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Limpinhos, cheirosos e bem vestidos. Autor: REGINALDO CRUZ QUASE UM FINAL Depois de tudo o que aconteceu nesses últimos anos em minha vida, estava mesmo precisando de umas férias. Decidi fazer uma viagem. Apontei um lugar no mapa do Brasil e voei até lá. Mas para onde eu queria ir exatamente tinha ainda que rodar um tanto. Então aluguei um carro em Petrolina - sabia que para onde eu ia não tinha nada a ver descer em Petrolina - eu estava com vontade de guiar por estradas bucólicas e perdidas. Então nada melhor que rasgar o interior da Bahia. Resolvi encarar logo de cara a estrada ruim, caatinga por todo lado...e um sol que derretia meus miolos. Um bafo quente dos diabos soprava lá fora como que tentando amolecer o “cabra” dizendo que ali não é seu lugar. Pelo menos cheguei numa época em a caatinga estava verdinha, florida e isso ao menos refrescava as vistas. Íamos eu e uma garrafa de Pitú. E de vez em quando ascendia um cigarro para relaxar já que estava de férias. Bem, foram meus sócios que me mandaram tirar umas férias, e eram minhas primeiras férias desde que entrei pro ramo... Ia eu pra Arembepe, um lugar isolado que sempre ficou em meu imaginário, ideal para minhas férias, precisava dar uma desaparecida do mapa. Ia tudo bem em minha viagem até que, não sei se pelo álcool...acho que sim! Foi o álcool! Saí da estrada e caí com o carro num buraco. Só acordei com um guarda me dando tapas na cara e dando também um sermão por eu dirigir embriagado, mas eu não tava não.., - todo bêbado acha que não está embriagado - acho que cochilei no lusco fusco, só isso. Mas a garrafa de Pitú foi mais que motivo para nos dirigir até a delegacia. Lá chegando falei que minha cabeça doía, não sei se da cachaça. Acho que a cachaça da Bahia é mais forte que a do resto do Brasil. Por mais que eu tentasse afirmar as vistas ou o pensamento não conseguia. Então

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Limpinhos, cheirosos e bem vestidos.

Autor: REGINALDO CRUZ

QUASE UM FINAL Depois de tudo o que aconteceu nesses últimos anos em minha vida, estava mesmo precisando de umas férias. Decidi fazer uma viagem. Apontei um lugar no mapa do Brasil e voei até lá. Mas para onde eu queria ir exatamente tinha ainda que rodar um tanto. Então aluguei um carro em Petrolina - sabia que para onde eu ia não tinha nada a ver descer em Petrolina - eu estava com vontade de guiar por estradas bucólicas e perdidas. Então nada melhor que rasgar o interior da Bahia. Resolvi encarar logo de cara a estrada ruim, caatinga por todo lado...e um sol que derretia meus miolos. Um bafo quente dos diabos soprava lá fora como que tentando amolecer o “cabra” dizendo que ali não é seu lugar. Pelo menos cheguei numa época em a caatinga estava verdinha, florida e isso ao menos refrescava as vistas. Íamos eu e uma garrafa de Pitú. E de vez em quando ascendia um cigarro para relaxar já que estava de férias. Bem, foram meus sócios que me mandaram tirar umas férias, e eram minhas primeiras férias desde que entrei pro ramo... Ia eu pra Arembepe, um lugar isolado que sempre ficou em meu imaginário, ideal para minhas férias, precisava dar uma desaparecida do mapa. Ia tudo bem em minha viagem até que, não sei se pelo álcool...acho que sim! Foi o álcool! Saí da estrada e caí com o carro num buraco. Só acordei com um guarda me dando tapas na cara e dando também um sermão por eu dirigir embriagado, mas eu não tava não.., - todo bêbado acha que não está embriagado - acho que cochilei no lusco fusco, só isso. Mas a garrafa de Pitú foi mais que motivo para nos dirigir até a delegacia. Lá chegando falei que minha cabeça doía, não sei se da cachaça. Acho que a cachaça da Bahia é mais forte que a do resto do Brasil. Por mais que eu tentasse afirmar as vistas ou o pensamento não conseguia. Então comecei a falar e não houve Cristo que me impedisse, estava de férias e não estava nem aí para nada. - Eu sou um doutor, ora bolas! E se tem um lugar onde isso vale alguma coisa é com certeza nesses confins do Brasil, então falei ao Dr. Delegado:

-Bem doutor, antes que o senhor tome alguma decisão a cêrca de eu estar meio embriagado ao volante, nesses confins da Bahia, deixe eu contar uma história pro doutor. É uma história longa , mas que vale a pena ser ouvida! Disse eu ao Sr., Dr. Delegado de cidadezinha de beira de estrada dos confins da Bahia que como não devia ter muito que fazer, assentiu com a cabeça que eu continuasse, pelo menos acho eu que ele assentiu. É a historia de como eu entrei pela primeira e única vez em uma delegacia e continuei e continuei narrando de como...

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ROBERTO Roberto chegou em meu consultório pela primeira vez em um estado tão triste que logo de cara senti uma preocupação. Dizia que não fora sempre assim...triste. Que um dia fora feliz, que tivera uma infância, mas que agora que a vida lhe caíra sobre os ombros tinha que tomar uma decisão e essa decisão estava roendo os seus neurônios, mas que eu e talvez ninguém tivesse a resposta para suas perguntas. No primeiro dia de consulta ele foi me contando que acordou um dia e disse a si mesmo: “eu não sou daqui”, e que não era simplesmente a cidade, o país e sim o mundo, “parem o mundo que eu quero descer” . As alternativas que tinha para a solução: suicídio, drogas, religião ou práticas de meditação. Não. Tudo muito mundano. Desse mundo cão, ele não era cachorro não, ser cachorro até pensou (como que na loucura de uma solução... ). Loucura, quem sabe abrisse dentro dele nova satisfação ...Satisfação, a luxúria, um banquete, mulheres, fama talvez, muito humano. Tudo muito desse mundo. O passado também já tá todo mofado, é uma linda palavra essa: ULTRAPASSADO! Pensou, o passado ultra. O futuro futurista, novas e humanas conquistas sem chance a vista. Viver nesse mundo condenado é para ele triste. Sabe que sua sentença aqui é perpétua. Já que nada além o libertaria daqui. Nada além no horizonte viria lhe levar para fora daqui concretamente, era tudo humano demais, tudo primitivo às avessas. Como pode o ser humano não parar e pensar coletivamente para de fato salvar esse planeta? Como posso arcar com toda essa dor, esse destino irracional, de ver que não tinha saída, nem absolvição para um crime que pagava por ser dessa espécie horrorosa. Mil vezes ser um passarinho, dizia. Que muitas se não todas conquistas humanas são na maioria feitas de sangue de algum semelhante. É um canibalismo pra uma sobrevivência que levará todos a morte, a morte prematura do planeta, do homem, dos seres. O homem não se preocupa com os outros seres. Certa vez ouviu dizer que “o homem é um vírus”, e desde então era como se sentia: um vírus dentro de uma ótica micro ou macro, depende de quem olha ou de onde se olha. Isso era a coisa mais verdadeira que ouviu sobre os homens. Não tinha como ter orgulho, não o tinha... Citou milhares de maravilhas da humanidade, que no fim, são monstruosidades. O ser humano é tão imperfeito que já não culpamos ninguém. Não concordava com a máxima de que o fim justifica os meios. Todos tapamos os olhos para isso, ninguém quer declarar que somos o mal desse planeta. Esses pensamentos eram para ele uma salvação, uma redenção, como se pelo menos assim, só assim sua humanidade desaparecesse para um novo ser surgir.

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IMPOTÊNCIA

Alguns dias eram mais calmos em sua cabeça. Tentava de alguma forma crer que aqueles pensamentos de dias atrás eram só uma leve depressão pois já havia dias que estava em um cárcere de um existencialismo ridículo, como que tentando achar uma justificativa para seu fracasso em tudo até agora na vida. Sem um tostão e com a sensação de já estar velho. De ter uns 200 anos, de estar contaminado com toda história da humanidade, achava que todos na vida escolheram um caminho melhor que o seu. Não foi por falta de tentar que estava numa pior. Tentou de tudo, só que uma coisa lhe jogava para o inusitado, para o novo, para o que não conhecia. Não conseguia ficar e se acomodar. Certa vez sonhou que estava trabalhando em uma empresa que tinha um horário para cumprir e acordou suando frio como se isso fosse o seu bicho papão. Nunca conseguiu se realizar nesses tipos de empregos. Existe dentro dele um bichinho que vem e lhe pica. O bicho da insatisfação de sobrenome tédio e parente do cotidiano, e ele saía correndo, correndo... Sem um vintém seguia nessa busca romântica. Em um mundo que ri dessa atitude, um mundo que exalta os feitos grandiosos, feitos dignos de estar no ridículo Guínnes Book. Seus feitos nessa vida eram filmes caóticos cheios de contradições, peças teatrais engraçadas cheias de tragédias, poesias doloridas cheias de amor. Estava como se diz: desgostoso, moribundo. Acabaram-se as aventuras. O mundo lhe chamava para cumprir seu legado humano: emprego, casa, filhos, mulher, inss, inps, iptu, ipva, pis, pasep,...! Sua luta era para poder seguir sua vida sem que lhe chamassem de louco excêntrico e outros nomes que começam a soprar em seus ouvidos não diretamente por outras, mas por sua própria consciência. Sua inteligência lhe dizia que mudasse, que crescesse, que construísse, obtivesse bens, acumulasse como as formigas e esquecesse sua vida de cigarra. Logo a cigarra que só lhe vive como lhe é natural.., ela foi injustiçada, estereotipada em um conto infantil. Já as formigas sim. Essas pequeninas nos inspiram a industrialização aumentando o fosso entre ricos e pobres, dizia. Sabia que não era assim uma conclusão muito acertada mas era preciso agir e antes disso refletir pois ele não queria mais fugir, queria vencer essa luta perdida. Não queria uma utopia pois ela já não era possível e ele não gostava de pensar em coisas impossíveis. Mas uma coisa sempre lhe pareceu impossível: ficar rico, ganhar money, bufunfa, dindim. Para uns poucos bem nascidos depois da adolescência vem a fase nua e crua do: “ tens que ficar rico”! Já os miseráveis sequer tem força para almejar tamanha grandeza e talvez sofram menos. Ele ainda teve uma boa e humilde pobre infância, para logo depois ser massacrado pela máquina do progresso, máquina do “ tens que ser rico, famoso, cheiroso”.

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NASCE UM HOMEM BOMBA

Esse é o nosso herói, nosso ser moribundo, protótipo de terrorista, de louco, de messias do novo, um homem indignado que mora ao lado de nossas casas, que pode ser de sua família. É aquele que diz bom dia, vai sempre a missa e está sempre disposto a ajudar, a lhe dar uma palavra amiga, é o próprio amigão! E você nem imagina o que está no seu âmago. Ele quer explodir com sua vidinha feliz, quer mandar você e sua poltrona em frente a TV de domingo para as cucúias... Só não sabe ainda como...Precisa como o Cebolinha, de um plano infalível contra a ditadora Mônica. Quantos exemplos nos são dados nas historinhas infantis ... Mas seu terrorismo não passou de casa. Vagabundo, acordava tarde, almoçava e saia. Sua mãe, uma santa como todas as mães Marias, ficou louca e rezava. Aos irmãos pedia uns trocados para uma cervejinha. Já com as mulheres chegava e jurava amor eterno enquanto dure. Sempre o bonzinho, o prestativo, queria testar a paciência de todos principalmente de Deus e o castigo divino que tanto temia. Queria saber se também isto era mais uma coisa que lhe colocavam como uma lei para o manter dócil como um carneirinho onde o pastor não é um bom homem, e sim um patrão cruel e sanguinário, que com certeza ia lhe tosquiar. Por que questionava tanto? Porque ao que lhe parecia só os humildes temiam a justiça divina, já os ricos em sua maioria eram mais céticos, porque já tinham a outra justiça, a terrena. Toda essa tormenta passava-se em sua cabeça como que em flash`s de fúria, um turbilhão de ira e indignação. Desesperado e sem onde se agarrar naquela vida, sabia que tomar uma atitude era necessário. Mas qual? Trabalhar como empregado era para ele como assinar uma sentença de que ele perdeu sua causa, de que os maus triunfaram e os poderes divinos não existem e nem se manifestam. De que o inescrupuloso patrão, senhor de terra, compra tudo e todos com o vil metal, tá aí: - É um vagabundo, um zé ninguém, pobre. Séculos de muitas vidas, muita lutas perdidas e todas elas por causas que ele acreditava serem nobres e ao final eram tão mundanas. Fica imaginando se essa luta do bem contra o mal iria demorar quando o juízo final chegaria. Não queria outra luta se não essa. Queria saber de que lado estaria. Que lado venceria, quem seria o bem, quem seria o mal. Qual a cara do mal? Seriam anjos de um lado e demônios chifrudos do outro ou será que somos nós o bem e o mal real? Nada mais lhe interessava. Todo o resto era mundano demais. Desse mundo todo cancerígeno tudo causava câncer. Logo câncer o signo da maternidade, signo de sua mãe Maria que lhe deu a luz. E seria câncer a lhe matar. As probabilidades são grandes de assim ser. Câncer matará mais que Áries, no mínimo seria cheio de sinais loucos para ele que nasceu em vinte de abril..

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MORRER OU MATAR?

No primeiro dia após tudo isso que lhe vinha a mente, ainda de ressaca dessas idéias e sentimentos, tentou desembaciar a vista da memória e lembrar dos momentos felizes desta sua curta vida. Lembrou-se de um amor juvenil que lhe fora eterno, de um filme que não foi sucesso, de um jogo que ganhou. Sua família, amigos, um português-angolano, um policial que dizia que quem matava era Deus, um chefe de cozinha cheio de destempero na vida. E não passou daí para sua surpresa mesmo conhecendo muita gente. E nenhum deles estava perto. Já as mulheres nunca foram amigas, foram mais, muito mais que isso. Como se só nos braços delas existisse paz. Como estava pobre, pobre de alma, de grana, de tudo, e sofria queria ver seus amigos. Toda a chave desse estado se baseava nisso. Não conseguia encontrá-los. Cansou de pedir socorro e chorou. Chorou de saudades da estrada. Ele virou um navio e os fantasmas são todos bonitos. Chorou de medo e da falta de conversas amigas regadas a vinho, agora só havia fantasmas em um porão gelado. E apesar de serem bonitos, os fantasmas nada dizem, só observavam inanimados e calados sua derrocada, seu fim. E de vez em quando brindam com ele sua sorte. O seu azar foi nascer com um estigma que não tem cura. Nunca havia pensado que fosse um azar não pensar no amanhã. Achava sim um dom improvisar. Talvez seja mesmo. São poucos os moribundos que detém essa arte: andarilhos, mendigos, trombadinhas, prostitutas, aventureiros... todos esses loucos que não se detém à normas pré- estabelecidas pela sociedade. E naquela época sentia todos estes tipos dentro dele, trombadinha quando pegava as moedinhas de sua mãezinha, prostituto quando saía com as mulheres e elas pagavam a conta, andarilho quando saía a rua e não tinha aonde ir e ficava zanzando, zanzando, enquanto todo mundo parecia ter algo para fazer na megalópole. O improviso na vida era uma coisa que talvez fosse simplesmente um fator de sobrevivência, nada mais. Mas ele estava cansado dessa vida de altos e baixos. Queria ser alguém. Mas como provar que tinha uns quinhentos anos, que nascera quando nasceu o Brasil, que é uma velha raposa, um jovem que fuça em velhos baús de antigas Naus imaginárias em busca de uma identidade, um amor, sua Ceci. Sente tudo dentro dele enraizado, embrenhado, denso e turvo, como o próprio Brasil é para o mundo. Como a Amazônia tão misteriosa, mágica, rica que quando ele pensa nisso seus olhos lacrimejam em saber que essa grande esmeralda, será extraída sem que nada possa ser feito. Como se seu choro lhe extinguisse a culpa...seu quinhão de culpa.

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QUEM SE IMPORTA?

Eram essas dores quando ele disse assim: - Nada vai, tudo vem, tudo errado, tudo certo, legalizado ou não, não importa. Quem se importa? Já tá tudo corrompido mesmo. Tudo podre demais pra alguém se interessar. E continuou dizendo que agora vendem outras máquinas do tempo, outros elixires da vida, novos tapetes voadores. E sempre com a promessa que isso irá mudar nossas vidas. A internet é um novo tapete, o genoma, o elixir, o DNA máquina do tempo, e assim se segue tudo nessa velha e criativa arte de vender a nós prazeres irreais. Novas sementes de pé de feijão e nunca é um feijão de feijoada, não nunca é. É feijão esquisito para subirmos aos céus onde lá encontraremos nossa terra prometida. Mas mesmo que lá cheguemos ninguém nos avisou do gigante monstruoso. (São as cláusulas minúsculas dos contratos da vida). Sentia-se pelado, um corpo nu e uma mente pronta para novas ações. Jurou na minha frente não compartilhar mais as formas sociais de ser. Não buscaria de forma alguma solução para suas dores em fórmulas de outrem. Seguiria uma sentença só sua. Ninguém mais iria de forma alguma lhe dizer o que fazer. E saiu da sala pesadamente mais leve, como quando vomitamos: joga-se tudo para fora sabendo que logo mais vamos ter que devorar algo... Quando retornou ao consultório ainda estava meio relutante consigo e terrivelmente deprimido. Perguntava-se onde teria errado? Por que não conseguia seguir normalmente como todos? Por que só agora tudo isso lhe era tão claro e ao mesmo tempo tão difícil de aceitar? Não lhe parecia ser um castigo ou coisa assim. E se não era, por que tudo então girava para o decadente, para sua tristeza? E seu dia-a-dia continuava sendo feito de trocados de seus entes queridos. Descobrir isso tudo só o ajudava a ficar pior. Não queria admitir que estava falido, sabia, mas não com aquela certeza juvenil e pura que o mundo ainda girava e uma hora as coisas mudariam. Sentia que seus créditos de sorte foram todos usados para chegar onde chegou e onde estava não é nada do que sonhara. Mas não chorava mais, queria chegar no fundo, queria ir mais longe nessa limpeza, queria chegar no âmago de seus desejos e emoções, queria ter coragem de ir contra a maré contra a corrente contra todos. Queria fugir de toda e qualquer alienação desse mundo. Queria no fundo um mundo sem homens. Não queria ser mais humano, humanista ou humorista. Cansou de ser vírus. E se foi. Sério e calado. Depois de falar tudo isso não sei se foi pela cachaça baiana ou sei lá o que, notei que estava encarcerado e o Sr. Dr. Delegado de delegacia de cidadezinha de beira de estrada dos confins do sertão baiano me observava ou me ouvia. Continuei contando a história de como eu entrei pela primeira vez em uma delegacia. E a história já ia a tal ponto (ou a cachaça baiana era muito porreta), que eu já estava falando com dois delegados ao mesmo tempo: um dos confins da Bahia e outro ao qual eu relatava o por quê de querer ver Roberto na cadeia... Nessa hora até eu que estava contando a história fiquei meio zonzo. Ou era da cachaça? E continuei narrando minha história ao Sr. Dr. Delegado da PF como se estivesse lá na delegacia de cidadadezinha, nada zinha do interior de São Paulo com mais de 200 mil habitantes. - Só sei que desse dia em diante delegado comecei a ficar preocupado com o nosso amigo. Lembro-me muito bem que após essa consulta ele voltou muito mudado. Já não questionava suas emoções, idéias e coisas do tipo. Era um outro que ali estava não mais o Roberto. Esse que ali se encontrava tinha um olhar calmo, altivo falava em amenidades.

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Tinha melhor ar, melhores roupas, barba feita e mesmo que com uma cara e olhar forte via-se nele um sorriso que talvez só eu por conhecê-lo tanto notava. Era só eu tentar adentrar sobre o que acontecera para tão súbita mudança, que ele fechava a cara. Dizia que eu era um grande homem. Que lhe curara, que simplesmente por ter desabafado comigo aquelas dores o caminho da felicidade se abrira. Que estava em paz com o mundo Que aceitava a vida como ela era. Que aquilo foi só uma fase de inquietude, que todas aquelas sessões de perguntas sem respostas lhe faziam hoje um homem de atitude e decisão nos negócios. Negócios esses que nunca me dizia quais eram. Continuou a vir nas consultas. Mas depois de um tempo quase só para me elogiar, como se fôssemos amigos. Eu só admitia isso porque em minha cabeça isso ainda era um enigma a ser desvendado, pois eu nunca admitiria que tão súbita mudança podia ter vindo daquelas sessões. Sessões essas em que só o deixei desabafar o que lhe vinha em mente. Fazia ali minhas anotações para depois mais à frente tentar quem sabe lhe dar a ajuda de que tanto ele necessitava. - E olha delegado, o caso dele não era nada fácil...Bem como venho lhe dizendo a partir de certo momento nossa relação estava fora dos parâmetros: paciente/terapeuta. Era em certo momento “visitas” o que ele fazia ali e não consultas. Ele chegava, tomava um café, fumava um cigarro, falava sobre assuntos do cotidiano. Mas quando eu queria adentrar na conversa sobre sua súbita mudança se irritava e dizia-se curado. Me dava uma nota de 100 dólares, dois tapinhas no ombro e saia dizendo: “até mais mestre”, num tom de deboche sei lá, já não sei ao certo... Várias e intrigantes eram minhas dúvidas naquela época. Comecei a ficar sem sono à noite. - Delegado, quando tentei recusar os 100 dólares que ele me dava em cada consulta não levava em consideração o que eu dizia e colocava o dinheiro em meu jaleco, me dava os mesmo dois tapinhas no ombro e sorria com um ar de quem era difícil saber o que tudo aquilo ali queria dizer. Era tudo muito estranho eu só estava na primeira fase com ele, a fase em que escuto o que o paciente tem a dizer. Sabe delegado na vida real essas coisas são mais difíceis de se lidar. Nos livros, na teoria tudo se explica, eu sou recém formado sei que não sou nenhum gênio. Meu diploma não é tão merecido assim. Fiz falcatruas para o receber. Sabe minha faculdade era daquelas: pagou, passou! Falo tudo isso porque também já não sei ...e aquela pessoa que um dia chegou em meu consultório toda arrasada e no outro dia portava-se como o mais bem sucedido dos homens e começou a me chamar de gênio e etc... E me dar notas de 100 dólares por um serviço que eu não tinha feito me deu medo na época. Mas quando eu soube quem ele era, aí eu fiquei com mais medo ainda. Sei que ninguém sai por aí dando dinheiro, ainda mais alguém que se dizia falido. E hoje isso...bem não durou muito mais do que isso nossas sessões pois ele desapareceu de vez .

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INOCÊNCIA - E só hoje quase três anos depois eu o reconheci nesta foto de jornal nestas páginas onde jamais pensaria ver um paciente meu, reconheço esse homem delegado, ele era meu paciente.., mas seu nome aqui.., ou lá ...Nesse ponto do relato me perdi no espaço, no tempo, talvez pela cachaça... Me desculpei ao Sr. Dr. Delegado de delegacia de cidadezinha, zinha mesmo de beira de estrada do interior do sertão da Bahia e continuei falando como se tivesse falando com o Dr. Delegado da PF de cidadezinha do interior do estado de São Paulo com mais de 200 mil habitantes. Nessa hora já suava frio... - Como eu ia dizendo, no jornal que eu trazia, ou trago..,(acho que realmente a cachaça baiana era forte), no jornal tinha um cara que se chama Tito. O meu paciente se chamava Roberto Vaz, um cara bacana.., sei lá que porra ele era! E hoje ele é o Tito, cabeça de uma rede de tráfico de drogas delegado, como pode, como? O Dr. Delegado da PF de cidadezinha, nada zinha do interior do estado de São Paulo com mais de 200 mil habitantes fitou-me só um segundo me disse: - Bem-vindo ao mundo real doutor. Deseja mais alguma coisa ?

Mais tarde pensei sobre isso e me perguntei como alguém consegue ouvir um relato como o que eu fiz para ele em quase duas horas e me responder quase sonolento o que ele me respondeu? - Sim! Desejo mais uma coisa. Ver o Roberto! E o Dr. Delegado Mão cansada da PF de cidadezinha, nada zinha de interior do estado de São Paulo com mais de 200 mil habitantes me olhou mais uma vez (acho que foram as únicas vezes que me olhara durante toda conversa) e respondeu secamente:

- Volte daqui uma semana e conversaremos. Obrigado pelas informações e pode se retirar.Olhei-o surpreso pois achava que iria vê-lo naquele instante, não dali a uma semana, mas calei-me e disse-lhe secamente:

- Obrigado! E saí atordoado por tudo. Se eu tinha dúvidas antes de ir a delegacia agora elas eram ainda maiores.

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Sem dúvida foi a semana mais longa da minha vida. Foi a semana em que nada comi, nada dormi. A semana que só pensava, pensava... Mas de nada adiantava, não havia um fio condutor, não havia uma lógica nesta história. Só havia uma pessoa que desde o primeiro momento me causou um desconforto. Uma pessoa que supostamente iria se tratar comigo, uma pessoa com dois olhares. Roberto tinha aquele olhar que logo no primeiro momento qualquer um confia, qualquer um quer se consolar de todas as dores do mundo: apaixonante, um existencialista que convivi em minha vida. Olhar melancólico e desafiador, de discurso apaixonado para com as coisas da vida, com certeza foi um bom vivã e não dos bobos. Talvez por isso nada lhe disse. Estava ouvindo, aprendendo. E há o outro, o traficante Tito, que não faço idéia de quem seja. Mas com certeza foi o que me deu aquelas notas de 100 dólares que estão em algum lugar desse apartamento.

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PRIMEIRA LIÇÃO Uma semana depois sem cerimônia, preparado ou não, me pus a caminho da delegacia da PF da cidadezinha, nada zinha com mais de 200mil habitantes. Já tinha acertado os detalhes por telefone com o Sr. Dr. Delegado de delegacia de cidadezinha nada zinha com mais de 200mil habitantes do interior do estado de São Paulo. Minhas únicas exigências eram: que queria falar as sós e no mínimo uma hora com Roberto. Exigência essa só concedida “por se tratar de um caso um tanto quanto peculiar”! Foram essas as palavras do Sr. Dr. Delegado de delegacia da PF, visto que Tito fora meu paciente, não meu comparsa. A caminho da delegacia senti sensações que jamais sentira, pensei coisas que jamais pensará e temi como jamais temera. Mas mesmo assim fui até lá, não para ver um paciente mas sim um traficante. Quando cheguei na delegacia estava temerário. Respirei fundo, serrei os punhos para conter minhas mãos que tremiam, suavam gélidas e logo depois vim a saber pelo Sr. Dr. Delegado da PF que minha face estava pálida. Eu disse a ele que toda essa situação me deixava muito nervoso. Sem dizer mais nada ele conduziu-me até uma sala onde havia duas cadeiras e uma mesa entre elas. Tanto as cadeiras quanto a mesa eram de ferro e estavam presas ao chão. O Sr. Dr. Delegado de delegacia da PF pediu para que me sentasse. Antes de sair disse-me para ficar tranqüilo que o detento não era do tipo agressivo mas que mesmo assim suas mãos estariam presas a cadeira e que haveria um policial no lado de fora. Quando eu terminasse era só bater a porta que ele abriria. Dito tudo isso ele saiu. E sem que eu pudesse pensar em qualquer coisa entra Roberto algemado com o delegado e para meu espanto me cumprimenta sorridente e diz descontraído: - Doutor, quanto tempo! E eu respondi-lhe fria e secamente: - Mais de três anos Roberto! O Sr. Dr. Delegado de delegacia da PF olha para mim e diz: - Conversem, vocês devem ter muito o que conversar. E antes de sair perguntou se queríamos água. Para meu espanto estava tudo muito amigável, como se aquilo ali não fosse uma delegacia, como se Roberto na fosse um detento. Logo após outro aspecto me chamou a atenção. Roberto não estava barbudo ou careca ou com hematomas. Essas coisas que nos vem na cabeça quando pensamos em alguém preso. Estava igual a última vez que o vi. Boa camisa, barba feita, cabelo bem cortado e até um perfume invadiu a sala junto com ele. Meus pensamentos iam por aí quando ele me interrompeu dizendo: - Surpreso Dr.? - Muito Roberto! - Tito, doutor! O senhor não lê os jornais? Se te escutam me chamando de Roberto vão me sacanear aqui dentro! Há!há. Nesse momento meus medos e angústias desapareceram e disparei palavras contra ele : - Tudo bem Tito vou começar a falar, a hora que você quiser me interromper por favor o faça! E continuei: - Há tempos atrás entrou em meu consultório um cara cheio de angústias, que queria um mundo diferente. - E hoje tenho doutor, um mundo bem diferente e graças ao senhor é muito difícil achar pessoas que saibam ouvir e o senhor é muito bom nisso. Bem, mas isso não vem ao caso... E começou a falar tudo...

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UM SIMPLES COMERCIANTE

Falou-me que naquela época ele já era o Tito. Só que nas suas próprias palavras ainda era peixe pequeno, cheio de dúvidas, de medos. E como eu não respondia suas questões tomou coragem e assumiu de vez seu outro “eu”, com seu outro mundo. O mundo que segundo suas próprias palavras apesar das pessoas o chamarem de submundo, não tem nada de sub, e sim o mundo real há muito tempo. E que suas raízes são profundas com uma história de milhares de anos à frente da bondade. E explicava-me tudo com simplicidade de quem descasca uma laranja...Que ele é o mercador que sempre fora em todas suas vidas passadas, um mercador de produtos raros e proibidos e que na história da humanidade está cheio deles. Esses produtos são sempre mais valorizados, e enquanto houver alguém querendo pagar o preço irá ter alguém disposto a vender. Não o conseguia interromper, pois ele não conseguia para de falar. Dizia que hoje se sentia mais livre sem ninguém para lhe dar ordens. Que entre tubarões não há hipocrisia, que nesse seu mundo tudo funciona como um relógio. Os contratos são cumpridos com a palavra. Não há cheque sem fundo que não acabe como um defunto, e que ao contrário da lei da sociedade a lei do submundo é muito mais rápida. Explicava-me que esse foi o maior motivo pelo qual ele mudou de mundo, pelas leis serem mais simples. É a velha lei do olho por olho, dente por dente, onde você faz a sua justiça com suas mãos, sem intermediários corruptos. É só você e sua consciência, é a lei da causa e efeito colocada em prática. Nesse mundo para você se dar bem tem que ser como os três macacos que nada ouvem, falam ou vêem. É a lei mais antiga, a lei da selva. E neste mundo ele é um leão ou um tubarão. Cansou de ser ovelha negra. Hoje é um imponente lobo de caninos ferozes e olhar soberano. Senhor de sua estepe que mata sem crueldade apenas mata para sobreviver. Diz hoje não ter mais preconceitos, nem manias, tudo lhe parece ser justificável. Que para isso basta a pessoa ter nascido neste planeta ela terá motivo para fazer o que quer que seja. Basta querer fazer e pronto, depois contratar alguns advogados, comprar alguns juízes e pronto, é assim fácil e simples. Que o Brasil é um dos países mais prósperos nesta área, temos de tudo a venda é só chegar e comprar. Po exemplo me dizia ele: “o diabo compra mais almas aqui que em qualquer outro lugar. Ele é muito melhor negociante, seu escritório está com agenda lotada por mais de uma era. Seus advogados estão entupidos de pedidos, fala-se até em modernização para atender todas as causas aqui do Brasil, mais uma vez somos campeões mundiais”. Mas logo após essas blasfêmias todas Tito fez o sinal da cruz e jurou nunca ter batido nessa porta. Ao contrário, sentia-se mais do que nunca próximo de Deus. Ajudava menores carentes, a comunidade, a família, os amigos e dizia que tinha muita gente de bem que sentia sua falta. Quando viajava as pessoas de bem diziam que ele estava certo. Que o padre logo após a reforma da fachada e altar da paróquia lhe garantiu que quando ele morresse seria velado como nunca ninguém fora naquela igreja dizendo : - Tá vendo doutor, aqui já tá tudo arranjado!

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Quando pensava em Deus dizia que ele saberia olhar para seu interior, já que os homens não sabiam. Deus saberia que não tinha escolha: ou era essa vida ou teria que vender sua alma. A sua era transparente como a água. Sentia-se reconfortado quando pensava que Deus era bom com ele. Se não fosse, não lhe teria dado tantas coisas e tanto poder. E me disse: - Deus é muito meu amigo doutor. Depois olhou para o canto da sala, também olhei. Também com um olhar vazio e rimos um da cara do outro sem saber que também estava Deus olhando para nós. Quando lhe disse que sua escolha para ser livre o levara para cadeia ele riu, riu muito e depois disse: - Formalidades doutor, formalidades... Não posso lhe explicar tudo mas vamos dizer que faz parte do caminho que escolhi, que em menos de uma semana estou fora daqui e que aqui se faz mais negócios do que nas ruas. Continuo mesmo aqui dentro sendo Tito, peixe grande. Saio daqui um pouco mais pobre mas muito mais forte. Nesse mundo a prisão fortalece, todos sabem disso, esse é o meu mundo hoje, aliás, nosso mundo. E eu vivo sem hipocrisia! Suas palavras, sua heresia, sua sinceridade, me deixaram com cara de palhaço por alguns minutos. Realmente as suas explicações eram muito palpáveis, bastava ligar a TV e todos os dias vemos como o mal está no meio de nós, sempre escapando da justiça dos homens com um sorriso largo. E os bons e justos chorando com cara de otários, de fracos pedindo a Deus justiça, já que aqui, quem manda é o mal, bem vestido e cheiroso. Pensava nisso quando Tito me interrompeu: - Bem doutor, cansei de tentar lhe dar uma justificativa. Cansei de buscar explicação para as coisas e atos, vivo hoje num mundo mais simples, mais lógico e real. É isso doutor! : - Bem Tito, confesso que você me deixou um tanto quanto confuso e até que tens razão e coerência em muitas de suas convicções mas não acho que o mal venceu. Não acho que és tão tranqüilo assim como pintas. Eu sei que trocaria poder e dinheiro por uma vida na arte. E sendo hoje quem és, sei que o mundo onde está não tem bilhete de volta. Sinto muito, pois para suas perguntas não sou eu quem tem as respostas. Ninguém as tem, só você sabe as respostas. Tu criaste este mundo, só você sabe viver nele e o que eu posso dizer é obrigado em compartilhar desse mundo comigo, pois também sei que você é um solitário. Agora me despeço de ti sem saber se um dia iremos nos encontrar novamente.

Quando ia me levantando ele disse: - Então doutor novamente fico sem alento escolhendo meu mundo solitário. Há! Há! Há! Engraçado, cada vez acredito mais que os sonhos são reais e que a realidade é feia. Solitário, há, há! Mas porém no topo! E quem quer lá chegar tem que se acostumar a estar só! Ainda na delegacia quase já na saída o Sr. Dr. Delegado de delegacia da PF me chamou e perguntou se correra tudo bem, disse-lhe que sim e ele respondeu: - Muito bem, muito bem. Depois nos falamos, pode se retirar! Não entendi nada e saí dali confuso e confesso, um pouco triste .

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SURPRESA! Quando cheguei em casa eram umas três horas da tarde. Mesmo assim tão cedo preparei uma dose de whisky. Lá fora uma ventania. O céu escureceu de repente. Relâmpagos estalavam como chicotadas em leões que rugiam ferozes. Coloquei uma música calma, fechei as cortinas, talvez por querer que fosse noite. Aumentei o volume do som, acho que era um jazz, acho que Milles Davis. Ascendi um cigarro e depois outro. Preparei mais uma dose e fiquei ali até que adormecer. Acordei de madrugada. O silêncio agora era total. Levantei-me, fui até o banheiro mijar e como de costume dei uma olhadela no espelho e me assustei. Não me reconhecia. Estava barbudo, com olheiras profundas e a boca azeda. Isso me dava a maior sensação de solidão. Sim, solidão de estar preso a uma vida que não me trazia felicidade alguma. Não tinha ninguém para me dedicar, me cuidar. Andava só há muito tempo... Desde que conheci Roberto minha segurança de ter uma vida feliz tinha se esvaído. Não tinha mais segurança em diagnosticar nada, em curar. Na realidade, em continuar minha profissão. E tudo isso por não poder mudá-lo, ajudá-lo. Não poder dizer-lhe que estava errado. Não sei ao certo quanto depois. Só sei que foi rápido. E sem que eu o cumprimentasse com um oi, ele entrou em meu consultório e disse: - Oi doutor! O doutor está com uma cara péssima.Certamente. Estava com insônia, bebia e fumava como um louco e agora isso: meu enigma estava ali na minha frente, bem vestido e cheiroso! Olhei-o estagnado, congelado, petrificado. Quando aquela voz que desde a primeira vez que a ouvi não saiu mais da minha cabeça soou perto do meu ouvido: - Venha doutor, vamos dar um passeio, o doutor tá precisando respirar um pouco!Levantei-me da minha cadeira sem dizer nada. Não disse nada a minha secretária pois já havia dias que a dispensara. E antes de fechar a porta olhei para o consultório mais uma vez, alguma coisa me dizia que assim o fizesse. Descemos pelo elevador sem sequer nos olharmos, como quando usamos normalmente. Raramente olhamos paras as pessoas. Na garagem do prédio um carro nos aguardava. Entramos e partimos. Não peguei minha bolsa, documentos, nada, só o molho de chaves, chaves aquelas que eram quase um resumo de minha vida: chave do carro, da casa, do consultório, do cadeado do portão , do cadeado da bicicleta, da caixa do correio, e mais algumas que eu nem sabia mais para que serviam. Roberto não dizia nada, mas tinha um ar de felicidade que de certa forma me dava segurança. Via pela janela escura do carro com bancos de couro gelado a cidade ficando para trás. Uns cem quilômetros depois entramos em uma estradinha de chão. Árvores, pasto, cercas e pensei comigo mesmo: o que andava fazendo que nem me lembrava mais que morava no interior pois já havia tempos que não via essas coisas, coisas essas que me motivaram a trocar a capital por uma cidadezinha mais pacata...

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SONHADO ALTO ÉBRIO DE TUDO Chegando no final desta estrada só havia um caminho. Uma bela e imponente porteira dessas de fazenda grande se abriu automaticamente. Era um lugar de sonhos bem cuidado. O jardineiro de chapéu de palha aguando o gramado parecia fazer parte do quadro. Um jardim cheio de coqueiros, palmeiras, paineiras, ipês. Tudo que uma bela fazenda tem que ter. A Sede era uma casa colonial belíssima e quando eu ia achando que seria nada mais que um passeio no campo, o carro passou direto pela Sede e entrou em um galpão. Era um galpão enorme. Roberto fez sinal para que eu saísse do carro onde dois homens nos cumprimentaram e um deles disse: - Está tudo pronto patrão. Os dois homens tiraram uma lona enorme que tapava um pequeno avião, desses PT qualquer coisa. Eu nada disse. Estava como quando sonhamos...quando queremos falar, gritar, socar, fugir... Mas como nos sonhos algo nos impede. Poucos minutos depois com um fone no ouvido só escutava um zunido do motor do avião. Via pela janelinha o chão ficar cada vez mais distante. Quando olhei para trás algo em minha cara fez Roberto soltar uma grande gargalhada. Não sabia onde havia tanta graça naquilo: seqüestrar alguém, botar em um avião e sair por aí. E no mesmo momento em que pensei isso notei que havia sim, havia muita graça nisso. Minha cara devia ser das mais hilárias naquele momento em que olhei para ele. Devia ser um misto de terror e fascinação pois era a primeira vez que voava em minha vida e Roberto como não era nada bobo já devia ter notado isso. Eu estava mesmo fascinado com aquela minha tarde! Era uma sensação tão boa estar ali tão alto, tão longe da terra. Só olhando pela janela meus problemas lá embaixo. Longe de mim, lá de cima minha cabeça só se preocupava em ver vaquinhas, riozinhos, montes, nuvens e o sol acima dela, acima de tudo, acima de todos. Quando olhei o horizonte tão infinito vi que meu coração já se acalmara. Já começava a ver a beleza das coisas novamente. Via poesias. Pensava coisas a muito tempo esquecidas que há muito tempo deixei de lado exatamente quando decidi fazer psicologia. Lógica em tudo e sonhos em nada...Gritei para Roberto: - Estou com sede! E Roberto perguntou: - Sede de quê ? - De água!Ele abriu um pequeno freezer aonde além de água, frutas, sanduíches, tinha aquelas garrafinhas de whisky. Olhei para ele e disse gritando: - Para mim com três cubos! Ele riu e nós rimos como duas crianças as gargalhadas! E duas garrafinhas depois eu lhe disse: - O Brasil é realmente lindo! E ele me respondeu: - Você ainda não viu nada.É, realmente não tinha visto nada ainda. Anos de colégio, anos de cursinho, anos de faculdade pra me trancar em um consultório de uma cidadezinha do interior e ouvir os problemas dos outros. Que profissão era essa meu Deus que escolhi? Quem era eu para

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ajudar alguém? Tinha tantas dúvidas também! Fiquei quieto o resto do vôo só observando o mundo lá em baixo. Minhas dúvidas não me largavam nem ali longe, alto, ébrio de tudo.

ACORDE!

Uma hora depois quase escurecendo, aterrizamos em um lugar não sei onde. Só sei que não era em um aeroporto. Mas logo vi que era uma fazenda tão ou mais bem cuidada que a outra. Logo que descemos do avião uma caminhonete com dois homens chegou. Nos cumprimentaram com muito respeito e levaram-nos até a Sede que era simplesmente maravilhosa. Na porta da casa um homem magro de média estatura, traços fortes porém com um olhar muito amigável nos recebeu. Tito o cumprimentou com um aperto de mão e lhe disse: - Trouxe o homem que me curou Dito! E ele respondeu : - Bom, muito bom. E qual é mesmo o seu nome? E eu como que voltando a realidade falei: - Meu nome não vem ao caso. Quero saber o que estou fazendo aqui em um lugar não sei onde! Tito me interrompeu. - Calma doutor, eu só queria que o doutor conhecesse o Dito! - Para quê? - Para uma proposta! Respondeu TitoQuando ouvi isso fiquei anestesiado. Uma proposta? Que proposta viria daqueles dois? E perguntei : - Que proposta! - Queremos um novo contato em sua região e você é a pessoa ! Falou secamente Dito e eu num reflexo disse: - Eu ? Como assim?Mas antes que eu indagasse, que raciocinasse, antes mesmo que eu começasse a tremer ou temer por minha vida ali não sei onde Dito disse em tom muito amigável: - Conversaremos enquanto jantamos amigos. Agora vamos entrar para tomar alguma coisa para refrescar que eu já vi esse calor aqui do Mato Grosso derrubar muito peão forte! Nessa hora quando soube onde mais ou menos estava Tito fez reverência para que eu seguisse Dito e notei que ele continuava com aquele sorriso na cara que me reconfortava. Não era um sorriso leviano ou astuto, mas um sorriso de felicidade. Tito estava realmente feliz e estranhamente isso me deixava feliz também. Talvez por ter sentido culpa ao vê-lo preso, talvez por gostar simplesmente dele, mesmo sabendo o que ele fazia agora. Foi um jantar muito agradável. Sentamos na cozinha mesmo porque pelo visto nem Dito, nem Tito eram pessoas de muitas cerimônias. Bem perto tinha um fogão a lenha. O que me surpreendeu. Acho que nunca tinha visto um em minha vida. Fiquei olhando maravilhado. A senhorinha já velha cozinhando nele com tanta destreza e paciência era uma coisa mesmo bonita de se ver. Lembro até hoje do gosto do feijão. Comi muito feijão naquele jantar. Naquele jantar onde tudo foi esclarecido soube ser o escolhido. Quase como um monge para uma missão.

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SACERDÓCIO

Bem, voltando um pouco na história ou adiantando, lá na delegacia de cidadezinha dos confins do sertão da Bahia, o Dr. Delegado continuava a ouvir atento minha história do lado de fora da cela. Como ele não devia ter nada para fazer e eu estava de férias continuei a contar. Se não fosse aquilo ali uma cadeia e ele um delegado diria que ele estava até gostando da prosa já que não devia ter muito o que fazer. Bem, continuamos. Eu contando e ele ouvindo... - Bem naquele jantar onde soube ser eu o escolhido para uma proposta eles me esclareceram que primeiro: que as consultas eram reais. Roberto estava mesmo passando por uma crise de identidade, não era brincadeira. Então Dito o aconselhou a procurar um especialista, coisa muito comum nesse meio. O próprio Dito confessou já ter passado por um problema semelhante mas a crise dele era porque não conseguia matar mais ninguém. Disse que depois do tratamento voltou com a corda toda atirando até em mosquito. Segundo: que seu desaparecimento das consultas foi uma coisa natural pois realmente eu o curara sem lhe dizer uma palavra. Anos de faculdade e ninguém me disse que ouvir é um santo remédio. No caso de Tito eu também não saberia o que dizer a ele, essa foi a chave para ele me cotar como substituto: não lhe dizer nada. Terceiro: sua prisão foi uma farsa. O Delegado da PF de cidadezinha de interior com mais de 200 mil habitantes e comparsa do bando, naquela época estava precisando mostrar serviço e Tito naqueles três anos de atividades fortes tinha dado muito nas vistas e sua prisão era coisa certa ou então a cabeça do Delegado rolaria. E lógico, Dito e Tito, não queriam perder tão forte aliado. Quarto: que havia duas pessoas sendo sondadas para proposta. Uma era eu, outra um advogado com uma longa e extensa lista de trabalhos realizados para o bando. Com a prisão de Tito quem o fosse ver na cadeia seria o escolhido. Bem, o advogado se pirou do país com medo de também cair e eu inocentemente fui visitar Roberto na cadeia. Ali o delegado já saberia sem que ninguém lhe dissesse quem era seu novo contato na região. Sobre a fuga da cadeia do Tito, simples: o delegado nessa altura estava providencialmente viajando e Tito fugiu sem dar um tiro. Como? Esqueceram a sela aberta. Ninguém viu. Ninguém sabe. Uma coisa que acontece todos os dias nas cadeias do Brasil. Olhei mais uma vez para ver se o Sr. Dr. Delegado de delegacia de cidadezinha, zinha mesmo, dos confins do interior do sertão da Bahia me olhava mesmo. E ele me olhava mesmo! Com uma atenção de coruja em toco de mourão de beira de estrada. Quieto, nem sisudo nem alegre, com as orelhas em pé. Notei que com aquela minha falação toda de bêbado minha garganta secara, lhe pedi água e ele rapidamente me atendeu. Eu já não estava mais bêbado mas mesmo assim continuei a contar. Já fazia muito tempo que eu queria contar essa história para alguém e já que comecei tinha que continuar até o fim. E continuei... - Por que eu? Ora, porque eu era uma pessoa acima de qualquer suspeita aos olhos do deles e aos olhos de muita gente. Um doutor jovem que veio da capital para sossegar na

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vida fugindo da confusão da metrópole paulistana e lógico com um consultório onde posso receber visitas periodicamente de todo tipo de gente sem levantar a menor suspeita, bingo!

Ali mesmo tenho minhas anotações sobre os pacientes que entram todos de carro pela garagem, sobem pelo elevador que não tem câmeras ou outros tipos de sistemas de segurança. Faço minhas anotações e as coloco no fichário em códigos que eu mesmo inventei e nem mesmo Tito sabe. Continuo a atender alguns pacientes para não dar muito nas vistas. E hoje uso o método do silencio: só escuto e depois lhes repito o que eles disseram, mando-os fazer o que têm vontade. Bem, tem funcionado! Pois voltam todos felizes e surpresos com os resultados. Me sinto feliz. Todos se sentem felizes buscando o que querem realmente.Quanto as minhas funções no bando é simples: há um cofre, há dinheiro e eu pago e recebo. Sou um caixa forte, um contador, um tesoureiro. As contas são bem simples e redondas. Meio milhão aqui, um milhão ali! Hoje a parte que mais gosto é a de comprar as pessoas. Realmente todo mundo tem um preço! E hoje as pessoas se vendem por muito menos. Existe algumas que não custam tão pouco assim como por exemplo: o nosso Sr. Dr. Delegado da PF de cidadezinha, nada zinha do interior do estado de São Paulo com mais de 200 mil habitantes. Assim como a sua própria definição nominal seus honorários são também bem extensos pois não é todo mundo que é o Sr. Dr. Delegado de PF de cidadezinha, nada zinha, do interior de São Paulo com mais de 200 mil habitantes e que ainda por cima fica na rota do tráfico que abastece uma das maiores capitais do mundo. Ufa! Se receber o que ele já recebe não bastasse, o filho da mãe ainda se consulta comigo, é mole? Depois dizem que bandido não tem coração. E de quebra ainda fiquei amigo de sua esposa que quando me vê na rua me agradece por seu marido estar tão mudado, mais calmo. Também com o que lhe pago não tem como alguém ficar estressado. Mas tenho que convir que o cara merece. Sabe aquela história da prisão do Tito? O cara teve muito sangue frio. Aquilo podia ter realmente dado a maior merda e ele ficou ali impávido e ainda dando bronca em todo mundo por deixarem o cara escapar. Certa vez nos reunimos na Argentina. Ele contava isso sem conter os risos, só por patifaria. Assim como os grandes empresários comemoram suas grandes fusões em puteiros de luxo, nós vamos para Argentina, Uruguai, América Latina em geral. Bem desta vez foi aqui na Argentina mesmo. E nessa reunião é que acertamos o esquema para mais três anos. Bem, foi acertado o seguinte: como para Tito a área estava suja, um novo contato era necessário na região. Então Tito e o Delegado da PF decidiram colocar aquele plano da prisão em andamento. Eu como um “escolhido”, fui escolhido! Ali foi acertado que Tito passaria para os negócios internacionais como negociação com os cartéis, guerrilheiros e etc. Dito seria o homem em Brasília pois já estavam cansados de pagar a outros. E como Dito era mais que um homem de tradição, era um Coronel, sua eleição era tão certa como sua pontaria com uma arma. E lá por aquelas bandas de Pedro Juan Caballero isso era mais que suficiente para ele se eleger. Isso acertado eles se focaram em mim e me ensinaram tudo, tudo mesmo. Principalmente aprender sobre como ser um deles. Mas o ponto básico e primordial era ser de corpo e alma um deles. Fazer tudo com amor e paixão, esse era o ingrediente para tantos

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anos de sucesso. E eu acho que eles me levaram até a Argentina só para me dizer isso. Me apaixonei logo!

A GRANDE FESTA

- Hoje eu sou “o homem daquelas bandas”, disse eu ao Sr. Dr. Delegado de delegacia de cidadezinha, zinha mesmo, de beira de estrada dos confins dos recôncavos bandas com no máximo cinco mil habitantes. Hoje lá por aquelas bandas tenho uma equipe de confiança para me assessorar. É uma equipe que fala pouco. As operações são feitas com o mínimo de conversa. Não tem bate-papo, não tem lero-lero, nem qué-qué. É realmente muito organizado. Tudo que se risca no papel é executado cronometricamente. Um pouco a mais ou menos do que se foi planejado aborta-se a operação e a peça defeituosa é prontamente substituída. No esquema isso quer dizer apagada, deletada. É impressionante a quantidade de peças para reposição, muita gente, muita gente mesmo, gente de todos os seguimentos da sociedade. E se quiserem sair do esquema só se “caladas para sempre. Hoje pensando naquele dia do passeio com Tito, se tivesse recusado a proposta estaria talvez morto ou não, não sei ao certo. Mas uma coisa é certa também em minha vida. Naquela época estava cansado de ficar de fora da grande festa da vida que é ter muito dinheiro. E essa coisa de dinheiro limpo não existe pois ele é sujo. O dinheiro é e sempre foi o que emporcalha o planeta em todos os aspectos. Isso ninguém me faz mudar de opinião, mas já que para viver uma vida bacana aqui é necessário entrar no jogo eu entrei forte ora bolas! Não é todo mundo que foi “o escolhido”. Logo eu que não era escolhido nem pra jogar no gol nas peladas da vila quando criança. O que eu tenho hoje nem em três vidas conseguiria. Acho que nem se eu ouvisse todas as angústias de todas as pessoas do mundo em meu consultório chegaria a tanto. Hoje também sei que essa história de que dinheiro não trás felicidade, me desculpem, trás sim! Se eu sou realizado? Sou sim! Meu trabalho é difícil, é coisa para gente dedicada. E por mais que pareça estranho é trabalho para gente honesta e com palavra. Hoje olhando daqui desse mundo acho até que as coisas estão invertidas e ninguém nota. Hoje conheço gente importante vou a festas por todo o país, circulo na high society só para ganhar dinheiro e fazer negócios. Na primeira oportunidade viajo para um lugar exótico para me desintoxicar. Estou aqui de férias com o propósito de me curar dessas festas onde só se fala em quanto esse ou aquele tem. Assim vivi esses últimos anos conhecendo gente publicamente honesta e intimamente bandida. E se eu colocasse os nomes e sobrenomes? Bem, paro aqui de cuspir no prato, aliás belíssimos pratos.

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MARIA E JOSÉ

Nesse ponto a minha história já tinha acabado e o Sr. Dr. Delegado, eu os chamo assim de Sr. Dr. Delegado não com desrespeito mas sim respeito, porque a pior coisa que pode acontecer é você chamar um delegado só de delegado. Bem continuemos. O Sr. Dr. Delegado de cidadezinha, zinha mesmo, de beira de estrada, dos confins e recôncavos do interior da Bahia com menos de 5 mil habitantes me fitava, olhava, media, desmedia, e disse : - Cabô? - Cabei! - Só isso? - Só! E ele disse: - Da próxima vez que passar aqui nessa cidadezinha de beira de estrada desses recôncavos baianos, vê se me trás uma história mais engraçada. E eu respondi: - Pode deixar!E antes de ir embora dali ele ainda me convidou pra tomar uma cachaça das boas na vendinha. Contava minha história pra todo mundo e todo mundo ria. Todo mundo vinha cumprimentar o doutor que saiu da estrada com o carro por que estava bêbado e como se não bastasse fez questão que jantasse em sua casa. Lá me contou que sua família era parente de Lampião ou que seu pai foi cangaceiro ou seu avô, já não lembro. A essa altura já estava bêbado e tudo isso era o que eu queria que acontecesse em minhas férias. Comecei a chorar e dona Maria, mulher do delegado José, me consolou como uma mãe. O delegado José me disse como um pai para eu não me aporrinhar, que ele conhecia gente ruim só de bater o olho e que eu não era não! Bem, depois de tudo isso eles insistiram que eu pernoitar na casa deles. Aceitei, pois estava exausto e pegar aquela estrada esburacada naquela hora e ainda por cima meio bêbado era suicídio. Quando fui me deitar em um quarto simples porém muito aconchegante, minha cabeça dava voltas e mais voltas. Estava até que um pouco ressabiado com o fato de seu José ser delegado mas pensei que se tivesse de ser preso poderia ser por ele ali mesmo. E dormi.

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ONDE ESTÁ MEU MUNDO ? Dormi um sono pesado sem sonhos. Foi um dia onde logo de cara Deus quis que eu me confessasse dos meus pecados. E eu os confessei. Dormi o sono dos justos, revigorante sem sonhos nem pesadelos. Acordei bem cedo e feliz. Me sentia bem ali na casa de seu José. Parecia que voltava ao passado onde nos domingos de manhã acordava com os bater de bules de minha mãe, o cheiro de café sendo coado. Tinha tanto o que se fazer aos domingos. Nos domingos não existia aula. Só pipas, bolinhas de gude, figurinhas e desenhos. Um dia inteirinho de diversão. Sem aquela correria dos dias de aulas. Eu ali também não tinha obrigação nem pressa. Estava de férias com a vida ganha e o cheiro de pão fresco, do orvalho da natureza das coisas naturais. Senti saudades de minha casa de infância no interior. Despedi-me de seu José e dona Maria com alegria. Com certeza os visitaria mais vezes, pois gente assim era tão rara em minha vida... Nesses últimos anos em que como Roberto eu também deixei de ser criança deixei de ser inocente e olhar a vida com olhos de poeta e sonhador. Longe dali passando pela placa que indicava Arembepe decidi tocar em frente. Não porque desisti, mas não era Arembepe meu destino. Meu destino foi conhecer o seu José e Dona Maria para saber e lembrar que ainda existem pessoas que podem mudar esse Brasil. E essa mesma inocência é um motor para pessoas que fazem o Brasil às vezes ser o pior lugar do mundo. Por exemplo: ao meu ver são poucas as pessoas que realmente amam São Paulo de verdade. Bem poucos, porque a grande maioria só está ali para gozá-la como numa prostituta, lhe xingam, lhe batem e lhe fodem, saindo tão apressados como chegaram. Depois de a usarem, fogem para lugares calmos do Brasil. Uma coisa interessante acontece nos feriados: todos ao mesmo tempo querem fugir, deixar para trás tanta porcaria e ao mesmo tempo dar um descanso àquela puta velha. Quando voltam, voltam mais sedentos e loucos de taras que em suas casas não podem fazer, pois é pecado. É isso que alguns ricos fazem, saem de seus palácios nas capitais para irem desfrutar dessa hospitalidade interiorana dos confins do Brasil e conhecem as donas Marias e seus Josés. E por que não aprendem nada com eles? Ia eu nesses pensamentos quando cheguei em Salvador no fim da tarde. Caminhei até o farol e fiquei ali olhando o Atlântico. Pensei, pensei. Pensei nos homens lançando-se ao mar em cascas de nozes sabendo existir monstruosos Adamastores, mas sem saber se existia um fim para suas dores, medos, amores. Talvez amassem o desconhecido acima de tudo e ainda hoje sentimos os mesmos temores por sabermos não existir mais Adamastores. Tememos sim nossos credores, homens sorridentes, bem vestidos, limpinhos e cheirosos.

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BAHIA E SEUS MISTÉRIOS Percebi então através de meus pensamentos que vivia uma vida abastada com o tal dinheiro. Que finalmente consegui jogar o jogo dos homens, entendendo como tudo funcionava. Não havia malvados nem culpados, pois somos forçados desde quando nascemos a ser o que somos e que tudo é realmente relativo. Sentia-me vazio, sem magia, sem proteção, logo ali em Salvador que é um lugar todo crença, todo místico. Com tantos terreiros e tantas igrejas que juntas somam um ano inteiro simbolizando a fé daquele povo que não pode ficar um dia sequer desprotegido. Nem um dia deixam sua sorte na mão dos homens. É um lugar no Brasil onde os homens parecem nunca deixar de acreditar nas lendas ou melhor um lugar onde as lendas caminham nas ruas toda noite e todo dia. E eu ali olhando o Atlântico sem magia, sem fé, sem medo dos homens, sem medo dos mitos. Mas com medo do meu próximo passo, da minha próxima idéia. Com medo do que me tornarei... Quando aquela mão me tocou no ombro. Virei de punhos serrados jogando um golpe de direita. Ele esquivou-se, torceu meu braço com a mão esquerda, me aplicou uma gravata com o braço direito e falou: - Oi doutor! Meu coração ainda batia acelerado quando ele me largou, não acreditei que fosse ele e disse: - Você? Debochado me respondeu: - Um criado seu, a seu dispor. - Que diabos faz aqui! - Vim cobrar uma dívida, respondeu. - Como assim? Como me achou aqui? E antes que perguntasse mais alguma coisa disse: - Foi fácil te achar. Não que fosse difícil achar alguém... - Que porra toda é essa? Como assim? Não sabia que estava sendo procurado. O que eu sei é que estou de férias e você me aparece feito um fantasma. Me dá um puta susto e fica com essa conversa toda enigmática? Fala logo o que você tá fazendo aqui, caralho! - Mesmo que você queira uma resposta rápida eu não a posso te dar. É melhor você se acalmar pois eu tenho muito o que dizer. O que vou dizer pode assustar um pouquinho. - Merda Roberto! Não estou gostando nada dessa conversa! - Desculpe, mas meu nome não é Roberto. - Fala logo Tito. - Também não é Tito. - Como assim? - Eu tenho vários nomes... - Oh, meu Deus, fala logo! - Sempre me confundem com Ele! - Ele quem? - Deus!

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COISA RUIM

- Vamos dar um passeio doutor.E antes que eu respondesse, estávamos os dois sentados em uma praia de areia branca com coqueiros por todos os lados. De frente para nós um mar verde, céu azul. Uma brisa soprava. Estávamos esticados em espreguiçadeiras, tomando martínis com azeitonas embaixo de um sombreiro de palha. Uma calma reinava... Quando olhei para o lado vi que Roberto estava ali sorridente. Continuava a me lembrar de Salvador e de nossa última conversa quando falei: - Então é isso? - Se você quiser é. E por que não tu? Todos tem o direito de uma vida boa na terra! Fiquei olhando ao redor, acho que procurando Deus ou alguma explicação. Então gritei!

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ELE ESTÁ NO MEIO DE NÓS E foi só isso que sonhei. Quando acordei estava novamente em casa. Novamente com a cabeça pesada e um gosto de cabo de guarda-chuva na boca. Sentia meu corpo pesado e todo dolorido, tentei me levantar e ele se travou. Fiquei ali imaginando que dia era, pois meu apartamento estava uma bagunça. Garrafas e copos pela metade por todos os lados, cinzeiros cheios de bitucas, um vinil rodando no final. Lembrei de gargalhadas, de rostos que me eram familiares. Passei a mão pelo rosto e minha barba estava grande. Senti meus olhos pesarem novamente, tentei afirmar a vista mas não consegui. Novamente acordo na praia. Novamente me senti leve e novamente Roberto estava ao meu lado sorridente... - Então quer voltar para sua vida ou quer ficar aqui comigo? Disse ele.O diabo faz coisas que até Deus duvida, pensei. Era gostoso estar ali, me sentia cuidado. O diabo era muito bacana, legal até para conversar...E ao mesmo tempo em que eu pensava isso disse que eu tinha uma escolha: - E qual é o preço? Minha alma? - Bem se você quiser chamar assim, tudo bem. - Por que há outro nome? - Há vários nomes mundanos que não vem ao caso. Mas eu gosto de chamar de carne. - Carne? - Sim carne. Quem gosta de alma é Deus. Eu só me interesso pela carne, pois nela pode-se tocar, usar. - Então você não quer minha alma? - Já disse! Eu só me interesso pela carne! - Mas e minha alma? - Você tem certeza de que ela existe?Então tomei um trago do martíni e a sensação de prazer aumentou. Fiquei ali mais um tempo saboreando aquela férias com “dito cujo”, aí lhe perguntei: - E Deus o que diz disso tudo? - Pergunte a Ele!Quando olhei para minha esquerda estava sentado ao meu lado o Sr. Dr .Delegado de delegaciazinha da Bahia que disse: - Olá doutor Vítor. Há um tempo venho lhe observando, quer dizer o tempo todo. Você sabe usar muito bem o livre arbítrio. Então o que digo é que nem mesmo eu posso interromper sua escolhas. Acho que quando criei isso tudo aqui cometi um erro. Mas ao mesmo tempo é divertido deixar vocês livres para fazer o que quiserem. A verdade é que a terra toda foi um erro, ou melhor o homem foi um erro. Estava tudo muito bem quando criei as plantas e os bichos. Uma perfeição, perfeito demais. Aí me deu essa louca de colocar um ser vivo com livre arbítrio. A idéia inicial era colocar um ser que tivesse em mente que eu, Deus, existo! Me confortava a idéia de ter alguém me venerando. Mas aí

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tudo desandou, pois vocês começaram a se proliferar destruindo e consumindo todas as belezas que eu criei. E como tudo que eu crio não posso simplesmente destruir, criei tempestades, furacões, terremotos para puni-los. Mas não adiantou nada. Vocês são piores que os gafanhotos, e olha que eu criei muitos gafanhotos. Então eu pedi ao diabo para administrar isto aqui. E devo confessar que ele faz o trabalho muito bem. E Deus falou, falou... E eu escutei tudo aquilo maravilhado. O diabo com ar de tédio até cochilou. Já devia estar cansado das lamúrias de Deus. Deus falou comigo até a tardinha. O diabo que já estava meio apressado pegou suatoalha, olhou para Deus como que pedindo permissão para largar o expediente. Disse tchau e puft! Essa parte foi legal: ver o diabo desaparecer como no cinema.Nessa hora Deus olhou pra mim e disse: - Ele é muito perfomático quando quer. Anda muito nessa onda naturalista, vestido como os homens. Anda no meio deles sem preconceito, aceita qualquer um. Às vezes acho que a melhor parte ficou para ele nessa brincadeira...E Deus ficou com um olhar vazio.E eu fiquei feliz porque até Deus tinha seus problemas... - Vou nessa! Disse Ele. Como assim pensei? O diabo já tinha se pirado e agora Deus, o todo poderoso também já ia se pirulitar? - Então é assim? Pelo que entendi vocês dois fazem o que querem nesse mundo que é um equívoco. Chegam cheios de nove horas, me deixam mais perdido que cego em tiroteio e sem mais nem menos dizem: “vou nessa!”! Péra lá! Quero saber ao menos como saio daqui! Se é que eu preciso sair daqui. Já que o que eu procurava no começo dessa viagem era sossego não me importo nada de ficar aqui mais um pouco. - Tudo bem, disse Deus.Aí eu fiquei muito bravo e disse para Deus :

- Espera lá, então é assim? Vocês vem com esse lero-lero todo e me dizem: vou nessa, pronto e tchau? Só me diz ao menos se eu estou perdoado ou perdido!

- Olha meu filho, disse Deus: Como eu expliquei, não tenho poder sobre suas vidas na terra, já disse que quando fiz tudo isso aqui era para ser um paraíso. Aí eu cometi aqueleerrinho: o tal livre arbítrio. Como já te disse, tudo desandou. Então faça o que quiser, ok?

- Ok, respondi.E Deus para não perder ponto pro diabo, levitou com as pernas cruzadas, os braços abertos.Juntou as nuvens que havia no céu. Ao seu redor fez um círculo com elas atrás de si. Colocando o sol bem ao centro. Dos coqueirais atrás de mim levantou-se em algazarramilhares de aves barulhentas e com esse pano de fundo, disse com aquela voz queimaginamos ter Deus: - Fique em paz meu filho. Então é isso! Hoje moro no limbo com a janela que me coube, lá fora o mar agitado, aqui na praia solidão e taças de martíni esparramadas pelo chão. Fim.

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