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Produção Audiovisual de Histórias de Vida e Experiências de Cidadania na
Cidade de São Paulo1
Profa.Dra. Claudia Moraes de Souza - Unifesp e Diversitas/USP
Profa. Dra. Sandra Regina Chaves Nunes - Faap e Diversitas /USP
“Nunca se deve subestimar o poder do compartilhamento da experiência humana”
Paul Thompson
Resumo
Este artigo resulta de um trabalho de registro em audiovisual de histórias de vida cujo
objetivo central foi a produção de histórias individuais articulada à reflexão sobre
experiências coletivas de transformação social e cidadania em São Paulo. No Núcleo
de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos/USP temos debatido as
metodologias partilhadas da produção do conhecimento e realizado o registro
audiovisual dos depoimentos de colaboradores das pesquisas em história oral de vida e
história oral temática. Nossa perspectiva se estabelece a partir de múltiplas
intencionalidades: a de que a história oral propicia a presença histórica daqueles cujo
ponto de vista foi descartado pela história “vista de cima”; a de que de que o registro
audiovisual constitui-se um registro privilegiado da narrativa dos sujeitos permitindo
ao pesquisador/expectador a visualização permanente dos elementos gestuais,
performáticos e simbólicos de seu colaborador; a de que a produção da história oral
audiovisual permite a organização de acervos audiovisuais de histórias individuais e
coletivas se estabelecendo como prática de registro da memória social de pessoas,
grupos, instituições e movimentos sociais com espaços restritos na produção da
história oficial.
Em temáticas relativas ao direito à cidade e a participação social registramos relatos
de experiências políticas, culturais e cotidianas privilegiando a dinâmica da pesquisa
partilhada através da ideia de que “contar” a própria história leva o sujeito a refletir
sobre ela, avaliar, pensar, mudar, construir novas ações, planejar novos rumos e
conquistas.
1 Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os
dias 25 e 27 de Outubro de 2016, Belém/PA.
Neste artigo apresentamos a transcriação da narrativa e a análise do registro
audiovisual de sujeitos que conquistaram o espaço público e vivenciaram a emergência
de experiências de cidadania e expressão político/cultural em diferentes contextos
presentes na cidade: a história de vida do musicista e morador da favela de Heliópolis
“Marcos” do projeto Baccarelli e a história de “Ronald” trabalhador imigrante de São
Paulo que suplantou a situação análoga ao trabalho escravo pela participação política
e social.
Palavras chave
História oral, Memória Social, Acervo Audiovisual, Mudança Social
Produção Audiovisual de Histórias de Vida e Experiências de Cidadania na Cidade
de São Paulo
Oralidades e imagens na produção de histórias e memórias
Na tradição rígida da historiografia herdeira do cientificismo do século XIX a ideia do
passado fixo valorizava as fontes escritas e institucionais como a base segura para a
construção do conhecimento histórico. No do método de Ranke2, a não existência do
documento escrito – ou seja, a história baseada em fontes documentais não-grafadas –
constituía-se em uma história imprecisa, uma não história, uma história inadequada.
Apesar de constantemente sustentada nos preceitos de uma história tradicional, essa
opinião sempre foi contraposta pela forte presença da oralidade e das fontes imagéticas
ou materiais visuais na construção da narrativa histórica, desde os primeiros tempos das
investigações propostas em Heródoto. Tanto a transmissão das palavras sobre o tempo
passado e as experiências culturais humanas, quanto o material visual composto pela
arte, pela iconografia, pela fotografia cumpriram o papel e a função social de servir de
base para a construção da narrativa histórica sobre povos, sociedades e culturas
edificando conhecimentos e imagens da memória social.
2 HOLANDA, Sérgio Buarque de (Organizador), Leopold Von Ranke: história. S. Paulo, Ática, 1979.
Ao longo do tempo e nos elementos constitutivos da historiografia, a oralidade não
perdeu sua funcionalidade como elemento fundante da narrativa histórica, ao contrário,
hoje ocupa, por meio da história oral, um espaço central. Na proposição de Paul
Thompson3, a história oral é uma interpretação da história, das sociedades, das
experiências sociais e da cultura que elege como centralidade a fala. Desde seus
primeiros momentos, nos exercícios iniciais de registro em áudio da história oral, o
gravador passou a ser um companheiro constante de pesquisadores jovens, desprovidos
dos preconceitos tradicionais e estimulados a percorreram ruas, espações públicos,
moradias de bairros distantes com gravadores de fitas cassetes, tecnologia adotada pela
história oral nos anos de 1960 e 1970 na Europa, hoje essa possibilidade se alarga pela
tecnologia da imagem digital.
A defesa da oralidade como fonte, afirma o potencial que tem a história oral de revelar,
amplificar, multiplicar vozes dos sujeitos trazendo à tona formas variadas do vivido na
sociedade, em especial de grupos subalternos, tornando possível a publicização da
memória, das falas, das ações e projetos de vida dos múltiplos sujeitos sociais. Assim, a
história oral tem sido um instrumento de construção da história e de memórias
múltiplas, tem estimulado trajetórias para realização de uma história múltipla e diversa,
a partir do entendimento de que toda a pessoa tem uma história, toda pessoa pode contar
sua história e na composição de múltiplas histórias é que talvez nos aproximemos de
uma história mais plural com perspectivas diversas.
Na tentativa de traçar caminhos em busca da pluralidade e diversidade na narrativa
histórica – não apenas a presença da oralidade, mas também, a presença do material
visual torna-se um imperativo. A presença do material visual no trabalho do pesquisador
edifica-se como uma realidade recorrente, principalmente em um contexto em que o
campo de pesquisa que une a história e as imagens se amplia, devido ao fato da
produção de forma expressiva de cada vez mais imagens e em uma velocidade
acelerada.
Novos desafios se colocam, um dos desafios centrais é o de incorporar o oral e o
imagético na produção do conhecimento, na prática da pesquisa, na produção de
histórias, no resgate de memórias. Estes desafios constituem o escopo teórico e
metodológico do trabalho de pesquisa aqui apresentado que almeja tratar da história oral
e da produção do audiovisual no contexto da pesquisa interdisciplinar como desafio do
3 THOMPSON, Paul. A voz do passado: História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
tempo presente, tempo em que a possibilidade de produção de registros audiovisuais se
democratiza, entre os diversos grupos sociais, pela massificação de tecnologias como
filmadora digital e câmaras em aparelhos de telefonia celular. É inegável que nos
tempos atuais, cada vez mais pessoas, grupos, instituições e movimentos sociais
descobrem a importância e o valor de “contarem” a sua história ao mesmo tempo que se
apropriam de tecnologias e mídias para a produção social de suas experiências e
memória social. Novamente citando Thompson, a valorização da oralidade como forma
ativa e cidadã da construção da memória e da história, apresenta-nos a ideia de que
contar é compartilhar, e compartilhar é construir possibilidades de consolidar poderes
individuais e coletivos de ação, reação e superação de situações de opressão, miséria,
desrespeito ou submissão.
As tecnologias digitais nos permitem registrar a narrativa oral em audiovisual, atividade
que revoluciona a produção de fontes e atividade de registros do trabalho de campo para
os historiadores e pesquisadores em geral. Na história oral, na etnografia audiovisual, na
pesquisa participativa, o trabalho de campo que envolve a coleta de fontes, a observação
participante, a construção de entrevistas e depoimentos tem atualmente a possibilidade
de ser registrado em audiovisual, registrando os sons e as imagens do processo, abrindo
um amplo campo investigativo que pode ser explorado pelo pesquisador.
Articulando a história oral com as tecnologias audiovisuais, pesquisadores do Núcleo de
Estudos das Diversidades Intolerâncias e Conflitos - DIVERSITAS - da Universidade
de São Paulo tem trabalhado na construção de um banco de histórias realizando a coleta,
organização e o fomento à produção do conhecimento de forma partilhada, com
comunidades, indivíduos, associações e instituições através do registo em audiovisual.
O empreendimento do projeto de construção de um banco audiovisual de histórias de
vida e depoimentos é contribuir com a memória social, reconhecendo as narrativas de
vida de toda e qualquer pessoa como um instrumento de memória e de ação. Em
temáticas relativas aos temas do direito à cidade e a cultura, as imigrações
contemporâneas e experiência de asilo político, exilio e tortura, diferentes pesquisadores
propuseram a indivíduos comuns que relatassem suas experiências políticas e sua
história de vida sob o construto teórico de que contar a sua própria história é ao mesmo
tempo refletir sobre ela, avaliar, pensar e, na maioria das vezes, desejar mudança,
construir novas ações, planejar novos rumos e novas conquistas.
O projeto atendeu/atende preocupações políticas e sociais: a de incentivar cada vez mais
a produção de histórias individuais como contribuição à história de instituições e grupos
de pessoas em suas particularidades e necessidades peculiares; a de reconhecer o poder
da palavra, da “história contada” e registrada, como forma de denúncia das injustiças
sociais, como forma de registro da exploração, sofrimento, descumprimento dos direitos
humanos. E, de forma mais ampla, fomentar pela narrativa a reflexão dos narradores
sobre os processos de mudança social que viveram e estão envolvidos. O uso da palavra
vai se tornando possibilidade de construção de memória, de ensinamentos daquilo que
não deve ser reproduzido e da história de pessoas anônimas propiciado pelo
compartilhamento de experiências de vida, potencialidades, cultura locais, práticas de
grupos populares.
A tecnologia do registro do trabalho em audiovisual cria, então, uma dimensão diferente
da história oral em sua forma tradicional. Do registro em áudio, ou da anotação em
relação ao depoimento oral, passamos ao registro audiovisual da entrevista. O uso dessa
ferramenta gerou uma outra dimensão à pesquisa e seus resultados, ampliando
largamente as possibilidades da produção do conhecimento científico e sua divulgação,
já que a imagem em audiovisual permite uma contribuição aos saberes científicos e
populares para além do texto escrito. Dentre essas possibilidades múltiplas encontram-
se a produção de um acervo de história de vida e memória social, o uso da imagem para
produção de materiais de ensino e de divulgação científica; a elaboração de exposições;
a geração do documentário etnográfico, do filme de entrevista, dentre outros.
O desafio de realizar a produção audiovisual de história oral de vida será narrado e
refletido neste artigo por duas experiências: a pesquisa “História vividas, histórias
narradas: imigrantes contemporâneos em São Paulo” e a pesquisa “Música , Cidadania e
as vozes dos músicos de Heliópolis: São Paulo”, aceitando concomitantemente o
desafio de refletir sobre a prática de pesquisa com o audiovisual e sobre a produção do
conhecimento na universidade brasileira em suas interações (ou não) com a mudança
social e a cidadania na realidade no tempo presente.
História de vida, memórias da imigração e a mudança social
A reflexão sobre a pesquisa “Histórias vividas, histórias narradas: imigrantes
contemporâneos em São Paulo” se inicia a partir daquele que foi o momento mais
significativo da pesquisa que venho realizando e que envolve a produção audiovisual da
história de vida de imigrantes membros dos Conselhos Participativos da cidade de São
Paulo. Num dos primeiros momentos da trajetória da pesquisa, quando eu realizava
contatos com a Secretaria de Direitos Humanos do Município para a formação da rede
de colaboradores, conheci o primeiro dos colaboradores do trabalho, o conselheiro
RONALD. Em uma mesa de reunião tratando das atividades da semana dos direitos
humanos do ano de 2015 e das possibilidades de minha proposta de pesquisa ele me
colocou abertamente a seguinte fala: “... será que se nós contássemos de fato a nossa
história, se falássemos de tudo o que já passamos e sofremos, disséssemos quem
somos...conseguiríamos evitar os maus tratos e a intolerância das pessoas e todo o
preconceito que sofremos em São Paulo? ”.
Naquele momento, diante do episódio que aqui reproduzo, percebi a extensão da
dimensão que relaciona a produção do conhecimento, no meu caso, o conhecimento
histórico, e os sujeitos da história, sua vida privada, seu cotidiano e sua condição de
cidadão. Nesta fala percebi o sentido concreto que a narrativa de uma história particular
pode alcançar no conjunto das relações sociais, tanto para quem ouve quanto para
aquele que fala. Ronald se dispôs a me contar sua história, gravá-la e em audiovisual e
permitir que ela componha o acervo digital de um banco de histórias de vida.
Assim, Ronald me contou sua história:
“Sair da Bolívia não é um projeto que acontece de uma hora
para outra. Você tem a necessidade. Você não tem trabalho, e o
que obriga a migrar é o poder de adquirir as coisas...você não
consegue ganhar dinheiro”
Jovem trabalhador da Bolívia, depois que o pai migrou para Argentina procurando
trabalho, Ronald e mãe se responsabilizaram pelo sustento da família em Cochabamba:
“Em janeiro de 1996 eu vim aqui para São Paulo. Eu era menor
de idade, tinha 16 anos quando vim. A pessoa que veio me
procurar para o emprego veio contando muitas coisas que não
era realidade aqui. Ele conversou com minha mãe falando: - ele
vai receber dinheiro. Veio contando: - a gente vai jogar futebol;
vai ter dinheiro. Veio contando muitas coisas. Mas chegando a
hora não era assim percebi no caminho. Não tinha dinheiro para
comer no caminho. Quando a gente chegou na fronteira ele não
tinha dinheiro para as passagens. Nem a gente tinha dinheiro, eu
e mais 3. A gente ficou na estação de trem esperando...ficamos 2
dias sem comer e beber nada, só água. ”
Menor de idade, cooptado por um agente do tráfico de pessoas, transladado para São
Paulo, trancafiado em seu local de trabalho e trabalhando de 16 a 18h por dia, impedido
de contatar sua família, passou fome, frio, em péssimas condições de acolhida em uma
casa-oficina:
“No primeiro mês eu já estava fazendo planos para fugir. Eu era o
mais rebelde. Meus patrícios todos ficavam calados. No primeiro
mês eu reclamei. Por isso os “donos” me deixaram de lado, eles
me deixaram sozinho, não me deixavam nem almoçar com os
outros”
Ronald narrou toda sua história diante da câmera e diante de mim...por quase duas
horas, chorou, sorriu, sofreu, mas também refletiu, durante aqueles momentos, sobre
pequenas dimensões de seu passado que interligavam sua história com a história de
diversos outros imigrantes bolivianos, com as condições econômicas de seu povo, com
a realidade social da cidade de São Paulo, com a atual situação de imigrantes hoje na
cidade.
Centrando foco na fala, ou seja, na expressão oral do indivíduo e de seu grupo social, o
mecanismo central do método da história oral se torna a escuta. Escuta pensada como
experiência construída para acionar a voz daquele que se expressa e preparar o ouvido
de cada envolvido para escutar. Trata-se de aprender a incentivar a fala de alguém
concomitantemente ao aprendizado e aprimoramento dos mecanismos da própria escuta.
Dessa forma o foco da construção de narrativas históricas e etnográficas por meio da
oralidade desloca a centralidade da produção narrativa, ou seja, transforma aquele que
apenas pesquisava e registrava em um interlocutor, um produtor de conhecimento que
primeiro escutou passivamente e, apenas posteriormente, ocupa o papel de narrador. Do
mesmo modo, aquele que foi convidado a falar inicia sua participação na experiência
como um narrador, alguém que elaborou sua própria fala, organizou pensamentos e
exercitou a experiência da narrativa através da reflexão sobre sua vida e suas ações.
Neste processo fugimos drasticamente da experiência clássica da construção do
conhecimento pelo exercício unilateral de um pesquisador (historiador, o sociólogo ou o
antropólogo) e caminhamos em direção ao exercício de construção de uma narrativa
histórica ou sociológica, a partir de uma interlocução, uma experiência de conexão entre
sujeitos diferentes que revezam papéis na produção de uma narrativa.
Ao valorizarmos a oralidade como forma ativa e cidadã da construção da memória,
emerge a pratica em que contar é compartilhar e compartilhar é construir possibilidades
de consolidar poderes individuais e coletivos de ação, reação e superação de situações
de opressão, miséria, desrespeito ou submissão.
À guisa de conclusão, quanto à história de Ronald, como sujeito migratório, podemos
dizer que, sem dúvida o processo foi de conquistas de direitos políticos e econômicos.
Ronald – que viveu a situação do tráfico humano e da situação de trabalho análogo ao
escravo - superou esta situação conquistando novas possibilidades de sobrevivência
com sua atuação política junto à comunidade boliviana e de seu bairro. Após se
desvencilhar do cativeiro, se reinseriu no trabalho, passou da situação de invisibilidade
para uma visibilidade ativa em direção a construção de uma cidadania insurgente que
reivindica direitos tomando parte da Associação Comercial Brasil-Bolívia. De ativista
da Associação da rua Coimbra – importante rua de estabelecimentos comerciais da
comunidade boliviana – foi eleito Conselheiro Municipal do Conselho Participativo de
São Paulo em 2014 (conselho consultivo de gestão pública vinculado as subprefeituras
da cidade) iniciando um exercício político de representação não apenas de sua
comunidade, mas da cidade como um todo no espaço político. Esta condição lhe
permitiu um novo olhar sobre sua situação de imigrante e sobre suas possibilidades de
participação política na sociedade brasileira. Efetivou-se, um encontro com a política,
ou, ao menos, um encontro com possibilidade de se expressar, de opinar, de propor e
participar de ações conjuntas para melhoria da comunidade local, da convivência entre
bolivianos e brasileiros, da qualidade de vida na cidade.
Projetos Música e Cidadania e As vozes dos músicos.
Um motorista de táxi, após duas mulheres terem dito onde vão, entoa a seguinte
pergunta:
- As senhoras sabem onde estão indo? Lá é uma favela.
A estranheza brotava do endereço: Estrada das Lágrimas, 2317, Heliópolis.
Nós sabíamos onde íamos. Era ele, porém, quem não sabia. Possivelmente, porque seu
conhecimento de Heliópolis viria dos programas sensacionalistas, que não se dedicam a
noticiar a existência de uma grande Orquestra: como é o caso da Sinfônica de
Heliópolis.
A ida era para dar início às entrevistas dos Projetos Música e Cidadania e As vozes dos
músicos.
Essas entrevistas seriam a mediação para a retomada de uma visão da Arte que eclode
na modernidade artística: a de ampliadora de fronteiras simbólicas e permissora da
desautomatização da visão acerca de si mesmo e do outro.
A Sinfônica pertence ao Instituto Baccarelli, localizado em Heliópolis. Esse instituto
oferece formação musical e artística para crianças e jovens em situação de
vulnerabilidade social. Suas ações estendem-se até 1.300 crianças das escolas
municipais da região, no programa Coral da Gente. O percurso de toda e qualquer
criança, que se inicia na musicalização pelo Coral pode chegar à Sinfônica -
dependendo da dedicação.
O regente, Isaac Karabtchevsky, empolgado com o projeto e seu fruto, me diz: “Dentre
todas as artes, não há nenhuma que se aposse do ser humano com maior envolvimento
do que a música. Isso repousa na própria pulsação, nosso ritmo cardíaco, sessenta ou
mais batidas por minuto, e que simboliza o pulsar dos instrumentos de percussão. A
melodia nasce com as cantigas de adormecer e, a partir daí nos acompanha pelo resto de
nossas vidas. Não conheço um brasileiro que seja insensível a esse processo. ”
Essa definição da Música, como intrínseca ao cotidiano, apareceu nas vozes dos 9
músicos da orquestra e nas dos 3 executivos do Instituto.
Uma dessas vozes é a de Marcos M. Araújo, um dos “meninos”, que se transformou em
violoncelista da Sinfônica e hoje é músico na Orquestra Sinfônica de Goiás:
“Eu conheci o Instituto Baccarelli muito cedo, aos 10 anos de idade. E anteriormente a
isso eu não conhecia nada de música, principalmente música clássica. As músicas que
eu costumava ouvir, eram sempre do cotidiano; aqui em Heliópolis, as pessoas ouvem
todo tipo de música. Eu cresci ouvindo samba, forró, todo tipo de música possível. O
que estava na minha cabeça era só isso. Aos 10 anos, conheci o Instituto Baccarelli. Eu
estava na escola, nessa época, na 4ª série, e aí veio um representante do Instituto falar
que estavam abrindo vagas para canto coral. O Instituto estava no início ainda, estava
engatinhando também. Eu me interessei mais por curiosidade. Não tinha o “Ah, vou
estudar música clássica”. Não foi nada bem assim. Foi mais um “Ah, vamos ver o que
que é isso aí”. Fui lá, fiz o teste, cantei um ma-me-mi-mo-mu e passei. Aí comecei a
estudar canto. Era legal. Uns três anos depois, conheci o violoncelo. A gente teve a
oportunidade de começar a estudar instrumentos, mas eram só instrumentos de corda.
Então tinha lá violino, viola, violoncelo e contrabaixo. E quando eu entrei, já tinha um
pessoal que estava há alguns anos, uns dois anos, mais ou menos. Como tinha uma
amiga minha que tocava o violoncelo, eu fiquei curioso pelo tamanho, porque, como eu
não conhecia nada(...) praticamente 90% das crianças da minha época escolheu violino
porque é o mais conhecido, independente se você conhece música clássica ou não. O
violino é o instrumento mais popular. (...) A maioria escolheu violino e eu fiquei
curioso pelo tamanho do violoncelo, porque era uma coisa que nunca tinha visto na
vida. Achei o som curioso por ser mais grave e falei assim: “Nossa! Olha o tamanho
desse violino!!” E aí eu optei pelo violoncelo. ”
Sobre sua origem familiar, valores e a relação com a música, afirma:
“Na minha família, a educação sempre foi rígida. A minha mãe é muito certinha assim
com o criar o filho. Quando eu entrei, lógico, era criança e não tinha a responsabilidade
que eu tenho hoje, mas conforme eu fui conhecendo, fui me familiarizando com o
ambiente, eu já falava: “Não; é uma coisa legal, então eu quero. ” Então juntou essa
vontade com o que eu vim aprendendo. Na mesma época que eu, duas pessoas saíram.
Não porque não gostaram, mas porque os pais pediram para sair, porque tinham que
trabalhar para ajudar em casa também. Porque passavam o dia aqui e a gente não
recebia bolsa na época. Algumas pessoas saíram por esse motivo, infelizmente. E eu sou
muito grato a meus pais porque eles nunca pediram para eu sair. (...) meus pais nunca
chegaram a pedir para eu sair do Instituto para ajudar em casa, pra arrumar um emprego
e ajudar na renda. Hoje, eu sou bolsista aqui, né. Eu recebo pela Sinfônica, pelas aulas
que dou aqui também. Mas assim emprego, emprego mesmo, não. Ainda não tive. ”
Apesar de reconhecer que ficou surpreso em poder ganhar dinheiro com a música, em
outros momentos da nossa conversa, deixa escapar o pré-conceito de que artista não tem
um emprego “verdadeiro”.
Vitório Broetto, o coordenador de acervo musical do Instituto, em sua entrevista,
rememora como essa experiência, iniciada há 19 anos, foi capaz de instaurar um
deslocamento simbólico nas primeiras crianças convidadas a participar do ensino de
música oferecido pelo maestro Sílvio Baccarelli. Relembra, também, como os alunos
que permaneceram no Instituto, desde a primeira experiência, reagiram na chegada ao
auditório do maestro, na Vila Mariana – lugar primeiro do Instituto -, pois apenas
haviam sido informados, pela diretora da escola, de que iriam aprender música:
“Para eles foi uma tremenda surpresa! Eles foram os pioneiros. Eles imaginavam que
iam fazer batucada, que iam tocar surdo, caixa, cuíca, reco-reco... chegou lá, não. Era
uma coisa, um universo completamente diferente. Eu acredito que nenhum deles, até
então, tinha visto um violino. (...) Violoncelo então, nem se fala, porque violoncelo até
as pessoas confundem com o contrabaixo...”
O que ouvimos nessas entrevistas é que a opção pela música clássica não os apartou da
comunidade em que se inserem, ao contrário, ampliou os seus limites musicais. Tamires
Kamisaka nos aponta isso:
“Ah... música clássica só aprendi quando entrei aqui mesmo. Eu não conhecia. Tanto
que o pessoal, lá fora, também não conhece. Poucos conhecem. Se conhecem é porque
tem alguém da família. E música, música, eu ouvia essas que tocam aí fora: forró (meu
pai gosta de forró, ele toca para todo mundo ouvi). Ouvia funk porque Heliópolis inteiro
ouve funk. Sertanejo, essas coisas todas. Eu ouvia bastante. Não que hoje eu não ouça.
Mas hoje a única coisa que ouço é música clássica e música gospel, só. Aí meus
vizinhos colocam umas músicas, a gente respeita e ouve. Sem confusão. ”
E o mesmo pode ser visto na fala de Thaís Sepúlveda de Jesus, trompetista, 20 anos:
“Eu conheci música clássica mesmo entrando no Instituto. Minha vivência com outro
tipo de música foi mais na igreja porque eu fui criada dentro da igreja. Até hoje sou.
Mas na comunidade tem essa cultura, tudo próximo, todo mundo ouve pagode junto
com samba, um vizinho está escutando sertanejo, outro vizinho está escutando forró,
então é uma mistura. Se você entrar lá, pelo menos no final de semana, vai ouvir
cinquenta tipo de músicas, tudo misturado. Mas a música clássica, falam que quem
escuta é uma pessoa de elite. ”
Todos esses registros, e esses não são os únicos aspectos que podem ser apontados,
permitiram reforçar a hipótese de que as formas artísticas interferem na condição dos
sujeitos envolvidos nesses projetos, pois as relações vividas e transmitidas entre os
participantes dessa comunidade, o partilhar de necessidades, a afirmação de valores, a
assunção de perspectivas e ações conjuntas, referidas ao coletivo, ainda que em escala
parcial, inclui, nas palavras dos jovens músicos entrevistados, a ajuda mútua, o convívio
íntimo e amigável e mesmo a assistência informal que se prestam entre si. O usufruto da
convivência e do conhecimento que juntos produzem refunda a comunidade
incessantemente.
Considerações Finais
A guisa de conclusão estes registros, e esses não são os únicos aspectos que podem ser
apontados, permitiram um outro olhar sobre a forma como a cidadania ou a busca pela
cidadania (aqui pensada como as mínimas ações em busca de consolidação do direito à
educação, à cultura, ao trabalho digno, à integração social) interferem na condição dos
sujeitos envolvidos nos casos aqui estudados. A superação de condições do não-direito
e da invisibilidade promove-se pela experiência social de buscar condições melhores de
vida e pela constância participativa no campo afirmativo de projetos [projetos culturais]
ou projetos políticos. A história pessoal atribui sentido as experiências de cada um,
considerando suas singularidades e concomitantemente se soma a uma história coletiva
construída por necessidades de afirmação de direitos e valores sociais apontando para
ascensão de perspectivas e ações conjuntas, referidas ao coletivo, pois, tanto entre os
jovens músicos entrevistados, quanto entre , os representantes imigrantes do Conselho
Participativo da Cidade a ajuda mútua, o convívio, a assistência, a integração produzem
e refundam o sentido da cidadania.