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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO, EXTENSÃO E CULTURA CENTRO DE EDUCAÇÃO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM CIÊNCIA JURÍDICA – CPCJ PROGRAMA DE MESTRADO ACADÊMICO EM CIÊNCIA JURÍDICA – PMCJ ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO MINISTÉRIO PÚBLICO E ACUSAÇÃO: uma aproximação a partir da Hermenêutica Constitucional DAVI DO ESPÍRITO SANTO Itajaí, 28 de abril de 2010

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJA UNIVALI PR-REITORIA DE PESQUISA, PS-GRADUAO, EXTENSO E CULTURA CENTRO DE EDUCAO DE CINCIAS SOCIAIS E JURDICAS - CEJURPS CURSO DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU EM CINCIA JURDICA CPCJ PROGRAMA DE MESTRADO ACADMICO EM CINCIA JURDICA PMCJ REA DE CONCENTRAO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO

MINISTRIO PBLICO E ACUSAO: uma aproximao a partir da Hermenutica Constitucional

DAVI DO ESPRITO SANTO

Itaja, 28 de abril de 2010

UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJA UNIVALI PR-REITORIA DE PESQUISA, PS-GRADUAO, EXTENSO E CULTURA CENTRO DE EDUCAO DE CINCIAS JURDICAS, POLTICAS E SOCIAIS CURSO DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU EM CINCIA JURDICA CPCJ PROGRAMA DE MESTRADO ACADMICO EM CINCIA JURDICA PMCJ REA DE CONCENTRAO: FUNDAMENTOS DO DIREITO POSITIVO

MINISTRIO PBLICO E ACUSAO: uma aproximao a partir da Hermenutica Constitucional

DAVI DO ESPRITO SANTO

Dissertao submetida ao Programa de Mestrado em Cincia Jurdica da Universidade do Vale do Itaja

UNIVALI, como requisito parcial obteno do Ttulo de Mestre em

Cincia Jurdica. Orientador: Professor Doutor Paulo de Tarso Brando

Itaja, 28 de abril de 2010

AGRADECIMENTOS

Agradeo ao Ministrio Publico do Estado de Santa Catarina, Associao Catarinense do

Ministrio Pblico e Universidade do Vale do Itaja Univali, Instituies que foram suportes

fundamentais realizao deste trabalho.

Sou especialmente grato ao meu Orientador Professor Doutor Paulo de Tarso Brando.

Homem de profundo saber jurdico, de inflexvel probidade cientfica e de

contagiante apego aos livros: exemplo que procurei seguir.

Ao Professor Doutor Cesar Luiz Pasold, cujas lies foram fundamentais ao entalhe temtico

apresentado, em especial definio do Campo Poltico da Acusao.

Aos Professores do Curso de Ps-graduao Stricto Sensu em Cincia Jurdica da Univali, que

possibilitaram um campo frtil de debates e estudos; aos meus amigos e alunos e

equipe do Gabinete da 34 Promotoria de Justia da Capital, que direta ou indiretamente

colaboraram para a realizao desta Dissertao, cada qual a seu modo:

muito obrigado!

Aos meus filhos Brbara Beatriz e Otvio Augusto, meu infinito reconhecimento por terem

compreendido as minhas ausncias...

A Mari, minha paixo, sem a qual todo este trabalho teria sido correr atrs do vento...

DEDICATRIA

Para Mari, em quem encontro

refgio e descanso do vento.

Vento um cavalo: ouve como ele corre

pelo mar, pelo cu. Quer me levar: escuta

como ele corre o mundo para levar-me longe.

Esconde-me em teus braos por esta noite erma,

enquanto a chuva rompe contra o mar e a terra sua boca inumervel. Escuta como o vento

me chama galopando para levar-me longe.

Como tua fronte na minha, tua boca em minha boca,

atados nossos corpos ao amor que nos queima, deixa que o vento passe

sem que possa levar-me. Deixa que o vento corra

coroado de espuma, que me chame e me busque

galopando na sombra, enquanto eu, protegido

sob teus grandes olhos, por esta noite s

descansarei, meu amor

(Vento na Ilha, Pablo Neruda).

TERMO DE ISENO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo

aporte ideolgico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do

Vale do Itaja, a coordenao do Programa de Mestrado em Cincia Jurdica, a

Banca Examinadora e o Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca

do mesmo.

Itaja, 28 de abril de 2010

Davi do Esprito Santo Mestrando

PGINA DE APROVAO

SER ENTREGUE PELA SECRETARIA DO PROGRAMA DE MESTRADO EM CINCIA JURDICA DA UNIVALI APS A DEFESA EM BANCA.

ROL DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CP Cdigo Penal Brasileiro

CPP Cdigo de Processo Penal Brasileiro

CRFB/1988 Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988

CC Cdigo Civil

SUMRIO

RESUMO .............................................................................................................. IX

ABSTRACT ........................................................................................................... X

INTRODUO ........................................................................................................ 1

Captulo 1 ................................................................................................................ 6

ACUSAO, PODER PUNITIVO E VERDADE ..................................................... 6 1.1 MINISTRIO PBLICO E ACUSAO ........................................................... 6 1.2 DESOCULTAO DA ACUSAO ................................................................ 9 1.2.1 ELEMENTOS INICIAIS PARA O VIR FALA DA ACUSAO ................................. 13 1.2.2 SISTEMAS SIMBLICOS E ACUSAO ............................................................... 24 1.3 EPISTEMOLOGIA DO CAMPO JURDICO-PENAL E ACUSAO ............. 30 1.3.1 CRIME, CRIMINOSO, PENA E ACUSAO............................................................ 31 1.3.2 FORMAS JURDICAS E ACUSAO .................................................................... 35 1.3.3 O INQURITO CONTEMPORNEO: O SABER-PODER FUNDADO NA PROGNOSE ....... 47

Captulo 2 .............................................................................................................. 55

O CAMPO POLTICO DA ACUSAO ............................................................... 55 2.1 NOVA ECONOMIA, NOVA INSTITUIO, NOVA ACUSAO ................... 55 2.1.1 DOIS MARCOS HISTRICOS DO ESTADO CONTEMPORNEO ................................ 56 2.1.2 SOBRE O ESTADO CONSTITUCIONAL DEMOCRTICO ......................................... 66 2.1.3 UMA PROPOSTA DE CARACTERIZAO DO ESTADO CONSTITUCIONAL CONTEMPORNEO. .................................................................................................. 71 2.1.4 O BRASIL COMO ESTADO DE DIREITO CONSTITUCIONAL DEMOCRTICO ............. 75 2.2 MINISTRIO PBLICO: A (NOVA) INSTITUIO INCUMBIDA DA ACUSAO NO ESTADO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO ........................... 77 2.2.1 UMA DEFINIO DESCRITIVA DE MINISTRIO PBLICO ....................................... 78 2.2.2 UMA DEFINIO PRESCRITIVA DE MINISTRIO PBLICO...................................... 81 2.3 MINISTRIO PBLICO E(M) CRISE ............................................................. 89

Captulo 3 .............................................................................................................. 94

A HERMENUTICA CONSTITUCIONAL COMO ESTRATGIA AO ESTABELECIMENTO DE UMA RAZO ACUSATRIA EMANCIPATRIA ...... 94 3.1 O SINAL DE CAIM: A TRAGDIA DA ACUSAO .................................. 94 3.2 A FUNO ESSENCIAL DO MINISTRIO PBLICO PS 1988 NO CAMPO PENAL .................................................................................................................. 98 3.3 VERDADE ACUSATRIA E INTERPRETAO ......................................... 102 3.3.1 O PARADIGMA METAFSICO-REPRESENTACIONAL DA ACUSAO ...................... 103 3.3.2 ACUSAO E O EMPREGO DO MTODO DOGMTICO ......................................... 109 3.4 VERDADE ACUSATRIA E HERMENUTICA CONSTITUCIONAL .......... 118

3.5 PROBIDADE ACUSATRIA E INTERPRETAO ..................................... 124 3.6 DA RAZO ACUSATRIA INDOLENTE RAZO ACUSATRIA EMANCIPATRIA .............................................................................................. 127

CONSIDERAES FINAIS ................................................................................ 134

REFERNCIA DAS FONTES CITADAS ............................................................ 139

RESUMO

Esta Dissertao tem por objeto de estudo a Acusao

criminal, cuja formulao foi consignada de forma destacada entre as atribuies

institucionais do Ministrio Pblico outorgadas pela Constituio da Repblica

Federativa do Brasil de 1988. No Relatrio de Pesquisa abre-se uma conversao

hermenutica sobre a Acusao, delineando-se alguns conceitos essenciais sua

pr-compreenso. Tambm so destacadas as relaes existentes entre a

Acusao e os sistemas simblicos: as percepes ou imagens sociais do Poder

Punitivo que a estruturam e concomitantemente so por ela estruturadas.

Perquire-se, ainda, sobre o modo como a Acusao se forma, analisando-se o

entrelaamento entre os hbitos de produo de consensos criminolgicos e as

formas jurdicas de reconhecimento de verdades. Num exame crtico, aborda-se o

paradigma de Acusao dominante e as suas conseqncias na prxis acusatria

do Ministrio Pblico brasileiro. Como resultado da reflexo, prescreve-se um

modelo de Acusao no-autoritria, que seja capaz de estabelecer-se com base

no discernimento e reconhecimento da Verdade Acusatria pelo caminho da

Hermenutica Constitucional (razo acusatria emancipatria). Quanto

metodologia, utilizou-se na Investigao, o Mtodo Indutivo; no Tratamento de

Dados, o Mtodo Cartesiano e, no Relatrio dos Resultados, a base lgica a

Indutiva, com o apoio das Tcnicas do Referente, da Categoria, do Conceito

Operacional e da Pesquisa Bibliogrfica. O tema proposto se enquadrou na linha

de pesquisa Hermenutica e Principiologia Constitucional, tendo como rea de

concentrao Fundamentos do Direito Positivo.

Palavras-chave: Acusao; Constituio; Hermenutica

Constitucional; Ministrio Pblico; Poder Punitivo; Razo Acusatria

Emancipatria; Sistema Penal; Verdade Acusatria.

ABSTRACT

The object of study of this Dissertation is the Criminal

Accusation, the formulation of which was markedly consigned to the institutional

attributions of the Public Prosecution Service, granted by the 1988 Constitution of

the Federal Republic of Brazil. The report opens up a hermeneutic conversation

on the subject, outlining some essential concepts about its preliminary

understanding. It also highlights the relationships between Accusation and the

symbolic systems: the perceptions or social images of the Punitive Power that

structure the Accusation and, at the same time, are structured by it. It formulates

questions on the way in which the Accusation is formed; and the interconnections

between habits of production of criminological consensus and the legal forms of

recognition of truths. In a critical examination, it addresses the dominant paradigm

of Accusation and its consequences in the accusatory praxis of the Brazilian

Public Prosecution Service. As a result of this reflection, a model of non-

authoritarian Accusation is proposed that is capable of establishing itself in a new

basis for discernment and recognition of the accusatory truth by Constitutional

Hermeneutics (emancipatory accusatory reason). In terms of methodology, this

Investigation uses the Inductive Method; for the Data treatment it uses the

Cartesian Method, and in the Report of the Results, the logical basis used is the

inductive one, supported by the Techniques of Referent, Category, Operating

Concept and Bibliographic Research. The proposed theme comes under the line

of research Hermeneutics and Constitutional Principiology and its area of

concentration is Bases of Positive Law.

Key-words: Accusation; Constitution; Constitutional

Hermeneutics, Public Prosecution Service, Emancipatory Accusatory Reason;

Penal System; Accusatory Truth.

INTRODUO

O ttulo que foi escolhido para este Relatrio de Pesquisa

Ministrio Pblico e Acusao: uma aproximao a partir da Hermenutica

Constitucional tem a ver com os questionamentos acumulados em quase vinte

anos de atuao como profissional da acusao e em praticamente doze de

magistrio das disciplinas Direito Penal Parte Geral e Parte Especial no Curso

Preparatrio para Ingresso na Carreira do Ministrio Pblico da Escola de

Preparao e Aperfeioamento do Ministrio Pblico de Santa Catarina. So

questes que provm de experincias e observaes de realidades

aparentemente distintas: o mundo forense, da aplicao da lei penal (dos

processos e inquritos, dos julgamentos pelo jri, das condenaes e

absolvies) e o mundo dos concurseiros (das aulas, dos livros, das apostilas,

dos exemplos). No primeiro parece predominar o prtico sobre o terico e, no

segundo, o inverso. Todavia, a pertena aos dois universos demonstrou que a

fronteira entre ambos no to definida.

De um lado, na sala de aula de um curso preparatrio, por

necessidade imposta pelo padro marcadamente dogmtico dos processos

seletivos de acesso s carreiras jurdicas, so homologados entre professor e

alunos os significantes e os significados que permanecero como verdades no

imaginrio dos futuros promotores de justia; de outro, no frum criminal corre-se

o risco de assumir como verdades absolutas as doxas propagadas tanto na

faculdade de direito quanto nos cursos preparatrios. Existe nos dois ambientes

uma constelao de compromissos que expressa mediante o compartilhamento

da mesma matriz disciplinar pelos participantes de um grupo de especialistas.1

1 Sobre os paradigmas como a constelao dos compromissos de grupo vide: KUHN, Thomas S.

A estrutura das revolues cientficas. 9. ed. Traduo de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. So Paulo: Perspectiva, 2005, p. 228.

Esta posse comum de conceitos (generalizaes simblicas) e de exemplos

pelos membros de uma comunidade de profissionais e bacharis em direito tem o

potencial de determinar o que pode e o que no pode ser aceito no campo penal.

2

Assim, como o Sistema Penal se alimenta desta matriz e,

ao mesmo tempo, retroalimenta os saberes penais, cria-se um crculo nada

virtuoso, propagador de certo modo de ver, de pensar e de (re)legitimar o direito

penal e, conseqentemente, a Acusao2

Os trs captulos do Relatrio obedecem a certa ordem de

abordagem de vrios aspectos desta questo, correspondentes aos momentos

reflexivos da pesquisa realizada. O primeiro momento foi de caracterizao da

Acusao e de descoberta das implicaes dos hbitos de conhecimento que a

condicionam; o segundo, de desencobrimento de seu projeto poltico; e o terceiro,

de abertura sua reinveno hermenutica. Procurou-se, por meio da

Dissertao, um encontro com o tema mediante definies sucessivas, descendo

a camadas mais profundas a cada passo.

. Da provm a seguinte interrogao:

haver algo que emancipe a Acusao desta razo viciosa?

O seu objetivo institucional a obteno do ttulo de Mestre

em Cincia Jurdica pelo Programa de Mestrado em Cincia Jurdica da Univali.

O seu objetivo cientfico geral a realizao de um exame

crtico do modelo de Acusao acolhido na prtica pelo Ministrio Pblico

brasileiro e demonstrar que esta prxis no corresponde ao paradigma traado

para a Instituio na Constituio da Repblica de 1988. De modo especfico,

pretende-se apontar para uma possvel (e necessria) mudana de modelo

autoritrio de atuao institucional para outro que constitua fator limitador do

Poder Punitivo estatal, assegurador dos Direitos Fundamentais, regulado pela

filtragem constitucional da Acusao (razo acusatria emancipatria).

Para tanto, encontra-se no Captulo 1, uma abertura

conversao hermenutica sobre a Acusao, propondo-se uma observao mais

profunda sobre a sua relao com o Poder Punitivo. O exerccio sugerido , na

sua essncia, um pensar hermenutico. So relacionadas e trabalhadas

conceitualmente algumas categorias estratgicas que devem ser pr-

2 A categoria Acusao tem, neste Relatrio de Pesquisa, o sentido de imputao formal, ou

seja, de apresentao escrita ou oral das infraes de algum perante um juiz criminal competente. Vide item 1.2.

3

compreendidas para que se chegue a uma compreenso preliminar de Acusao

(Poder, Poder Social, Poder Poltico, Poder Punitivo e, incidentalmente, outras

categorias que lhes sejam inerentes). Discutem-se, em seguida, as relaes

existentes entre os sistemas simblicos e a Acusao, pois no possvel

dissoci-la das percepes ou imagens sociais do Poder Punitivo. Com efeito, a

Acusao estruturada a partir de estruturas prvias de Poder e ,

simultaneamente, estruturante, pois d fundamento a tais estruturas,

estabelecendo bases de conformidade na persecuo penal. Depois disso, so

analisados os modelos de conhecimento que ditam os sentidos interpretativos do

campo jurdico-penal: o paradigma criminolgico dominante (que atua como forma

de produo de consensos sobre crime, criminoso e pena), e tambm o Inqurito

(tcnica judiciria de estabelecimento e reconhecimento de verdades). Por fim,

perquire-se sobre o modo como a Acusao se forma pelo entrelaamento destes

modos de saber, na conjuntura jurdico-penal brasileira, pela unio do Inqurito

com a ideologia da defesa social.

A anlise empreendida no primeiro Captulo projeta-se do

plano epistemolgico para o campo poltico da Acusao, tendo como foco

algumas investigaes preliminares a respeito das categorias Estado

Contemporneo e Ministrio Pblico. Toma-se como ponto inicial do Captulo 2,

essencialmente, a caracterizao de Estado Contemporneo conectando-o com o

a proposta temtica apresentada neste Relatrio. Quanto Instituio Ministrio

Pblico, analisa-se a sua relao direta com os fins do Estado (sua funo social),

partindo do texto da Constituio da Repblica de 1988, destacando-se os seus

elementos conceituais descritivos e prescritivos.

No Captulo 3 a idia de provocar um debate aberto sobre a

Acusao se acentua, a comear pela retomada do mito da primeira Acusao, o

qual, atravs dos seus questionamentos implcitos, permite que se evidencie a

tragdia acusatria. Demarca-se, a partir da percepo do trgico da Acusao, o

campo de atuao do Ministrio Pblico ps 1988 em sede penal: a Instituio

deve erigir-se em barreira de conteno que possibilite apenas a passagem do

Poder Punitivo de menor irracionalidade. No desdobramento deste Captulo,

discute-se sob a rubrica paradigma metafsico-representacional da Acusao

4

tradicional as crenas coletivas e compromissos compartilhados pela

comunidade jurdica a elas relativos. No plano terico, abre-se tambm um debate

sobre a (in)segurana do mtodo dogmtico, isoladamente considerado, para o

estabelecimento da Verdade Acusatria. Exsurge a necessidade de se buscar um

habitus alternativo para aquisio de discernimentos e reconhecimento da

Verdade Acusatria; aponta-se, em resposta, como caminho possvel, o da

hermenutica constitucional. A Verdade Acusatria deve-se formar na

conformidade da Constituio, sem a qual no haver probidade acusatria.

Finalmente, prope-se uma tomada de conscincia e uma atitude: a reinveno

da Acusao pelo abandono da razo acusatria indolente e o estabelecimento

de estratgias para uma razo acusatria emancipatria.

O presente Relatrio de Pesquisa se encerra com as

Consideraes Finais, nas quais so apresentados pontos conclusivos

destacados, seguidos da estimulao continuidade dos estudos e das reflexes

sobre a Acusao, Ministrio Pblico e Sistema Penal no Estado Constitucional

Democrtico.

Para a presente Dissertao foram levantadas as seguintes

hipteses:

a) supe-se que a Acusao esteja associada s

percepes e imagens sociais do Poder Punitivo e que, como tal, seja estruturada

a partir de estruturas prvias de Poder e, simultaneamente, seja estruturante, isto

, sirva de fundamento a tais estruturas, estabelecendo, assim, bases de

conformidade na persecuo penal;

b) supe-se que a Acusao se forme pelo entrelaamento

do paradigma criminolgico dominante com a tcnica judiciria de

estabelecimento de verdades no campo jurdico (o Inqurito);

c) supe-se que, no desenho estrutural do Ministrio Pblico

brasileiro, traado pela Constituio da Repblica de 1988, a instituio tenha

sido situada em posio privilegiada em relao s demais Agncias do Sistema

Penal, com a incumbncia de realizar a Acusao constitucional, que tem duplo

5

aspecto: (1) a promoo privativa da ao penal pblica; e (2) a funo de

conteno do exerccio do Poder Punitivo; e

d) supe-se que uma Acusao no-autoritria possa

resultar de um habitus alternativo ao paradigma metafsico representacional da

Acusao tradicional, qual seja: o da aquisio de discernimentos e

reconhecimento da Verdade Acusatria pelo caminho da hermenutica

constitucional.

Quanto Metodologia empregada, registra-se que, na Fase

de Investigao3 foi utilizado o Mtodo Indutivo4, na Fase de Tratamento de

Dados o Mtodo Cartesiano5

Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as

Tcnicas do Referente

, e, o Relatrio dos Resultados expresso na presente

Monografia composto na base lgica Indutiva.

6, da Categoria7, do Conceito Operacional8 e da Pesquisa

Bibliogrfica9

3 [...] momento no qual o Pesquisador busca e recolhe os dados, sob a moldura do Referente

estabelecido[...]. PASOLD, Cesar Luiz. Prtica da Pesquisa jurdica e Metodologia da pesquisa jurdica. 10 ed. Florianpolis: OAB-SC editora, 2007. p. 101.

.

4 [...] pesquisar e identificar as partes de um fenmeno e colecion-las de modo a ter uma percepo ou concluso geral [...]. PASOLD, Cesar Luiz. Prtica da Pesquisa jurdica e Metodologia da pesquisa jurdica. p. 104.

5 Sobre as quatro regras do Mtodo Cartesiano (evidncia, dividir, ordenar e avaliar) veja LEITE, Eduardo de Oliveira. A monografia jurdica. 5 ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 22-26.

6 [...] explicitao prvia do(s) motivo(s), do(s) objetivo(s) e do produto desejado, delimitando o alcance temtico e de abordagem para a atividade intelectual, especialmente para uma pesquisa. PASOLD, Cesar Luiz. Prtica da Pesquisa jurdica e Metodologia da pesquisa jurdica. p. 62.

7 [...] palavra ou expresso estratgica elaborao e/ou expresso de uma idia. PASOLD, Cesar Luiz. Prtica da Pesquisa jurdica e Metodologia da pesquisa jurdica. p. 31. As categorias estratgicas foram destacadas neste Relatrio pelo uso da inicial maiscula.

8 [...] uma definio para uma palavra ou expresso, com o desejo de que tal definio seja aceita para os efeitos das idias que expomos [...]. PASOLD, Cesar Luiz. Prtica da Pesquisa jurdica e Metodologia da pesquisa jurdica. p. 45.

9 Tcnica de investigao em livros, repertrios jurisprudenciais e coletneas legais. PASOLD, Cesar Luiz. Prtica da Pesquisa jurdica e Metodologia da pesquisa jurdica. p. 239.

Captulo 1

ACUSAO, PODER PUNITIVO E VERDADE

1.1 MINISTRIO PBLICO E ACUSAO

O significante Ministrio Pblico empregado no texto da

Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988, para designar a

instituio permanente, essencial funo jurisdicional do Estado incumbida da

defesa da ordem jurdica, do regime democrtico e dos interesses sociais e

individuais indisponveis 10 resultou de um importante processo redefinitrio,

indicativo de opes poltico-ideolgicas ajustadas ao Princpio Republicano11

Na Constituio de 1988, o Ministrio Pblico no foi

apresentado Sociedade Civil Brasileira como um novo perfil de uma velha

Instituio, mas sim como uma nova Instituio moldada para uma nova

economia

.

Sem dvida, isto foi decorrncia do processo de democratizao do Pas, num

reconhecimento crescente, em especial na histria republicana recente, da

necessidade da existncia de uma instituio, no mbito do Estado, capaz no

somente de fiscalizar a aplicao da Lei, como tambm de impulsionar o prprio

Estado consecuo de seus fins sociais.

12

10 CRFB, art. 127, caput.

: o Estado Constitucional Democrtico. A nova realidade poltica,

voltada promoo dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurana, o

11 Acerca da categoria Princpio Republicano, caracterizada como valor que conforma todo o ordenamento jurdico, pautada na construo do espao pblico a partir do Interesse da Maioria, vide: CRUZ, Paulo Marcio; SCHMITZ, Srgio Antnio. Sobre o Princpio Republicano. Novos Estudos Jurdicos, Itaja, v. 13, n. 1, p.43-54, jun. 2008. Semestral. Disponvel em: . Acesso em: 12 set. 2009.

12 Emprega-se aqui a palavra economia no seu sentido etimolgico grego (com significado derivado de e significante de sua transliterao okonoma), de organizao da casa, isto , o estabelecimento de uma ordem que impera no arranjo das partes de um conjunto (cf. CUVILLIER, Armand. Pequeno Vocabulrio da Lngua Filosfica. Traduo e adaptao de Llio Loureno de Oliveira e J. B. Damasco Pena. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1961, p. 46). Os contornos constitucionais desta nova ordem sero esboados no Captulo 3 deste Relatrio de Pesquisa.

7

bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justia como valores supremos de

uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia

social (...) 13

Entre o Ministrio Pblico ps 1988 e as suas instituies

primignias as antigas Procuradorias da Coroa, da Fazenda ou do Rei, no

Reino de Portugal (cuja existncia se registra a partir do ano 1289), os Gens du

Roi, fuso das figuras dos Advocats du Roi e do Procureurs du Roi (referidos nos

documentos jurdicos franceses a partir de 1302), da Procuradoria dos feitos da

Coroa, Fazenda e Fisco, no Brasil colonial (rgo mencionado no Alvar de 7 de

maro de 1609 para oficiar junto ao Tribunal de Relao da Bahia) remanesceu,

como caracterstica comum, a incumbncia fiscalizatria. Este trao foi assimilado

pela matriz do Ministrio Pblico republicano brasileiro, ao longo de sua histria,

por derivao imprpria, mediante a mudana de sua categoria poltica, isto , o

que antes representava a fiscalizao ou defesa dos interesses da Coroa ou do

Estado transmudou-se em atividade fiscalizadora voltada defesa dos interesses

individuais indisponveis e os da Sociedade.

, reclamou o remapeamento da organizao jurdico-institucional

brasileira. Neste contexto de renovao, a Lei Maior no estabeleceu o Ministrio

Pblico apenas com a atribuio provocativa da funo jurisdicional, nos moldes

clssicos, mas, acima de tudo, outorgou-lhe um feixe de funes jurdicas, tanto

de mbito penal quanto extrapenal, reprogramador de seu papel institucional,

para o enfrentamento dos desafios da ordem jurdica que se instalava, visando

precipuamente a efetividade dos Direitos Fundamentais da Pessoa.

14

13 CRFB, Prembulo.

14 Tanto as Procuradorias da Coroa quanto os Gens du Roi, alm de no configurarem instituies de defesa da Sociedade (idia que somente surgir muito tempo depois, associada ao nome Ministrio Pblico), subsistiram por vrios sculos exercendo inmeras funes de defesa dos interesses reais. A idia era que defendessem os interesses do rei de forma ampla e, por isso, em sentido lato, mais tarde, foram chamados ministros pblicos, ao lado dos juzes, dos embaixadores e de todos os que foram incumbidos pelo monarca de alguma misso como representante do Estado. Thomas Hobbes emprega a expresso ministros pblicos neste sentido, referindo-se aos que trabalhavam para satisfao das expectativas do poder real e absoluto. Vide a aluso feita em: HOBBES, Thomas. Leviat. Traduo de Alex Marins. 2. ed. So Paulo: Martin Claret, 2001, p. 179). Sobre as origens do atual Ministrio Pblico vide: MAZZILLI, Hugo Nigro. Manual do Promotor de Justia. 2 ed. So Paulo: Saraiva, 1991, p. 1-5); LYRA, Roberto. Teoria e Prtica da Promotoria Pblica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor em co-edio com Escola do Ministrio Pblico do Rio Grande do Sul, 1989, p. 17-23; SIQUEIRA. Elizabeth Madureira. PAIO, Ilza Dias. Ministrio Pblico do Estado do Mato Grosso: trajetria histrica. Cuiab: Entrelinhas, 2009, p.23-25; BRNING, Raulino Jac.

8

O modelo constitucional de Ministrio Pblico, desenhado

em 1988, agrupou entre as funes da Instituio a de promover, privativamente,

a ao penal pblica, na forma da lei 15

Entre o que est descrito e o que ocorre no mundo prtico,

entretanto, h uma enorme discrepncia. O fato de ter sido prescrito na

Constituio um novo modelo de Acusao no trouxe (nem poderia trazer

isoladamente, sem intensificao da vontade do rgo acusador) todas as

mudanas necessrias constitucionalizao da forma de acusar.

, situando-a em posio privilegiada entre

as Agncias do Sistema Penal. Este destaque se deve, certamente, ao lugar

elevado reservado atividade acusatria no conjunto das funes estatais

conferidas Instituio. H uma acepo nova de Acusao que desborda do

sentido comum de incriminao de algum. Tal entendimento se mostra tanto

pelo plano de equivalncia existente entre as funes institucionais no-penais

(CRFB, art. 129, incisos II, III, IV, V, VI, IX) e penais (incisos I, VII e VIII) quanto

pelo vnculo de integridade que h entre elas, uma vez que esto todas, com igual

fora, implcitas na incumbncia genrica de defesa da ordem jurdica, do regime

democrtico e dos interesses sociais e individuais indisponveis (CRFB, art. 127,

caput). A natureza das funes conferidas ao Ministrio Pblico permite que se

conclua que o seu encargo constitucional vai muito alm de uma legitimao ativa

para propositura de uma ao penal. Faz pensar numa espcie de Acusao

protetora, capaz de assegurar o exerccio limitado do Poder Punitivo estatal.

preciso mais do que simplesmente o texto. Deve-se

reinventar a Acusao. O desafio atual da Instituio responsvel pela Acusao

criminal o de se tornar acusadora responsvel pela concretizao dos Direitos

Humanos no Sistema Penal. No h para tanto um caminho previamente traado.

Existe, porm, o recurso orientao reflexiva: o apelo ao pensar sobre a

modificao do ambiente, sobre a mudana da configurao do Estado, com a

Histria do Ministrio Pblico Catarinense. Florianpolis: Habitus, 2002; MACHADO, Antnio Cludio da Costa. A interveno do ministrio pblico no processo civil brasileiro. 2 ed. revista e atualizada, So Paulo: Saraiva, 1998, p. 09-21.

15 CRFB, art. 129, inciso I.

9

esperana de que se aguce a percepo da comunidade jurdica acerca das

prticas acusatrias anacrnicas.16

A reflexo proposta aponta, pois, para a necessidade de se

adotar uma postura rebelde, no conformista, de rompimento com a ordem

epistemolgica vigente e de simultnea amarrao da atividade acusatria meta

de construo de uma nova ordem social. A Constituio da Repblica de 1988

situou o Ministrio Pblico no centro deste processo revolucionrio ao coloc-lo

no corao do paradigma acusatrio-constitucional. Mas preciso, para tanto,

antes, que sejam compreendidos os novos aspectos da Acusao.

1.2 DESOCULTAO DA ACUSAO

O termo Acusao empregado na legislao processual

penal brasileira basicamente em dois sentidos: o primeiro para indicar a prpria

imputao (a apresentao escrita ou oral das infraes, a denncia) e o segundo

para referir-se parte processual (o autor da ao penal, o rgo que

desempenha a atividade de acusao em juzo, em oposio defesa).17

16 BRANDO, Paulo de Tarso. Aes Constitucionais Novos Direitos e Acesso Justia.

2 ed. revista e ampliada. Florianpolis: OAB/SC Editora, 2006, p. 30: Por vezes, devido falta de perscrutar essas circunstncias, o operador do Direto torna-se um autmato incapaz de perceber a modificao do ambiente determinada, por exemplo, pela mudana da configurao do Estado , o que faz com que ele ou continue a operar com institutos que j no tenham razo para existir ou que j no mais justifiquem a mesma forma de operao, ou, de outro lado, atue de forma a no dar ao instituto a possibilidade de operar com toda a sua potencialidade.

17 No Cdigo de Processo Penal Brasileiro a palavra acusao aparece 43 vezes; 24 referindo-se apresentao em juzo, oral ou escrita, da infrao imputada ao acusado e 19 vezes como aluso parte processual que desempenha a atividade para demonstrar a procedncia da denncia ou da queixa. Etimologicamente, palavra acusao deriva do substantivo latino accusatio, cuja raiz caus- tem significado de base ligado as idias de causa, motivo, razo, propsito. Em latim, o substantivo causa tem este primeiro significado. O vocbulo accusatio, assim como a forma verbal accusare da qual ele provm, formou-se do acrscimo da partcula ad- raiz caus-, prefixo que carrega a idia de aproximao (em direo de, para, para perto), ao contrrio de ab- que traz a noo de afastamento. Na formao palavras ad-causatiuus e ad-causare, por razes fonticas, ocorreu a alterao da letra d da partcula ad- na primeira consoante da raiz caus-, de onde resultou a duplicao da consoante c (accusatio, accusare). Accusatio a ao de acusar, o ato apontar a causa, dar a razo de. Em latim, lngua que em que os substantivos se declinam por casos, o acusativo (accusativus) o caso que serve para indicar o regime direto dos verbos transitivos. o caso nominal que se orienta no sentido de referenciar, designar, o objeto direto destes verbos. Com estes sentidos implcitos a palavra accusatio passou a ser empregada na linguagem jurdica romana, no sentido de promover um processo, uma questo, um litgio. Neste sentido: DOCKHORN, Nestor. Curso de lngua latina para o direito. In: Curso de Extenso Universitria para os alunos da Faculdade de

10

Neste Relatrio ser examinada somente a primeira

acepo da palavra. Em torno do conceito fundamental de Acusao, no sentido

de imputao, se agrupam questes decisivas do Sistema Penal ligadas

diretamente aos limites jurdicos do exerccio do Poder Punitivo do Estado.

Apesar da aparente clareza de significado existe, contudo, uma rea de sombra

que se estende sobre a Acusao-imputao, cuja extenso dada pela

amplitude e conformao histrica do Sistema Penal, que ora ofusca ora oculta

totalmente estes limites, favorecendo assim as arbitrariedades do Poder Punitivo.

A descoberta destes limites pressupe a predisposio do

intrprete-descobridor busca, isto , que haja nele a vontade de desocultar a

Acusao. Desocultar perquirir e implica, por parte de quem indaga, uma

reorientao comportamental e abertura ao novo.18

Essencialmente, interpretar a Acusao tambm um

exerccio de produo de verdade, no sentido de descoberta, tal como props

Gadamer, invocando o significado da palavra grega (transliterao: altheia)

19, como j o fizera, antes dele, Heidegger.20

Interpretar , no sentido gadameriano, des-cobrir instncias

portadoras de verdade, nas questes decisivas da vida, que no sejam as

balizadas pelos limites da especializao cientfica e da investigao

metodolgica

21

Direito da FGB, 1., 2004, Volta Redonda. Apostila. Volta Redonda: Faculdades Integradas Geraldo Di Biase, 2004, p. 7; KOEHLER, H.. Pequeno Dicionrio Latino Portugus. 11. ed. Rio de Janeiro: Globo, 1952, p. 12 (verbetes: accusatio, accusator, accusatrie, accusatrius, accuso).

. Para que se fale de verdade sobre a Acusao necessrio sair

18 Desocultar , tambm, um observar diferente, voltado comunicao como assevera ROCHA, Leonel Severo. In Interpretao Jurdica e Racionalidade. Revista Seqncia, Florianpolis, v. 1, n. 35, p.16-24, dez. 97. Disponvel em: . Acesso em: 10 ago. 2009: Observar produzir informao. A informao est ligada comunicao. A problemtica da observao do direito deve ser relacionada com a interpretao jurdica. Para se observar diferentemente preciso ter-se poder. A principal caracterstica do poder ser um meio de comunicao encarregado da produo, controle e processamento das informaes.

19 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Mtodo II: complementos e ndice. Traduo de Enio Paulo Giachini; reviso da traduo de Marcia S Cavalcante Schuback. 3. ed. Petrpolis: Vozes; Bragana Paulista: Editora Universitria So Francisco, 2007, p. 59-60.

20 HEIDEGGER, Martin. Parmnides. Traduo de Srgio Mrio Wrublevski; reviso de Renato Kirchner. Petrpolis: Vozes, 2008, p. 35-46.

21 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Mtodo II: complementos e ndice, p. 59.

11

do praxismo de gabinete, do tecnicismo dogmtico que inviabiliza o aparecimento

(desvelamento) da Acusao. Verdade uma desocultao que vem, de forma

exclusiva, na demonstrao discursiva, fazendo com que o desocultado seja

posto vista.22 uma atitude contradiscursiva, portanto; um discurso oposto ao

discurso da ocultao, dirigido a uma observao diferente, mais profunda, da

relao existente entre Acusao (o ato de acusar, imputar) e o Poder Punitivo.

Cuida-se de uma observao de segundo grau, que envolve a releitura dos

agenciamentos semiticos do Poder Punitivo a partir das suas bases, indagando-

se sobre os discursos histricos e hegemnicos que legitimaram e legitimam o

seu exerccio.23

Para se descobrir a Acusao preciso abrir sobre ela uma

conversao hermenutica na qual ela possa vir fala (permitir que ela aparea

no discurso e ganhe sentido). Qualquer conceito somente vem fala ao ser

questionado e ao responder, isto , quando pode ser reconvertido em linguagem

num processo dialgico. Este processo dialgico denominado por Gadamer de

conversao hermenutica, que pressupe, alm da existncia de interlocutores

dispostos comunicao, algumas predisposies como a posse (ou criao) de

uma linguagem que permita a comunicao, a alteridade (abertura para ouvir o

outro) e o acordo sobre uma questo estabelecida na prpria conversao.

24

Esse no um processo de ajustamento de ferramentas, e muito menos podemos dizer que os companheiros de dilogo se

22 Conforme GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Mtodo II: complementos e ndice, p. 60, pr

vista deixar com que o objeto se revele. Em grego clssico apophano, verbo formado pela unio da preposio apo- que indica origem ao verbo phano, que significa fazer brilhar, fazer visvel, fazer aparecer, fazer perceptvel, fazer conhecer, apontar, denunciar etc., tem o sentido, de dar a conhecer, declarar. Vide: PEREIRA, Isidro. Dicionrio Greco-Portugus e Portugus-Grego. 6. ed. Porto: Livraria do Apostolado da Imprensa, 1984, p. 77 (verbete: apophano).

23 WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 19: A semiologia do poder pretende analisar a significao como instrumento de controle social, como estratgia normalizadora e disciplinar dos indivduos, como frmula produtora do consenso, como estgio ilusrio dos valores de representao, como fetiche regulador da interao social, como poder persuasivo provocador de efeitos de verossimilhana sobre as condies materiais da vida social, com fator legitimador do monoplio da coero e como fator de unificao do contraditrio exerccio do poder social.

24 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Mtodo I: traos fundamentais de uma hermenutica filosfica. 10. ed. Traduo de Flvio Paulo Meurer; reviso da traduo de Enio Paulo Giachini. Petrpolis: Vozes, 2008, p. 473-493. Ttulo original: Warheit und methode.

12

adaptam uns aos outros. Antes, medida que consegue dar-se a conversao no um mero confronto e imposio do ponto de vista pessoal, mas uma transformao que converte naquilo que comum, na qual j no se mais o que se era. 25

Em outras palavras, Acusao comear a aparecer

(discursivamente) no momento em que se (quiser) quebrar o silncio a seu

respeito. Levando-se em conta que a experincia hermenutica universal, pois

no se pode excluir nenhum campo do conhecer humano do modo hermenutico

de experimentar

26, visto que a linguagem se constitui na caracterstica

fundamental do ser-no-mundo (a forma de constituio de mundo que tudo

abarca) 27

Em princpio, quem quer compreender um texto deve estar disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa. Por isso, uma conscincia formada hermeneuticamente deve, desde o princpio, mostrar-se receptiva alteridade do texto. Mas essa receptividade no pressupe uma neutralidade com relao coisa nem tampouco um anulamento de si mesma; implica antes uma destacada apropriao das opinies prvias e preconceitos pessoais. O que importa dar-se conta dos prprios pressupostos, a fim de que o texto possa apresentar-se em sua alteridade, podendo assim confrontar sua verdade com as opinies pessoais prvias.

, ento a Acusao que se d a conhecer , tambm, linguagem. No

h como conhec-la seno questionando-a (e questionando-se) dialogicamente,

devendo o intrprete mostrar-se receptivo sua alteridade, o que no significa

neutralidade ou auto-anulao, como explica Gadamer:

28

A compreenso de qualquer texto deve se originar num

projeto prvio de interpretao, no qual se esboa um sentido do todo. Para tanto

o intrprete l o texto partindo de certas expectativas, com a perspectiva de um

25 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Mtodo I: traos fundamentais de uma hermenutica

filosfica. p. 493. 26 DUQUE, Joo. Da hermenutica dos limites aos limites da hermenutica: para uma leitura

crtica de Gadamer. In REIMO, Cassiano (Org.). H.-G. Gadamer: Experincia, Linguagem e Interpretao - Colquio. Lisboa: Universidade Catlica Editora, 2003, p. 76.

27 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Mtodo II: complementos e ndice. p 255. 28 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Mtodo I: traos fundamentais de uma hermenutica

filosfica. p. 358.

13

sentido final predeterminado. Posteriormente, revisar a sua compreenso, na

medida em que penetra no sentido do que est lendo. Evidentemente, aquele que

pretende compreender deve estar disposto exposio a erros de opinies

preliminares, que so aquelas conjecturas que acabam no se confirmando.

Todavia, isto no quer dizer que o projeto prvio de compreenso possa ser

arbitrrio, fundado em opinies inadequadas ao objeto a ser compreendido. Trata-

se de um desenho geral, com antecipaes de sentido que mantenham uma

conexo mnima com o que se pretende interpretar. Ao mesmo tempo, tais

opinies prvias sujeitam-se a exame e reviso de sua legitimao (origem e

validez). 29

Por isso, para a abertura de uma conversao

hermenutica sobre a Acusao, se faz necessrio o levantamento das categorias

gerais que podem servir como elementos de antecipao de sentido e,

concomitantemente, escapem ao circuito fechado das opinies prvias,

permitindo a alteridade, o questionamento, em todo o processo de compreenso.

1.2.1 Elementos iniciais para o vir fala da Acusao

O incio de uma conversao hermenutica sobre Acusao,

na qual se espera que ela venha fala, presume um levantamento preliminar

das categorias doutrinrias e pragmticas relacionadas ao Poder Punitivo. A

escolha desta associao conceitual no se d arbitrariamente e sim em virtude

da pr-compreenso que a Acusao se destina ao exerccio do Poder Punitivo.

Em suma, para compreender a Acusao preciso pr-compreender as relaes

de poder que determinam a sua existncia.

Nessa linha de pensamento, podem ser destacadas e

conceituadas as seguintes categorias estratgicas compreenso da Acusao:

Poder, Poder Social, Poder Poltico, Poder Punitivo e, incidentalmente, outras

categorias que lhes sejam inerentes.

29 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Mtodo I: traos fundamentais de uma hermenutica

filosfica. p. 356.

14

Estes elementos sero arrolados adiante sem que se tenha

a pretenso de estabelecer sobre eles conceitos completos e acabados

(constituem apenas opinies prvias de contedo). So destacados como traos

indicativos necessrios compreenso da Acusao, como acordos lingsticos

preliminares que possibilitaro as discusses ulteriores sobre o tema.

Na lngua portuguesa, a palavra Poder se formou,

etimologicamente, a partir do vocbulo latino potere e de outras formas derivadas

da raiz pot- (como potes, potest, potens) que indica posse e, por extenso,

capacidade.30 Ter Poder , em certo sentido, ter a posse de algo ou algum: um

estar no controle, no domnio. A noo elementar de Poder indica uma (...)

capacidade ou a possibilidade de agir, de produzir efeitos. Tanto pode ser referida

a indivduos e a grupos humanos como a objetos ou a fenmenos naturais (como

na expresso Poder calorfico, Poder de absoro). 31

Poder, no sentido social, a aptido de uma pessoa influir,

condicionar e determinar o comportamento de outra. Este conceito enfatiza o

Poder do homem sobre o homem, isto , como fenmeno social, no seu aspecto

relacional, pessoal e limitado, como, por exemplo, o Poder familiar (CC, art. 1644)

e o que tem um Governo de dar ordens aos cidados.

32

Quanto forma de exerccio, o Poder Social pode ser atual,

quando vigora e se realiza no tempo presente, ou potencial, quando suscetvel

de se realizar, mas sem efeitos reais no presente a no ser os decorrentes da sua

30 Cf. KOEHLER, H.. Pequeno Dicionrio Latino Portugus. 11. ed. Rio de Janeiro: Globo,

1952. p. 233; HOUAISS, Antnio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 1.513 (verbete: poder).

31 STOPPINO, Mario. In BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de Poltica. Trad. Carmen C, Varriale et ai.; coord. trad. Joo Ferreira; rev. geral Joo Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. 11. ed. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1998, p 933.

32 STOPPINO, Mario. In BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de Poltica. p. 934.

15

virtualidade. Enquanto o primeiro uma relao efetiva entre comportamentos33,

o segundo uma relao possvel entre eles.34

O Poder que uma pessoa (ou um grupo de pessoas) exerce

sobre outra pessoa (ou grupo de pessoas) realiza-se em certo mbito,

denominado esfera de Poder. A mesma pessoa (ou o mesmo grupo) pode ser

submetida a vrias modalidades de Poder Social nos vrios momentos de sua

existncia, nos diversos campos de relacionamento.

35

Na Sociedade o Poder, seja atual ou potencial, sempre

exercido, predominantemente, em trs modalidades: Poder coercitivo, Poder

persuasivo e Poder retributivo. O Poder coercitivo exercido mediante privaes

ou ameaas de privaes de algum direito (vida, integridade corporal, bens

materiais etc.), pelo emprego de fora. O Poder persuasivo no se exerce

mediante violncia fsica ou moral e sim pela fora do convencimento; neste

caso a obedincia alcanada porque a pessoa que obedece se convence do

33 Vide o seguinte exemplo formulado por Mario Stoppino In BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI,

Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de Poltica. p. 934-935: Quando, no exerccio do Poder, a capacidade de determinar o comportamento dos outros posta em ato, o Poder se transforma, passando da simples possibilidade ao. Assim, podemos distinguir entre o Poder como simples possibilidade (Poder potencial) e o Poder efetivamente exercido (Poder em ato ou atual). O Poder em ato (atual) uma relao entre comportamentos. Consiste no comportamento do indivduo A ou do grupo A que procura modificar o comportamento do indivduo B ou do grupo B em quem se concretiza a modificao comportamental pretendida por A, abrangendo tambm o nexo intercorrente entre os dois comportamentos.

34 Vide o seguinte exemplo formulado por Mario Stoppino In BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de Poltica. p. 936-937: De uma parte, A tem a possibilidade de ter um comportamento cujo objetivo a modificao do comportamento de B. De outra parte, se esta possibilidade levada a ato, provvel que B tenha o comportamento em que se concretize a modificao de conduta pretendida por A. Um chefe militar exerce Poder sobre seus soldados quando ordena o ataque e seus soldados executam a ordem. E tem Poder sobre eles se provvel que os soldados atacariam se o comandante ordenasse. Uma vez que exercer o Poder implica necessariamente ter a possibilidade de exerc-lo, o Poder social, em seu sentido mais amplo, a capacidade de determinao intencional ou interessada no comportamento dos outros.

35 Vide o seguinte exemplo formulado por Mario Stoppino In BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de Poltica. p. 934: O Poder do mdico diz respeito sade; o do professor, aprendizagem do saber; o empregador influencia o comportamento dos empregados sobretudo na esfera econmica e na atividade profissional; e um superior militar, em tempo de guerra, d ordens que comportam o uso da violncia e a probabilidade de matar ou morrer. No mbito de uma comunidade poltica, o Poder de A (que pode ser, por exemplo, um rgo pblico ou um determinado grupo de presso) pode dizer respeito poltica urbanstica; o poder de B, poltica exterior em relao a uma certa rea geogrfica; o poder de C dir respeito, enfim, poltica educacional, e assim por diante. A esfera do Poder pode ser mais ou menos ampla e delimitada mais ou menos claramente.

16

acerto ou justeza do comando que lhe foi dirigido. O Poder retributivo alcana a

obedincia de seu comando atravs de uma relao de troca. 36

Estes modos bsicos de exerccio de Poder esto inseridos

no cotidiano das relaes interpessoais e podem proceder ou da superioridade

pessoal ou de um exerccio funcional. No primeiro caso o que sustenta o Poder

a fora, a capacidade de influncia ou a autoridade informal, ou seja, uma relao

de fato. No segundo, a base se acha fundado numa ordem jurdica, isto , numa

relao de Poder estabilizado e institucionalizado.

37

Uma forma de Poder estabilizado e institucionalizado o

Poder Poltico estatal. Poder Poltico, segundo Melo, a faculdade, respaldada

por mecanismos de coao, de regulamentar e controlar a conduta social.

Num e noutro caso o Poder

tem em vista uma sujeio de algum vontade de outrem. Toda relao de

Poder uma relao de dominao, portanto.

38 O

Poder Poltico detm o monoplio da coero na sociedade, com o objetivo de

erigir-se em Poder soberano sobre o corpo social.39

Aproximando-se desta viso, j numa perspectiva valorativa,

aplicada ao modelo de Estado Contemporneo, Pasold afirma que Poder uma

faculdade respaldada

36 CRUZ, Paulo Mrcio. Poltica, Poder, Ideologia & Estado Contemporneo. 3. ed. rev. atual. e

amp. Curitiba: Juru, 2002, p.80. 37 Vide o seguinte exemplo de Poder estabilizado formulado por Mario Stoppino In BOBBIO,

Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de Poltica. p. 937: O Poder diz-se estabilizado quando a uma alta probabilidade de que B realize com continuidade os comportamentos desejados por A, corresponde uma alta probabilidade de que A execute aes contnuas com o fim de exercer Poder sobre B. O Poder estabilizado se traduz muitas vezes numa relao de comando e obedincia. E pode ser ou no acompanhado de um aparato administrativo com a finalidade de executar as ordens dos detentores do Poder. o que acontece, respectivamente, nos casos do Poder governamental e do Poder paterno. Alm disso, o Poder estabilizado pode fundar-se tanto em caractersticas pessoais do detentor de Poder (competncia, fascnio, carisma) como na funo do detentor do Poder. Quando a relao de Poder estabilizado se articula numa pluralidade de funes claramente definidas e estavelmente coordenadas entre si, fala-se, normalmente, de Poder institucionalizado. Um Governo, um partido poltico, uma administrao pblica, um exrcito, como norma, agem na sociedade contempornea com base numa institucionalizao do Poder mais ou menos complexa.

38 MELO, Osvaldo Ferreira. Dicionrio de direito poltico. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 143. 39 CRUZ. Paulo Mrcio. Poltica, Poder, Ideologia & Estado Contemporneo. p. 80.

17

(...) em mecanismos reguladores da conduta humana, conciliando capacidade de mando com disposio de adeso e, principalmente, sustentando-se na correspondncia de valores entre detentor e sditos, comprometido, sempre, com o ideal democrtico.40

Esta noo valorativa de Poder Poltico, que concilia

capacidade de mando com disposio de adeso dos sditos do Estado,

permite que se visualize a ratio da coercitividade penal. que no se pode

conceber a punio penal sem esta dimenso valorativa. Isto porque a pena ou

sano uma conduta do Poder Poltico que pretende responder a outra

conduta

41

Toda sociedade controla mediante gratificaes e punies

o comportamento de seus membros para conseguir que realizem as condutas

socialmente desejadas e evitem as negativamente valoradas

, do indivduo, contra os interesses (valores) reconhecidos pelo detentor

do Poder.

42

O controle social se realiza atravs de um conjunto de

estratgias de dominao acionado por um grupo social com a finalidade compelir

os indivduos que dele fazem parte aceitao das normas reconhecidas como

importantes ao grupo e para impedir ou desestimular os comportamentos

contrrios a estas.

. Estas

gratificaes e punies so denominadas tcnicas de controle social e podem se

manifestar informalmente ou formalmente.

43 O controle social pode operar por mecanismos internos

(controles psicolgicos decorrentes do processo primrio de socializao) ou

externos (mediante as sanes, punies, aes reativas). 44

40 PASOLD, Cesar Luiz. Funo Social do Estado Contemporneo. 3. ed. Florianpolis:

OAB/SC Editora, 2003, p. 76.

41 ZAFFARONI, Eugenio Ral et al. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 43.

42 WARAT, Luis Alberto. Introduo Geral do Direito: I interpretao da lei temas para uma reformulao. Srgio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1994, p. 169.

43 GARELLI, Franco. Verbete Controle Social in BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de Poltica. p. 283.

44 GARELLI, Franco. Verbete Controle Social in BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de Poltica. p. 284.

18

As tcnicas de controle social subdividem-se em tcnicas

formais e tcnicas informais. As informais so mltiplas, podendo-se arrolar

(apenas como exemplos) as gratificaes em geral, os estmulos mediante

anncios, o emprego da fora fsica ou intimidaes morais, o apelo ao

sobrenatural e religio. As cominaes formais ocorrem de forma

institucionalizada e jurdica. Quanto a estas, dependendo do rgo que as

imponha e do que pretendam produzir, podem ser religiosas, militares,

educacionais, civis, polticas, penais etc. 45

O controle penal estabilizado e institucionalizado, no Estado

de direito, somente considerado legtimo se for exercido mediante cominaes

formais (previamente definidas em lei). Como tcnica de controle social, o

controle penal opera atravs de mecanismos internos e externos. De forma

declarada as sanes do direito penal prendem-se a estes dois mecanismos,

ainda que os doutrinadores penais discutam acerca do papel desempenhado pelo

direito penal e as funes da pena

46

Evidentemente, os mecanismos so ajustados segundo as funes declaradas do direito penal e da pena. Pode-se perceber em diversos autores esta dupla configurao, com maior ou menor nfase nos mecanismos internos ou externos.

.

De modo geral, atuando mediante mecanismos internos

(psicolgicos ou de direo tico-social) ou externos (as sanes previstas em lei

ou aplicadas), o controle penal exerce uma fora poltica concentrada no

direcionamento das atividades dos membros do corpo social, estabelecendo uma

dimenso de controle e regulao social, em cujo centro radica a reproduo de

estruturas e instituies sociais 47

45 Sobre Tcnicas de Controle Social vide: WARAT, Luis Alberto. Introduo Geral do Direito: I

interpretao da lei temas para uma reformulao. Srgio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1994, p. 169-170.

46 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: volume 1 parte geral. 13. ed. atual. So Paulo: Saraiva, 2008, p. 89-101; PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: volume 1 parte geral. 5. ed. rev. So Paulo; Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 552-567.

47 ANDRADE, Vera Regina Pereira. Sistema Penal Mximo x Cidadania Mnima: cdigos da violncia na era da globalizao. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 22.

19

Assumindo-se como base o discurso oficial do Estado, de

que a tutela penal tem mira um desestmulo s condutas violentas dominadoras

ou anti-sociais e um estmulo s condutas socialmente aceitveis ou desejadas48

Normatizar estabelecer normas, normalizar

,

possvel reconhecer dois processos regulatrios relativos ao controle penal: um

de normatizao abstrata e outro de normatizao concreta. Estes processos

normatizadores correspondem a processos desnormatizadores que o antecedem.

49.

Desnormatizar, por seu turno, neste Relatrio, tem o sentido de quebra da

correspondncia de valores entre detentor e sditos 50

O processo de normatizao penal abstrato, que ocorre pela

edio de lei penal, mediante previses gerais de condutas e penas, uma

resposta (conduta) do Poder Poltico e jurdico estatal a outra conduta (ao ou

omisso desnormatizadora) que constitui em tese um poder de fato abusivo e

supostamente contrrio aos interesses (valores) do Estado e da sociedade.

Estabelece-se, por este processo, a criminalizao primria das condutas

desnormatizadoras.

pelo exerccio de um

Poder de fato abusivo.

Chama-se criminalizao primria a programao legislativa

prvia, mediante a descrio de condutas e cominao de penas, com a

finalidade de permitir a incriminao e punio do autor de uma conduta

desnormatizadora. um ato formal e programtico. Formal porque tem previso

48 H uma diferena significativa entre o discurso oficial sobre as funes da tutela penal e a real

operacionalidade do Sistema Penal. Vera Pereira de Andrade aborda detalhadamente estas funes efetivas (no declaradas) em: ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A iluso de segurana jurdica: do controle da violncia violncia do controle penal. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003, p. 235-309 (Captulo IV Configurao, operacionalidade e funes do moderno sistema penal).

49 HOUAISS, Antnio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa. p. 1.362 (verbete: normatizar).

50 Vide nota de rodap n. 40.

20

legal; programtico porque deve ser cumprido como uma rotina, posteriormente,

por Agncias que no so as mesmas que formularam a programao. 51

Assim, quando A (um indivduo ou um grupo) exerce

abusivamente um poder sobre B (um indivduo ou um grupo), cometendo contra

ele um fato lesivo ou em tese lesivo, estabelece-se entre ambos uma situao

conflitiva, que tende a ser resolvida pela fora ou segundo os valores do grupo

(ou dos grupos sociais envolvidos). Num Estado de direito, fundado no primado

da Lei como expresso da vontade geral, para soluo das situaes conflitivas,

as Agncias polticas (parlamentos) habilitam programaes legais destinadas a

impedir o exerccio arbitrrio de poder, o que pode ocorrer mediante coero

administrativa direta ou coero reparadora de carter civil. Entretanto, h

situaes conflitivas que no se resolvem segundo os parmetros axiolgicos dos

conflitantes nem pela programao legislativa de carter administrativo ou civil. As

Agncias polticas, por razes diversas (recorrncia de conflitos de mesma

natureza, repercusso social ou presso miditica etc.), podem responder com

um ato de redefinio jurdica da situao conflitiva. Desta forma, o ato

redefinitrio de natureza penal estabelece-se como uma programao

criminalizante primria do comportamento havido como abusivo normatizando ou

renormatizando a situao conflitiva.

52

51 ZAFFARONI, Eugenio Ral et al. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, p. 43;

ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral. 3. ed. So Paulo: Revista Dos Tribunais, 2001, p. 60.

52 ZAFFARONI, Eugenio Ral et al. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, p. 53. Exemplificando: para regular as situaes conflitivas havidas entre casais, apesar do tratamento conferido pela legislao civil brasileira a vrias hipteses (ensejando regras atinentes separao judicial e de corpos, dissoluo de sociedade de fato, ao divrcio, guarda de filhos etc.), o legislador criou mecanismos de redefinio de ordem penal atravs da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), relativos violncia domstica e familiar. Na referida Lei, claramente redefine-se o centro da situao conflitiva, que passa a ser a violncia fsica, psicolgica, sexual, patrimonial e moral definidas no seu art. 7, incisos I a V; o mbito da situao conflitiva, ao enunciar os conceitos operacionais legais de unidade domstica, famlia e relaes de afeto; a natureza da violncia, reconhecida como violao de direitos humanos; e o gnero do sujeito passivo (somente mulher). Com efeito, notrio que os conflitos domsticos, so, na realidade, mais abrangentes e trazem implcitas inmeras possibilidades de solues. A Lei Maria da Penha, no entanto, padroniza tanto a definio do que seja conflito domstico (entre todos os conflitos recai sobre aquele que ela predefine como violncia domstica) quanto arrola as solues penais possveis (basicamente a imposio de pena de priso, para os delitos que tenham esta previso) ou vedadas (mediante restries quanto ao direito de retratao da representao da vtima nos casos de ao penal pblica condicionada (art. 16), limitao de certas penas alternativas e vedao de prestao pecuniria (art. 17) e inaplicabilidade de

21

O processo de normatizao penal concreto tambm

pretende ser uma resposta a uma conduta desnormatizadora. A diferena reside

na forma de resposta estatal. Enquanto a normatizao penal abstrata resulta de

um processo legislativo e est ligada criminalizao primria, a normatizao

penal concreta pressupe a existncia de uma lei penal incriminando a conduta

desnormatizadora e, portanto, ocorre em funo de um processo de

criminalizao secundria53, ou seja, da uma ao seletiva estatal exercida por

Agncias do Poder Punitivo sobre certas pessoas de forma concreta, legitimada

por procedimentos estabelecidos em regras de natureza processual.54

transao penal ou suspenso condicional do processo (art. 41). A redefinio jurdica da situao conflitiva no resolve assim os problemas de violncia domstica no Pas, mas gera uma sensao de normalidade, tranqilidade ou de esperana no corpo social de que o conflito ser (ou tem as condies para ser) solucionado.

53 Esta diviso, em mecanismos sucessivos e integrados de criminalizao, permitiu a anlise zettica do direito penal, como forma de evidenciar o mito da igualdade penal e desvelar a ideologia penal da defesa social qual ele serve de fundamento. Conforme Alessandro Baratta (in BARATTA, Alessandro Criminologia Crtica e Crtica do Direito Penal: introduo sociologia do direito penal. Traduo Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002, p. 161): O momento crtico atinge a maturao na criminologia quando o enfoque macro-sociolgico se desloca do comportamento desviante para os mecanismos de controle social dele e, em particular, para o processo de criminalizao. O direito penal no considerado, nesta crtica, somente como sistema esttico de normas, mas como sistema dinmico de funes, no qual se podem distinguir trs mecanismos analisveis separadamente: o mecanismo da produo das normas (criminalizao primria), o mecanismo da aplicao das normas, isto , o processo, compreendendo a ao dos rgos de investigao e culminando com o juzo (criminalizao secundria) e, enfim, o mecanismo da execuo da pena ou das medidas de segurana.

54 Num segundo momento, a redefinio sucede concretamente, numa situao conflitiva especfica, que se resolver segundo a normatividade estatal, mediante a atuao incidental das autoridades pblicas (polcia, promotores, juzes etc.). Quanto ao tema violncia domstica para o qual se apresentou exemplo na nota de rodap n. 53, relacionado normatizao penal abstrata, uma vez publicada a Lei n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), torna-se possvel a partir deste diploma legal a normatizao concreta dos conflitos. Destarte, uma vez constatado um caso que possa ser enquadrado como de violncia domstica, d-se a ele uma descrio e uma qualificao jurdica (capitulao), para a qual j se sabe, de antemo, que a soluo ser a imposio de uma pena ou a absolvio do indigitado autor (normatizao especfica). No h interesse efetivo, com a tutela penal, na apresentao de outras solues possveis: reconciliao, separao, realizao de tratamentos psicolgicos especializados etc. Algum objetar, neste caso, que a lei tambm fala de medidas integradas de preveno (art. 8), de assistncia mulher em situao de violncia domstica e familiar (art. 9), de medidas protetivas de urgncia (arts. 18 a 23) e de atendimento por equipe multidisciplinar (art. 29 a 32). Entretanto, tais providncias, alm serem de programticas (dependem de implementao atravs de polticas pblicas), no constituem parte integrante da soluo final do conflito que independentemente o que pensem, queiram ou necessitem as partes permanece sendo uma sentena condenatria ou absolutria. Cria-se, pois, simbolicamente, mediante a aplicao da lei penal, uma soluo, atravs da qual se reafirma o mito de que renormatizar resolver (ZAFFARONI, Eugenio Ral et al. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, p. 54).

22

possvel afirmar, portanto, que o papel dos protagonistas

em conflito foi neutralizado pela ao nomatizadora do Estado. Este

precisamente um dos marcos jurdicos do Direito penal moderno: a soluo da

disputa entre os conflitantes no se d segundo a definio que eles (ou seus

grupos sociais) do do conflito e sim conforme aquela que lhes proporciona o

Estado.55

Tanto a criminalizao primria quanto a criminalizao

secundria ocorrem atravs da atuao de Agncias do Sistema Penal. Estas

Agncias so entes ativos do processo seletivo de criminalizao e podem ser

polticas, judiciais, policiais, penitencirias, de comunicao social, de reproduo

ideolgica ou internacionais.

56

A criminalizao primria resulta de um ato de Agncias

polticas (legislativas) que estabelecem as programaes destinadas aplicao

do direito penal pelas Agncias executivas (policiais, judiciais, penitencirias). H

um papel preponderante das Agncias polticas na produo do direito penal e

processual penal, assim como h um papel decisivo das Agncias executivas na

criminalizao secundria.

57

55 CONDE, Francisco Muoz; HASSEMER, Winfried. Introduo criminologia. Traduo,

apresentao e notas de Cntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 144-145.

56 Conforme Zaffaroni (in ZAFFARONI, Eugenio Ral et al. Direito Penal Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal, p. 60-61) as agncias do Sistema Penal podem ser: a) as polticas (parlamentos, legislaturas, ministrios, poderes executivos, partidos polticos); b) as judiciais (que incluem juzes, ministrio pblico, serventurios, auxiliares, advogados, defensoria pblica, organizaes profissionais); c) as policiais (que abarcam a polcia de segurana, judiciria ou de investigao, alfandegria, fiscal, de investigao particular, de informes privados, de inteligncia do estado e, em geral, de toda agncia pblica ou privada que cumpra funes de vigilncia); d) as penitencirias (pessoal das prises e da execuo ou da vigilncia punitiva em liberdade); e) as de comunicao social (radiofonia, televiso, imprensa escrita); f) as de reproduo ideolgica (universidades, academias, institutos de pesquisa jurdica e criminolgica); g) as internacionais (organismos especializados da ONU, da OEA, cooperao de pases centrais, fundaes, candidatos a bolsas de estudo e subsdios).

57 As Agncias do Sistema Penal no atuam com exclusividade na criminalizao primria e secundria e sim predominantemente. As Agncias polticas so suscetveis s presses de outras Agncias durante o processo de elaborao legislativa. Por outro lado, as Agncias executivas sofrem interferncia das demais Agncias e tambm dos parlamentos (CPIs, por exemplo) em suas atividades.

23

O conjunto formado pelas Agncias polticas e executivas

que, de acordo com as regras jurdicas58, esto incumbidas de realizar o direito

penal, denominado Sistema Penal. 59

A partir dos elementos conceituais referidos acima, prope-

se a seguinte definio descritiva de Poder Punitivo, mantendo-se sempre o

objetivo inicial (e provisrio) de possibilitar que a Acusao venha fala:

Poder Punitivo o Poder Poltico do Estado, coercitivo, que se exerce mediante a programao formal das punies (produo de leis

penais), pelas Agncias polticas (criminalizao primria), e pela estrutura

burocrtica estatal de aplicao das leis penais, compreendendo a ao das

Agncias policiais, judiciais e penitencirias (criminalizao secundria), como

tcnica de controle social, com a finalidade de obteno de obedincia a um

comando e a um modelo de organizao poltica (controle social punitivo).

Finalmente, num enunciado preliminar, propem-se o

seguinte conceito de Acusao, levando em conta a acepo adotada neste

Relatrio, de Acusao-imputao.

Acusao a atribuio a algum da prtica de uma

infrao penal, formulada em regra por um rgo estatal e excepcionalmente pelo 58 A operacionalidade das Agncias executivas conecta-se s normatizaes dadas pelo direito

penal e pelo direito processual penal. O primeiro vem representado pelo conjunto de normas jurdicas que prevem os crimes e lhes cominam sanes, bem como disciplinam a incidncia e validade de tais normas, a estrutura geral do crime, e a aplicao e execuo das sanes cominadas (BATISTA, Nilo. Introduo crtica ao direito penal brasileiro. 8. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 24). O segundo integra o complexo de princpios e normas que regulam a aplicao jurisdicional do direito penal, bem como as atividades persecutrias da polcia judiciria, e a estruturao dos rgos de funo jurisdicional e respectivos auxiliares (MARQUES, Jos Frederico. Elementos de direito processual penal: Vol. 1. Atualizadores: Eduardo Reale Ferrari e Guilherme Madeira Dezem - 3. atualizao. So Paulo: Millenium, 2009, p. 20).

59 H um conceito mais amplo de Sistema Penal, incluindo o denominado sistema penal subterrneo. De acordo com Nilo Batista (in BATISTA, Nilo. Introduo crtica ao direito penal brasileiro. p. 25): Zaffaroni entende por sistema penal o controle social punitivo institucionalizado, atribuindo vox institucionalizado a acepo de concernente aos procedimentos estabelecidos, ainda que no legais. Isso lhe permite incluir no conceito de sistema penal casos de ilegalidades estabelecidas como prticas rotineiras, mais ou menos toleradas (esquadres da morte por ele referidos como ejecuciones sin proceso, tortura para obteno de confisses na polcia, espancamentos disciplinares em estabelecimentos penais, ou uso ilegal de celas surdas, etc.) O sistema penal a ser conhecido e estudado uma realidade, e no aquela abstrao dedutvel das normas jurdicas que o delineiam.

24

particular, de forma oral ou por escrito, nos termos da lei processual penal,

consistente em um processo de redefinio de uma situao conflitiva concreta,

sobre a qual possa incidir, em tese, o Poder Punitivo (normatizao concreta),

com vistas ao exerccio limitado deste poder, mediante a explicitao das causas

da imputao (razes de fato e de direito).

1.2.2 Sistemas simblicos e Acusao

Do que se disse at agora fica evidente que o exerccio de

Poder Poltico pelo Estado como tcnica de controle social relaciona-se s

percepes ou imagens sociais deste Poder, isto , aos valores sociais que o

correspondem. Semelhantemente, a Acusao, que parte de um ser

intramundano (aquele que a formula: o promotor de justia ou o advogado

contratado pela parte), ser espelho desses valores.

Os valores sociais obedecem a certas vises de mundo que

possibilitam a significao dos objetos, comportamentos e interaes. Eles esto

na base moral que fundamenta as atitudes e os comportamentos. atravs dos

valores que os indivduos sistematizam seus entendimentos sobre o justo e o

injusto, o permitido e o proibido, o correto e o incorreto, o lcito e o ilcito etc.

possvel, com base em tais valores, classificar e hierarquizar condutas nos

diferentes setores da vida e ao social. Disso decorre que algumas condutas

havero de ser incentivadas e outras desestimuladas. Esta hierarquizao de

valores se d em diferentes universos (mitos, lngua, cincia, arte, direito),

configurando sistemas simblicos (estruturas) estruturadas e estruturantes,

relacionadas ao Poder simblico.

pertinente, neste ponto, avaliar as relaes entre sistemas

simblicos e Poder simblico.

Sistemas simblicos subsistem como instrumentos de

conhecimento e comunicao da (e na) sociedade. Eles se constroem a partir das

estruturas prvias de poder (so estruturados) e, ao mesmo tempo, constroem

tais estruturas (so estruturantes).

25

O Poder simblico o poder de construo da realidade

social (e por isso denominado de estruturante). ele que estabelece a ordem

gnosiolgica do mundo social, institui o conformismo lgico e permite que se

tenha uma concepo homognea do tempo, do espao, do nmero, da causa,

que torna possvel a concordncia entre as inteligncias (Durkheim).60 Mediante

enunciados simblicos ele constitui determinada viso de mundo (ele faz ver e

faz crer num certo modelo de mundo). 61 O poder simblico , com efeito, esse

poder invisvel o qual s pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que no

querem saber que lhe so sujeitos ou mesmo que o exercem. 62

O Poder simblico vale-se de produes simblicas. Estas,

nos diversos campos sociais, aos quais os indivduos se inserem, servem como

instrumentos de dominao, de controle social, tornando possvel o consenso

acerca do mundo social e a reproduo da ordem social.

63

Os sistemas simblicos exercem o papel poltico de

aparelhos de injuno ou de legitimao da dominao dos grupos sociais

dominantes sobre os dominados. Alm disso, fornecem condies manuteno

desta relao dominao mediante violncia simblica, robustecendo com a sua

fora as relaes de dominao de uma classe sobre outra. Note-se que entre as

diferentes classes sociais existe uma luta simblica pela imposio das posies

ideolgicas. Este embate ocorre em duas frentes: a dos denominados conflitos

60 BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. Traduo de Fernando Tomaz (portugus de

Portugal). 12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009, p 8. Ttulo original: Le pouvoir symbolique. O texto foi parafraseado de Pierro Bourdieu, j o que se acha entre aspas atribudo por este autor a mile Durkheim.

61 BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. p 12. 62 BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. p 7-8. 63 BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. p 10-11: As ideologias, por oposio ao mito, produto

coletivo e coletivamente apropriado, servem interesses particulares que tendem a apresentar como interesses universais, comuns ao conjunto do grupo. A cultura dominante contribui para a integrao real da classe dominante (assegurando uma comunicao imediata entre todos os seus membros e distinguindo-os das outras classes); para a integrao fictcia da sociedade no seu conjunto, portanto, desmobilizao (falsa conscincia) das classes dominadas; para a legitimao da ordem estabelecida por meio do estabelecimento de distines (hierarquias) e para a legitimao dessas distines. Este efeito ideolgico, produ-lo a cultura dominante dissimulando a funo de diviso na funo de comunicao: a cultura que une (intermedirio de comunicao) tambm a cultura que separa (instrumento de distino) e que legitima as distines compelindo todas as culturas (designadas como subculturas) a definirem-se pela sua distncia em relao cultura dominante.

26

simblicos da vida quotidiana e o da produo simblica especializada (juristas,

intelectuais, artistas etc.).64

Para que se descubra o Poder simblico necessrio

identific-lo nos diversos campos sociais, onde ele se produz, se reproduz e se

dilui. Os atores sociais (indivduos) esto inseridos espacialmente em

determinados campos sociais e neles detm a posse de grandezas de certos

capitais (cultural, social, jurdico, econmico, poltico, artstico, esportivo etc.). O

habitus de cada ator social condiciona o seu locus, isto , cada um tenta ocupar

um espao e, para tanto, necessrio que ele conhea as regras do jogo dentro

do campo social e que esteja disposto a lutar (jogar).

65

nesse habitus que o ator social o indivduo que v o

mundo segundo os valores do grupo do qual faz parte constri sua viso de

mundo e identifica-se, a partir da, com pensamentos, valores e julgamentos que

so posicionamentos polticos constituintes dos diversos microcosmos que

compem a sociedade. Campo simblico, sinteticamente, o espao

relativamente autnomo, dotado de leis prprias onde os indivduos esto

inseridos.

66

Uma vez definido campo de produo simblico, possvel

ir mais adiante e conceituar campo jurdico. Como campo de produo simblico,

o campo jurdico tambm se estabelece mediante uma disputa (concorrncia)

entre os seus diversos atores. Travam-se entre eles lutas silenciosas no front da

64 BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. p 12: O campo de produo simblica um

microcosmo da luta simblica entre as classes: ao servirem os seus interesses na luta interna do campo de produo (e s nesta medida) que os produtores servem aos interesses dos grupos exteriores ao campo de produo. A classe dominante o lugar de uma luta pela hierarquia dos princpios de hierarquizao: as fraes dominantes, cujo poder assenta no capital econmico, tm em vista impor a legitimidade da sua dominao quer por meio da prpria produo simblica, quer por intermdio dos idelogos conservadores os quais s verdadeiramente servem os interesses dos dominantes por acrscimo, ameaando sempre desviar em seu prprio proveito o poder de definio do mundo social que detm por delegao; a frao dominada (letrados ou intelectuais e artistas, segundo a poca) tende sempre a colocar o capital especfico a que ela deve a sua posio, no topo da hierarquia dos princpios de hierarquizao.

65 BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. p 60-64. 66 Sobre a gnese dos conceitos de campo e habitus vide BOURDIEU, Pierre. O poder

simblico. p 59-73.

27

produo simblica especializada, pelo monoplio de dizer o direito (interpret-lo

e aplic-lo) e distribu-lo economicamente (segundo determinada ordem de

interesses). Os agentes, simultaneamente investidos de competncia tcnica e

autoridade, ao tempo em que compartilham a mesma matriz gnosiolgica (os

textos jurdicos que constituem um corpus sistmico) tambm disputam espao na

interpretao deste corpus (atividade que acontece de forma mais ou menos livre

ou autorizada) e, conseqentemente, consagram as vises legtimas (havidas

como justas) do mundo social contidas naquela matriz.67

Produz-se, deste modo, um hermetismo do campo jurdico,

favorecido pela luta interna entre os que jogam no campo jurdico, o qual

contribui para a separao entre o mundo laico e o dos chamados operadores

jurdicos. A relao de competio entre os operadores profissionais, experts,

mantm e robustece o prprio campo e cria, ao mesmo tempo, a iluso de que o

corpus jurdico neutro relativamente s relaes de fora que o determinam. O

campo jurdico organiza-se numa contnua reafirmao de valores, que acabam

por constituir-se em instrumentos de dominao, desdobrados em explorao de

outros segmentos sociais.

68

Retornando idia de Acusao esboada no item anterior,

possvel, agora, com as noes de sistemas simblicos e de campo de

produo jurdico, compreender que a atribuio a algum da prtica de uma

infrao penal no um ato definido unicamente pelos critrios legais (legalidade

formal e material da Acusao), mas interage, fortemente, com os valores sociais

(simblicos) do seu campo. Portanto, a Acusao no somente uma

explicitao das causas (razes de fato e de direito); configura tambm, em seu

papel jurdico de redefinidora da situao conflitiva concreta, uma expresso de

produo simblica (instrumento de dominao). Isto ocorre porque ela se vale

dos sistemas simblicos que a estruturam (a Acusao estruturada a partir de

estruturas prvias de poder) e tambm porque ela serve como base de consenso

(a Acusao estruturante, pois constri estruturas de poder).

67 BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. p 212. 68 BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. p 212.

28

Sob este ponto de vista, a Acusao fruto de um exerccio

de Poder simblico, visto que ela contribui diretamente para o estabelecimento e

manuteno de certa ordem gnosiolgica do mundo e para o conformismo lgico

tanto no meio jurdico quanto no mundo laico.

No campo jurdico o habitus da Acusao decisivo na

definio simblica dos valores, que so reafirmados pela prpria diviso de

trabalho dos mltiplos operadores do Sistema Penal (policiais militares, agentes

da polcia civil, delegados de polcia, assistentes de promotoria, promotores,

servidores do cartrio judicial, juzes de primeiro e segundo grau de jurisdio). O

fortalecimento do campo jurdico e de seu modo de produo, calcado na

concorrncia estruturalmente regulada entre rgos e instituies que atuam no

Sistema Penal, mascara a relao de dominao, que passa a ser percebida pela

Sociedade como decorrente de princpios de hierarquizao naturais. como

fossem desprovidas de histria, de construo humana de idias ou, ainda,

universais.69

Assim, quando indivduos tomam por naturais as

representaes hierrquicas e axiolgicas dominantes cria-se um nicho

violncia simblica.

70

69 BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. p 213: A lgica paradoxal de uma diviso do trabalho

que se determina, fora de qualquer concertao consciente, na concorrncia estruturalmente regulada entre os agentes e as instituies envolvidas no campo, constitui o verdadeiro princpio de um sistemas de normas e de prticas que aparece como fundamento a priori na equidade e dos seus princpios, na coerncia das suas formulaes e no rigor das suas aplicaes, quer dizer, como participando ao mesmo tempo da lgica positiva da cincia e da lgica normativa da moral, portanto, como podendo impor-se universalmente ao reconhecimento por uma necessidade simultaneamente lgica e tica.

A violncia simblica emerge codificada no seio das

instituies e encontra guarida nos seus agentes que as acendem e delas se

valem para apoiar os seus exerccios de autoridade.

70 ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Loureno. Para um Processo Democrtico: Crtica Metstase do Sistema de Controle Social. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 9-10: A violncia simblica, alm de criar o consenso em torno do sistema penal (que, por esse vis, sempre carente de severidade, incuo, estimulante de uma proposta de impunidade), o serve como verdadeiro instrumento, pois representa um substituto da violncia fsica e da fora bruta. Estas ltimas so exercidas somente no caso de falhar o controle da primeira, pois sempre mais econmico e eficaz colocar a instancia de controle, a polcia, na mente dos indivduos do que manter e utilizar corpos de represso fsica.

29

Existe, ainda, outro efeito destas representaes simblicas

no ato de acusar: quem acusa despersonaliza-se nesta atividade. O acusador age

como uma unidade de produo ( chamado de operador do direito) e est

sujeito fiscalizao de rgo de correio, ao qual deve apresentar relatrio de

produtividade. Ao mesmo tempo, os inquritos e processos, por se constituem

nmeros nesta linha de montagem, se apresentam como realidades distantes da

realidade do acusador, de tal modo que os protagonistas dos crimes so

despersonalizados: perdem os nomes e passam a ser denominados indiciado,

investigado, denunciado, acusado, vtima, ofendido, apelante, apelado

etc., conforme exeram, durante o procedimento, diferentes papis. Nas relaes

interpessoais, no trabalho forense h tambm os reflexos despersonalizantes

decorrentes das estruturaes de poder necessrias manuteno da autoridade

do campo jurdico (as hierarquizaes). Os delegados de polcia, os promotores,

os advogados e os juzes so tratados pronominalmente por doutores e

excelncia, como forma de reconhecimento de superioridade na hierarquia do

campo. Zaffaroni denomina este processo de burocratizao do segmento

judicial 71

A burocratizao do segmento judicial tem efeito direto na

forma como exercida a Acusao. As interpretaes do mundo formuladas pelo

acusador partem de seu eu-jurdico, das representaes de crime e criminoso

.

71 ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, Jos Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro:

Parte Geral. p. 76-77 passim: (...) De uma maneira geral, o sistema tambm se vale de uma seleo de pessoas os setores mais humildes e, ao invs de sujeit-los a um processo de criminalizao, submete-os a um processo de fossilizao. Este condicionamento, ainda muito pouco estudado, , todavia, gravssimo. Utiliza-se de um grupo de pessoas de baixa condio social, que p