PRINCÍPIOS E GARANTISMO NA EXECUÇÃO PENAL … · natureza mista. Renato Marcão (2009, p. 2),...

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PRINCÍPIOS E GARANTISMO NA EXECUÇÃO PENAL PRINCIPIOS E GARANTISMO EN LA EJECUCIÓN PENAL Rafael Cavinato Sanchez RESUMO A denominada crise do sistema penitenciário, agravada pelo aumento da criminalidade e da violência urbana, reclama urgente reforma na legislação penal e no sistema como um todo. Baseado nas idéias trazidas pelo garantismo penal, a doutrina moderna defende uma ampla mudança dos modelos punitivos, buscando alternativas às penas de prisão, bem como a busca pelo respeito aos direitos fundamentais do preso, expressos na Constituição Federal. O presente trabalho tem o escopo de realizar um breve estudo sobre o sistema carcerário adotado no Brasil, apresentando os princípios que regem a Execução Penal, bem como as idéias de reforma propostas pelos autores adeptos do garantismo penal. PALAVRAS-CHAVES: OBJETIVOS DA EXECUÇÃO PENAL; PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS; GARANTISMO PENAL. RESUMEN La llamada crisis en el sistema penitenciario, agravada por el aumento de la delincuencia y la violencia urbana, pide una reforma urgente en el derecho penal y el sistema en su conjunto. Sobre la base de las ideas presentadas por garantismo penal, la moderna doctrina aboga por un amplio cambio de los modelos punitivos, la búsqueda de alternativas a las penas de prisión, y la búsqueda de respeto de los derechos fundamentales de los detenidos, expresada en la Constitución. Este trabajo tiene el alcance para llevar a cabo un breve estudio sobre el sistema penitenciario adoptado en el Brasil, presentando los principios de Ejecución Penal, las ideas y de propuestas de reforma de los autores partidarios de garantismo garantizada. PALAVRAS-CLAVE: OBJETIVOS DE EJECUCIÓN PENAL; PRINCIPIOS CONSTITUCIONALES; GARANTISMO PENAL. INTRODUÇÃO Fruto das mais variadas críticas pela doutrina moderna, em especial, pelos autores penalistas, o sistema carcerário brasileiro passa por uma ampla revisão de seus princípios, de sua ideologia, de seus fundamentos, máxime pelo número cada vez maior de reclusos, bem como pelo aumento da violência urbana, bem ainda pelo papel a ser 1552

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PRINCÍPIOS E GARANTISMO NA EXECUÇÃO PENAL

PRINCIPIOS E GARANTISMO EN LA EJECUCIÓN PENAL

Rafael Cavinato Sanchez

RESUMO

A denominada crise do sistema penitenciário, agravada pelo aumento da criminalidade e da violência urbana, reclama urgente reforma na legislação penal e no sistema como um todo. Baseado nas idéias trazidas pelo garantismo penal, a doutrina moderna defende uma ampla mudança dos modelos punitivos, buscando alternativas às penas de prisão, bem como a busca pelo respeito aos direitos fundamentais do preso, expressos na Constituição Federal. O presente trabalho tem o escopo de realizar um breve estudo sobre o sistema carcerário adotado no Brasil, apresentando os princípios que regem a Execução Penal, bem como as idéias de reforma propostas pelos autores adeptos do garantismo penal.

PALAVRAS-CHAVES: OBJETIVOS DA EXECUÇÃO PENAL; PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS; GARANTISMO PENAL.

RESUMEN

La llamada crisis en el sistema penitenciario, agravada por el aumento de la delincuencia y la violencia urbana, pide una reforma urgente en el derecho penal y el sistema en su conjunto. Sobre la base de las ideas presentadas por garantismo penal, la moderna doctrina aboga por un amplio cambio de los modelos punitivos, la búsqueda de alternativas a las penas de prisión, y la búsqueda de respeto de los derechos fundamentales de los detenidos, expresada en la Constitución. Este trabajo tiene el alcance para llevar a cabo un breve estudio sobre el sistema penitenciario adoptado en el Brasil, presentando los principios de Ejecución Penal, las ideas y de propuestas de reforma de los autores partidarios de garantismo garantizada.

PALAVRAS-CLAVE: OBJETIVOS DE EJECUCIÓN PENAL; PRINCIPIOS CONSTITUCIONALES; GARANTISMO PENAL.

INTRODUÇÃO

Fruto das mais variadas críticas pela doutrina moderna, em especial, pelos autores penalistas, o sistema carcerário brasileiro passa por uma ampla revisão de seus princípios, de sua ideologia, de seus fundamentos, máxime pelo número cada vez maior de reclusos, bem como pelo aumento da violência urbana, bem ainda pelo papel a ser

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exercido pelo Estado auto-intitulado Democrático de Direito, em relação aos direitos assegurados aos presos.

Partindo desta última premissa, nota-se que o modelo de execução penal adotado no Brasil, além da finalidade primordial de cumprimento da sentença penal condenatória ou da sentença absolutória imprópria, prega uma série de direitos e garantias ao sentenciado, com objetivos de reinserção social, decorrentes do princípio da humanização das penas, tão defendido e aclamado nas últimas décadas.

Entrementes, na prática, observa-se que o efeito produzido ao encarcerado é justamente o contrário ao discurso legal, em total desrespeito aos princípios assegurados pela Constituição Federal e pela Lei de Execuções Penais.

Demais disso, em decorrência do aumento da criminalidade, verifica-se, por parte do Poder Legislativo, a produção de leis penais imediatistas, que além de não solucionar o problema, muitas vezes, acabam por ferir inúmeros direitos conquistados ao longo da história.

Na tentativa de solução de parte dos problemas enfrentados, a doutrina garantista, resgatando os princípios que asseguram a prevalência dos direitos humanos contra os abusos do poder estatal, busca enfatizar a necessidade da total observância destes princípios, aprimorando-se todo o ordenamento no tocante à Execução Penal como um todo, re-analisando toda a sua estrutura.

Desta forma, o presente trabalho tem por escopo o enfoque dos institutos e princípios que regem a Execução Penal, bem como acentuar os principais aspectos da ideologia garantista, no tocante aos direitos dos presos, em breve crítica à realidade do sistema carcerário nacional.

1 - BREVE HISTÓRICO DO MODELO CARCERÁRIO ADOTADO NAS SOCIEDADES CAPITALISTAS

Fruto do pensamento da escola liberal-clássica e, posteriormente, da escola positivista, a ideologia da defesa social fundamentou o modelo jurídico burguês e, por conseqüência, o sistema penal. Em decorrência desta ideologia, os institutos de detenção, de início, tinham a função de solucionar o problema da marginalização criminal, excluindo da sociedade os considerados infratores da lei.

Nos dizeres de Alessandro Baratta, "a marginalização criminal revela o caráter impuro da acumulação capitalista, que implica necessariamente os mecanismos econômicos e políticos do parasitismo e da renda" (1997, p. 190).

Deste ponto, instituiu-se um sistema de literal exclusão dos marginalizados pelo capitalismo, visto que este sistema necessita obrigatoriamente de desempregados e de uma população carcerária composta por aqueles que, por motivo ideológico ou econômico não participam da distribuição de renda, ou ainda, não conseguem o auto-sustento, tornando-se reféns do próprio sistema carcerário nacional. "Hoy sabemos perfectamente que los presos no están presos por el delito que han cometido, sino por su

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vulnerabilidad, es decir, que el sistema penal opera como una epidemia, que afecta a quienes tienen sus defensas bajas" (ZAFFARONI, 2006, p. 222).

Baratta (1997, p. 193), analisando os estudos de Rusche e Kirchheimer [1] e de Foucault [2], na reconstrução científica da história do cárcere e de sua reforma na sociedade capitalista, define que

As funções desta instituição na produção e no controle da classe operária, e na criação do universo disciplinar de que a moderna sociedade industrial tem necessidade, são elementos indispensáveis a uma epistemologia materialista, a uma "economia política" da pena.

Uma vez instituído o sistema punitivo, e com o desenvolvimento dos países capitalistas, o cárcere perde suas funções de reeducação e de disciplina, estas que passam a ser pura ideologia, ante a impossibilidade de o sistema penitenciário suportar toda a parcela de infratores da lei. Para Zaffaroni (2006, p. 223),

Sabemos que la ejecución penal no resocializa ni cumple ninguna de las funciones "re" que se la han inventado ("re"-scocialización, personalización, individuación, educación, inserción, etc.), que todo eso es mentira y que pretender enseñarle a um hombre a vivir em sociedad mediante el encierro es, como dice Carlos Elbert, algo tan absurdo como pretender entrenar a alguien para jugar futbol dentro de um ascensor.

Diante desta crise, outros sistemas de cumprimento de pena foram propostos como formas alternativas ao cárcere, como por exemplo, o modelo da probation, verificado nos institutos do sursis e do livramento condicional. Vale lembrar, também, a inserção no ordenamento jurídico brasileiro das denominadas penas alternativas, além do regime aberto de cumprimento de pena na modalidade prisão albergue domiciliar.

Mais uma vez, Zaffaroni defende uma modificação para o modelo de direito penal humanitário, com ampla aplicação das penas alternativas ao cárcere, reduzindo-se o número de detentos, bem como evitando a indiscriminada imposição de penas de morte.

1.1 - O SISTEMA ADOTADO NO BRASIL

A doutrina consagra três sistemas possíveis de execução penal: os sistemas administrativos, os sistemas jurisdicionais e os sistemas mistos.

Bastante controvertida e divergente se mostra a natureza jurídica da execução penal pelo modelo adotado no Brasil.

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Para Ada Pellegrini Grinover (1987, p. 7), Julio Fabbrini Mirabete (2000, p. 18), e outros, trata-se de atividade de natureza administrativa e jurisdicional, portanto, de natureza mista. Renato Marcão (2009, p. 2), Aury Lopes Jr. (2007, p. 273), entre outros, entendem que a execução penal é de natureza jurisdicional.

Tradicionalmente, o direito penitenciário é autônomo, distinto do direito penal e processual penal, regulamentando toda a atividade e organização carcerária (aspecto administrativo).

Ocorre que a adoção de um modelo essencialmente administrativista, não subordinado a qualquer juízo de execução ou ao Ministério Público, leva ao inteiro arbítrio da autoridade responsável (característico das instituições totais), sem que haja qualquer respaldo à preservação dos direitos dos presos. Desta forma, a Lei 7.210/84 normatizou a jurisdicionalização da execução da pena, justamente com a finalidade de diminuir violações e assegurar as garantias do cidadão no cárcere.

Salo de Carvalho (2003, p. 171) leciona que

A anunciada natureza mista e multiforme da execução penal impõe séria avaliação no que diz respeito à tutela do condenado frente ao poder administrativo. Se é relativamente pacífico na doutrina, após o estatuto de 1984, o direito do apenado à jurisdição, tal conteúdo material carece de eficácia na vida carcerária quando da necessidade de controle da legalidade. Não se pode olvidar que a execução está vinculada à sentença penal, constituindo lesão toda e qualquer atividade restritiva além do estabelecido pelo Estado-juiz.

De outro lado, Aury Lopes Jr. aponta os inconvenientes do modelo inquisitório presente na execução penal brasileira, por exemplo, a atuação ex officio do juiz, por comprometer a imparcialidade do julgamento. Isto porque, segundo o autor, "o processo de execução concebido pela LEP é inquisitório, incompatível com a matriz democrática-garantista [3] e, portanto, acusatória, da nossa Constituição" (LOPES JR., 2007, p. 373).

Para solucionar estes inconvenientes, Lopes Jr. (2007, p. 377) sugere o rompimento com o sistema jurídico misto e a completa jurisdicionalização da Execução Penal, moldando-a na estrutura dialética do processo.

Devemos aproximar a execução penal da estrutura dialética do processo de conhecimento, deixando o juiz como um terceiro imparcial, colocando a iniciativa nas mãos do Ministério Público e assegurando ao apenado a possibilidade de resistir e fazer valer seus direitos públicos subjetivos, através de um procedimento jurisdicional, contraditório e com ampla defesa (principalmente técnica, a cargo de advogado).

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Logo, apesar da Lei de Execuções Penais ter normatizado a jurisdicionalização da execução da pena, vê-se que o modelo instituído é incompatível com os princípios democráticos estabelecidos pela Constituição Federal de 1988.

2 - OBJETIVOS DA EXECUÇÃO PENAL

O artigo 1º da Lei 7.210/84 salienta que o objetivo da execução penal é efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal, bem como, o de proporcionar condições para a reintegração do condenado (ou internado) à sociedade de maneira harmônica.

Renato Marcão, analisando os pressupostos da execução penal, leciona que a "execução penal deve objetivar a integração social do condenado ou do internado, já que adotada a teoria mista ou eclética, segundo a qual a natureza retributiva da pena não busca apenas a prevenção, mas também a humanização" (2009, p. 1).

Embasada pelo movimento da Nova Defesa Social, a reforma na legislação penal brasileira de 1984 consagrou a idéia de ressocialização do condenado como principal objetivo da pena, em contraposição ao caráter meramente retributivo da pena.

Ilustra Salo de Carvalho que "Nas palavras do idealizador do movimento, uma política criminal de luta contra o crime é antes de tudo, em se tratando de medidas a adotar em relação ao delinqüente, orientada visando à prevenção da reincidência" (2003, p. 179).

Nota-se que a política criminal pretende desenvolver uma ação eficaz contra o crime nos âmbitos legislativo, judiciário e penitenciário, em razão de uma política global de prevenção do crime e tratamento do delinqüente.

Entrementes, a intervenção do Estado na esfera da consciência do presidiário é tema muito questionado pela doutrina, por ferir a liberdade interior do condenado, bem como por querer impor-lhe novos valores, formas de comportamento, no sentido de se alcançar uma 'cura moral'.

A grande crítica que se faz a esta política reside no fato de que, em primeiro lugar, elevou-se a importância da criminologia clínica. Neste aspecto, os laudos dos psicólogos e psiquiatras que compõe as Comissões Técnicas de Classificação acabam por vincular a decisão do magistrado em relação aos benefícios do detento, configurando-se um verdadeiro retrocesso ao sistema de prova tarifada, típica dos processos inquisitivos.

Em segundo lugar, critica-se a retórica disciplinar, ao analisar o recluso como um rebelde das regras da convivência social, devendo ser-lhe imposto um regime de disciplina severa.

Carvalho (2003, p. 182) leciona que

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Com o intuito de docilizar os corpos e adestrar a alma a partir de um processo contínuo de fabricação de seres submissos, as disciplinas ingressam oficialmente na história da punição como uma forma de 'humanização da pena'. Punir mais e melhor, técnica legitimada desde um discurso humanitário encobridor do real, possibilitou a difusão desta nova economia política de poder.

O problema desta ideologia de tratamento, presente nos modelos de ressocialização e readaptação, cria parâmetros de conduta e de pensamento oriundas das classes detentoras do poder, proliferando "estereótipos operados pela psiquiatrização da criminologia e a consolidação das noções periculosistas" (CARVALHO, 2003, p. 183).

Para exemplificar o acima discorrido, o art. 5º da Lei de Execuções Penais, ao dispor sobre a 'classificação' do condenado, estabelece como critério para individualização da pena os antecedentes e a personalidade do agente. Outro exemplo embasado no discurso da defesa social se faz presente no artigo 83, parágrafo único, do Código Penal, ao estabelecer, como uma das condições para concessão do livramento condicional, a constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinqüir.

Vê-se que estas avaliações criminológicas sobre a personalidade e conduta social traduzem-se em verdadeiras formas inquisitivas adotadas pela lei, haja vista sua mera função de legitimar decisões judiciais, com possibilidades remotas de contestação dos laudos, além da ampla possibilidade de que arbitrariedades sejam praticadas.

Estas formas inquisitivas adotadas no processo de execução penal encobrem a verdadeira finalidade do sistema, qual seja, o controle da massa carcerária.

Salo de Carvalho (2003, p. 194) aduz que

Autoridade inconteste e obediência servil são pressupostos desse modelo pré-disposto a fugas, rebeliões e motins. A resistência às manifestações agressivas da comunidade carcerária, natural nas circunstâncias da perda da liberdade, acaba sendo a principal função da administração.

3 - PRINCÍPIOS E GARANTISMO

Para os autores que defendem, não só a completa jurisdicionalização da Execução Penal, mas também, a observância dos princípios e da ideologia garantista em consonância com a Constituição Federal, deve haver uma revisão dos dispositivos legais, seja via controle de constitucionalidade, seja via reformas legislativas, para fins de redefinição dos institutos de direito penal e execução de suas penas.

Luigi Ferrajoli (2006, p. 378), ao abordar a 'crise do sistema penal', leciona que

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Uma das tarefas mais importantes que se impõe à atual reflexão filosófico-penal é, portanto, a formulação, sobre a base de um repensamento radical da natureza da pena, de um novo sistema de penas, alternativas às vigentes: Penas alternativas, tenha-se em conta - e não medidas alternativas -, aptas a satisfazer, como penas principais, o duplo fim do direito penal dentro de uma perspectiva de racionalização e de minimização do sistema sancionador.

No mesmo sentido, Zaffaroni (1991) defende a busca de um sistema penal alternativo ao vigente, seguindo um modelo de direito penal humanitário, onde o Poder Judiciário exerça uma função de contra-poder.

Salo de Carvalho (2003), apresenta como proposições garantistas à reforma da execução penal: as alterações da quantidade e da qualidade das penas (volatilidade da pena); a jurisdicionalização dos procedimentos disciplinares, observando-se o princípio da reserva da lei no tocante às faltas graves; a adequação dos técnicos (criminólogos), voltando suas atividades a programas humanistas de redução de danos ao condenado; o controle do tempo das decisões judiciais, de modo a não causar lesões aos direitos fundamentais, responsabilizando-se os agentes públicos que os lesionarem; a necessidade de recodificação, com leis simples, claras e estáveis (ideal iluminista), bem como a revisão das cominações penais em abstrato;

Busca-se, portanto, uma reforma total do processo executório penal, com observância dos princípios relacionados ao garantismo penal, doravante expostos.

3.1. Princípio da legalidade

Em matéria penal, o princípio da legalidade, ou princípio da estrita legalidade, também chamado de reserva legal, ou ainda princípio da intervenção legalizada é fundamento do pensamento iluminista que, após a Revolução Francesa, veio a integrar todo o ordenamento jurídico do mundo ocidental.

No ordenamento jurídico pátrio, o princípio foi consagrado no art. 5º, XXXIX, da Constituição e artigo 1º do Código Penal, ao dispor que "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal" (BRASIL, 2008a e 2008b).

Segundo leciona Francisco de Assis Toledo (1994, p. 21)

O princípio da legalidade, segundo o qual nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada, sem que antes desse mesmo fato tenham sido

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instituídos por lei o tipo delitivo e a pena respectiva, constitui uma real limitação ao poder estatal de interferir na esfera das liberdades individuais.

Andrei Zenkner Schmidt (2007, p. 30) aponta os seguintes princípios, derivados do princípio da legalidade, a serem observados em execução penal:

I) toda imposição de pena pressupõe uma lei penal (nulla poena sine lege). (...) II) a imposição de uma pena está condicionada à existência da ação cominada (nulla poena sine crimine). (...) III) o fato legalmente cominado (o pressuposto legal) está condicionado pela pena legal (nullum crimen sine poena legali).

Uma vez observados estes princípios, a pena (enquanto conseqüência jurídica necessária) vincula-se, por lei, a uma lesão a bem jurídico determinado.

Schmidt revela que o princípio da legalidade no Estado Democrático de Direito atravessa uma dupla crise, de um lado política (por conter os mesmos contornos do legislador no Estado Liberal), de outro lado de legitimidade da reserva legal (deslegitimação externa e interna).

Outro ponto crítico no que tange o princípio da legalidade, diz respeito à identificação precisa da natureza das normas de execução penal. Taipa de Carvalho (1990, p. 210) explica que

No direito processual penal, há normas que condicionam, positiva (pressupostos processuais que são verdadeiros pressupostos adicionais da punição: p. ex., queixa e acusação particular) ou negativamente (impedimentos processuais que são verdadeiros impedimentos da punição: p. ex., a prescrição do procedimento criminal) à responsabilidade penal; há normas que dizem diretamente respeito aos direitos e garantias de defesa do argüido (p. ex., espécies de prova e valoração da sua eficácia probatória, graus de recurso); há, ainda, normas que afetam direta, incisiva e gravemente o direito fundamental da liberdade (caso da prisão preventiva).

Logo, é necessário que o hermeneuta tenha a acuidade de corretamente identificar a natureza da norma de execução penal, ora material, ora processual-formal, ora processual-material, para que não se dê rumos distintos ao direito do executado.

3.2. Princípio da anterioridade e da taxatividade

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O princípio da anterioridade é de fundamental importância na execução penal, visto que as normas materiais de execução penal sujeitam-se ao princípio da irretroatividade da lex gravior, bem como à retroatividade da lex mitior e da abolitio criminis, ao passo que as normas de natureza processual são regidas pelo princípio do tempus regit actum, ressaltando, mais uma vez, a importância da correta identificação da natureza das normas, sob pena de ferir direitos fundamentais do apenado.

No que concerne ao princípio da taxatividade, tem-se que a lei deve servir como um mecanismo de limitação de abusos do Estado, não só do Poder Legislativo, mas do Poder Judiciário.

Schmidt (2007, p. 42) explana que

uma política criminal garantista recomenda ao legislador que se valha, somente, de dispositivos legais taxativos, claros e delimitados, visto que a observância de tal conselho é que irá garantir a integridade do princípio da separação dos poderes, afastando ao máximo as possibilidades legais de o juiz, in concreto, estabelecer o verdadeiro alcance da norma.

Desta maneira, o princípio da taxatividade exerce a função de fornecer ao Poder Judiciário um recurso de controle do processo legislativo, além de servir de freio à discricionariedade do magistrado ao interpretar a lei para aplicá-la no caso concreto.

3.3. Garantia da jurisdição

O princípio da garantia da jurisdição tem como fundamento a legitimidade e independência do Poder Judiciário em sua função de garantidor dos direitos fundamentais da Constituição. Aury Lopes Jr., ao analisar o papel do juiz no Estado Democrático de Direito, fundado nas idéias de garantismo penal, define que "a legitimidade de sua atuação não é política, mas constitucional, consubstanciada na função de proteção dos direitos fundamentais de todos e de cada um, ainda que para isso tenha que adotar uma posição contrária à opinião da maioria" (2007, p. 380).

Toda vez que houver lesão ou ameaça de lesão a direitos fundamentais, deve haver intervenção do Poder Judiciário de maneira garantista e não inquisitiva, como se verifica em muitos institutos do modelo atual.

Neste sentido, a doutrina garantista, em fase de execução penal, de início, defende a observância do princípio da inércia do juiz, no sentido de que ele somente passe a atuar após a provocação das partes. Isto porque não pode o juiz assumir um

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papel de inquisidor, na busca de provas contra o sentenciado, comprometendo sua imparcialidade.

Cabe, pois, ao Ministério Público, assim como é verificado nos processos acusatórios em geral, a iniciativa também da fase de execução da sentença penal condenatória, haja vista ser o órgão titular da ação penal, naturalmente incumbido da acusação.

Atrelado ao princípio da garantia da jurisdição, temos, de igual sorte, o princípio da fundamentação das decisões, como garantia inafastável do apenado, previsto no art. 93, IX, da Constituição Federal e no art. 59, parágrafo único da Lei de Execuções Penais. Por este princípio, permite-se o controle da racionalidade da decisão, identificando-se os motivos que predominaram, bem como permitindo a interposição de eventuais recursos. Torna-se verdadeiro direito garantista em face de atos autoritários que venham a ser praticados.

3.4. Contraditório e Ampla Defesa

Traço marcante do processo acusatório, o princípio do contraditório é um método que permite a confrontação das argumentações e das provas em busca da comprovação da verdade. É da essência do processo o princípio audiatur et altera pars, sendo obrigação do julgador a audiência de ambas as partes.

Demais disso, o pretório deve ter um contato direto, pessoal e humano, em audiência realizada no fórum ou no próprio estabelecimento penal.

O princípio da ampla defesa, de igual forma, assegurado pela Constituição Federal, garante aos acusados em geral, bem como aos apenados o direito à autodefesa (positiva ou negativa) e à defesa técnica.

Dentre as formas de autodefesa, destaca-se o direito ao silêncio, previsto no art. 5º, LXIII da Magna Carta, não acarretando qualquer prejuízo ao acusado. O direito ao silêncio decorre do princípio nemo tenetur se detegere, pelo qual toda pessoa tem o direito de não ser obrigada a produzir prova contra si mesma, nem a declarar-se culpada. Aury Lopes Jr. (2007, p. 387) leciona que

Sendo a recusa um direito, obviamente não pode ao mesmo tempo ser considerado delito, nem mesmo como falta disciplinar. Trata-se de exercício regular de um direito que afasta a ilicitude da conduta, tornando-a impunível, tanto na esfera penal como também administrativa.

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Por sua vez, a defesa técnica, a ser exercida por defensor, na seara penal, não é só um direito do preso, mas um dever do Estado, constituindo-se em garantia fundamental assegurada pela Lei Maior. Vale lembrar que na ausência de advogado, cabe ao juiz nomear um defensor dativo.

3.5. Presunção de inocência em relação a fatos supervenientes

Em contraste com a realidade, o princípio da presunção de inocência previsto no art. 5º, LVII da Constituição, pouco é observado em sede de execução penal.

De fato. A afirmação de que ninguém pode ser considerado culpado até trânsito em julgado de sentença penal condenatória, como princípio garantista dos direitos do preso, raramente é verificada pela praxis forense. A título de exemplo: a existência de processos em andamento, na folha de antecedentes do acusado, considerada como maus antecedentes; a existência de procedimentos disciplinares não findos como impeditivos de concessão de benefícios; a pendência de juntada de novas guias de recolhimento, também como impeditivo de benesses; entre outros.

Lopes Jr. atesta que "o apenado continua merecendo o tratamento de inocente no que se refere a novos delitos e, também, em relação a faltas disciplinares" (2007, p. 384).

CONCLUSÃO

A aclamada crise da execução penal sugere uma revisão de todo o sistema penitenciário nacional, refletindo-se sobre a função real da pena, sua efetividade, bem como sobre a efetiva observância dos direitos e garantias assegurados pela Constituição Federal.

Baseado nas idéias do garantismo penal, a doutrina moderna defende uma ampla reforma nas leis penais e processuais penais (abandonando as características inquisitivas da Execução Penal), em completa transição de um sistema misto para um sistema jurisdicional-garantista, proporcionando uma justiça mais célere e eficaz, promovendo alterações na quantidade e qualidade das penas, desenvolvendo atividades com objetivos humanistas, além da necessidade de recodificação, com leis simples, claras e estáveis (contrárias à atuação imediatista do legislador).

Para tanto, é necessário, de início, o pleno conhecimento dos princípios constitucionais aplicáveis à Execução Penal, bem como o seu efetivo exercício por parte dos operadores do direito e pela sociedade em geral, sob pena de se tornarem 'letra morta' na Constituição.

Demais disso, deve-se buscar formas alternativas ao cárcere, medidas que possibilitem a reinserção do infrator à sociedade, além de dar uma resposta satisfatória à sociedade (caráter retributivo da pena), garantindo os ideais do Estado Democrático de Direito.

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Por fim, não se trata de uma proposta de solução definitiva aos problemas enfrentados pelo Estado, mas uma adequação do sistema atual às garantias constitucionais asseguradas ao cidadão no cárcere, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em 25 nov. 2008a.

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SCHMIDT, Andrei Zenkner. A crise de legalidade na execução penal. In: CARVALHO, Salo de (Coord.). Crítica à execução penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007.

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TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

ZAFFARONI, Eugênio Raúl. El sistema penal em los países de América Latina. In: ARAÚJO JR., João Marcello de. (Org.). Sistema penal para o terceiro milênio. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

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NOTAS

1. Rusche e Kirchheimer estabelecem uma relação entre mercado de trabalho, sistema punitivo e cárcere, esclarecendo que a exclusão no mercado de trabalho representa terreno de cultura para a marginalização criminal, revelando o caráter impuro de acumulação capitalista, ante a impossibilidade, até hoje, deste sistema atingir um pleno emprego.

2. Foucalut defende a exigência da disciplina, como estratégia de um "Poder" acima dos indivíduos, necessária à estabilidade da moderna sociedade industrial. Nesta linha, o autor advoga a idéia de um controle total sobre a população carcerária.

3. sic.

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