Príncipes da Pérsia: experiência e representação em uma ... · ... e a narrati-va do jogo...

7
Príncipes da Pérsia: experiência e representação em uma visada semiótica Bruno Galiza Dr. Cleomar Rocha Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Artes Visuais, Brasil Resumo Entre Prince of Persia e Prince of Persia: The Sands of Time há um lapso de 14 anos, tempo suficiente para que os jo- gos - que compartilham não somente o nome, mas também o contexto narrativo e a autoria - proponham e produzam experiências bastante diferenciadas. O primeiro, lançado em 1989, se baseia na perspectiva cavaleira, de modo que a representação é bidimensional e a construção da narrati- va, portanto, dá-se a partir deste modo de ver. O último, de 2003, modifica esta concepção construindo suas imagens a partir de uma perspectiva cônica que, instanciada na noção de câmera subjetiva cinematográfica, propõe que a própria narrativa seja construída levando-se em consideração as imagens observadas por esta ótica. Este artigo prevê, então, a análise destes dois modos de construção e, sobretudo, das experiências sensíveis obtidas, a partir da semiótica de Charles Morris, que fundamenta-se na observação das dimensões sintática, semântica e pragmática envolvidas nas representações em questão. Palavras-chave: videogame, semiótica, sintaxe, semântica, pragmática Contatos dos autores: [email protected] [email protected] 1. Introdução O surgimento do jogo eletrônico trouxe consigo mais do que uma plataforma de diversão à base de moedas funda- mentada em imagens eletrônicas e nas possíveis interações com essas imagens: estreava ali um dos mais proeminen- tes meios narrativos do século XX. Entre seu nascimento como experimentação despretensiosa até o estabelecimen- to da indústria de alcance mundial contemporânea, que se volta para um tipo de articulação extremamente específico, cada vez mais complexo, de imagens e sons produzidos e manipulados por máquinas poderosas, o jogo eletrônico é objeto de especulações e experimentos – inclusive por seu caráter inédito, haja visto que o desenvolvimento da indústria é concomitante e intrinsecamente relacionado ao próprio desenvolvimento da tecnologia que o sustenta – e responsável por sucessivos exórdios, sobretudo no âmbito das narrativas às quais serve de lastro, de maneira que são notáveis as diferenças entre os jogos característicos de cada uma das gerações de consoles. Esta análise se ocupa das diferenças observadas entre duas gerações de videogames, relacionadas sobretudo à maneira como as representações são construídas, e quais as conseqüências das disparidades constatadas no contex- to específico em que se situam os jogos. A fim de conferir coerência à análise proposta, dois jogos pertencentes a uma mesma série foram investigados. A série é Prince of Persia, que se inicia em 1989 e cujo episódio mais recente foi lançado em novembro de 2008. O primeiro objeto de análise é justamente o primeiro episódio da série, Prince of Persia, um estrondoso sucesso comercial em seu lan- çamento. Desenvolvido inicialmente para o Apple II, pri- meiro sucesso no mercado de computadores pessoais da Apple, o jogo foi portado para várias outras plataformas nos anos seguintes. Assim, em 1990 já existiam versões para outros computadores pessoais – Amiga, Atari ST e PC –, e em 1992 o mercado de consoles caseiros recebeu versões para Master System, Sega CD, NES e Game Boy, sucedidas pelas versões de 1993 para o SNES e para o Mega Drive. Em 1998 o Game Boy Color, portátil da Nintendo, recebe a última versão de Prince of Persia para videogames, o que não impede que o jogo continue sendo absorvido por outras plataformas, a exemplo da internet, que possui versões desenvolvidas principalmente por meio do Flash, e dos aparelhos celulares, que recebem versões logo que os dispositivos tornam-se capazes de processar as informações requeridas de maneira adequa- da. A mais recente adaptação do primeiro Prince of Persia é chamada Prince of Persia Classic e foi lançada em 2007 especialmente para os videogames da última geração – Xbox 360 e Playstation 3. Interessante observar que em todas estas versões é evidente a preocupação em manter determinados aspectos do jogo intactos, reforçando a relevância e o êxito de sua mecânica inovadora e das ar- ticulações de elementos formais existentes já na primeira versão e mantidas nas posteriores. As diferenças entre as mais antigas e as mais recentes são mínimas, e incluem modificações nos gráficos, sempre em função de um me- lhor aproveitamento das inovações técnicas, e a inclusão de prólogos ou cutscenes 1 com o objetivo de contextuali- zar a trama ou incrementar a construção da história narra- 1 Cutscenes são animações (ou, menos comumente, trechos de filme) não interativas que interpõem-se entre as fases de um jogo. Tendem a ser utilizadas como recurso narrativo integradas ao roteiro, movendo a história por meio da apresentação de pistas, novos personagens ou inserindo novos elementos, fora da instância do jogo propriamente dita. VIII Brazilian Symposium on Games and Digital Entertainment Rio de Janeiro, RJ – Brazil, October, 8th-10th 2009 1

Transcript of Príncipes da Pérsia: experiência e representação em uma ... · ... e a narrati-va do jogo...

Page 1: Príncipes da Pérsia: experiência e representação em uma ... · ... e a narrati-va do jogo transcorre de ... do contexto pragmático no qual inserem ... que o caracte-rizam e

Príncipes da Pérsia: experiência e representação em uma visada semiótica

Bruno Galiza Dr. Cleomar Rocha

Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Artes Visuais, Brasil

Resumo

Entre Prince of Persia e Prince of Persia: The Sands of Time há um lapso de 14 anos, tempo suficiente para que os jo-gos - que compartilham não somente o nome, mas também o contexto narrativo e a autoria - proponham e produzam experiências bastante diferenciadas. O primeiro, lançado em 1989, se baseia na perspectiva cavaleira, de modo que a representação é bidimensional e a construção da narrati-va, portanto, dá-se a partir deste modo de ver. O último, de 2003, modifica esta concepção construindo suas imagens a partir de uma perspectiva cônica que, instanciada na noção de câmera subjetiva cinematográfica, propõe que a própria narrativa seja construída levando-se em consideração as imagens observadas por esta ótica. Este artigo prevê, então, a análise destes dois modos de construção e, sobretudo, das experiências sensíveis obtidas, a partir da semiótica de Charles Morris, que fundamenta-se na observação das dimensões sintática, semântica e pragmática envolvidas nas representações em questão.

Palavras-chave: videogame, semiótica, sintaxe, semântica, pragmática

Contatos dos autores:[email protected]@gmail.com

1. Introdução

O surgimento do jogo eletrônico trouxe consigo mais do que uma plataforma de diversão à base de moedas funda-mentada em imagens eletrônicas e nas possíveis interações com essas imagens: estreava ali um dos mais proeminen-tes meios narrativos do século XX. Entre seu nascimento como experimentação despretensiosa até o estabelecimen-to da indústria de alcance mundial contemporânea, que se volta para um tipo de articulação extremamente específico, cada vez mais complexo, de imagens e sons produzidos e manipulados por máquinas poderosas, o jogo eletrônico é objeto de especulações e experimentos – inclusive por seu caráter inédito, haja visto que o desenvolvimento da indústria é concomitante e intrinsecamente relacionado ao próprio desenvolvimento da tecnologia que o sustenta – e responsável por sucessivos exórdios, sobretudo no âmbito

das narrativas às quais serve de lastro, de maneira que são notáveis as diferenças entre os jogos característicos de cada uma das gerações de consoles.

Esta análise se ocupa das diferenças observadas entre duas gerações de videogames, relacionadas sobretudo à maneira como as representações são construídas, e quais as conseqüências das disparidades constatadas no contex-to específico em que se situam os jogos. A fim de conferir coerência à análise proposta, dois jogos pertencentes a uma mesma série foram investigados. A série é Prince of Persia, que se inicia em 1989 e cujo episódio mais recente foi lançado em novembro de 2008. O primeiro objeto de análise é justamente o primeiro episódio da série, Prince of Persia, um estrondoso sucesso comercial em seu lan-çamento. Desenvolvido inicialmente para o Apple II, pri-meiro sucesso no mercado de computadores pessoais da Apple, o jogo foi portado para várias outras plataformas nos anos seguintes. Assim, em 1990 já existiam versões para outros computadores pessoais – Amiga, Atari ST e PC –, e em 1992 o mercado de consoles caseiros recebeu versões para Master System, Sega CD, NES e Game Boy, sucedidas pelas versões de 1993 para o SNES e para o Mega Drive. Em 1998 o Game Boy Color, portátil da Nintendo, recebe a última versão de Prince of Persia para videogames, o que não impede que o jogo continue sendo absorvido por outras plataformas, a exemplo da internet, que possui versões desenvolvidas principalmente por meio do Flash, e dos aparelhos celulares, que recebem versões logo que os dispositivos tornam-se capazes de processar as informações requeridas de maneira adequa-da. A mais recente adaptação do primeiro Prince of Persia é chamada Prince of Persia Classic e foi lançada em 2007 especialmente para os videogames da última geração – Xbox 360 e Playstation 3. Interessante observar que em todas estas versões é evidente a preocupação em manter determinados aspectos do jogo intactos, reforçando a relevância e o êxito de sua mecânica inovadora e das ar-ticulações de elementos formais existentes já na primeira versão e mantidas nas posteriores. As diferenças entre as mais antigas e as mais recentes são mínimas, e incluem modificações nos gráficos, sempre em função de um me-lhor aproveitamento das inovações técnicas, e a inclusão de prólogos ou cutscenes1 com o objetivo de contextuali-zar a trama ou incrementar a construção da história narra-

1 Cutscenes são animações (ou, menos comumente, trechos de filme) não interativas que interpõem-se entre as fases de um jogo. Tendem a ser utilizadas como recurso narrativo integradas ao roteiro, movendo a história por meio da apresentação de pistas, novos personagens ou inserindo novos elementos, fora da instância do jogo propriamente dita.

VIII Brazilian Symposium on Games and Digital Entertainment Rio de Janeiro, RJ – Brazil, October, 8th-10th 2009

1

Page 2: Príncipes da Pérsia: experiência e representação em uma ... · ... e a narrati-va do jogo transcorre de ... do contexto pragmático no qual inserem ... que o caracte-rizam e

da – um indício do processo de complexificação ao qual a narrativa do jogo eletrônico é submetida tão logo as ex-pectativas nesse sentido possam ser atendidas, sobretudo em termos de possibilidades ofertadas pelas tecnologias de hardware e software.

O segundo objeto de análise é o terceiro sucessor do título que dá início à série, Prince of Persia: The Sands of Time, lançado em 2003 para as plataformas PC, PlayStation 2, Nintendo GameCube, Xbox e, pos-teriormente, portado para o Game Boy Advance e para telefones celulares. Coincidentemente, este título marca o retorno de Jordan Mechner, criador do primeiro Prince of Persia, ao controle criativo do título, iniciando uma nova série em que a mecânica do jogo é reinventada e são incorporadas diversas possibilidades que haviam ficado de fora dos episódios e versões anteriores, várias das quais explicitamente pela impossibilidade técnica.

Entre Prince of Persia e Prince of Persia 2: The Sha-dow and the Flame, o segundo episódio da primeira

série, há estreitas relações tanto no que concerne aos elementos que constituem o jogo no âmbito da visua-lidade quanto no âmbito da própria mecânica do jogo: os gráficos são semelhantes, a despeito dos avanços que os 4 anos que os separam permitiram, e a narrati-va do jogo transcorre de maneira bastante semelhante, com inimigos e quebra-cabeças apresentados um após o outro, organizados em telas de rolagem lateral que permitem a tomada de diferentes rumos, e subordinados ao desafio de completar o jogo num intervalo de tempo cronometrado tanto dentro quanto fora do contexto da narrativa – o tempo que o jogador tem para percorrer todo o labirinto é marcado pelo programa, de maneira que o jogo termina caso os desafios não tenham sido todos subjugados nesse tempo.

O terceiro capítulo, Prince of Persia 3D, de 1999, introduz na série a representação dos gráficos em três dimensões, situando o observador em posição que re-mete à câmera subjetiva do cinema – simulando a visão da personagem –, rompendo assim com a perspectiva cavaleira que havia predominado em todos os capítulos e versões anteriores. Este tipo de visualização se torna o padrão para os jogos de ação, e é a única característica levada desta série para a seguinte. Prince of Persia: The Sands of Time inicia uma nova trilogia fundamentada no universo criado por Jordan Mechner, e a despeito de ostentar o nome e a fama de seus predecessores, mantém como características da trilogia anterior apenas a contextualização da narrativa, com a manipulação de elementos formais semelhantes, ou que se referem aos mesmos objetos, e a ausência de um nome para a personagem principal – denominada desde 1989 sim-plesmente Príncipe (Prince, no original). Do ponto de vista da mecânica, Sands of Time permite ao jogador um controle nunca visto pela série, tanto do personagem quanto da câmera por onde se vê a ação, bem como do próprio tempo, que por não ser um desafio propriamente dito aqui, permite que os aspectos exploratórios do jogo

sejam ampliados.

2. Trabalhos relacionados

Alguns trabalhos relacionados a este incluem Semioses da comunicação da criança com as linguagens do entre-tenimento, com ênfase em games e desenhos animados, pesquisa de doutorado de Mirna Feitoza Pereira e Auto-referencialidade nos games, projeto da Profa. Dra. Lucia Santaella (PUC-SP) em convênio com a Universidade de Kassel, Alemanha, ambos produzidos no contexto do CS: Games, grupo de pesquisa semiótica sobre a lingua-gem dos jogos eletrônicos da PUC-SP.

3. Ferramental e análise

A semiótica de Charles William Morris observa o fun-cionamento do signo tomando por lastro três fatores fundamentais e interdependentes: o veículo do signo (aquilo que conforma o signo no processo semiósico), o designatum (aquilo a que o signo se refere, com uma classe especial para objetos reais referidos, a classe dos denotata) e por fim o interpretante (o efeito sobre al-guém em função do qual a coisa em questão é um signo para este). Assim, o processo semiósico necessariamen-te requer a presença destes três elementos, de maneira que “os mediadores são veículos do signo; explicações são interpretantes; o que é explicado são os designata” [Morris. 1976]. Mais além, Morris articula em três níveis ou dimensões as relações diáticas estabelecidas entre os elementos do signo, de maneira que as relações dos veículos do signos entre si são tidas como relações sintáticas (objeto de estudo da sintaxe), dos veículos dos signos com os objetos são relações semânticas (objeto de estudo da semântica), e dos veículos dos signos com os interpretantes são relações pragmáticas (objeto de estudo da pragmática).

Desta maneira, discutindo o processo semiósico em suas três dimensões, é possível propor uma via de ar-ticulação por meio da qual, partindo-se dos elementos sintático-formais de composição – neste caso os imagé-ticos –, alcançam-se as relações semântico-referenciais que permitem o entendimento do contexto pragmático no qual inserem-se os signos em questão – para os obje-tos de análise propostos, o contexto do jogo eletrônico em suas idiossincrasias.

3.1. Prince of Persia

Em sua dimensão sintática, Prince of Persia traz na constituição de suas imagens elementos que o caracte-rizam e que são generalizados em toda a sua duração, permitindo assim uma unidade gráfica de interesse não apenas sintático, mas também em função das relações semânticas e pragmáticas que mobilizarão quando

VIII Brazilian Symposium on Games and Digital Entertainment Rio de Janeiro, RJ – Brazil, October, 8th-10th 2009

2

Page 3: Príncipes da Pérsia: experiência e representação em uma ... · ... e a narrati-va do jogo transcorre de ... do contexto pragmático no qual inserem ... que o caracte-rizam e

forem alcançados estes níveis. Os elementos em ques-tão são reconhecidos enquanto independentes entre si sobretudo em função das cores que os delimitam e constituem suas formas, principalmente a partir de variações nos matizes para a separação de cada um dos elementos dos demais, e de luminosidade para a for-mação do desnível que orienta a proposição do espaço que ocupa toda a área visível (Fig. 1). No campo visual disponibilizado ao observador – neste caso, o jogador – predomina o preto, sobre o qual linhas azuis são dis-postas alternadamente, implicando tijolos constitutivos de uma parede uniforme que ocupa a maior parte deste espaço representado, e que é acompanhado por varia-ções de saturação e luminosidade de azul organizadas em áreas que estabelecem elementos situados em di-ferentes planos, como o chão, as paredes e colunas re-presentadas em diferentes tonalidades do mesmo azul, que perde luminosidade em função da aproximação do nível em que se situam em relação à parede maior. Os planos são organizados em perspectiva cavaleira, com o observador situado no infinito e retas projetantes paralelas incidindo em ângulo não-perpendicular no plano do quadro (Fig. 2), aqui representado pela pare-de escura situada ao fundo e sobre a qual repousa um par de elementos idênticos cujas bases acinzentadas e predominância de matizes de amarelo e alaranjado dis-postos de maneira orgânica implicam em tochas acesas localizadas no centro da tela (Fig. 1). Um retângulo preto repousa ao longo de toda a base da tela, desto-ando do primeiro plano – uma parede visível em toda sua extensão – e contendo três triângulos vermelhos, únicos elementos desta cor visíveis na tela.

Neste espaço estão dispostas duas figuras antropo-mórficas (Fig. 1) cujas composições gráfica e cromática atuam como elementos de diferenciação em relação ao espaço circundante. A figura à esquerda é notoriamente humana, vista num escorço mínimo que corrobora com a perspectiva que representa os planos do espaço. A dis-tribuição deste corpo é dada em função dos elementos representativos da cabeça, do tronco e dos membros, representados em matiz róseo em oposição à forma esbranquiçada que acompanha a configuração corporal implicando em vestimentas. Um elemento anexo ao corpo, ainda que gráfica e cromaticamente alheio, se prolonga em direção à figura da direita, remetendo a

Fig. 1. Screenshot de Prince of Persia, 1989

Fig. 2. Exemplo de perspectiva cavaleira

VIII Brazilian Symposium on Games and Digital Entertainment Rio de Janeiro, RJ – Brazil, October, 8th-10th 2009

3

Page 4: Príncipes da Pérsia: experiência e representação em uma ... · ... e a narrati-va do jogo transcorre de ... do contexto pragmático no qual inserem ... que o caracte-rizam e

um instrumento que confere prolongamento ao braço. A segunda figura, por sua vez, a despeito da configuração antropomórfica, carece dos elementos que identificaram a primeira como um corpo humano: a cor branca unifor-me, as reentrâncias e junções dadas entre os elementos constitutivos deste segundo corpo imputam no observa-dor a percepção da ausência de pele ou de vestimentas, de modo que se vê implicado um esqueleto, que segura instrumento semelhante àquele observado em posse da figura humana. As formas simplificadas se ajustam morfologicamente à construção por meio de pixels, em angulações quadráticas sem atenuantes, resultando em linhas diagonais serrilhadas.

Os elementos sintáticos são, então, observados em vista daquilo que designam, de maneira que suas articulações semânticas são dadas em termos da re-ferencialidade intrínseca a eles: o espaço denota uma masmorra pétrea, com a escuridão e a frieza caracterís-ticas dos antigos calabouços apenas amenizadas pelas tochas, cuja iluminação não alcança todo o espaço vi-sível, conferindo-lhe um tom obscuro e opressor que é amplificado pelo desconhecimento do que há além dos limites do visível. Uma leitura das figuras antropomór-ficas designa uma pessoa de aspecto simplório, descal-ça – porventura a principal personagem da narrativa, responsável pelo desvelamento do labirinto –, que em-punha uma espada num duelo com um pavoroso esque-leto, morto-vivo magicamente trazido de volta à vida por motivos que permanecem desconhecidos uma vez que suas ações resumem-se aos ataques desferidos con-tra aquele que ainda está em uso de suas funções vitais. A perspectiva cavaleira, associada ao tratamento visual diferenciado destinado aos planos e à movimentação das personagens dada pela própria mecânica do jogo, permite que o plano em que as figuras se encontram dispostas seja identificado como o único espaço sobre o qual é possível se locomover, tanto no eixo horizon-tal, da direita para a esquerda, quanto no eixo vertical, por meio das plataformas em diferentes níveis cujas bordas são utilizadas como apoio para que se alcance a área em questão. Por fim, os triângulos vermelhos cuja sintaxe não se confunde com o ambiente observado e não aponta função, significação ou articulação em re-lação aos outros elementos postos na tela, designam a quantidade de vida que resta à personagem principal, diminuindo por tropeços em desafios do jogo.

As estruturas sintáticas e as asserções semânticas em função do contexto pragmático, recorrendo inclu-sive às convenções do universo do jogo eletrônico, esclarecem vários aspectos do que é dado pela pró-pria imagem do jogo: é convencionado que em todo videogame ao observador – que não se restringe a observar, sendo representado na imagem por meio de mecanismos de imersão e agenciamento – é conferida uma persona no mundo do jogo, cuja denominação re-corrente é avatar. Com o controle deste avatar – dado em função das possibilidades oferecidas pelo hardwa-

re em função do que é programado no software – é que a narrativa se constitui numa sucessão de eventos que culmina sempre em um fim de jogo, seja pelo cum-primento dos objetivos propostos, seja pelo insucesso dado pelo esgotamento dos pontos de vida e posterior reinício, ou seja pela mera interrupção. Como media-dor entre a narrativa e o interator, o avatar comumente apresenta as características mais imediatamente pas-síveis de reconhecimento e identificação, corporifi-cando o herói da história – neste caso obviamente a personagem que, perdida num labiríntico calabouço, é submetida a vários desafios que se interpõem ao ob-jetivo final do jogo: o resgate da princesa do maligno Jaffar. Ainda no lastro pragmático, reconhece-se a simplificação das formas e perspectiva frente ao as-pecto técnico do jogo, de baixa complexidade visual e de remissão direta às imagens eletrônicas, digitais. De igual modo a paleta de cores transita em matizes de pouca variação, tendendo apenas para a boa visua-lização das formas.

Prince of Persia vale-se de uma narrativa que se so-breleva à estrutura estímulo-reação comum aos jogos eletrônicos, sobretudo àqueles vistos em 1989. Em seu próprio advento, o videogame constitui-se do uso do meio eletrônico para provocar estímulos e reações que, por sua vez, evocam reações programadas das máqui-nas que provocarão novos estímulos, novas respostas e assim sucessivamente. A competente articulação dos elementos constitutivos de Prince of Persia permitiu que se inserisse nessa estrutura – ainda que continuem a existir estímulos que requerem reações que engati-lham um novo ciclo pré-programado, como limitadas opções de fuga, por exemplo – motivações narrativas peculiares à literatura e ao cinema, meios cuja influ-ência no videogame continuaria a crescer com um alcance cada vez maior das máquinas provedoras dos jogos, de maneira que todos os elementos passam a ser articulados prioritariamente em função destas narrati-vas, que transcorrem diante dos olhos do jogador e em função de suas ações.

3.2. Prince of Persia: The Sands of Time

Prince of Persia: The Sands of Time traz uma série de modificações em relação aos conceitos originais lançados em Prince of Persia, de modo que a experi-ência no que concerne o embate do observador com suas imagens é profundamente alterado, sobretudo em função dos papéis que os elementos estruturais desempenharão na própria constituição da imagem do jogo, mas também em função da relevância que esses elementos assumirão. Em relação ao screenshot da primeira versão do jogo, as diferenças no âmbito da sintaxe dão-se no que concerne à perspectiva utilizada para representar as imagens do jogo e, portanto, na disposição gráfica utilizada, nos códigos cromáticos e na própria experiência da luz.

VIII Brazilian Symposium on Games and Digital Entertainment Rio de Janeiro, RJ – Brazil, October, 8th-10th 2009

4

Page 5: Príncipes da Pérsia: experiência e representação em uma ... · ... e a narrati-va do jogo transcorre de ... do contexto pragmático no qual inserem ... que o caracte-rizam e

Ao contrário do que se via na análise anterior, cuja perspectiva utilizada era a perspectiva cavaleira, neste caso temos uma perspectiva cônica, simulada por meio da representação de cada um dos elementos dispostos em três dimensões (Fig. 3), com o acréscimo de uma profundidade contígua ao comprimento e à largura, o que era sugerido em Prince of Persia apenas pela inci-dência de retas paralelas no plano do quadro. Interes-sante observar que neste tipo de representação, ao con-trário do que ocorria no exemplo anterior, o observador não encontra-se no infinito, e portanto todas as retas projetantes divergem dele incidindo nos pontos de fuga (Fig. 4), numa aproximação do fenômeno perceptivo proporcionado pelo olho humano. Aqui novamente há uma separação formal dos elementos que constituem o espaço em relação aos elementos ali inseridos: o ambiente é representado em tonalidades de um matiz amarelado e algum marrom, de maneira que os níveis de luminosidade variam não em função da disposição dos planos, mas da incidência de luz em cada uma das faces de cada objeto. As figuras de interesse narrati-vo – personagens e objetos – sobrepõem-se ao espaço se movimentando ou repousando nele em diferentes sentidos e direções, interagindo com os elementos es-paciais de maneira independente, constituindo o labi-rinto numa série de possibilidades de deslocamento ou observação em profundidade, não apenas em níveis de altura que rolam sempre lateralmente, como se via na primeira versão analisada. Deste modo os movimen-tos de câmera, ou visada do jogador, estão inscritas no próprio jogo, adentrando a noção de espaço pela perspectiva, diferentemente do que ocorria quanda da primeira versão o jogador apenas se delocava nos ei-xos cartesianos X e Y.

A figura humana recorrente em todo o jogo, repre-sentada em vestimentas bastante características – em

contraste com a simplicidade gráfica e cromática da versão anterior – encarnará o protagonista, sendo a narrativa construída em função de seu olhar e de suas interações com o espaço e com as outras personagens. A espada, que havia sido localizada em Prince of Per-sia, aqui é um elemento compositivo da própria per-sonagem.

As operações semânticas em ação neste episódio da série estão intrinsecamente relacionadas às operações do anterior, acionando os mesmos denotata. O contexto evocado já no título e em elementos anteriores à própria imagem do jogo, a exemplo da tipografia utilizada na tela de abertura e em todo o material promocional (Fig. 5), se refere explicitamente a um contexto histórico visto sob abordagem fantástica, designado em vários dos caracteres articulados visualmente, como a paleta de cores, a configuração das vestimentas e o espaço re-presentado pela arquitetura. Essas referências são da-das em duas instâncias: historicamente, sobretudo por meio do uso de elementos arquitetônicos e das próprias vestimentas das personagens, e fantasticamente, com

Fig. 3. Screenshots de Prince of Persia: Sands of Time, 2003

Figura 4. Exemplo de perspectiva cônica com um ponto de fuga

VIII Brazilian Symposium on Games and Digital Entertainment Rio de Janeiro, RJ – Brazil, October, 8th-10th 2009

5

Page 6: Príncipes da Pérsia: experiência e representação em uma ... · ... e a narrati-va do jogo transcorre de ... do contexto pragmático no qual inserem ... que o caracte-rizam e

modificações de escala nas construções representadas, interferências no comportamento da luz, que é experi-mentada aqui em função deste ambiente fantasioso, ao invés de um fotorrealismo absoluto, e na própria ma-neira como os elementos sintáticos se articulam entre si para a produção de significação.

Nota-se, assim, que as dimensões sintática e se-mântica se relacionam com o objetivo de construir um contexto pragmático que, novamente, está relacionado ao universo do jogo eletrônico em vários de seus senti-dos e na medida da própria evolução da representação neste meio, inclusive nas referências que este faz aos meios que o influenciam. Assim, as construções gráfi-cas e cromáticas são dadas em função das referências diretas ou indiretas que a série Prince of Persia faz tanto à literatura – as histórias fantásticas de aventu-ra e descobertas narradas por Xerazard ao longo das 1001 noites – quanto aos contextos do cinema e dos quadrinhos, que influenciam a produção imagética dos videogames assim que o poder de processamento das máquinas permite expressões complexas, como é o caso das plataformas para os quais The Sands of Time foi lançado.

As influências destas imagens provenientes de ou-tros meios não se resumem à sua constituição formal, mas também à maneira como se dinamizam e intera-gem, produzindo a experiência de sensações e eventos narrativos não mais restritos às cutscenes, mas agora inseridas na duração da narrativa enquanto sob con-trole do interator. Mudanças de ângulo, modificações no tempo e movimentação em velocidade acelerada, bem como o uso de elementos do cenário, são pos-sibilidades trazidas pelas novas tecnologias que vão inaugurar no videogame novas searas em termos de expressões alcançáveis. A própria visualização dos li-mites da imagem em termos subjetivos em relação ao avatar – o jogador vê o que é visto por ele, num quadro mediato – aproxima a construção e o uso da imagem do videogame da maneira como o cinema lida com suas imagens, amplificando os sentidos de imersão e agenciamento.

Como é peculiar ao jogo eletrônico, na série Prince of Persia são articulados signos das matrizes verbal, visual e sonora, dos quais é do interesse desta inves-tigação acima de tudo aquela que trata dos elementos constitutivos expressos via imagem. O potencial dos signos visuais como elemento de suporte narrativo é conhecido desde que seu uso foi incorporado às expressões que articulam a matriz imagética junto a qualquer das outras (ou a ambas), com o intuito de ilustrar, decorar ou lastrear as narrativas em função das imagens – estáticas ou em movimento. O próprio cinema se fundamenta no uso das imagens para a fundamentação de eventos narrativos de maneira que é associado ao projeto renascentista de obtenção de um espaço pictórico antropomorfizado, cujas relações

Figura 5. Detalhe da tela de abertura de Prince of Persia: The Sands of Time

estariam postas em função do corpo humano [Mulvey: 1972].

4. Experiência e representação em duas e três dimensões

Entre os episódios de Prince of Persia é notória a dispa-ridade no que concerne à complexidade das representa-ções – e, conseqüentemente, a maneira como desempe-nham suas atribuições sígnicas –, ainda que em ambos os casos sejam acionados, por diferentes veículos do signo, os mesmos referentes. As condições de produ-ção são fundamentais para o entendimento da proposta de signagem de cada um dos objetos haja vista que, a exemplo dos cromemas, o primeiro episódio foi pro-jetado para exibir 256 cores (entre variações de matiz, luminosidade e saturação), ao passo que o segundo foi programado para a exibição de mais de 16 milhões de variações. Esta desproporção também é vista no âmbito dos grafemas e, em conseqüência, das possibilidades de suporte à narrativa associadas a estas unidades elemen-tares. Gombrich [1986], aponta nos diferentes níveis de representação “limites à objetivação”, recorrendo para isso à idéia de schemata – modelo esquemático do objeto a ser representado inerente ao produtor da ima-gem que indica o objeto em questão. Desta maneira, a objetividade proposta no âmbito de uma representação imagética é observadamente limitada, haja vista que faz parte de um processo natural a impregnação do signo produzido pelo modelo pré-existente na consciência do produtor.

Verifica-se, assim, que as limitações tecnicamente impostas a Prince of Persia atuam como elemento que exige articulação de elementos básicos mais simples comparativamente a The Sands of Time, o que, no âm-bito da articulação imagética da narrativa, termina por oferecer possibilidades com maiores restrições, uma vez que as próprias representações serão limitadas. A dispo-sição em duas dimensões restringe as interações com o espaço da narrativa, bem como seu próprio decorrer, às dimensões apresentadas, de maneira que a mudança de planos dá-se meramente em função da disposição dos planos na tela nos eixos vertical e horizontal. A interpre-tação do espaço não é negativamente afetada ou dificul-tada por estas limitações, uma vez que as articulações produzidas pelos elementos sintáticos é suficiente para

VIII Brazilian Symposium on Games and Digital Entertainment Rio de Janeiro, RJ – Brazil, October, 8th-10th 2009

6

Page 7: Príncipes da Pérsia: experiência e representação em uma ... · ... e a narrati-va do jogo transcorre de ... do contexto pragmático no qual inserem ... que o caracte-rizam e

que se compreendam os elementos em vista do que eles substituem em sua função de signo, porém no episódio mais recente, a narrativa torna-se significativamente mais complexa. As interações com o ambiente tridi-mensional, sobretudo por se tratar de um campo visual mediato, são limitadas não mais pelas representações, mas simplesmente pela mecânica pré-programada do jogo, o que expande consideravelmente o leque de pos-sibilidades, resultando em experiência mais complexa e completa do jogador. As referências ao mundo natural são por um lado enriquecedoras, já que as imagens que atingem também a dimensão da profundidade trazem em si mais convenções estabelecidas pela própria natureza, o que maximiza o potencial de reconhecimento, identi-ficação e, por conseqüência, imersão e agenciamento na realidade proposta pelo jogo. Por outro lado, a quebra das limitações do corpo permitidas também pela mecâ-nica do jogo – o avatar possui um poder de movimenta-ção e uma audácia pouco usuais fora da simulação que é o próprio jogo – que constituem per se posssibilidades experimentadas antes apenas na imaginação.

Embora as alterações entre o primeiro e o segundo objetos de análise sejam acentuados em sua sintaxe, pelo modelo de representação, é no contexto da pragmática, a própria experiência do jogo, que mais evolui entre uma versão e outra. O aspecto formal e relativamente distante da primeira versão analisada, circunscrita pelos grafemas e cromemas, produzem na segunda versão analisada uma experiência outra do modelo de interface gráfica computacional, proporcinando um ambiente de realidade virtual não-imersiva [Cadoz: 1995], mote da evolução recente dos games.

5. Referências

ANÔNIMO, 2008. History of vídeo games. In: Wiki-pedia, disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/His-tory_of_video_games

ANÔNIMO, 2008. Prince of Persia. In: Wikipedia, dis-ponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Prince_of_Per-sia

CADOZ, Claude. Realidade Virtual. São Paulo: Ática, 1995.

GOMBRICH, Ernst H., 1986. Arte e ilusão. Um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: Martins Fontes.

MORRIS, Charles W. Fundamentos da teoria dos sig-nos. Trad. Paulo Alcoforado e Milton José Pinto. Rio de Janeiro, Eldorado Tijuca, São Paulo: EDUSP, 1976.

MURRAY, J. H., 1997. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Itaú Cultural: Unesp

MULVEY, Laura., 1983. Prazer visual e cinema nar-rativo. Trad. João Luiz Vieira. In: XAVIER, Ismail. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal.

VIII Brazilian Symposium on Games and Digital Entertainment Rio de Janeiro, RJ – Brazil, October, 8th-10th 2009

7