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ROSA FERA, CLARICE FODA: reflexes e variaes antropofgicas

A teoria da cultura constituda por Oswald de Andrade (2011) vem atualmente recebendo uma importncia tal que ela um dos polos epistmicos da renovao da Antropologia. Apresentada como uma teoria relacional da alteridade e diferena bem como situada na gnese da criao artstica, antropofagia hoje se coloca como fulcral nos debates contemporneos das cincias humanas, alcanando o estatuto de uma prtica discursiva no sentido propiciado por Foucault em Arqueologia do saber (2011), isto , como elemento enunciativo que transpe os limites e funes dentro do qual foi prefigurado. Eduardo Viveiros de Castro (2015) vem estabelecendo novas interpretaes para antropofagia subsidiria tanto do perspectivismo amerndio e da antropologia simtrica[footnoteRef:1]. O objetivo desse artigo se prope a tornar visvel alguns aspectos da maneira tal qual o antroplogo se apropria do modernista brasileiro. Para isto nos utilizaremos a sua leitura de dois textos do cnone nacional: Meu tio iauaret (2001)de Guimares Rosa e Paixo Segundo G.H (1998)de Clarice Lispector apresentado em A fora de um inferno: Rosa e Clarice nas paragens da diferOna (2013). [1: O modernismo antropofgico absolutamente anti-modernista e sobretudo ps-modernista, tanto no sentido local e literal, como no sentido que esse adjetivo ganhou no final do sculo XX ou mais; na verdade, a Antropofagia saltou por cima desse outro ps-modernismo tardio, devorando-o antecipadamente, dispensando de passagem, no processo, as dores dalma, as culpas coloniais, as crises da representao do outro e demais dengos e requebros acadmicos praticados ultimamente no hemisfrio norte, o hemisfrio messinico (dengos e requebros que, naturalmente, no deixaram de fazer seu sucesso em nossas paradas e parasitas paragens universitrias nacionais) (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p.3).]

Aqui Viveiros de Castro realiza uma leitura permeada pela leve influncia e Haroldo de Campos (2010) e sua noo de potica sincrnica. Para o ltimo, no campo da anlise literria, ao realizar o recorte sincrnico o crtico tem de estabelecer os critrios de variao de funes (p.213), assim, a antropofagia servir de critrio para a comparao entre as duas textualidades. Ela ser apreendida em seus personagens principais a partir de mutaes e transformaes que os mesmos passam. Seu intuito ser conceb-los como variantes maqunicos da antropofagia o que significa que expandem ou deformam a acepo original tal como estabelecida pelo nosso modernismo. Logo, a principal coordenada para a A fora de um inferno: Rosa e Clarice nas paragens da diferOna (2013) proferida pelo antroplogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro elabora um exemplo paradigmtico que nos permite especular sobre um movimento triplo de complexos vnculos e nuances norteadores das relaes entre Literatura, antropologia e modernismo que ilustramos com os seguintes pontos: 1) a renovao da teoria poltica antropofgica de Oswald de Andrade; 2) a imanncia do perspectivismo multinaturalista amerndio 3) a importncia da literatura como reflexo filosfica e crtica contida em textos como Meu tio Iuaraut de Guimares Rosa e A Paixo segundo G.h de Clarice Lispector Resumindo, trata-se de incorporar a proposta oswaldiana incorporando-a internamente ao ps-estruturalismo principalmente a de Deleuze & Guatarri. No se trata de uma simples aproximao como pode ser vislumbrada em Subjetividade e Antropofagia de Suely Rolnik, mas de novas consequncias tericas.No obstante, tiremos algumas consequncias demonstrando essa ltima hiptese inicialmente por Meu tio Iauaret. Neste conto relatada a pequena histria de Tonho Tigreiro, que como o prprio nome indica, refere-se a sua ocupao ou trabalho que residiria em caar e matar onas responsveis por atacar propriedades rurais, especialmente quelas dominadas por grandes fazendeiros. A narrao acontece calcada no discurso indireto livre em que Tonho discorre sempre em primeira pessoa fazendo com que as demais personagens apenas aparecem interpoladas por sua alocuo. O efeito desse recurso colocar o leitor como uma figura dramtica no interior mesmo do conto. Estabelecendo um paralelismo entre Tonho e o Leitor bem como o choque de perspectivas que o mesmo deve ocasionar.Tonho que na diacronia textual possuir vrios nomes comea a sofrer uma transformao: na passagem para um devir ona, uma metamorfose subjetiva do caador para a fera caada. O que deve ficar salientado aqui so alguns agenciamentos: 1) essa modificao da personagem na intensidade de sua subjetividade indicada pela a forma lingustica de sua fala, os neologismos, chistes e onomatopeias indicam a passagem do humano para o inumano (animal); 2) transformao, metamorfose, devir so conceitos metonmicos e operacionveis do perspectivismo amerndio; 3) o conto recupera a noo de antropofagia de Oswald de Andrade, isto , est em continuidade estrutural com o modernista brasileiro; 4) para alm das imagens erticas que o processo antropofgico ocasiona (SANTANNA, 1993), numa chave trgica e poltica que a mesma deve ser entendida. Como filho de um Homem Branco e de uma Mulher Indgena, Tonho deve negar o lado paterno e retornar a linhagem matrilinear numa espcie de reconciliao com aquilo que era at ento era negado pelo prprio. O devir-ona que caracteriza sua transformao a assuno da perspectiva do oprimido contra o povo da mercadoria, para utilizarmos expresso idiossincrtica de David Kopenawa (2015). A reunio com a parte inumana e morta de si implica na tomada de posio do Outro excludo, entretanto, como nos mostra o final do conto esse devir tem por fim a suposta morte de Tonho em que ns (na posio de interlocutor) provavelmente o matamos. A diferOna como conceito cosmopoltico e anti-narcsico implica em tomarmos a perspectiva do Outro causando-nos um devir ou modificao de nossa posio subjetiva ou, o que ser mais importante em se tratando de efeitos tericos, uma retificao discursiva em termos lacanianos. Nesse pequeno comentrio explanatrio, a antropofagia demonstrada por Rosa refere-se transformao de Tonho: a alteridade apresentada como o devir-ona, um homem apresentando sua vertente inumana, coincidindo formalmente com o uso especfico da linguagem no conto. Vale salientar o quanto a Antropofagia se diferencia do processo canibal tal como formulado por Oswald de Andrade. Enquanto homem Tonho no devora outros homens e sim onas, enquanto ona o onceiro no devora outras onas, mas homens (VIVEIROS DE CASTRO, 2013). Antropofagia roseana um devir no canibalstico. Podemos ilustrar a antropofagia e suas variaes a partir do romance de Clarice Lispector, A paixo segundo G.H, mas com diferenas substanciais. Na obra literria supracitada a tese central perpassa o questionamento incessante em torno da identidade assumida por G.H, seja de burguesa na sociedade brasileira, seja de sua relao com o ser mulher, a experincia da impessoalidade e despersonalizao que determina os primeiros tpicos. Esse tipo de fenmeno em que a personagem perde suas referncias subjetivas e deliberativas podem ser condensadas em pelo conceito de autofagia como uma variante antropofgica como sustenta Viveiros de Castro. Para ele, o texto de Lispector apresenta uma verdadeira filosofia crtica de combate ao narcisismo que impregnam as sociedades modernas. O que G.H comea por narrar a prpria impossibilidade de constituir uma narrativa que defina objetivamente a reposta: O que um EU? Literariamente isso que reportado por Lispector, toda a Autofagia do eu gerada pelos meandros da subjetivao: assumir uma face humana, assumir uma face de mulher, assumir uma psicologia de vida, so questes fulcrais na qual G.H quer desembaraar-se, livrar-se. a expresso inumana que resiste a imagem do Homem que determina a reflexibilidade do texto. Para Viveiros de Castro em Lispector o sujeito constitudo por fulcros histricos que ultrapassam qualquer deliberao racional, isto , G.H o sujeito dividido, incompleto, incoerente e em devir. Assim, a autofagia experimentada por G.H cone de uma luta subjetiva contra as mquinas sociais de captura da subjetividade. Pontuando uma importante funo que coube a literatura no Brasil que a elaborao social das diversas relaes entre o sujeito e o Outro[footnoteRef:2]. [2: Devemos elencar o quanto essa prerrogativa terica devedora da filosofia de Hegel. Em Filosofia do Esprito (2014) existe o incio de uma reflexo que relaciona literatura com as estruturas do reconhecimento social e os impasses do individualismo moderno. Dom Quixote, Karl Moor e Fausto so personagens que ilustram a emergncia do individualismo liberal burgus mas tambm empecilhos ou aspectos patolgicos. De forma sucinta, o indivduo s encontra sua plena satisfao se se conseguir fazer convergir seu desejo com a comunidade da qual pertence. O uso que Hegel faz da literatura ilustrar o funesto destino subjetivo quando impedido de realizar-se universalmente. No primeiro caso literrio teramos a loucura guerreira de Dom Quixote e seus moinhos de vento; com Karl Moor o isolamento misantrpico; e Fausto fim de sua vida por perseguir um desejo completamente singular. A literatura, portanto, o campo narrativo da experincia humana propcio para pensarmos as dificuldades e contradies culturais e sociais. Ou seja, do ponto de vista terico ela pode ser compreendida como uma perspectiva sobre os sintomas ticos e polticos que determinada conjuntura cultural engendra.]

A paixo segundo G.H a autofagia vivenciada pela personagem condicionada pelo vazio e solido em que sua vida apresenta aps seu abandono pela empregada Janair. O despedaamento de seu mundo na verdade um processo de devorar a identidade que jaz em si mesmo, como dissemos, antropofagia aqui deve ser lida como autofagia. com esse trmite que ela pode relatar: era a primeira pessoa realmente exterior de cujo olhar eu tomava conscincia (p.40). A autofagia clariciana aspecto motivador para abertura ou a mudana de perspectiva que G.H realiza quando se coloca no ponto de vista de Janair sobre a prpria G.H. De acordo com Viveiros de Castro a subjetivao do ponto de vista do Outro tem efeito transformador sobre o meu prprio ponto de vista. Um elemento a mais torna essa relao no romance mais complexa: o aparecimento da barata no quarto escuro da empregada Janair. nesse encontro que a dimenso daquilo que Lacan denominou de angstia aparece enquanto embate radical com a Alteridade, fechei os olhos, esperando que a estranheza passasse (p.57). G.H encontra-se presa no quarto diante da presena onipotente e amedrontadora da barata. No obstante, esse meandro de medo, horror, asco permite a G.H adentrar num devir animal que, enquanto metfora, aponta para aquilo que Bataille (2001) magistralmente chamou de parte maldita de ns mesmos. Eu, corpo neutro da barata, eu com uma vida que finalmente no me escapa pois enfim a vejo fora de min eu sou a barata (p.64). nesse contexto, portanto, que Rosa e Lispector se conectam antropofagicamente como variaes e no como similaridade. Viveiros de Castro insere esse tema como maneira de sincronizar a herana antropofgica oswaldiana como um espectro que percorre a literatura brasileira o que levanta outras questes que excedem o atual texto: Os romances contemporneos podem ser interpretados via hiptese antropofgica? Se a resposta se conformar com um sim seria possvel estabelecer quais so as variaes que as mesmas determinam? O quo possvel apreender a herana dos modernistas hoje? Nesse sentido, captar as variaes e transformaes, sua plausibilidade, tambm compreender que tipo de discurso a literatura engendra. Vejamos portanto o balano de nossa proposta: 1) uma teoria literria agenciada pela nova antropologia brasileira; 2) Esse vis pode ser descrito como um deslocamento pragmtico, uma toro ou translao de perspectiva que afeta os valores e as funes de sujeito e de objeto, de meio e de fim, de si e de outrem (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 159); 3) um retorno a antropofagia oswaldiana; 4) testar a hiptese de que a literatura contempornea pode ser interpretada como uma variao dessa teoria da cultura; 5) dentro dessas prorrogativas respondermos de que ordem de variao discursiva os textos contemporneos respondem. Dado as anlises de Rosa e Lispector, demonstramos o quanto a noo de Antropofagia relida dentro dos termos propostos pela Antropologia ps-estrutural capaz de reorganizar a forma tal qual entendemos alguns textos cannicos. O surgimento do perspectivismo amerndio comea a lanar novos olhares sobre Oswald de Andrade e atualizando a biopotncia de sua reflexo. A transformao, o devir antropofgico, que Tonho e G.H experimentam no se resumem apenas a incorporao do outro com a subsequente sintetizao de uma nova identidade, no um ver-se no outro, mas ver o outro em si. Identidade ao contrrio, em suma o contrrio de uma identidade (VIVEIROS DE CASTRO, 2016, p. 5). Se Freud, Nietzsche e Marx demandaram uma espcie de retorno para o resgate de sua radicalidade, respectivamente atravs de Lacan, Foucault (Deleuze) e Althusser, chegado a hora de Oswald de Andrade utilizar sua literatura e filosofia como balano crtico de nosso presente artstico, esttico e poltico.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICASALBERT, Bruce & KOPENAWA, Davi. A queda do Cu. Rio de Janeiro: 2015. ANDRADE, Oswald de. Utopia Antropofgica. Rio de Janeiro: Editora Globo, 2012.BATAILLE, George. O Erotismo. So Paulo; Rocco, 2001.DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Flix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 2011.CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metal. So Paulo: Perspectiva, 2001.FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. So Paulo: Vozes, 2011.LISPECTOR, Clarice. Paixo Segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.ROLNIK, Suely. Cartografias do desejo. Rio de Janeiro: UERJ, 1998.ROSA, Joo Guimares. Estas estrias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafsicas canibais: ensaios de antropologia ps-estrutural. So Paulo: Cosac-Nayf, 2013