poder, de status.

De fato, todo indivíduo, indistintamente, gostaria de pertencer à classe dos que

mantém as benesses, o conforto, a cultura, o lazer e a diversão. E se, a escola traz

para si o papel de poder fornecer os instrumentos para essa ascensão, não o faz

igualitariamente. Ao contrário, acirra o antagonismo cultural.

A seleção que ocorre na escola, espelha-se na diferenciação social. Alguns terão

acesso a uma educação intelectual e outros a manual, a técnica. E essa diferenciação

rompe-se na própria estrutura educacional. É o trabalho, ou melhor, o tipo de trabalho a

ser exercido que (in) forma, ou molda, o cidadão para a sociedade.

Nesse sentido, existe um vínculo entre educação, cidadania e trabalho. No

entanto, os grupos que dominavam e dominam, procuraram sempre dissociar o

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conceito de trabalho e de cidadania e vincular o conceito de trabalho ao de

profissionalização.

Essa vinculação já esteve presente na Lei 5.692/71, quando esta priorizou a

qualificação para o trabalho, em detrimento do preparo para o exercício da cidadania. A

educação, nesta lei, segundo Saviani (1989),

passou a ser entendida, precipuamente, como um

instrumento para o desenvolvimento econômico, para o

ajustamento dos indivíduos ao chamado mercado de

trabalho, deixando-se em segundo plano, e mesmo na

penumbra, a questão da educação como instrumento da

cidadania, como um instrumento de participação, de

interferência nas decisões políticas, de expressão de pontos

de vista sobre o modo de condução da coisa pública. (p.79)

Vinte e cinco anos depois, a Lei 9394/96, influenciada pelo neo-liberalismo,

aumentou essa dicotomia. Com o ressurgimento de um liberalismo, que deseja mais e

mais a ampliação dos mercados de capital, o poder público e estatal perdeu o apoio da

sociedade.

Diante de seus próprios beneficiados (os alunos), vistos agora como clientes

muito mais exigentes, a escola se viu disposta a concorrer com outros instrumentos,

para além do domínio do saber, em um mundo carente de oferta de serviços.

Se antes, na reformada Lei 5692/71, a preocupação da educação era com a

profissionalização e a qualificação para o trabalho, na nova lei 9394/96, o intuito é o de

preservar o emprego, já que profissões estão escassas. O desmantelamento de um

modelo de produção e de organização de serviços, promovido pelo estado, fez

aumentar o temor de um apoio à educação pública. A privatização educacional foi

celebrada como uma conquista da nova concepção de cidadania: É agora o cidadão

que escolhe onde vai estudar.

Entretanto, a escolha não apresenta-se democrática para com o trabalhador.

Cada vez mais, ele tem menos espaço para eliminar a Escola Diferenciada.

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A separação entre os trabalhadores manuais e intelectuais certamente encontra-

se mais acentuada do que no século passado.

3. O caso do ensino médio: técnico ou propedêutico?

O Ensino Médio, por exemplo, na nova lei de educação, divide-se em educação

secundária para aqueles que vão cursar o ensino superior, e educação técnica para os

que vão profissionalizar-se. Nesse sentido, não foi apenas a nomenclatura a única

herança absorvida da Reforma Francisco Campos, de 1932, pela 9394/96. De fato, a

nova lei resgatou para o final do milênio, a impossibilidade do trabalhador

profissionalizante galgar o ensino superior.

Nesse sentido, a nova lei cerceou a liberdade da Escola Única, conquistada na

lei 5692/71, que permitia aos estudantes do ensino médio, oriundos tanto das classes

trabalhadoras, como das camadas médias e altas, e ingresso no curso superior. O filho

do trabalhador, ao optar pelo prosseguimento de seus estudos técnicos, no mesmo

caminho dos filhos da classe dominante, que frequentaram o secundário propedêutico,

ambos, pelo menos no papel, tinham chances iguais de chegar à universidade.

O ensino superior, a partir da Lei 9394/96, fechou as portas para os

trabalhadores manuais. O curso superior está sendo frequentado pelos egressos do

ensino secundário, isso porque o estado raciocina que os jovens das camadas mais

baixas procuravam o ensino superior apenas porque não dispunham de grau de ensino

que lhes desse uma formação profissional. Daí a ênfase, atualmente, no ensino médio.

Será que o ensino médio que a nova lei preconiza, fornecerá de fato, uma

educação que o profissionalize? Isso já não foi tentado com a 5692/71, quando se dizia

que ia qualificar para o trabalho e na realidade, pouco preparou? A intenção

governamental não estaria fixada na exclusão do ensino superior para os menos

favorecidos?

Infelizmente, essa questão tem recebido pouca atenção da mídia, e a população

brasileira de baixa renda ainda não tem conhecimento dessas novas resoluções, que

certamente vão acirrar, mais ainda, o desnível cultural e social do país.

Os privilégios se mantêm, mudam-se apenas os nomes.

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Desta maneira, a formação que a escola tem ministrado mantém a diferenciação

entre os cidadãos. Se o seu objetivo inicial era o de instrumentalizar o domínio do saber

sistematizado universal, nesse momento a educação sofre com a dicotomia imobilista

entre o trabalho manual e o intelectual.

De qualquer forma, em qualquer uma das situações, no ensino intelectual

ou manual, o processo do conhecimento ficou restrito a produção da ciência, a

mercantilização dos produtos mundiais. O que devemos nos questionar é se não

estamos restringindo as práticas educativas de formação e profissionalização do

educador dominantemente nesta perspectiva. A escola deve formar para além da

inserção no mundo do trabalho. Ele não é o único conteúdo a ser contemplado nas

escolas. A educação envolve planos do conhecimento bio-psiquico, cultural, ético-

político, lúdico e estético.

Esta concepção de formação humana traz em si consequências

concretas, e se constituem em outros desafios para aqueles, que de acordo com

Frigotto, tem como tarefa formar e profissionalizar educadores neste fim de século,

particularmente, em sociedades fortemente desiguais e subordinadas ao mercado

global excludente, como a sociedade brasileira (Frigotto: 1996, p.93).

4.O que ensinar no século XXI?

Em 1997, em uma pesquisa da BBC de Londres, revelou-se o fato de que

apenas 20% dos empregos desse século serão absorvidos no próximo milênio.

Portanto, grande parte da população mundial estará desempregada, excluída

socialmente.

Contrariamente, os educadores, em seus diferentes níveis de ensino,

ainda preconizam aos estudantes em sala de aula, que se os mesmos não estudarem

determinados conteúdos, não conseguirão trabalho, no mercado capitalista.

Ora, se considerarmos os resultados dessa pesquisa e a própria exclusão

que já avassala o final do milênio, nota-se uma contradição nos objetivos da formação

que os educadores exprimem e a constatação do afunilamento empregatício.

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Forrester (1996), em O Horror Econômico reflete sobre o papel da

educação, neste final de século: o que ensinar para os filhos do desemprego? Que os

conteúdos da escola garantirão uma vaga na indústria ou no comércio? Não seria o

momento de nos preocuparmos com outros níveis de formação, para além da

apreensão do conhecimento histórico-científico? A música, a arte, a afetividade, as

atividades físicas, ou alternativas não mereceriam a atenção dos educadores?

Em legislações educacionais anteriores, era o estado brasileiro, o

responsável pela educação. Na escola neoliberal, são os pais os chamados a decidir

sobre tais questões. Estamos diante de uma cidadania privada (Johanek, apud

Sacristan, 1996), que funciona como árbitro do destino social das instituições

educacionais.

O neoliberalismo desse final de milênio desabrigou o público, e deixou a

deriva o cidadão. Há uma neo-cidadania, que prega uma identidade fundamentada na

qualidade e eficiência do mercado. O cidadão para além de deveres e direitos deve ser

competitivo.

E a escola, fornecerá a instrumentação para o exercício da competição do

mercado profissionalizante??! A escola está sendo vista por muitos educadores, como

um fast food .

5. A McDonaldização do ensino.

A Mcdonaldização do ensino , de acordo com Gentili (1996), constitui

uma metáfora apropriada para caracterizar as formas dominantes de reestruturação

educacional propostas pelas administrações neoliberais.

Na educação neoliberal as instituições escolares devem funcionar como

empresas produtoras de serviços educacionais. Isto é, o que unifica os McDonalds e a

utopia dos homens de negócios é que, em ambos, a mercadoria oferecida deve ser

produzida de forma rápida e de acordo com certas e rigorosas normas de controle da

eficiência e da produtividade. O aluno, assim como o sanduíche americano, devem

estar de acordo com a fórmula, Qualidade, serviço, limpeza e preço .

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O McDonalds tem conseguido, graças a sua universalização, enorme

capacidade de sucesso. Seu criador, Ray Kroc, afirmou que se lhe tivessem dado um

tijolo cada vez que ele repetiu essas palavras, sem falsa modéstia, ele teria podido

construir uma ponte sobre o Oceano Atlântico.

A escola, pelo contrário, no que se refere a suas funções educacionais,

não tem sido tão bem sucedida, se avaliada pela ótica empresarial, defendida pelos

neoliberais.

Para eles, a escola tem que se configurar como mercado educacional, e,

portanto, definir estratégias competitivas, para competir, conquistando nichos que

respondam pelas demandas de consumo por educação.

Indaga Gentili que o leitor intrigado com estas afirmativas, perguntaria qual a

razão que explica que o mercado educacional deva ser necessariamente competitivo?

Para ele, os neoliberais responderiam de forma simples: assim como as pessoas

precisam comer hambúrgueres porque o trabalho (e, claro, a mídia) o exige, também

precisam educar-se porque o conhecimento se transformou na chave do acesso à nova

Sociedade do Saber. (Gentili: 1996, 31)

A escola neoliberal tem por função básica, a transmissão de certas

competências e habilidades necessárias para que as pessoas atuem competitivamente,

num mercado de trabalho altamente seletivo e cada vez mais restrito e excludente. A

educação escolar transformou-se em garantia das funções de classificação e

hierarquização dos postulantes aos futuros empregos ou aos empregos do futuro. Daí

ela transformar-se numa instância de seleção meritocrática, avaliando, fornecendo

certificados e diplomas. Nisso reside a função social da escola.

A pedagogia Fast Food possui sistema de treinamento rápido, com grande

poder disciplinador e altamente centralizados em seu planejamento e aplicação. A

Hamburguer University de McDonalds em Chicago e sua competidora, a Harvard dos

preparadores de batatas fritas, a Burger King University, na perspectiva dos homens de

negócio, constituem invejáveis modelos de instituições educacionais do novo tipo.

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(Gentili: 1996,34). Para os neoliberais, formar um professor não costuma ser

considerado mais tarefa mais complexa de que a treinar um preparador de

hambúrgueres.

Essa parece estar sendo a linha de formação que tem se instalado na

escola nessa última década, e infelizmente poucos debates sobre a questão tem

ocorrido nos meios acadêmicos. Porque o silêncio sobre a formação que vem se

instaurando e o ressurgimento do papel da educação e a cidadania?

Considerações finais

Esse artigo teve como objetivo trazer à tona reflexões sobre a noção de

cidadania e de como a escola, assim como a sociedade, modificam seus conceitos, em

função das mudanças sociais, econômicas e políticas. Essas transformações

acompanham o enfoque político, e a filosofia que subjaz a sociedade dominante. Se já

houve um tempo em que a função clássica da educação era servir de instrumento para

o exercício pleno da cidadania, hoje ela parece estar vinculada aos interesses do

grande capital. O cidadão é visto como um ser competitivo, dentro de um mercado

econômico avassalador, que exclui a maioria dos cidadãos, em favor de poucos. É

preciso rever essas posições. E o espaço para essas discussões deve iniciar-se dentro

da própria escola, da própria formação do educador do terceiro milênio.

Bibliografia:

Casali, Alípio...et al. Empregabilidade e educação: novos caminhos da

aprendizagem.São Paulo: EDUC, 1997..

Desaulniers, Julieta. Memória social e cidadania. In: Cadernos Cedes. Campinas,

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Forrester, Viviane. O Horror Economico. São Paulo: Edunesp, 1996.

Frigotto, Gaudêncio. A formação e profissionalização do educador: novos desafios. In:

Gentili, Pablo & Silva, T.T. Escola S/A: quem ganha e quem perde no mercado do

neoliberalismo.Brasília: CNTE, 1996.

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Gallo, Sílvio, (Coord.) Ética e cidadania: caminhos da filosofia. Campinas-SP: Papirus,

1997.

Gentili, Pablo & Silva, T.T. Neoliberalismo e educação: manual do usuário. In: Escola

S/A: quem ganha e quem perde no mercado educacional do neoliberalismo.

Brasília: CNTE, 1996.

Lamounier, Bolívar, Weffort, Francisco e Benevides, Maria Victoria. (org.) Direito,

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Ribeiro, Arilda Ines Miranda. Mulheres e Cidadania: conquistas de cada dia. In: Perez,

Zizi Trevisan.(Org.) Questões de Cidadania. São Paulo:Clíper, 1998.

Sacrístan, J.Gimeno. Educação pública: um modelo ameaçado. In: Gentili, P.& Silva,

T.T. Escola S/A Brasília:CNTE, 1996.

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Sodré, Nelson WernecK. A farsa do neoliberalismo. Rio de Janeiro, Graphia, 1996.

Zainko, Maria Amelia Sabbag. (org) Cidades educadoras.Curitiba: Ed.UFPR, 1997.

3º. Texto) Sobre o quadro histórico da Feminização do Magistério ou Ausência

dele no Brasil-Colônia.

Ribeiro, Arilda Inês Miranda.

Publicado no Livro 500 anos de Educação no Brasil. LOPES, C. e outros. Belo

Horizonte:Autêntica, 2002. Lançado na Universidade de Coimbra, Portugal em

novembro de 2002 e no site do www.histedbr.unicamp.br

(com as fotografias incluídas)

A EDUCAÇÃO DAS MULHERES NA COLONIA.

ARILDA INES MIRANDA RIBEIRO

UNESP/Presidente Prudente/SP

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Este texto é parte de uma dissertação de mestrado no Brasil (Unicamp) e de

pesquisas realizados posteriormente em um pós-doutoramento em Portugal

(Universidade de Lisboa) nos anos de 1987 e 1996, respectivamente. 5

O trabalho em questão pretende possibilitar maior visibilidade à educação

feminina no período colonial brasileiro, reconstituindo suas práticas, normas, proibições

e transgressões, através da literatura (brasileira e portuguesa) dos registros dos

viajantes, dos documentos localizados nos arquivos pesquisados, (Torre do Tombo,

Biblioteca Nacional de Lisboa, Arquivo do Estado de São Paulo, entre outros) dos

dados da biografia de algumas mulheres e dos poucos artigos/livros encontrados sobre

o tema. Ainda hoje, às portas do século XXI, são raros os trabalhos dos estudiosos

sobre a educação feminina colonial brasileira.

Durante trezentos e vinte e dois anos (de 1500 a 1822), período em que o Brasil

foi Colônia de Portugal, a educação feminina ficou, geralmente, restrito à procriação e

ao cuidado com o marido e os filhos.

Tanto as mulheres brancas, ricas ou empobrecidas, como as negras escravas e

as indígenas não tinham acesso à arte de ler e escrever. A instrução era reservada aos

filhos dos indígenas e dos colonos. Esses últimos cuidavam do negócio do pai, seguiam

para a universidade de Coimbra ou tornavam-se padres jesuítas.

Por que as mulheres não estudavam?! Essa questão nos remete à tradição

Ibérica, transposta de Portugal para a Colônia brasileira: As influências da cultura dos

árabes nesse país, durante quase oitocentos anos, consideravam a mulher um ser

inferior. O sexo feminino fazia parte do Imbecilitus Sexus, ou Sexo Imbecil. Uma

categoria ao qual pertenciam mulheres, crianças e doentes mentais.

Era muito comum o versinho declamado nas casas de Portugal e do Brasil que

dizia: "mulher que sabe muito é mulher atrapalhada, para ser mãe de família, saiba

pouco ou saiba nada." 6

Os poetas daquele período tinham na literatura um veículo transmissor

repressivo à instrução feminina, na medida em que concretizavam e encarnavam as

idéias da supremacia masculina. Gonçalo Trancoso, poeta português muito lido pelos

5 O resultado desses estudos foram publicados no meu livro A Educação da Mulher no Brasil-Colônia São Paulo:Arte & Ciência, 1997 e na minha tese de Livre-Docência, ainda em andamento, sobre A Educação feminina no século XVIII em Portugal, durante a reforma Pombalina..(1750-1777) 6 Luís Edmundo foi escritor e jornalista brasileiro, de 1880 a 1961. Escreveu vários livros sobre a cultura e os costumes dos brasileiros. O texto citado encontra-se em: A Corte do Rio de Janeiro, p.299 citado por DIAS, M.Odila. Quotidiano e poder em São Paulo no Séc.XIX, 1984, p.26

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homens lusos, entre 1560 e 1600, afirmava que a mulher não tinha necessidade de ler

e escrever e, se possível, não deveria falar: "Afirmo que é bom aquele rifrão que diz: a

mulher honrada deve ser sempre calada". 7 O poeta aconselhava também que, quando

elas andassem nas ruas não chamassem atenção sobre si: as moças não falem, nem

alcem os olhos do chão quando forem pela rua e se ensinem a não tomar brio de

verem e serem vista, que a mim me parece muito bem. 8

Sendo também um alfabetizador, Trancoso foi procurado certa vez por uma

dama da sociedade portuguesa da época, que pedia-lhe que a ensinasse a ler, já que

suas vizinhas liam os livros de rezas na missa e ela não. Respondeu-lhe o poeta, que

como ela não tinha aprendido a ler na casa dos pais, durante a infância, e agora já

passava dos vinte anos de idade, deveria contentar-se com as contas do rosário de

orações. No entanto, ele enviava-lhe um abecedário moral, onde cada letra do alfabeto

continha implícito o padrão de comportamento desejado na sociedade seiscentista. Por

exemplo, a letra A-a significava que a mulher deveria ser amiga de sua casa, H-humilde

a seu marido, M-mansa, Q-quieta, R- regrada, S-de sizuda, entre outros. Encerrava

dizendo que se ela cumprisse esse abecedário, saberia mais do que aquelas senhoras

que liam livros religiosos. Era essa, portanto, a mentalidade da época sobre a instrução

feminina em Portugal, e que foi amplamente difundido no Brasil.9

ALFABETIZAÇÃO DA INDÍGENA

POR QUE NÃO?

Entretanto, quase que por ironia, a primeira reivindicação pela instrução feminina

no Brasil, partiu dos indígenas brasileiros. Foram ao Padre Manoel de Nóbrega pedir

que ensinassem suas mulheres a ler e escrever. 10 O Padre, sensibilizado, mandou

7 Gonçalo Trancoso é considerado o primeiro contista português. Viveu no séc.XVI. Escreveu Contos e histórias de proveito e exemplo em 1569 e publicado pela primeira vez em 1575. Seu trabalho foi uma das obras mais lidas no período. Era versado na lição da história profana e nas ciências da astronomia. Foi preceptor e caligrafista de meninos. A vida literária deste homem inicia-se sobre as ruínas da grande epidemia que em 1569 começou a grassar Lisboa. Perdeu na Peste Grande, a filha e o filho, um neto e a esposa. Ver: Trancoso, Gonçalo Fernandes. Contos e histórias de proveito e exemplo. Prefácio por João Palma Ferreira. Lisboa, Imprensa Nacional, 1974.(conforme edição de 1624) 8 idem, p.82 9 É preciso esclarecer ao leitor de que a opção deste estudo centra-se na educação da mulher branca das camadas abastadas, porque as informações referentes às mulheres negras e indígenas são raríssimos no período colonial brasileiro. Infelizmente pouco pude levantar sobre suas atividades, até o momento presente. 10 Nóbrega era o chefe designado da primeira missão jesuítica enviada ao Brasil, em 1549. Procurou adaptar-se e a catequese aos costumes nativos, respeitando os valores do povo colonizado. É, junto com Anchieta, um dos fundadores da cidade de São Paulo, com a criação da Aldeia de Piratininga, em 1553. Deixou os textos Informações das Terras do Brasil (1549) e Diálogo sobre a conversão do Gentio (1556-7).

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uma carta à Rainha de Portugal, Dona Catarina, ainda no início da colonização,

solicitando educação para as indígenas. Alegavam que, se a presença e assiduidade

feminina era maior nos cursos de catecismo, porque também elas não podiam aprender

a ler e escrever? O próprio Padre José de Anchieta escrevia nas cartas de Piratininga

que nos encontros de conversão da catequese o concurso e freqüência das mulheres

é maior... 11

(SUGESTÃO DE ILUSTRAÇÃO: NO LIVRO APARECE A IMAGEM DE DONA

CATARINA, RAINHA DE PORTUGAL)

Na simplicidade natural de sua cultura primitiva, o indígena considerava a mulher

uma companheira, não encontrando razão para as diferenças de oportunidades

educacionais. Não viam, como os brancos os preveniam, o perigo que pudesse

representar o fato de suas mulheres serem alfabetizadas. Condenar ao analfabetismo e

à ignorância feminina lhes parecia uma idéia absurda. Isso porque o trabalho e o

prazer do homem, como da mulher indígena eram considerados eqüitativos e

socialmente úteis. Os cronistas do Brasil quinhentista se admiravam da harmonia

conjugal existente entre os indígenas brasileiros. O mesmo padre Anchieta escreveria

em seus relatos: "Sempre andam juntos" 12

(SUGESTÃO: COLOCAR A IMAGEM DOS INDIGENAS DE RIO BRANCO)

Nóbrega achou a idéia muito boa. Isso poderia desencadear um processo de

respeito pelas mulheres que viviam na Colônia, já que a miscegenação imposta pelo

branco grassava em quase todas as aldeias, ocasionando nascimentos desvinculados

de amor e respeito. João Ramalho, por exemplo, teve mais de trinta mulheres

indígenas e mais de oitenta filhos. 13

É preciso não esquecer que nessa época o colono imigrava só para o Brasil,

deixando a mulher e os filhos em Portugal. Ele vinha em busca do lucro fácil. A

ausência da família cedia lugar à dominação sexual masculina na Colônia. Para que os

11 Poeta, gramático e catequista, chegou ao Brasil em 1553. Deixou vasta obra, inclusive autos teatrais (Auto da Festa de São Lourenço) representados pelos índios e escritos numa mistura de espanhol, tupi-guarani e português, que marcam o início do teatro no Brasil. 12 Hoornaert, Eduardo et alii. História da Igreja no Brasil. Trad.Bertholdo Klinger. Rio de Janeiro:Vozes, 1979. 13 Darcy Ribeiro cita João Ramalho como um dos primeiros moradores do Brasil Tinha muitas mulheres, flhos e netos descendentes das indígenas brasileiras. Ribeiro, Darcy. O Povo Brasileiro. São Paulo: Cia das Letras, 1997. p.84

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abusos atenuassem, Nóbrega achava que o acesso à instrução pelas indígenas

poderia colaborar de forma positiva. Os padres jesuítas tinham o desejo de fundar

recolhimentos para as mulheres no Brasil. Para eles, a educação feminina na Colônia

não era apenas um requinte de erudição humanísta. Era uma questão mais grave:

tratava-se de lançar a base para a obra de moralização. E também de forma eficiente

na formação de famílias "brasileiras".

Infelizmente a Rainha de Portugal, Dona Catarina, negou a iniciativa,

qualificando de "ousado" tal projeto, devido as "conseqüências nefastas" que pudesse

representar o acesso das mulheres indígenas à cultura dos livros da época. No século

dezesseis, na própria metrópole não havia escolas para meninas. Educava-se em casa.

As portuguesas eram, na sua maioria, analfabetas. Mesmo as mulheres que viviam na

Corte, possuíam pouca leitura, destinada apenas aos livros de rezas. Por que então

oferecer educação para mulheres selvagens , em uma colônia tão distante, que só

existia para o lucro português?

Apesar da negação da metrópole, algumas indígenas conseguiram "burlar" as

regras. Catarina Paraguassú ou Madalena Caramurú parece ter sido a primeira mulher

brasileira, que sabia ler e escrever. Os registros que encontrei, até o momento, são

controvertidos e merecem um estudo cuidadoso por parte dos pesquisadores da área

da História da Educação Brasileira. Alguns autores afirmam que essa brasileira era filha

de Diogo Alvares Correia, o Caramurú, com a índia Moema ou Paraguassú. Outros

afirmam que seria a própria esposa, também chamada de Catarina Paraguassú. 14 No

dia 26 de março de 1561 ela escreveu uma carta de próprio cunho ao Padre Manoel de

Nóbrega. Infelizmente não localizei o documento e o teor de seu conteúdo. Seria

interessante que futuros pesquisadores resgatassem essa informação, como o

primeiro registro feito por uma mulher brasileira. 15

A educação "letrada", no entanto, estaria reservada ao sexo masculino, e a

incumbência de tal fato foi de responsabilidade exclusiva dos padres da Companhia de

14 Diogo Alvares Correia, denominado o Caramurú, já se encontrava na Bahia antes da chegada do governador-geral Tomé de Sousa. Foi incumbido pelo rei de auxiliá-lo na colonização. 15 A história ainda não contou sobre quem seria de fato a mulher que alfabetizou-se nos primórdios do Brasil-Colônia. Chamada de Catarina Paraguassú, também é reconhecida como Madalena Caramurú ou Paraguassú. Otto Scheneider, em Curiosidades Brasileiras, 1954, p.20 refere-se a Madalena Paraguaçu, como a primeira mulher alfabetizada, mencionando a carta como prova. Adalzira Bittencourt, em A mulher paulista na história, p.51 relata a bahiana Madalena Caramurú, como a filha de Caramuru como a primeira mulher a ler e escrever no Brasil. No livro de Ignez Sabino, Mulheres Illustres do Brazil refere-se à Catarina Paraguassú. Nesse contexto, surgem também dois possíveis autores da mesma aquarela, J.Simmonds, como o Sonho de Catarina Paraguassú e Edgard de Cerqueira Falcão, denominando apenas Paraguaçu.

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Jesus. Até 1627, somente duas mulheres de São Paulo sabiam assinar o nome. Eram

Leonor de Siqueira, viúva de Luiz Pedroso e sogra do Capitão-Mor Pedro Taques de

Almeida e Madalena Holsquor, viúva de Manuel Vandala, de origem flamenga. 16

A CUSTÓDIA DAS PREDESTINADAS

A Colônia brasileira do século XVI tinha poucas mulheres portuguesas. Em

função disso, foi criado, no período, o mito da Mulher Branca. Sua representação social

aumentou o preconceito com relação às mulheres de outras etnias - negras e indígenas

- de condições submissas ao português. Com o aumento da população de mestiços (os

mamelucos e os mulatos, que viriam a ser os brasileiros), os jesuítas e a metrópole

preocuparam-se em importar para o Brasil levas de mulheres brancas com o intuito da

reprodução e fixação do padrão étnico europeu/branco.

Não tinha importância se na Metrópole fossem órfãs, ladras, prostitutas,

alcóolatras, mentalmente incapacitadas, etc. Na Colônia Brasileira elas seriam as

responsáveis pela perpetuação do domínio europeu, através da procriação dos

portugueses. Em 1552, Nóbrega, escrevia ao Rei, dizendo que os homens viviam em

pecado e insistentemente pedia que "Vossa Alteza mande muitas orphans e si não

houver muitas, venham mistura dellas e quaesquer.." 17

Fica claro, pelas palavras de Nóbrega, que as mulheres brancas seriam meras

reprodutoras dos varões portugueses na Colônia, e que a sua educação existia com

esse objetivo. Nos casamentos, não haveria laços afetivos, e sim contratos econômicos

acertados pelos pais e na falta desse, pelo irmão mais velho.

No Brasil Colônia, o homem decidia as ações. Era ele quem dominava, através

da família patriarcal. Aliás, a palavra família vem de famulus. Uma expressão latina

que quer dizer: escravos domésticos de um mesmo senhor. Ou seja: todos deviam

obediência ao senhor patriarcal. Sua esposa e filhas também. Elas o chamavam de

senhor meu marido, senhor meu pai .

A mulher branca colonial, de camadas abastadas, casava-se muito cedo.

Quando ocorria a primeira menstruação, com onze ou doze anos, as meninas estavam

prontas para o casamento com homens de quarenta ou cinqüenta anos. Isso porque

16 Alcantara Machado escreveu sobre a vida privada do bandeirante, familiar, religiosa, econômica e social. Deixando de lado a epopéia dos desbravadores, foi em busca dos fatos. Não nos gestos heróicos que passaram à história, mas nos atos cotidianos que alicerçam e explicam os outros. Ver Machado, Alcantara. Vida e Morte do Bandeirante. São Paulo: Martins, 1965. P.101 17 Foi durante a gestão da Rainha Catarina que foram enviadas as orfãs para a povoação da Colônia Brasileira. Ver Rodrigues, Leda M.P. A instrução feminina em São Paulo, São Paulo: Sedes Sapientae, 1962, p.30

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demorava muito tempo para os portugueses conseguirem acumular fortunas ou as

heranças paternas.

Essas mulheres viviam geralmente escondidas nas "casas-grandes", e a

virgindade era vigiada pelo pai e pelos irmãos. O homem tinha que ter certeza de que

os filhos gerados eram dele, para herdarem os seus bens. Luccock, viajante do século

XIX, observou que a reclusão feminina ainda predominava nessa época, afirmando que

as mulheres portuguesas raramente saíam de casa. "O pouco contato que os costumes

com elas permitem, dentro em breve, põem a nú a sua falta de educação" 18

A PEDAGOGIA SEXUAL DA COLÔNIA

As mulheres brancas, na sua maioria, também eram sexualmente ignorantes.

Quando casavam-se, seguiam para a lua de mel despossuídas de informações sobre o

sexo. Muitas vezes conheciam o noivo dias antes do casamento, acertado entre os

homens. Na hora da relação entre os sexos, fechavam as janelas do quarto, deixando-o

escuro. A claridade não combinava com a fecundação. As noivas cobriam-se com um

lençol que possuía um círculo aberto em cima dos órgãos sexuais. Feito isso, o noivo

adentrava ao recinto, e sobreposto à sua esposa, copulava. Aliás a Igreja Católica não

lhes permitia o prazer sexual. O orgasmo era entendido como coisa do demônio. O

corpo feminino era um templo de purificação, não devia ser visto pelo marido. Servia

apenas para reprodução dos filhos de Deus. Nesse sentido, as relações sexuais entre

os portugueses, muitas vezes, eram verdadeiros estupros. A pedagogia do prazer

sexual para o senhor patriarcal ficava à cargo das negras escravas, que além de servi-

los nas tarefas da casa, deveriam satisfazê-los na cama. Mesmo que exploradas no

seu trabalho produtivo e no seu próprio corpo, contraditoriamente, com o tempo, elas

dominaram o senhor tornando-o escravo do prazer sexual. Raul Dunlop conta o caso

de um homem que para excitar-se diante da noiva branca, precisou, nas primeiras

noites de casado, de levar para a alcova a camisa úmida de suor, do cheiro de sexo da

sua escrava amante." 19

18 John Luccock residiu no Brasil no início do século XIX (1808-1818). Escreveu Notas sobre o Rio de Janeiro e as partes meridionais do Brasil, tomadas durante uma permanência de dez anos nesse país. In: Hahner, J. A mulher no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização,1978. p.32 19 Gilberto Freire, sociólogo, defendeu em 1922, na Universidade de Columbia a tese Vida Social no Brasil na Metade do Século XIX tema que originou o livro Casa Grande e Senzala. Foi várias vezes premiado como obra básica sobre relações inter-raciais. De acordo com Ronaldo Vainfas, dentre os vários autores que falaram das mulheres brasileiras, talvez o melhor tenha sido ele, mesmo com a arte incomparável das generalizações nem sempre exatas. Faça-se, no entanto, alguma justiça a Gilberto Freire: ele viu como ninguém diferenças entre as

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A dependência sexual do homem branco à sua escrava o levava a vender,

muitas vezes, escravos vigorosos e rentáveis para o seu engenho, por causa do

ciúmes. Preferia ter prejuízos econômicos do que disputar a atenção da negra com o

rival. Essa situação era possível porque a negra possuía a pedagogia da sexualidade

que representava uma dependência do senhor à escrava, que desempenhava a

didática do sexo.

TRANSGREDINDO A ESFERA DOMÉSTICA

Como já evidenciado em páginas anteriores, a mulher branca da época colonial

deveria ser passiva, calada, regrada, submissa. Mas estes atributos destinados ao sexo

feminino aconteciam apenas em tempos de calmaria. Quando o domínio dos

portugueses era ameaçado, elas assumiam cargos tidos como masculinos, ocupando

outros espaços. Nesses períodos, aprendiam rapidamente como administrar uma

propriedade ou mesmo um território político. Do cuidado do lar, muitas tiveram que

ultrapassar a esfera doméstica para a esfera pública.

Poucas brasileiras sabem que das capitanias doadas no século XVI, as únicas

que deram certo, de São Vicente e de Pernambuco, foram governadas por mulheres.

A capitania de São Vicente foi administrada por Dona Ana Pimentel, esposa de

Martin Afonso de Souza, que ao concluir sua instalação na Vila de São Vicente, em

1533, retornou à Portugal:"... transmitindo os poderes de que se achava investido à sua

mulher, D.Ana Pimentel, dama das mais altas qualidades e do mais subido valor... 20

Sem a presença do marido, D.Ana durante a sua gestão, mandou trazer ao Brasil as

primeiras mudas de laranja, de arroz e do Gado Vacum , responsáveis hoje por grande

parcela da economia do Brasil. Durante o seu governo, os índios gáuchos, oriundos no

Rio Grande do Sul, visitaram a governadora e um deles apaixonou-se por uma de suas

damas de companhia. Casando-os, Ana Pimentel deu-lhes um lote de gado vacum, que

mulheres, atento às diversidades de culturas ou, como querem alguns, de cor e de raça. Ver: Vainfas, Ronaldo. Homoerotismo feminino e o Santo Ofício. In: Priore, Mary Del, História das Mulheres no Brasil, São Paulo:Contexto, 1997. p.115. 20 José Torres de Oliveira escreveu um artigo sobre a fundação da Capitania de São Vicente, atribuíndo apenas à Martin Afonso de Souza as iniciativas realizadas durante o seu governo. Em 1530, Martin Afonso vistoriava o litoral brasileiro para implantação do núcleo ocupacional.Em 1534 o Rei lhe concedia a Capitania. Nessa fase, o oriente , com suas especiarias, convidava muito mais que o Brasil. terminada a tarefa de colonização, Martin Afonso seguiu para a Europa, deixando sua mulher no seu lugar. Ver: Oliveira, José Torres de. Martin Afonso de Souza e a fundação de São Vicente. In: Revista Instituto Histórico e Geográfico da Bahia. 44:123-138, 1918.

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levaram ao sul do país, reproduzindo-os em grande escala. 21 Também foi no seu

governo que Brás Cubas recebeu de suas mãos um extensão de terras (Cesmaria)

entre a Serra de Cubatão e o mar, hoje denominada cidade de Santos. Infelizmente, os

livros didáticos brasileiros não incluem até o momento, atuações sociais e políticas

femininas, como a relatada acima.

Dona Beatriz ou Brites de Albuquerque, esposa de Duarte Coelho governou

Pernambuco quando Duarte Coelho foi para Portugal com os seus filhos: " Ficava em

seu lugar sua molher Donna Beatriz de Albuquerque que a todos tratava como filhos." 22 Durante a sua administração ajudou a apaziguar o conflito entre os portugueses

colonizadores e os temíveis índio botocudos, que tinham o hábito da antropofagia.

Essas mulheres cultivavam o ócio apenas quando era possível. No momento em

que as circunstâncias exigiam uma presença decisiva na esfera de atuação

administrativa, os atributos de passividade caíam por terra.23

A AUSÊNCIA DA EDUCAÇÃO DO CORPO

Quanto a educação do corpo, as atividades físicas para as mulheres das

camadas favorecidas, eram desestimuladas. Além do preconceito pelo trabalho manual

que implicava em imobilidade, as portuguesas assimilaram da tradição moura o

costume de não praticarem o hábito de caminhar ou cavalgar. Andavam sempre em

cadeirinhas (ou liteiras). Em casa viviam, quase sempre deitadas ou sentadas. Quando

queriam um copo de água, esse era trazido por uma escrava. Engravidavam

continuamente, o que deformava o corpo rapidamente. Também adquiriram o hábito de

comerem muitos doces açucarados, o que lhes tornavam obesas. No discurso de posse

do Governador Maurício de Nassau, é possível encontrar uma descrição sobre a

indisposição física das portuguesas: "De ordinário as mulheres, ainda moças, perdem

os dentes, e pelo costume de estarem contínuo sempre sentadas, não são tão ágeis...24

21 É preciso cuidado com as obras ufanistas dos feitos femininos. Mas não podemos deixar de considerar suas informações e tentar cruzá-las com outras fontes. O livro de Adalzira Bittencout, A mulher paulista na história ilustra com detalhes esses fatos. Rio de Janeiro:Livros de Portugal, 1954. 22 Dona Beatriz foi governadora de Pernambuco duas vezes. Seu irmão Jeronimo de Albuquerque ajudou-lhe a dividir os problemas que enfrentava na Capitania. Raras são as informações sobre a sua pessoa. Ver: SALVADOR, Frei Vicente. História do Brasil (Duarte Coelho). Annaes da Biblioteca Nacional, XIII: 44-63, 1888. 23 O papel pioneiro de algumas mulheres no Brasil Colonial, que romperam com as determinações socialmente contituídas frente a educação feminina preponderantemente restrita aos misteres domésticos ainda está por ser escrita. Principalmente com relação às mulheres de condições economicamente baixas. 24 Diferentemente das européias do período Renascentista, que tinham o hábito de cavalgar ou caminharem pelos campos, as mulheres brasileiras mantiveram o costume de não exercitarem-se. As negras, contudo, mantinham-se ágeis e com o corpo bem delineados, em função das tarefas diárias que eram obrigadas a exercer, enquanto escravas

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Outro costume assimilado dos mouros foi a utilização das baetas, uma manta

negra para cobrir a cabeça. Esse se apresentava também como um recurso para burlar

a vigilância que a sociedade impunha.

Nos bailes, os pouco que haviam, e nas festas religiosas, quando era possível,

dançavam-se figurativamente, e os pares apenas trocavam uma ou outra palavra

rápida. Nos jantares de família, as mulheres ficavam à mesa em frente aos homens,

quietas, ouvindo a conversa constrangida dos mesmos, que esperavam as suas

retiradas, para falarem à vontade. 25

A LINGUAGEM DAS FLORES

O flerte entre os sexos ocorria freqüentemente dentro das igrejas, no horário da

missa. O padre rezava em latim, de costas para os devotos. As mulheres ficavam

sentadas, à mourística, no grande salão, e os homens da sociedade colonial sentavam-

se nas laterais. Nessa posição, muitas moças flertavam com o sexo masculino e

entabulavam ligações afetivas proibitivas. Como elas eram na sua maioria, analfabetas,

não podiam mandar bilhetes secretos aos seus amores. Criaram, então, outras formas

de comunicação. Utilizavam-se, por exemplo, da correspondência amorosa das flores,

ou Linguagem das Flores, que era uma espécie de código, resultante da combinação

engenhosa de interpretação simbólica das diferentes flores, construindo uma expressão

codificada. Por exemplo, quando uma moça se apaixonava por um rapaz indesejado

pela família, ela enviava através de sua mucama, uma combinação da rosa vermelha

com um ramo de trigo, que significava que ela o amava muito. Ou quando o ser amado

a traía, a moça enviava uma Camélia com um ramo de alecrim, que poderia significar

seu arrependimento e ódio pela traição. Essa linguagem manteve-se como substituto

das letras durante décadas. Com o tempo, os namorados tornaram-se pais e a

linguagem teve o seu código comprometido."Essa ciência, transmitida assim de

geração a geração, tornou-se objeto de mofa quando os progressos da educação

feminina a substituíram pela escrita" 26

ou negras de ganho. Ver:Pinho, José Vanderley Araújo. Revista do Arquivo Geográfico de Pernambuco, Tomo 34:1887, p.174. 25 Mantinha-se a mesma atitude do Brasil seiscentista. As mulheres deveriam ouvir caladas, com os olhos baixos, mantendo certa distância do sexo masculino. Ver: TAUNAY, Affonso D E. O enclaustramento das mulheres . Capítulo IV. Annaes do Museu Paulista, 1: 320-329, 1922.

26 Jean Baptiste Debret (1768-1848) pintor e desenhista francês,veio para o Brasil em 1816 com a Missão Artística Francesa e aqui introduziu o neoclassicismo nas artes plásticas. Lecionou na Academia de Belas-Artes do Rio de Janeiro e escreveu Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, onde incluiu várias pinturas sobre o cotidiano dos brasileiros. São Paulo:INL, 1975, p.11

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MULHERES DESPROTEGIDAS

Por não saberem ler e escrever, mulheres aforunadas ficaram expostas a

enganos de elementos masculinos, que muitas vezes resultavam em espoliações e

roubos de propriedades, através de falsificações testamentais ou escrituras.

Analfabetas, eram representadas por homens que as vezes, as enganavam. 27

De 1578 a 1700, quatrocentos e cinquenta inventários foram levantados e neles

apenas duas mulheres sabiam ler e escrever. 28

Mas o abuso não era apenas financeiro, a questão moral, aspecto importante

nesse período, foi por vezes motivo de desgraça de muitas senhoras da sociedade

colonial. Em um período em que ao homem pertencia o poder absoluto, a instrução não

ajudava o sexo feminino a reagir, a resistir a tais abusos. Exemplo disso é o caso do

estupro citado por C.R.Boxer, ocorrido em 1611, com uma dama brasileira de nome

Margarida de Mendonça. Como sabia ler e escrever, enviou uma petição, de próprio

punho à Coroa, pedindo que o Rei obrigasse o suposto marido a casar-se legalmente

com ela, caso contrário ela tornaria-se uma mulher desonrada. Na carta ao monarca,

conta detalhadamente que Nuno da Cunha disse que queria casar-se com ela, mas que

deveria ser em segredo. Jurando numa Ermida, na frente da imagem de Cristo,

dizendo-se cristão, fez os votos do casamento. E na mesma hora, não querendo

esperar, se entregou de mi e me forçou: gritando eu, me deu e me rompeu o fato,

dizendo era eu sua mulher, e se gritasse, me mataria às punhaladas... 29 Depois disso,

pegou coisas de sua casa, forçou-a a assinar um papel e fugiu. Nessa petição enviada

ao Rei, a justiça que D.Margarida pedia não referia-se ao abuso nem ao logro, mas a

volta do homem que a deflorou, porque naquele período uma mulher desvirginada tinha

um caminho a seguir: a prostituição.

O Rei, ao que tudo indica não atendeu a reivindicação de uma mulher letrada.

Nos relatos de Boxer, parece que Nuno da Cunha morreu solteiro em Sena, como

27 Paes Leme conta o caso de D.Isabel Pires Monteiro, que do primeiro casamento tivera uma filha e herdara uma fortuna. Casada novamente com João Fernandes de Oliveira, que também tinha um filho, se viu lesada pelo próprio marido. Ver: Leda Maria Rodrigues, História da Educação Feminina em S.Paulo. São Paulo:Sedes Sapientae, 1962, .38 28 Eesses documentos vinham acompanhados de uma frase que revelava o analfabetismo e consequentemente a dependência feminina: se declarava o motivo de ser o ato assinado por outrem a pedimento da ourtorgante: por ser mulher e não saber ler. Ver: Machado, Alcantara Vida e Morte do Bandeirante, 1965. P.101 29 Romper o fato na expressão da época significava desvirginar, romper o hímem da mulher. Boxer, C.R. Women in Iberian expasion overseas (1415-1815) Some facts, fancies and personalities. New York:Oxford University Press, 1975, p.113

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governador de Moçambique, em 1623. Num contexto social onde os interesses

econômicos eram muito mais importantes do que a dignidade de uma dama da

sociedade colonial, a instrução revelada na carta de D. Margarida foi de pouca valia.

Contudo, desde que tivessem dotes, era possível às mulheres da época colonial

escolher uma outra alternativa para se esquivar dos pais e dos maridos indesejáveis: o

ingresso nos conventos. Também era essa a única alternativa para as que quisessem

estudar. Se optassem pelo celibatarismo, seriam estigmatizadas pela sociedade

colonial como "solteironas" por causa da necessidade da reprodução dos varões. Uma

mulher que não se casasse ou não fosse para um convento era considerada

"encalhada". Criava-se, desta forma, o estímulo ao casamento: com os homens de

Cristo ou com o próprio Cristo, no caso das freiras.

EDUCANDO NOS CONVENTOS:RECLUSÃO E NOVAS APRENDIZAGENS

Não existindo um sistema formal de educação feminina na colônia, esta

acontecia nos conventos. Eles surgiram no Brasil apenas na segunda metade do

século XVII. Normalmente, o ensino de leitura e a escrita era ministrado ao lado da

música, do canto chão, do órgão e dos trabalhos domésticos, principalmente a feitura

de doces e de flores artificiais.

Até esse período, as mulheres mais abastadas seguiam para Portugal para

estudar. Casos raros como o de D.Tereza Margarida da Silva e Orta, a primeira

romancista brasileira. Irmã de Matias Aires, ela escreveu em 1752, o livro "Aventuras de

Diófanes", atribuído erroneamente durante muitos anos a Alexandre de Gusmão. 30 No

Convento de Trinas, em Portugal, instruiu-se em música, artes, poesias e algumas

partes de Astronomia. Dorothea era o anagrama utilizado por Tereza e seu livro obteve

quatro edições, todas raríssimas, tanto em Portugal como no Brasil. Apesar de ser a

primeira obra a compor a história da literatura colonial feminina, é muito pouco

conhecida. Mas Tereza, além de pioneira na arte do romance brasileiro, era uma

mulher decidida, destemida e de personalidade marcante. Em torno de sua história

30 Filha de José Ramos da Silva e d.Catarina de Horta, nasceu em São Paulo e casou-se aos dezesseis anos de idade, contra a vontade paterna, com o maranhense Pedro Jansen Moller van Praet. Seu livro revela a influência dos iluministas e de Fénelon. Ennes, Ernerto. Thereza Margarida da Silva e Orta : Primeira escritora paulista e primeira romancista brasileira. (1705-1787). in: Separata do Volume XXXV da Revista do Instituto Histórico e Geográfico de S.Paulo. São Paulo, 1938. P.78

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paira um mistério: foi prisioneira do Marquês de Pombal durante o seu governo, por

crime de Lesa Magestade. Ficou em cela onde não via "luz de sol, nem luz da lua" mais

de seis anos. Que crime Tereza teria cometido? Conspiração?! Infelizmente, ainda não

obtive resposta a esse dado. 31 O primeiro convento fundado no Brasil foi em 1678,

denominado Santa Clara do Desterro, na Bahia. Foi considerado o mais luxuoso e o

mais mundano, pelos excessos ali cometidos: pois algumas freiras "vestem por baixo

de seus hábitos camisas bordadas (..:)calção e meias de seda ligando-as commumente

com fivellas de ouro cravadas de diamantes.." 32.

A pouca religiosidade era explicada por diversas razões: muitas mulheres eram

internadas sem nenhuma vocação definida e com pouca idade. Os pais que tivessem

gerado muitas filhas, trancafiavam a maioria nos conventos, com receio de terem que

dividir suas propriedades com os futuros genros. Também era para os conventos que

os maridos enviavam as esposas que os traíam, quando não a assassinavam. Nesse

sentido, estas instituições eram reconhecidas como "prisões místicas".

A prisão mística servia tanto às famílias como às próprias decisões do governo

local. As moças que "erravam" , ou aquelas por determinação régia, eram enviadas

para o convento. Foi o caso da esposa do comerciante Manoel José Fróes, que movia

uma ação de separação contra o seu marido, e "foi recolhida a pedido deste ao

convento da Lapa por ordem do Arcebispo" 33 Não eram somente os maridos, os pais e

o governo que usavam o convento como penitenciárias, os irmãos, que no momento da

partilha da herança, preferiam não repartir os bens com suas irmãs.

Muitas destas mulheres fugiram da clausura, apesar da vigilância apurada.

Outras, entretanto, trataram de administrar a instituição de forma produtiva. Mesmo

atreladas ao poder da igreja, iniciaram um pedagogia de iniciativa empresarial em

moldes bem estruturados.

Mais do que educação formal, os conventos foram reflexos daquilo que a

sociedade colonial tinha como base fundamental: a questão econômica, a questão do

comércio.

31 Durante o meu pós-doutoramento em Lisboa, procurei seguir alguns documentos que trouxessem pistas sobre os motivos do ódio do Marquês de Pombal por D.Tereza Margarida da Silva e Orta, assim como já o fizeram outros pesquisadores. No entanto, o silêncio ainda prepondera. 32 É preciso não esquecer-se que as meninas muitas vezes ingressavam contra à vontade com pouca idade e sem nenhuma vocação para a clausura e a pobreza. Agiam nessas instituições como meninas que tem desejos de adereços, modismos, entre outras manifestações femininas. Pinho, José Vanderley de Araújo. Costumes monásticos na Bahia. Freiras e Recolhidas. In: Revista do Instituto Histórico de São Paulo, XLI:12-13. 1942. 33 Idem, p.133

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É sabido que durante o Brasil-Colônia não haviam bancos ou agências de

crédito. Os conventos desempenharam esse papel, em função do acúmulo de dotes e

doações que recebiam. Na realidade, as freiras emprestavam dinheiro a juros aos

proprietários de terra, aqueles mesmos que as haviam trancafiado nos conventos.

Como muitos não conseguiam saldar suas dívidas, em função de falências ou

problemas no engenho, seus bens, algumas vezes, eram entregues aos conventos

como forma de pagamentos. Assim o patrimônio das freiras foi aumentando. No

convento do Desterro, na Bahia, elas se revelaram tão boas gestoras, que além de

emprestarem dinheiro aos senhores, compravam, vendiam e arrendavam propriedades.

Nesse sentido, fica evidenciado que apenas teoricamente existia renúncia à vida

material:" O convento do Desterro fazia empréstimos e tinha propriedades enquanto

pregava a pobreza." 34

A condição econômica estabelecia a posição social da população feminina

dentro do convento: As mais ricas eram as freiras de véu preto, seguidas das de véu

branco, das educandas que pagavam para estudar, e as servas, que durante muito

tempo deveriam ser brancas. "Sabe-se que as recolhidas de véu branco eram pessoas

de prestígio, mas não prestavam votos e seu dote só chegava à metade das freiras de

véu preto. (...) só em 1720 as servas puderam ser negras ou mulatas. 35

PROPOSTAS DE EDUCAÇÃO DE MULHERES.

Depois da expulsão dos jesuítas (1759) e da implantação da Reforma Pombalina

da Educação, em Portugal e suas colônias, no que se refere a instrução feminina,

pouco mudou. Luís Antonio Verney, que escreveu "O Verdadeiro Método de Estudar"

na Itália e era português, dedicou um apêndice à educação das mulheres. Sua proposta

tinha como objetivo o lar, a serventia doméstica. Além da tarefa de educar os filhos, que

antes era tarefa da mãe-preta, à mulher cabia naquele momento a arte de "prender" o

marido em casa. Verney propõe que as mães, ou na impossiblidade dessa,

governantas, ensinassem as meninas. Criticava duramente a falta de instrução das

mulheres portuguesas, e indiretamente, as brasileiras: "ler e escrever Português... isto é

o que rara mulher sabe fazer em Portugal.(..)ortografia e pontuação nenhuma

34 Susan Soeiro fez um amplo estudo sobre o Convento de Santa Clara do Desterro. Escreveu A baroque nunnery: The economic and social role of colonial Colonial Convent Santa Clara do Desterro, entre outros. Indicações da Fundação Carlos Chagas, na pesquisa Mulher Brasileira. Bilbiografia Anotada. São Paulo:FCC, 1980, Tomo I p. 67 35 idem, p.67

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conhece.. 36. Sugeria a leitura da história, de noções de aritmética, de línguas, da

dança, entre outros. No entanto, poucos reflexos dessa proposta educacional chegaram

ao Brasil. De forma concreta, apenas o livro de José Lino Coutinho, sobre "Carta à

Cora" e os estatutos do Recolhimento de Nossa Senhora da Glória, em Olinda. 37

Até 1808, a educação de uma maneira geral continuou a mesma. Com a vinda

de D.João VI as mudanças culturais não atingiriam de imediato as mulheres. Debret,

dizia que desde a chegada da corte ao Brasil tudo se preparara mas nada de positivo

se fazia em pol da educação das jovens brasileira. "Esta, em 1815 se restringia, como

antigamente, a recitar preces de cor e a calcular de memória sem saber escrever ou

fazer as operações." 38

Os conventos continuaram a crescer e os escândalos também. O próprio filho do

Rei, D.Pedro I teve um romance com uma freira sineira em Angra dos Reis, Rio de

Janeiro, e da relação entre eles, nasceu um filho, já depois do Imperador estar ausente.

Viveu quatro ou cinco anos apenas. 39. O que comprova o longo caminho que ainda

percorreriam as mulheres para serem compreendidas como seres atuantes na

sociedade brasileira.

Maria Quitéria e a Imperatriz Leopoldina destacaram-se na passagem do Brasil

Colônia para o Brasil Independente. E ambas atuando incisivamente neste episódio,

pouco foram estudadas pelos historiadores brasileiros. A Imperatriz Leopoldina teve

participação decisiva no dia do FICO, quando seu esposo vacilante, não decidia se ia

para Portugal ou ficava no Brasil. Também atuou na proclamação da Independência,

quando enviou, em comum acordo com José Bonifácio, uma carta ao marido para que

ele tomasse a atitude drástica de rompimento com o Reino Português. Foi sua missiva

que desencadeou o gesto histórico nas margens do Rio Ipiranga, em São Paulo. 40

36 Filho de Dionísio Verney, um francês e Maria da Conceição Arnaut, portuguesa, desde a tenra idade, Luis Antonio Verney foi colocado aos cuidados de um capelão para ensinar-lhe os primeiros rudimentos. Aos 23 anos concluiu os Estudos de Teologia em Évora. Em 1746 endividou-se para publicar suas idéias iluministas pedagógicas com o Título O Verdadeiro Método de Estudar, utilizado amplamente pelo Marquês de Pombal. Lisboa: Sá da Costa, 1952. Vol. V , p. 128 37 José Lino Coutinho, professor de medicina, escreveu em 1849, Cartas sobre a educação de Cora que era sua filha. Seu trabalho revela semelhanças com o de Verney quando enfatiza a educação na infância, os exercícios físicos, que até então não eram estimulados, incutindo hábitos morais e amor à verdade. Nesse sentido, eles ultrapassavam as esferas de um livro de rezas, diferindo dos moldes introjetados nos conventos. In: Peixoto, Afrânio. A Educação da Mulher. São Paulo:Nacional, 1936. p.107 38 Debret, Jean Baptiste. Op.cit. Vol.II, p.11 39 A criança passou pela roda dos expostos e recebeu o nome do Imperador. Foi enterrada junto ao Adro da Sé. Pinho, José Vanderlei de Araújo, Op. Cit. P.133. 40 A contribuição de D. Leopoldina é muito pouco estudada nos manuais de História Brasileira da Independência do Brasil, sobretudo no ensino fundamental brasileiro. Com a iniciativa do Consulado Geral da Áustria, a obra de

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Quanto a Maria Quitéria, participou de diversas batalhas pela Independência,

vestida de homem. Seu sexo nunca foi revelado, até que seu pai o comunicasse ao seu

oficial comandante da Infantaria. Recebeu de D.Pedro I elogios e méritos pela bravura

e coragem de atuar como um brasileiro. Maria Graham, que pintou o seu retrato e a

admirava, mencionou : ela é iletrada, mas inteligente. Sua compreensão é rápida e sua

percepção aguda. Penso que, com educação, ela poderia ser uma pessoa notável. 41

(IMAGEM DE MARIA QUITÉRIA)

FINALIZANDO O TEXTO

Como procurei evidenciar em páginas anteriores, até o momento, pouco se sabe

sobre a educação das mulheres brasileiras no Brasil Colônia. Há muito o que pesquisar

em arquivos brasileiros e portugueses, apesar da documentação ser escassa e de

difícil acesso. O silêncio em torno das atividades femininas requerem do pesquisador

verdadeiro malabarismo e um pouco de sorte.

No entanto, para além do resgate de fontes novas, é preciso uma releitura da

documentação existente sobre a educação feminina e sua representação social no

período inicial da colonização brasileira. Tudo ainda está por fazer nessa área da

História da Educação Brasileira.

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4º. Texto: Sobre a Feminização do Magistério no período oitocentista

brasileiro.

A Educação das Mulheres no Século XIX: O Colégio de Carolina e Hércules

Florence de Campinas. (1863-1889)42

Está publicado na íntegra no livro do mesmo título, lançado em 1996 e 2006 pelo Centro de

Memória da Unicamp, Campinas e no site www.histedbr.unicamp.br

com fotografias

incluídas.

Introdução

O século XIX foi um período de glórias para o desenvolvimento da educação no Brasil.

Com a propagação da economia cafeeira no sudeste do país, mormente a província de S.Paulo

começou a ter destacadas transformações na área cultural. Se até então o Nordeste tinha ocupado

o lugar de destaque, o "ouro verde" sobressai-se nesse momento nas terras paulistanas e alcança

supremacia em detrimento às plantações de cana em sítios nordestinos.

Campinas foi, sob o meu ponto de vista, uma das cidades mais privilegiada da segunda

metade do século XIX.

Fundada em 1774, cem anos depois, este pequeno município já estava pronto para receber

toda a sorte da iniciativa de republicanos, maçons, imigrantes, positivistas, barões do café e a

insurgente classe média que iria povoar suas ruas, construindo seus casarios, lojas, e indústrias

emergentes.

Onde existiram cidades no século XIX, existiu o desejo pela Educação. Em Campinas,

tanto meninos como meninas tiveram a oportunidade, a partir desse período, de terem acesso aos

saberes institucionalizados. Os pais, fazendeiros, profissionais liberais e políticos, possuíam

condições financeiras favoráveis e ideários que facilitaram o surgimento de escolas e colégios.

A análise que realizei do processo educativo das mulheres de famílias abastadas na cidade

42 Mestre e Doutora (Unicamp) e Livre-Docente (Unesp) em História da Educação e Professora junto ao Programa de Pós-Graduação e Graduação da UNESP

Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Tecnologia de Presidente Prudente. Faz parte do Grupo de Pesquisa Valores, Educação e Formação de Professores.

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de Campinas, durante o século XIX, teve como propósito, obter o maior número possível de

informações, a fim de que uma primeira etapa da historiografia educacional feminina dessa

localidade fosse evidenciada, já que até o momento da realização do meu doutoramento (1992),

havia escassos registros sobre essa temática. Dessa forma, nesse estudo, contemplei uma

instituição de nível secundário, de origem laica e de iniciativa particular, que possuía aspectos

específicos que o diferenciavam de uma grande parte de seus contemporâneos. O método

empregado para a reunião e análise dos dados foi composto por várias ferramentas que

descreveram o fenômeno: cartas, diários, jornais, obras sobre o período, almanaques, material

iconográfico, entre outros ainda pouco utilizados na historiografia da educação brasileira.

Para pesquisar a educação feminina na cidade de Campinas, durante o II Império, foi

necessário fazê-lo através do resgate da trajetória de uma instituição privada. Para tanto, contei

com a contribuição das fontes primárias da Família Florence em São Paulo, através do Arquivo

Cyrillo Hércules Florence, depositado nas mãos da bisneta Leila Evangelina Florence de Moraes.

Isso porque no Brasil, o ensino secundário para o sexo feminino só começou a constituir-se na

segunda metade do século XIX, graças aos esforços da iniciativa particular, e pouco sobrou dos

documentos oficiais novecentistas. (HAIDAR, 1972, p. 231).

Este texto está estruturado em três partes. Na primeira traça um histórico dos fundadores da

instituição, com ênfase na formação educacional da sua gestora e sua inserção, como imigrante

alemã, e de seu esposo francês, no contexto histórico brasileiro. A segunda parte trata do

cotidiano escolar, as disciplinas estudadas, a origem dos docentes e discentes e finalmente a

terceira parte procura estabelecer as relações entre o Colégio Florence e Campinas no

desenvolvimento da cultura do país, "do progresso" positivista, e do caminho para o

republicanismo.

Carolina e Hércules, os Krug e Florence: os fundadores do Colégio

Criados por particulares, a história dos colégios envolve a história de seus fundadores. O

Colégio Florence inaugurou suas atividades em Campinas em O3 de novembro de 1863, por uma

imigrante alemã de nome Carolina Krug Florence e por seu marido Hércules Florence. Os dados

a respeito da vida de Carolina foram coletados por descendentes e registrados no Álbum que a

Prefeitura Municipal de Campinas confeccionou em função da comemoração aos 200 anos de

fundação da cidade. Apresento-os, a fim de preservar as informações.

Carolina Krug (Caroline Mary Catherine) nasceu no mesmo dia da autora desse trabalho:

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21 de março de 1828 no sul da Alemanha, numa cidade denominada CasseI, próxima a Floresta

Negra. Filha de um fabricante de mosaicos artesanais de madeira, João Henrique Krug e

Elizabeth Debus Krug, iniciou seus estudos com a idade de seis anos em uma escola dirigida por

três irmãs. Freqüentou também a Escola Ruppel até os quatorze anos e fez com essa idade a

primeira comunhão. (Florence, 1974) Carolina era, portanto, de origem religiosa Católica.

A Educadora Carolina Krug Florence (1828-1913) Foto Ana Maria Felix Fonte cedida pela Coleção Cyrillo Hércules Florence.

Concluídos os estudos médios,

freqüentou curso superior dirigido por um

Pastor de nome Jatho, dedicando-se

principalmente às disciplinas: História

Universal e Literatura. Nessa época, em

seu interesse pelo estudo, sobressaía a vontade

de dar continuidade ao que aprendera até

então. No entanto, Cassel

não oferecia condições suficientes

para seu desenvolvimento pedagógico.

Assim, seus pais resolveram enviá-la à Suíça, ao Instituto de Madame Niederer, esposa de um

antigo colaborador e amigo de Pestalozzi, já considerado, na época, um grande pedagogo

moderno.

É interessante observar que seu deslocamento para outra região implicava em atitude de

coragem e persistência: a viagem era muito difícil, devido aos meios primitivos de transporte,

mesmo na Alemanha. Chama a atenção também o fato dos pais serem desprendidos em

confiarem à travessia de uma filha, mulher, muito jovem ainda, para tão longe e sozinha.

Todo o trajeto foi feito em diligência e cavalos, exceto uma pequena parte, de Frankfurt

sobre-o-Meno até Manhein, um dos poucos pontos que naquele momento possuía estrada de

ferro. Carolina hospedou-se em várias cidades onde seus pais tinham conhecidos, até que

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finalmente chegou ao Instituto de Madame Niederer, num dos arredores de Genebra, chamado La

Servette.

Neste estabelecimento, Carolina Krug teve a oportunidade de conhecer melhor o método de

Pestalozzi e também vivenciá-lo na prática.

Pela descrição, de uma de suas antigas colegas de internato, percebe-se que havia respeito e

dedicação tanto da diretora do Instituto em relação às alunas, como destas entre si. Em uma carta

enviada por uma amiga que estudou com Carolina naquele estabelecimento é possível verificar o

grau de afetividade e reconhecimento pelo trabalho pedagógico realizado por Madame Niederer:

Carolina: (...) Agradeço toda a bondade e toda a amizade que você manifestou durante minha última estadia junto à Madame Niederer. Aqueles dias que tive a felicidade de passar com ela deram-me um novo impulso, para seguir com coragem a cadeira de educadora. Tenho novamente sido testemunha de sua bondade a todas as suas alunas, do interesse que dedica a cada uma delas, dos cuidados que ela toma para bem dirigir a educação destas

(grifo meu) (Carta de Suzete Kaesseler para Carolina Florence, em francês, Coleção Cyrillo Hercules Florence. Genebra, 9/1/1847).

A preocupação com a educação transcendia os ensinamentos de conteúdos nas disciplinas.

Havia por parte da direção deste estabelecimento o desejo de que as educandas aprendessem a se

comportar na sociedade e a respeitar o outro como companheiro de conhecimentos. Essas

mesmas preocupações fizeram parte do cotidiano do Colégio Florence no Brasil, anos mais tarde.

Infelizmente Madame Niederer, que tinha confiado à Carolina Krug a redação de sua

correspondência particular, cedeu a Madame Broglua et Flaction seu instituto, na primavera de

1847. O instituto mudou-se para uma casa situada perto de um lago, chamado Deux Paquis. Após

a sua retirada desse instituto, Carolina manteve com esta senhora, que se ocupava exclusivamente

do ensino, correspondência por alguns anos. Na troca destas missivas é possível verificar que a

jovem aluna teve êxitos nos estudos, preparando-se para a sua carreira de docente:

Madame Elizabeth Krug (...) fico feliz em poder vos dizer que sua filha, Caroline, fez grandes progressos nos estudos, e principalmente na língua francesa, desenho etc. Nós só podemos lhe dar, para além das qualidades sólidas de seu caráter, a segurança de que está perfeitamente preparada para completar com sucesso a vocação para a qual ela se prepara. (Carta de M. Flaction para Elizabeth Krug, em francês, Coleção Cyrillo Hércules Florence. Genebra, 21/8/ 1847).

Na continuação dessa carta, a educadora comunica à mãe da aluna seu desejo de que

Carolina Krug partisse para Colônia ou Prússia, para lá iniciar sua carreira. Entretanto, a ligação

muito estreita com a família trouxe-a de volta à cidade natal de Cassel, em 1848. Durante algum

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tempo trabalhou como professora em uma casa de família, na propriedade campestre de Holstein.

Deu aula para moças durante um ano e ao fim deste aconselhou aos pais de suas alunas que as

matriculassem em um colégio onde, em companhia de outras colegas, encontrariam mais

estímulo para o estudo. Esse conselho foi aceito e as meninas entraram no colégio em Altona,

cuja diretora, Mlle. Biernatriski achou-as tão adiantadas que indagou sobre a pessoa que as

ensinava. Informada a esse respeito, a diretora ofereceu um lugar à Carolina Krug, que lecionou

nesse Instituto durante três anos.

As observações sobre o que tinha aprendido e o que ensinava era dividido com as antigas

companheiras de internato. Através da correspondência com Berth, por exemplo, podemos

observar que as matérias constantes na formação pedagógica ultrapassavam ao que previam ao

gênero feminino. (verbete gênero) Conhecimentos sobre lógica, geometria, matemáticas eram, na

época, destinados aos homens, em uma época em que as mulheres conquistavam lentamente o

direito de assimilar conhecimentos científicos. Assim, Berth menciona que continuava a tomar,

com grande interesse as lições que Carolina conhecia tão bem, como astronomia com M.

Wartalltmann. Também mencionava as comédias que M. Perret as fazia interpretar. (Carta de

Berth I. para Carolina Krug, em francês, Coleção Cyrillo Hércules Florence. Genebra,

19/3/1848).

Ainda em 1850, Carolina Krug continuava mantendo correspondência com M. Broillat.

Nessa época, sua antiga diretora do Instituto Suíço, agora casada (o sobrenome foi substituído

por Breittonager) lhe escrevia sobre os problemas que os europeus enfrentavam em decorrência

das políticas econômicas, discorria sobre o papel e aconselhava da necessidade do

aprimoramento intelectual para ser uma boa educadora. Também sua antiga mestra utilizava o

elogio como estímulo ao desenvolvimento das potencialidades de sua antiga discípula, no

domínio das línguas, principalmente o francês, muito conceituado na segunda metade do século

XIX:

Cara Carolina (...) estou muito contente minha cara criança, por você se encontrar bem no estabelecimento Biernatriski. A vida é tão difícil para todos nos tempos em que vivemos que é preciso contentar-se com o seu trabalho. Entretanto minha cara pequena não negligencie de sonhar com o futuro e não se descuide dos conhecimentos. Veja: não se é sempre jovem e as forças se esvaem muito rápido na carreira de professor. Eu vos asseguro: você é melhor professora para ensinar nossa língua (o francês) que a maior parte dos nossos compatriotas. Nós temos é que escrever muitos trabalhos e, sobretudo ler bons autores, é assim que se forma o estilo. (Carta de M. Broillat para Carolina Krug, em francês, Coleção Cyrillo Hércules Florence. Genebra, 27 /7 /1850).

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Nessa mesma ocasião, tempos difíceis na Alemanha, os pais de Carolina desejavam

reunir-se ao filho mais velho, Jorge Krug estabelecido como farmacêutico no Brasil, na cidade de

Campinas desde 1846. Nesse tempo, seu irmão já havia adquirido fortuna razoável na América,

participando da vida social e política campineira. Exerceu, por muito tempo, em toda a Província

de São Paulo, o cargo de Vice-Cônsul da Suíça. Era maçon (grau 33), de tendência liberal, e

auxiliou a fundação de vários estabelecimentos de ensino na cidade de Campinas. Entre eles, o

Colégio Culto à Ciência para o sexo masculino, a Escola Alemã para filhos e filhas de

descendentes germânicos e deu bastante suporte para a criação do Colégio Florence, destinado a

educação de mulheres. Assim como sua irmã Carolina, Jorge Krug dedicava-se com afinco às

causas da educação. (A Província de S. Paulo, 3/1875).

Em conseqüência dos fortes laços familiares, Carolina Krug se juntou ao restante da

família e embarcaram para o Brasil em setembro de 1852. Saindo de Hamburgo em um navio à

vela, pois nesse tempo não havia ainda navios a vapor para o Brasil. Levaram dois meses na

travessia.

Aliás, muitos alemães emigram para o Brasil nessa época. A causa dessa emigração se

deve a diversos fatores. Muitos abandonam a cultura germânica em plena mudança para a

industrialização, outros por causa dessa mudança. Boa parte da emigração germânica é composta

de citadinos. Era uma forma de prevenir ou modificar situações econômicas indesejáveis, pois,

com a industrialização, havia o medo da proletarização.

O pai de Carolina, João Henrique Krug, por exemplo, pertencia à classe média. Era artífice,

possuía um estabelecimento que produzia mosaicos de madeira, trabalho muito apreciado na

Alemanha, sendo que muitos assoalhos, em vários castelos, são ainda admirados como

verdadeiro primor de arte. (grifos meus). (FLORENCE, 1974).

Seria, porém, como cita Willens, um erro considerar questões econômicas ou

administrativas como únicos motivos de emigração, pois freqüentemente não eram os mais

pobres que emigravam, e a emigração continuava mesmo quando a situação do país já se havia

tornado favorável, mais favorável às vezes, do que a situação do país de emigração. (WILLENS,

1980, p. 34).

No caso dos Krug, além do desejo de encontrar uma terra propícia à implantação de suas

realizações no campo profissional, havia a vontade de unirem-se ao filho e irmão mais velho, que

certamente lhes contava das oportunidades que surgiam no novo continente, principalmente em

Campinas, onde o desenvolvimento parecia mais acentuado. Tchudi, viajante teuto que esteve

nesse período no Brasil, relata essas mudanças das famílias européias para Campinas, cidade

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ainda em condições precárias de infraestrutura, e acrescentava como uma das causas da vinda dos

Krug, o pouco espaço de convivência entre idéias contrárias ao poder vigente, conforme consta

em seu diário:

Em Campinas, hospedei-me na casa do farmacêutico dr. Georg Krug, pois esta cidade, de grande movimento e indiscútivel importância, uma das maiores da Província, não possuía sequer um hotel. O pai do sr. Krug emigrara da Alemanha, devido à triste situação política do Ducado eleitoral de Hessen-Kassel, onde exercia, na cidade de Kassel, a profissão de marceneiro, que lhe dera grande fama, como artífice hábil e competente. Cometera, entretanto, o grave crime de abrigar idéias demasiado liberais, o que lhe valeu ser forçado a abandonar a pátria, ele e sua família. Veio para o Brasil e fixou residência em Campinas. Seu filho mais velho estabeleceu-se com uma farmácia e o mais jovem exercia, com muita habilidade, a profissão paterna. (TSCHUDI, 1954, p. 58).

A viagem também foi realizada com as dificuldades presentes no século XIX. Chegando

ao Rio de Janeiro, os viajantes deixaram o veleiro, seguindo para Santos em um vapor costeiro

de nacionalidade brasileira. Nesse porto esses teutas foram recebidos pela família Batista,

amiga do filho mais velho Jorge Krug e ficaram quinze dias. Seguiram depois para Campinas,

todos a cavalo, com exceção da mãe de Carolina, já idosa, que fêz a viagem de bangué. Em São

Paulo a família parou, a fim de descansar em casa do sr. Gérard, amigo de Jorge krug. Justo

três meses depois da partida de Hamburgo, tendo a viagem de mar durado nove semanas, aos 18

de Dezembro de 1852 a família Krug chegava a Campinas. Umas léguas antes de chegarem à

cidade, vieram-lhe ao encontro vário cavaleiros: Jorge Krug e seus amigos, o qual privado

durante tantos anos de seus velhos pais e dos seus irmãos, podia agora matar as saudades.

(FLORENCE, 1974).

Além de Carolina, seus pais, vieram também seus irmãos: Francisco Guilherme Henrique

Krug e Anna Krug (posteriomente Anna Kupfer). Francisco Krug, como seu pai, aprendera a arte

da marcenaria e trazia, além da experiência na arte do entalhe na madeira, conhecimentos

políticos, econômicos e sociais que o tornaram figura de destaque na sociedade campineira.

Sua irmã, Anna Krug, também era professora. Não se sabe ao certo seu grau de

especialização. Entretanto, em suas anotações do dia a dia em Campinas, relata que teve aulas

com uma preceptora alemã na cidade de Limeira e que nessa mesma época ensinava às crianças.

Nas suas narrativas é possível observar um pouco da gênese do cotidiano escolar brasileiro, em

1853, permeado pela pedagogia empregada, bem como a incorporação e a interdisciplinaridade

das matérias enciclopedistas:

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Frau Gê era muito boa senhora, tinha, a fim de aumentar a renda de seu marido fundado um internato, uma pensão onde parte das filhas do país como também estrangeiros recebiam instrução. Éramos internacionais! Durante o dia ensinava o ABC aos pequenos, porém a noite era a minha vez. ( o grifo é meu). E ainda hoje lembro com alegria nas belas horas nas quais Frau Gê ensinava com prazer. Muitas vezes durava até meia noite, mas não nos causava cansaço. Línguas estrangeiras me davam muito prazer. Frau Gê sabia ligar a isso História e Geografia e hoje estou muito agradecida por isso. Aqui quero apenas lembrar o quanto considero importante o estudo de línguas estrangeiras. Não é apenas o traduzir das palavras, não. É porque com isso você adquire facilmente grande parte cultural dos valores de respectivo povo. (Diário de Anna KUPFER.Coleção Cirillo Hércules Florence).

Mais tarde Anna conheceu o Dr. Otto Kupfer, amigo de seu irmão, com quem se casou e

viveu parte da sua vida na cidade de Campinas e na Alemanha.

De acordo com Willens, o imigrante citadino representa classes sociais bem diversas e

cultiva, na maioria das vezes, o gosto pela cultura, pela erudição. Não apenas proletários, mas

também pequenos e médios burgueses que fugiram à proletarização iminente, representantes da

burguesia intelectualizada e liberal que se envolveram em lutas políticas; enfim, quase todas as

classes sociais, ainda que em proporções desiguais, forneceram seus contigentes de emigrantes,

contribuindo assim para a heterogeneidade cultural daqueles que tencionaram radicar-se no

Brasil. (WILLENS, 1980, p. 31).

Outro fato que os distinguia dos nacionais, além da questão erudita ou a qualificação

profissional diz respeito à forma como esses emigrantes encaravam a escravidão no Brasil.

Quando se estabeleceram em Campinas, no final de 1852, todo o trabalho manual era realizado

por escravos, fato que foi narrado no diário da irmã de Carolina, nos seguintes termos:

Os criados brancos não existiam naquela época no Brasil. As famílias (dos colonos) tinham necessidades de suas filhas em suas casas. Embora a contra-gosto dos meus

(o grifo é meu) teve meu irmão de comprar um casal de escravos em Itú e sem poder conhecer certas circunstâncias mais de perto. Estas duas pobres criaturas chegaram: o marido José, cozinheiro, negro de boa índole como todos os outros escravos... (Diário de Anna KUPFER, Coleção Cirillo Hércules Florence).

Estabelecidos em Campinas e procurando amoldar-se à cultura brasileira sem deixar de

manter a Germânica, a família Krug foi adaptando-se paulatinamente. Em contato social com os

amigos do irmão Jorge, dois anos mais tarde, em 1854, Carolina Krug casou-se com Hércules

Florence.

Francês, nascido em Nice em 1804, Hércules era um homem inteligente, culto e afável.

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Foi o primeiro estrangeiro a fixar residência em Campinas. (DUARTE, p. 140). Integrante do

grupo de europeus que estiveram no Brasil, em busca de novos horizontes, viajou e desenhou

pelas paisagens brasileiras. Tinha a alma voltada para o futuro. Participante da Expedição do

Barão de Langsdorf, do Tietê ao Amazonas, entre 1825 a 1829, escreveu um livro sobre a

viagem, além de farta documentação iconográfica, reproduzindo aspectos da selva brasileira 43

Foi também o criador da Zoofonia "estudo sobre o canto dos animais", a Poligrafia, criação do

papel inimitável (para cédulas monetárias e notas de bancos - inventos relativos à impressão).

43 Expedição sob os auspícios do Czar AIexandre I, o naturalista e Cônsul Geral da Rússia, Barão de Langsdorf organizou uma expedição que deveria ir por terra pêlo antigo caminho dos bandeirantes, hoje via Anhanguera. Alterada a rota, prefiriu o Barão de Langsdorf a via fluvial, a partir de Porto Feliz, no ano de 1825. Tinha a expedição, além de Hércules Florence, o astrônomo Rubtsov, o botânico Riedel e o desenhista Taunay. A expedição malogrou com a morte no Rio Guaporé, do primeiro desenhista Adriano Taunay, por afogamento, mas principalmente em conseqüência da insanidade mental de seu chefe, Hércules Florence deixou o manuscrito da longa viagem que terminou em Belém do Pará, sob o título "Esboço da viagem feita pelo sr. Langsdorf no interior do Brasil, desde setembro de 1825 até março de 1829", escrito em francês e traduzido duas vezes, a primeira pelo Visconde Taunay, e a segunda pelo bisneto de Hércules, Francisco Álvares Machado e Vasconcelos Florence. Ambas as traduções têm o título de Viagem fluvial da Tietê ao Amazonas.

Em junho de 1992, foi editado pelo professor da Sorbonne, Mario Carelli e pela editora Gallimard o livro A La Decoubérte De La Amazonie, Hércules reproduziu aspectos da selva brasileira, além de farta documentação iconográfica.

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Hércules Florence em idade avançada. (1804-1879) Fotografia cedida por Leila Evangelina Florence de Moraes. Fonte cedida pela Coleção

Cyrillo Hércules Florence.

No entanto, o principal invento de Hércules Florence foi a fotografia.44 Ainda hoje é

desconhecido por muitos o fato de Hércules Florence ser um dos inventores da Fotografia. Porém

consta que fez em 1832, dois, anos após estar residindo em Campinas, experiências pioneiras

com a câmara escura e a fixação de imagens, cuja glória coube, em 1839 a Daguerre, seu

compatriota. Isso porque Hércules Florence não deu divulgação em tempo oportuno dos seus

resultados obtidos seis anos antes. Campinas, naquela época, infelizmente ainda não oferecia

meios fáceis de comunicação. E assim, tendo conhecimento dos resultados das experiências de

44 Em seu livro, KOSSOY, (1977) registra os resultados positivos da repetição que promoveu, das experiências fotográficas de Hércules Florence nos EUA, nos laboratórios do Rochester Institute ofTechnology em 1976. Nos manuscritos em poder da família Florence em Campinas, Hércules anotaria a gênese de seu invento: Neste ano de 1832, no dia 15 de agosto, estando a passear na minha varanda, vem-me a idéia de que talvez se pudesse fIxar as imagens na câmara escura, por meio de um corpo que mude de cor pela ação da luz. Esta idéia é minha porque o menor indício nunca tocou anteso o meu espírito. Vou ter com o Sr. Joaquim Correia de Melo, boticário de meu sogro, homem instruído, que me diz existir o nitrato de prata.

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Daguerre, encerrou suas atividades nesse campo, mas a palavra fotografia lhe pertence. Obteve-a

com a colaboração de Joaquim Correa de Mello, o Joaquinzinho da Botica como era conhecido.

Ao aconselhá-lo a formar a palavra, utilizou-se de elementos do grego e a usar nitrato de prata

em suas experiências. (Jornal O Correio Popular, 9/11/1978).

Hércules casou-se em primeiras núpcias com Maria Angélica Machado Florence em 04

de janeiro de 1830, logo após seu retorno da expedição Langsdorf. A convite do sogro, Francisco

Alvares Machado Vasconcellos, homem público de influência em Campinas, estabeleceu-se

nessa cidade, na Rua Barão de Jaguará, no Largo do Carmo.

Com sua primeira esposa viveu vinte anos e teve treze filhos, o que era muito comum na

época. As mulheres tinham o papel de povoarem o país, gerando muitos filhos.45 Teve

Infelizmente alguns faleceram, sendo que o que ocupou papel de maior destaque, tanto na

política como na educação, foi Amador Bueno Machado Florence. Professor e homem público

participou da fundação do Colégio destinado à educação de meninos, o "Culto à Ciência" e foi

presidente da Câmara Municipal de Campinas durante o período do Império. (SILVEIRA, 1968,

p. 143).

Hércules Florence, para além de suas qualidades de desenhista, escritor, inventor, também

era comerciante e fazendeiro em Campinas. Proprietário da Fazenda Soledade e posteriormente

de outra de bom porte, foi, juntamente com outros fazendeiros de café, um dos primeiros a

introduzir e ser bem sucedido com a vinda para Campinas dos primeiros colonos, através do

Sistema de Parceria. Não bastasse sua atuação no campo econômico e social, participou também

das questões políticas através da sua tipografia ou autografia, a primeira instalada em Campinas.

(MARIANO, p. 21). Com ela, coube-lhe imprimir e dirigir o órgão da Revolução de 1842,

encabeçada em território paulista, pelo brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, marido da Marquesa

de Santos.

... folha de duração efêmera, quatro ou cinco números se tanto, preparada e distribuída em Sorocaba e imediações, em meio aos curtos, mas febricitantes episódios do levante, que Caxias abafou em São Paulo e Minas. O jornal da revolução denominava-se O Paulista. (SILVEIRA, 1968, p. 143).

Dezesseis anos depois, Hércules Florence vendeu a tipografia aos irmãos João e Francisco

Teodoro de Siqueira e Silva, e nela se imprimiu o primeiro jornal da cidade, a Aurora

Campineira, no ano de 1858.

45 Em meu mestrado tratei longamente da questão do papel a ser desempenhado pelas mulheres no Brasil Colônia: a reprodução dos filhos dos colonizadores. Ver: Ribeiro, A. A educação da mulher no Brasil-Colônia. S.Paulo:Arte & Ciência, 1997.

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Em 1854, com cinqüenta anos de idade, viúvo há quatro anos e morando nos arredores da

cidade de Campinas com seus filhos, alguns ainda pequenos, Hércules Florence sentiu-se atraído

pela possibilidade de casar-se novamente com uma jovem de vinte e quatro anos, culta e disposta

a criar seus filhos dentro de uma educação fundamentada nas modernas teorias pedagógicas

européias. Era Carolina Krug, que também oferecia certa ascensão social à sua família, como ele

mesmo relataria a sua mãe, em carta de apresentação de sua nova esposa. Nessa missiva Hércules

evidencia o encantamento que teve com as qualidades da professora alemã:

Minha mãe, eu vos escrevi uma vez que eu me casaria novamente, mas que não deveria ser logo. No dia quatro de janeiro do ano corrente eu me casei com MIle. Caroline Krug, irmã de meu amigo Jorge Krug, farmacêutico estabelecido há oito anos em Campinas. Ela chegou de CasseI, com seu pai sua mãe e seus irmãos e irmã, e eu fui absorvido por suas qualidades, seu talento e suas maneiras distintas. Tendo feito sua educação durante três anos em um Instituto de jovens moças em Genebra, ela adquiriu um perfeito conhecimento de Francês. Ela sabe a história, a geografia, os elementos de matemática, a pintura e a música. Todas as ocupações de seu sexo. Ela saiu do instituto e foi ser professora em Altona, na Suíça-Holstein. Seu objetivo era de se ocupar do ensino e soube aproveitar disso em alto grau. (o grifo é meu). (Carta de Hércules Florence para sua mãe residente em Nice, em francês. Campinas, 10/6/1854).

Com relação à situação dos seus filhos perante a sociedade campineira, Hércules reconhece

que o casamento com Carolina Krug também favoreceu a ascensão que esses tiveram, após o

enlace matrimonial:

Meus filhos são tão bons para mim e minha esposa que minha escolha parece ter sido feliz. Eles têm verdadeira afeição por sua segunda mãe. A condição dela na sociedade os fez ganhar, pois antes eles viviam no abandono, quase sem relacionamento social e hoje a minha casa é freqüentada por toda a boa gente da sociedade da cidade. (Carta de Hércules Florence para sua mãe residente em Nice. Em francês. Campinas, 10/6/1854.)

O casamento de um homem maduro, de mentalidade e temperamento incomuns, com uma

mulher dotada de muitos qualificativos resultou em uma relação de igualdade entre os parceiros

amorosos, ao contrário do que se via nos laços matrimoniais estabelecidos na família patriarcal

brasileira. Dentro do patriarcalismo, como é sabido, o homem é o senhor de todos os bens. A

fazenda e os escravos lhe pertencem, assim como a esposa e os filhos. Dessa forma, a mulher lhe

deve submissão e obrigações. As relações de gênero são marcadamente desiguais.

Na família alemã, entretanto, sobretudo a urbana, a posição da mulher é elevada. Em outras

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palavras, o tratamento dos dois sexos é, em todos os sentidos, mais homogêneo na Alemanha do

que no Brasil. (WILLENS, 1980, p. 306).

Assim, a união de Hércules Florence com Carolina Krug resultou muito mais numa ligação

de respeito e companheirismo, do que um gênero subjugando o outro, coisa que comumente

ocorria no Império Brasileiro.

Não havia receio por parte do esposo pela emancipação de sua mulher, estimulando a

propagação de seus conhecimentos científicos, uma vez que o próprio Hércules Florence

impulsionava as novas ciências, através de seus inventos.

Na carta que Carolina Krug Florence envia a sua sogra, mãe de Hércules Florence,

solicitando as bênçãos pelas núpcias, o companheirismo evidencia-se, na forma como ela

percebia sua relação com o marido e enteados:

Mãe, Peço a permissão de vos nomear por esse nome tão doce do qual eu conheço melhor ainda o valor depois do casamento com meu bem amado Florence. Aceitando sua mão eu não somente ganhei o melhor e o mais desinteressado dos amigos

(o grifo é meu), mas também eu encontrei nos seus filhos uma afeição que acolhe de muito minha alegria. (Carta de Carolina Florence para a Mãe de Hércules Florence, em Nice. Campinas, 12/6/1854).

Após o casamento, Hércules Florence continuou a viver na fazenda Soledade com sua nova

esposa e os filhos do primeiro casamento. Um ano depois, sentindo necessidade de rever a mãe,

parte para a Europa deixando Carolina com a responsabilidade da propriedade e a guarda das

crianças. Uma atitude, que acredito só ser possível, devido ao fato de haver um perfeito

entrosamento entre o casal. (Almanaque..., 1914, p. 51).

Viveram nesse local durante oito anos e tiveram sete filhos: cinco homens e duas mulheres.

Nesse sentido, é interessante observar que além do cuidado com os filhos do primeiro casamento

de Hércules, Carolina Florence gerou seus próprios filhos, vivendo assim intensamente o papel

de mãe de uma imensa prole.

Em 1863, a família resolveu mudar-se para a cidade. Essa mudança estava relacionada, de

certa forma, com fatores sociais e econômicos. Sociais, porque com o crescimento dos filhos,

Carolina Florence sentia que a instrução lhes era indispensável; econômica, porque o cultivo do

café exigia de Hércules Florence, assim como de outros fazendeiros, o deslocamento para a

cidade em função das diversas atividades urbanas exigidas por essa cultura, desde as transações

da comercialização do produto, até o trato com bancos, transporte, etc.

Campinas, nessa época, estava começando a modificar-se, a progredir. Como já foi dito, a

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região sofreu transformações profundas em decorrência da cultura do café, que substituiu a cana

de açúcar na primeira metade do século XIX, e em pouco tempo tornou-se a base dos

rendimentos da população agrária paulista. De acordo com Wilson Cano, A produção paulista de

café até o início da década de 1870, representava apenas 16% do total brasileiro, a partir desse

momento, ingressava num período de vigorosa expansão, perfazendo, em 1875, cerca de um

quarto da produção nacional saltando, dez anos depois, para 40%. (Cf.Cano:1977, p. 31).

Aliás, segundo Caio Prado Jr. não era somente Campinas que teria seu progresso marcado.

A segunda metade do século XIX vai se constituir num dos momentos de maiores

transformações da economia brasileira e o decênio 1870-1880 será marcado por sensível

prosperidade nacional. (PRADO Jr., 1949, p. 178). É de Campinas, portanto, que se alastrará o

café pelo Oeste Paulista. (CANO, 1977, p. 31).

Como sede desse avanço, a cidade tem necessidade de implantar benfeitorias. Viotti afirma,

nesse sentido, que:

À medida que os fazendeiros mudaram-se para os grandes centros, cresceu a tendência em promover melhoramentos urbanos. Aumentou o interesse pelas diversões públicas, a construção de hotéis, jardins e passeios públicos, teatros e cafés. Melhorou o sistema de calçamento, iluminação e abastecimento de água. Aperfeiçoaram-se os transportes urbanos. O comércio ganhou novas dimensões, bem como o artesanato e a manufatura. O processo foi favorecido pelo interesse que o capital estrangeiro teria nesses tipos de empreendimentos urbanizadores. (COSTA, 1977, p. 197).

Muitos se aventuraram a fundar colégios para os filhos dessa burguesia emergente.

Haidar, no histórico que realizou das escolas secundárias criadas na Corte do Rio de

Janeiro e nas capitais das províncias, retrata as dificuldades dos colégios particulares para se

manterem em funcionamento. Cita o Colégio Pestana criado em 1876 em São Paulo por Rangel

Pestana e sua esposa Damiana. Era um colégio destinado à educação feminina. Rangel era um

ardoroso defensor da Educação. Seus escritos em jornais revelam essa qualidade. No entanto, o

próprio Rangel Pestana, culto e sábio, sucumbiu em seu intento e a instituição foi vendida em

1878. As causas do malogro do empreendimento, de acordo com alguns críticos da época

apontavam como principal fator do insucesso o modernismo exagerado do jornalista que tivera a

pretensão de educar a mulher na liberdade. (HAIDAR, 1972, p. 241).

O Colégio Florence, ao contrário de muitos contemporâneos, manteve-se como o

estabelecimento de ensino de maior durabilidade dos tempos imperiais. Essa estabilidade e

desenvolvimento decorreram possivelmente, de diversos fatores: a mentalidade e a cultura de

seus fundadores, o fato da diretora ter adquirido uma grande experiência pedagógica no país de

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origem e, também de ter encontrado um marido companheiro e um irmão empreendedor, em uma

cidade com o terreno propício para o desenvolvimento da educação.

O Colégio Florence e a Educação para Mulheres no século: desafios, resistências e

conquistas

A campanha em favor do aprimoramento da instrução feminina no Brasil não tinha como

objetivo, elevar à mulher a culminância científica e literária. Também não se pretendia prepará-

las para funções profissionais, ainda consideradas incompatíveis com a sua capacidade

intelectuais e desnecessárias à missão que lhe fora reservada pela natureza: a maternidade. Entre

os defensores do aprimoramento da instrução feminina destacavam-se aqueles que, animados por

idéias evolucionistas apontavam a ignorância da mulher como um importante fator de

retardamento do progresso da humanidade. Entre eles, Tito Livio de Castro, com o livro A

mulher e a sociogenia e Tobias Barreto. (HAIDAR, 1972, p. 246). A mulher deveria estudar,

porém não muito. Nessa época a elas não eram permitida a entrada nas Academias.

Desobrigados, portanto, de preparar para os estudos superiores em geral, ainda

considerados impróprios à mulher, o ensino secundário montado no fim do Império, em alguns

poucos estabelecimentos particulares, adquiriu feição própria. No caso do Colégio Florence,

liberto da tradição secular que vinha consagrando o predomínio das humanidades clássicas nos

estudos preparatórios, caracterizou-se pela importância atribuída às línguas modernas e às

ciências, especialmente consideradas em suas aplicações práticas.

Tomaz Tadeu da Silva, em seu livro O que produz e o que reproduz em educação afirma

que a educação produz e reproduz os elementos que contribuem para produzir o novo e os

elementos que contribuem para manter o existente. Ao dizer que a escola possui também outras

características mais prosaicas e cotidianas, além das macro-características estruturais, cita

elementos como a arquitetura e a configuração da sala de aula como tal a concebem, a divisão em

séries, a administração do tempo através de períodos, a divisão e a classificação do conhecimento

pelas diferentes disciplinas e matérias como contribuições para se entender a educação. (SILVA,

1992, p. 64). As cartas e jornais trouxeram à tona informações sobre a atuação das alunas na sala

de aula, no pátio de recreações, nas apresentações em festas públicas, na assimilação dos

conteúdos ministrados por seus professores, dificuldades, doenças, etc. Retrataram o meio em

que viviam e o cotidiano escolar do século XIX.

Através de cursos completos e regulares compostos de estudos de várias línguas,

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disciplinas como geometria, ciências naturais e trabalhos artesanais é possível verificar o grau de

aperfeiçoamento, destreza e aplicação adquiridos na instituição. A natureza do padrão de trabalho

que as alunas realizavam possibilitava-lhe obter informações imediatas sobre os seus resultados

porque, freqüentemente, apresentavam-se ao público.

O papel da Imprensa deve ser ressaltado como elemento fundamental e mediador às

atividades educacionais particulares, considerando o fato de que o governo não se interessava

pela expansão do ensino secundário público.

Entre os docentes que lecionaram no Colégio Florence, destaco os mais expressivos,

considerando a dificuldade em possuir uma relação completa dos mesmos. Dos docentes

masculinos, grande parte iniciando no Colégio Florence a sua carreira como professores anti-

imperiais, posteriormente, contribuíram para a estruturação e a solidez do ensino público no

período republicano. Criaram os primeiros livros didáticos brasileiros, muitos utilizados no

ensino público, como os livros de Julio Ribeiro (professor de Letras), João Kopke (professor das

ciências históricas e geográficas), Miguel Alves Feitosa (Língua Portuguesa), Rangel

Pestana(Língua Portuguesa e retórica) (sic), Emílio Giorgetti, Emílio Henking, (professores de

música) Campos da Paz, etc. Entre eles, merece destaque o próprio Hércules Florence, como

professor de desenho. Os jornais anunciavam ao final do ano os progressos das meninas que

estudavam com ele: "Mereceram também particular mensão(sic) os desenhos executados por

algumas discípulas, aula dirigida pelo sr.Hércules Florence."(O Diário de Campinas,

17/12/1875)

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Diretora do Colégio Florence, Carolina (ao centro) e o corpo docente e discente de Campinas. Acima, o professor de música Emílio Giorgetti. Do lado esquerdo, olhando-a a sua filha Isabel e do lado direito,

acima, sua filha Augusta. Foto cedida por Leila Evangelina Florence de Moraes

Fonte: Coleção Cyrillo Hércules Florence

Muitas também foram às professoras do Colégio Florence. Destaque para as preceptoras

alemãs, contratadas pessoalmente por Carolina e que desenvolveram familiaridades e habilidades

das alunas com as operetas européias, trabalhos manuais e o gosto pelo estudo de línguas

(italiano, inglês, francês, alemão). Entre elas, frau Emília Krafth (a primeira que veio da

Alemanha) frau Catarina Huffenbecher, frau Sophia Zoega e a irmã de Carolina Anna Kupfer. Os

filhos de Hércules com Maria Angélica e Carolina também foram docentes na

instituição:Amador Bueno Machado Florence (português, francês e desenho), Henrique Florence

(matemática) Augusta e Isabel Florence (música, peças teatrais, etc) Paulo, o músico e

Guilherme, o engenheiro (Gêmeos) Jorge (farmacêutico) e Ataliba (oftalmologista)

Alunas egressas do estabelecimento também foram professoras atuantes no Colégio

Florence: Armelina Lamaneres, Leonor Gomes, Ruth Fonseca, entre outras.

Quanto à origem das alunas do Colégio Florence, procurei pistas que mostrassem a família,

a profissão dos pais e as inúmeras dificuldades que a instituição enfrentava com pais, alunas,

doenças entre outros. É certo que era um estabelecimento destinado às camadas mais favorecidas

da população campineira, já que as anuidades eram muito mais caras do que em outras

instituições, no entanto as despesas com a infraestrutura, alimentação, livros etc, retiravam boa

parte do lucro arrecadado. Hércules Florence demonstrava muito bem isso quando escrevia os

sufocos financeiros em que se metia, ao seu cunhado Otto Kupfer, ao enviar os filhos para

estudar no exterior e ao contar os grãos da sua lavoura de café para o pagamento das despesas

extras:

Caro Otto, Quanto a mim, eu vou cada seis a oito dias ao sítio para fazer o benefício do café. Eu já enviei duas mil e oitocentas arrobas a Santos e me restam duas mil arrobas que totalizam setecentas arrobas a mais que aquilo que eu tirava. Eu devia onze contos e ainda devo seis, que espero pagar com o café. Eu não tinha jamais contraído essa dívida se eu não tivesse enviado Arnaldo e Paulo a Europa contra a minha vontade, porque isso estava acima de minhas forças. (Carta de Hércules Florence ao seu cunhado Otto Kupfer, na Alemanha. Campinas, 25/5/1871).

Entre as alunas que mais se destacou, Maria Monteiro corrobora a credibilidade da

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instituição, quando na Itália, o conservatório de música reconhece seu adiantamento no

treinamento da voz. No entanto, muitas se tornaram professoras ou diretoras de escola.

Entre os pais e parentes de algumas alunas, alguns foram figuras ilustres na história de

Campinas e do século XIX. Entre eles Francisco Glicério, Coronel Quirino dos Santos, Tomás

Gomide, Moraes Salles, Gustavo Schaumann, Ferreira Penteado, José Egydio de Souza Aranha,

Francisco de Queiroz Telles, Antonio Pinheiro de Ulhoa Cintra, Barão de Ataliba Nogueira, entre

outros.

As atividades culturais desenvolvidas pelas discípulas na sociedade campineira, através de

soirées, clubes literários tiveram sua origem nas festividades promovidas pelo Colégio Florence,

que as preparava para viver na esfera pública. Carolina, Hércules e suas filhas freqüentaram, por

exemplo, o Club Semanal de Cultura Artística, existente até hoje na cidade. Bilhetes de teatro

encontrados na relação das despesas das alunas indicavam a freqüência com que freqüentavam

essas atividades culturais, o que as diferia das alunas que freqüentavam instituições religiosas,

como o Colégio de Itu, das Irmãs de Chamberry.

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Exemplo de nota fiscal contendo material utilizado pelas alunas no Colégio Florence. Fonte: Coleção Cyrillo Hércules Florence.

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O Brasil transformava-se e com ele a sociedade da época. As festas da corte passaram a

fazer parte da vida das mulheres das famílias abastadas, e fez com que aumentasse a necessidade

da educação para as mulheres de elite. Nas outras províncias, a produção do que ocorria na Corte

levava os fazendeiros ricos a imitarem, reproduzirem as novidades, desde a moda, danças,

músicas, edificações suntuosas etc.

Campinas e o Colégio Florence na vanguarda cultural

Na capital da província de São Paulo, no entanto, a vida social ainda era muito pacata,

mesmo depois da segunda metade do século XIX. Alfredo d'E. Taunay, nas cartas à família, daria

notícias da vida social paulistana em 1865, dizendo que não lhe agradou a capital da província e

o retraimento característico de sua mulheres. Eram tímidas por demais. No mesmo se dava com

as edificações: As igrejas eram ainda esteticamente pobres, os edifícios pequenos e acanhados; as

construções de taipa; embora limpas, as ruas mal calçadas e pouco movimentadas onde quase não

se via uma mulher. Para Taunay, as paulistanas viviam ainda muito reclusas.

No teatro, a freqüência era quase inteira de homens e poucas famílias nos camarotes. As

festas ou homenagens também eram diminutas. Taunay era enfático: a cidade não o havia

agradado. (..) Das damas paulistas pouco poderei dizer por enquanto, pois muito pouco as tenho

avistado. São as famílias aqui muito retraídas, como bem sabemos; pouco saem a passeio.

(PINHO, 1970, p. 102).

Já na cidade de Campinas os acontecimentos sociais ocorriam em franca ebulição. A

sociedade, a seu ver, tinha um ritmo cultural mais desenvolvido. Taunay diria que: Esse

retraimento da gente da capital fazia contraste com a expansão e a cortesia da sociedade de

Campinas onde tudo exigia elogio do missivista. Na cidade, que já tinha seus dez mil habitantes,

próspera e rica, em pleno desenvolvimento, com notável movimento comercial, alguns sobrados

excelentes, ostentavam aparência luxuosa. (PINHO, 1970, p. 103).

Diria ainda que em Campinas as moças eram-lhe mais amáveis, conversavam

animadamente, e que já não sabia a quantos saraus, bailes, jantares e festas tinha ido. Isso

demonstrava o quanto à educação e a cultura contribuía para que cidade de Campinas possuísse

mulheres da elite locais desinibidas e desenvoltas. Era fundamental as mulheres freqüentar

colégios, como o Florence, de cunho laico, que possuía professores do gênero masculino

convivendo com alunas abertas às novas idéias e costumes. Isso lhes possibilitava conviver com

desenvoltura na sociedade campineira. Seus conhecimentos, no entanto, não ficaram apenas

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naquilo que lhes era solicitado. Avançavam quando davam utilidade a essa educação, quando

aprendiam muito mais do que a vida social lhes exigia. Nesse sentido, reproduziam o que a

sociedade da época esperava, mas também produziam uma nova forma de convivência, pautada

nos ensinamentos assimilados no estabelecimento.

Palavras finais

Infelizmente o Colégio, depois de vinte e cinco anos de funcionamento fechou suas portas

em Campinas e transferiu-se para a cidade de Jundiaí, em decorrência da febre amarela. Aliás, a

febre voltou nos anos posteriores, em vários verões, ceifando a vida de muitos campineiros e

estrangeiros, reduzindo suas potencialidades de uma cidade com características de capital de

província. Mesmo assim nos anos em que o Colégio Florence permaneceu na cidade de Jundiaí, o

acompanhamento da família, mesmo com a diretora tendo se afastado, foi contínuo.

É preciso não se esquecer que na Corte do Rio de Janeiro, anteriormente à instalação da

Escola Normal, em 1880, os poderes públicos só ofereceram às crianças e adolescentes do sexo

feminino a instrução primária. Nas províncias, as escolas normais que se criaram a partir da

reforma constitucional descentralizadora, em geral, franquearam suas portas à população escolar

feminina. A instrução oferecida por tais estabelecimentos, cujo número só principiou a ampliar-

se a partir da década de 70, via de regra, entretanto, não chegou a ultrapassar o nível primário

superior. (HAIDAR, 1972, p. 238).

Em relação ao ensino secundário de um modo geral, as mudanças ocorreram somente a

partir do ato adicional de 1834. Até então, era fragmentado em aulas avulsas, à moda das aulas

régias. O aparecimento de liceus provinciais a partir de 1835, e a criação do Colégio Pedro II na

Côrte, em 1837, representaram, no campo do ensino público, os primeiros esforços no sentido de

imprimir alguma organicidade a esse ramo do ensino. Em 1854 tentou-se, através da implantação

da Reforma Couto Ferraz ampliar a função dos estudos secundários colocando-o na base das

especializações técnicas. Animado pelo surto industrial e a extinção do tráfico negreiro,

pretendeu articular o curso de estudos do Colégio Pedro II, não apenas com os estudos

superiores, mas com cursos comerciais e industriais oferecidos pelo Instituto Comercial e pela

Academia de Belas Artes. Visando tal objetivo, o Ministro do Império do Gabinete Paraná, de

acordo com Haidar, dividiu o curso do Colégio Pedro II em estudos de 1º e 2º classe, confiando

aos primeiros à missão de fornecer a cultura básica para as especializações técnicas e atribuindo

aos segundos, montados sobre os anteriores, a tarefa de preparar para o ingresso nas Academias.

A medida, inspirada nas mesmas intenções que haviam levado à criação das Realschulen

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prussianas, não encontrou, entretanto, em nosso país, o grau de desenvolvimento comercial e

industrial que condicionara o êxito extraordinário do empreendimento nos estados alemães.

(idem, p. 261).

As condições sociais e econômicas que haviam conduzido ao malogro a inovação tentada

por Couto Ferraz em meados do século não se haviam alterado significativamente ao fim do

Império. Os estudos secundários continuavam a ter por missão a preparação para os cursos

superiores. (idem, p. 261). Assim, a Reforma Leôncio de Carvalho, em 1878, consagrou os

estudos fragmentários definitivamente ao manter as matrículas avulsas e ao introduzir a

freqüência livre aos exames vagos no Externato d. Pedro II. (idem, p. 260).

O ensino secundário público, dessa forma, teve durante o período do Império, o caráter de

propedêutico, fragmentário e destinado ao sexo masculino. Quanto ao ensino secundário

masculino privado, também este, se tornou preparador para as Academias: Os estabelecimentos

particulares, cujo renome era em geral função do êxito de seus alunos em tais exames, com

pouquíssimas e honrosas exceções que confirmam a regra, limitaram o currículo dos estudos

secundários às disciplinas preparatórias e consagraram os estudos avulsos. (idem, p. 16).

Desobrigados de preparar o sexo feminino para o ensino superior, o ensino secundário

fornecido pelos estabelecimentos particulares puderam dar às mulheres um ensino fundamentado

no enciclopedismo, libertando-se dos vícios decorrentes dos exames parcelados e preparatórios.

O Colégio Florence obteve influências múltiplas das pedagogias propagadas no período. Além de

Pestalozzi, Spencer, entre outros que viam a educação caminhando para a vida prática, as

realschulen alemãs e os liceus secundários franceses que tinham a cultura e o ensino

fundamentado no enciclopedismo (SILVA, 1969, p. 10 1) também influenciaram a educação

ministrada no Colégio Florence.

Hércules e Carolina Florence, oriundos da classe média, fundaram uma instituição de

ensino através de seus esforços. Em cartas percebe-se que ambos tinham dificuldades para pagar

os estudos dos filhos e manter a instituição com a qualidade que exigiam. Tinham um padrão de

vida superior porque eram originários de classe média germânica e francesa, que instalada em

Campinas, montaram negócios. Porém, trabalharam para manter suas rendas, ao que parece, sem

espoliar seus subalternos. É preciso não se esquecer o sucesso que teve a propriedade de Hércules

Florence no Sistema de Parceria.

Carolina Florence sabia que os pais, assim como a sociedade imperial, desejavam que suas

filhas adquirissem apenas uma educação que fosse suficiente para o convívio social, no entanto,

seu estabelecimento ultrapassou essa educação ornamental desejada, quando se preocupava em

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absorver os métodos pedagógicos que surgiam na Europa, além de permitir que o corpo docente

da instituição elaborasse livremente seus programas de ensino, diferentemente dos colégios

religiosos ou de associações que controlavam seus docentes.

Dessa forma, o Colégio Florence reproduzia o ideal da educação feminina que a sociedade

da época solicitava, mas avançava quando acrescentava novos conhecimentos que tornavam suas

educandas mulheres que assumiram, posteriormente, atividades profissionais como professoras,

fundadoras de escolas, instituições de caridade ou simplesmente filântropas.

Carolina Florence conseguiu criar um estabelecimento educacional em um período em

que a educação feminina ainda se encontrava em gestação, envolta em concepções que achavam

desnecessário um ensino mais aprimorado para as mulheres. Conseguiu também mantê-Io

funcionando por vinte e cinco anos na cidade de Campinas, com credibilidade e confiança dos

pais, o que era muito difícil para o período.

Finalmente, concluo acreditando que seja possível que futuras investigações acrescentem

às reflexões aqui registradas, muitos aspectos que venham a preencher a lacuna que a área da

História da Educação apresenta. De 1992 a 2006, muitas pesquisas surgiram, principalmente

através do grupo de pesquisa de História da Educação do Histebr e do Centro de Memória da

Unicamp relativos a outros colégios femininos existentes no período e que complementam o

quadro da educação feminina na cidade de Campinas durante o Império Brasileiro. O interessante

seria a reunião desses dados em uma coletânea, de forma a se constituírem como fontes de

compreensão e resgate da memória dos processos educativos femininos do Brasil novecentista.

Bibliografia

CANO, W. Raízes da concentração industrial em S. Paulo. São Paulo: Difel, 1977.

CARELLI, M. A Ia decoubérte de Ia amazonie. França: Gallimard, 1992.

COSTA, E. V. da. Da monarquia à república: momentos decisivos. São Paulo: Grijalbo, 1977.

DUARTE. Campinas de outrora. Campinas:Typographia Andrade de Mello, 1905.

FLORENCE, I. Carolina Florence (Biografia) .Albúm de Comemoração do Bi-Centenário da

Cidade de Campinas. Campinas, 1974.

HAIDAR, M. de L. M. O ensino secundário no Império Brasileiro. São Paulo: Grijalbo/USP,

1972.

KOSSOY, B. Hércules Florence - 1833. A descoberta isolada da fotografia no Brasil. São Paulo:

Faculdade de Comunicação Social Anhembi, 1977.

KUPFER, A. K. Diário. São Paulo, s.d. (Documentação em poder da Família Florence.)

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67

MARIANO, J. Campinas de ontem e ante-ontem. Campinas: Maranata, 1970.

PINHO, W do. Salões e damas do Segundo Reinado. São Paulo: Martins, 1970.

RIBEIRO, A.I.M. A Educação da Mulher no Brasil-Colônia. S.Paulo:Arte & Ciência, 1997.

RIBEIRO, A.I.M. A Educação feminina durante o século XIX: O colégio Florence de Campinas.

Campinas:Área de Publicação do CMU/Unicamp, 1996.

SILVA, G. B.A educação secundária. São Paulo: Nacional, 1969.

SILVA, T. T. O que produz e o que reproduz em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.

SILVEIRA, C. da. et alii. Notas genealógicas e outras notas. São Paulo: Inst. Hist. Geogr. S.

Paulo, 1968.

TSCHUDI, J. J. Viagem às Províncias do Rio de janeiro e São Paulo. São Paulo: Martins, 1954.

WILLENS, E.A aculturação dos alemães no Brasil, estudo antropológico dos imigrantes

alemães e seus descendentes no Brasil. 2. ed. ampl. e iIustr. São Paulo: Nacional/INL, 1980.

Outros Documentos Pesquisados:

Jornais, Almanaque, Boletins e Diários : O Correio Popular, O Diário de Campinas, A Gazeta de

Campinas, A Província de São Paulo

ALMANAQUES de Campinas

ANOS: 1870 e 1873 - José Maria Lisboa

1878 - José Hypolito da Silva Dutra, 1879 - Carlos Ferreira e Hypólito da Silva

1886 - Henrique de Barcellos, 1892 - Francisco Cardona

Coleção Cyrillo Hércules Florence (Cartas, diários e fontes primárias relativas à Família

Florence)

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5º. Texto) Sobre os prgramas de capacitação dos professores e suas didáticas.

Apresentado no Congresso Internacional de Formação de Professores em Portugal

(2002)

FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO BRASIL: OS PROGRAMAS PEC-FORMAÇÃO

CONTINUADA, PEC-FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA CIRCUITO GESTÃO DA

SECRETARIA DA EDUCAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO (1997-2002) e

Pedagogia Cidadã/UNESP (2002-2005)

AUTORAS: RIBEIRO, ARILDA INES MIRANDA E MENIN, ANA MARIA DA COSTA

SANTOS (Professora Livre Docente e Professora Doutora do Departamento de

Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia da UNESP

Universidade Estadual

Paulista

Brasil)

A Educação, dentre outras práticas sociais, tem papel importante na construção

histórica da realidade social. A escola, de modo particular, é o espaço onde se vivência,

analisa e compreende contradições e conflitos, como reflexo do contexto social. Sendo

assim é fundamental que a Educação e a Escola estejam comprometidas com

princípios democráticos.

É importante lembrar que tais princípios definidos pela Constituição Federal de

1988, fundamentaram as discussões da nova LDB, Lei nº 9394/96, no que se refere à

necessidade de fortalecimento de uma cultura educacional e pedagógica que privilegie

a dimensão democrática da escola e que incentive, ainda mais, a participação e a sua

responsabilidade social.

A mesma lei procura assegurar o caráter democrático do ensino público

sugerindo a reorganização dos sistemas de ensino para que implantem e efetivem

novos modelos de gestão voltados para ampliação dos níveis de autonomia

pedagógica, administrativa e financeira das suas instituições e das unidades escolares.

Cabe registrar, no entanto, que uma concepção e uma prática de gestão que

incorporem princípios democráticos constituem-se em aprendizado que deve se

processar no interior das Instituições, incluindo-se aí a escola, para que não se

esvaziem de sentido e caiam em descrédito.

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No que se refere, especificamente, ao ensino, a democratização ocorre,

basicamente, em dois níveis: quantitativo e qualitativo.

No Estado de São Paulo, medidas implementadas a partir da segunda metade

da década de 50, de certa forma equacionaram o problema da quantidade. No entanto,

os altos índices de retenção e evasão comprometeram o fluxo escolar regular,

ampliando o tempo de permanência dos alunos em cada série, prejudicando um

satisfatório atendimento da população.

Nos últimos quinze anos, tem se observado que as políticas implementadas, em

nível governamental, voltaram-se para aspectos qualitativos.

A atual administração da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (SEE-

SP) e a anterior tem buscado a melhoria da qualidade de ensino como meta

fundamental as ações desencadeadas, envolvendo todos os setores, agrupam-se em

três grandes vertentes:

Reestruturação do modelo pedagógico;

Racionalização Organizacional;

Novos Padrões de Gestão.

No entanto, a ação institucional do governo, via propostas de reformas, por si só,

não assegura mudanças na cultura institucional do Sistema Escolar.

Para que ocorram mudanças na prática pedagógica e nos procedimentos

administrativos, é imprescindível que os atores desse processo mudem seus

comportamentos e formas de atuação e isto exige novos conhecimentos, novas

habilidades, novas atitudes no interior das escolas e nos órgãos regionais. A adoção ou

não de novos padrões de comportamento em qualquer organização está diretamente

relacionada, por exemplo, à maneira como suas lideranças orientam o processo de

implementação de mudanças.

Embora a responsabilidade dos órgãos centrais da Secretaria de Educação,

nesse processo, seja grande, a qualidade de ensino não ocorre somente nela: se os

alunos não aprendem, o problema pode estar na Escola, nos processos que ocorrem

dentro dela, no gerenciamento desses processos e/ou nas relações dos diferentes

atores que nela participam.

Estudos têm ressaltado a Gestão Escolar, como um fator determinante que faz

diferença significativa na melhoria da qualidade de Ensino. O tipo de liderança, o

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trabalho conjunto da equipe escolar, a decisão colegiada, o envolvimento dos

professores nas decisões, a competência e o comprometimento do gestor, as mútuas

relações estabelecidas entre professores-alunos-diretor-funcionários-pais, o exercício

da autonomia, a organização do ambiente escolar, o envolvimento dos pais e da

comunidade, o uso adequado de indicadores, o acompanhamento do controle de

resultados são fatores que promovem a eficácia e a qualidade dos serviços

educacionais e só estão presentes quando existe uma gestão eficaz.

É importante lembrar, nesse contexto, que a sociedade, de um modo geral, a

família, a escola, os professores, os alunos, em particular, todos enfim, foram

profundamente impactados por inovações científico-tecnológicas ocorridas

principalmente na segunda metade do século XX e que tais mudanças trouxeram, para

a instituição escolar novos desafios, dentre eles: o desafio de aprimorar lideranças para

que facilitem a incorporação dos novos paradigmas fazendo-se cumprir a meta maior

de proporcionar ensino a grandes contingentes, privilegiando-se a qualidade.

A legislação federal propõe e ampara transformações urgentes e necessárias na

escola e no ensino, para as quais a SEE-SP vem desenvolvendo um trabalho constante

de discussão e aprimoramento de conceitos presentes no âmbito educacional e

escolar.

Nas ações de capacitação

presenciais e em publicações oficiais

dentre

outras prioridades, a SEE no processo de consolidação de sua política educacional

destaca como questões principais:

Estudo aprofundado da LDB no que se refere a:

Projeto Pedagógico.

Concepções de Avaliação no sistema de Progressão Continuada.

Ensino Médio.

Ação Supervisora e Gestão Escolar que privilegiem a formação e atualização de

lideranças para atuarem na rede pública de ensino em consonância com as novas

necessidades organizacionais e pedagógicas:

Gestão Financeira e de Materiais.

Gestão de Pessoas.

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No que se refere à formação e atualização de lideranças, a SEE-SP, articulada

às ações preconizadas e, apostando na valorização profissional dos gestores, entende

que priorizar os resultados da aprendizagem constitui as bases da sua missão.

Desse modo, lança um olhar atencioso sobre o desenvolvimento da capacidade

de aprendizagem de seus gestores a fim de que possam intervir na qualidade

demandada pela escola.

Novos vocábulos são incorporados ao repertório educacional: autonomia,

flexibilidade, descentralização, competência, progresso e progressão, transparência,

efetividade, avaliação institucional e outros.

Neste contexto de mudanças que surgiu O Programa de Educação Continuada

(PEC), biênio 1997-1998 que visou capacitar professores, coordenadores pedagógicos,

diretores, supervisores e diretores de ensino em relação à elaboração de projetos

pedagógicos, plano gestor e, orientação para o trabalho com as propostas dos

Parâmetros Curriculares Nacionais. Todos estes grandes temas permeados por uma

preocupação comum; como praticar a avaliação do ponto de vista das unidades de

ensino, dos docentes de cada unidade, dos programas curriculares, dos alunos e da

aprendizagem.

Para concretização deste vultoso programa, durante dois anos, professores

universitários percorreram diversos Pólos Educacionais, em todo o Estado de São

Paulo, com vistas a garantir, efetivamente, o cumprimento dos projetos, elaborados por

grupos de docentes e encaminhados para cada diretoria de ensino. As ações contaram

com o acompanhamento de especialistas em avaliação e em educação da Fundação

Carlos Chagas os quais estiveram à frente de todo o processo avaliando

constantemente e continuamente os trabalhos realizados pelos mais diversos docentes

e instituições.

Percebeu-se a seu término que a escola paulista havia sofrido grandes

transformações e que, certamente, os profissionais envolvidos pelo processo

começaram a despertar para a necessidade de se praticar mudanças substantivas na

escola.

Na região de Presidente Prudente o projeto sobre Avaliação e a proposta

pedagógica para uma escola de qualidade atendeu às cidades de Osvaldo Cruz,

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Adamantina, Dracena, Mirante do Paranapanema, Teodoro Sampaio e Porto

Primavera.

Em uma outra ponta deste processo e com as mesmas preocupações, ou seja,

capacitar os profissionais do ensino fundamental e médio do Estado de São Paulo,

surgiu o Programa Circuito Gestão, criado pela Secretaria a Educação do Estado de

São Paulo. O programa foi estabelecido a partir de um projeto implantado pela

Secretaria de Educação em 2000, visando aperfeiçoar continuamente o profissional.

Desta forma o público alvo esteve voltado para os gestores da educação, e se

desenvolveu no período de 2000 à 2002, em nove centros no Estado de São Paulo,

coordenados a partir de um centro gerador sediado na cidade de Botucatu.

A proposta pedagógica do Circuito Gestão esteve ancorada em duas grandes

metas: a) fortalecer a liderança dos gestores; b) refletir sobre os paradigmas que

sustentam a nova organização da Educação Brasileira.

O programa foi organizado em módulos temáticos, voltados para atender as

necessidades específicas detectadas no cotidiano das escolas e dos gestores da rede

estadual de ensino, ajudando-os a compreender melhor os problemas que enfrentam e

preparando-os para encontrar os melhores caminhos que levem ao sucesso das

escolas. Foi extinto em 2002, quando a Secretária da Educação do Governo Mário

Covas, Profa. Rose Newbauer transferiu seu cargo para o Prof.Dr.Chalita, Secretário da

Educação do Governo Alkimin.

Apesar de gerar controvérsias entre os gestores da Rede de Ensino Estadual,

metodologia adotada partia de um princípio que privilegiava um processo dinâmico e

com grande flexibilidade, retratado pela prática diária que fornecia novos elementos que

alimentaram novas propostas e procedimentos no cotidiano escolar, evidenciando a

busca de novos caminhos e a superação dos problemas do dia-a-dia.

Nesse sentido, além do referencial teórico cuidadosamente elaborado e

trabalhado com os gestores nos módulos, destacou-se a oportunidade de reflexão

propiciada, bem como os momentos em que foram apresentados pelos gestores em

suas unidades, as experiências de sucesso que foram sendo colocadas em prática nas

escolas, possibilitando uma troca de experiências.

O conteúdo pedagógico de cada módulo foi sendo definido pelas necessidades

detectadas nas verbalizações, nas atitudes e posturas dos educadores da rede pública

paulista. Na opinião de um diretor de escola, que freqüentou o Circuito Gestão:

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A preocupação em integrar teoria e prática fez com que o programa

Circuito Gestão fosse buscar tanto profissionais que tivessem como

objeto de estudo a educação, os professores universitários, como

profissionais vinculados diretamente à prática educacional nas escolas,

tais como supervisores e assistentes técnicos pedagógicos da rede

estadual de ensino, para elaborarem e multiplicarem os conteúdos

abordados.

Esta parceria resultava em uma experiência inédita no que diz respeito

aos responsáveis pelas ações desencadeadas durante a realização dos

cinco módulos. Esses profissionais multiplicadores chamados

facilitadores eram, geralmente, oriundos de cargos de docência ou

administrativos, dentro do Sistema Público de Ensino; portanto,

conhecedores dos problemas mas, igualmente dos sucessos

alcançados pela Escola Pública Estadual. Os facilitadores trabalhavam

os conteúdos próprios de cada módulo, com os gestores, recebendo,

durante todo o processo, apoio constante de professores universitários,

os consultores, propiciando lhes um aperfeiçoamento contínuo para o

trabalho que realizaram. Percebia-se, aiim, pois, um processo de

capacitação contínua não somente do público que freqüentou o

programa, quanto por aqueles que estavam, diariamente à frente de

todo o processo desenvolvendo as ações nas salas ambiente do

referido programa. (Entrevista realizada com uma diretora de escola em

dezembro de 2002).

Os facilitadores, profissionais fundamentais para o bom andamento das diversas

atividades, inicialmente, formavam um grupo de 13 profissionais, atingindo cerca de 40.

Esses facilitadores construíram o caminho firmado pela competência e pela prática

(habilidade) no cotidiano de suas atividades, em sala de aula, com os gestores.

Seu dia-a-dia era dedicado a dar especial atenção aos grupos que,

semanalmente, chegavam aos centros de capacitação. Cada nova turma provocava um

clima de expectativa, de ansiedade. Lidar com o outro, sobretudo no campo

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educacional exigiu de todos os envolvidos uma atenção especial e redobrada. Esta

sempre foi à orientação transmitida aos facilitadores.

Embora diferenciados, os grupos de cursistas revelavam muitos pontos em

comum. A maioria dos participantes envolvia-se de modo adequado. Poucos foram os

pessimistas e os resistentes às novas idéias, como também poucos foram os que

demonstram compreensão e atualização da legislação.

Na opinião dos facilitadores, cada grupo que deixava o Centro de Capacitação,

saía fortalecido e muitos dos resistentes realizavam ao final do projeto, depoimentos

emocionantes como o relatado: o grupo que sai não é, com certeza, o mesmo que

chega .

Vale ressaltar que os grupos diferenciados levavam o facilitador a buscar formas

de ação também alternativas.

Via de regra, os diretores discutiam muito, criaram polêmicas, preocupavam-se

com o resultado dos trabalhos, envolviam-se nas oficinas, participando ativamente,

saindo enriquecidos com a troca de experiências. Em situações de conflito, a propósito,

muito salutares, a orientação que os facilitadores seguiam pela coordenação do

programa, era a de não deixarem questões sem respostas, ilustrarem com informações

e exemplos concretos as indagações dos cursistas.

Nesse sentido, uma das preocupações dos facilitadores foi o de dominar cada

vez mais a seqüência das atividades, proporcionando a segurança e o êxito da

condução de seus trabalhos em sala. Estudavam, analisavam e discutiam, após a

atividade das oficinas dos módulos com os gestores da escola pública estadual

paulista, em grupos, as ações do dia. Uma outra preocupação foi o de relacionar as

diversas atividades práticas aos fundamentos legais, aos conceitos pedagógicos e

legislação pertinente à gestão escolar vigente na época. Principalmente no que dizia

respeito à LDBEN 9394/96.

Os facilitadores afirmavam que muitos dos diretores, procedentes das várias

regiões do Estado de São Paulo, chegavam irritadiços

com o deslocamento cansativo

das suas cidades e unidades escolares. Alguns ficaram indignados por não terem sido

consultados sobre essa forma estratégica de capacitação, das resoluções terem vindo,

como sempre de cima para baixo, desconsiderando a vontade dos gestores

escolares . Outros, no entanto, elogiavam a coragem da coordenação do projeto de

retirarem os supervisores, diretores e coordenadores do seu habitat congestionado de

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problemas diários e deslocarem-se para regiões que não conheciam. Alguns ficavam

aliviados por poder conversar sobre os problemas da escola, com a própria Secretaria

de Educação e com outros colegas gestores de outras regiões, trocando com isso

experiências pedagógicas salutares.

Havia nessas oficinas modulares, momentos de catarses, quando alguns

participantes sentiam a necessidade de botar prá fora insatisfações diversas. Alguns

gestores, a maioria, criavam expectativas de novas aprendizagens (solicitavam roteiros

de ação em suas escolas), muitos chegavam aos pólos de formação quietos,

desconfiados. Ouviam, criticavam, com uma participação inicial muito passiva. No

entanto, com o passar dos dias e dos trabalhos realizados durante as oficinas,

manifestavam sua aprovação através da Avaliação final.

Alguns não entendiam o que está acontecendo com a Secretaria, porque estava

muito diferente do que eles haviam vivenciado nos cursos anteriores, enquanto

profissionais na ativa da Rede Estadual de Ensino. O trabalho de conquista e sedução

foi muito significativo. Um facilitador escutou certo dia, comentários de alguns diretores

no corredor que diziam: A Secretaria encontrou o seu caminho e nós vamos encontrar o

nosso!

Tanto gestores, quanto facilitadores viveram durante a realização de cada

módulo, momentos de significativo crescimento. Não há como desconsiderar a troca

permanente e enriquecedora entre os cursistas, os facilitadores e os consultores.

O processo de construção e crescimento ocorreu de forma a perceber não

somente os avanços, como também, as dificuldades que permearam o processo. Entre

eles a de administrar o tempo para que os assuntos fossem discutidos pelos

participantes. Uma facilitadora bem humorada escreveu em seu relatório:

Ah! Participantes!!! Hih! Participantes!! Oh! Participantes! Participantes

diferenciados! Cada grupo constrói sua própria identidade. Agindo com

flexibilidade íamos nos adequando ou tentando nos adequar aos

grupos. Discussões, contestações, polêmicas, tudo levava à reflexão e

assim os temas abordados no Programa Circuito Gestão foram

veiculados por todo o Estado de São Paulo

LDBen, Gestão

Pedagógica, Progressão Continuada interagindo com oficinas de

sensibilização era a pauta do nosso dia-a-dia!

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Os facilitadores reconheciam que às vezes era preciso pedir ajuda para os

consultores, estudar mais, buscar novos caminhos. Temas como: problemas

administrativos, recursos financeiros, H.T.P.C., profissionalismo docente, recuperação,

Conselho de Escola, Conselho Tutelar, legislação educacional, progressão continuada,

avaliação contínua, competências, habilidades e atitudes, indisciplina, protagonismo

juvenil, drogas na escola, gravidez precoce, violência, papel da família na escola,

diversidade e orientação sexual eram indagações freqüentes nos trabalhos dos grupos.

O conhecimento e o comprometimento do facilitador faziam com que as

diferenças individuais nos grupos tornassem-se geradoras de um trabalho mais amplo,

mais rico e mais fidedigno. Essa diversidade de atitudes e reações era esperada em um

mundo feito de diferenças. Diferenças essas que deviam e devem ser trabalhadas para

o crescimento do próprio grupo como um todo:

Gerenciar as diferenças com habilidade e conduzir os conflitos e

opiniões direcionando para os temas propostos, enriquecia o grupo, na

medida em que, os resultados positivos fossem socializados (Fala de

um facilitador de Aprendizagem. Dez 2002).

Pode-se afirma que o Circuito Gestão foi uma experiência marcante dentro dos

programas de formação de professores, apesar de todas as críticas a ele apresentadas.

Cabe ainda, que futuros pesquisadores se debrucem no material que restou do

programa e dele faça uma pesquisa mais cuidadosa e séria sobre o seu papel na

capacitação dos gestores da Rede Estadual Paulista de Educação. Para esse texto, o

intuito foi apenas de visualizar uma panorâmica de um projeto polêmico e monumental

para os moldes de uma Rede de Ensino que conta com uma população de

supervisores, diretores, vice-diretores e coordenadores semelhantes à população da

Dinamarca.

A iniciativa com os Professores do Estado: O PEC-Formação Universitária e o Curso

Especial de Licenciatura da Unesp

PEDAGOGIA CIDADÃ.

PEC-Formação Universitária:

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Dentro deste quadro traçado envolvendo níveis diferentes de formação e

capacitação de docentes em serviço, destaca-se ainda o PEC-Formação Universitária,

programa de formação de professores da Rede Estadual de Ensino iniciado em 2001,

com seu término previsto para o início de 2003. No momento da realização desse texto,

está em andamento. Este programa, entre os outros já apresentados neste texto, um

dos mais inovadores para a promoção da qualidade de ensino da rede pública,

proporcionou a melhoria de formação a quase 7.000 docentes que já atuam nas quatro

primeiras séries do Ensino Fundamental, ao fornecer fundamentos para a formação

profissional docente além da certificação de Curso Superior, em Pedagogia. Também,

pelo seu ineditismo, por sua forma de procedimento metodológico, com aulas

presenciais e orientação à distância, encontra-se crivado de críticas, de discussões

polêmicas entre alguns docentes das Universidades Públicas.

A consecução deste programa foi possível graças a parcerias firmadas entre três

das principais Universidades do país: USP, UNESP e PUC-SP, órgãos públicos,

instituições de ensino, empresas, profissionais e especialistas de vários setores.

Estas instituições, em conjunto com a Secretaria de Estado da Educação, foram

responsáveis pelo detalhamento do projeto, o que envolveu aspectos pedagógicos e

metodológicos, o conteúdo desenvolvido e a definição e a constituição das equipes de

trabalho. A elas competia ainda à elaboração dos materiais didáticos de apoio, a

coordenação das ações de docência, a avaliação e a expedição dos diplomas dos

professores.

Para atender ao grande contingente de 7.000 docentes (dados estimativos)

foram montados 46 ambientes de aprendizagem, com características especiais e

distribuídos em 34 locais na capital, Grande São Paulo e interior do Estado utilizando-

se, principalmente, das instalações dos Centros específicos de Formação e

Aperfeiçoamento do Magistério (CEFAMs). Todos os ambientes estiveram conectados

com a Secretaria da Educação, com as Universidades e à PRODESP, por meio da

intranet.

Criou-se assim como o Circuito Gestão, um novo desenho curricular tomando

como referência os marcos da política educacional contidos na LDBEN e nas Diretrizes

Curriculares nacionais do Ensino Fundamental, seguindo as recomendações dos

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Parâmetros Curriculares Nacionais e as orientações do Conselho Estadual de

Educação expressas nas Deliberações 12 e 13/2001.

O programa foi fundamentado nos seguintes princípios educacionais e

pedagógicos:

Ênfase na relação teria-prática;

Exercício da docência escolar como referência de organização institucional e

pedagógica;

Construção de competências como eixo organizador do currículo;

Coerência entre a formação do professor e a prática de atuação que dele se

espera como base de todas as atividades que serão desenvolvidas durante o

programa;

Priorização do domínio dos objetos sociais do conhecimento e sua

transposição didática;

A dimensão da pesquisa na formação do professor como garantia do

desenvolvimento de uma postura investigativa que leve à reflexão que leve à

reflexão sobre sua ação cotidiana.

Para o desenvolvimento das ações nos ambientes de aprendizagem os

professores-alunos contaram com a presença constante de um tutor e com o

acompanhamento a distância e presencialmente de um professor-orientador.

Caracterizava-se o PEC, pois, por uma ousada organização e diversidade de ações

entre elas a de fazer uso de um a metodologia apoiada em midias interativas - como

teleconferências, videoconferências, Internet e Intranet. Os professores-alunos tiveram

à sua disposição em todo o Estado, um aparato tecnológico integrado de informação e

comunicação tecnológica. Desta forma, pretendeu-se prepará-los para vencer os

desafios educacionais e sociais deste novo milênio.

O PEC-Formação Universitária foi um Programa especialmente desenvolvido

para oferecer graduação em nível superior aos docentes efetivos do primeiro ciclo do

Ensino Fundamental, da rede pública do Estado de São Paulo, com habilitação inicial,

em nível médio. Esta iniciativa possibilitou aos professores cumprirem,

antecipadamente, as exigências da LDBEN 9394/96, que determina a necessidade da

formação em nível superior para o exercício do magistério nas primeiras séries do

Ensino Fundamental a partir de 2006.

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- Pedagogia Cidadã:

Dando continuidade à implantação desses programas, iniciou-se em outubro de

2002, um novo e ainda mais inovador, destinado à formação de professores,

denominado « Pedadogia Cidadã » pela UNESP (Universidade Estadual Paulista),

destinado às Redes Municipais de Ensino, e em convênio com as prefeituras.

O programa se destinava, ousadamente, à formação dos 40.000 professores de

educacão infantil e do ensino fundamental, que não possuíam o curso superior e eram,

naquele momento, a maioria dos professores da rede municipal de ensino paulista

interiorana. A ênfase era preparar os docentes já em serviço, no sentido de melhor

atenderem as crianças em situação escolar, dentro de um novo olhar educativo,

fundamentado na valorização da Cidadania. O curso encontra-se em andamento, nesse

momento.

- Considerações Finais :

É sabido que a formação continuada dos profissionais da educação é o melhor

caminho para uma educação que se pretende de qualidade, dentro de uma escola que

busque atingir um grau de excelência voltado para a construção da cidadania,

alicerçada pelos princípios da ética. Desencadear programas que visem atender tais

demandas, certamente, determinará uma nova postura da Secretaria da Educação, das

Instituições Superiores de Ensino, dos profissionais da educação e da sociedade de

forma mais ampla.

Cabe a nós, educadores comprometidos com a teoria e a prática, para o

momento, não deixarmos que estes programas pereçam com o cal da crítica simples e

descomprometida. É necessário a manutenção das luzes da esperança, do sonho e da

civilidade em busca de uma educação consciente. Erros existirão, mas com certeza,

toda crítica virá em torno de um projeto transposto para a realidade.

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