PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO … · e ensinado grande parte do que sei em pesquisa...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO FACULDADE DE MEDICINA DEPARTAMENTO DE MEDICINA CLÍNICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS MÉDICAS TAUILY CLAUSSEN D`ESCRAGNOLLE TAUNAY DESENVOLVIMENTO E VALIDAÇÃO DO ÍNDICE DE RELIGIOSIDADE INTRÍNSECA: CORRELAÇÕES COM SAÚDE MENTAL E QUALIDADE DE VIDA FORTALEZA 2011

Transcript of PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO … · e ensinado grande parte do que sei em pesquisa...

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR

    PR-REITORIA DE PESQUISA E PS-GRADUAO

    FACULDADE DE MEDICINA

    DEPARTAMENTO DE MEDICINA CLNICA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS MDICAS

    TAUILY CLAUSSEN D`ESCRAGNOLLE TAUNAY

    DESENVOLVIMENTO E VALIDAO DO NDICE DE

    RELIGIOSIDADE INTRNSECA: CORRELAES COM SADE

    MENTAL E QUALIDADE DE VIDA

    FORTALEZA

    2011

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    TAUILY CLAUSSEN D`ESCRAGNOLLE TAUNAY

    DESENVOLVIMENTO E VALIDAO DO NDICE DE

    RELIGIOSIDADE INTRNSECA: CORRELAES COM SADE

    MENTAL E QUALIDADE DE VIDA

    Dissertao submetida Coordenao do Programa de Ps-Graduao em Cincias Mdicas do Departamento de Medicina Clnica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Cear, como requisito para obteno do ttulo de Mestre. rea de concentrao: Medicina. Orientador: Prof. Dr. Andr Frrer Carvalho.

    FORTALEZA

    2011

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    T223d Taunay, Tauily Claussen D`Escragnolle Desenvolvimento e validao do ndice de religiosidade intrnseca: correlaes com sade mental e qualidade de vida / Tauily Claussen D`Escragnolle Taunay. Fortaleza, 2011. 73 f.

    Orientador: Prof. Dr. Andr Frrer Carvalho.

    Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal do Cear. Faculdade de Medicina. Ps-Graduao em Cincias Mdicas. Fortaleza, Cear.

    1. Religio 2. Sade Mental 3. Qualidade de Vida I. Carvalho, Andr Frrer (orient.). II. Ttulo.

    CDD: 362.2

    FICHA CATALOGRFICA Preparada pela Biblioteca de Cincias da Sade da Universidade Federal do Cear

    reproduo autorizada pelo autor

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    TAUILY CLAUSSEN D`ESCRAGNOLLE TAUNAY

    DESENVOLVIMENTO E VALIDAO DO NDICE DE

    RELIGIOSIDADE INTRNSECA: CORRELAES COM SADE

    MENTAL E QUALIDADE DE VIDA

    Dissertao submetida Coordenao do Programa de Ps-Graduao em Cincias Mdicas do Departamento de Medicina Clnica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Cear, como requisito para obteno do ttulo de Mestre. rea de concentrao: Medicina.

    Aprovada em ______/______/_______.

    BANCA EXAMINADORA

    ____________________________________________ Prof. Dr. Andr Frrer Carvalho (Orientador)

    Universidade Federal do Cear UFC

    ____________________________________________ Prof. Dr. Eliane Souto de Abreu

    Universidade de Fortaleza UNIFOR

    ____________________________________________ Prof. Dr. Silvnia Vasconcelos

    Universidade Federal do Cear UFC

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    Cincia sem religio manca. Religio sem cincia

    cega.

    Albert Einstein

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    AGRADECIMENTOS

    Ao orientador deste trabalho, Professor Andre Frrer Carvalho, por ter me

    acolhido e confiado em minha capacidade para o trabalho, me abrindo novas portas

    no universo acadmico, sob as quais passarei com ainda mais dedicao, visando

    contribuies importantes para o campo.

    Ao co-orientador deste trabalho, Dr. Francisco de Assis Aquino Gondim

    (Professor Cid), por ter me dado grandes oportunidades para produo cientfica,

    especialmente na poca em que fui estudante de graduao em Psicologia na UFC,

    e ensinado grande parte do que sei em pesquisa e Neurocincias.

    Ao professor Dr. Francisco Hlio Rla, que, mesmo sem qualquer

    necessidade e com toda sua humildade e genialidade caractersticas, abrilhantou o

    presente trabalho com valorosas contribuies.

    s neuropsiclogas Luciane Ponte e Silva e Silviane Pinheiro Andrade,

    que me deram o suporte intelectual necessrio para a prxis em Neuropsicologia na

    Universidade e na clnica.

    Um agradecimento especial a toda equipe de pesquisadores que me

    auxiliou na consecuo deste trabalho, que, sem ela, no poderia t-lo desenvolvido:

    Luciana Arajo, Eva Cristino, Loraine Andrade e demais colaboradores.

    minha famlia (Sheila [me], Francisco Claussen [av], Daisy [av],

    Nancy [tia], Carolina [irm] e Leonardo [irmo]), que sempre me forneceu os

    suprimentos necessrios para encarar os desafios maravilhosos propostos pela vida.

    minha amada esposa, Karine, que tambm me deu muita fora na

    consecuo deste trabalho, me auxiliando e me aturando nestes anos de estudo e

    capacitao profissional, sempre com muito carinho e amor.

    Ao meu lindo filho Ian, que um amor de pessoa e que, com toda

    certeza, contribuir significativamente de forma progressiva com nossa felicidade

    nessa vida.

  • 6

    Ao Dr. Olavo Rocha, que tambm confiou na minha capacidade para o

    trabalho e me deu oportunidade para colaborar consigo na luta contra a

    dependncia qumica no Cear e no Nordeste, no mbito da Clnica Especializada

    Viva.

    Ao Dr. Paulo Vieira e Ramon de Paula que, indiretamente, me

    apresentaram uma forma de aplicar neurocincias na clnica psicolgica por meio do

    aprendizado da metodologia coaching.

    A todos os meus amigos (do DF e CE) que, dialeticamente, me ajudaram

    e me ajudam a constituir o sujeito que sou dia-a-dia.

    E a todos aqueles que eu no citei, mas que, de alguma forma,

    colaboraram para que eu realizasse este trabalho to importante em minha

    trajetria.

    A todos, Muito obrigado!

  • 7

    RESUMO

    OBJETIVO. A religiosidade est presente na sociedade humana, independentemente de poca ou local. No Brasil, 95% da populao declara ter religio. A partir do advento da metodologia cientfica no campo, a religiosidade, em sade mental, vem sendo objeto de intensa investigao. Hoje, sabe-se que a religiosidade, na maioria das vezes, atua como fator de proteo em sade mental e fsica. O presente estudo utilizou a cincia psicomtrica para desenvolver e validar um instrumento breve para mensurar religiosidade intrnseca (Inventrio de Religiosidade Intrnseca - IRI) em duas amostras brasileiras e comparar com medidas de sade mental e qualidade de vida. MTODO. A verso inicial (14 itens) foi baseada na reviso de literatura e em sugestes de especialistas. Estudantes universitrios (amostra 1; n=323) e pacientes psiquitricos (amostra 2; n=102) preencheram os seguintes instrumentos: IRI, Escala de Religiosidade Duke (DUREL), uma medida de espiritualidade (WHOQOL-SRPB), uma medida de qualidade de vida (WHOQOL-BREF), bem como medidas de sintomas ansiosos e depressivos (Inventrio de Depresso de Beck - BDI, Inventrio de Ansiedade de Beck - BAI e Escala Hospitalar de Ansiedade e Depresso - HADS). RESULTADOS. O IRI apresentou consistncia interna adequada nas amostras 1 ( de Cronbach=0,96; IC95%; 0,87-0,98) e 2 ( = 0,96; IC95%; 0,85-0,99). Anlises de componentes principais com rotao varimax indicaram um nico fator que explicou 73,7% e 74,9% da varincia nas amostras 1 e 2, respectivamente, aps a retirada dos itens de menor carga fatorial. Foram observadas fortes correlaes entre o IRI e a sub-escala de religiosidade intrnseca da DUREL (r de Spearman de 0,87 a 0,73 nas amostras 1 e 2, respectivamente, p 0,70). DISCUSSO. O IRI apresentou boas propriedades psicomtricas. Observou-se associaes significativas entre medidas de religiosidade intrnseca e depresso e qualidade de vida na amostra de estudantes, bem como associaes significativas entre religiosidade intrnseca e depresso e ansiedade, na amostra de pacientes psiquitricos. CONCLUSO. Os dados indicam que o IRI um instrumento vlido e pode contribuir para estudar religiosidade intrnseca em diferentes amostras brasileiras.

    Descritores: religiosidade, estudo de validao, sade mental, qualidade de vida.

  • 8

    ABSTRACT

    OBJECTIVE. Religiousness is present in mankind regardless of period or place. In Brazil, 95% of the population said to have religion. Since the entrance of scientific methodology in the field, religiousness, in mental health, has been increasingly investigated. Nowadays, is well known that religiousness, in many ways, acts as a buffer in mental and physical health. The present study employed psychometric science to develop and validate a brief instrument to assess intrinsic religiousness (Intrinsic Religiousness Inventory - IRI) in two Brazilian samples and to correlate with mental health and quality of life measures. METHOD. The initial version (14 items) was based on literature review and experts suggestion. University students (sample 1; n=323) and psychiatric patients (sample 2; n=102) filled the following instruments: IRI, the Duke Religiosity Index (DUREL), a spirituality measure (WHOQOL-SRPB), a quality of life measure (WHOQOL-BREF) as well as measures of anxiety and depressive symptoms (Beck Depression Inventory - BDI, Beck Anxiety Inventory - BAI and Hospital Anxiety and Depression Scale - HADS). RESULTS. The IRI showed adequate internal consistency reliability in sample 1 (Cronbachs = 0.96; 95% CI; 0.87-0.98) and sample 2 ( = 0.96; 95% CI; 0.85-0.99). Principal component analyses with varimax rotation of the IRI indicated a single factor, which explained 73.7% and 74.9% of variance in samples 1 and 2, respectively, after the exclusion of items with small factor loadings. Strong correlations between the IRI and the intrinsic subscale of the DUREL were observed (Spearmans r ranging from 0.87 to 0.73 in samples 1 and 2, respectively, p 0.70). DISCUSSION. The IRI showed good psychometrical properties. Significantly associations were observed between intrinsic religiousness and depression symptoms and quality of life measures in the student sample, as well as significantly associations between intrinsic religiousness and depression and anxiety symptoms measures in the psychiatric sample. CONCLUSION. These data indicate that the IRI is a valid instrument and may contribute to study intrinsic religiosity in Brazilian samples.

    Descriptors: religiousness, validation study, mental health, quality of life.

  • 9

    LISTA DE QUADRO E TABELAS

    QUADRO 1 Resumo das reas neurais e comportamentos correlatos envolvendo religiosidade/espiritualidade

    33

    TABELA 1 Distribuio das variveis demogrficas em ambas as amostras 48

    TABELA 2 Distribuio das patologias psiquitricas referente amostra 2 49

    TABELA 3 Escores gerados pelos estudantes referentes aos instrumentos de avaliao da sade mental, religiosidade e espiritualidade e qualidade de vida

    49

    TABELA 4 Escores gerados pelos pacientes referentes aos instrumentos de avaliao da sade mental, religiosidade e espiritualidade e qualidade de vida

    50

    TABELA 5 Mdia e desvio-padro da distribuio dos escores de cada item do IRI referente amostra 1 (n=323)

    51

    TABELA 6 Mdia e desvio padro da distribuio dos escores de cada item do Inventrio de Religiosidade Intrnseca referente amostra 2 (n=102)

    52

    TABELA 7 Carga Fatorial e comunalidade, autovalor e proporo da varincia explicada do nico componente do IRI (verso inicial, 14 itens) referente amostra 1 (n=323)

    53

    TABELA 8 Carga Fatorial e comunalidade, autovalor e proporo da varincia explicada do nico componente do IRI (verso inicial, 14 itens) referente amostra 2 (n=102)

    54

    TABELA 9 Carga Fatorial e comunalidade, autovalor e proporo da varincia explicada do nico componente do IRI (verso final, 10 itens) referente amostra 1 (n=323)

    55

    TABELA 10 Carga Fatorial e comunalidade, autovalor e proporo da varincia explicada do nico componente do IRI (verso final, 10 itens) referente amostra 2 (n=102)

    56

    TABELA 11 Correlao item-total corrigida e coeficiente Alfa de Cronbach do IRI referente amostra 1 (n=323)

    57

    TABELA 12 Correlao item-total corrigida e coeficiente Alfa de Cronbach do IRI referente amostra 2 (n=102)

    57

    TABELA 13 Escores mdios e desvios-padro (DP) dos 10 itens do IRI e ndices de confiabilidade teste-reteste (coeficientes de correlao intraclasse CCI) (n=313)

    58

  • 10

    TABELA 14 Relaes entre IRI com DUREL e WHOQOL-SRPB em ambas as amostras

    60

    TABELA 15 Relaes entre IRI, DUREL e WHOQOL-SRPB com medidas de depresso, ansiedade e QV na amostra 1 (n=323)

    60

    TABELA 16 Relaes entre IRI, DUREL e WHOQOL-SRPB e subdomnios da WHOQOL-BREF na amostra 1 (n=323)

    61

    TABELA 17 Relaes entre IRI, DUREL e WHOQOL-SRPB com medidas de depresso, ansiedade e QV na amostra 2 (n=102)

    62

    TABELA 18 Relaes entre IRI, DUREL e WHOQOL-SRPB e subdomnios da WHOQOL-BREF na amostra 2 (n=102)

    62

  • 11

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    BAI Inventrio Beck para Ansiedade

    BDI Inventrio Beck para Depresso

    DUREL Escala de Religiosidade Duke

    HADS-A Escala de Depresso e Ansiedade Hospitalar Mdulo Ansiedade

    HADS-D Escala de Depresso e Ansiedade Hospitalar Mdulo Depresso

    HUWC Hospital Universitrio Walter Cantdio

    IRI Inventrio de Religiosidade Intrnseca

    QV Qualidade de Vida

    WHOQOL-BREF Escala de Qualidade de Vida da Organizao Mundial de Sade

    Verso Breve

    WHOQOL-SRPB Escala de Qualidade de Vida da Organizao Mundial de Sade

    Mdulo Espiritualidade, Religio e Crenas Pessoais

  • 12

    SUMRIO

    1 INTRODUO 14

    1.1 Aspectos histricos da relao entre religiosidade, sade mental e qualidade de vida

    15

    1.2 Religiosidade e Espiritualidade 17

    1.2.1 Dimenses da religiosidade 18

    1.3 Atesmo 20

    1.4 Religiosidade e Qualidade de Vida 21

    1.5 Religiosidade e Sade Mental 22

    1.5.1 Religiosidade e Depresso 22

    1.5.2 Religiosidade e Ansiedade 26

    1.6 Aspectos Negativos de Relao entre Religiosidade e Sade 29

    1.7 Bases Neurobiolgicas da Religiosidade 30

    1.8 Avaliao Psicomtrica de Fenmenos Humanos 33

    1.8.1 Mensurao da religiosidade 34

    1.9

    1.9.1

    1.9.2

    1.9.3

    1.10

    2

    Validao de Testes Psicolgicos

    Elaborao dos itens e validao de contedo

    Validao de construto

    Validao de critrio

    Justificativa

    OBJETIVOS

    35

    37

    37

    39

    40

    41

    2.1 Objetivo Geral 41

    2.2 Objetivos Especficos 41

    3 METODOLOGIA 42

    3.1 Local do Estudo 42

    3.2 Descrio das Amostras 42

    3.3 Critrios de Incluso 43

  • 13

    3.4 Critrios de Excluso 43

    3.5 Instrumentos 43

    3.6 Desenvolvimento do Inventrio de Religiosidade Intrnseca da Universidade Federal do Cear (IRI)

    45

    3.7 Procedimentos 45

    3.8 Anlise Estatstica de Dados 46

    4 RESULTADOS 48

    4.1 Descrio das Amostras 48

    4.2 Propriedades psicomtricas do Inventrio de Religiosidade Intrnseca da Universidade Federal do Cear (IRI)

    51

    4.2.1 Distribuio dos escores do IRI em ambas as amostras 51

    4.2.2 Anlise fatorial do IRI em ambas as amostras 52

    4.2.3 Consistncia interna do IRI em ambas as amostras 56

    4.2.4 Validade de critrio 59

    4.3 Correlaes entre os Instrumentos de Aferio da Religiosidade e Espiritualidade e Instrumentos de Aferio da Sade Mental e Qualidade de Vida em ambas as Amostras

    60

    5 DISCUSSO 63

    6 CONCLUSES 68

    REFERNCIAS

    APNDICES

    ANEXOS

    70

    79

    84

  • 14

    1 INTRODUO

    Enquanto comportamento coletivo, a religiosidade um importante

    fenmeno, presente em todas as culturas, sob diferentes formas, constituindo-se

    como uma das mais antigas manifestaes do homem (MURAMOTO, 2004; PERES;

    SIMO; NASELLO, 2007). Estudos indicam que mais de 90% da populao mundial

    est envolvida em alguma forma de prtica religiosa (KOENIG, 2009). No Brasil, a

    religiosidade tambm est fortemente presente, sendo considerado um dos pases

    com o maior contingente catlico do mundo e aonde a populao de evanglicos

    vem crescendo vertiginosamente (MOREIRA-ALMEIDA et al., 2010). De acordo com

    Moreira-Almeida et al. (2010), em uma amostra de 3007 pessoas entrevistadas entre

    os anos de 2005 e 2006, 61,7% se declararam catlicos, enquanto que 26,7%,

    evanglicos (em 2000, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica -

    IBGE, este nmero era de 15%).

    Diante da importncia deste fenmeno em nossa sociedade, pesquisas

    cientficas sobre o tema vm considerando a associao entre religiosidade e

    benefcios sade, especificamente no que se refere influncia da religio no

    enfrentamento do adoecer (CORREA et al., 2010; DALGALARRONDO, 2008; DEW

    et al., 2010; KOENIG, 2009). Enquanto a maioria dos estudos apontam uma

    associao positiva entre envolvimento religioso e sade, adicionalmente, algumas

    manifestaes da espiritualidade, mesmo em grupos religiosos tradicionais, podem

    camuflar e/ou mimetizar uma fenomenologia psicopatolgica (ALMEIDA, 2004;

    ALMEIDA, 2007). Avanos metodolgicos recentes tm possibilitado a compreenso

    de aspectos neuropsicolgicos da religiosidade e dos fenmenos espirituais

    (INZLICHT et al., 2009; KAPOGIANNIS et al., 2009).

    Dentre as dificuldades de se estudar a religiosidade, encontra-se o

    desenvolvimento de mtodos e tcnicas cientificamente vlidos que viabilizem a

    mensurao de diferentes aspectos da religiosidade, como a frequncia de prticas

    religiosas organizacionais e no-organizacionais ou o modo pelo qual o sujeito

    vivencia a religiosidade em seus aspectos cognitivos, emocionais e

    comportamentais (HALL; KOENIG; MEADOR, 2008). Internacionalmente, uma breve

    escala de religiosidade tem se mostrado muito til em pesquisas em sade, a Escala

  • 15

    de Religiosidade Duke (DUREL), formulada a partir de grandes estudos

    epidemiolgicos realizados nos Estados Unidos e se mostrou relacionada a

    indicadores de sade fsica, mental e suporte social (KOENIG; PARKERSON

    JUNIOR; MEADOR, 1997). No Brasil, este instrumento foi recentemente traduzido e

    adaptado para o portugus (MOREIRA-ALMEIDA et al., 2008) e recentemente

    validado em uma amostra de moradores de comunidade de baixa renda em So

    Paulo (LUCCHETTI et al., 2010). No entanto, tal instrumento no foi validado em

    amostras clnicas e, especificamente, psiquitricas, apesar dos recentes e

    importantes avanos dos estudos cientficos da religiosidade e da sua relao com o

    processo sade-doena (MOREIRA-ALMEIDA et al., 2010).

    O presente trabalho objetiva validar um instrumento de mensurao da

    religiosidade intrnseca destinado a populaes psiquitrica e universitria, bem

    como estudar quantitativamente a associao entre medidas de religiosidade e

    medidas de sintomas depressivos e ansiosos e de qualidade de vida,

    independentemente da crena religiosa do sujeito.

    1.1 Aspectos histricos da relao entre religiosidade, sade mental e

    qualidade de vida

    Na pr-histria, o fenmeno da doena era tido como de causa

    sobrenatural, cuja cura estava associada a rituais de feitiaria e tcnicas cirrgicas

    primitivas como a trepanao, na qual se fazia um furo no crnio para que espritos

    malignos deixassem o corpo da pessoa (STRAUB, 2005).

    Na Grcia e Roma antigas, o fenmeno da doena mental j era atribuda

    a causas naturais. Hipcrates, considerado o pai da medicina moderna, desenvolveu

    um conceito de sade em que esta era um perfeito estado de equilbrio entre quatro

    fluidos corporais bsicos, chamados de humores (fleuma, bile amarela, bile negra e

    sangue). A prevalncia ou excesso de um desses fluidos desencadearia

    perturbaes no comportamento do sujeito (STRAUB, 2005).

    A Idade Mdia foi caracterizada por um retorno s interpretaes

    baseadas numa perspectiva sobrenatural dos transtornos mentais, os quais eram

    considerados como oriundos de feitiaria ou possesso demonaca, dentre outros

    mitos. De fato, historicamente, a religio e os cuidados aos doentes fsicos e mentais

  • 16

    tm muitos pontos em comum, no entanto, causas naturais como pragas, fome ou

    desastres de guerra tambm eram aceitos como possvel explicao para os

    fenmenos psicopatolgicos (KROLL, 1973).

    No Ocidente, neste perodo da histria da sociedade humana, em termos

    cientficos, o surgimento do cuidado institucional aos enfermos se dava em

    mosteiros e outras organizaes religiosas que ofereciam o servio de melhor

    qualidade na poca relativo aos doentes mentais (FOUCALT, 1978). O primeiro

    hospital destinado ao tratamento de doentes mentais foi construdo em Valncia em

    1409, na Espanha, e era dirigido por religiosos, fato este representativo de que eram

    as ordens religiosas que criavam e mantinham uma parcela dos hospitais da Europa

    e Amrica, incluindo o Brasil, da Idade Mdia ao sculo passado (FIGUEIREDO;

    TOLEDO FERRAZ, 1998).

    Do sculo XIX em diante, grandes nomes da literatura mdica, psicolgica

    e sociolgica, tais como Maudsley, Charcot e Albert Ellis argumentaram criticamente

    em desfavor da religio considerando-a como algo irracional e primitivo, tomando

    como patolgicas vrias manifestaes e vivncias religiosas (STROPPA, 2008).

    Sigmund Freud, considerado pai da Psicanlise, uma das mais influentes escolas de

    Psicologia at hoje, por exemplo, afirmava que a religio resultava em

    desvalorizao da vida e distoro da viso do mundo real, em quanto que Karl

    Marx foi atribuda a frase a religio o pio do povo, no mbito da obra Critica da

    Filosofia do Direito de Hegel, de 1844. No entanto, outros influentes pensadores

    como o psiclogo Willian James e o psiquiatra Carl Gustav Jung manifestavam uma

    viso mais positiva da religiosidade (KOENIG; MCCULLOUGH, 2001). Porm,

    ambas as posies se baseavam em anlises crticas filosficas acerca da

    espiritualidade e religiosidade em sade mental, assim como em experincias

    clnicas e opinio pessoal, mas no em estudos cientficos controlados (FREUD,

    1998; JAMES, 1996; JUNG, 1977).

    Na segunda metade do sculo XX, este panorama comeou a mudar com

    a iniciao de pesquisas cientficas rigorosas e conseqentes publicaes em

    revistas mdicas e psicolgicas de grande impacto no universo acadmico

    (KOENIG; MCCULLOUGH; LARSON, 2001). A obra intitulada Handbook of Religion

    and Health, de Harold G. Koenig, Michael McCullough e David B. Larson (2001),

    considerada um marco neste campo de estudos dado que os autores examinaram

    mais de 1200 pesquisas realizadas no ltimo sculo a respeito da relao entre

  • 17

    religio e sade. Grande parte das pesquisas na rea conduzida com adultos e

    dentro de instituies hospitalares, a partir da aplicao de medidas validadas de

    religiosidade e sade, com a verificao da significncia da sua associao. Na

    maioria dos estudos, os achados so de associao positiva e significativa entre

    religio e sade fsica e mental (KOENIG; MCCULLOUGH, 2001). Modernamente,

    ao lado de Koenig, David B. Larson e Jeffrey S. Levin so alguns dos pioneiros na

    investigao cientfica a respeito de religiosidade e sade (STROPPA, 2008).

    1.2 Religiosidade e Espiritualidade

    A universalidade da religio tal que o fenmeno religioso existe na

    cultura e comportamento humanos desde os tempos pr-histricos, permeando a

    civilizao humana a despeito de raa ou geografia (MURAMOTO, 2004). Dentre as

    mltiplas facetas da cultura humana, a religio uma das mais importantes,

    abrangendo comportamentos religiosos diversos (CARVALHO, 2006). Segundo

    Barros (2000 apud Carvalho, 2006):

    Ela influencia o sentido da vida e da morte, o modo como se encara o mundo e os homens, as alegrias e o sofrimento, o modo como se vive a vida familiar (atitude frente ao divrcio, ao aborto, nmero de filhos, etc.), a maneira como se interpreta e vive a sexualidade, a tolerncia e ou o racismo, a poltica, a profisso. (p. 5)

    A definio de Religio amplamente heterognea

    (COMTE-SPONVILLE, 2007). Sendo assim, este termo tem sido utilizado como um

    construto tanto individual quanto institucional (HILL; PARGAMENT, 2003). Existem

    duas etimologias bsicas que orientam a interpretao do termo religio: uma,

    latina, apregoando que o termo religio deriva de re-ligare, que significa atar, ligar

    para trs, simbolizando o movimento de ligao do homem com a divindade; e a

    outra, grega, defendendo que religio advm de re-lere, que significa ler

    novamente, fazer uma nova interpretao da vida (COMTE-SPONVILLE, 2007). Na

    obra de Glock (1962, apud CARVALHO, 2006), identificam-se cinco dimenses

    bsicas da religio: a dimenso ritualstica (frequncia a servios e prticas

    religiosas); a dimenso vivencial (conhecimento direto da realidade essencial que

    deriva da experincia ou da emoo religiosa); a dimenso ideolgica (sistema de

  • 18

    crenas); a dimenso intelectual (conhecimento das doutrinas ou textos sagrados) e

    a dimenso conseqencial (obras ou efeitos das dimenses anteriores).

    Para Fleck, religio pode ser definida como a "crena na existncia de um

    poder sobrenatural, criador e controlador do universo, que deu ao homem uma

    natureza espiritual que continua a existir depois da morte de seu corpo" (FLECK et

    al., 2003). Na verdade, esta composta de variveis complexas envolvendo

    dimenses cognitivas, emocionais, comportamentais, interpessoais e fisiolgicas

    (HILL; PARGAMENT, 2003). No que se refere religiosidade, segundo Lukoff, esta

    se define como a adeso a crenas e prticas relativas a uma instituio religiosa

    organizada (1992, apud CARVALHO, 2006). Em Geertz (1989), religiosidade

    representa um estilo de vida, as disposies morais e estticas, o carter e a viso

    de mundo (ethos de um povo). Esta a extenso na qual um indivduo acredita,

    segue e pratica uma religio.

    Embora haja uma considervel sobreposio entre as noes de

    espiritualidade e religiosidade (BLAZER, 2009), esta difere da outra pela clara

    sugesto de um sistema crenas e adorao especfico que partilhado por um

    grupo (FLECK et al., 2003). Difere do conceito de espiritualidade, que

    compreendido como a busca pelo sagrado, um processo pelo qual a pessoa procura

    descobrir, manter e transformar o que quer que ela considere sagrado em sua vida,

    tratando-se mais de um conceito individual do que social (HILL; PARGAMENT,

    2003). O sagrado trata-se exatamente do fator em comum entre espiritualidade e

    religiosidade, sendo definido como aquilo que distingue religio e espiritualidade de

    outros fenmenos, referindo-se a objetos e eventos apartados do ordinrio e

    merecedores de venerao. O sagrado inclui os conceitos de Deus, Realidade

    ltima e o transcendente, bem como qualquer aspecto da vida que tido como de

    carter extraordinrio por sua associao com ou representaes de tais conceitos

    (HILL; PARGAMENT, 2003).

    1.2.1 Dimenses da religiosidade

    Para facilitar a compreenso do que se segue, apesar da imensa

    diversidade de conceitos utilizados para o assunto em questo (MOREIRA-

    ALMEIDA; LOTUFO NETO; KOENIG, 2006), sero apresentados inicialmente os

  • 19

    conceitos nos quais nos basearemos para tratar de religio, religiosidade e

    espiritualidade, baseados no trabalho de Koenig, McCullough e Larson (2001) na

    obra Handbook of Religion and Health:

    Religio o sistema organizado de crenas, prticas, rituais e smbolos designados para facilitar o acesso ao sagrado, ao transcendente (Deus, fora maior, verdade suprema...); Religiosidade o quanto um indivduo acredita, segue e pratica uma religio. Por um lado, esta pode ser organizacional (participao na igreja ou templo religioso) ou no organizacional (rezar, ler livros, assistir programas religiosos na televiso), referindo-se ao envolvimento religioso. Por outro lado, pode ser intrnseca (o sujeito vive sua religio) e extrnseca (o sujeito usa sua religio), que se referem maturidade religiosa; Espiritualidade uma busca pessoal para entender questes relacionadas ao fim da vida, ao seu sentido, sobre as relaes com o sagrado ou transcendente que, pode ou no, levar ao desenvolvimento de prticas religiosas ou formaes de comunidades religiosas.

    Conforme exposto brevemente acima, o conceito de religiosidade

    subdividido em algumas dimenses que facilitam seu estudo do ponto de vista

    metodolgico e fornecem as bases para o entendimento acerca dos seus diferentes

    aspectos. A religiosidade descrita por ALLPORT e ROSS (1967) sob dois aspectos

    fundamentais que permeiam a vivncia religiosa, que so a religiosidade intrnseca e

    a extrnseca, ou religiosidade madura ou imatura, respectivamente (ALLPORT,

    1950).

    Religiosidade intrnseca se refere a pessoas que veem na sua orientao

    religiosa a maior motivao para a vida. Outras necessidades, por mais fortes que

    sejam, so consideradas de menor importncia e so, tanto quanto possvel,

    harmonizadas s crenas religiosas. Tendo o indivduo adotado a crena, este se

    esfora para internaliz-la e segui-la completamente (ALLPORT; ROSS, 1967). A

    prtica intrnseca ou mais espiritualizada procura transcender o conforto e a

    conveno social, buscando um sentido e um aumento do compromisso com a

    crena ou religio (CARVALHO, 2006).

    Por outro lado, religiosidade extrnseca se refere pessoa que usa a

    religio para fins prprios (DALGALARRONDO, 2008). A religio mantida porque

    serve a outros interesses considerados mais importantes pelo indivduo. Este v a

    religio como til de vrias formas para prover segurana e conforto, sociabilidade

    e distrao, status e auto-afirmao (ALLPORT; ROSS, 1967). A crena adotada

    mantida levemente ou ento seletivamente adaptada a necessidades mais

    primrias. A prtica extrnseca ou menos espiritualizada encontra-se entre aqueles

  • 20

    que herdam sua crena religiosa, no havendo uma tendncia reflexiva no ato de

    escolha pela entidade ou filosofia religiosa. Neste caso a divindade tende a um

    instrumento de satisfao dos desejos impulsivos ou egocntricos (CARVALHO,

    2006).

    Aranda (2008) define envolvimento religioso como envolver-se formal,

    pblica e coletivamente em atividades religiosas bem como em atividades mais

    privadas como oraes. Envolvimento religioso pode afetar positivamente afetar o

    bem-estar fsico e psicolgico (TOWNSEND et al., 2002). Neste contexto, podemos

    segmentar o envolvimento religioso em dois aspectos complementares, que definem

    as facetas da prtica religiosa: a religiosidade organizacional e no-organizacional

    (STORCH, 2004). O primeiro se refere aos comportamentos religiosos manifestos,

    relacionados a uma instituio religiosa, como ir igreja ou realizar atividades

    religiosas em grupo, determinadas a partir de fatores externos. Religiosidade no-

    organizacional/privada se refere a comportamentos religiosos manifestos, mas que

    no esto relacionados a qualquer instituio religiosa e sim com comportamentos

    individuais de exerccio da religiosidade, como o estudo da sua religio de forma

    independente ou a prtica de oraes ou meditao (CARVALHO, 2006; STORCH,

    2004).

    1.3 Atesmo

    O ateu e o agnstico tm em comum o fato de no acreditarem em Deus.

    O que separa um do outro a assertiva com a qual o primeiro nega a existncia de

    Deus, enquanto o segundo nem cr, nem descr, como um atesmo negativo, por

    falta de provas (COMTE-SPONVILLE, 2007; FARINACCIO, 2002).

    O agnosticismo distancia-se de sua etimologia na medida em que esta se

    refere ao desconhecido ou incognoscvel (COMTE-SPONVILLE, 2007). Neste

    sentido, agnstico seria aquele que, diante da questo da existncia de Deus,

    reconhece sua ignorncia, traduzindo mais uma questo humana do que

    propriamente uma posio particular. No entanto, ningum sabe se Deus existe, de

    acordo com a distino dos trs nveis de crena descritos por Kant, em sua obra

    Crtica da Razo Pura: opinio tem conscincia de ser insuficiente tanto subjetiva

    quanto objetivamente; f pode ser suficiente subjetivamente, mas no

  • 21

    objetivamente e saber que suficiente tanto subjetiva quanto objetivamente,

    dentre pessoas inteligentes e lcidas (COMTE-SPONVILLE, 2007).

    Resumindo, a diferena entre o crente, o ateu e o agnstico, est em que

    o primeiro afirma a existncia de Deus, acredita nela (a chamada profisso de f); o

    segundo a nega; e o terceiro no nega nem afirma, pois no tem uma posio

    definida sobre (COMTE-SPONVILLE, 2007; FARINACCIO, 2002).

    1.4 Religiosidade e Qualidade de Vida

    Qualidade de vida (QV) tem sido enfatizada como um importante

    desfecho dos problemas psicolgicos (MICHALAK et al., 2004; SWAN; WATSON;

    NATHAN, 2009). Um grupo da Organizao Mundial de Sade, definiu QV como a

    percepo do indivduo de sua posio na vida no contexto da cultura e sistema de

    valores nos quais ele vive e em relao aos seus objetivos, expectativas, padres e

    preocupaes (OMS, 1995), ficando implcito nessa definio que o conceito de QV

    subjetivo, multidimensional e inclui elementos de avaliao tanto positivos como

    negativos (FLECK et al., 2000).

    Nos Estados Unidos, foram realizadas pesquisas em populaes clnicas

    e acadmicas utilizando-se questionrios de religiosidade e, a partir dos dados

    coletados, foi observado que indivduos classificados como altamente religiosos

    seriam mais esperanosos, teriam mais vantagens no enfrentamento (coping) de

    situaes adversas do que aqueles identificados como tendo pouca religiosidade,

    gerando maior QV nesta populao (FLECK et al., 2003; HILL; PARGAMENT,

    2003). Dentre os achados, incluem-se: baixos nveis de morbidade ou mortalidade

    em doenas cardiovasculares (DWYER; CLARKE; MILLER, 1990), hipertenso

    (LEVIN; VANDERPOOL, 1989) ou cncer (VISSER; GARSSEN; VINGERHOETS,

    2010); melhor qualidade de vida e ajustamento psicossocial em pacientes com

    cncer (BUSSING; OSTERMANN; MATTHIESSEN, 2005); facilitao no manejo do

    estresse em pacientes com cncer (HALSTEAD; FERNSLER, 1994) ou HIV (HALL,

    1994); menor utilizao de servios mdicos (STORCH et al., 2004); reduo da

    frequncia de comportamentos de risco (OLECKNO; BLACCONIERE, 1991);

    menores ndices de estresse ou conseqncias psicolgicas negativas frente a

    eventos traumticos (HILL; PARGAMENT, 2003); fator protetor para tentativas ou

  • 22

    ideao suicida, abuso de drogas e lcool, comportamento delinqente, satisfao

    marital, sofrimento psicolgico e alguns diagnsticos de psicoses funcionais

    delinqncia na adolescncia (FLECK et al., 2003).

    1.5 Religiosidade e Sade Mental

    Diversos estudos tm identificado importantes ligaes entre

    religiosidade, espiritualidade e sade fsica e mental, no entanto, as razes para tal

    ainda no so claras, envolvendo fatores psicolgicos, sociais e fisiolgicos (HILL;

    PARGAMENT, 2003). Dentre os componentes da religiosidade, aqueles que

    parecem ter um impacto positivo para a manuteno da sade e bem-estar e reduzir

    o tempo de recuperao dos enfermos so o envolvimento religioso e a religiosidade

    intrnseca (HUANG, HSU; CHEN, 2011).

    1.5.1 Religiosidade e depresso

    A depresso uma sndrome psiquitrica altamente prevalente na

    populao brasileira e mundial, com ndices em torno de 16% ao longo da vida.

    Trata-se da patologia psiquitrica mais comum, sendo considerada uma condio

    mdica crnica e recorrente. A prevalncia anual na populao em geral varia entre

    3% e 11% (FLECK et al., 2003). Em populaes com doenas clnicas, a incidncia

    varia entre 5% e 10% nos pacientes ambulatoriais e entre 9% e 16% nos internados

    (KATON, 2003). Como doena, ela tem sido classificada de vrias formas. Entre os

    quadros mencionados na literatura atual encontram-se: episdio depressivo maior,

    melancolia, distimia e depresso bipolar (LACERDA, 2009).

    Como sndrome, a depresso inclui no apenas alteraes do humor

    (tristeza, irritabilidade, incapacidade de sentir prazer, apatia), mas tambm vrios

    outros aspectos, incluindo alteraes cognitivas, psicomotoras e vegetativas (sono,

    apetite etc) e est associada diminuio da produtividade, incapacidade funcional

    e absentesmo (HOTOPF et al., 2002), bem como a elevao dos custos

    relacionados sade. Este transtorno tambm est frequentemente associado

    comprometimento da sade fsica e tanto a depresso maior quanto sintomas

  • 23

    depressivos subclnicos trazem substanciais riscos a sade (KIECOLT-GLASER;

    GLASER, 2002). Neste sentido, um estudo de 13 anos de acompanhamento

    conduzido por Pratt e colegas (1996) identificou um risco aumentado em 4,5 vezes

    de sofrer ataque cardaco em pacientes com diagnstico de depresso maior em

    relao a sujeito sem o diagnstico.

    No entanto, apesar de ser um transtorno altamente prevalente na

    comunidade, de acordo com Hirschfeld e colegas (2003), subdiagnosticado, de

    modo que uma parcela pouco significativa dos pacientes adequadamente tratada

    (35%), o que compromete o manejo adequado dos pacientes e sua qualidade de

    vida.

    Alguns estudos destinaram-se a investigar a relao entre religiosidade e

    depresso, buscando articular diferentes aspectos da religiosidade. Um estudo

    conduzido em Amsterdam (BRAAM et al., 2010) investigou a associao entre

    diferentes estratgias cognitivas de enfretamento das adversidades baseadas na

    religio (coping religioso, medido pela RCOPE verso curta) e sintomas

    depressivos, em quatro amostras de provenientes de populaes distintas [i.e.,

    holandeses nativos (n = 309) e imigrantes marroquinos (n = 180), turcos (n = 202) e

    surinameses/holandeses antilhanos (n = 85)]. Dentre os seis tipos de coping

    religioso (coping positivo e cinco tipos de coping negativo: punio por Deus, sentir-

    se abandonado por Deus, coping sem Deus, questionamento da existncia de Deus

    e sentir raiva ou mgoa de Deus), encontrou associaes positivas significativas (p <

    0,05) entre coping positivo e trs formas de coping negativo (punio por Deus,

    sentir-se abandonado por Deus e sentir raiva ou mgoa de Deus) e presena de

    sintomas depressivos, medidos pelo Symptoms Check List-90 items (SCL-90). No

    entanto, considerando apenas pessoas identificadas com transtorno depressivo

    maior, de acordo com a Composite International Diagnostic Interview (CIDI), apenas

    trs tipos de coping negativo se apresentaram significativa e positivamente

    correlacionados com os referidos sintomas, dentre os quais, sentir-se abandonado

    por Deus (achado mais consistente), punio por Deus e questionamento da

    existncia de Deus (p < 0,04). Os autores ressaltam a bvia associao entre

    sentimento de abandono e sintomas depressivos para explicar parte dos achados.

    Dew e colaboradores (2008) entrevistaram 117 adolescentes (12-18

    anos), usurios de um servio psiquitrico ambulatorial da Carolina do Norte,

    visando explorar a relao entre depresso, medida pela Escala Beck de

  • 24

    Depresso, e algumas facetas da religiosidade, avaliadas pela Medida

    Multidimensional Breve de Religiosidade/Espiritualidade, controlando para o uso de

    substncias psicoativas. Foi verificado que depresso se associou positiva e

    significativamente com se sentir abandonado ou punido por Deus (p < 0,0001), no

    sentir suporte de uma comunidade religiosa, por perceberem seus correligionrios

    como demasiado crticos ou exigentes (p = 0,0143) e falta de perdo, como no

    freqentemente exercitar o perdo ou no se sentir perdoado por Deus (p < 0,001).

    Os autores discutem que tais aspectos do coping religioso negativo podem estar

    relacionados com condies ou traos que predispem depresso, como

    sentimentos de culpa, pessimismo e isolamento. Outro estudo conduzido pelo

    mesmo grupo de pesquisadores (Dew, Daniel et al., 2010) com populao de perfil

    semelhante, utilizando o Levantamento Feltzer Multidimensional de

    Religiosidade/Espiritualidade e a Escala Beck de Depresso-II (BDI-II), encontrou

    associaes significativas e negativas entre sintomas depressivos e experincias

    espirituais dirias (p < 0,01), prtica do perdo (p < 0,0001), coping religioso positivo

    (p < 0,02), suporte religioso positivo (p < 0,02), religiosidade organizacional (p <

    0,007) e auto-denominao como religioso/espiritualista (p < 0,007), controlando

    para suporte social e abuso de substncias psicoativas. Por outro lado, coping

    religioso negativo (p < 0,0001), suporte religioso negativo (p < 0,04) e perda da f (p

    < 0,0007) foram relacionados positivamente com sintomas depressivos medidos pela

    BDI-II. Analisando prospectivamente, apenas perda da f foi capaz de predizer

    mudanas na quantidade de sintomas depressivos ao longo de seis meses de

    acompanhamento ( = 4,69, p = 0,007), controlando para gnero, abuso de

    substncias e suporte social. Os autores levantam a hiptese de que falta de

    perdo, coping religioso negativo e suporte religioso negativo so tipos de sintomas

    depressivos. Adicionalmente, os autores questionam a possiblidade de que

    depresso adolescente pode gerar marcas na personalidade e na viso de mundo

    que distorce a experincia religiosa. Por fim, h possibilidade de variveis religiosas

    e depresso, de fato, no se correlacionarem, havendo uma terceira varivel no

    estudada promovendo estes achados.

    A associao entre religiosidade e depresso frequentemente relatada

    em diversos estudos com adultos (KOENIG, MCCULLOUGH, MEADOR, 2001).

    Usualmente, tal associao tem orientao inversa em variados graus de magnitude,

    especialmente, se utilizados como referncia os variados componentes da

  • 25

    religiosidade. As pesquisas mais recentes tm procurado investigar a relao

    existente entre depresso e diversos grupos religiosos, nveis de envolvimento

    religioso e o quanto esse envolvimento pode influenciar como as pessoas lidam com

    eventos de vida negativos. A religiosidade intrnseca, juntamente com o

    envolvimento religioso, so componentes que significativamente se associam

    negativamente com o construto depresso (MUELLER; RUMMANS; PLEVAK, 2001;

    PIRUTINSKY et al., 2011). Embora o tamanho da associao seja modesto, este

    similar ao encontrado na associao entre depresso e gnero, considerada uma

    das variveis mais significativas associadas aos transtornos do humor. No que se

    refere variao entre diferentes faixas etrias, gneros ou etnias, a associao

    entre religiosidade e depresso sido observada mantida (HUANG, HSU; CHEN,

    2011).

    Smith e colegas (2003) conduziram uma meta-anlise com um total de

    147 investigaes independentes buscando verificar a associao entre

    religiosidade e sintomas depressivos. O ndice de correlao (r) entre religiosidade e

    sintomas depressivos foi .096 (n = 98.975). Indicando que maior religiosidade

    levemente associada com menos sintomas. Os resultados no foram moderados por

    gnero, idade ou etnia, mas a negativa associao religiosidade-depresso foi forte

    em estudos envolvendo pessoas submetidas a estresse devido a recentes eventos

    traumticos de vida.

    Um estudo com populao geritrica (130 idosos, com media de idade de

    72 anos) realizada por Cruz e colegas (2009) em uma clnica psiquitrica vinculada

    Universidade de Pittsburg, Estado da Pensilvnia, observou que a prtica da orao

    associou-se significativamente com menor desesperana (OR=0,58 [0,36, 0,94],

    Wald qui-quadrado=4,97, gl=1, p=0,026) bem como escores reduzidos de

    severidade de depresso (OR=0,56 [0,36, 0,89], Wald qui-quadrado=5,93, gl=1,

    p=0,015). A frequncia de idas igreja no se associou significativamente com

    depresso (OR=0,914 [0,70, 1,189], Wald qui-quadrado=0,45, gl=1, p=0,50) ou

    desesperana (OR=0,78 [0,58, 1,04], Wald qui-quadrado=2,88, gl=1, p=0,09). Os

    autores defendem que, segundo estes achados, a prtica de atividades religiosas

    privadas curativa na medida em que facilita a sensao de bem-estar ou a crena

    em Deus e pode ser mais importante para indivduos idosos sob tratamento para

    depresso em um servio de sade mental do que os benefcios oriundos da

    freqncia igreja para esta mesma populao.

  • 26

    Um estudo de seguimento conduzido por Koenig e colegas (1998), no

    qual buscou-se, por um perodo de quase um ano de acompanhamento (47

    semanas), investigar os efeitos da crena e atividade religiosas em 87 idosos

    deprimidos e hospitalizados no centro mdico da Universidade de Duke, observou

    que a religiosidade intrnseca esteve significativa e independentemente relacionada

    ao tempo de remisso da doena, ao contrrio da frequncia igreja e atividades

    religiosas privadas que no o foram. Em concluso, os autores afirmaram que os

    pacientes deprimidos com altos escores de religiosidade intrnseca tm os maiores

    ndices de remisso da doena em relao aos que no o tm.

    1.5.2 Religiosidade e ansiedade

    Segundo Andrade e Gorenstein (1998), a ansiedade trata-se de um

    estado emocional com componentes psicolgicos e fisiolgicos, comum

    experincia humana e ajuda no desempenho dos indivduos. Esta se torna

    patolgica quando no existe um objeto especfico ao qual se direcione e quando

    surge como desproporcional situao que a desencadeia. Os transtornos de

    ansiedade esto entre os transtornos psiquitricos mais freqentes na populao

    geral, com prevalncias de 12,5% ao longo da vida e 7,6% ao ano, cujos sintomas

    esto entre os mais comuns, podendo ser encontrados em qualquer pessoa em

    determinados perodos de sua existncia (ANDRADE; GORESTEIN, 1998). Lewis

    (1979 apud ANDRADE; GORESTEIN, 1998) salienta que existem manifestaes

    autonmicas, como secura da boca, sudorese, arrepios, tremor, vmitos, palpitao,

    dores abdominais e outras alteraes biolgicas e bioqumicas detectveis por

    mtodos apropriados de investigao. Psicologicamente, dentre outras definies

    encontradas, este autor ressalta que a ansiedade um estado de medo em relao

    ao futuro, como uma sensao de perigo iminente sem risco real e, se este houver,

    a emoo desproporcionalmente mais intensa. Ainda, a ansiedade pode afetar

    aspectos da cognio, como percepo e memria. Desse modo, a ansiedade no

    envolve um construto unitrio, principalmente no contexto psicopatolgico. A

    ansiedade pode ser generalizada ou focada em situaes especficas, como nos

    transtornos fbicos. A ansiedade no-situacional ampla, podendo ser um estado

  • 27

    de incio recente ou uma caracterstica persistente da personalidade do indivduo

    (ANDRADE; GORENSTEIN, 1998).

    Estudos em animais e clnicos explorando as bases neurobiolgicas da

    ansiedade indicam que a atividade do neurohormnio noradrenalina tem impacto

    considervel nas manifestaes comportamentais da ansiedade (FRAZER;

    MOLINOFF; WINOKUR, 1994). Estudos com macacos evidenciaram que, se o

    ncleo produtor de noradrenalina (locus coeruleos) no crebro for extirpado nestes

    animais, os sintomas de medo (similares aos de ansiedade em humanos) induzidos

    por estmulos amedrontadores, deixam de se manifestar. Do contrrio, se houver

    estimulao eltrica deste mesmo ncleo, h manifestao de sintomas de medo

    mais intensa aos mesmos estmulos, em comparao com estado cerebral natural

    destes animais (FRAZER; MOLINOFF; WINOKUR, 1994).

    Segundo Inzlicht et al. (2009), a ansiedade surge quando a

    autorregulao do organismo ameaada. Autorregulao invariavelmente

    caracterizada um modelo composto por trs componentes cuja funo central

    minimizar erros possveis. Estes componentes incluem padres ou ideais, os quais,

    em vertebrados, so os mapas cognitivos que geram as expectativas;

    comparadores, os quais esquadrinham a situao atual para detectar incongruncias

    com os padres, chamada previso de erros; e efetores, os quais so requisitados

    para operar na situao atual para minimizar possveis erros futuros. De acordo com

    Gray e McNaughtons (2000, apud INZLICHT et al., 2009), a teoria neuropsicolgica

    da ansiedade, a qual baseada em modelos animais, pesquisa com leses

    cerebrais e efeitos farmacolgicos clssicos e modernos de drogas ansiolticas, a

    previso de erros ativa um sistema de alarme que vivido como ansiedade. Os

    tipos de erros que produzem ansiedade incluem estados de incerteza, ativao

    simultnea de objetivos conflituosos e respostas errneas. Neuroanatomicamente, o

    sistema septo-hipocampal de vital importncia para este modelo, sendo

    considerado um sistema filogentico antigo, compartilhado pelos humanos com

    animais inferiores. H tambm tm um sistema de alarme cortical localizado

    precisamente no crtex cingulado anterior (CCA) (GRAY; MCNAUGHTON, 2000,

    apud INZLICHT et al., 2009, p. 137). Este alarme tem projees elaboradas para e

    do sistema septo-hipocampal, possibilitando a regulao de objetivos conceituais

    abstratos da mesma forma que objetivos concretos. Estudos de neuroimagem,

    eletrofisiolgicos e de leso sugerem que o CCA importante para tipos de reaes

  • 28

    caractersticas da ansiedade (HAJCAK; FOTI, 2008; HAJCAK; MCDONALD;

    SIMONS, 2003; RIDDERINKHOF et al., 2004, apud INZLICHT et al., 2009). O CCA,

    ento, considerado parte do importante do sistema geral de regulao e

    modificao do comportamento quando preciso, mediante experincias

    potencialmente ameaadoras.

    De acordo com o trabalho de Everdosa (2004), os resultados publicados

    na literatura acerca da associao entre religiosidade e ansiedade no so

    conclusivos. Brown (1962, apud EVERDOSA, 2004) no observou associao entre

    religiosidade e ansiedade manifesta. J o estudo de Heitzelman e Fehr (1976, apud

    EVERDOSA, 2004) observou uma associao negativa entre os escores de um

    instrumento de religiosidade (Teste de Religiosidade Ortodoxa) e outro de ansiedade

    (Escala de Ansiedade Manifesta). Tais autores (1985, apud EVERDOSA, 2004),

    procurando replicar os dados observados anos antes, utilizaram, alm dos referidos

    instrumentos, um instrumento adicional de religiosidade (Escala de Valores) em uma

    amostra de 120 estudantes do primeiro ano de Psicologia. No entanto, os resultados

    no apontaram associaes significativas. Um achado incomum foi relatado no

    estudo de Wilson e Miller (1968, apud EVERDOSA, 2004), em que foram

    empregados diversos instrumentos de avaliao de diversas prticas religiosas

    (como assistncia Igreja, crena em um ser supremo, imortalidade da alma,

    moralidade religiosa, etc.), ansiedade (Escala de Ansiedade Manifesta de Taylor) e

    medo (Prova de apreenso, contendo expresses de medo a estmulos comumente

    temidos como enfermidade, animais, fogo, acidentes, etc.), nos quais pessoas no-

    religiosas tenderam a responder de forma mais equilibrada aos fatores emocionais,

    visto que foi encontrada uma positiva associao significativa entre religiosidade e

    medo e ansiedade.

    Outros pesquisadores (ABDEL-KHALEK; LESTER, 2010) observaram em

    amostras de estudantes do Kuwait e dos Estados Unidos que o instrumento

    designado para medio de ansiedade (Escala de Ansiedade da Universidade do

    Kuwait KUAS, sigla em ingls) correlacionou-se significativamente com a medida

    utilizada para medio da religiosidade (um item a ser pontuado em uma sequncia

    de 0 a 10, descrito da seguinte forma: qual seu nvel de religiosidade em geral?),

    porm com fraca associao (r = -0,18, p < 0,05).

    Koenig e Larson (2001), em uma reviso de literatura, encontraram 76

    estudos nos quais foi examinada a relao entre ansiedade e religio. Destes, 69

  • 29

    eram estudos transversais ou de coorte e sete ensaios clnicos. Novamente, a

    maioria dos estudos observacionais (35/69) encontrou baixos nveis de ansiedade

    ou medo entre os mais religiosos. Entretanto, foi encontrada grande ansiedade entre

    os mais religiosos em 10 destes estudos. A explicao potencial para a

    inconsistncia nos achados de que talvez as pessoas mais ansiosas busquem

    mais o envolvimento religioso e, aps tal envolvimento, a ansiedade venha a

    diminuir, j que, em quatro de cinco estudos prospectivos, os mesmos autores

    identificaram maior religiosidade como fator preditor para menor ansiedade ou medo

    ao final do seguimento (KOENIG; LARSON, 2001).

    Phillips et al. (2009), no tocante populao idosa, resumem a discusso

    afirmando que crenas religiosas e espirituais podem influenciar ansiedade e

    depresso de diferentes maneiras, como forma de enfrentamento da enfermidade,

    podendo favorecer ou dificultar o tratamento dependendo dos valores do indivduo

    em questo. Tais crenas podem promover esperana e encoraja comportamentos

    positivos. Os autores listam pelo menos quatro evidncias que sugerem os

    benefcios que atividades religiosas/espirituais podem exercer sobre a sade de

    idosos: estado de sade mental positiva associado com participao regular em

    atividades religiosas, seja semanalmente, seja mensalmente; muitos religiosos

    idosos tendem a ter suporte social, como amigos, contatos sociais, dentro da

    organizao religiosa; muitos outros relatam ser suas crenas ou atividades

    religiosas aquilo de mais importante que os mantm estimulados a viver; muitos

    idosos adoecidos relatam usar suas crenas ou atividades religiosas para lidar com

    o estresse da doena fsica (PHILLIPS et al., 2009).

    1.6 Aspectos Negativos de Relao entre Religiosidade e Sade

    Dentre os aspectos negativos da relao entre religiosidade e sade

    esto traos de personalidade possivelmente contraproducentes para o

    desenvolvimento do sujeito, como conformismo, dependncia, atitudes defensivas,

    baixa auto-estima, pior ajustamento, perfeccionismo, insegurana e dio auto-

    dirigido, especialmente entre estudantes universitrios (KOENIG; LARSON, 2001). A

    principal argumentao acerca deste tpico, segundo Pruyser (1977, apud

    DALGALARRONDO, 2008) est associada racionalizao do preconceito,

    discriminao e dio direcionada a grupos especficos. Para este autor, grupos de

  • 30

    pessoas religiosas podem ter excessivas expectativas em relao a si mesmos e,

    desse modo, tendem a excluir ou depreciar aqueles cujas crenas ou modos de vida

    difiram em relao a si, como no caso dos homossexuais. Neste sentido, em virtude

    do tipo de crena e sistema religioso ao qual o sujeito afiliado, os acontecimentos

    adversos podem gerar culpa, angstia, tristeza por assumir o merecimento do

    sofrimento ocasionado por estes perante a autoridade espiritual, associado ao

    aumento da autocrtica.

    Segundo Koenig (2009), um dos maiores e mais detalhados estudos da

    Gr-Bretanha examinou a prevalncia de delrios religiosos (religious delusions)

    entre pacientes com esquizofrenia (n = 193). Os resultados indicaram que aqueles

    com delrios religiosos (24%) tiveram sintomas mais graves, especialmente

    alucinaes e delrios bizarros, mau funcionamento, maior durao da enfermidade

    e maior dosagem de medicaes antipsicticas, comparados com pacientes com

    outros tipos de delrios.

    Um aspecto negativo de destaque relativo ao papel da religio no modo

    como alguns adeptos manejam seus cuidados com sade se refere a orient-los de

    maneira rgida e inflexvel, desestimulando a busca de cuidados mdicos, como o

    caso do indivduo que no aceita vacina ou da testemunha de Jeov que no aceita

    transfuso de sangue (DALGALARRONDO, 2008) ou mesmo do rastafri que no

    aceita cortar, amparar ou amputar qualquer parte do corpo. A morte do astro da

    musica reggae Bob Marley evidencia esta questo, na medida em que este recusou

    amputar um dedo do p afetado por um melanoma maligno, para no contrariar os

    princpios de sua religio (FRANCE PRESSE, 2011). Por fim, um estudo de Krause

    e Wulff (2004) de escala populacional nos EUA, verificou que lderes religiosos so

    os que mais so afetados por afetos e sintomas depressivos quando so acometidos

    por dvidas religiosas, possivelmente devido ao seu papel de destaque na

    instituio, tendo mais a perder do que aqueles menos envolvidos com a religio.

    1.7 Bases Neurobiolgicas da Religiosidade

    Presumivelmente, a atividade religiosa um fenmeno que deve

    particularmente implicar vrias reas do crebro humano, medida que envolve

    muitas funes cognitivas e emocionais, tais como alegria, medo, linguagem,

    memria, aprendizado, julgamento, razo (MURAMOTO, 2004). Apesar dos grandes

  • 31

    avanos, o conhecimento a respeito de seus fundamentos biolgicos ainda no

    satisfatrio.

    Persinger (1983) presume, de modo geral, que experincias

    transcendentais so evocadas por pequenas crises epilpticas transitrias nos lobos

    temporais. Diversos estudos relacionam as experincias desta natureza a crises

    epilticas ictais, peri-ictais e ps-ictais de lobo temporal, com incremento de

    sentimentos msticos e espirituais, bem como converso religiosa, em estados

    interictais (BEAUREGARD; PAQUETTE, 2006).

    Um estudo com freiras franciscanas utilizando tomografia por emisso de

    fton nico durante a prece, comparado com o estado de descanso, demonstrou

    aumento do fluxo sanguneo cerebral regional no crtex pr-frontal, lobos frontais

    inferiores e lbulo parietal inferior. Curiosamente, a mudana na atividade do crtex

    pr-frontal demonstrou correlao inversa com a atividade no lbulo parietal superior

    ipsilateral, regio neural associada percepo dos limites corporais (NEWBERG et

    al., 2003).

    Especificamente em relao neurocognio da religiosidade, segundo

    Inzlicht et al. (2009) a religio, por meio de seu sistema de crenas, atua como um

    guia e estabelece os padres do comportamento. Estes padres provm a estrutura

    sobre a qual o sujeito religioso entende e compreende a realidade na qual est

    inserido, atuando ativamente em seu meio, reduzindo a incerteza e minimizando a

    experincia do erro. Por exemplo, quando algo inesperado ocorre, a crena de que

    vontade de Deus pode aliviar ansiedade e promovendo uma sensao de paz

    interior (INZLICHT et al., 2009). Em resumo, a religio serve como uma explicao

    que pode acomodar muitas observaes sobre a vida, provendo previses

    adequadas do futuro e reduzindo ansiedade associada incerteza, justamente por

    minimizar a ativao do crtex cingulado anterior (CCA), como componente neural

    intrinsecamente associada experincia da ansiedade em situaes potencialmente

    ameaadoras. Estes autores sugerem que a convico religiosa restringe a atividade

    do CCA porque a convico age de forma semelhantemente ao ansioltico e arrefece

    a conseqncia afetiva dos erros e da incerteza.

    O estudo de Kappogiannis et al. (2009) investigou por meio de

    ressonncia magntica funcional que reas cerebrais estavam mais relacionadas a

    trs dimenses associadas a crenas religiosas (nvel de envolvimento de Deus

    percebido, emoo de Deus percebida e conhecimento religioso

  • 32

    doutrinal/experiencial). Afirmaes refletindo a falta do envolvimento ativaram reas

    neurais engajadas ao sistema de neurnios-espelho: o giro frontal inferior (GFI)

    bilateral, parte triangular (rea de Brodmann 45). Declaraes refletindo a emoo

    de Deus percebida engajou reas envolvidas na Teoria da Mente emocional e

    regulao emocional de ordem superior. No que se refere reflexo sobre a ira

    divina, o giro temporal mdio esquerdo, rea de Brodmann 21, envolvida na

    deteco da valncia emocional na expresso facial e contedo lingstico. A

    mesma rea responde a percepo lingstica do medo e media o reaparecimento

    consciente de emoes negativas percebidas. Por outro lado, afirmaes refletindo o

    amor de Deus ativaram o giro frontal mdio (GFM) direito, rea de Brodmann 11,

    rea envolvida em estados emocionais positivos e supresso da tristeza. Por fim, o

    conhecimento religioso doutrinal fortemente ativou regies temporais em

    comparao s imagens do conhecimento experiencial. Declaraes referindo o

    conhecimento doutrinal ativaram o giro temporal inferior, rea-chave na

    compreenso de metforas e na abstrao, dentre outras regies temporais

    associadas compreenso da linguagem. Por outro lado, o conhecimento

    experiencial da religio ativou uma rede que inclui os lobos occipitais (incluindo o

    pr-cneos esquerdo), o giro pr-central esquerdo e o GFI esquerdo. Esta rede

    classicamente media a imagem motora e visual da prpria ao, a qual pode ser

    disparada por contedo lingstico, baseado na lembrana de memrias episdicas.

    Segue abaixo, um quadro resumo de demais reas relatadas na literatura

    relacionadas experincia religiosa/espiritual:

  • 33

    Quadro 1 - Resumo das reas neurais e comportamentos correlatos envolvendo

    religiosidade/espiritualidade.

    reas neurais Comportamentos correlatos Autores

    Circuitos lmbicos e subcorticais + crtices frontal dorsolateral e orbital

    Alegria, amor, medo e xtase religiosos ou no

    Saver e Rabin, 1997

    Amgdala Experincias sensoriais com intenso significado, experincias freqentes de profunda e csmica significncia pessoal em resposta a eventos incomuns e singulares

    Persinger, 2001

    Circuito fronto-parietal (crtex pr-frontal dorsolateral direito, crtex pr-frontal dorsomedial e crtex parietal medial)

    Leitura de textos religiosos (salmos) por religiosos experincia religiosa, como um processo cognitivo

    Azari, Nickel et al., 2001

    Crtex pr-frontal medial Manuteno equilibrada de atividades religiosas obedincia a regras e costumes, auto-reflexo ou auto-monitoramento e teoria da mente

    Muramoto, 2004

    Crtices temporais do hemisfrio direito, amgdala, hipocampo e fibras da nsula (mudanas sbitas na qumica do crebro e sua atividade eletromagntica)

    Experincias paranormais (sensao de presena, envolvendo a aquisio de informao para alm dos sentidos especiais)

    Persinger, 2001

    1.8 Avaliao Psicomtrica de Fenmenos Humanos

    Apesar de suas limitaes, os benefcios da avaliao psicomtrica

    (objetividade, baixo custo, rapidez e fcil aplicao) ensejaram o desenvolvimento

    de escalas padronizadas que tm sido preferencialmente usadas em diversos

    campos cientficos. Alm disto, esse recurso oferece a possibilidade de avaliar a

    intensidade e a freqncia da ocorrncia de determinados comportamentos,

    pensamentos e sentimentos a partir de uma perspectiva dimensional (PASQUALI,

  • 34

    2010). Desse modo, a utilizao de instrumentos psicomtricos pode contribuir para

    pesquisas das reas da Psiquiatria, Neurologia e Psicologia Clnica, destinada

    populao clnica, em escala epidemiolgica, na medida em que facilita a

    comunicao entre diversos profissionais e estabelece critrios dimensionais e

    objetivos para avaliao padronizada dos construtos em questo (PASQUALI,

    2010).

    1.8.1 Mensurao da religiosidade

    Internacionalmente, foram criados inmeros instrumentos destinados a

    medir o grau de religiosidade das pessoas, com devida fundamentao cientfica,

    destinados populao dos pases em que foram desenvolvidos (HOOD JUNIOR,

    1975; PLANTE; BOCCACCINI, 1997a, 1997b; PLANTE et al., 1999; PLANTE et al.,

    2002; SHERMAN et al., 1999; STORCH et al., 2004). Por exemplo, Duke Religion

    Index (DUREL) (KOENIG; PARKERSON JUNIOR; MEADOR, 1997) e Santa Clara

    Strength of Religious Faith Questionnaire (SCSRFQ) (PLANTE, 1997a), procuram

    quantificar a freqncia da prtica religiosa dos sujeitos, como ir igreja ou orar,

    bem como estimar o grau de integrao/envolvimento da religio com a vida pessoal

    dos mesmos (PLANTE; BOCCACCINI, 1997a; STORCH et al., 2004). No entanto,

    uma srie de estudos acerca da relao entre aspectos diversos de religiosidade e

    construtos psiquitricos, como por exemplo, a ansiedade, utiliza instrumentos de

    avaliao no-publicados, com fracas propriedades psicomtricas, dificultando a

    generalizao dos achados e a reproduo dos mtodos em outros ambientes socio-

    culturais (SHREVE-NEIGER, EDELSTEIN, 2004). A maior dificuldade na

    interpretao destes estudos a definio precisa dos construtos, o que coloca em

    dvida a validade dos mesmos: se eles realmente medem o que pretendem medir.

    A Religiosidade, como um fenmeno pessoal e indefinvel, torna-se

    praticamente impossvel de ser circunscrito a uma quantificao ideal. Entretanto,

    fundamentando-se na teoria da Psicometria possvel contribuir cientificamente

    para o processo de mensurao de construtos pr-estabelecidos, qual seja,

    religiosidade intrnseca, o qual o objetivo deste trabalho. Dentro desta perspectiva,

    com uma medida de auto-relato, pretendemos estimar o mais objetivamente possvel

    o quanto o sujeito integra a religiosidade na sua vida e a tem como algo de maior

  • 35

    importncia e de maior motivao, mediante a representao lingstica (listagem de

    itens) dos comportamentos e pensamentos que perfazem tal conceito.

    1.9. Validao de testes psicolgicos

    Testes psicolgicos, em geral, necessitam portar adequada validez para

    ter seu uso reconhecido pela comunidade cientfica (PASQUALI, 1999, 2001 e

    2007). No entanto, existe, hoje em dia, uma mirade de vieses em validao, de

    diversas magnitudes, que contribuem mais para confundir do que para esclarecer:

    um teste pode ter um tipo de validade e um outro, outra (PASQUALI, 2007). Samuel

    Messick define de um modo moderno o conceito de validade, em acordo com a

    American Psychological Association (APA, 1985), quando afirma:

    Validade um julgamento avaliativo integrado do grau em que evidncia

    emprica e racionalizaes tericas apiam a adequao e propriedade de

    inferncias e aes baseadas em escores de teste ou outros modos de

    avaliao. (apud PASQUALI, 2007)

    Na literatura tradicional e atual sobre o tema, diversos tipos de validaes

    para testes psicolgicos so assumidas, a saber, validade de construto (construct

    validity), validade de contedo (content validity), validade de critrio (criterion-

    oriented validity), validade preditiva (predictive validity), validade posditiva (posdictive

    validity), validade concorrente (concorrent validity, variedade da validade de critrio),

    validade aparente (face validity), validade convergente (convergent validity), validade

    fatorial (factorial validity), validade substantiva (substantive validity), validade

    estrutural (structural validity), validade interna (internal validity), etc. Portanto, como

    afirma Pasquali (2007), a validade de um instrumento de medida j no mais um

    parmetro objetivo, englobando uma gama muito grande de situaes onde se pode

    estabelecer a validade de um teste, encerrando uma srie de questes filosficas.

    Para este autor, Borsboom, Mellenbergh e van Heerden problematizam muito bem a

    questo ao afirmarem:

    O conceito de validade com o qual os tericos esto interessados parece estranhamente divorciado do conceito que pesquisadores tm em mente quando colocam a questo da validade. Isso se deve a que, no sculo passado, a questo da validade evoluiu da questo de se a gente mede o

  • 36

    que se pretende medir para a questo de se relaes empricas entre escores de um teste se emparelham com relaes tericas numa rede nomolgica e, finalmente, para a questo de se interpretaes e aes baseadas em escores de testes so justificadas no somente luz de evidncia cientfica, mas com respeito a conseqncias sociais e ticas do seu uso. (apud Pasquali, 2007)

    A rede nomolgica, inventada por Cronbach e Meehl (1955), significa um

    sistema estabelecido de leis estatsticas ou determinsticas em que determinado

    fenmeno ocorre para se tornar claro o que algo seja, podendo relacionar a

    propriedades ou quantidades observveis entre elas mesmas; construtos tericos a

    observveis; ou diferentes construtos tericos entre eles mesmos. De fato,

    construtos admissveis cientificamente devem ocorrer numa rede nomolgica, no

    necessariamente passveis de observao, mas envolvendo, pelo menos, algumas

    leis observveis (PASQUALI, 2007).

    Um teste psicolgico deve ser um conjunto constitudo de

    comportamentos que o sujeito deve exibir. Ele um teste vlido se todos os

    comportamentos envolvidos no conjunto se referirem mesma coisa, ou seja, ao

    mesmo construto (unidimensionalidade). Se o construto diferir em magnitude para

    diferentes sujeitos, com alguns destes apresentando mais dos comportamentos

    envolvidos do que outros, ento, aquele deve ser uma realidade, na medida em que

    os comportamentos envolvidos no teste realmente existem e causador das

    respostas dos sujeitos, uma vez que produz diferenas nos comportamentos destes.

    Os parmetros de validade e preciso so caractersticas do teste, e no da medida

    feita de um objeto. Esta ltima confivel e legtima se o instrumento que a produziu

    for vlido (pertinente, relevante) e preciso (calibrado). Quem garante a qualidade da

    medida a pertinncia do instrumento com respeito ao objeto que se quer medir;

    uma questo de referncia (PASQUALI, 2007).

    Um teste, ento, um conjunto de estmulos que pretendem produzir

    comportamentos (estmulos comportamentais). Sendo assim, constitudo de um

    conjunto de comportamentos observveis. O psiclogo procura entender tais

    comportamentos com referncia a processos psquicos (os construtos), que se

    constituem como a causa do comportamento manifesto, entendidos como realidades

    ontolgicas e no como racionalizaes inseridas numa rede nomolgica. O fato de

    que esses processos psquicos sejam minimamente conhecidos (isto ,

    praticamente desconhecidos) no invalidam sua presena, muito menos sua

  • 37

    utilidade cientfica. O construto (trao latente, teta) se posiciona como o objeto que o

    teste quer medir, isto , ele o aquilo que o teste pretende medir, assim, o

    referencial para os resultados de um teste. Assim, o que a Psicometria preconiza

    que o teste no prediz um teta, ele apenas o representa ou o modela do ponto de

    vista comportamental (PASQUALI, 2007).

    1.9.1. Elaborao dos itens e validao de contedo

    Validade de contedo estabelecida dedutivamente demonstrando que

    os itens contidos nos questionrios so uma amostra do universo no qual o

    investigador est interessado, atravs da anlise semntica, que compreende a

    inteligibilidade dos itens, e da anlise por juzes, que trata da pertinncia dos

    mesmos.

    Neste contexto, foram realizadas as seguintes atividades: 1) reviso da

    literatura; 2) entrevistas realizadas com profissionais de nvel superior, com algum

    percurso na temtica em questo; 3) entrevistas realizadas com a populao-alvo

    (religiosos ligados a alguma instituio religiosa); 4) pr-testagem dos instrumentos.

    1.9.2. Validao de construto

    Finalizada a etapa anterior, segue-se a validade de construto, ou de

    conceito, dos instrumentos, que se do mediante procedimentos experimentais

    (planejamento da pesquisa e coleta de dados) e analticos (tratamento estatstico e

    anlise dos resultados) (PASQUALI, 1999).

    A validade de construto pode ser considerada como a mais importante

    etapa de validao de um instrumento psicomtrico, pois possibilita uma avaliao

    da representao comportamental dos traos latentes. A validao de construto,

    atualmente, tem como objetivo verificar se um teste refere-se de forma apropriada a

    um determinado construto, ou seja, se as pessoas com determinadas caractersticas

    agem conforme o que a teoria prediz e tambm quais itens ou fatores so mais

    pertinentes ao construto. A validade de construto pode ser trabalhada sob dois

  • 38

    ngulos: anlise da representao comportamental do construto e a anlise por

    hiptese.

    A anlise da representao comportamental do construto baseia-se em

    duas tcnicas distintas: a anlise de preciso (investiga a homogeneidade dos itens

    que compem o instrumento) e a anlise fatorial (qual a quantidade de construtos

    necessrios para explicar as covarincias desses itens), sendo que esta ltima no

    foi realizada neste estudo. O conceito de preciso ou fidedignidade de uma medida

    psicolgica est ligado variabilidade produzida por fatores alheios ao construto

    (conceito de varincia de erro) e se refere a quanto um escore obtido em um

    determinado momento se refere a caractersticas estveis do sujeito. O coeficiente

    de preciso pode ser calculado por diferentes tcnicas, dentre estas, esto a

    preciso teste-reteste, a preciso de formas alternativas (paralelas) e a consistncia

    interna (sendo o clculo do Alpha de Cronbach a tcnica mais utilizada para

    avaliao de medidas escalares, indicando quais itens tm maior correlao com o

    escore total da escala, ou seja, confiabilidade, e, portanto, maior qualidade

    psicomtrica) (PASQUALI, 2001).

    Uma das tcnicas mais utilizadas para se estabelecer este tipo de

    preciso e verificar a homogeneidade da amostra de itens do teste, como j foi dito,

    o clculo do alfa de Cronbach. Os clculos do alfa de Cronbach das presentes

    escalas geraram os seguintes ndices: 1) 0,93, para Religiosidade Intrnseca

    (questionrio 1); 2) 0,91, para Religiosidade Extrnseca (questionrio 2); e 0,92, para

    Sensibilidade Espiritual (questionrio 3).

    A anlise por hiptese fundamenta-se no poder que um teste psicolgico

    tem de discriminar ou predizer um critrio externo a ele mesmo, distinguindo grupos-

    critrio que difiram especificamente no trao que o teste mede. Um critrio bastante

    utilizado, neste sentido, a tcnica da validao convergente/divergente

    (PASQUALI, 1999). Neste estudo, procura-se estabelecer uma correlao entre o

    instrumento criado e os instrumentos correlatos a esse (com devida qualidade

    psicomtrica). Neste ponto, valida-se o novo instrumento quando so encontradas

    correlaes coerentes entre os escores deste e os escores de instrumentos

    convergentes ou divergentes, estabelecidos pela literatura (REPPOLD, 2005). Para

    a validade convergente, necessrio que se tenha um instrumento de medida

    correlato que exera o papel de padro-ouro em estatstica, servindo como

    parmetro para a comparao (PASQUALI, 2001). Se forem encontradas

  • 39

    correlaes positivas entre os instrumentos em que se espera, teoricamente, que

    estejam correlacionados, h de se confirmar teoricamente o propsito da nova

    medida, indicando convergncia entre os construtos avaliados. Para a validao

    divergente, h de se estimar a ocorrncia de correlaes negativas entre os

    instrumentos em que se espera, teoricamente, que estejam direcionados

    inversamente.

    1.9.3. Validade de critrio

    A validade de critrio uma etapa do mtodo psicomtrico que visa

    predizer um critrio esterno e se d quando h correlao adequada entre o

    instrumento sob anlise e preditores pr-estabelecidos, com a confirmao de

    prognstico, desempenho ou qualquer indicador de comportamento. A validao de

    critrio pretende verificar o quanto as escalas podem predizer as caractersticas do

    indivduo no presente (validade concorrente), passado (validade posditiva) ou futuro

    (validade preditiva) atravs de pesquisas de delineamento transversal e longitudinal.

    O essencial nesse procedimento que os critrios escolhidos como referncia

    sejam condizentes finalidade do instrumento. Neste estudo, a qualidade do teste

    determinada pela sua capacidade de discriminar diferenas no comportamento

    religioso dos sujeitos (PASQUALI, 1999, 2007; REPPOLD, 2005).

    Neste tipo de validao, um determinado critrio (p. ex., pessoas com

    ausncia de qualquer crena religiosa, ou, religiosos considerados lderes em sua

    instituio) passa a ser parmetro para que se certifique que o instrumento

    consegue, de fato, dimensionar adequadamente o construto desejado. Aqui, verifica-

    se a capacidade que o instrumento tem de diferenciar sujeitos que apresentam

    magnitudes prximas no trao investigado, permitindo que se identifique o poder de

    discriminao dos itens. Esta discriminao pode ser estabelecida por diferentes

    formas, tais como a seleo de grupos-critrio, a anlise dos ndices de

    discriminao do item e a teoria de resposta ao item (TRI) (PASQUALI, 1999, 2001).

  • 40

    1.10 Justificativa

    O presente estudo se justifica pela escassez de instrumentos destinados a

    avaliao da religiosidade no contexto brasileiro. Recentemente, um grupo de

    pesquisadores traduziu a verso original da DUREL para o portugus brasileiro, que

    foi validado em uma amostra de baixa renda de uma comunidade proveniente da

    cidade de So Paulo. Os achados deste esforo inicial de validao da P-DUREL

    demonstraram adequada validade discriminante e elevada consistncia interna.

    Neste sentido, o presente estudo tem como objetivo ampliar o espectro populacional

    nacional no qual o instrumento poder ser aplicado, avaliando suas propriedades

    psicomtricas em duas amostras com caractersticas distintas do primeiro estudo de

    validao (amostras clnica e com mais altas escolaridade e renda). Alm disso,

    alm de avaliar sua consistncia interna e validade convergente-discriminante,

    pretendemos avaliar a confiabilidade teste-reteste e suas possveis relaes com

    espiritualidade e sintomas de sofrimento psicolgico, ampliando o escopo

    investigativo inicial.

  • 41

    2 OBJETIVOS

    2.1 Objetivo Geral

    Validar o ndice de Religiosidade Intrnseca (IRI) em amostras

    universitria e psiquitrica.

    2.2 Objetivos Especficos

    1. Avaliar as propriedades psicomtricas (validade e preciso) do IRI em

    duas amostras distintas (universitria e psiquitrica);

    2. Correlacionar as escalas de religiosidade (IRI, DUREL) com escalas de

    sade mental que avaliam sintomas depressivos e ansiosos (Inventrio Beck para

    Depresso BDI; Inventrio Beck para Ansiedade BAI; Escala Hospitalar de

    Ansiedade e Depresso - HADS) em duas amostras distintas (universitria e

    psiquitrica);

    3. Verificar a correlao entre ndices de religiosidade (IRI, DUREL) com

    um ndice de qualidade de vida, a saber, a Escala de Qualidade de Vida da

    Organizao Mundial de Sade verso breve (WHOQOL-BREF) em duas

    amostras distintas (universitria e psiquitrica).

  • 42

    3 METODOLOGIA

    3.1 Local do Estudo

    Universidade Federal do Cear (UFC), Campi de Benfica e

    Porangabussu, localizados na cidade de Fortaleza, Cear e ambulatrio

    especializado de Psiquiatria do Hospital Universitrio Walter Cantdio (HUWC). O

    HUWC se caracteriza como um hospital pblico universitrio de atendimento

    tercirio da rede pblica que presta assistncia de alta complexidade pelo Sistema

    nico de Sade (SUS), realizando desde transplantes at pesquisas clnicas

    relacionadas a diversos programas de ps-graduao regionais e nacionais.

    Vinculado Secretaria de Sade do Estado do Cear, o hospital recebe pacientes

    de baixo padro socioeconmico da cidade de Fortaleza e demais municpios do

    Cear. Caracteriza-se como referncia local e regional de ensino, pesquisa e

    assistncia de alta complexidade, abrangendo nove programas de ps-graduao,

    alm de cerca de 1500 funcionrios, 147 residentes e 600 estudantes de graduao

    (LAGE; MONTEIRO, 2007).

    3.2 Descrio das Amostras

    O estudo foi realizado com estudantes de Psicologia e Medicina do 1 ao

    5 semestre da graduao, sem restrio de idade, de ambos os sexos, sem

    qualquer outra formao universitria, selecionados na Universidade Federal do

    Cear (UFC) e com pacientes ambulatoriais psiquitricos selecionados por

    convenincia junto ao HUWC, de ambos os sexos, sem restries para escolaridade

    ou idade.

  • 43

    3.3 Critrios de Incluso

    Estudantes universitrios da UFC, de ambos os gneros, com idade

    acima de 18 anos, com anuncia e assinatura do TCLE (Termo de Consentimento

    Livre e Esclarecido apndice A), aps a explicao dos objetivos e da metodologia

    do estudo.

    Pacientes ambulatoriais psiquitricos do HUWC estabilizados, de ambos

    os gneros, com idade acima de 18 anos, com anuncia e assinatura do TCLE

    (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido apndice A), aps a explicao,

    mediante leitura do referido documento, dos objetivos e da metodologia do estudo.

    3.4 Critrios de Excluso

    Recusa verbal do sujeito; presena de outra patologia (cegueira, mudez,

    demncia, retardo mental ou episdio psictico agudo) que impossibilite responder o

    questionrio.

    3.5 Instrumentos

    Inventrio de Religiosidade Intrnseca (IRI): consiste em um

    questionrio estruturado, composto por 14 itens em sua verso inicial, os quais

    esto organizados em escala Likert, com escores variando de 1 a 5 que refletem

    gradaes de intensidade/frequncia: 1-nunca, 2-raramente, 3-ocasionalmente

    4-frequentemente e 5-sempre (Apndice B);

    Inventrio de Religiosidade Duke, verso brasileira - DUREL (KOENIG

    et al., 1997; LUCCHETTI et al., 2010): possui cinco itens destinados a mensurar

    algumas dimenses de religiosidade: religiosidade organizacional (RO), religiosidade

    no-organizacional (RNO) e religiosidade intrnseca (RI). Os primeiros dois itens

    abordam RO e RNO, enquanto que os demais itens se referem RI. Na anlise dos

    resultados da DUREL, segundo instrues dos autores e tradutores, as pontuaes

    nas trs dimenses (RO, RNO e RI) devem ser analisadas separadamente e os

    escores dessas trs dimenses no devem ser somados em um escore total. O

  • 44

    coeficiente alfa de Cronbach do componente intrnseco da escala na amostra 1 foi

    0,89 e na amostra 2 foi 0,87 (Anexo A);

    Mdulo de Espiritualidade, Religiosidade e Crenas Pessoais do

    WHOQOL-100 WHOQOL-SRPB (Development of the World Health Organization

    WHOQOL-BREF quality of life assessment. The WHOQOL Group, 1998): consiste

    em 4 itens designados a examinar as crenas pessoais e como estas afetam sua

    qualidade de vida e o enfrentamento das adversidades. Este instrumento pode ser

    aplicado a indivduos com diversas crenas religiosas, bem como aqueles cuja

    crena religiosa ou espiritual no corresponde a uma religio particular. Os itens

    devem ser somados para gerar um escore total (FLECK et al., 2003) (Anexo B);

    Inventrio de Beck para Depresso BDI (BECK et al., 1961): Esta

    escala um instrumento de auto-relato estruturado, composto por 21 categorias de

    sintomas e atitudes (pessimismo, insatisfao, sentimentos de culpa, sentimentos de

    fracasso, etc.), que descrevem manifestaes comportamentais, cognitivas, afetivas

    e somticas da depresso. Cada categoria contm quatro alternativas que

    expressam nveis de gravidade dos sintomas depressivos, onde a pontuao varia

    de zero (ausncia de sintomas depressivos) a trs (presena dos sintomas mais

    intensos - Anexo C) (CUNHA, 2001);

    Inventrio de Ansiedade de Beck - BAI (BECK et al., 1988): Esta escala

    um instrumento de auto-relato estruturado, composto por 21 itens descrevendo

    sintomas comuns em quadros de ansiedade. perguntado ao sujeito o quanto este

    foi incomodado por cada sintoma na semana precedente, dentro de uma escala de

    quatro pontos, variando de zero (absolutamente no) a trs (severamente) (CUNHA,

    2001) (Anexo D);

    Instrumento de Avaliao de Qualidade de Vida da Organizao

    Mundial de Sade- verso abreviada, WHOQOL-BREF (Development of the World

    Health Organization WHOQOL-BREF quality of life assessment. The WHOQOL

    Group, 1998): Este um instrumento um instrumento de auto-relato estruturado,

    constitudo por 26 questes, abrangendo 4 domnios da QV (fsico, psicolgico,

    relaes sociais e meio ambiente). A verso brasileira apresentou excelentes

    propriedades psicomtricas de confiabilidade, consistncia interna, correlao

    teste-reteste e validade aparente e de critrio quando aplicado a amostras de

    sujeitos saudveis e com condies mdicas gerais (Fleck et al., 2000) (Anexo E);

  • 45

    Escala Hospitalar de Ansiedade e Depresso HADS (ZIGMOND;

    SNAITH, 1983): Esta escala um instrumento de auto-relato estruturado, que possui

    14 itens, dos quais sete so voltados para a avaliao da ansiedade (HADS-A) e

    sete para a depresso (HADS-D). Cada um dos seus itens pode ser pontuado de

    zero a trs, compondo uma pontuao mxima de 21 pontos para cada escala

    (BOTEGA et al., 1995) (Anexo F).

    3.6 Desenvolvimento do Inventrio de Religiosidade Intrnseca da Universidade

    Federal do Cear (IRI)

    O autor deste trabalho juntamente com dois de seus co-autores

    (GONDIM, Francisco de Assis Aquino; RLA, Francisco Hlio) desenvolveram uma

    verso inicial do IRI, a partir da compilao de afirmativas com temas relacionados

    ao construto religiosidade intrnseca baseados na reviso de literatura e na sugesto

    de especialistas (telogos, antroplogos, psiquiatras e psiclogos), gerando 14 itens.

    Tais itens foram organizados em escala Likert nos quais cada afirmativa encontra-se

    atrelada a cinco possibilidades de respostas (ver Apndice A). Os critrios utilizados

    para retirada de itens no pertinentes so apresentados na seo Anlise

    estatstica de dados, a seguir.

    3.7 Procedimentos

    Para execuo do presente estudo, foram aplicados s amostras os

    questionrios descritos acima. Na amostra de estudantes, as aplicaes deram-se

    em sala de aula, com a permisso do professor responsvel, em turmas do 1 ao 5

    semestres dos cursos de Psicologia e Medicina. As aplicaes duraram cerca de

    trinta minutos para cada sujeito. Na amostra clnica, as aplicaes foram

    intermediadas pelo auto