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Revista Eletrônica do Ministério Público Federal Princípios do direito ambiental e mudanças climáticas Pedro Curvello Saavedra Avzaradel * Resumo O presente trabalho pretende fazer uma análise dos principais princípios do direito ambiental contextualizada com a emergência das mudanças climáticas enquanto maior preocupação ambiental seja a nível nacional ou internacional. Assim, os princípios da precaução, da prevenção, do poluidor pagador e da solidariedade para com as futuras gerações serão vistos em função dos debates sobre a necessidade de um novo acordo para substituir o Protocolo de Quioto (1997) e da edição de uma Política Nacional de Mudanças Climáticas no Brasil. Nesse contexto faz-se mister ter em mente os pilares conceituais do direito ambiental. O estudo não possui por meta esgotar todas as profícuas discussões existentes na doutrina acerca de tais princípios. O objetivo do trabalho consiste em trazer à baia importantes reflexões com base em tais princípios e capazes de contribuir para informar de maneira qualificada os debates em curso acerca de futuras normas no combate das mudanças climáticas. Palavras chave: mudanças climáticas; princípios; direito ambiental; protocolo de Quioto. Abstract The paper intends to make an analysis of the main principles of the environmental law relating it with the emergency of the climatic changes as today’s biggest environmental concern, whether on the national or international level. Thus, the principles of the precaution, prevention, polluter-pays and solidarity with future generations will be seen in regarding the debates on the necessity of a new international agreement to substitute the Protocol of Quioto (1997) and of the edition of one National Policy of Climate Change in Brazil. On this ground it becomes desirable to have in mind those conceptual pillars of the environmental law. The study does not seek to deplete all existing quarrels in the doctrine concerning such principles. The objective of the work consists of bringing to bay important reflections on the basis of such principles and capable to contribute in a qualified way to the debates in course concerning future norms in the combat them climate change. Keywords: environmental law; principles; climate change; Kioto protocol. * Advogado. Mestre em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF). Doutorando em Direito da Cidade (UERJ) e professor adjunto-mestre da Unigranrio. Ano I – Número 1 – 2009 – página 1 de 25

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Princípios do direito ambiental e mudanças climáticas

Pedro Curvello Saavedra Avzaradel *

Resumo

O presente trabalho pretende fazer uma análise dos principais princípios do direito

ambiental contextualizada com a emergência das mudanças climáticas enquanto maior

preocupação ambiental seja a nível nacional ou internacional. Assim, os princípios da precaução,

da prevenção, do poluidor pagador e da solidariedade para com as futuras gerações serão vistos

em função dos debates sobre a necessidade de um novo acordo para substituir o Protocolo de

Quioto (1997) e da edição de uma Política Nacional de Mudanças Climáticas no Brasil. Nesse

contexto faz-se mister ter em mente os pilares conceituais do direito ambiental. O estudo não

possui por meta esgotar todas as profícuas discussões existentes na doutrina acerca de tais

princípios. O objetivo do trabalho consiste em trazer à baia importantes reflexões com base em

tais princípios e capazes de contribuir para informar de maneira qualificada os debates em curso

acerca de futuras normas no combate das mudanças climáticas.

Palavras chave: mudanças climáticas; princípios; direito ambiental; protocolo de Quioto.

Abstract

The paper intends to make an analysis of the main principles of the environmental law

relating it with the emergency of the climatic changes as today’s biggest environmental concern,

whether on the national or international level. Thus, the principles of the precaution,

prevention, polluter-pays and solidarity with future generations will be seen in regarding the

debates on the necessity of a new international agreement to substitute the Protocol of Quioto

(1997) and of the edition of one National Policy of Climate Change in Brazil. On this ground it

becomes desirable to have in mind those conceptual pillars of the environmental law. The study

does not seek to deplete all existing quarrels in the doctrine concerning such principles. The

objective of the work consists of bringing to bay important reflections on the basis of such

principles and capable to contribute in a qualified way to the debates in course concerning

future norms in the combat them climate change.

Keywords: environmental law; principles; climate change; Kioto protocol.

* Advogado. Mestre em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF). Doutorando em Direito da Cidade (UERJ) e professor adjunto-mestre da Unigranrio.

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1. Introdução

As mudanças climáticas não gozam de consenso1 científico, quer seja sobre a sua

ocorrência, quer seja sobre a sua intensidade. Não obstante, instâncias científicas que

congregam grande quantidade de cientistas, organizações não-governamentais e internacionais

afirmam que elas não apenas existem como já modificam o meio ambiente em todo o mundo.

Numa ligeira síntese, o aquecimento global, causador de diversas mudanças climáticas, é o

gradual e acelerado incremento da temperatura média da superfície terrestre. Este fenômeno,

por sua vez, tem por causa a intensificação do efeito estufa.2 Mas qual seria o conceito de clima?

“O clima pode ser conceituado como a descrição estatística da variação de temperaturas e o seu significado através de medidas relevantes do sistema atmosférico-oceânico ao longo de períodos de tempo que variam de semanas a milhares ou milhões dos anos. A mudança do clima é definida como uma variação significativa no estado médio do clima ou em sua variação, persistindo por um período prolongado (tipicamente décadas ou mais longo). A mudança do clima afetará a ecologia do planeta impactando a biodiversidade, causando extinções de espécies, alterando padrões migratórios, e perturbando ecossistemas em maneiras incontáveis. As mudanças climáticas impactarão as sociedades humanas afetando a agricultura, as fontes de água e sua a qualidade, padrões do estabelecimento, e a saúde.”3

Diversos são os registros de preocupações científicas relacionadas com o aumento desses

gases e, consequentemente, da temperatura media da terra, em razão de atividades humanas,

cujo marco inicial pode ser a revolução industrial ou mesmo datas bem anteriores. Michael

Grubb, Christian Vrolijk e Duncan Brack trazem a seguinte observação:

“O Efeito Estufa não é uma preocupação nova. Em 1827, o cientista francês Fourier sugeriu que a atmosfera terrestre aquece a superfície, deixando passar a radiação solar de alta energia e armazenando parte das longas ondas de radiação que voltam da superfície. Isto é causado por uma série de ‘gases de efeito estufa’, notavelmente dióxido de carbono e vapor d’água. No final do século XIX, o cientista sueco Arrhemius postulou que o aumento do volume de

1 No Brasil, a corrente refratária à tese de que presenciamos mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global de origem antrópica é defendida, dentre outros e, especialmente, pelo cientista Luiz Carlos Molion. Para esse cientista, estamos numa fase cíclica de aquecimento que em breve dará lugar a um período de resfriamento. Par mais detalhes vide a entrevista concedida pelo cientista à revista IstoÉ em julho de 2007, na qual afirma que o aquecimento global é um terrorismo climático e que a tese seria manipulada por países desenvolvidos. Disponível em <http://www.terra.com.br>. Acesso em 17/07/2007. No mesmo sentido Alberto Setzer, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em entrevista ao Jornal O Globo (08/03/2007, Caderno Ciência, p. 50) disse ser cedo para afirmar que as mudanças climáticas são induzidas pelo homem e alega que existe uma tendência de resfriamento do planeta após 2005. Para ele, as mudanças climáticas somente podem ser observadas na Península Antártica, não havendo grandes alterações na parte interior do continente antártico.

2 Atlas One Planet, Many people, United Nations Environment Program, 2005, p.75. Disponível em <http://www.na.unep.net>. Acesso em 22/06/2007. 3 Atlas One Planet, Many people, United Nations Environment Program, 2005, pg. 78 e79. Disponível em

<http://www.na.unep.net>. Acesso em 07/07/2007. No original: “Climate is the statistical description in terms of the mean and variability of relevant measures of the atmosphere-ocean system over periods of time ranging from weeks to thousands or millions of years. Climate change is defined as a statistically significant variation in either the mean state of the climate or in its variability, persisting for an extended period (typically decades or longer)…Climate change will affect the ecology of the planet by impacting biodiversity, causing species extinctions, altering migratory patterns, and disturbing ecosystems in countless ways. Climate change will impact human societies by affecting agriculture, water supplies, water quality, settlement patterns, and health”.

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dióxido de carbono, emitido pelas fábricas da Revolução Industrial estava mudando a composição da atmosfera, aumentando a proporção dos gases de efeito estufa, e que isso iria causar o aumento de temperatura da terra”.4

O efeito estufa do qual tanto se tem ouvido falar ultimamente consiste na retenção de

calor pela atmosfera em razão da presença de determinados compostos gasosos em sua

estrutura. Devemos salientar que o efeito estufa per si é um fenômeno natural, sempre

existente e cuja natureza é irreversível. Os chamados gases de efeito estufa (GEE)5 podem ser

concebidos como um cobertor, que, em condições normais, mantém a Terra a uma temperatura

média que viabiliza a sobrevivência de seres e organismos vivos diversos.

Em síntese, o efeito estufa na atmosfera ocorre da seguinte maneira: i) os raios de sol

ultrapassam os GEE; ii) ao incidir sobre objetos diversos na terra, os raios de sol provocam calor

que se propaga até encontrar os mesmos GEE; iii) esses gases, que permitem a passagem dos

raios solares, bloqueiam o calor emitido pelo planeta. Esse calor provém do movimento de

substancias, organismos e máquinas, da agitação de moléculas, aglomerados de substâncias

químicas, das reações químicas, enfim, da vida na terra.

Os GEE possuem ciclos naturais de emissão, dispersão e absorção pelos ecossistemas

terrestres e marinhos. Assim, por exemplo, erupções vulcânicas dispersam grande quantidade de

GEE que são absorvidos pelo crescimento de plantas terrestres ou de organismos marinhos. A

capacidade dos GEE reterem calor varia com composição química e com o tempo em que

permanecem na atmosfera. O problema está no rápido aumento da espessura desse cobertor

causado pelas emissões antrópicas de GEE, especialmente desde a Revolução Industrial.6

O principal gás dentre os que possuem a capacidade de armazenar calor emitido por

atividades antrópicas é o dióxido de carbono (CO2), em razão de estar associado a diversas

4 (The Kyoto Protocol: Guide And Assessment. Royal Institute of International Affairs, London, 1999, p.3). No original: The greenhouse effect is not a new concern. As early as 1827, the French Cientist Fourier suggested that the earth’s atmosphere warms the surface by letting through high-energy solar radiation but trapping part of the longer-wave heat radiation coming back from the surface. This is caused by a number of ‘greenhouse gases’, notably carbon dioxide and water vapour. At the end of nineteenth century the Swedish scientist Arrhemius postulated that the growing volume of carbon dioxide emitted by the factories of the Industrial Revolution was changing the composition of the atmosphere, increasing the proportion of greenhouse gases, and that would cause the earth’s temperature to rise.5 Iremos trabalhar neste trabalho com os gases de efeito estufa considerados de origem antrópica e regulados

pela Convenção Quadro sobre Mudanças Climáticas e pelo Protocolo de Quioto, listados no Anexo A do último acordo. São eles: Dióxido de carbono (CO2); Metano (CH4); Óxido nitroso (N2O); Hidrofluorcarbonos (HFCs); Perfluorcarbonos (PFCs); Hexafluoreto de enxofre (SF6).

6 De acordo com as conclusões do IPCC, “As concentrações atmosféricas globais de dióxido de carbono, metano e óxido nitroso aumentaram bastante em consequência das atividades humanas desde 1750 e agora ultrapassam em muito os valores pré-industriais determinados com base em testemunhos de gelo de milhares de anos. Os aumentos globais da concentração de dióxido de carbono se devem principalmente ao uso de combustíveis fósseis e à mudança no uso da terra. Já os aumentos da concentração de metano e óxido nitroso são devidos principalmente à agricultura (Mudança do Clima 2007: A Base das Ciências Físicas Contribuição do Grupo de Trabalho I ao Quarto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima. Genebra, 2007, p.3. Versão traduzida para o português e disponível em www.mct.gov.br/clima).

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práticas sociais. Por isso a concentração em que se encontra na atmosfera tem aumentado de

maneira progressiva, significativa e preocupante sob o ponto de vista do equilíbrio climático. Por

um lado, o aparecimento de grandes centros urbanos em todo o mundo e a demanda massificada

de produtos e serviços com intenso consumo energético tornou-se insustentável climaticamente

por estarem todas essas práticas até hoje associadas à combustão de hidrocarbonetos,

compostos formados de hidrogênio e carbono e cujo consumo importa na emissão de C02.

O uso de combustíveis fósseis e as mudanças no uso da terra possuem relação direta

com o exponencial crescimento da população mundial, ainda que parte majoritária da população

mundial viva em situação paupérrima. Hoje, metade da população mundial vive em áreas

urbanas.7 De acordo com dados de 2006 do Fundo das Nações Unidas para População, nos

próximos 43 anos a população irá crescer em 2.5 bilhões de pessoas, quantia igual à população

mundial em 1950, e atingir 9.2 bilhões em 2050. Esse crescimento tende a se concentrar em

regiões pobres do mundo, especialmente nas áreas urbanas de países em desenvolvimento.8

James Lovelock, ao fazer um mapeamento da produção científica acerca do tema ao

longo do século XX, destaca que até meados desse século o aquecimento global foi

incipientemente tratado pela ciência. “O tema só se tornou público em torno de 1988. Antes, a

maioria dos cientistas da atmosfera estava tão absorvida pela intrigante ciência da redução do

ozônio estratosférico que sobrava pouco tempo para outros problemas ambientais”.9

As mudanças climáticas só viriam a ganhar repercussão graças a sua incorporação à

pauta política, com destaque para a criação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças

Climáticas (IPCC), criado em 1988 pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente

(UNEP) e pela Organização Meteorológica Mundial (OMM). O IPCC é composto por cientistas de

vários Estados, indicados pelos respectivos governos e revisa a produção científica acerca do

tema num período de quatro anos. Esse Painel tem feito estudos cada vez mais detalhados,

abrangentes e dotados de legitimidade perante os Estados nacionais, sendo utilizados como

fonte de inspiração para políticas locais, regionais e internacionais. A partir do IPCC começa uma

relação entre estudos climáticos e respostas políticas e jurídicas.

Assim, as conclusões do Painel são, em certa medida, consenso científico entre os

participantes da elaboração, da discussão e da aprovação dos relatórios sob responsabilidade da

entidade. Essas conclusões se baseiam na bibliográfica revisada do tema ao longo dos períodos

entre os relatórios, o que se reflete, por exemplo, na abundância de dados sobre determinadas

7 State of the world population 2007: unleashing the potential for urban growth. Fundo das Nações Unidas para População (UNFPA), 2007, p. 1. Disponível em <www.unfpa.org>. Acesso em 15/09/2007.

8 Vide <http://www.unfpa.org/pds/trends.htm>. Acesso em 13/11/2007.9 LOVELOCK, James. A Vingança de Gaia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2006, p. 18. O autor neste livro revisita

sua teoria conhecida como Hipótese de Gaia (1979; 1988) segundo a qual a terra é um organismo vivo em simbiose com diversas espécies além da humana, única capaz de abalar seu equilíbrio. A terra estaria uma febre gerada pela “bactéria humana”. Segundo LOVELOCK o “sistema imunológico” de Gaia estaria prestes a nos expulsar, acabando com a simbiose biosfera- raça humana.

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partes do planeta e escassez em relação a outras. O Painel se organiza, tal como seus relatórios,

em três eixos: o primeiro estuda a ciência das mudanças climáticas e revisa estudos sobre as

variações de temperaturas; o segundo estuda os impactos projetados com base nas conclusões

do primeiro grupo; o terceiro grupo estuda medidas de mitigação e adaptação a serem tomadas

em relação ao problema, com base nas conclusões dos dois grupos anteriores. Mitigação é a

mudança quantitativa no padrão das emissões e dos mecanismos de remoção GEE. Adaptação é o

conjunto de medidas destinado a minimizar os efeitos negativos das mudanças climáticas sobre

as coletividades.

Recentemente, alguns eventos indesejáveis chamara a atenção para o problema: (i) em

2003, uma onda de calor matou cerca de 35 mil pessoas no verão do continente europeu;10 (ii)

em 2005, um furacão de intensidade acima do normal para a época e os padrões da costa leste

americana atingiu a cidade de Nova Orleans;11 (iii) a ilha de Tuvalu, localizada no oceano índico,

começa a submergir em razão do aumento do nível das águas oceânicas. Cerca de 4 mil

moradores já se mudaram para a Nova Zelândia, chamando a atenção das Nações Unidas para a

nova espécie de imigrantes, os refugiados ambientais.12 Alguns relatórios e estudos já utilizam a

expressão refugiados climáticos e as previsões chegam ao número de 150 milhões em 2050.13 14

10 Disponível em <http://agenciact.mct.gov.br>. Acesso em 17/07/2007. Um relatório feito pela organização European Surveillance revisou a estimativa inicial de cerca de 20 mil mortos e constatou que o número pode ter sido até 100% maior se levados em conta os óbitos ocorridos nos meses de junho e julho do mesmo ano (Eurosurveillance. Vol. 10 Issues 7- July- September 2005. Disponível em <www.eurosurveillance.org>. Acesso em 17/07/2007). Segundo matéria publicada no jornal O Globo, em julho de 2007 uma onda de calor teria matado cerca de 500 pessoas somente na Hungria e causado a hospitalização de 19 mil pessoas na Romênia (Quarta-Feira, 25/07/2007, O mundo, p. 33).

11 A força extraordinária do furacão Katrina foi relacionada com o aumento da temperatura média das águas do oceano e o aumento do nível dessas águas, e, desta maneira, ao aquecimento global. Disponível em <http://www.worldwatch.org>. Acesso em 17/07/2007.

12 Jornal O Globo. Ciência. Domingo, 15 de julho de 2007, p. 39. Essa preocupação também é externada pela Agencia para Refugiados da ONU (UNHCR). Segundo artigo na revista da UNHCR, ao abordar a questão dos refugiados ambientais considerou entre as pequenas ilhas mais vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas e que pode submergir com a elevação do mar deixando muito refugiados as Ilhas Marshal, Tuvalu, as Maldivas e as Bahamas. As marés já estão destruindo casas, jardins e fontes de água potável as ilhas Carteret de Papa Novaque pode submergir já em 2015. A evacuação dos dois mil moradores já começou" (Refugees Megazazine, n. 147, Issue 3. Geneva: UNHCR, 2007. Disponível em <www. unhcr.org>. Acesso em 17/06/2008).

13 O Relatório da ONG Fiends of The Earth Australia Citzen's Guide for Climate Change Refugees explica mais detalhadamente o caso de Tuvalu. Em no ano de 2000 Governo das Ilhas pediu que Austrália e Nova Zelândia acolhessem os refugiados. Um acordo entre os três países - Pacific Access Category 2007 - estabelece um número de pessoas que podem passar a residir na Nova Zelândia por ano, que é atualmente de 75 pessoas/ano. Essas pessoas devem cumprir com uma série de requisitos exigidos pelo acordo com ter fluência básica em inglês. Já a Austrália negou o 'asilo' aos refugiados (disponível em <www.foe.org.au>. Acesso em 12/08/2007.

14 Nesse sentido merecem destaque as considerações finais feitas em trabalho específico acerca da figura do refugiado ambiental perante o direito internacional e reproduzidas a seguir: “o século XXI apresenta vários desafios para a humanidade e é indubitável afirmar que hodiernamente vivemos numa sociedade de risco com sérios desdobramentos na questão ambiental. Com efeito, há várias situações que demonstram claramente o afirmado acima com um rol alargado de sintomas que apresentam essa realidade: o contínuo desaparecimento de espécies da fauna e da flora; a perda de solos férteis pela erosão e pela desertificação; o aquecimento da atmosfera e as mudanças climáticas; a diminuição da camada de ozônio; a chuva ácida; o acúmulo crescente de lixo e resíduos industriais; o colapso na quantidade e na qualidade da água; o efeito estufa e o aquecimento global. Situações como essas devem despertar posições diferenciadas por parte dos

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Esses efeitos indesejados ligados às mudanças climáticas fazem com que hoje o tema

passe a ocupar importantes fóruns políticos internacionais, regionais e nacionais. Um indício

deste fato pode ser a imensa repercussão na agenda política internacional da divulgação dos

resultados parciais do Quarto Relatório do IPCC, ao longo do ano de 2007. Neste ano o IPCC, em

seu quarto relatório, concluiu que “o aquecimento do sistema climático é inequívoco, como está

agora evidente nas observações dos aumentos das temperaturas médias globais do ar e do

oceano, do derretimento generalizado da neve e do gelo e da elevação do nível global médio do

mar”.15

O IPCC relaciona uma série de riscos às mudanças climáticas capazes de impactar de

maneira substancial a vida na terra. Dentre os vários exemplos possíveis destacamos o aumento

do nível dos oceanos com a inundação de áreas costeiras densamente ocupadas; o aumento de

eventos climáticos extremos como chuvas, ciclones e de áreas sujeitas a processos de

desertificação, além de perda acelerada de biodiversidade. Esses riscos são em certa medida

reforçados por indícios de que as temperaturas já estão mais altas e de que eventos climáticos

extremos vêm se tornando mais frequentes e destrutivos.16

De acordo com os mais atuais e reconhecidos estudos científicos, os países em

desenvolvimento serão mais afetados pelas mudanças climáticas por três motivos: a temperatura

nesses países é em média maior do que a dos países desenvolvidos; a economia desses países é

mais dependente de atividades agrícolas, extremamente sensíveis às mudanças no clima; esses

países dispõem de poucos recursos para se adaptarem ao fenômeno.17 Estudos apontam para a

forte probabilidade de o continente africano ser o mais prejudicado nos próximos séculos.18

vários atores internacionais: Estados, OIs, ONGs, da sociedade civil, com grandes reflexos para a comunidade jurídica. Nesse sentido, é que não se pode deixar de ressaltar a imperiosa necessidade de reconhecer formalmente a situação jurídica do refugiado ambiental, por não estar prevista nos documentos internacionais e nem tampouco nas legislações dos Estados que regulam a matéria, apesar da realidade fática do conceito demonstrada acima. Além dos casos demonstrados ao longo do artigo (Furacão Katrina e Tsunami), não se pode olvidar que com o aquecimento global e o consequente aumento do volume das águas, estão sendo criadas grandes e reais expectativas de que alguns países sejam “condenados à morte”, tais como: Ilhas Maldivas, Tuvalu, etc. E os milhões de refugiados ambientais que serão produzidos a partir desses fatos? Diante desse quadro calamitoso que se desenha já no início desse século, a sociedade internacional deve assistir inerte a tudo isso? Obviamente que não. Deve haver o reconhecimento por parte da sociedade internacional do termo e da condição jurídica do ‘refugiado ambiental’, bem como a devida formalização de seu conceito em tratados internacionais e a consequente proteção para àqueles que foram, são ou serão retirados de seus lares por fenômenos impressionantes que estão sendo produzidos pela mãe natureza” (AVZARADEL, Pedro Curvello Saavedra; GUERRA, Sidney. O direito internacional e a figura do refugiado ambiental: reflexões a partir da Ilha de Tuvalu. In: Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI. Brasília: 2008, p. 2748).

15 Mudança do Clima 2007: A Base das Ciências Físicas Contribuição do Grupo de Trabalho I ao Quarto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima. Genebra, 2007, p. 3.

16 Mudança do Clima 2007: A Base das Ciências Físicas Contribuição do Grupo de Trabalho I ao Quarto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima. Genebra, 2007.

17 Stern Review: the economics of climate change. Cambridge, 2006. Parte 1, p. 29. Disponível em <www.sternreview.org>. Acesso em 15/09/07.

18 O IPCC reconhece que os impactos serão mistos em função das regiões, das trajetórias de desenvolvimento e das estratégias de mitigação adotadas. O IPCC também traz alguns dados específicos por continente. Vide Adaptação e Vulnerabilidade. Contribuição do Grupo de Trabalho II ao Quarto Relatório de Avaliação do

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A emergência dessa nova problemática global expôs uma série de deficiências

institucionais e sociais. Uma nova série de riscos e ameaças até então desconhecidos veio à

tona. As mudanças climáticas, tal como entendem os cientistas do IPCC, seriam o resultado de

anos de utilização de combustíveis fósseis, destruição de florestas e coberturas vegetais em todo

o mundo, dentre outras causas. Em suma, a questão estaria ligada aos modos de produção e

consumo capitalistas em pleno e acelerado processo de expansão global e sem significativas

preocupações ambientais nos últimos três séculos. Nem o mercado e nem os aparelhos estatais

isoladamente se mostram capazes de responder de maneira adequada ao problema em sua

complexidade. Da necessidade de cooperação internacional nascem acordos e uma série de

instituições e mercados, voluntários ou legalmente instituídos.

Em razão da necessidade de se responder à questão das mudanças climáticas de

maneira eficaz e num espaço curto de tempo, diversas instituições começaram a ser criadas em

todo o mundo, seja no âmbito internacional sob o amparo das Nações Unidas, seja em

ordenamentos estatais e regionais. A velocidade com que surgem tais instituições e normas

jurídicas é espantosa, motivo pelo qual se pretende estudar os avanços jurídicos e institucionais

percorridos até o momento.

Resta evidente a necessidade de uma melhor compreensão dos tratados internacionais

pertinentes ao tema das mudanças climáticas bem como dos processos por meio dos quais países

em diferentes posições socioeconômicas articulam ações e programas jurídicos com o fito de

proteção do sistema climático e do meio ambiente como um todo para as presentes e futuras

gerações.

O IPCC deu eco aos trabalhos científicos produzidos e debatidos pela Organização

Meteorológica Mundial e incorporados pelo Relatório Nosso Futuro Comum, produzido por um

grupo de trabalho no âmbito das Nações Unidas e publicado em 1987. A criação do IPCC e a

repercussão dos estudos climáticos a partir de 1988 mostram o início da relação entre ciência

climática e suas consequências políticas e jurídicas. Dentre os frutos colhidos dessa relação

podemos destacar a Convenção Quadro sobre Mudanças Climáticas de Nova York e o Protocolo de

Quioto.

A Assembleia Geral das Nações Unidas que votou em 1988 a Resolução 45/53 para a

Proteção do Clima para as presentes e futuras gerações e aprovou em 1990 a Resolução 45/212,

criando um comitê para negociar e redigir uma convenção internacional a respeito do tema. Em

nove de maio de 1992, pouco antes da realização da Cúpula da Terra (CUMAD), aprova-se o texto

da Convenção Quadro das Nações Unidas de Nova Iorque sobre Alterações Climáticas (CQMC).

A CQMC concretiza um primeiro passo no sentido de solucionar uma grande preocupação

Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima. Sumário para políticos. Genebra. 2007. Disponível em <www.mct.gov.br/clima>. Acesso em 15/09/2007.

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com os resultados das atividades humanas sobre o clima.19 Por essa Convenção as partes se

comprometem a proteger o sistema climático, definido no artigo primeiro como “o conjunto da

atmosfera, hidrosfera, biosfera e litosfera e suas interações”. Nos termos da Convenção, as

mudanças climáticas consistem em “uma mudança de clima que possa ser direta ou

indiretamente atribuída à atividade humana que altere a composição da atmosfera mundial e

que se some àquela provocada pela variabilidade climática natural observada ao longo de

períodos comparáveis”.20

O Tratado foi aberto para assinaturas no mês seguinte, na cidade do Rio de Janeiro,

entrando em vigor em fevereiro de 1994, três meses após sua adesão por 50 países, cumprindo

com o requisito previsto no artigo 23. A CQNMC é uma norma internacional de caráter geral e

institui um micro sistema normativo entre os Estados participantes com objetivos específicos,

possibilitando que os mesmos editem normas de regulamentadoras relacionadas com o escopo da

norma geral.

Para dar uma resposta eficaz e apropriada para este fenômeno, percebe-se como

imperativa a cooperação dos Estados, de acordo com suas responsabilidades comuns, porém

diferenciadas e com suas características próprias. Contudo, reitera-se o respeito ao princípio da

exploração soberana dos Estados de seus recursos naturais, de acordo com as políticas

ambientais internas. Também são reiterados os princípios da precaução e o direito ao

desenvolvimento sustentável.

As políticas e as medidas para proteger o sistema climático contra as alterações

causadas pela atividade humana devem ser adequadas às condições específicas de cada Parte

(país) da Convenção, considerando-se o desenvolvimento econômico como essencial para a

consecução de medidas relacionadas com essas políticas e medidas.21 Seu artigo segundo reza

que:

“O objetivo final desta Convenção e de quaisquer instrumentos legais que a Conferência das Partes possa vir a adotar é o de conseguir, de acordo com as disposições relevantes da Convenção, a estabilização das concentrações na atmosfera de gases de efeito de estufa a um nível que evite uma interferência entrópica perigosa com o sistema climático. Tal nível deverá ser atingido durante um espaço de tempo suficiente para permitir a adaptação natural dos ecossistemas às alterações climáticas, para garantir que a produção de alimentos não seja ameaçada e para permitir que o desenvolvimento econômico prossiga de uma forma sustentável”.

O passo seguinte e decisivo para o enfrentamento das mudanças climáticas seria dado

19 Essa preocupação aparece no preâmbulo da CQMC: “preocupadas com que atividades humanas estão aumentando substancialmente as concentrações atmosféricas de gases de efeito estufa, com que esse aumento de concentrações está intensificando o efeito estufa natural e com que disso resulte, em média, aquecimento adicional da superfície e da atmosfera da Terra e com que isso possa afetar negativamente os ecossistemas naturais e a humanidade”.

20 CQMC, artigo 1º, item 2. 21 Idem. artigo 3º, item 4.

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com base na Convenção estudada acima. Os Estados congregados, após longos debates,

resolveram regulamentar a norma geral, indicando-se compromissos mais efetivos e meios para

satisfazê-los por meio da adoção de um protocolo à CQMC.22 As discussões travadas no seio da

Convenção antes da edição do tratado delinearam suas principais características.

Não obstante, entre a edição do Protocolo de Quioto em 1997 e sua entrada em vigor

em 2005, outro conjunto de Conferencias foi fundamental para que o instrumento se tornasse

uma realidade. Essas reuniões também regulamentaram aspectos importantes do tratado.

Além das políticas internas trazidas nos artigos 2º e 10º, o Protocolo de Quioto traz

ainda mecanismos suplementares para o adimplemento das metas estabelecidas para os países

desenvolvidos: (i) a implementação conjunta de projetos por países pertencentes ao Anexo I; (ii)

o comércio das quantidades atribuídas para esses países com base o Anexo B da Convenção e (iii)

o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo. Este último mecanismo merece especial atenção por

alguns motivos.

Primeiramente, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), previsto no artigo 12 do

Protocolo, deverá ser utilizado para reduzir emissões desses gases ou remove-los,

proporcionando, simultânea e necessariamente, o desenvolvimento sustentável dos países não

presentes no Anexo I. Embora seja criticado como brecha para poluição dos países

desenvolvidos,23 o MDL nasceu de uma proposta brasileira.24

Assim, o PQ, no artigo 12, item 1, define como objetivos do MDL: “assistir às Partes não

incluídas no Anexo I para que atinjam o desenvolvimento sustentável e contribuam para o

objetivo final da convenção, e assistir às Partes incluídas no Anexo I para que cumpram seus

compromissos quantificados de limitação e redução de emissões...”.

Poderão participar dos projetos de MDL entidades privadas e/ou públicas, inclusive

beneficiando-se dos mesmos.25 O MDL foi regulamentado nos Acordos de Marraquesh. Nessa

oportunidade foi criado o Conselho Executivo para o MDL (CDM Executive Board).

Em segundo lugar, esse mecanismo recentemente recebeu uma nova regulamentação

com a ampliação de seu escopo, passando também a contemplar ações incluídas em programas

de ação. O item n. 20 da Decisão 7 da Primeira Conferencia das Partes do Protocolo de Quioto

previu que políticas públicas não podem ser consideradas como projetos de MDL, mas que

projetos/atividades (CPA) dentro de um programa de atividades (POA) podem ser registrados

como um MDL unitário.26

22 A CQMC prevê a adoção de protocolos em seu artigo 17.23 Nesse sentido, BARBOSA, Rangel; OLIVEIRA, Patrícia. O princípio do poluidor pagador no Protocolo de Quioto.

In: Revista de Direito Ambiental, ano 11, n. 44. São Paulo: Revista dos Tribunais, outubro/dezembro de 2006, p. 126 a 130.

24 Para maiores detalhes, vide o portal www.mct.gov.br/clima, acesso em 19/09/2007.25 Protocolo de Quioto, artigo 12, itens 3 e 9.26 Decisão 7/CMP1, parágrafo 20. No original: “Decides that a local/regional/national policy or standard cannot

be considered as a clean development mechanism project activity, but that project activities under a

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Essa nova espécie de MDL difere da anteriormente exposta por alguns motivos. Embora

os países do Anexo I possam adquirir dos certificados resultantes do projeto e os usarem para

atingir metas, não existe uma relação bilateral que pressuponha a transferência de tecnologia ou

a promoção do desenvolvimento sustentável nos países em desenvolvimento. A atividade pode

ser realizada pelo Poder Público ou por terceiros para voluntariamente ajudar a efetivar

determinada política (sem exigência legal expressa) ou cumprir com determinada norma

expedida pelo Estado. Pode também envolver mais de um Estado.27 No caso do Brasil, o projeto

3S da empresa Sadia, realizado através do Instituto Sadia de Sustentabilidade, foi o primeiro a

ser registrado junto a ONU como Programa de Atividades.28

Aliás, merece ser consignado que a participação do Brasil nas questões climáticas foi em

certa medida pioneira. A Convenção Quadro das Nações Unidas foi aberta para assinaturas na

cidade do Rio de Janeiro, tendo como primeiro signatário o Brasil em 4 de junho de 1992, que a

ratificou em fevereiro de 1994.29 Na qualidade de parte da Convenção o Brasil participou

ativamente de todas as discussões que antecederam o Protocolo de Quioto e seus marcos

regulatórios. A ratificação do Protocolo ocorreu em junho de 200230 e sua promulgação em

2005.31

2. Princípios do direito ambiental

A tutela do ambiente possui como marcos mais relevantes as conferências de Estocolmo

(1972) e a Cúpula da Terra (1992), ambas com mais de 25 princípios cada. Mas qual seria o papel

dos princípios no Direito ambiental? EDIS MILARÉ diz que são “mandamentos básicos que

fundamentam o desenvolvimento da doutrina e que dão consistência às suas concepções” e

reconhece aos mesmos o papel de condicionantes de toda estrutura a eles subsequente.32 São,

desta forma, qualitativamente diferente das regras/leis.

programme of activities can be registered as a single clean development mechanism project activity provided that approved baseline and monitoring methodologies are used that, inter alia, define the appropriate boundary, avoid doublecounting and account for leakage, ensuring that the emission reductions are real, measurable and verifiable, and additional to any that would occur in the absence of the project activity”

27 CONSELHO EXECUTIVO DO MDL. Guidance on the registration of project activities under a programme of activities as a single CDM project activity. 2008. Disponível em < www.unfccc.int>. Acesso em 16/06/2008.

28 Segundo a própria empresa: “O Programa 3S diminuirá a emissão de poluentes por meio de biogestores instalados nas granjas de produtores integrados da Sadia. Assim, os dejetos dos suínos serão fermentados por bactérias em tanques cobertos, o que evita a emissão de metano. O sequestro de gases causadores do efeito estufa será revertido em créditos de carbono que serão negociados no mercado externo com interessados em se adequar ao Protocolo de Kyoto. A previsão é que sejam negociadas de 6 a 10 milhões de toneladas de carbono. A grande parte dos 3,5 mil produtores integrados da Sadia tem porte pequeno ou médio e não poderia se beneficiar da venda de créditos de carbono se não tivesse com a intermediação da Sadia” (Disponível em <http://www.sadia.com.br>. Acesso em 13.07.08).

29 Decreto Legislativo nº 01, de 03 de fevereiro de 1994.30 Decreto Legislativo nº 144. de 20 de junho de 2002.31 Decreto nº 5445 de 12 de maio de 2005.32 MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 157.

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PAULO AFONSO LEME MACHADO, inspirado na doutrina moderna dos princípios,

conceitua-os como:

“normas jurídicas impositivas de uma optimização, compatíveis com vários graus de concretização consoante os condicionalismos fácticos e jurídicos. Permitem o balanceamento de valores e interesses (não obedecem, como as regras, à lógica do tudo ou nada), consoante o seu peso e ponderação de outros princípios eventualmente conflitantes”.33

Nesse sentido esclarece HENRIQUE DORNELAS que, “os princípios, embora muito se

pareçam com as regras, não indicam uma consequência legal que automaticamente se segue

quando as condições dadas se realizam. Um princípio apresenta uma razão que aponta para uma

direção, porém, não exige uma decisão específica naquele mesmo sentido”.34

Essas direções/diretrizes/valores mais abstratos, condicionantes do sistema, informam a

produção de normas pelo legislador, a aplicação de normas e sua interpretação conforme os as

diretrizes e a integração de lacunas.

Sem pretensão de exaurir o conteúdo e a interpretação de todos os princípios do Direito

ambiental e, tendo em vista que cada um deles é individualmente alvo de extensa literatura, o

presente estudo pretende apresentar os princípios entendidos como fundamentais para a

compreensão das reações do paradigma jurídico à questão dos riscos. Esses mesmos princípios

serão úteis quando da análise das normas específicas de tutela do sistema climático. A análise

ira pautar-se em referencias doutrinarias pátria e estrangeiras e, quando possível,

jurisprudenciais, tendo preferencialmente por base as decisões do Superior Tribunal Federal

(STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

2.1 O princípio da solidariedade

A preocupação do meio ambiente ganhou contornos políticos efetivos na conferencia de

Estocolmo em grande medida graças a especulações de que o futuro da humanidade estaria

ameaçado pela escassez de recursos naturais, devida às taxas de crescimento da economia

mundial e ao uso crescente desses recursos. Essas especulações ficaram registradas no estudo

Limits of Growth. A tutela do meio ambiente já nasce com um importante diferencial em

relação às demais. Vislumbra como sujeitos de Direitos aqueles sequer nascidos de maneira

coletiva. O princípio número 1 da Declaração de Estocolmo diz que o homem possui “a solene

obrigação de preservar e melhorar esse meio para as gerações presentes e futuras”.

ALEXANDRE KISS sugere que “a preservação do meio ambiente está obrigatoriamente

focalizada no futuro”.35 A ideia de geração futura remete àquelas pessoas que ainda não

33 MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 57.34 DORNELAS, HENRIQUE LOPES. Direito Ambiental e o Princípio da Precaução: Sua aplicação e concretização no

contexto de uma sociedade de risco. Niterói: UFF. Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito. 2006, p. 54. Disponível em <www.uff.br/ppgsd>. Acesso em 07/08/2007.

35 KISS, Alexandre. Os Direitos e interesses das gerações futuras e o princípio da precaução. In: VARELLA,

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nasceram sem desconsiderar as que já existem, daí usar-se a expressão “gerações presentes e

futuras”. O que está em jogo é o fluxo de recursos, condições ambientais e opções através do

tempo. KISS ressalta que a ideia de que a solidariedade com as futuras gerações está presente

no conceito do desenvolvimento sustentável que visa a não comprometer o futuro. Ainda

segundo o autor o termo gerações é antropocêntrico, por não fazer menção aos demais seres

vivos.36

A Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 traz o

princípio de maneira semelhante à declaração anterior, com uma pequena diferença: o princípio

3 traz a exigência da equidade no atendimento das gerações presentes e futuras. Essa equidade

pode ser difícil de ser alcançada, pelo fato de, com o passar do tempo, as gerações são cada vez

maiores. No que se refere ao Brasil, a atual Constituição traz expressamente o princípio da

solidariedade em seu artigo 225, caput.37 O STF38 se posicionou recentemente sobre o princípio

da solidariedade.

Recentemente, em parte por conta das mudanças no clima, a solidariedade com o

futuro da humanidade voltou a ser uma preocupação. O fato é que já geramos um aquecimento

global significativo e teremos de nos esforçar muito para que este não alcance proporções

catastróficas para a humanidade. A CQMC pretende diminuir os impactos das mudanças do clima

e permitir a adaptação das gerações futuras a um mundo inevitavelmente mais quente 2º ou até

5º graus celsius. O artigo 3º da referida convenção traz dentre os princípios adotados o princípio

da solidariedade nos seguintes termos:

As Partes devem proteger o sistema climático em benefício das gerações presentes e

futuras da humanidade com base na equidade e em conformidade com suas responsabilidades

comuns mas diferenciadas e respectivas capacidades.

A CQMC reitera a solidariedade com base na equidade e nas responsabilidades comuns

porém diferenciadas. A equidade exige de nós que deixemos o sistema climático em condições

razoáveis, o que já se mostra difícil de ser alcançado. As responsabilidades comuns porém

diferenciadas informam como devemos perseguir essa meta.

No que se refere ao Brasil, além do ordenamento jurídico pátrio ter incorporado o texto

da CQMC e do Protocolo de Quioto,39 a atual Constituição traz expressamente o princípio da

Marcelo Dias; PLATIAU, Ana Flávia B. (org.). Princípio da Precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 2.36 Op. Cit., p. 5-8.37 O artigo 225, caput da CRFB diz que “todos têm Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem

de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

38 “Meio Ambiente - Direito à preservação de sua integridade (CF, artigo 225) - prerrogativa qualificada por seu caráter de metaindividualidade - Direito de terceira geração que consagra o postulado da solidariedade - necessidade de impedir que a transgressão a esse Direito faça irromper, no seio da coletividade, conflitos intergeneracionais... (ADI-MC 3540/Distrito Federal, Min. Relator Celso de Mello, Órgão Pleno, julgamento em 01/09/2005)”.

39 A Convenção Quadro das Nações Unidas para Mudanças Climáticas foi aprovada pelo Decreto Legislativo n. 1

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solidariedade em seu artigo 225, caput.40

As mudanças climáticas ameaçam seriamente o caráter equitativo do fluxo de bens e

oportunidades entre as gerações presentes e futuras da humanidade. Todavia, o princípio da

solidariedade deve continuar sendo diretriz orientadora dos acordos internacionais climáticos.

No panorama interno, o dever constitucional de todos de proteger o meio ambiente para as

gerações presentes e futuras já foi inclusive analisado pelas supremas cortes,41 tendo

fundamental papel nos debates que antecedem normas e programas nacionais de combate as

mudanças do clima.

Tanto no que tange às presentes como às futuras, as mudanças climáticas representam

um fator capaz de piorar ainda mais a vida de porções da população mundial que já vivem em

situações de extrema miséria, sem conhecer a tutela efetiva de sua dignidade e os demais

direitos necessários ao seu pleno desenvolvimento enquanto seres humanos. Foster Brown, Padre

René Salizar e Eduardo Cazuza Borges, ao comentar sobre a criação das Nações Unidas,

concluem que “existe um novo violador de direitos humanos que não foi concebido sessenta

anos atrás: as mudanças climáticas”.42

Hoje existe um verdadeiro abismo entre as discussões técnico-científicas acerca

mudanças climáticas, realizadas com base nas ditas ‘ciências duras’ (ex: engenharia, física, etc.)

e a discussão dos impactos desse mesmo fenômeno nos fatores relacionados com a qualidade

digna de vida tutelados pelos direitos fundamentais,43 tais como o direito à saúde , ao meio

de 1994 e promulgada pelo Decreto n. 2.652 de 1998. 40 O artigo 225, caput da CRFB diz que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem

de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

41 O Superior Tribunal Federal (STF) se posicionou recentemente por seu órgão pleno sobre o princípio da solidariedade, conforme trecho da ementa do julgamento transcrito a seguir: meio ambiente - direito à preservação de sua integridade (cf, art. 225) - prerrogativa qualificada por seu caráter de metaindividualidade - direito de terceira geração que consagra o postulado da solidariedade - necessidade de impedir que a transgressão a esse direito faça irromper, no seio da coletividade, conflitos intergeneracionais (ADI-MC 3540 /DISTRITO FEDERAL Relator: Min. CELSO DE MELLOData do julgamento: 01/09/2005). O Superior Tribunal de Justiça (STJ) chegou ao seguinte posicionamento, conforme trecho da ementa a seguir transcrito: ADMINISTRATIVO E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DESASSOREAMENTO DO RIO ITAJAÍ-AÇU. LICENCIAMENTO. COMPETÊNCIA DO IBAMA. INTERESSE NACIONAL. 1. Existem atividades e obras que terão importância ao mesmo tempo para a Nação e para os Estados e, nesse caso, pode até haver duplicidade de licenciamento. 2. O confronto entre o direito ao desenvolvimento e os princípios do direito ambiental deve receber solução em prol do último, haja vista a finalidade que este tem de preservar a qualidade da vida humana na face da terra. O seu objetivo central é proteger patrimônio pertencente às presentes e futuras gerações (RESP 588022 / SC Relator: Min. José Delgado. Órgão Julgador: Primeira Turma. Data do julgamento: 17/02/2004).

42 Direitos humanos e mudanças climáticas. In: Jornal A Gazeta de Rio Branco de 10/12/2008. Disponível em <www.ecodebate.com.br/tag/direitos-humanos>. Acesso em 29/06/2009.

43 Em se tratando dos direitos fundamentais, esclarece José Afonso da Silva que “no qualificativo fundamentais acha-se indicação de que se tratam de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive: fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. Do homem, não como o macho da espécie, mas no sentido de pessoa humana” (SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2000, p.720).

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ambiente sano e equilibrado, o direito à moradia e até mesmo o direito à vida.44

Não obstante, esse abismo já começa a ser percebido no meio jurídico. Um feliz

exemplo é a Resolução do Conselho Centro-Americano de Procuradores de Direitos Humanos

sobre Mudanças Climáticas, editada na reunião ocorrida em maio de 2008 em El Salvador,

segundo a qual “los gobiernos de la región centroamericana en las negociaciones multilaterales,

deben incorporar la perspectiva de los derechos humanos y los principios de justicia y equidad

ambiental con el objetivo de alcanzar el pleno desarrollo de la persona humana y los pueblos”.45

Nessa senda, é preciso que a questão das mudanças climáticas seja cada vez mais

analisada sob o ponto de vista das ciências sociais com o intuito de avaliar possíveis impactos

sobre os direitos humanos, especialmente naquelas regiões que serão provavelmente as mais

afetadas. Ainda, a própria discussão pela comunidade internacional de novos acordos deve

enfrentar essas questões com o objetivo de buscar soluções possíveis.

2.2 Os princípios prevenção e da precaução

Os princípios da precaução e da prevenção são próximos, mas possuem objetivos e

fundamentos distintos. EDIS MILARÉ, não descartando as possíveis diferenças entre ambas

expressões e nem discordando dos que preferem tratar os dois princípios de maneira distinta,

prefere tratar ambos como princípio da prevenção por entendê-lo como mais amplo, abrangendo

o da precaução.46 A Declaração do Rio traz o princípio pra precaução nos seguintes termos:

“... de modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”.47

Para JOSÉ RUBENS MORATO LEITE e PATRYCK AYALA, enquanto nos casos de precaução

trata-se de um perigo em abstrato, nos casos de prevenção o perigo se apresenta como concreto

ou potencial, à luz Das informações possuídas acerca de determinada atividade48. Em havendo

poucas informações acerca de um novo produto que começa a ser produzido em grande escala,

acerca de suas qualidades e possíveis impactos ambientais, estamos diante de um caso de

precaução. Se existem elementos que atestam a grande probabilidade ou a certeza de que o

produto irá produzir tais danos (por exemplo, por conter um elemento radioativo), então

estamos diante de um caso de prevenção de um resultado antevisto ou já conhecido. Nesse

44 Nesse sentido é o relatório Mudanças Climáticas e Direitos Humanos, editado pelo Conselho Internacional de Políticas sobre Direitos Humanos (Geneva: 2008).

45 Resolução do Conselho Centro-Americano de Procuradores de Direitos Humanos sobre Mudanças Climáticas. El Salvador: 2008. Disponível em <http://www.defensoriadelpueblo.gob.pa>. Acesso em 29.06.2009.

46 MILARÉ, EDIS. Direito do Ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 166.47 Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente de Desenvolvimento, princípio n. 15.48 AYALA, PATRYCK; LEITE, JOSÉ RUBENS MORATO. Direito Ambiental na Sociedade de Risco. Rio de Janeiro:

Forense, 2004, p. 70-73.

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sentido cabe citar o professor PAULO AFONSO LEME MACHADO, quando ressalta que:

“a primeira questão versa sobre a existência do risco ou da probabilidade de dano ao ser humano e à natureza. Há certeza científica ou há incerteza científica do risco ambiental? Há ou não unanimidade no posicionamento dos especialistas? Devem, portanto, ser inventariadas as opiniões nacionais e estrangeiras sobre a matéria. Chegou-se a uma posição de certeza de que não há perigo ambiental? A existência de certeza deve ser demonstrada, porque vai afastar uma fase de avaliação posterior. Em caso de certeza do dano ambiental, este deve ser prevenido, como preconiza o princípio da prevenção. Em caso de dúvida ou incerteza, também se deve agir prevenindo. Essa é a grande inovação do princípio da precaução. A dúvida científica, expressa com argumentos razoáveis, não dispensa a prevenção”.49

Entretanto, a gestão de riscos sempre terá elementos de incerteza e a certeza absoluta.

O chamado ‘risco zero’ não é algo possível, quer nas ciências sociais, quer nas exatas. O que

está em jogo, na verdade, é o grau de certeza atribuída pelo conhecimento especializado - com

uma enorme lacuna no que tange ao conhecimento leigo - e o grau de confiabilidade nas

instituições que atestam esse grau de certeza. Assim a certeza científica deve ser entendida de

maneira compreensiva, incluindo estudos e opiniões contrárias, que podem, inclusive, vir a ser

consideradas verdades num futuro.

CASS R. SUNSTEIN diferencia, dentre as várias edições que o princípio da precaução

ganhou em tratados internacionais, versões mais fracas e outras mais fortes. Às fracas, dentre as

quais destaca a Declaração da Rio 92 e a CQMC, podem-se fazer poucas objeções, pois estas

consideram a falta de certeza científica, danos graves ou irreversíveis e medidas eficazes de

custo razoável. Já as versões mais fortes do princípio, desprovidas desses elementos, são

criticadas por SUNSTEIN por não orientarem de maneira confiável a tomada de decisão e por não

levarem em conta os riscos da precaução, já que todas as decisões, inclusive as cautelares,

geram riscos substitutos. Essas versões mais fortes seriam, por esses motivos, paralisantes50.

SUNSTEIN defende a aplicação das versões fracas do princípio e desenvolve esse

argumento chamando-as de Princípio da Precaução para Danos Catastróficos (PPDC). A versão

mais modesta do princípio insiste que os reguladores tenham atenção ao valor esperado dos

riscos, mesmo que sejam pequenas as probabilidades. Outra versão um pouco menos modesta

defende ser o valor esperado muito maior do que parece à primeira vista, devido à amplificação

social das catástrofes. Uma terceira e mais agressiva versão indaga o nível de aversão ao risco e

considera margens de segurança aceitas pelas pessoas em função do custo. Nos casos em que é

difícil determinar probabilidades, ou de baixas probabilidades para os piores cenários, Sunstein

sugere o princípio do máximo social, pelo qual se prioriza o combate aos riscos do pior cenário,

desde que a diferença entre os piores cenários seja relevante e a entre os custos

49 Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 62. 50 SUNSTEIN, CASS R. Laws of fear: beyond de precautionary principle. Cambridge University Press, 2005, p.

13-35.

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proporcionalmente pequena. O PPDC deve estar atento a todos os riscos relacionados. Se

combater um risco gera outros de mesma proporção, então o princípio não oferece uma

orientação confiável.51

O Princípio da Precaução vem fundamentando diversas decisões em todo o mundo. No

caso da União Européia, as controvérsias decorrentes da aplicação do princípio no bloco fizeram

com que surgissem dois documentos comunitários capazes de oferecer uma orientação

consistente de como se aplicá-lo. O Relatório da Comissão das Comunidades Européias sobre o

Princípio da Precaução submete sua aplicação aos seguintes princípios: proporcionalidade, não

discriminação, coerência, análise das vantagens e encargos, análise da evolução científica no

tempo.52

Já a Resolução do Conselho de Nice sobre o princípio da precaução em muito ratifica o

documento anterior, cabendo destacar no que inova: a organização da avaliação do risco deverá

ser conduzida de modo pluridisciplinar, contraditório, independente e transparente, tendo em

conta eventuais pareceres minoritários; a sociedade civil deve ser associada ao processo e

deverão ser consultas todas as partes interessadas, tão cedo quanto possível; deve ser

assegurada a comunicação adequada dos pareceres científicos e das medidas de gestão do

risco.53 Após analisar os diplomas comunitários e compará-los às ‘ideias brutas’ sobre o princípio

da precaução, OLIVIER GODARD conclui:

O princípio da precaução não inclui uma obrigação de resultado, tampouco uma exigência de redobramento de precauções, mas pede o empenho precoce de diferentes procedimentos de calculo de riscos potenciais, principalmente no que diz respeito à pesquisa cientifica e à avaliação dos riscos. Longe de aceitar uma redução binária do universo das escolhas, esses procedimentos devem guiar a busca de medidas apropriadas num leque de opções possíveis, indo da vigília cientificam passando por recomendações, ate chegar às medidas provisórias de proibição. A responsabilidade da apreciação final das medidas é política54.

A CQMC observa em seu preâmbulo que as previsões relativas à mudança do clima

caracterizam-se por muitas incertezas, particularmente no que se refere a sua evolução no

tempo, magnitude e padrões regionais. De maneira semelhante ao princípio número 15 da

Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente de Desenvolvimento,55 a Convenção Quadro

51 SUNSTEIN, CASS R. The Catastrophic Harm Precautionary Principle Issues. In: Legal Scholarship, Catastrophic Risks: Prevention, Compensation, and Recovery. BEPRESS, 2007, p. 28; 29.

52 COM/2000/001. Disponível em <www.europa.eu >. Acesso em 13 de agosto de 2007.53 PARLAMENTO EUROPEU. Resolução de Nice sobre o Princípio da Precaução. Disponível em <www.europa.eu>.

Acesso em 13 de agosto de 2007, itens 9, 10, 15 e 16.54 GODARD, Olivier. O principio da precaução frente ao dilema da tradução jurídica das demandas sociais:

Lições de método decorrentes do caso da vaca louca. In: PLATIAU, Ana Flávia Barros; VARELLA, Marcelo Dias (Org.). Princípio da Precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p.174-175.

55 Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente de Desenvolvimento, princípio n. 15: “...de modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”.

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prevê que:

As Partes devem tomar medidas cautelares para antecipar, evitar ou minimizar as causas

das alterações climáticas e mitigar os seus efeitos prejudiciais. Quando haja ameaças de danos

graves ou irreversíveis, a falta de certeza científica não deve ser utilizada para justificar o

adiamento da tomada de tais medidas, tendo em conta, no entanto, que as políticas e as

medidas relacionadas com as alterações climáticas devem ser eficazes relativamente ao seu

custo, de tal modo que garantam a obtenção de benefícios globais ao menor custo possível.

Ao comentar o princípio da precaução em matéria de mudanças climáticas, FRANGETTO

& GAZANI o entendem como extensão do princípio da prevenção e consideram que o risco de que

os danos ao sistema climático ocorram “já é motivo suficiente para a adoção de medidas de

segurança capazes de evitá-los”.56

De acordo o relatório Stern Review, “ninguém pode prever as consequências das

mudanças climáticas com toda a certeza, mas o que sabemos agora é suficiente para

compreender os riscos”.57 De acordo com esse importante estudo científico:

“Utilizando resultados de modelos econômicos formais, o Estudo calcula que, se não atuarmos, o total dos custos e riscos das alterações climáticas será equivalente à perda anual de, no mínimo, 5% do PIB global, agora e para sempre. Se tivermos em conta uma série de riscos e impactos mais amplos, as estimativas dos danos poderão aumentar para 20% ou mais do PIB. Em contraste, os custos da tomada de medidas – a redução das emissões dos gases com efeito de estufa a fim de evitar os piores impactos das alterações climáticas – podem ser limitados anualmente a cerca de 1% do PIB global.”58

No estágio atual das ciências climáticas, já se podem traçar cenários com valores

esperados e, a partir das (grandes) probabilidades associadas à sua ocorrência, fundamentar uma

ação cautelar vigorosa e imediata a nível internacional e no âmbito dos Estados, principalmente

daqueles que hoje contribuem de maneira expressiva para o problema.

De acordo com as conclusões do Stern Review, a maneira mais efetiva e com o maior

benefício para lidar com os riscos das mudanças climáticas é agir imediatamente de maneira

vigorosa para estabilizar a concentração de GEE e o aumento da temperatura média terrestre de

maneira a possibilitar uma adaptação menos dolorosa da humanidade. Interpretando

literalmente o disposto na CQMC, a ausência de certeza científica acerca dos exatos efeitos das

mudanças climáticas não pode servir de justificativa para adiar medidas cautelares. Isso impõe

aos Estados signatários da Convenção que adotem em regime de urgência normas próprias no

âmbito de suas jurisdições internas para a mitigação das mudanças climáticas e para a

adaptação aos efeitos certos e em curso. 56 Viabilização Jurídica do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo no Brasil: O Protocolo de Quioto e a

cooperação internacional. São Paulo: Peirópolis, 2002, p. 36.57 Stern Review: the economics of climate change. Cambridge, 2006. Sumário Executivo, p. 6 a 8. Versão

traduzida para o português disponível em www.sternreview.org, acesso em 15/09/07.58 Stern Review: the economics of climate change. Cambridge, 2006. Sumário Executivo abreviado, p. 6. Versão

traduzida para o português disponível em www.sternreview.org, acesso em 15/09/07.

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Por sua vez, o Quarto Relatório do IPCC deixa claro que, não importa o quanto se

reduzam as emissões de GEE, as mudanças climáticas estarão inevitavelmente presentes até a

primeira metade deste século. Por essa razão o IPCC faz evidente a necessidade de ações

imediatas de adaptação. Mesmo restando incertezas sobre os exatos impactos a serem

experimentados já existem dados mais do que suficientes para encarar as mudanças climáticas

como fenômeno com alta probabilidade danosa para a humanidade.

A partir dessas constatações pode-se perfeitamente argumentar que a questão já não se

está mais no período de aplicação do princípio da precaução, mas sim da prevenção de danos

tidos como muito prováveis, com alto grau de certeza. Esta constatação exorta à adoção de

todas as políticas possíveis, mesmo daquelas não possuem a melhor relação de custo-benefício.

Se quando da assinatura da CQMC o problema estava no campo da precaução, não resta dúvidas

de que o século XXI marca a entrada do problema na esfera da prevenção.59

Não obstante, a aplicação do principio da precaução de forma plural, proporcional e,

acima de tudo, participativa, atende melhor às complexidades da gestão de riscos e ameaças. Ao

menos até o presente momento, o princípio da precaução parece seguir rumo ao espectro

procedimentalista enquanto que o princípio da prevenção parece ajustar-se a um enfoque

seletivo pontual.

2.3 O princípio do poluidor-pagador

O princípio do poluidor pagador está entre os mais polêmicos do Direito ambiental, por

duas principais razões. O nome, o escopo e os núcleos operativos do princípio são

indeterminados e alvo de divergências. Para o Professor PAULO AFONSO LEME MACHADO, “o

princípio usuário pagador contém o princípio poluidor-pagador, isto é, aquele que obriga o

poluidor a pagar a poluição que pode ser causada ou que já foi causada”.60 Para ANTONIO

HERMAN BEIJAMIN,61 todo o Direito ambiental gira em torno deste princípio, consagrado no item

n. 16 da Declaração de 1992 com o seguinte texto:

As autoridades nacionais deverão esforçar-se por promover a internalização dos custos

ambientais e a utilização de instrumentos econômicos, tendo em conta o princípio de que o

poluidor deverá, em princípio, suportar o custo da poluição, com o devido respeito pelo

59 Nesse sentido LISA HEINZERLING fala em Princípio Pós-Precaução. Para ela o período da precaução teria terminado no final da década de 1980 (Climate Change, Human Health, and the Post-Cautionary Principle. Bepress,2007. Disponível em <http://lsr.nellco.org/georgetown/ois/papers/4>. Acesso em 05.03.08).

60 Op. Cit., p. 51. Esta não parece ser, contudo, a posição mais técnica e predominante na doutrina. Um dos indícios da autonomia dos dois princípios acima decorre do tratamento a eles dado pela a Política Nacional de Meio Ambiente (Lei n. 6.938/1981, 4º, inciso VII) ao prever “a imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados, e ao usuário, de contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos”.

61 BEIJAMIN, Antonio Herman V., O Princípio Poluidor-Pagador e a reparação do dano ambiental. In: BEIJAMIN, Antonio Herman V. (Cord.). Dano ambiental: prevenção, reparação e repressão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 217.

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interesse público e sem distorcer o comércio e investimento internacionais.

Mas afinal, quem é o poluidor e o que se paga? ANTONIO HERMAM BEIJAMIN fala em

despesas com prevenção, reparação e repressão.62 Já para Maria Alexandra de Sousa Aragão o

poluidor pagador deve arcar com os custos de precaução, prevenção, administração, medidas

públicas e auxílio a vítimas de acidentes.63

A autora explica que figura do poluidor depende se a poluição é gerada no momento da

produção ou do consumo dos produtos. Na grande maioria das vezes a poluição ocorre em ambos

momentos e nas outras hipóteses temos duas classes de poluidor: o direto e o indireto. O

primeiro realiza a atividade que gera o dano e o segundo dela se beneficia. No entanto,

geralmente o poluidor-pagador responsabilizado pelos custos é aquele com maiores chances de

interferir no processo e de arcar com as despesas, sendo, em regra, o produtor.64 Esse raciocínio

vem sendo aplicado também aos casos de poluição causada após o consumo.

Como bem destaca ANTONIO HERMAN BEIJAMIN, ao tornar a degradação

economicamente desvantajosa, o princípio do poluidor pagador possui escopo fundamentalmente

preventivo, podendo se manifestar também de forma repressiva.65

MARIA ALEXANDRA DE SOUSA ARAGÃO destaca três espécies de instrumentos compatíveis

com o princípio do poluidor-pagador: (i) os instrumentos normativos, que possuem comandos

claros, mas dificuldades de atualização, controle e estímulo ao melhoramento contínuo, além de

serem ineficientes economicamente; (ii) instrumentos econômicos - como por exemplo os

tributos ambientais, que apresentam dificuldades quanto a valoração das alíquotas e conferem

maior liberdade aos agentes econômicos, sendo em regra desassociados de sanções; (iii) títulos

de negociação de Direitos de poluição, através dos quais o Estado fixa uma quantidade de

poluição permitida a um grupo de agentes e deixa que eles encontrem a melhor maneira de

cumprir com as metas estabelecidas.66 Apesar das vantagens do uso de títulos de negociação,

algumas críticas podem ser feitas ao uso de títulos de negociação de Direitos de poluição, dada

sua lógica mercantil. Uma delas, feita por François Ost,67 é que esse instrumento gera dentre

outros riscos o da criação dos chamados hot spots, que surgem com a alta concentração de

poluentes em determinados locais que não compromete as metas globais do setor ou perímetro

62 Op. Cit., p. 228.63 ARAGÃO, Maria Alexandra de Sousa. O princípio do poluidor pagador: pedra angular na política comunitária

do ambiente. In: Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 145-165.

64 Op. Cit., p. 131-145.65 Op. Cit., p. 236. 66 ARAGÃO, Maria Alexandra de Sousa. Ob. Cit., p. 177 a 183.67 Nesse sentido François Ost conclui: “Se é verdade que, globalmente, as trocas de licenças de poluir não

afetam a norma regional global, é grande o risco, em contrapartida, de que os danos se concentrem em determinadas zonas onde funcionam as empresas mais vetustas. Nestas zonas, pelo menos, a norma média regional será ultrapassada, sem contar o risco acrescido e imprevisível devido à acumulação local de poluentes. Quem indenizará as populações vizinhas numa hipótese desse gênero?” (Op. Cit. p. 146).

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no qual se distribuem os títulos e se estabelecem as negociações (bolha).

O princípio do poluidor não aparece de forma expressa nos tratados de direito

internacional sobre mudanças climáticas. Não se confunde com as responsabilidades comuns

porém diferenciadas afirmadas na CQMC (artigo 3º, item 1) e no Protocolo (artigo 10º) em razão

das contribuições históricas e atuais consideradas quando da assinatura da Convenção

(preâmbulo e artigo 4º, item 6).68 O princípio das responsabilidades comuns porém diferenciadas,

repetido diversas vezes na CQMC e no PQ, leva em conta as emissões históricas globais e as

capacidades técnica e financeira dos países para realizar esforços no sentido de estabilizar as

concentrações atmosféricas de GEE. Logo, pode ser encarado como decorrente do princípio do

poluidor-pagador, trazendo consigo um elemento de equidade.69

Muito embora o Estado seja responsável por parte das emissões históricas, parece ser

plausível dizer que não seja hoje poluidor direto (produção de bens e serviços), restando a ele

talvez o papel indireto (consumo de bens e serviços) em todas as ocasiões. A responsabilidade

comum porém diferenciada dos Estados decorre do fato de eles serem as instâncias políticas

representativas e signatárias dos tratados climáticos. Os Estados são, logo, juridicamente

responsáveis por toda e qualquer poluição produzida dentro de sua jurisdição.

Nesse sentido é o princípio n. 270 da Declaração do Rio e o preâmbulo da CQMC.71 A

Convenção diz em seu artigo 4º (item 2, alínea (e)) que as partes deverão coordenar

instrumentos econômicos e administrativos.

Já o Protocolo de Quioto prevê políticas com instrumentos majoritariamente normativos

(artigo 2º) e três mecanismos flexíveis suplementares (artigos, 6º, 12 e 17) que produzem títulos

negociáveis, deixando nítida sua orientação pelo princípio do poluidor pagador quando prevê

dentre os objetivos das partes constantes do Anexo I a redução gradual ou eliminação de

imperfeições de mercado, de incentivos fiscais, de isenções tributárias e tarifárias e de

subsídios para todos os setores emissores de gases de efeito estufa que sejam contrários ao

68 Em sentido contrário, BARBOSA, Rangel; OLIVEIRA, Patrícia. O princípio do poluidor pagador no Protocolo de Quioto. In: Revista de Direito Ambiental, ano 11, n. 44. São Paulo: Revista dos Tribunais, outubro/dezembro de 2006, p. 126.

69 Nesse sentido Chang Man Yu assevera: “o princípio da responsabilidade comum porem diferenciada baseia-se no princípio da equidade global. Trata-se do princípio da equidade e não da igualdade, pois tratar os desiguais de forma igual é ser inequitativo. No debate sobre mudança climática global, ser equitativo significa atribuir responsabilidade maior aos que contribuíram mais para o estado atual da concentração de gases estufa na atmosfera. (Sequestro florestal de carbono no Brasil: dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas. São Paulo: Annablume/IEB, 2004, p. 53).

70 “Os Estados, de acordo com a Carta das Nações Unidas e com os princípios de direito internacional, têm o direito soberano de explorarem os seus próprios recursos de acordo com as suas políticas de ambiente e desenvolvimento próprias, e a responsabilidade de assegurar que as atividades exercidas dentro da sua jurisdição ou controlo não prejudiquem o ambiente de outros Estados ou de áreas para além dos limites da jurisdição nacional”.

71 “Notando que a maior parte das emissões globais atuais e históricas de gases com efeito de estufa teve origem em países desenvolvidos, que as emissões per capita nos países em desenvolvimento são ainda relativamente baixas e que a quota-parte das emissões globais com origem nos países em desenvolvimento irá aumentar para satisfazer as suas necessidades sociais e de desenvolvimento”.

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objetivo da Convenção e aplicação de instrumentos de mercado.72

A Implementação Conjunta está prevista no artigo 6º do Protocolo de Quioto. Este

mecanismo prevê a transferência ou a aquisição, entre as partes do Anexo I, de Unidades de

Reduções de Emissões (UREs), resultantes de projetos conjuntos que reduzam emissões de GEE

ou que os removam da atmosfera, por meio de sumidouros, para o cumprimento de suas metas

individuais.

O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) está previsto no artigo 12 do Protocolo

de Quioto e deverá ser utilizado para reduzir emissões de GEE ou remove-los, proporcionando o

desenvolvimento sustentável dos paises não presentes no Anexo I e servindo para adimplir as

metas dos países pertencentes a esse mesmo anexo. Embora seja criticado como brecha para

poluição dos países desenvolvidos,73 o MDL nasceu de uma proposta brasileira74 e tem como

princípios a transferência de tecnologias e a promoção do desenvolvimento sustentável nos

países em desenvolvimento.

Já o Comércio de Emissões está previsto no artigo 17 do Protocolo de Quioto. Após uma

primeira análise dos itens 10 e 11 do artigo 3º do Protocolo, poder-se-ia concluir que somente as

Quantidades Atribuídas e não utilizadas são passíveis de serem comercializadas. Não é este o

entendimento no Quadro das Nações Unidas para Mudanças Climáticas. A página oficial desta

entidade traz, na parte pertinente ao mecanismo do Comércio de Emissões, a informação de que

as unidades serão comercializadas em toneladas métricas de carbono equivalente (CO2e),

independente do mecanismo suplementar originário.75

No que se refere à ordem jurídica brasileira, o princípio do poluidor pagador está

consagrado constitucional e infraconstitucionalmente. A Política Nacional de Meio Ambiente traz

o conceito de poluição76 e considera poluidores pessoas físicas ou jurídicas por ela responsáveis

direta ou indiretamente.77 O poluidor é ainda obrigado “independentemente da existência de

culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por

sua atividade”.78 O princípio, não obstante, ainda carece de uma jurisprudência mais farta e

específica nas cortes supremas.

Os mecanismos flexíveis não se opõem ao princípio do poluidor pagador, desde que

72 Protocolo de Quioto, artigo 2º, letra (a), alínea (v).73 Nesse sentido, BARBOSA, Rangel; OLIVEIRA, Patrícia. Ob. Cit., p. 126 a 130.74 Para maiores detalhes, vide o portal www.mct.gov.br/clima, acesso em 19/09/2007.75 http://unfccc.int/kyoto_mechanisms/emissions_trading/items/3016.php , acessado em 3 de novembro de

2005.76 O artigo 3º, inciso III da Lei 6.938 considera poluição “a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem desfavoravelmente a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos”. 77 O artigo 3º, inciso IV da Lei 6.938 de 1981.78 O artigo 14, §1º da Lei 6.938 de 1981.

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suplementares às ações domésticas. O estímulo econômico se justifica pelo fato das emissões

GEE serem globais, não importando tanto para efeitos da mitigação das mudanças climáticas a

localidade onde são reduzidas. Os mecanismos a base de projetos (IC e MDL tradicional)

incentivam a cooperação entre Estados com o objetivo comum de estabilizar as concentrações

de GEE. O uso indiscriminado desses instrumentos gera distorções globais como a existências de

regiões que recebem indústrias e tecnologias sujas ou que as mantém em razão de fatores ou

compensações de mercado.

Já os mercados compatíveis com o PQ de caráter obrigatório em vigor em alguns países

e blocos econômicos estão entre os instrumentos compatíveis e realizadores do princípio do

poluidor pagador. Isto porque estão veiculados a políticas públicas que prevêem multas no caso

de não cumprimento das metas ou a taxação sobre as emissões excedentes, sendo o melhor

exemplo o Mercado Europeu (ETS). Uma maior aplicação deste princípio, vital para o

enfrentamento das mudanças climáticas, exige políticas públicas que utilizem instrumentos

normativos (filtros industriais obrigatórios, desapropriação para fins de reflorestamento, etc.) e

econômicos (taxas e impostos sobre emissões de GEE), além de mercados de permissões

regulados de maneira eficaz pelo Estado, com previsão de multas para as emissões excedentes. A

aparente insuficiência da adoção isolada dos mecanismos de mercado clama pela adoção dessas

políticas.

3. Rumo a um novo acordo?

Embora haja um movimento na direção de um novo acordo, chamado Pós-Quioto, cabe

deixar claro que isto é desnecessário. Primeiramente porque a edição do Protocolo de Quioto

resultou de intensas e longas discussões que não precisam ser totalmente refeitas. A base do

acordo - precaução dos riscos climáticos drásticos que exige políticas públicas pautadas nas

responsabilidades comuns porém diferenciadas – ainda é válida. Refazer esse processo é

desnecessário e requer um tempo do qual não mais se dispõe. Toda a estrutura do Protocolo de

Quioto (Conferencia das Partes; Corpos Subsidiários; Comitês de Cumprimento e Secretariado

Executivo) estão em funcionamento.

O segundo e mais forte argumento é que, ao contrário do que se diz, o Protocolo de

Quioto não e xpira em 2012! O período de 2008 a 2012 é o primeiro (artigo 3º, item 7) e os

compromissos subsequentes para as partes do Anexo I devem ser estabelecidos por emendas aos

Anexos A da CQMC79 e B do Protocolo (artigo 3º, item 9). A implementação do acordo está sob

permanente revisão pela Conferencia das Partes do Protocolo com vistas a sua eficácia (artigo

13, item 4). Por fim tanto o texto do Protocolo quanto seus anexos I (com países considerados

79 Obs: já houve, inclusive, revisão deste anexo, pela Decisão 4 da COP 3. Foram incluídos Croácia, da República Tcheca, de Liechtenstein, de Mônaco, da Eslováquia e da Eslovênia.

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desenvolvidos) e B (com metas de redução de GEE atribuídas) podem ser emendados com adesão

mínima de ¾ dos signatários a emenda, que deve ser proposta e comunicada pelo Secretariado

ao menos 6 meses antes da Conferencia Anual das Partes (artigos 20 e 21). Para que se inclua

uma parte no Anexo B (cogita-se estabelecer metas para os Estados Unidos, Brasil, China e Índia)

é necessário o consentimento da parte a ser incluída.

As maiores dificuldades para a continuidade do Protocolo de Quioto são políticas e não

jurídicas. A resistência à adoção de políticas públicas consistentes e à inclusão de atores chaves

no quadro de países com metas de redução de emissões não serão resolvidas com a substituição

do Protocolo de Quioto por qualquer outro tratado, por melhor que seja.

4. Conclusão

As mudanças climáticas ameaçam seriamente o caráter equitativo do fluxo de bens e

oportunidades entre as gerações presentes e futuras da humanidade. Ao que tudo indica,

vivemos hoje num planeta já em processo de mudança no clima.

Diante da incerteza científica acerca das consequências exatas das mudanças

climáticas, mas ante um consenso em instancias científicas chaves de sua ocorrência, faz se

mister aplicar os princípios da precaução e da prevenção de maneira consistente. Para tanto os

Estados devem adotar políticas públicas que, por meio de instrumentos normativos, econômicos

e de mercados nacionais de emissões, façam com que os poluidores da atmosfera internalizem os

custos de precaução, prevenção e adaptação aos efeitos das mudanças climáticas.

Levando em conta magnitude a complexidade das mudanças, a comunidade

internacional começou um processo de cooperação e diálogo com o objetivo de encontrar

soluções conjuntas. Dentre as tentativas de solução destacam-se a Convenção Quadro da ONU

das Mudanças Climáticas e o Protocolo de Quioto.

No presente momento, a sociedade internacional debate a celebração de um acordo

internacional que venha a “substituir” o já existente Protocolo de Quioto. Não obstante,

descartar todo o acúmulo representado por este protocolo e simplesmente assinar outro tratado

é desnecessário e pouco eficiente se considerada a urgência do enfrentamento das questões

climáticas e os riscos que estas representam para a efetiva tutela dos direitos humanos em todo

o mundo.

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