Primeira Pauta - Edição 108 - 50 anos do golpe militar

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História que não dá para espantar JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DO BOM JESUS/IELUSC JOINVILLE, ABRIL DE 2014 - EDIÇÃO 108 - GRATUITO EDIÇÃO ESPECIAL O que se ouve e se fala 50 anos depois do golpe militar

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História que não dá para espantar

JORNAL LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DO BOM JESUS/IELUSC JOINVILLE, ABRIL DE 2014 - EDIÇÃO 108 - GRATUITO

EDIÇÃO ESPECIAL

O que se ouve e se fala 50 anosdepois do golpe militar

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Diagramação de Nicole Eichenberg | Edição de Ana Paula PonickDiagramação de Vincent Sesering | Edição de Daniel Filho

Joinville - Abril 2014 PRIMEIRA PAUTA02 Opinião

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A edição temática do Primeira Pauta surge para marcar os 50 anos do golpe militar no Brasil, a interven-ção que mudou os rumos do país e os rumos da turma de Jornal Laborátó-rio. O desa� o, proposto na primeira aula, já deixou todos animados e tre-mendo nas bases. O que se esperava aconteceu: a turma levou muito “não”, enfrentou di� culdades, recor-reu aos planos B e a edição saiu.

Durante a reunião de pauta, veio a decisão de colocar o pé na estrada. A turma comprou a ideia de enviar dois colegas à capital federal para visitar a Universidade de Brasília e relatar os efeitos da ditadura em um dos prin-cipais cenários do período de restri-ção às liberdades individuais e polí-ticas. Para pagar a aventura, que não teve ajuda institucional por conta do tempo ou de qualquer outro fator, foi preciso quebrar os cofrinhos, pro-mover uma rifa e assumir o compro-misso � nanceiro. Destacamos aqui a grande ajuda do professor da UnB Samuel Pantoja Lima, que recepcio-nou nossos repórteres, apresentou a universidade, sugeriu os assuntos da pauta e indicou as fontes, con� rman-do o forte pro� ssionalismo, amizade e incentivo aos estudantes do Bom Jesus/Ielusc, onde já foi coordena-dor do curso. O pé também foi co-locado na estrada para Florianópolis, abordando os trabalhos da Comissão Estadual da Verdade e para Curitiba, contemplando as obras de arte que expressam o período.

É impossível não observar o cará-ter pedagógico da produção desta edi-ção, que fez com que os participantes conhecessem a história do país e apro-veitassem as informações e revelações sobre o tema, tão fomentadas nesse marco histórico de 50 anos. E também

fez com que a turma ampliasse a ideia de pauta social, às vezes idealizada de uma forma tão localizada e restrita ao comunitarismo e às famosas matérias de bairro. Não que estas não sejam importantes, mas foi possível observar que entender nossa história, abordar contextos mais amplos e sair de casa também se trata de compromisso so-cial e serviço à comunidade.

A primeira edição do PP deste ano também aborda aspectos do com-portamento da imprensa regional du-rante o regime, trazendo uma crítica ao nosso trabalho como jornalistas e tentando entender como pro� ssio-nais, mesmo contrariados, tiveram de aclamar o militarismo e enaltecer a “revolução gloriosa”. Pensar sobre a economia na ditatura, o famoso “Milagre Econômico” e os efeitos das políticas lançadas a partir da década de 60 também fez parte da produção. E não há como desvalorizar a forma como professores abordam o assunto em escolas pelo país, passando por salas de aula onde a crítica acontece e por espaços onde o professor pede que os alunos risquem dos livros ter-mos como “golpe” e “ditadura”.

Apelando para a etimologia da expressão, é preciso comemorar a di-tadura militar. Comemorar é memo-rar com, lembrar com, apesar de não ser o recurso estilístico mais apro-priado. É preciso lembrarmos jun-tos o período, ouvindo pessoas que sentiram na pele o efeito da ditadura, re� etirmos juntos sobre os impactos sociais e políticos, questionarmos a postura da imprensa em assuntos delicados e propor-nos a encarar os nãos, as polêmicas e a apresentar não apenas à comunidade acadêmica, mas à comunidade regional, o resul-tado do trabalho da turma.

O confronto protagonizado pela Polícia contra um grupo de estudantes da Universidade Fede-ral de Santa Catarina, no dia 25 de março, pode ser apenas mais uma de tantas coincidências históricas de mau gosto nestes 50 anos em que se lembra do golpe de 1964. Assim como a reedição da Marcha da Família, ridicularizada por sua própria falta de mobilização, e as manifestações entrincheiradas de poucos conservadores de direita, a invasão ao campus da UFSC e o uso desproporcional da força con-tra um pequeno grupo de univer-sitários sob a desculpa do combate ao trá� co de drogas soam como resíduos já apodrecidos de um sistema que se pensava morto e enterrado, mas que dá sinais claros de sobrevivência velada.

Obviamente, as vozes que se levantam e que têm “saudade dos tempos militares” não avaliam a proporção de tal disparate, ou o fazem sem se dar de conta de que o militarismo foi o período mais cruel, violento e arbitrário em pouco mais de 100 anos de República. No mo-mento em que se ergue a memória de tantas vidas abreviadas pelo re-gime, como o catarinense Higino Pio, o deputado Rubens Paiva, o jornalista Vladimir Herzog e, tese já aceita, o próprio ex-presidente Juscelino Kubitschek, segundo ma-téria publicada em 2013 pela revista Carta Capital a partir de investiga-ção da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, o jornalismo brasileiro tem o dever e a obrigação de trazer estes e tantos outros fatos para discussão da sociedade. É pre-ciso destruir qualquer ideia de volta do regime usando para isso os pró-prios fatos históricos, não apenas por meio do salutar combate ideo-lógico, mas pela práxis que o jorna-lismo evidencia no coletivo.

Não se pode admitir o exagero da repressão militar no campus de uma universidade federal, palco da construção do saber e da democra-cia crítica, libertária, humanista e plural. Assim como não se pode conceber que a história escrita de forma enviesada e mal ensinada nas escolas brasileiras durante os anos de chumbo prevaleça como um ponto de vista aceitável de um perí-odo de exceção, coação e truculên-cia. O jornalismo tem hoje a chan-ce de dar espaço às vozes sufocadas durante a ditadura, não somente a partir da Carta Magna de 1988, mas principalmente pela utopia de se construir um país democrático, igualitário e livre. Como disse Má-rio de Andrade: o passado é lição para re� etir, não para repetir.

DIRETOR GERAL DO BOM JESUS/IELUSCSilvio Iung

DIRETOR DO ENSINO SUPERIORPaulo Aires

COORDENADOR DO CURSOSílvio Melatti

DISCIPLINAJornal Laboratório II

PROFESSOR RESPONSÁVELSandro Galarça

EDITOR-CHEFEDaniel Filho

EDITORESAna Paula Bonin, Daniel Filho, Gabrielle Dias Figueiredo,

Jean Patrick da Silva, Misael Tibes de Freitas e Miriã Mews

DIAGRAMADORES

Ana Paula Ponick, Bruna Cardoso, Gabriela Kugelmeier,Priscila Andreza de Souza, Nicole Cristine Eichenberg e

Vincent Sesering

REPÓRTERESAna Paula Ponick, Adolfo Bonucci, Eluana Mello, Joel Martins, Mayara Hoffmann, Marcos Pereira, Renata

Bomfim, Rita de Cássia Wischral e Rodrigo Guilherme Pereira

EQUIPE DIGITALAndreia Silva, Graziele Maiolini e João Pedro Deschamps

FOTO DA CAPAMayara Hoffmann

CHARGESandro Luis Schmidt

IMPRESSÃOA Notícia

TIRAGEM3 mil exemplares

Contato com a redaçãoEndereço: Rua Princesa Isabel, 438 - Centro CEP 89201-270 | Joinville | Santa Catarina

Telefone: (47) 3026-8000 - Fax: (47) 3026-8090E-mail: [email protected]

Jornal Laboratório do Curso de Comunicação Social - JornalismoAssociação Educacional Luterana Bom Jesus/Ielusc

EDIÇÃO 108 | Abril 2014

ARTIGO EDITORIALEDIÇÃO ESPECIAL

Lição da truculência Sair de casa e comemorar

Sandro GalarçaJornalista e professor responsável pelo Primeira Pauta

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Joinville - Abril 2014 PRIMEIRA PAUTA

Diagramação de Nicole Eichenberg | Edição de Daniel Filho

03 Diagramação de Nicole Eichenberg | Edição de Jean Patrick da Silva

Educação

Explicar o que foi o golpe de 64 não é uma tarefa fácil para quem está à frente de uma turma de

estudantes. Fazer com que enten-dam, em quatro ou cinco aulas – dependendo do plano de ensino –, que esse período foi marcado por vidas perdidas e famílias des-truídas é quase impossível. Além da passagem rápida pelo período, o uso de termos como revolução e a ideia de que a intervenção mi-litar foi boa para o Brasil ainda confundem alunos nas escolas distribuídas pelo país. Passados 50 anos do golpe, especialistas ressaltam a importância de uma abordagem crítica sobre o tema nas escolas.

Amanda Grisoste Brandão, 19, estudou desde o Ensino Fun-damental no Colégio Militar de Campo Grande, no Mato Gros-so do Sul. Para entrar na escola, precisou prestar concurso por-que o pai não era militar.

Formada há dois anos no En-sino Médio, ainda há lembranças de como o período de tomada de poder pelos militares foi ensina-

Tema ainda confunde estudantes Com aumento de pesquisas sobre o tema, professores e alunos comentam desa� o de falar sobre a ditadura em diferentes instituições de ensino no Brasil

Renata Bom� mreh.bom� [email protected]

do. “O que me marcou foi que, antes do professor começar a ex-plicar o conteúdo, ele pediu para que abríssemos o livro e riscásse-mos as palavras ‘golpe’ e ‘ditadura’ todas as vezes que elas apareciam”, relata. Ela lembra que durante os sete anos em que estudou nessa rede de ensino os professores, na maioria militares, evitavam usar esses termos no vocabulário. “O período era tratado como Gover-no Militar ou Era Militar.”

Se pudesse escolher entre aprender Matemática ou Histó-ria, certamente ela � caria com a primeira opção. Não é que Aman-da não gostasse de História, mas é que os cálculos, para ela, faziam mais sentido. Nunca foi de ques-tionar o que aprendia e, concor-dando ou não, aceitava o que os professores diziam. O interesse pela disciplina veio mais tarde a � m de estudar os conteúdos para os vestibulares que se aproxima-vam. Quando aprendeu sobre a ditadura, os professores falavam que o poder e a ordem impera-vam. “Nada disso soava como algo aterrorizante. Era quase um motivo de glória, já que estavam acabando com a bagunça”, conta. Depois de dois anos formada, o

pensamento de Amanda sobre esse período mudou. Se antes ela concordava com que aprendeu, hoje a estudante de Engenharia de Produção tem um pensamento mais crítico. “Eu penso muito so-bre o assunto, sendo bem sincera. E acredito que podemos estudar e evitar que coisas ruins já aconte-ceram não se repitam”, confessa.

Nos livros, apostilas e mate-riais de apoio, é muito comum encontrarmos as palavras golpe, revolução ou ditadura, muitas vezes até no mesmo texto. Cintia Serrano leciona no Colégio Mili-tar de Curitiba há três anos e, para ela, essas palavras são utilizadas de acordo com a linha de pensamen-

Por mais que o golpe militar de 1964 complete os 50 anos, o tema ainda é novo na História do Brasil. E falar sobre isso nos tempos atuais é mexer numa feri-da aberta e que deixou – e ainda deixa – cicatrizes profundas. Há quem defenda esse período, mas há também quem discorde. Por isso, o debate é tão importante. Para o professor de Direito e co-ordenador do Centro dos Direi-tos Humanos de Joinville, Luiz Gustavo Assad Rupp, o estudo e o debate sobre essa etapa da história é de muita importância. “É preci-so recuperar a memória e a verda-de para que esses fatos nunca mais se repitam. Importante também é não deixar esses debates restritos à academia”, ressalta. “O conheci-mento da história é relevante para os nossos atos presentes.”

Durante duas décadas, a ide-ologia da segurança nacional in� uenciou signi� cantemente

a educação no Brasil, segundo Rupp. “Um exemplo concreto foi a supressão dos currículos esco-lares de disciplinas com viés crí-tico e re� exivo, como Sociologia e Filoso� a, e a substituição pelas disciplinas de Educação Moral e Cívica e a Organização Social e Política do Brasil, OSPB”, a� rma. “Disciplinas sem qualquer conte-údo crítico e com função de pro-pagandear aquela ordem instituí-da com o golpe”, conclui.

De acordo com a professora do Núcleo de Pesquisa, História e Ensino das Ditaduras, na Uni-versidade Federal do Fluminense, Samantha Viz Quadrat, é preciso levantar questionamentos e estar atualizado durante a contextua-lização. E arrisca uma pergunta para os professores levantarem diante dos estudantes: Por que a saída autoritária foi tão sedutora para parcelas da sociedade brasi-leira em 1964?

O que me marcou foi que, antes do professor começar a explicar o conteúdo, ele pediu para que abríssemos o livro e riscássemos as palavras “golpe” e “ditadura” todas as vezes que elas apareciam

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AMANDA GRISOSTE BRANDÃOEstudante

to que o autor busca seguir. “A co-notação de revolução vem do fato das mudanças drásticas ocorridas na sociedade e, principalmente, na política do período e não li-gada ao fato de que esse foi um movimento de extrema esquerda ou direita, como nesse caso foi”, explica, ao lembrar que o material didático é apenas uma base para o estudo. Segundo ela, outras fontes sempre são utilizadas para que o aluno tenha uma visão mais diver-si� cada do assunto.

Já para a professora Elaine Machado, essa diferença dos ter-mos consiste no fato de a História ser uma ciência muito podero-sa, que ao mesmo tempo em que cria heróis pode também levar ao esquecimento. “O golpe de 64 é um acontecimento recente e muitos que protagonizaram esse fato ainda circulam pelos cená-rios das Forças Armadas e pelas esferas políticas, ou seja, ainda estão ou têm acesso ao poder”, afirma. A professora destaca que quem tem o poder no país dita – ou ditava – o que deveria ser escrito na História. Desde 2011, ela não está mais à frente nas salas de aula, mas lecionou durante dez anos nas redes pú-

blicas e particular. Para ela, esse assunto deve ser debatido com os alunos e o debate cria con-dições para as opiniões serem mudadas e que isso apenas pode ocorrer por meio dos diálogos dentro de sala de aula.

Ir além do que é pautado pelo Ministério da Educação (MEC) é indicado como im-prescindível por professores. “É muito importante abordar o assunto na educação básica de forma mais séria, pois acre-dito que existe desejo por par-te da direita extremista de uma possível tomada de poder”, diz Eleni Lechinski, que há 17 anos atua na rede estadual de ensino. Quando o assunto é trabalhado, ela lembra que o maior ponto de atenção são os motivos pelos quais as pessoas foram presas, torturadas ou mortas, pren-dendo a curiosidade nas cenas horríveis e deixando de lado a contextualização.

O trabalho de pesquisado-res sobre o tema, alimentado ainda mais neste ano por causa da memória dos 50 anos, tam-bém é considerado fundamen-tal por especialistas às aulas dos professores em sala de aula.

É preciso haver debate com os alunos, diz especialista

ARQUIVO PESSOAL

Amanda Brandão, 19, a� rma que não questionava a forma como aprendia sobre a “revolução” em colégio militar no Mato Grosso do Sul

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Diagramação de Ana Paula Ponick | Edição de Ana Paula PonickDiagramação de Ana Paula Ponick | Edição de Ana Paula Ponick

Joinville - Abril 2014 PRIMEIRA PAUTA04 Entrevista

Ana Paula [email protected]

Eluana Mello de [email protected]

Advogado pós-graduado em Direito Empresarial, Anselmo da Silva Livramento Machado é o coordenador da Comissão Es-tadual da Verdade. Criado por um decreto em março do ano passado, o grupo segue as diretrizes da Comissão Nacional da

Verdade, que tem como objetivo apurar os crimes contra os direitos huma-nos ocorridos por força de motivação política de 18 de setembro de 1946, quando o Partido Comunista se tornou ilegal no país, a 1988, quando da abertura política com a promulgação da nova Constituição. Entre esses cri-mes, estão os casos de prisões irregulares, sequestros e torturas. Natural de Florianópolis, Anselmo atua também como vice-presidente da Comissão da Verdade da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional de Santa Cata-rina e como Assessor de Relações Institucionais da OAB/SC. Em entrevis-ta ao Primeira Pauta, Anselmo explica a atuação e comenta a importância da comissão no levantamento de informações históricas.

Primeira Pauta: Como a comissão vem atuando no estado junto aos torturados e seus familiares?

Anselmo Machado: Nós temos uma relação que foi construída ao longo do tempo com pessoas que sofreram violações aos direitos hu-manos. Na sua grande maioria, são pessoas que resistiram ao regime militar. Esse pessoal é relativamente bem organizado e têm os contatos e os nomes das pessoas que foram presas, desapareceram ou foram mortas naquele período. A relação do Estado tem em torno de 530 nomes levantados. Nós solicitamos às pessoas que estão nessa relação ou aos seus familiares, porque nem todos estão vivos, que venham até à Comissão e prestem o seu depoi-mento, dizendo como foi aquele período, como a pessoa foi presa, foi violada, o que efetivamente aconteceu a ela, de que forma e qual a motivação. Como nós temos mais ou menos levan-tado quem são as pessoas, nós faze-mos algumas au-diências públicas fora de Florianó-polis justamente para permitir que pessoas de outras partes do Estado consigam dar o seu depoimento.

PP: Quais tem sido as maiores di� culdades para o levantamento dessas informações?

AM: A maior di� culdade até o ano passado era a questão orçamentá-ria, porque a comissão havia sido

criada por um decreto e não havia uma dotação orçamentária para que pudéssemos efetuar essas au-diências fora de Florianópolis. Isso concentrou muito as audiências na capital, embora a gente tenha feito uma audiência pública em Cam-boriú e Blumenau. Na Furb (Fun-dação Universitária Regional de Blumenau) nós ouvimos o pessoal que havia sido preso, ou pelo me-nos quem compareceu. Outra das grandes di� culdades da Comissão da Verdade é o tempo. Já passamos cinquenta anos, então, se aquele militar ou militante tinha em torno de trinta anos, hoje ele está com oi-tenta. Com o tempo, as memórias se foram, morreram.

PP: O trabalho da Comissão visa incentivar as vítimas a relatar suas situações ou espera-se que a pro-cura seja voluntária?

AM: Quando fazemos audiên-cias públicas, nós damos am-pla divulgação nas mídias local e estadual e as pessoas é que geralmente pro-curam. Nós soli-citamos o com-p a r e c i m e n t o , mas nem todos vão. A Comis-

são Estadual da Verdade não tem poder convocatório, mas a Nacio-nal tem. Então, quando se trata de alguma situação mais grave, mais emblemática, que precise chamar a pessoa para depor, nesses casos nós repassamos para a Comissão Nacional.

PP: Existe algum acompanha-mento psicológico para os que prestam depoimentos e demons-tram essa necessidade?

AM: Nós não temos ainda aqui, mas isso já ocorre em São Paulo, Recife e Rio de Janeiro. É a cha-mada Clínica do Testemunho, um grupo de psicólogos que trabalham com essas pessoas que foram tor-turadas para conseguir coletar não apenas mais informações, mas dar, de alguma forma, um tratamento psicológico que, para muitos, não foi dado.

PP: Aqui no Estado não existe esse acompanhamento direta-mente ligado a vocês, mas é feito um encaminhamento?

AM: Não, por enquanto não está sendo feito absolutamente nada. O Conselho Regional de Psicolo-

gia está montando essa Clínica do Testemunho para atuar junto com a Comissão da Verdade.

PP: Os militares contribuem de alguma forma para o levantamen-to dessas informações?

AM: De jeito nenhum.

PP: Eles se demonstram resisten-tes?

AM: Muito.

PP: Além deles, há algum outro tipo de resistência?

AM: As próprias pessoas às vezes têm vergonha, têm medo ou receio de relatar o que aconteceu. Nós, embora tenhamos alguns nomes e saibamos que estão até pelo estado, não conseguimos ainda trazer ne-nhum dos acusados de tortura, em-

bora em algumas outras Comissões Estaduais da Verdade isso já tenha acontecido.

PP: Alguma instituição, órgão ou a imprensa tem demonstrado in-teresse nas informações que têm sido levantadas?

AM: Sim, a imprensa vem constan-temente e nós também damos am-pla divulgação. Em breve será lan-çado, junto ao portal da Assembleia Legislativa, um site com todas as informações da Comissão Estadual da Verdade. O objetivo é ter a maior transparência possível. Todos os in-quéritos, depoimentos, documentos que a comissão está coletando serão colocados ao público, que poderá fa-zer uma pesquisa em todo esse mate-rial. Provavelmente em torno de 90 dias vai estar disponível, oferecendo um apanhado importantíssimo do ponto de vista histórico.

“O resgate da memória vai demonstrar para todas as pessoas que nenhum tipo de ditadura é bom e todo tipo de ditadura restringe o que há de mais precioso na vida: a liberdade.”

““O resgate da memória vai ““O resgate da memória vai demonstrar para todas as “demonstrar para todas as

ANSELMO MACHADOCoordenador da CEV

Anselmo da Silva Livramento Machado, coordenador na Comissão Estadual da Verdade e vice-presidente da Comissão da Verdade da OAB-SC

SANDRO GALARÇA“É necessário reescrever a história do país”Coordenador comenta a importância da Comissão da Verdade

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Joinville - Abril 2014 PRIMEIRA PAUTA

Diagramação de Ana Paula Ponick | Edição de Ana Paula Ponick

05 Diagramação de Ana Paula Ponick | Edição de Ana Paula Ponick

Entrevista

“E, no fundo, o que boa parte das vítimas quer não é efetivamente vê-los atrás das grades (...), mas um julgamento moral, ou seja, vai � car estampado para o resto da vida que aquele cidadão era um torturador.”

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ANSELMO MACHADOCoordenador da CEV

PP: Qual a importância da im-prensa e da divulgação do traba-lho da comissão no prossegui-mento dos trabalhos?

AM: É fundamental, porque nós temos uma relação de 530 pesso-as e não vamos conseguir atingir todas. Pode ter muito mais gente, inclusive que nós desconhecemos. Por exemplo, você era militante de esquerda em Urussanga, era uma célula do Partido Comunista ou de uma VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) ou qualquer coisa nesse sentido e, de repente, caiu nas mãos do Exército. Descobriram você e sequestraram, deixaram pre-so por dois ou três meses em Curi-tiba, incomunicável, torturaram, não obtiveram as informações, ou você passou as informações, e li-bertaram. Você voltou para Urus-sanga e � cou quieto, não voltou à militância, simplesmente esqueceu e continuou sua vida normalmente. Mas você não tem registro, porque essas prisões não eram registradas. A importância da di-vulgação é justamen-te essa, que as pessoas que não estão regis-tradas como presas ou torturadas se ma-nifestem para prestar seus depoimentos ao saber do trabalho da comissão.

PP: Quando esteve em Joinville no dia 11 de março, o sr. Naldi, seu antecessor na coordenação da Comissão, comentou a proposta da criação de uma Comissão Mu-nicipal da Verdade. Quais seriam as medidas necessárias para que essa proposta viesse a ser colocada em prática?

AM: Como ela tem de ser criada como se fosse um órgão, seria a lei municipal dando condições para que ela atue com as pessoas mais próximas. Pessoas de Joinville sa-bem, conhecem as famílias que passaram di� culdades porque o pai foi preso, a mãe foi presa, têm essa informação, mas aqui estamos um pouco alienados. A Comissão Nacional, quando sentiu a dimen-

são que tinha o problema, sugeriu a criação das estaduais, mas nem todo estado tem a sua.Nós temos aqui um relato bem inte-ressante de um joinvilense militan-te do Partido Comunista que � cou alguns anos preso em Curitiba. Ele tinha ido para Joinville com a es-posa para tentar despistar. Os dois foram trabalhar, se não me engano na Wetzel, e foi na fábrica que ele foi preso. O dono da Wetzel permi-tia que a esposa dele saísse uma ou duas vezes por semana do horário de trabalho e fosse a Curitiba para visitar o marido. Isso na época era um negócio impensável. Ninguém deixava o funcionário ir e dava o apoio, inclusive. Se não me enga-no, quando voltou ele continuou trabalhando na Wetzel no posto que ocupava, como se nada tivesse acontecido.

A esposa dele prestou um de-poimento no evento do dia 11 de

março, e foi muito inte-ressante. Ela falou o quan-to sofreu para d e s c o b r i r onde o ma-rido estava. Nós pega-mos o depoi-mento dele aqui, mas o que desper-tou a atenção

lá é que sempre ouvimos a pessoa torturada, mas existe uma tortura psicológica por trás disso, de toda a família, que sofre por não saber onde a pessoa está. Ela contou a peregrinação dela para descobrir onde estava o marido, as pessoas que não davam crédito, se ela es-tava num lugar, a expulsavam por-que ela era comunista... A pessoa era carimbada porque tinha uma ideia diferente.

PP: Essa proposta de criação da Comissão Municipal já foi feita a outras cidades?

AM: Principalmente àqueles mu-nicípios onde a gente identi� cou que tem um grande número de presos políticos, como Itajaí, Joa-çaba, São Francisco do Sul e Cri-ciúma.

PP: A comissão espera que se faça justiça a partir das informações levantadas ou apenas o esclare-cimento para os familiares já é o bastante?

AM: O � nal da nossa missão é jus-tamente apresentar o relatório com todos os depoimentos, documentos e materiais levantados à Comissão Nacional da Verdade, que encami-nhará ao Ministério da Justiça para ver o que vai ser feito. A decisão do Supremo Tribunal em relação à questão da Lei da Anistia foi mui-to emblemática. A anistia assinada em 1979 foi ampla, geral e irrestrita para as duas partes, ou seja, anistiou o militante de esquerda e o militan-te da Força Armada que de alguma forma cometeu a tortura. A Corte Interamericana dos Direitos Hu-manos decidiu recentemente que o Brasil deveria, por obrigação, ana-lisar a fundo os crimes cometidos na Guerrilha do Araguaia e levar a julgamento todos os envolvidos. Isso abriu um precedente, inclu-sive o Ministério Público Federal já iniciou uma série de ações para processar os envolvidos naqueles crimes. Há um recurso da Ordem dos Advogados do Brasil na deci-são da Lei de Anistia que está para ser julgado ainda no Supremo Tri-bunal, um embargo infringente. A esperança da OAB e do Conselho Federal é de que haja uma mudan-ça de posicionamento do Supre-mo, permitindo que se leve, pelo menos a julgamento, aqueles casos dos crimes continuados, que são os sequestros ou desaparecimentos. Muitas pessoas foram sequestradas e até hoje estão desaparecidas. O entendimento é que o sequestro é um crime continuado, porque até a pessoa aparecer ele ainda existe. Então, não há prescrição da pena. O assassinato tem prescrição, a gen-te sabe que o Higino Pio morreu, o corpo apareceu, não apurou em 30, 50 anos quem matou, está pres-crito. E, no fundo, o que boa parte das vítimas quer não é efetivamente vê-los atrás das grades, até porque ninguém vai colocar um senhor de 70, 80 anos na cadeia, mas eles que-rem um julgamento moral, ou seja, vai � car estampado para o resto da vida que aquele cidadão era um tor-turador. Os � lhos e netos saberão

que o pai era alguém que torturava pessoas.

PP: Qual a importância do traba-lho da Comissão para a constru-ção democrática, inclusive para além dessas fronteiras de culpado e inocente, e para que a gente afas-te esses rumores revanchistas de direita de que o Brasil é um país de desordem? Como vocês veem o momento atual?

AM: O resgate da memória vai de-monstrar para todas as pessoas que nenhum tipo de ditadura é bom e todo tipo de ditadura restringe o que há de mais precioso na vida: a liberdade. Então, se você conseguir, através da História, mostrar o mo-dus operandi, as pessoas que � zeram, forma-se a consciência coletiva para que isso não aconteça mais. Hoje, no Brasil, nas redes sociais existem pessoas fazendo apologia, pedindo a volta dos militares porque o men-salão não foi condenado. São coisas distintas, porque as pessoas não sa-bem o que ocorreu.

PP: Como a informação e a nega-ção dela contribuíram para uma história parcial, paralela com a his-tória real, nos dois casos principais que foram o assassinato do Jusce-lino e a bomba do Riocentro que explodiu no carro dos militares?

Como a falta da verdade construiu uma história diferente e qual a im-portância do esclarecimento hoje?

AM: Veja que o fato de nós desco-nhecermos e isso estar vindo à tona agora demonstra que o país poderia ter sido completamente diferente, poderíamos ter uma democracia muito mais cedo. Isso já está sendo admitido até por alguns segmentos dos militares, de que a ditadura se estendeu demais. O objetivo era tirar o Jango naquele primeiro mo-mento, evitar o comunismo e em seguida abrir novamente à volta da democracia, o que não aconte-ceu. Tomaram o poder, gostaram e permaneceram nele e, o que é pior, trataram de destruir as principais lideranças, o Carlos Lacerda, o caso do Juscelino, o Jango. Há fortes in-dícios de que o Jango foi envenena-do, isso ainda está sendo apurado. Então foi colocada à margem toda uma geração. Há a necessidade de se reescrever a história. Ela foi criada por uma conveniência. Acho que o grande � m da Comissão da Verda-de é colocar a memória real na his-tória do Brasil. Porque o julgamen-to vai ser de quem? De quem está ouvindo. “Puxa vida, não deveria ser assim, deveria ser de forma dife-rente.” Formar-se uma consciência, uma opinião diferente daquilo que já foi exposto.

FOTOS DE SANDRO GALARÇA

SANDRO GALARÇA

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Noite de 31 de março de 1964. De Juiz de Fora (MG), o gene-ral Olímpio Mou-

rão Filho parte com suas tropas rumo ao Rio de Janeiro. Quando o presidente João Goulart orde-na a prisão de Castelo Branco, o também general Armando de Moraes Âncora decide não cum-prir a ordem. De imediato, o senador Auro Soares de Moura Andrade declara vago o cargo de chefe da nação. Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Depu-tados, assume provisoriamente o comando do país.

O presidente da Câmara dos Deputados, porém, ficou poucas horas no poder. No dia 2 de abril, o autodenominado “Comando Supremo da Revolução”, forma-do pelo brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo (Aeronáu-tica), pelo vice-almirante Augus-to Rademaker (Marinha) e pelo general Artur da Costa e Silva (Exército), governou o Brasil por duas semanas.

Depois desse período inicial de indecisões sobre quem coman-daria o país, o general Humberto de Alencar Castelo Branco assu-miu o poder, no dia 15 de abril de 1964, tornando-se o primei-ro presidente da ditadura. Entre tantas outras promessas, o povo esperava as eleições presidenciais prometidas para 1965 e que ja-mais foram realizadas durante o

regime. Os militares passaram a eleger os chefes da nação sem voto popular até 1985, quando Tan-credo Neves foi eleito – indire-tamente – o primeiro presidente civil desde o golpe.

É preciso avaliar que a ditadura foi um somatório de diversos fato-res políticos e sociais ocorridos ao longo da trajetória brasileira – e que foi planejado e ensaiado por muitos anos. “O clima de Guerra Fria, o anticomunismo presente nas instituições, além das opini-ões divididas entre capitalismo e comunismo, tiveram um papel importante na precipitação do golpe”, avalia o historiador José Roberto Severino, professor da Universidade Federal da Bahia. Para ele, João Goulart não repre-sentava unanimidade entre a elite conservadora, que promoveu uma estratégia para desestabilizar o go-verno. Havia, ainda, o comunismo de Cuba, que promovia uma ideo-logia específica, diferente daquela dos Estados Unidos, na política ex-terna da América Latina. Na verda-de, o período pós-1964 deveria ser transitório, mas teve os rumos alte-rados com o AI-5 depois de 1968. “O golpe dentro do golpe”, afirma Severino.

Entender a ditadura somente com o que aconteceu no dia 31 de março implica em algo superficial. É preciso saber o que aconteceu durante quase um século antes do início do militarismo, conhecer a história que a maioria dos livros didáticos usados nas escolas na dé-

cada de 70 não contam e entender os fatores que levaram ao fatídico golpe. O historiador afirma que a ação foi planejada. Muitos mili-tares articularam tomar o poder antes de 1964, sem sucesso. “A presença militar na política brasi-leira sempre existiu, desde o início do período republicano, passando pela revolução federalista, o tenen-tismo e tantos outros episódios de insurreição militar”.

A cAsernA nA políticAA bibliotecária e historiadora

Zenilda Moreira Tromm relata que os militares, com o fim da Guerra do Paraguai em 1870, entenderam que apenas o exército brasileiro continuava sem prestígio na socie-dade da América Latina.

A pressão exercida pelas Forças Armadas derrubou o regime mo-nárquico no país em 1889, tanto que os dois primeiros presidentes da recém-criada República eram militares: Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, respectivamente.

Alguns anos depois, em 1920, de acordo com o pesquisador do Labo-ratório de História Política e Social, Antônio Gasparetto Junior, eles tor-nariam a se revoltar contra o governo. Dessa vez, organizaram-se num gru-po de contestação política. Porém, os responsáveis pelo movimento perten-ciam ao escalão intermediário da hie-rarquia das Forças Armadas, fato que ficou conhecido como Tenentismo.

Nos anos que seguiram-se, os militares continuaram no cenário político. No fim do segundo gover-no de Getúlio Vargas, que termi-

nou com suicídio do presidente em 1954, os militares planejavam um golpe que acabou não dando certo. “A repercussão da carta-testamento conteve qualquer movimentação e desestabilizou profundamente a estrutura política do país”, salienta Antonio Gasparetto. Logo após, em 22 de novembro de 1955, com o afastamento definitivo de Café Filho, a quem Carlos Luz substi-tuía, a Câmara dos Deputados con-firmou o catarinense Nereu Ramos como presidente da República. O único presidente brasileiro nasci-do em Santa Catarina ficou pouco tempo no poder. Eleito, Juscelino Kubitschek tomou posse em 1956. “Como o governo foi bem aceito pelo povo, JK teve autonomia para chegar até o fim do mandato”, des-taca o pesquisador.

Diagramação de Priscila Andreza de Souza | Edição de Ana Paula BoninDiagramação de Priscila Andreza de Souza| Edição de Ana Paula Bonin

Joinville - Abril 2013 PRIMEIRA PAUTA06 50 anos de Golpe

Tensões políticas tiveram papel decisivoApesar de ter o ápice na noite de 31 de março de 1964, regime de exceção começou a ser orquestrado muito tempo antes pelas forças armadas

Intenção da intervenção militar era manter um governo transitório, o que tomou outro rumo a partir de 1968 com a promulgação do AI-5

Joel [email protected]

ARQUIVO BBC BRASIL

O fim do governo Jânio Quadros desestabilizou a política brasileira. Vencedor nas urnas com votação expressiva, ele acreditou que o povo ficaria do seu lado em quaisquer circunstâncias. “Jânio traçou um plano para aumentar seus poderes”, pontua Antonio. “Ele anunciou sua renúncia pelo rádio em 1961.” Jânio pensava que seria procurado para voltar ao poder e não desmantelar o país. Nessas condições, o ex-presi-dente aceitaria a proposta somente se ele tivesse plenos poderes para governar. Mas o plano de Jânio deu errado. A renúncia foi aceita e nada foi feito para que ele retornasse à pre-sidência.

Quem assumiu o comando do Brasil foi o vice, João Goulart. Como Jango se identificava com as ideias

populistas de Getúlio, os políticos de direita não simpatizavam com ele.

Quando Jango recebeu a notícia da renúncia de Jânio, ele se encon-trava na China comunista. A direita tentou impedir que Jango fosse em-possado no retorno ao Brasil, mas Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul na época e cunhado de Jango, apoiou sua volta ao país, garantindo que ele assumisse o cargo de chefe da nação.

Ao tomar posse da presidência, Jango enfrentou oposições. A polí-tica dele tinha claras influências de esquerda. “O governo do presidente tinha uma forte base popular, como os movimentos sindicalistas”, explica Maikon Duarte, historiador. A solu-ção encontrada pela oposição foi ins-talar o parlamentarismo no Brasil.

As decisões passaram a ser tomadas pelos ministros, Tancredo Neves, Francisco da Rocha e Hermes Lima.

Em 1962, políticos contrários ao sistema de governo realizaram um plebiscito. “Entre presidencialismo e parlamentarismo, a população escolheu à forma de governo presi-dencial”, destaca o historiador José Severino. De volta ao poder, Jango tentou aliar as reformas com inte-resses conservadores. “Essas medidas desagradaram à elite que sempre es-tiveram no comando do país”, escla-rece o historiador Eliton de Souza. Houve um descontrole na situação nacional. A inflação cresceu e as medidas econômicas aborreceram os políticos de direita. A impren-sa iniciou uma campanha contra o radicalismo ideológico de Jango,

alertando para o caminho escolhido pelo presidente de levar o Brasil para um regime comunista. Estouraram várias revoltas e greves pelas ruas. O estopim que colocaria os militares no poder foi o discurso do presi-dente Jango e do governador Leonel Brizola feito no dia 13 de março de 1964 na Central do Brasil, Rio de Janeiro. “No pronunciamento, os dois anunciavam reformas de base, plebiscito para nova constituição, re-forma agrária e a nacionalização das refinarias estrangeiras de petróleo”, avalia Severino.

Os militares sabiam que o povo apoiaria o projeto. “A principal des-culpa para a destituição do presiden-te Jango foi o comunismo”, revela Eliton Felipe. Segundo o historiador, os golpistas tomaram o poder sob o

argumento de que havia planos para implantar uma ditadura comunista.

As Forças Armadas aliaram-se aos políticos da UDN (União De-mocrática Nacional) e ao governo norte-americano. A Marcha da Fa-mília com Deus pela Liberdade le-gitimou o golpe contra o que seria a ameaça da esquerda comunista

A queda foi inevitável. Jango via-jou do Rio de Janeiro para Brasília no dia 1º de abril. Em seguida, foi para Porto Alegre, onde Leonel Brizola tentava organizar resistência com apoio de oficiais legalistas. Jango de-sistiu de um confronto militar com os golpistas e seguiu para o exílio no Uruguai, de onde só retornaria em 1976 para ser enterrado no Brasil. As Forças Armadas permaneceram na presidência de 1964 até 1985.

O início do movimento que mudou a História

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Joinville - Abril 2013 PRIMEIRA PAUTA

Diagramação de Priscila Andreza de Souza | Edição de Ana Paula Bonin

07 Diagramação de Priscila Andreza de Souza| Edição de Ana Paula Bonin

50 anos de Golpe

Apesar de ter o ápice na madrugada de 31 de março de 1964, regime de exceção começou a ser orquestrado muito tempo antes pelas forças armadas

Intenção da intervenção militar era manter um governo transitório, o que tomou outro rumo a partir de 1968 com a promulgação do AI-5

O Brasil com e sem o golpe militar de 1964

Diretas Já marca mobilização e retomada do governo civil

Se as medidas adotadas pelo presidente João Goulart tivessem continuidade, é bem provável que teríamos um governo cada vez mais participativo e democráti-co, acompanhado de crescimento econômico e social. “A melhor re-distribuição da renda e a reforma agrária intensificariam a organi-zação dos trabalhadores urbanos e rurais”, confirma o historiador Eliton Felipe de Souza.

Porém, era imprescindível para os Estado Unidos garantir que go-vernos com medidas considera-das de esquerda fossem afastados do poder para, assim, assegurar a sobrevivência do capitalismo na América Latina. “De um jeito ou de outro, o Brasil estava conde-nado ao regime ditatorial”, deduz Eliton.

Por outro lado, caso a ditadu-ra tivesse resistido ao fracasso da política econômica e às pressões populares, a censura continuaria dentro das redações dos jornais e das emissoras de TV. “A Inter-net não seria como a conhecemos hoje”, salienta o historiador.

O sequestro e a tortura, insti-

tucionalizados durante os gover-nos militares, seriam cada vez mais intensos. “Os casos de corrupção nunca chegariam ao conhecimen-to da sociedade”, garante Eliton.

Para o historiador, a maioria dos políticos que temos hoje, in-cluindo a presidente Dilma, esta-riam presos, exilados ou mortos. E com o tempo, as instituições democráticas deixariam de exis-tir. Partidos, sindicatos, grêmios estudantis, centros e diretórios acadêmicos seriam fechados ou banidos.

A corrupção e o enriquecimen-to ilícito, como ocorreram nos 21 anos da ditadura militar, seriam doenças sem cura. “Os órgãos ju-rídicos estariam subjugados ao go-verno, condenando e absolvendo sem julgamento”.

Eliton avalia que lutas arma-das, em forma de focos de guerri-lha urbana e rural, espalhariam-se pelo país e o confronto violento fa-ria parte do dia a dia de todos nós. Mas caso os militares não tivessem assumido o comando do país em 1964, outros teriam feito isso. “O Brasil já vivia uma ditadura, só que

era uma ditadura sem nome”, ex-plica a bibliotecária e historiadora Zenilda Moreira Tromm.

Na época, o poder político e econômico estava na mão das clas-ses sociais dominantes. Fazendei-ros, donos de indústrias, coronéis e caciques governistas detinham

o controle do país. “Era a ditadu-ra do capital nacional, donde a chefia passava de uns aos outros, mantendo sempre os mesmos no poder”, observa.

Para Zenilda, o risco de um novo golpe militar não existe. “O Brasil de hoje é muito diferen-

te daquele de 64. E não apenas o Brasil, mas o mundo todo.” De acordo com ela, o país está mais organizado e bem estruturado nas conquistas sociais. Conquistas inegáveis que, por si só, inviabili-zam qualquer tentativa de golpe. “O Brasil é outro, agora”.

JoEl MARTInS

Em 15 janeiro de 1985, Tancre-do Neves foi eleito presidente do Brasil através de voto indireto (o Colégio Eleitoral, composto pelo Congresso Nacional e represen-tantes das assembleias legislativas, era quem tinha direito de escolher o chefe da nação). Mas Tancredo adoeceu gravemente um dia antes da posse, 14 de março. O vice, José Sarney, assumiu o poder. Tancredo Neves faleceu em 21 de abril.

Com a Emenda Nacional Dan-te de Oliveira, publicada no ano de 1983, a população brasileira, em 84, uniu-se num movimento demo-crático chamado “Diretas Já”, que reivindicava voto popular para pre-sidente da República. As eleições diretas para o cargo da presidência só aconteceriam em 1989, após a Constituição de 88, com vitória de Fernando Collor de Mello nas urnas.

Alguns políticos da época apoia-ram a causa. Fernando Henrique Cardoso, Ulysses Guimarães, José Serra, Leonel Brizola, Luis Inácio Lula da Silva, entre outros, eram favoráveis à eleição direta.

Artistas, jogadores de futebol, cantores, religiosos e o povo em ge-ral, manifestaram-se em passeatas e

comícios. A exemplo do que ocor-reu em junho de 2013, milhares de pessoas foram às ruas.

Para o historiador Maikon Jean Duarte, não existe um fator único que determinou o fim da ditadura no Brasil. Mas entre eles, pode-se citar o desgaste político decorrente da oposição sindical crescente, os movimentos das comunidades ecle-siais de base (ala da Igreja Católica) e o retorno dos presos políticos com a Lei da Anistia de 1979.

A mudança da política externa dos EUA, que em 1964 articulou o golpe, bem como o crescimen-

to eleitoral da oposição no MDB, também foram importantes para o fim da ditadura. “O fortalecimento da pressão popular e o movimento reivindicando os direitos humanos são fatores que também não pode-mos esquecer”, lembra Maikon.

O professor de história, Wil-son de Oliveira Neto, afirma que o Regime Militar entrou em colapso a partir da década de 1970, quan-do o modelo de desenvolvimento econômico entrou em falência. A partir daí, foi dada a largada para o retorno da democracia e dos gover-nos civis.

Na opinião da historiadora Zenilda Moreira Tromm, o Brasil já vivia numa ditadura, mesmo que não tivesse um nome específico

Historiador Maikon Jean Duarte salienta os fatores que colaboraram para o fim da ditadura

DIVUlGAÇÃo

De acordo com o jornalista Humberto Trezzi, em reportagem publicada pelo jornal Zero Hora em novembro de 2012, os arquivos guardados em casa pelo coronel Julio Miguel Molinas Dias, assassinado aos 78 anos, evidenciam que o aparelho repressivo militar tentou maquiar o cenário do Atentado Rio-centro. A ideia era fazer com que a explosão dentro de um carro parecesse obra de guerrilheiros esquerdistas.

Humberto também revelou que, em meio aos papéis, há orientações para simular o furto do veículo pertencente ao sargento Guilherme, morto na ex-plosão, no sentido de sumir com pistas que seriam comprometedoras.

José Luís Costa, que também assina a reportagem, cita que os documen-tos contêm medidas de prevenção para segurança de militares, recomenda-ções para não serem fotografados e relação de bombas e artefatos explosivos no paiol do quartel, usados para destruição coletiva e individual.

O Atentado do Riocentro foi um ataque à bomba no Centro de Conven-ções, Rio de Janeiro, na noite de 30 de abril de 1981, quando se realizava no local um show musical em protesto ao regime militar.

Guilherme Pereira do Rosário, sargento, e Wilson Luiz Chaves Machado, capitão, eram os agentes supervisores do evento. Os dois foram as únicas víti-mas do episódio. Guilherme faleceu e Wilson ficou gravemente ferido.

Bomba no Riocentro: documento aponta farsa de militares

DIVUlGAÇÃo

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Diagramação de Gabriela Kugelmeier | Edição de Miriã Mews

Joinville - Abril 2014 PRIMEIRA PAUTA08 Brasília

Universidade teve foco de resistência Logo após o governo militar assumir o poder na capital, a Universidade de Brasília foi invadida pelo Exército, que chegou preparado para o conflito

Mayara Hoffmann [email protected]

Rodrigo Pereira [email protected]

Brasília, 50 anos após o início da ditadura militar no país. A capital, fundada três anos antes do regime ser estabelecido, possui uma das universidades invadidas pelos militares nove dias após a implantação do governo militar no poder

MAyARA hoffMAnn

Longos passos ecoam em um grande corredor cheio de curvas e dúvi-das. A estrutura antiga

caracteriza o “minhocão”, exten-sa passarela localizada dentro da Universidade de Brasília (UnB). O caminho até o departamento de comunicação remete lem-branças que nem mesmo presen-ciamos, como conflitos armados entre militares e estudantes prisão aos professores. Com pichações pelo pedido de liberdade, as esca-darias levam ao subterrâneo, onde se passaram histórias marcantes que tiveram início em 1964, o ano da primeira invasão.

O início da história da Uni-versidade de Brasília se dá no ano de 1962. A data é 21 de abril, um sábado. Esse foi o dia marcado para a inauguração. Havia um projeto de fazer da UnB uma uni-versidade modelo, fundada sob a promessa de reinventar a educa-ção superior, entrelaçar as diversas formas de saber e formar profis-sionais engajados na transforma-ção do país. A ideia da construção do campus surgiu do cruzamento de três mentes, a do antropólogo Darcy Ribeiro, que definiu as ba-ses da instituição, a do educador Anísio Teixeira, que planejou o

modelo pedagógico, e por fim, a do arquiteto Oscar Niemeyer, que o transformou as ideias em prédios. A universidade foi a pri-meira instituição do Brasil a ser

dividida em institutos centrais e faculdades, criando os chamados cursos-tronco, nos quais os alunos tinham uma formação básica e na sequência estudavam as matérias específicas. Brasília tinha apenas dois anos quando ganhou a sua universidade federal. Seus cria-dores desejavam unir o que havia de mais moderno em pesquisas tecnológicas com uma produção acadêmica capaz de melhorar a realidade brasileira.

Porém, a história da UnB começa a se misturar com a situ-ação política do Brasil nos anos 1960, quando, antes do golpe, a instituição já era tida por setores conservadores com um foco do pensamento esquerdista.

O historiador e professor da Universidade de Brasília, Daniel Faria, conta que mesmo com o projeto inicial de fazer da UnB uma universidade democrática, o plano não foi adiante por conta da ditadura que o Brasil passou na década de 1960. “Existia um pro-jeto com uma boa intenção, de-mocratizar a universidade, e hoje, mesmo 50 anos depois do golpe, vivemos a herança da ditadura, te-mos histórias de professores e alu-nos que fizeram valer e lutaram para que o conceito de inovação

não se perdesse”. Nove dias após os militares as-

sumirem o poder político, a UnB foi invadida por tropas do exérci-to. Ocorreu invasão nas salas de aula, a biblioteca ficou interditada e cada vez mais a universidade era vista como foco de resistência. O movimento estudantil, liderado por Honestino Guimarães, repre-sentava o centro da luta contra a ditadura, já que a universidade estava sem sindicatos trabalhistas estruturados.

Com grandes nomes no con-trole, a UnB se encon-trava muito próxima ao poder militar, o que de certo modo tornou a instituição uma das mais atingidas pela di-tadura que se instau-rou após o golpe de 1964, levando profes-sores e universitários a serem perseguidos e acusados de subver-sivos. Daniel Faria relata que no ano seguinte, a universidade en-trou em um ciclo de decadência, “Com professores demitidos sob alegação de serem os responsáveis pelo ‘ambiente de perturbação’, a universidade passou por uma grande crise”. Neste ponto, o his-toriador se refere aos 15 professo-res demitidos em 1965 pelo então reitor Zeferino Vaz, que justificou as demissões como sendo uma “medida disciplinar”.

Fartos do clima de instabili-dade que se instalou, houve rea-ção. E 223 dos 305 professores da instituição demitiram-se logo em seguida. Marco Antônio Rodri-gues Dias, ex-professor da univer-sidade, contou que com a crise e a baixa qualidade, a UnB teve que improvisar professores e contratar ex-alunos sem experiência profis-sional em pedagogia, e outros sem qualificação para se manter. Com isso, os estudantes tiveram moti-vo para se manifestar. Na época, houve pessoas em Brasília apoian-

do o fecha-mento da instituição, o que pro-vocou a reação de órgãos de segurança e do ministro das relações exteriores.

M a r -co Antônio disse que pessoas influentes dentro do governo queriam uma universidade de qualidade, e para isso devia-se contratar professores qualifica-dos. dando a eles uma garantia de que teriam liberdade de ação. “Não se falou nisso, mas o limite era que os professores não se opu-sessem à ordem constituída, que não participassem de ações que o governo considerava subversivas.” Com a liberdade de ação, os pro-

fessores tinham uma liberdade re-lativa, mas não um controle dire-to e imediato. A partir do acordo, era visível professores da área de economia, ciências sociais e co-municação que tinham posições políticas e um histórico contrário ao governo da época atuando em sala de aula.

O ex-professor contou que o estudante de comunicação da UnB, na época, poderia ter uma visão crítica do que ocorria den-tro do departamento, mas ha-via limites. Quando algo saía do combinado, era como se houvesse uma confusão. Disse ainda que as crises não foram gerais, mas loca-lizadas nos departamentos de mú-sica, desenho, arte e na faculdade de medicina.

Em 1976 as contradições do governo militar começaram a se fortalecer. Marco Antônio co-menta que pela universidade ser em Brasília, acaba sendo muito sensível ao que ocorre no gover-no federal. “Hoje em dia é assim, mas na época do regime militar era muito mais”. Segundo ele, quando o ex-presidente Ernesto Geisel assumiu o poder em 1974, anunciou medidas para promover a distensão entre a necessidade de eliminar a censura e outras me-didas para criar um novo clima político no país, “o que causou mal-estar já que quando o regi-me ditatorial quer se reformar, as contradições aparecem.”

“Pela universidade ser em Brasília, acaba sendo muito sensível ao que ocorre no governo federal. Hoje em dia é assim.” “MARCO ANTÔNIOEx-professor

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Joinville - Abril 2014PRIMEIRA PAUTA 09

Diagramação de Gabriela Kugelmeier | Edição de Miriã Mews

Brasília

Acordo manteve a ordem na instituiçãoA Universidade de Brasília

passou por períodos delicados durante o regime militar por conta da sucessão de reitores e do conservadorismo que persistia, algo que só terminou no início da década de 1980, com a nomeação do então professor Cristovam Buarque, eleito pela comunidade universitária para assumir a rei-toria. De acordo com o ex-pro-fessor e vice-reitor da UnB nos 1970, Marco Antônio Rodrigues Dias, a dinâmica adotada pela universidade nas suas três fases históricas era distinta. “O clima da universidade na época em que fui membro do gabinete era o mesmo desde a sua fundação: uma universidade que ajudaria a construir os rumos da socieda-de. A maioria dos que buscavam a UnB sabiam que estava sendo construído um projeto novo de educação”, a� rma.

Porém, em 1968, um novo elemento passou a atuar no cená-rio administrativo da universida-de, fazendo com que a repressão passasse a funcionar de uma ma-neira mais estruturada em termos de organização e ideologia. Era a chamada Doutrina de Segurança Nacional. “Essa doutrina foi ori-ginada nos EUA e sua aplicação no Brasil teve in� uência france-sa muito grande por conta dos militares franceses da Guerra da Argélia, que desenvolveram te-orias para o Estado se manter, e para aqueles que detêm o poder se manterem no Estado. É pre-

ciso identi� car os inimigos pre-viamente e combatê-los, como no caso de Brasília, Honestino Guimarães, líder do movimento estudantil, foi identi� cado e li-quidado imediatamente”, explica o professor.

Um ponto que Marco Antô-nio destaca em seu livro “UnB e Comunicação nos Anos 1970” é o denominado ‘Acordo Tácito’, que segundo ele, vigorou na UnB entre 1969 e 1976. Ele explica

que o acordo permitia aos pro-fessores a liberdade de expressão, a qual avalia como “difícil de ser compreendida pelos que analisa-vam o movimento militar”. Tal acordo determinava ainda que os professores deveriam recusar-se a participar de movimentos consi-derados revolucionários pelos mi-litares. No início dos anos 1970, os professores da UnB passaram a ter os salários mais elevados do país, contratações se multiplica-ram, a pesquisa foi estimulada e um plano ambicioso de pós-gra-duação foi lançado. “No entanto, em 1976, a situação política no

país se complicou. Responsáveis pela gestão da Universidade era identi� cados com grupos radi-cais do regime, e, a partir daí, o Acordo Tácito deixou de existir. Expulsões arbitrárias de estudan-tes se multiplicaram e professores que se opunham a estas medidas eram levados à renúncia ou ao de-sespero”, relata o professor.

Em maio de 1976, as maio-res reivindicações eram para a melhoria do ensino, professores mais quali� cados e contra a cen-sura. À medida que a repressão foi atuando, o movimento ra-dicalizou e passou a ser contra o governo, que adotou medidas com intuito de neutralizar o movimento estudantil, o que na verdade fomentou ainda mais manifestantes. “Quanto mais violência havia, mais a juventude estudantil agia no sentido de se opor, mesmo que inicialmente muitos não fossem contra o regi-me, mas passaram a atuar contra”, conclui Marco Antônio.

Um novo período de obscu-rantismo total começou a fun-cionar e durou praticamente dez anos. Um dos impactos indiretos foi a eliminação, na segunda par-te dos anos 1970, da presença do curso de comunicação da UnB na de� nição de políticas nacio-nais de Comunicação.

Veja mais fotos de Brasília e o pod-cast da entrevista com Marco An-tônio Dias no sitewww.primeirapauta.jor.br

Sociólogo avalia o curso de comunicação na UnB

Venício Artur de Lima, sociólogo e professor aposentado da UnB relata a situação da época

MAYARA HOFFMANN

O jornalista, sociólogo e pro-fessor aposentado da Universi-dade de Brasília, Venício Artur de Lima, conta que uma das di-� culdades de falar sobre a UnB em relação ao governo da época do golpe militar se dá, principal-mente, pelo clima de incerteza que havia se instalado. “Quando cheguei na UnB, no segundo se-mestre de 1970, a universidade já tinha passado por duas crises. Eu entrei na universidade num perí-odo em que havia um esforço de-liberado por parte da instituição de tentar reconstruir certas áreas. Porque naquela época não havia independência política. Era um governo nomeado. Era um gover-no militar.”

Convidado pelo então profes-sor e vice-reitor da UnB na década de 70, Marco Antônio Rodrigues Dias, para fazer parte do corpo docente da instituição, Venício integrou a equipe num momen-

to em que se tentava recompor a área de comunicação. Após duas crises radicais, uma primeira que desmontou inteiramente a uni-versidade com a saída de boa parte do grupo original de professores e num certo sentido, o seu projeto; e uma segunda que ainda é consequên-cia da primei-ra, existia um clima.

O pro-fessor lembra da atmosfera que predominava na instituição era de medo, incertezas e di� cul-dades. “Havia um esforço muito grande da instituição e muito par-ticularmente do professor Marco Antônio, que contava com apoio da universidade para restaurar a área de comunicação”, conta. Há

muita fantasia em torno da Facul-dade de Comunicação Pompeu de Sousa, já que ela nunca existiu.

Pompeu de Sousa foi secre-tário de imprensa do primeiro-ministro Tancredo Neves e con-

vidado por Darcy Ribeiro para ajudar na criação da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasilia, da qual seria professor. Com a instaura-ção da ditadura, foi demitido. “Eu vim numa época

em que não existia a Faculdade de Comunicação, era um depar-tamento ligado à antiga faculda-de de Estudos Sociais Aplicados. Então fui convidado pelo chefe de departamento, que tinha o apoio da reitoria, para reconstruir a área”, destaca o professor.

Marco Antônio Dias falou direito de París sobre o acordo tácito e a Doutrina de Segurança Nacional

ARQUIVO PESSOAL

Militares invadem a Universidade de Brasília durante repressão na década de 1970

ARQUIVO CEDOC

“Porque naquela época não havia independência politica. Era um governo nomeado. Era um governo militar”““Porque naquela época ““Porque naquela época não havia independência “não havia independência

VENÍCIO DE LIMASociólogo

“Quanto mais violência havia, mais a juventude estudantial agia no sentido de se opor”““Quanto mais violência ““Quanto mais violência havia, mais a juventude “havia, mais a juventude

MARCO ANTÔNIO DIASEx-professor

Page 10: Primeira Pauta - Edição 108 - 50 anos do golpe militar

Diagramação de Ana Paula Ponick | Edição de Jean Patrick da Silva

Joinville - Abril 2014 PRIMEIRA PAUTA12 Imprensa

Marcos [email protected]

A reportagem que você começou ler agora nas-ceu de uma reunião de pauta. Foi previamen-

te discutida antes de ser executa-da. Já no primeiro encontro do se-mestre ficou acertado quem seria o repórter, o fotógrafo e princi-palmente o foco da matéria. Pre-cisou ser planejada para oferecer ao leitor um material completo e atraente.

A rotina de qualquer jornal, impresso ou não, pequeno ou grande requer a reunião de pauta

– termo usado para aquele mo-mento em que jornalistas e edi-tores, mesmo na correria do dia a dia, definem os próximos assuntos que estarão nos jornais.

No jornal Extra não era dife-rente. Na redação, que funciona-va na rua Otto Boehm, centro, estavam o editor Adelmo Muel-ler, o colunista Germano Jacob e o jornalista Ronaldo Cavanake. A reunião de pauta iria começar. Os três estavam no corredor do jornal. Sem que a discussão sobre qualquer tema ao menos iniciasse, o local foi invadido por militares. Adelmo Mueller, que atualmente

mora em São Francisco do Sul, se emociona ao lembrar o que passou naquela tarde de segunda feira, do mês de março, de 1980. “Agarraram-me e disseram: você vai dar uma volta. Olhei para o Germano, para o Cavanake... nos colocaram no camburão e nos le-varam para Florianópolis”, recor-da.

Na capital catarinense come-çou o interrogatório. Os militares queriam saber quem escreveu a crônica “Entre a cruz e a espada”, que revelaria os mandantes da ex-plosão no Rio Centro, em 1974. Antes de se mudar para Joinville, Mueller trabalhou no Rio de Ja-neiro como jornalista na década de 70. “Eu tinha certeza que eles (generais Newton Cruz e Otávio Medeiros) mandaram explodir a bomba. Eu estava no episódio”, conta Mueller.

O jornalista e radialista José Eli Francisco testemunhou as prisões e transmitiu o episódio pela rádio Cultura AM. Segundo ele, “o Jornal ‘Extra’ diário foi a maior resistência, mesmo após o golpe e, em razão disso, entraram lá e o que viram na frente foram prendendo. Saíram algemados”, diz Chico, como é conhecido nos meios de comunicação.

Horas depois, todos do Extra já estavam soltos. Foi apenas uma detenção, como o próprio Adel-mo Mueller se referiu, durante a entrevista, entre um cigarro e ou-tro sentado à sua varanda de uma casa simples.

De fato, este foi o único regis-tro de perseguição a integrantes da imprensa em Joinville. Segun-do o jornalista e historiador Apo-linário Ternes, que passou pelos jornais Extra e AN, a cobertura nesse período final da ditadura, no final de 1970 e começo da dé-cada de 80, foi normal. “Foi tran-quila. Até porque o fato nacional não era o forte. Naquele momen-to era menor”.

No Jornal A Notícia, o princi-pal da cidade, apenas um repórter cuidava da editoria de Geral. Os fatos que aconteciam em Joinvil-le ocupavam meia página de AN, que tinha o formato gráfico stan-dard. Era uma cobertura limitada pelas condições atuais, como a di-ficuldade em contratar mais pro-fissionais.

Mesmo com pouco espaço a censura tratou de vigiar o conte-údo apurado e publicado pelos jornais. Ternes lembra que um oficial do batalhão ligava para as redações. “Ele dizia: tal assunto

não merece publicação. Não pu-blique nada, vão se incomodar.”

Três emissoras de rádio esta-vam em funcionamento quando eclodiu o golpe, em 31 de março de 1964. A Difusora AM, inaugu-rada em 1941, a Colon AM, em 1957 e a Cultura AM, em 1959. José Eli Francisco, que era repór-ter e apresentador, afirma que pior que a censura era a autocensura. “Tive medo de divulgar certas notícias, mesmo sendo liberadas. Poderia vir liberada, como uma arma para te pegar e descobrir se tu eras contra ou a favor do gover-no”, afirma.

Além dos jornalistas, os veí-culos de comunicação também sabiam que não podiam desobe-decer às ordens militares sob pena de sofrer as consequências. Para Apolinário Ternes, não houve censura direta, apenas a telefôni-ca. “Como a imprensa de uma for-ma geral era obediente, não havia motivo para alguém sair contra a revolução (termo usado pelos militares e imprensa da época). E as matérias políticas (previamen-te censuradas) nada tinham a ver com os fatos locais. Esta foi a cen-sura que existiu em Joinville”, de acordo com o jornalista e histo-riador Apolinário Ternes.

Imprensa em Joinville foi obedienteÚnico jornal que resistiu teve diretor, colunista e jornalista detidos. Todos foram levados para Florianópolis, interrogados e liberados horas depois

Adelmo Muller, preso em 1980 dentro do Jornal Extra, se emociona ao falar sobre o regime

MARcoS PEREIRA

JEAn PATRIck DA SIlvA

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Diagramação de Bruna Cardoso | Edição de Gabrielle Dias FigueiredoDiagramação de Bruna Cardoso | Edição de Gabrielle Dias Figueiredo

Joinville - Março de 2014 PRIMEIRA PAUTA10 Presos Políticos

Joinvilense lembra prisões que sofreu

Ainda hoje, Edgar descreve com carinho o livro de que mais gostava quando jovem. Por de trás dos ócu-los redondos, os olhos flamejantes e orgulhosos revelam uma paixão en-quanto declama um trecho da obra de Cervantes, envolvida por uma capa vermelha em tom de vinho com textura em camurça, que prote-gia a história de um cavaleiro cômico e alegre. O clássico Dom Quixote de La Mancha era uma das obras que Edgar Schatzmann guardava junto às lembranças que trouxera da Rús-sia, do período em que esteve na ex-tinta União Soviética (URSS), e que serviu para incriminá-lo em uma das vezes em que foi preso pelos milita-res durante a ditadura.

Guerreiro e sonhador, o per-sonagem do espanhol Miguel de Cervantes, de certo modo, se pa-recia com o cavaleiro da vida real, mas esse último, ao invés da arma-dura velha e do cavalo Rocinante, munia-se de ideo-logia. Não lutava contra os cavalei-ros medievais e grandes moinhos, mas contra uma ditadura sufocan-te e contra grandes muros de repres-são. Edgar Shatz-mann, 74 anos, foi um dos 70 presos políticos em Join-ville durante o regime ditatorial, entre 1964 e 1985, segundo levan-tamento realizado pelo historiador joinvilense Maikon Jean Duarte.

A trajetória política de Schat-zmann começou aos 14 anos, na época em que ia à biblioteca de Joinville assiduamente para ler sobre comunismo. “Eu chegava na biblioteca e dizia: eu quero um livro sobre comunismo e as meninas que trabalhavam lá,me olhavam assustadas”, relembra o aposentado. Já visto como revo-lucionário e intitulado comunis-ta, ainda na adolescência teve a primeira conquista social. Edgar e os demais colegas do movimen-to estudantil foram responsáveis pela criação da primeira escola pública da cidade voltada para o ensino médio, a Escola Estadual Governador Celso Ramos, fun-dada pelo então governador de mesmo nome.

Aos 23 anos, Edgar recebeu o convite para estudar na União Soviética. Deixou o emprego de bancário e permaneceu por dois anos sendo preparado em uma es-pécie de pré-vestibular para então participar do partido comunista. Em 1966, dois anos depois em que o regime militar havia se instala-do no Brasil, voltou ao país como clandestino e para se proteger foi estudar em Curitiba, local de sua primeira prisão, em 1967.

Assim como Dom Quixote, que tinha como inspiração a ama-da Dulcinéia del Toboso, a his-tória de Edgar se completa com a de Lúcia. Após o casamento, os dois começaram a enfrentar juntos a ditadura. Em solenida-de na Câmara de Vereadores de Joinville, no último 11 de março, o Centro de Direitos Humanos Maria da Graça Brás realizou um evento em memória aos 50 anos do Golpe Militar, no que também comemorava o 35 anos de funda-ção. Emocionando as autoridades

políticas e o público presente, Lúcia leu uma carta em agra-decimento a todos que os ajudaram de alguma forma nos momentos difíceis de perseguição e narrou cada detalhe da segunda prisão de Edgar, em 1971.

O casal volta de bicicleta da fei-ra, quando Lúcia percebe que estão

sendo seguidos. Entendendo que seria preso, Edgar propõe à Lúcia que vá para casa, enquanto ele acompanha os militares. Lúcia recusa e os dois vão juntos para a antiga delegacia, situada na rua Itajaí, onde hoje é o Sindicato dos Bancários de Joinville. Em uma sala sem janelas, o casal passa o dia abraçado, falando apenas por meio de gestos.

À noite, Lúcia é solta, mas Ed-gar permanece na delegacia até ser enviado a Florianópolis, e depois para Curitiba. Neste período, Lúcia perde o contato de Edgar e o procura por todos os cantos das três cidades, o que incomoda profundamente os militares. “Se você não parar de ir atrás do seu marido subversivo, vamos dar cabo de você”, lembra de uma das ameaças que sofreu de um coman-dante, em uma das vezes que foi procurar por Edgar.

Eluana [email protected]

Edgar Schatzmann, em sua casa, em frente a estante de livros durante a gravação do documentário Ditadura Reservada, em 2010

DIvUlGAção/DITADURA REsERvADA

Depoimento de Edgar Schatzmann, que chegou a ser preso por ter livro com capa vermelha, aponta marcas físicas e psicológicas deixadas pelo regime

Relatos de uma ditadura reservadaA história de cumplicidade de

Edgar e Lúcia chamou a atenção da jornalista Sabrina Elisa Souza e do repórter fotográfico Fabrício Porto, que idealizaram a produ-ção de um curta-metragem para registrar alguns dos relatos do ca-sal Shatzmann. “Estávamos con-versando sobre a história do seu Edgar e da dona Lúcia e a ideia era fazer um curta-metragem con-tando a história dos dois inseridos no contexto de 1964, falando das prisões do senhor Edgar”, conta Fabrício.

O projeto acabou ganhando maiores proporções quando pen-saram em gravar um documen-

tário a partir das histórias dos presos políticos de Joinville sendo costurado pela história do casal.

O registro destas histórias chama-se Ditadura Reservada, gravado em 2010. O documentá-rio foi aprovado no mecenato e é fruto de uma parceria com os his-toriadores Maikon Jean Duarte e Bruno Silva, que auxiliaram na localização e nas entrevistas dos presos políticos de Joinville.

O roteiro perpassa pela his-tória de Edgar e Lúcia e é inter-calado com os depoimentos de jornalistas e políticos da época, além de Júlio Serpa, Rosemaire Bittencourt e Osni Rocha, tam-

bém presos políticos durante o período do regime militar, que relatam as perseguições e torturas sofridas nas prisões.

Os relatos mostram que os mi-litares de Joinville mantinham-se vigilantes a fim de manter a or-dem na maior cidade do Estado, reprimindo qualquer atividade que pudesse parecer suspeita. Por isso, as reuniões dos que eram contrários ao regime militar e dos militantes do Partido Comunista do Brasil, considerado ilegal des-de 1946, costumavam acontecer em festas de primeira comunhão, aniversários, casamentos e até em piqueniques.

DIvUlGAção/DITADURA REsERvADA

Lúcia Schatzmann, na varanda de casa durante a gravação do documentário Ditadura Reservada, relembra momentos que viveu na ditadura

Eu chegava na biblioteca e dizia: eu quero um livro sobre comunismo e as meninas que

trabalhavam lá me olhavam assustadas

RElEMBRA

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Joinville - Março 2014 PRIMEIRA PAUTA

Diagramação de Bruna Cardoso | Edição de Gabrielle Dias Figueiredo

11 Presos Políticos

Joinvilense lembra prisões que sofreu

Vítimas de alguma violação dos direitos humanos de 1946 a 1988

530 em Santa Catarina

Número de perseguidos na região durante a ditadura

32 em Joinville

23 em São Francisco do Sul

2 em Araquari

1 em Jaraguá do Sul

Número de presos em 1964

12 em Joinville

A ditadura na região

* Dados concedidos pelo historiador Maikon Jean Duarte e pela Comissão Estadual da Verdade

Lúcia Schatzmann, na varanda de casa durante a gravação do documentário Ditadura Reservada, relembra momentos que viveu na ditadura

Pesquisa levanta número de presos em JoinvilleO levantamento do número-

de presos políticos em Joinville e região, dos respectivos nomes e contatos começou em 2008 com o historiador Maikon Jean Duarte em conjunto com duas colegas do curso de história. Sua origem se deu a partir de um tra-balho proposto para consolidar um ciclo de palestras no Centro de Direitos Humanos (CDH), ao qual Maikon é � liado desde 2003, e a partir das pesquisas surgiram pales-tras para escolas públicas e priva-das e movimen-tos sociais, além de formação para professores sobre a ditadura militar em Join-ville.

“Falamos do golpe militar e esquecemos que esse golpe não foi só militar, ele teve apoio civil, de setores da Igreja e do empre-sariado, que é muito evidente em Joinville”, acentua o historiador.

Para ele, os aparatos de promo-ção foram militares, mas o apoio foi civil, principalmente,dos grandes empresários que tiveram uma expansão de negócio exorbi-tante na época, como a Fundição Tupy, citada como exemplo nos trabalhos de pesquisa de Mai-kon. Segundo o historiador, não se pode considerar o período da

ditadura militar em Joinville sem levar em conta o desenvolvimen-to socioeconômico, e principal-mente o industrial, durante a década de 70 na cidade.

Maikon também contribui com a Comissão Estadual da Verdade Paul Stuart Wright, criada há um ano, e tem apurado os dados e os nomes de todos os presos políticos de Joinville e re-gião, que contabilizam 70 pesso-

as. O que tor-na o número ainda mais expressivo é a Operação Barriga Ver-de, de 1975. A ação mo-bilizou toda a força mili-tar de Santa Catarina e

prendeu diversas pessoas ligadas ao Partido Comunista do Brasil. Estima-se que, em todo o Estado, foram 46 presos. O registro faz parte da série de reportagens do jornalista Celso Martins, com-piladas e publicadas no livro Os Quatro Cantos do Sol-Operação Barriga Verde. O joinvilense Ed-gar Schatzmann foi preso pela terceira vez, durante a operação.

A prisão do dia 5 de dezem-bro de 1975 foi a última de Edgar. Das torturas, lembra de quando colocavam embaixo da unha dos presos um � o de aço para fazê-los

sentirem dor, cuspindo insforma-ções sobre o Partido Comunista. A comida era estragada ou exces-sivamente salgada, a qual o famin-to comia sem avaliar sabor, depois sem água para beber, se via obri-gado a matar a sede com a água da privada. Edgar contribui ucom a Comissão Estadual da Verdade e relatou as tortura sofridas, assim como Júlio Serpa, também pre-so político Joinvilense, ligado ao Partido Comunista na época.

Em Joinville, Lúcia Schatz-mann se unia às esposas dos de-mais presos políticos que já es-tavam em Florianópolis. Edgar conta que o prefeito em exercício na época, Pedro Ivo Campos, convocou todas as mulheres para uma reunião, onde anunciou que a Prefeitura daria, mensalmente, uma cesta básica para cada esposa, além de disponibilizar uma Kom-bi para levá-las semanalmente ao DOI- Codi, localizado na ilha , em Canasvieiras, onde estavam presos.

Em uma das visitas, Lúcia, acompanhada de Zilma Serpa, esposa de Júlio Serpa, conta que após a chegada na capital, foram lançadas dentro de um cambu-rão com destino à prisão onde estavam os maridos. O veículo era dirigido em alta velocidade e arre-messava as duas contra as paredes do carro. Zilma estava grávida na época e por sorte não sofreu ne-nhuma lesão.

Em 1978, Edgar foi solto, visi-velmente debilitado pela repressão, mas ainda com vontade de viver, pois a vida lhe presenteava com a chegada da segunda � lha, Gracie-la. Após a abertura política e lega-lização do PCdoB (Partido Comu-nista do Brasil), Edgar, Lúcia e as duas � lhas começaram a militar no Partido em Joinville, e Edgar ocu-pava o posto de presidente, mas aos poucos o entusiasmo esmaeceu à medida que as pessoas mostravam-se simpatizantes e não se � liavam a

ARQUIVO PESSOAL

Maikon Jean Duarte iniciou levantamento de dados sobre a ditadura militar em Joinville em 2008

Caso do deputado Rubens PaivaUm dos casos mais emble-

máticos do Regime Militar foi o desaparecimento e assassinato do deputado e engenheiro civil, Ru-bens Paiva, crime con� rmado 40 anos depois pela Comissão Na-cional da Verdade.

Em primei-ro depoimento à comissão, o coronel Paulo Malhães, pri-m e i r a m e n t e , confessou ter se desfeito do Cor-po do deputado entre 20 e 22 de janeiro de 1971.

Pressionado, Malhães revelou detalhes sobre como enterrou o corpo de Paiva e o lançou ao mar.

Em depoimento no dia 25 de março, uma semana depois do primeiro relato, Malhães negou ter participado do crime e decla-

rou só ter assumido a culpa por pena da família de Paiva, que há anos esperava por notícias do de-putado.

“Eu só disse que fui eu porque eu acho uma história muito triste quando a família diz que leva 38

anos querendo saber o paradeiro do cor-po.

Não sou senti-mental, não. (Falei) para não começar uma guerra para sa-ber onde estava o corpo”, justi� cou o coronel.

Em depoimento com duração de 2 horas e 11 minutos,

Malhães explicou o funciona-mento da Casa da Morte, centro de tortura clandestino situado em Petrópolis e utilizado pelos mili-tares nos anos 1970 que, para ele funcionava apenas “como centro

DIVULGAÇÃO

Rubens Paiva foi assassinado em janeiro de 1971

partido, situaçãocontrária a espera-da por Edgar.

Três prisões que totalizam três anos e meio. Hoje, o aposentado, amante da liberdade, não enxerga o socialismo nem o capitalismo como solução para os problemas sociais, mas acredita que a junção das duas ideologias podem se completar. “O capitalismo é muito bom em pro-duzir riquezas e o socialismo tam-bém é muito bom para distribuí-las, então, acho que os dois, juntos, po-dem ser a solução.”

Eu só disse que fui eu porque eu acho uma

história muito triste...

JUSTIFICA

de convivência”, de onde conse-guiam arrancar informações dos torturados, além de induzi-los a traírem os grupos aos quais per-tenciam, trabalhando in� ltrados para os militares. Malhães falou ainda das sanções que seus fami-liares passaram a sofrer logo após as declarações à Comissão.

“Falamos do golpe militar e esquecemos que este golpe não foi só militar. Ele teve o apoio civil, de setores da Igreja e do empresariado, que é muito evidente em Joinville““Falamos do golpe militar e ““Falamos do golpe militar e

esquecemos que este golpe “esquecemos que este golpe

MAIKON JEAN DUARTEHistoriador

Page 13: Primeira Pauta - Edição 108 - 50 anos do golpe militar

Joinville - Abril 2014 PRIMEIRA PAUTA

Diagramação de Ana Paula Ponick | Edição de Jean Patrick da Silva

13 Diagramação de Ana Paula Ponick | Edição de Jean Patrick da Silva

Imprensa

Único jornal que resistiu teve diretor, colunista e jornalista detidos. Todos foram levados para Florianópolis, interrogados e liberados horas depois

Depois das prisões no jornal Extra, outro incidente mobilizou a imprensa, policiais militares e até o então governador do esta-do, Colombo Salles. Em 1972, Apolinário Ternes, que ainda tra-balhava no Jornal A Notícia, foi preso por publicar uma nota, em 19 de novembro, envolvendo um soldado da Polícia Militar. O jor-nalista conta que foi perseguido e humilhado. “Fui preso pela PM e espancado na rua. O próprio co-mando mandou que um soldado me perseguisse e me batesse. Fui espancado fortemente. Sofri uma severa surra”.

A nota publicada na editoria de Polícia informava que um sol-dado, já condenado pelo roubo de uma lambreta, ainda estava

exercendo a profissão. O acusado de cometer o crime montou uma campana para agredir o profis-sional, que foi surpreendido nas imediações do próprio quartel da corporação.

O fato teria demonstrado como era o tratamento das autoridades militares com a imprensa na época. Pra Apolinário Ternes, o ocorri-do nada tem a ver com a ditadura. “Tem a ver apenas com a arrogân-cia e a prepotência com que as for-ças militares, inclusive das polícias civil e militar tratavam a imprensa, mesmo quando o assunto não es-tava vinculado à política. Eles en-tendiam que jornalistas podiam ser espancados e que nós tínhamos que ter medo deles”.

O policial acusado de agredir o

jornalista foi preso e expulso após intervenção do governador, que pediu urgência nas investigações sobre o caso.

Jornalista agredido em público

Em poucos minutos no arquivo histó-rico de Joinville observando os jornais da ci-

dade na época do golpe, é possível perceber que as manchetes e textos colocam o ato do dia 31 de

março de 1964 e os próximos passos do governo militar como algo de positivo.

O jornal mais próximo dessa data é o A Notícia de 5 de abril de 1964. Uma das manchetes desse dia era:

“Comunistas chineses tinham plano para matar Lacerda”, afirmando que o comunismo estava presente no país. Tam-

bém foi publicada nessa edição uma carta aberta do prefeito joinvilense Helmut Fallgatter, agradecendo aos militares. No mesmo o dia, a questão do comunismo foi destaque em mais uma reportagem. A manchete era a seguinte: “Luta de todas as frentes pela erradicação total do comunismo”. Exatos 20 dias depois, o jornal publicou a manchete: “Somos brasileiros e queremos um Brasil para nós, brasileiros”. Essa era uma frase dita pelo Coro-nel do 13º BC no discurso de agradecimento ao povo de Join-ville pela participação na Marcha da Família com Deus pela Liberdade. O prefeito Helmut Fallgatter também teve sua carta de agradecimento publicada na mesma edição.

Dois meses depois, no dia 26 de junho de 1964, a recuperação da economia do país era destaque no jornal. A mesma linha editorial continuou no ano

seguinte. No aniversário de um ano do golpe militar, o Jornal de Joinville publicou uma matéria com a manchete de uma

fala do presidente Castelo Branco. “Devemos encarar a revolução como um ideal de tranquilidade, de progres-so e realizações”. A pouca resistência por parte dos jor-nais estava nítida. Um dos jornais que tentavam andar

à margem deste contexto foi o “Extra”, só que veiculado alguns anos mais tarde. Na edição de janeiro de 1980, já bem ao fim da ditatura e no começo da abertura política promovido pelo último presidente militar, João Batista Fi-gueiredo, a manchete do “ Extra” era: “O regime não quer eleições”, com forte engajamento político. Em 1981, uma pá-gina de opinião falava sobre a crise no governo militar. Durante o regime, e principalmente no início, os jornais de Joinville co-mungavam do mesmo pensamento que a ditadura pregava. Pelo

menos é o que essas manchetes nos falam.

Manchetes eram de aprovação logo após o golpe

SAlMo DUARTE / AgêncIA RbS

Apolinário Ternes, jornalista espancado por soldado próximo ao quartel da PM

Falar do golpe e não citar o mistério envolvendo o jornalista Vladimir Herzog é o mesmo que contar uma história incompleta. Com apenas 38 anos de idade, casado e pai de dois filhos, o diretor de jornalismo da TV Cultura foi encontrado morto nas dependências do 2º Exército, em São Paulo. O jornalista foi preso por oficiais do regime militar em 25 de outubro de 1975.

Na época, o comando do Departamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), chegou a divulgar que o jornalista teria se enforcado. Os movimentos sociais contra o ditadura discor-daram da versão apresentada pelo Exército e iniciaram vários movimentos. Um deles foi a realização de uma missa ecumênica, uma semana após a morte de Herzog, que reuniu mais de oito mil brasileiros. Todos pediam uma investi-gação mais apurada sobre o caso.

Em 1978, a família ganhou uma indenização do governo, que foi respon-sabilizado pelas torturas que levaram à morte do jornalista. O caso ficou na história, porque foi o primeiro processo com ganho de causa, de uma série movida por parentes das vítimas do regime militar contra o Estado.

Vladimir Herzog era apaixonado pelo jornalismo e cinema. Queria fazer um filme sobre Canudos. O projeto sairia do papel no ano de sua morte. A re-pressão silenciou um jornalista e calou uma produção cinematográfica.

Vladimir Herzog: suposto suicídio

FoToS DE JEAn PATRIck DA SIlvA

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Joinville - Abril 2014PRIMEIRA PAUTA14 Região

Exército recebeu apoio de empresas13º Batalhão de Caçadores de Joinville foi peça fundamental no golpe e durante o regime, aliando-se com o governo e com empresas locais

Wilson de Oliveira Neto, mestre em Patrimônio Cultural e Sociedade, a� rma que parte da cidade joinvilense se identi� cou com discurso do regime

PÂMELA RITZMANN

Adolfo [email protected]

Tudo começa no dia 1º de abril, conhe-cido popularmente com o Dia da Men-

tira. Não era uma farsa, não era uma estória, não era uma ilusão, muito menos um sonho. Era a data escolhida pelos mi-litares para implantar no país uma máscara de ferro blindan-do os olhos, atar os pés e as mãos; foi o dia escolhido para o nascimento de uma ditadura, nomeado por eles de revolução. O presidente João Goulart foi derrubado pelo Exército.

O golpe teve o apoio de po-líticos importantes, como José de Magalhães Pinto, governa-dor de Minas Gerais, e Carlos Lacerda, governador do antigo estado da Guanabara. Em Join-ville, o antigo 13º Batalhão de Caçadores apoiou o movimen-to militar e político responsá-vel pela renúncia do presidente João Goulart. O apoio do gol-pe de 64 e ao regime militar foi dado pelas elites sociais da cidade e por diversas institui-ções públicas e privadas, mui-tas das quais existem até hoje, o que torna o assunto muito embaraçoso. O comando des-ta guarnição recebeu diversos telegramas de apoio, assinados por autoridades públicas e ins-tituições privadas.

Durante os primeiros dias após o golpe, efetivos do 13º BC foram enviados para prote-ger lugares estratégicos, como estações de força e saídas da cidade. “Paralelamente, trata-ram de iniciar uma ‘campanha de esclarecimento’ público sobre o golpe e, naturalmen-te, recolheram em seu ‘xadrez’ diversas pessoas acusadas de ser comunistas”, explica o pro-fessor e pesquisador Wilson de Oliveira Neto. “Os milita-res ligados ao 13ºBC/62º BI representaram em nível local a principal Arma responsável pela condução do Regime Mi-litar no Brasil: o Exército. Em consequência, desempenharam diversas funções junto à socie-dade joinvilense do período.” Oliveira acredita que parte des-ta mesma sociedade apoiou o regime e se identificava com os discursos e as práticas dos mili-

tares do Batalhão. Em Joinville, a resistência ao Regime Militar ocorreu através da política insti-tucional, via MDB (Movimento Democrático Brasileiro), do mo-vimento estudantil, através dos alunos secundaristas e da antiga FURJ (Fundação de Apoio à Universidade do Rio de Janeiro), e do Partido Comunista, a par-tir da ilegalidade, que deu vazão às violências cometidas contra eles, durante a Operação Barriga Verde. “A resistência ao Regime Militar em Joinville é um tema instigante, porém pouco abor-dado”, revela.

Oliveira afirmou que duran-te os meses iniciais do Regime Militar, foram presas diversas pessoas. “Elas foram ‘recolhidas ao xadrez’ do 13º BC, conforme foi registrado na documentação produzida pelo próprio bata-lhão. Pelo que pude constatar, foram mais de trinta pessoas oriundas de outras cidades da re-gião além de Joinville.” Segundo o pesquisador, na época, o 13‘ BC funcionou como uma espé-cie de local de passagem, pois seus presos eram levados a Flo-rianópolis, onde há uma grande possibilidade de existência de Inquéritos Policiais-Militares. Várias pessoas conhecidas na cidade foram presas sob a acu-sação de serem comunistas. Para o professor Oliveira, autor do livro “O Exército e a cidade”, juntamente com as historiadoras Sandra Guedes e Marília Gervasi Olska, não dá para compreender a história política brasileira sem compreender a atuação do exér-cito durante o período.

“O Exército brasileiro, atra-vés do batalhão, teve ligações com as grandes empresas locais, em particular a Fundição Tupy, fato público e notório. Hans Dieter Schmidt apoiou o Gol-pe de 64 e, na ocasião, reuniu os funcionários da fundição e proferiu um eloquente discurso celebrando a rebelião contra o presidente Goulart”, diz Oliveira. Ao longo do regime militar, diver-sas � guras importante visitaram as dependências da Fundição Tupy, como por exemplo o então presi-dente Castelo Branco, em 1966, sendo coerente com a política de industrialização do país.

Peça “ Os Palhaços” foi censuradaOs militares vigiavam forte-

mente as ações de civis. A cen-sura da cultura e arte foram uma das ações mais notórias nessa época de ferro. A jornalista Tu-ane Roldão dá voz aos persona-gens que sofreram e vivenciaram o período do regime em Joinvil-le em seu livro Acanhado. “A forma como a ditadura e/ou o teatro marcou a vida dessas pes-soas ficou muito evidente em nossas conversas, e passar esse sentimento pelo meu texto foi um dos principais desafios que enfrentei”, revela. A sua maior descoberta foi a peça “Os pa-lhaços”, mas não era uma peça desconhecida do público join-vilense. “Mesmo que o grupo fosse amador, o espetáculo teve uma divulgação surpreendente nos jornais da época. E foi cen-surado.”

Tuane escolheu dedicar um capítulo inteiro a obra Os Palha-ços, escrita por Miraci Dereti, justamente por abordar a censu-ra, a repressão. Mas havia outras produções na cidade durante a ditadura, especialmente nos dez últimos anos. “É importante que as pessoas saibam que houve re-sistência em Joinville. Essa fama de cidade pacata e ordeira é um mito, não só naquela época, mas perpetua até hoje.” Em “Os Pa-

lhaços”, os personagens circenses estão em situações cotidianas. São políticos, religiosos e comu-nistas e até parte da plateia es-tão com os tradicionais narizes vermelhos, tendo muitas vezes seus discursos abafados ou res-pondidos em tom de sarcasmo e

deboche. Antes mesmo de levar seu texto ao palco da Harmonia Lyra, Deretti foi aconselhado a suspender as apresentações para evitar problemas com o governo militar. Foram feitas duas ten-tativas de apresentações: uma em agosto de 1968 e outra em outubro do mesmo ano. “A cen-sura do Miraci foi ‘de boca’, mais branda. O delegado era amigo dele, e ligou dizendo para não estrear a peça. Ou ele enviaria os policiais. Mas foi um caso à parte, este de Joinville.No res-

to do Brasil, as peças passavam por análise de uma comissão militar”, explica.O professor e produtor cultural Cristovão Petry disse que a peça não foi enviada para Brasília, mas so-freu a censura de qualquer ma-neira. “Se fosse publicada com certeza seria barrada. Todos os personagens da peça são deno-minados de palhaços. O públi-co também é chamado de pa-lhaço”, explica. “Um treco diz que estamos dando início a um espetáculo, cuja finalidade é di-vertir, sem fazer rir, dizer a ver-dade, sem fazer chorar, chamar as coisas pelo seu verdadeiro nome, sem ofender e sem criar problemas para ninguém e nem para nós.”

Petry é coordenador e dire-tor do grupo de teatro Abismo. Ele criou uma releitura da peça “Os Palhaços”. A peça já passou por seis cidades do estado. Em 2008, com recursos do Simdec (Sistema Municipal de Desen-volvimento Pela Cultura), Cris-tóvão publicou o texto, que até então tinha uma única cópia mimeógrafa, em mau estado de conservação. Conforme Petry, o livro publicado fala sobre a autocensura que os próprios artistas impõem em suas obras por medo da censura.

“A forma como a ditadura e/ou o teatro marcou a vida dessas pessoas � cou muito evidente em nossas conversas, e passar esse sentimento pelo meu texto foi um dos principais desa� os que enfrentei”

““A forma como a ditadura ““A forma como a ditadura e/ou o teatro marcou a “e/ou o teatro marcou a

TUANE ROLDÃOJornalista

Page 15: Primeira Pauta - Edição 108 - 50 anos do golpe militar

Joinville - Abril 2014 PRIMEIRA PAUTA

Diagramação de Gabriela Kugelmeier | Edição de Miriã Mews

15 Diagramação de Nicole Eichenberg | Edição de Ana Paula Ponick

Economia

“Milagre Econômico” durante a ditadura Série de políticas institucionais desenvolvidas durante a ditadura militar de 1964 chegou a colocar o Brasil como 8º PIB mundial

“Milagre Econômico” durante a ditadura Série de políticas institucionais desenvolvidas durante a ditadura militar de 1964 chegou a colocar o Brasil como 8º PIB mundial

A economia durante o go-verno militar produziu efeitos sociais e culturais com os quais a ditadura não contava. Durante o período de 1964 foram criadas as bases institucionais, seguidas de investimentos que geraram o “Milagre Econômico”, série de políticas institucionais de-senvolvimentistas. Durante este período, o Brasil chegou a ser o 8º PIB mundial a partir dos in-vestimentos na construção civil. Contudo, não escapou da dívida externa.

O economista José Tavares de Borba ressalta que quando iniciou o militarismo, a economia precisava ser reestruturada. Isso

fez com que o governo inves-tisse em políticas econômicas a curto, médio e longo prazo. Uma dessas políticas foi o pri-

meiro Plano Nacional de Desen-volvimento (PND), que levaria ao então “Milagre Econômico”.

Instituído durante o governo do ex-presidente Emílio Médici, em 1971, o objetivo do PND era trabalhar na infraestrutura para o desenvolvimento do Brasil. Mas as bases para isso, de acordo com Tavares, foram feitas durante o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG), elabora-do pelos economistas Roberto Campos e Otávio Gouveia de Bulhões, durante o governo do primeiro presidente militar, Castello Branco. O intuito era acelerar o ritmo de desenvolvi-mento econômico e aumentar

as taxas tributárias para reduzir o dé� cit público.

Para o sociólogo Daniel Fa-ria, no começo dos anos 1970 houve um crescimento conside-rável, mas dentro de uma opção econômica que privilegiava um modelo de desenvolvimento restrito. Ele aponta o projeto de transformar o Brasil em uma potência mundial como origem de propostas visando grandeza e gastos. “Assim como a tran-samazônica”, diz, citando a ter-ceira maior rodovia do Brasil, projetada durante o governo Médici, e que nunca foi concluída.

No � nal dos anos 70, o Brasil parou de cres-cer, gerando aumento da dívida ex-terna, tendo

como maior parte dos gastos ori-ginários de empréstimos feitos no exterior para a infraestrutura do país. No entanto, o econo-mista conta que o país somou isso às dívidas que havia con-traído no acordo realizado na Independência, no século XIX. Tavares explica que o emprésti-mo do mercado externo gera a dívida em dólar, e em virtude da primeira e segunda crise do petróleo,

em 1973 e 1979, em um cenário de alta na in� ação, fez as dívidas aumentaram.

Mayara Ho� mann mayaho� [email protected]

REPRODUÇÃO/LEADSACADEMY.FR

Petróleo e petrodólaresCom a crise econômica de-

corrente do primeiro choque do Petróleo, após o “Milagre Econô-mico”, o governo do presidente Ernesto Geisel lança o II Plano Nacional de Desenvolvimento, com o objetivo de estruturar a economia brasileira e solucionar o problema de dívida externa. O II PND passou a depender de � -nanciamento de longo prazo. Esse � nanciamento foi gerado através dos “petrodólares”, termo cria-do pelo professor de Economia da Universidade Georgetown, Ibrahim Oweiss, em 1973 para os

dólares que os países produtores de petróleo recebem pela venda.

O economista José Tavares de Borba (foto), professor do Centro Universitário-Católica de Santa Catarina explica que o que im-pulsionou a execução do II PND foi o empréstimo dos dólares gerados pela produção e venda de petróleo. Esses dólares foram emprestados para o Brasil como forma de planejamento após o plano de metas. Com isso, foram executadas obras de infraestrutu-ra de longo prazo para que o Bra-sil voltasse ao desenvolvimento.

Economia durante o regime No � nal dos anos 1970, a socie-

dade passou a se reorganizar, ten-do como um dos eixos principais precisamente o sindicalismo, que mobilizava o operariado atuante nos setores mais bene� ciados pelo “Milagre”. O sociólogo político e professor da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), Jackes Mick, cita que as lideranças sin-dicais de metalúrgicos, bancários, professores, servidores públicos e de outras categorias se articularam e criaram um novo partido polí-tico e uma nova central sindical como forma de compartilhar do crescimento.

Em 1981, as taxas do dólar vol-tam a subir, aumentando a dívida externa do Brasil e in� uenciando o governo a recorrer ao Fundo

Monetário Internacional (FMI), levando à assinatura de sete car-tas de intenções em 24 meses. Em 1987 o governo Sarney declara a suspensão dos pagamentos da dí-vida externa brasileira.

Jackes conta que o Partido dos Trabalhadores (PT) e a Central Única dos Trabalhadores (CUT) tiveram atuação política marcante como oposição nas duas décadas críticas de 1980 e 1990, porém, estabeleceram alianças com seg-mentos conservadores para obter o poder a partir de 2002.

O “Milagre” é marcado como um período de criação de 13 mi-lhões de empregos, investimen-tos em construção civil, criação das empresas como Eletrobras, Embratel e Itaipu, mas também

como o fenômeno que deixou uma dívida externa. Apenas a par-tir de 1994, com o Plano Real, a economia começa a de estabili-zar. Criado durante o governo de Itamar Franco, o programa tinha como objetivo estabilizar a eco-nomia brasileira. Neste período, o Plano passou por três frases. O programa de Ação Imediata, que instituiu medidas econômicas para o� cializar o Plano Real, a criação da URV (Unidade Real de Valor), que veri� cou o poder aquisitivo da moeda, e, por � m, a implementação da moeda Real, que mesmo após algumas crises, permanece até hoje. “Portanto, mesmo a história recente do país carrega marcas dos efeitos do mi-lagre”, conclui o sociólogo.

POSITIVOS

• Crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) quase 10,2% ao ano.Passando de 42º PIB mundial para 8º

• Aumento da produção de Petróleo. De 75 mil para 700 mil barrispor dia

• Investimento em infraestrutura

NEGATIVOS • Desigualdade social

• Aumento da infl ação. Entre 15% e 20% ao ano

• Aumento da dívida externa gerados pelos empréstimos parainvestimentos.

Aspectos positivos e negativos do Milagre Econômico

• Criação da Eletrobras (1962);

• Criação da Embratel e Telebras (1965);

• Usina Angra I e Angra II (1972);

• Construção de usinas: Tucuruí (1979)Ilha Solteira (1973), Jupiá (1974) e Itaipu(1975);

• Criação do Banco Central (1964);

• Criação Ponte Rio-Niterói (1974);

• Criação da Rodovia Transamazônica (1972)

Obras realizadas durante o regime militarDIVULGAÇÃO

Page 16: Primeira Pauta - Edição 108 - 50 anos do golpe militar

Diagramação de Nicole Eichenberg | Edição de Misael Tibes de Freitas

Joinville - Abril 2014PRIMEIRA PAUTA16 Cultura

A ditadura militar, o Brasil e as artes

Fachada do teatro Guaíra, palco de peças críticas à ditadura

FOTOS DE CÁSSIA WISCHRALCássia [email protected]

Fazer música, teatro ou cinema no Brasil a partir de 1964 tornou-se uma tarefa difícil para

os artistas. Eles não eram pessoas bem vistas pelos militares. A crise política que tomava conta do país começa com a renúncia de Jânio Quadros da presidência, e é intensificada com João Goulart no poder entre 1961 e 1964. Desse momento em diante, toda expressão de arte era monitorada pela censura. As programações de rádio e TV, as publicações de jornais diários, peças de teatro, nada podia ir ao ar sem passar pelo crivo dos censores militares.

Aqueles que atuavam no cenário artístico eram perseguidos e vetados. Autores sofreram verdadeiras mutilações em suas obras. Foram ameaçados e, não raramente, vítimas de violência física e psicológica. Toda essa repressão, porém, não conseguiu calar as vozes daqueles que clamavam por democracia. Muitos foram os casos de artistas que conseguiram burlar a avaliação dos censores e transmitir sua mensagem para a grande mídia. Escritores, músicos, poetas e compositores procuravam então inserir nos texto palavras que pudessem inverter significados, como por

exemplo na música gravada por Elis Regina, “O Bêbado e o Equilibrista”, letra de Aldir Blanc e João Bosco. Quando diz “choram Marias e Clarices”, Elis canta lembrando as mortes de torturados na ditadura. Maria faz referência às mães que sofreram com o sumiço de seus filhos e Clarice é uma alusão ao nome da esposa do jornalista Vladimir Herzog, torturado e morto na época.

Dramaturgos e escritores como Oswald de Andrade, autor de “O Rei da Vela”, um espetáculo aplaudido pela crítica e que aguça o descontentamento dos sensores por ser considerada expressão de rebeldia, surgem com grande força para contribuir com a revolução cultural que se iniciava naquele período. O momento para as artes cênicas, contudo, não era favorável. Os orçamentos diminuíram, os espaços ficaram restritos e o público se tornou escasso. A pressão fomentou o surgimento

Amanhã será um outro dia

O ator curitibano, diretor e fi-gurinista Paulinho Maia sempre atuou em várias áreas. Entre tantos trabalhos ao longo de sua carrei-ra, está o musical “Rocky Horror Show”, dirigido por Antônio Car-los Kraide. Produzido em 1982, no final da repressão, censura e da ditadura militar, o musical apare-ce como um espetáculo que que-bra as regras de bom comporta-mento, satirizando a moralidade dos anos 70. “Em anos anteriores, no auge do período negro, havia uma apresentação das peças para os censores, outra para a imprensa e por fim a estreia de fato”, conta ele. O espetáculo teatral envolto em uma atmosfera de ficção cien-tífica, criaturas, cientistas e sexo implícito com muito bom humor, marcou época da renovação da de-mocracia em Curitiba.

No período negro do regime militar, obras literárias, musicais e teatrais eram censuradas, reprovadas, mutiladas e desapareciam assim como seus autores

das pequenas companhias teatrais.

O grande Teatro Guaíra, um dos maiores da América Latina, localizado em Curitiba, serviu de palco para a peça “Memórias Torturadas a Ditadura e o Cárcere no Paraná” que conta a história verídica de quatro presos políticos na “Operação Marumby”, mais um dos capítulos negros da ditadura militar no Paraná. A peça foi encenada dentro de alas dos detentos no Presídio do Ahú, em Curitiba e o público foi informado que poderia levar almofadas, pois todos deveriam sentar no chão. Filmadoras e máquinas fotográficas não seriam permitidas durante o espetáculo e os atores fumavam em cena. “Burocracias com indenizações e outros pormenores jurídicos, juntamente com reportagens que anulam a existência de ditadura no Paraná, abrem a ferida que nunca se fechou”, lamenta Catarina Rielli Vieira, neta do personagem protagonista.

No campo do cinema, as coisas também eram complicadas, mas a irreverência de Glauber Rocha, sempre caminhando no sentido inverso da censura, mostrava nas telas a realidade política do Brasil, com cenas chocantes da pobreza e da fome. A abordagem de tais temas o colocou na mira dos censores militares.

Joinvilense conta em livro efeitos da ditadura nas artes

O reflexo do militarismo no Brasil é tão marcante, que novos escritores sempre encontram re-cortes inéditos para suas obras. A jornalista Tuane Roldão lan-çou no último dia 15 de março seu primeiro livro, que tem como matéria principal a influência da ditadura militar no âmbito das artes cênicas da região de Joinvil-le. “Acanhado” nasceu durante a elaboração do seu projeto expe-rimental desenvolvido para a gra-duação e instigou a curiosidade da autora. “A falta de materiais sobre o tema me motivou ainda mais, especialmente para esclarecer um período pouco comentado no município e que, quando abor-dado, costuma trazer apenas a história oficial, pelo lado de quem estava no poder”, afirma.

A obra é dividida em três ca-

pítulos que contam a história de Edgard e Lúcia Schatzmann, ele um idealista e ex-preso político, ela uma ex-freira. Uma história real, de um período muito cruel no Brasil. A autora traduz com fidelidade episódios e emoções dos personagens. “A forma como a ditadura e o teatro marcaram a vida dessas pessoas ficou muito evidente em nossas conversa e passar esse sentimento pelo meu texto foi um dos principais desa-fios que enfrentei”, revela.

“Acanhado faz o recorte de um tema que já é bem específico, isso significa que ainda há territó-rio a ser explorado, e não é pouca coisa”, afirma Tuane. “Eu acredito que o livro traga, principalmente, o desejo de se falar sobre teatro, sobre a ditadura, sobre a liberda-de de expressão”, completa.

LIBERDADEToda essa repressão,

porém, não conseguiu calar as vozes daqueles

que clamavam por democracia

Tuane Roldão lança livro sobre o teatro durante periodo militar

A obra “Acanhado” relata as memórias de atores joinvilenses