Princípios de ordem projetual na obra de Vitrúvio
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7/23/2019 Princpios de ordem projetual na obra de Vitrvio
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arquiteturarevista - Vol. 6, n 1:1-11 (janeiro/junho 2010)doi: 10.4013/arq.2010.61.01
ISSN 1808-5741
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Princpios de ordem projetual na obra deVitrvio
Principles of projectual order in Vitruvius work
Leandro [email protected] Feevale. Rodovia RS 239, 2755, 93352-000, Novo Hamburgo, RS, Brasil
Resumo AbstractEste trabalho procura lanar um outro olhar sobre aobra de Vitrvio, autor romano responsvel pelomais antigo tratado a respeito de arquitetura quechegou aos nossos dias. Mais especificamente, esteartigo investiga os princpios de ordem projetual
que regem o lanamento dos partidosarquitetnicos. Por intermdio do texto deAristteles, busca-se compreender os conceitos queposteriormente sero tratados pelo arquitetoromano. Estuda-se, tambm, a formao tericados arquitetos da poca, como forma decompreender o trnsito desses conceitos naconstruo do tratado, no sculo I a.C. Buscandoexemplificar os princpios analisados, querelacionam as partes de um projeto a partir dosconceitos de ordinatio e dispositio, apresenta-se oestudo dos partidos arquitetnicos para templos,tendo como base as definies contidas no tratadovitruviano. Procurando outra abordagem, introduz-
se o conceito de matriz de partidos e discute-se suaaplicabilidade na concepo do partidoarquitetnico.
This paper proposes another view to the work oVitruvius, the Roman author responsible for the mostancient treatise about architecture that came to our days.More specifically, the paper investigates the principles oprojectual order governing the architectural parties.
Through the Aristotles text it is sought to understand theconcepts that will later be processed by this Romanarchitect. It is also studied the architects theoreticaltraining by that time in order to understand the transit othese concepts in the treatise construction on the firstcentury BC. Seeking to illustrate the principles discussed,that relate the parts of a project based on the concepts oordinatio and dispositio, it is presented the study oarchitectural parties to temples, based on the definitionscontained in the Vitruvian treatise. Looking for a differentapproach, it is introduced the concept of a matrix oparties, and it is discussed its applicability in the design oarchitectural party.
Palavras-chave: ordem projetual, Vitrvio,partido arquitetnico.
Key words: projectual order, Vitruvius, architecturalparty.
Introduo
A anlise e a avaliao da excelncia arquitetnica motivaram muitos estudos ao longo da histria da
arquitetura. Desde o texto mais antigo da rea que hoje resta, o tratado de Vitrvio, a tentativa de
estabelecer critrios balizadores para a produo qualificada uma constante, ou, por que no dizer, o
prprio objetivo de toda produo terica que procura construir conceitos por meio de interpretaes que
carregam em si um juzo de valor.
Nesse percurso, de Vitrvio aos dias de hoje, a teoria a cerca da arquitetura produziu interpretaes
bastante distintas em sua maneira operativa, desde o estabelecimento de cnones arquitetnicos
fundamentados em um cientificismo exacerbado da rea, at posies relativistas ao extremo, segundo as
quais qualquer tentativa de estabelecimento de critrios vista como uma reduo do campo do
conhecimento. Nos dias de hoje, em que a viso relativista da rea bastante defendida, sob o argumento
de que o avano tecnolgico e a viso transdisciplinar permitem aos arquitetos uma liberdade nunca antes
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experimentada, o ensino de arquitetura, que construdo com base na crtica projetual, colocado em
xeque.
Buscando contribuir para esse tema, o trabalho prope a discusso da excelncia arquitetnica a partir do
conceito de ordem, o qual entendido como o conjunto de princpios que mantm uma obra coesa. Esse
conceito, construdo teoricamente a partir de Vitrvio e, posteriormente, por meio dos tratados doRenascimento, atravessou os anos como uma constante, atemporal e universal, muito provavelmente pela
sua ligao intrnseca com a prpria arquitetura enquanto fenmeno humano. Sua presena em um projeto
significa a compreenso de que arquitetura construda a partir de um sistema de relaes, que, como toda
ao humana, diferentemente do meio natural, tem como base um regramento explcito e inteligvel.
Uma definio de ordem
Ao iniciar um estudo que trate de conceitos amplamente discutidos e bastante ampliados, como o conceito
de ordem, se faz necessrio definir a abordagem que se procura. Nesse sentido, tm-se, de uma forma
bastante simplificada, as definies trazidas nos dicionrios de lngua portuguesa. Tomando o Dicionrio
Houaiss, o conceito de ordem que se busca est expresso em:
1 relao inteligvel estabelecida entre uma pluralidade de elementos; organizao;estrutura 1.1 disposio, distribuio ou organizao metdica (de carter espacial,temporal, numrico, lgico, esttico, moral, etc.) [...] 1.2 boa arrumao, arranjoadequado, conveniente ou harmonioso [...] (Houaiss et al., 2001, p. 2076).
A partir do sentido lato do conceito, amplia-se a busca por uma definio mais precisa e especfica pela
abordagem de Abbagnano (2001, p. 730-732), para quem o conceito de ordem possui os seguintes
significados na filosofia:
[...] a O. consiste simplesmente na possibilidade de expressar com uma regra, ouseja, de maneira geral e constante, uma relao qualquer entre dois ou maisobjetos quaisquer. A noo de O., neste sentido, no se distingue da noo derelao constante.
Como o objetivo o de analisar o conceito de ordem na obra de Vitrvio, a partir das definies acima,
encontra-se na obra de Aristteles, a partir de uma indicao de Abbagnano (2001, p. 732) a respeito da
sua importncia no estabelecimento do conceito de ordem pelo seu livro sobre a Metafsica, a ampliao
desse conceito, que, como ser abordado a seguir, certamente influenciou tambm Vitrvio. Na obra, o
autor grego busca as causas das coisas, ou seja, os seus princpios. No utiliza a palavra ordem
propriamente, mas desenvolve diversos conceitos a respeito da relao entre as partes como causa das
coisas, vindo, assim, ao encontro do que se busca definir como ordem.
O livro iniciado com a clebre frase todos os seres humanos naturalmente desejam o conhecimento
(Aristteles, 2006, p. 43), na qual o autor exprime o sentido dos diversos textos que o compem, a busca
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pelo conhecimento e pelos princpios de tudo que existe. A partir dessa afirmao, o autor traz uma
discusso sobre a importncia das artes liberais e sua primazia sobre as artes manuais, estabelecendo uma
escala de relevncia entre elas, a qual vai ser tambm abordada por Vitrvio no sentido de estabelecer a
Arquitetura como arte liberal, ligada ao intelecto, e no meramente manual:
A razo da presente discusso deve-se ao fato de supor-se geralmente que aquiloque chamado de sabedoria (metafsica) diz respeito s causas primeiras e aosprincpios, de maneira que, conforme j foi indicado, julga-se o homem daexperincia mais sbio do que os meros detentores de qualquer faculdade sensorial,o artista mais do que o homem da experincia, o mestre mais do que o arteso; eas cincias especulativas mais ligadas ao saber do que as produtivas. Assim, ficaclaro que a sabedoria conhecimento de certos princpios e causas (Aristteles,2006, p. 46).
A partir dessa abordagem inicial, Aristteles (2006, p. 49) estabelece os quatro tipos de causas: a essncia,
a matria, o princpio de movimento e a finalidade. A essncia est relacionada prpria natureza da coisa e
poderia ser reduzida, segundo o autor, a sua frmula. A matria o substrato, enquanto o princpio demovimento a transformao desse substrato, a fora motriz da mudana. A finalidade, segundo ele, o
final do processo, ao qual a transformao se destina.
Visto que muitos autores gregos, segundo Aristteles, analisavam as questes de nmero como sendo a
essncia das coisas, ele traz uma interessante discusso a respeito da relao entre nmero e essncia,
contrapondo esse pensamento e se aproximando quilo que se procura como princpio de ordem projetual, o
estabelecimento de uma relao definida entre as partes:
Ademais, est claro que os nmeros no so a essncia das coisas, no sendo elestampouco causas da forma; com efeito, a relao a essncia, enquanto o numeroa matria. Por exemplo, a essncia da carne ou do osso somente numero nosentido de que trs partes de fogo e duas de terra. E o nmero, seja ele o que for, sempre um numero de alguma coisa, de partculas de fogo ou de terra, ou deunidades. Mas a essncia a proporo de uma quantidade relativamente outrada mistura, ou seja, no mais um nmero, mas uma relao da mistura denmeros, ou de partculas corpreas ou de qualquer outro tipo. A concluso que onmero no uma causa eficiente: nem o nmero em geral, nem aquilo queconsiste de unidades abstratas... nem ele matria, nem frmula ou forma dascoisas. Nem ele, tampouco, uma causa final (Aristteles, 2006, p. 360).
A partir dessa anlise inicial do conceito de ordem como essncia ou princpio das coisas, busca-se
estabelecer a relao entre esse pensamento e o texto de Vitrvio.
Teoria e prtica: a formao de Vitrvio
A ascenso da arquitetura das artes manuais para as artes liberais, certamente fundamentada nos textos de
Alberti do sculo XV, j se fazia presente, em certa maneira, no texto de Vitrvio. No primeiro captulo, ele
discorre largamente sobre a importncia da educao na formao de um arquiteto, e, em seguida, sobre opapel da teoria e sua relao com a prtica profissional. Assim diz Vitrvio:
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O arquiteto deve estar equipado com o conhecimento de muitos ramos de estudo evariados tipos de aprendizagem, pois por seu juzo, que todo o trabalho realizadopor outras artes posto prova. Este conhecimento o filho de prtica e teoria.Prtica o exerccio contnuo e regular de aplicao, quando o trabalho manual feito com qual seja os material necessrio, de acordo com a concepo de umprojeto. Teoria, por outro lado, a capacidade de demonstrar e explicar asprodues de destreza baseados nos princpios da proporo. Daqui resulta,portanto, que arquitetos que visavam a obteno de habilidade manual, sem estudo,
nunca foram capazes de chegar a uma posio de autoridade para corresponderaos seus anseios, enquanto aqueles que se basearam apenas nas teorias e estudoestiveram obviamente procurando uma sombra, no a substncia. Mas aqueles quetm um conhecimento profundo de ambas, como homens armados em todos ospontos, atingiram mais cedo o seu objeto e obtiveram autoridade com eles(Vitruvius, 1960, p. 5).
A formao de um arquiteto no sculo I a.C., segundo Rowland (1999, p. 7), relatada na introduo da obra
que acompanha sua traduo ilustrada de Vitrvio, estava baseada na educao Greco-Helenstica para as
artes liberais intitulada enkyklios paidia. Tratava-se de uma formao generalista, a qual preparava para os
estudos em Direito e Retrica destinados aos lderes da sociedade, assim como para estudos profissionais. O
currculo desses estudos inclua as artes verbais (gramtica, retrica e dialtica) e os estudos matemticos
(aritmtica, geometria, teoria musical e astronomia). Isso pode ser constatado no texto do tratado, ainda no
captulo primeiro, no qual Vitrvio lista os conhecimentos necessrios para a formao de um arquiteto, os
quais incluem desenho, geometria, tica, aritmtica, histria, filosofia, fsica, msica, medicina, direito e
astronomia (Vitruvius, 1960, p. 6-13), e parte em defesa do estudo como condio indispensvel ao
arquiteto:
Assim, uma vez que este estudo to vasto e extenso, embelezado e enriquecido
como com muitos tipos diferentes de aprendizagem, eu acredito que os homensno tm o direito de se professar propriamente arquitetos apressadamente, sem terascendido a partir da infncia os passos destes estudos e, assim, alimentados peloconhecimento de vrias artes e cincias, tendo alcanado as alturas do solosagrado da arquitetura (Vitruvius, 1960, p. 6-13).
A partir desses trechos, percebe-se que Vitrvio de fato recebeu a formao liberal, e certamente conhecia
os textos clssicos, os quais foram apresentados anteriormente. A partir dessa constatao que se pode
construir a interpretao, descrita adiante, sobre os princpios da arquitetura presentes no tratado como
sendo uma reinterpretao, ou adaptao, dos conceitos clssicos, ilustrados pelos textos de Aristteles,
mas certamente presentes em outros autores gregos e romanos estudados por ele em sua formao liberal
no sculo I a.C.
Princpios de ordem no tratado vitruviano
Em seu tratado, Vitrvio inicia a discusso a respeito da arquitetura pela formao do arquiteto, como j
referido. Em seguida, estabelecido quem este profissional, Vitrvio elabora os princpios fundamentais
desta arte, muito provavelmente retomando e embasando suas ideias no pensamento aristotlico aindainfluente no perodo de sua formao liberal. Segundo Vitrvio (1960, p.13), a arquitetura depende do
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ordenamento (txis), disposio (diathesis), eurritmia, simetria, decoro e economia. Esses seis princpios
podem ser chamados de causas da coisa arquitetnica.
Tomando o texto de Aristteles como suporte para o entendimento da metodologia de projeto proposta por
Vitrvio, pode-se estabelecer uma leitura da operacionalidade dos princpios elencados pelo arquiteto
romano. Assim, a causa essencial que, segundo Aristteles (2006, p. 49), o porqu da coisa e pode serreduzida sua frmula, sendo entendida na obra vitruviana como o estabelecimento dos princpios formais
que ordenam o partido arquitetnico, concebendo a ordem como sistema de relao entre as partes. Desta
forma, a metodologia de projeto proposta por Vitrvio se inicia com o estabelecimento de mdulos e de sua
quantidade em um esquema geomtrico e proporcional, o princpio de ordinatio descrito por Vitrvio (1960,
p. 13), segundo o qual d a devida medida aos membros de um trabalho considerados separadamente, e
concordncia simtrica s propores do todo, ou seja, a seleo de mdulos a partir dos membros de
uma obra em si e, a partir dessas partes individuais dos membros, construir o todo da obra para que
corresponda.
A causa material, entendida como o substrato por Aristteles (2006, p. 49), pode ser relacionada matria
da qual feita a arquitetura, tanto em sentido literal, ou seja, os materiais construtivos, ou, em sentido
mais amplo, os elementos arquitetnicos (colunas, muros, salas). Estes, regidos pelas relaes formais
ditadas pela essncia, ou ordinatio, so posicionados compondo o partido arquitetnico, o dispositio, que,
como explica Vitrvio (1960, p. 49), consiste na colocao das coisas em seus devidos lugares e no efeito
de elegncia o qual derivado dos ajustes apropriados ao carter da obra.
O princpio de movimento que, segundo Aristteles (2006, p. 52), consiste nas transformaes que sofre o
substrato, pode ser relacionado aos ajustes e adaptaes que o partido, ou os elementos isoladamente,
sofrem para se adequarem realidade, materialidade, ao stio e aos demais condicionantes. Nesse sentido,
pode-se relacion-lo com os princpios vitruvianos de eurritmia e simetria. O primeiro deles, o conceito de
eurritmia, segundo Vitrvio (1960, p. 14), consiste na beleza e adequao no ajuste dos membros,
estabelece os necessrios ajustes das partes para que sejam percebidas corretamente pelo olho humano (a
ntase da coluna, por exemplo). J a simetria, que segundo Vitrvio (1960, p. 14), a concordncia
apropriada entre os membros da prpria obra, e a relao entre as diferentes partes e o esquema geral do
todo, de acordo com uma certa parte tomada como padro, estabelece as relaes proporcionais entre cada
parte, retomando de certa forma o partido, porm corrigindo as propores de cada detalhe dos elementos e
da ornamentao (colunas, frisos, trglifos, mtopas etc.) para que mantenham relaes matemticas entre
si e para com o todo1.
Por ltimo, a finalidade, que consiste na razo da coisa existir, seu objetivo final, ou seja, no caso da
arquitetura, para que aquele objeto arquitetnico foi criado. E, nesse sentido, pode ser observada nas
preocupaes de Vitrvio expressas nos conceitos de decoro e economia. O decoro, para Vitrvio (1960, p.
14-16), a perfeio do estilo que advm quando uma obra est fundamentada com autoridade em
princpios aprovados. Nasce da prescrio, do uso e da natureza. Dessa forma, o decoro responsvel por
estabelecer a relao entre o partido e a ornamentao propostos com as finalidades da obra, que podem
ser de ordem prescritiva, ou seja, as advindas das necessidades especficas do programa; de ordem
1 O conceito de simetria como aqui explorado pode ser ampliado na leitura do captulo especfico sobre o tema na obra deTzonis e Lefaivre (1986).
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consuetudinria, ou seja, relacionadas ao uso, aos costumes e aos requisitos de conforto das atividades a
que se destina o projeto, assim como adequao de status da edificao a sua prpria destinao e ao seu
proprietrio; ou de ordem natural, que trazem consigo as necessidades ambientais relacionadas ao stio
inerentes a cada projeto. O conceito de economia, por sua vez, complementa estabelecendo a necessidade
de se observar o correto emprego dos materiais e custos da obra (Vitruvius, 1960, p. 16).
A partir dessa proposta de interpretao do mtodo de projeto vitruviano, baseada no pensamento
aristotlico que, segundo Rowland (1999, p. 7-8), fez parte da formao terica do arquiteto romano, foca-
se o estudo a partir deste ponto nos dois princpios primeiros, ordinatio e dispositio, isso devido ao objetivo
do estudo de discutir os princpios de ordem no partido arquitetnico. Tal enfoque se fundamenta na
interpretao acima exposta, a qual relaciona ambos os conceitos ao nascimento do partido arquitetnico,
posio compartilhada por Rowland (1999, p. 149), para quem:
Tomados juntos ordinatio e dispositio soam notavelmente como o conceito departido, o qual se tornou familiar aos projetistas do sculo XX atravs de sua
herana da tradio de projeto da Ecole de Beaux-Arts do final do sculo XIX. [...]em Vitrvio a ideia tende a ser mais simples, e aparentemente pensado como umgrid modular (embora no necessariamente confinado rigidamente a isso).
Na anlise individual dos conceitos, Rowland (1999) diz que ordinatio (txis) constitui-se no estabelecimento
com um sistema geomtrico inicial que controlar o projeto, normalmente constitudo a partir de um nmero
definido de mdulos proporcionais. Dispositio (diathesis), por sua vez, constitui-se na colocao das partes
sobre o esquema geomtrico, na transposio do abstrato para o figurativo em termos arquitetnicos.
Ainda sobre o tema, Tzonis e Lefaivre (1986) propem uma interpretao de ordem na arquitetura clssica
como um sistema formal composto pela txis, do grego, o mesmo que ordinatio, entendida como a diviso
das partes em um esquema geomtrico e modular; pela genera, que trata das caractersticas formais dessas
partes; e pela simetria, a qual estabelece a relao proporcional entre elas. A compreenso sistmica
apresentada bastante similar quela discutida, porm difere na abordagem rgida proposta por Tzonis e
Lefaivre (1986), principalmente em seu entendimento a respeito da txis como um esquema composto a
partir de partes tripartidas, e que minimiza a viso sistmica a uma regra.
Assim, a partir dos estudos acima descritos, o presente trabalho se prope a expandir e testar a hiptese de
que os conceitos de ordinatio e dispositio so os geradores dos partidos arquitetnicos. Nesse sentido,
busca-se no tratado os fundamentos para o entendimento desses conceitos e prope-se que o esquema de
ordem projetual pode ser observado na maneira como Vitrvio classifica os edifcios, tanto por aspectos de
ordenamento como de disposio, que so apresentados no tratado como um elenco de solues
fundamentadas na ampla experincia prtica do autor, no se constituindo, explicitamente, em uma
tentativa de ampliao dos conceitos como os abordados neste artigo.
Assim, o ordenamento, entendido como um comprometimento inicial com um esquema geral do projeto,
pode ser exemplificado no captulo que trata da classificao dos templos. Nele, Vitrvio (1960, p. 75-78)
estabelece as sete configuraes bsicas de templos, por meio da relao de nmero entre a cela e as
colunas, sendo elas:
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Templo in Antis, no qual a cela apresenta a face frontal vazada com a colocao de duas colunas(distilo);
Templo Prstilo, no qual so colocadas quatro colunas em frente fachada principal da cela(tetrstilo);
Templo Anfiprstilo, no qual so colocadas quatro colunas em frente s fachadas frontal e posteriorda cela (tetrstilo);
Templo Perptero, no qual a cela cercada por uma fileira de colunas em todas as fachadas,mantendo uma circulao entre elas, sendo seis colunas nas fachadas frontal e posterior (hexstilo)
e 11 nas laterais;
Templo Pseudodptero, no qual a cela cercada por uma fileira de colunas em todas as fachadas,mantendo uma circulao de largura dupla entre elas, sendo oito colunas nas fachadas frontal e
posterior (octstilo) e 15 nas laterais;
Templo Dptero, no qual a cela cercada por uma fileira dupla de colunas em todas as fachadas,mantendo circulaes entre elas, sendo oito colunas nas fachadas frontal e posterior (octstilo) e 15nas laterais;
Templo Hipaetral, no qual a cela cercada por uma fileira dupla de colunas em todas as fachadas,mantendo circulaes entre elas, sendo 10 colunas nas fachadas frontal e posterior (decstilo) e 19
nas laterais.
A partir das sete classificaes iniciais, Vitrvio (1960, p. 78-86) estabelece as cinco classes dos templos em
relao ao intercolnio, isto , a posio dos elementos, que podem ser:
Templo Picnstilo, no qual o intercolnio de uma vez e meia o dimetro das colunas; Templo Sstilo, no qual o intercolnio de duas vezes o dimetro das colunas; Tempo ustilo, no qual o intercolnio de duas vezes e um quarto o dimetro das colunas em todos
os intervalos, com exceo do vo central das fachadas frontal e posterior, no qual o intercolnio
de trs vezes o dimetro das colunas;
Templo Distilo, no qual o intercolnio de trs vezes o dimetro das colunas; Templo Araestilo, no qual o intercolnio maior que trs vezes o dimetro das colunas.
A combinao de nmero e posio dos elementos gera uma matriz de possibilidades, isto , de partidos
arquitetnicos. A matriz compositiva de templos, por exemplo, pode ser gerada a partir da configurao
bsica existente na relao entre cela e colunas. De um lado, tem-se o conceito de ordinatio, que estabelece
o nmero de elementos, no caso especfico, o nmero de colunas associadas a cada cela. De outro, tem-se o
intercolnio, que regra o afastamento dessas colunas, e, a partir disso, de todos os demais elementos,
caracterizando o que est descrito no tratado como dispositio, ou seja, posio (Figura 1).
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Figura 1. Matriz gerada a partir do nmero e posio dos elementos.Figure 1. Matrix generated from the number and position of elements.
A escolha do partido a ser adotado na materializao do projeto, dentre as possibilidades da matriz, segueos critrios da trade vitruviana, que afirma que tudo deve ser construdo na observncia da durabilidade,
da convenincia e da beleza (Vitruvius, 1960, p. 17), ou, como mais conhecida no original latino,
firmitatis, utilitatis, venustatis (Vitruvius, 1931, p. 34). Dessa forma, a adoo de um partido em
detrimento de outro deve estar fundamentada no correto uso dos materiais, observando seus limites de
resistncia e durabilidade; na adequao da edificao ao seu uso e no correto dimensionamento dos
elementos, assim como na adequao do status da edificao, retomando o conceito de decoro; e na beleza,
que ser assegurada, segundo Vitrvio (1906, p. 17), quando a aparncia da obra agradvel e de bom
gosto, e quando os seus membros estiverem na devida proporo de acordo com os corretos princpios da
simetria.
Aplicando os critrios de qualidade da trade ao conceito de matriz, pode-se fazer a leitura de direes
prioritrias dentro do quadro que induz a tomada de deciso conforme um critrio especfico. Ao tomar-se o
eixo vertical da matriz, por exemplo, tem-se um crescimento em conforto dos usurios, com a adoo de
prticos e percursos cobertos externos, alm do aumento da proporo da cela, que traz consigo um
incremento na imponncia do projeto. Esse crescimento limitado pelas questes construtivas, pois,
segundo o autor, os templos Hipaetrais no permitem a cobertura da cela em funo do grande vo gerado
internamente. Assim, identifica-se que a faixa de maior conforto aos usurios, relacionada ao conceito de
convenincia, est localizada nas linhas 4 a 6 da matriz (Figura 2).
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Figura 2. Matriz enfatizando as caractersticas de conforto dos usurios e imponncia do conjunto.Figure 2. Matrix emphasizing the characteristics of users' comfort and grandeur of the whole.
O eixo horizontal, por sua vez, leva a um crescimento do vo do intercolnio. Nos partidos listados nas duas
primeiras colunas da matriz (picnstilo e sstilo), com intercolnios pequenos, o autor relata a dificuldade de
acesso e o encobrimento das portas ocasionado pela proximidade das colunas que, segundo ele, no
permitem a passagem de mais de uma pessoa por vez quando nessa configurao. Os vos maiores, como
os da quarta coluna (distilo), representam um risco estrutural para as arquitraves em pedra, sendo
desaconselhados pelo autor. Contudo, os templos da quinta coluna (araestilo) somente podem ser
edificados com vigas em madeira, comprometendo, assim, sua durabilidade. Assim, em termos de tcnica
construtiva, relacionada ao conceito de durabilidade, os partidos da terceira coluna so os mais indicados
(Figura 3).
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Figura 3. Matriz enfatizando o aumento do vo estrutural e suas consequncias.Figure 3. Matrix emphasizing the increased structural range and its consequences.
Essa anlise matricial mltipla, pois cada linha ou coluna da matriz tem suas limitaes e vantagens
conforme o critrio adotado. Dessa forma, permite que, a cada determinado projeto, o arquiteto escolha opartido mais adequado conforme os condicionantes e demais exigncias do stio, da finalidade, do decoro e
da economia.
Consideraes finais
A arquitetura clssica dominou o mundo ocidental por pelo menos quinhentos anos e, mesmo que j tenha
sido ultrapassada, ainda hoje merece ser estudada, pois apresenta uma srie de princpios que podem
ajudar na qualificao da arquitetura atual. O estudo a respeito dos verdadeiros valores dessa arquitetura
pode, inclusive, ajudar a afastar as reinterpretaes equivocadas de alguns revivals que se observam pelas
cidades nos dias de hoje.
Muitos dos princpios projetuais, como o de coeso ou ordenamento de projeto, abordados aqui, podem ser
retomados, pois, na verdade, se tratam de princpios fundamentais a toda obra humana. Assim, o estudo de
Vitrvio toma novo flego, no mais sob o aspecto historicista, mas como exerccio de compreenso
projetual e especulao terica.
Nesse sentido, o trabalho se props a remontar a lgica projetual vitruviana sob outro ponto de vista,
introduzindo o conceito de matrizes como forma de compreender as diversas possibilidades de montagem de
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partidos arquitetnicos apresentadas pelo autor romano. A metodologia de projeto construda por Vitrvio,
fundamentada sobre os princpios de ordenamento, disposio, eurritmia, simetria, decoro e economia, gera,
ao se tomarem os dois primeiros princpios (ordinatio e dispositio), um espectro de partidos arquitetnicos
possveis, que podem ser agrupados na forma de uma matriz. Apresentados desta forma grfica, possvel
identificar direes, ou sentidos, de tomada de deciso projetual, seguindo os requisitos funcionais,
construtivos e estticos estabelecidos pelo autor em seu tratado.
A partir dessa montagem matricial, fica claro o entendimento de que um partido arquitetnico constitudo
por um sistema integrado de tomada de decises, no qual um critrio afeta todos os demais, e isso exprime
a contemporaneidade desse estudo. A matriz demonstra, tambm, a elasticidade de um mesmo partido, que
pode ser usado em diversas situaes e escalas, bem como seus limites, como, por exemplo, as restries
impostas pelo sistema construtivo ou pela resistncia dos materiais.
Alm da referida viso sistmica, outra compreenso fundamental a qual se pode abstrair da releitura de
Vitrvio a de que a razo que leva adoo de uma determinada soluo deve ter como base critriosclaramente estabelecidos. Tais critrios, no caso especfico de Vitrvio, esto contidos nos desdobramentos
da chamada trade firmitatis, utilitatis e venustatis. A existncia desses critrios, construdos terica e
praticamente a partir da tecnologia construtiva existente, dos costumes das pessoas de sua poca e da
tradio arquitetnica, traz consistncia teoria proposta por Vitrvio.
No momento atual da arquitetura, no qual se verifica uma relativizao dos critrios de excelncia em troca
de uma suposta liberdade projetual, se faz providencial a retomada da tradio terica arquitetnica. Isso
significa, justamente, a retomada da discusso crtica com vistas construo de critrios contemporneos
que balizem a arquitetura produzida em nosso sculo.
Referncias
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Submetido em: 22/02/2010
Aceito em: 18/04/2010