Primavera

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Primavera (Do diário de uma professora) Manhã de março, risonha, fresca... Abro as portadas da janela e debruço-me sobre os canteiros floridos do jardim aspirando deliciada o perfume que embalsama os ares. A palavra jardim faz-me sorrir... de mim, claro. Gostava que vissem o que custou (custou não é a palavra precisa...) o amanho deste minúsculo jardim, onde cada uma das minhas pequenas revolveu a terra com as mãos e acariciou as plantas até junto à raiz... Todas. Até a Lurdes (a Senhora do «não te rales»...) Até eu, que nunca senti inclinação por sujar as mãos (exceto em coisas de pintura, naquelas saudosas aulas de Trabalhos Manuais...) Até o Guilherme, que, de menino ao colo, deu licença que as pequenas acarretassem uns cestos de terra lavrada... Não sei... mas aquilo foi contagioso. E o jardim surgiu... E o que era pequeno e triste, raquítico e apagado surge-nos, assim, viçoso e perfumado. Mas... isto é maravilhoso! O céu azul, quase branco, as campinas inundadas de sol, a neblina, além, tornando os montes negros, cinzentos e azulados... A Natureza (que bom os jardins fazerem parte da Natureza!) veste as suas galas e ergue-se enamorada esperando a primavera... Em revolta louca, passam dezenas de andorinhas negras e luzidias - e vão procurar as suas moradias, construídas no beiral do recreio dos rapazes... Elas anunciam a primavera soltando gorjeios agudos e rápidos, como arautos de veludo vestido, anunciando aos quatro ventos a chegada de Sua Majestade, a Rainha da Terra. Ei-la que surge. Traz nos cabelos longos e anelados a negrura da terra recém-lavrada; no rosto, o rosado das margaridas floridas; nos olhos, o verde dos pinheirais, tingido de oiro e prata; na boca, o perfume suave das amendoeiras em flor e o vermelho das cerejas maduras. Seu manto de veludo é tecido do verde matizado dos prados, recamado de boninas e cardos florindo. Sua túnica é feita de nuvens diáfanas e vaporosas, de pétalas perfumadas e macias. A coroa que lhe cinge a bela e régia fronte é um punhado da luz doirada do Sol, onde brilha a pálida claridade da

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Primavera (Do diário de uma professora)

Manhã de março, risonha, fresca... Abro as portadas da janela e debruço-me sobre os canteiros floridos do jardim aspirando deliciada o perfume que embalsama os ares. A palavra jardim faz-me sorrir... de mim, claro. Gostava que vissem o que custou (custou não é a palavra precisa...) o amanho deste minúsculo jardim, onde cada uma das minhas pequenas revolveu a terra com as mãos e acariciou as plantas até junto à raiz... Todas. Até a Lurdes (a Senhora do «não te rales»...) Até eu, que nunca senti inclinação por sujar as mãos (exceto em coisas de pintura, naquelas saudosas aulas de Trabalhos Manuais...) Até o Guilherme, que, de menino ao colo, deu licença que as pequenas acarretassem uns cestos de terra lavrada... Não sei... mas aquilo foi contagioso. E o jardim surgiu... E o que era pequeno e triste, raquítico e apagado surge-nos, assim, viçoso e perfumado. Mas... isto é maravilhoso! O céu azul, quase branco, as campinas inundadas de sol, a neblina, além, tornando os montes negros, cinzentos e azulados... A Natureza (que bom os jardins fazerem parte da Natureza!) veste as suas galas e ergue-se enamorada esperando a primavera... Em revolta louca, passam dezenas de andorinhas negras e luzidias - e vão procurar as suas moradias, construídas no beiral do recreio dos rapazes... Elas anunciam a primavera soltando gorjeios agudos e rápidos, como arautos de veludo vestido, anunciando aos quatro ventos a chegada de Sua Majestade, a Rainha da Terra. Ei-la que surge. Traz nos cabelos longos e anelados a negrura da terra recém-lavrada; no rosto, o rosado das margaridas floridas; nos olhos, o verde dos pinheirais, tingido de oiro e prata; na boca, o perfume suave das amendoeiras em flor e o vermelho das cerejas maduras. Seu manto de veludo é tecido do verde matizado dos prados, recamado de boninas e cardos florindo. Sua túnica é feita de nuvens diáfanas e vaporosas, de pétalas perfumadas e macias. A coroa que lhe cinge a bela e régia fronte é um punhado da luz doirada do Sol, onde brilha a pálida claridade da

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Lua, as cores esbatidas do amanhecer, o fulgor das estrelas trémulas e imprecisas. A sua voz meiga e cadenciada lembra o murmúrio dos rios ao entardecer, o cheiro perturbante das hortênsias esmagadas, a ciciar baixinho das ramagens à noitinha, o gorjeio das aves enamoradas, esvoaçando sobre as searas douradas e extensas. Estende os braços de marfim polido, e a terra inteira cobre-se de encanto e beleza. Ouço-a cantar uma canção dolente, como a do mar ao pôr-do-sol, envolvendo a Natureza em rendas de luz e brocados de fantasia. Escuto-a ansiosa. Ela traz uma mensagem de alegria, de amor, de paz, uma mensagem de Deus aos homens com promessas de uma vida melhor. Há renúncias, sacrifícios, lágrimas e sorrisos, nessas promessas divinas que a Natureza canta... Quem a escuta? Brilha o Sol, cantam as aves, florescem as plantas... Também a primavera vai entrar na minha escola... Vejo-a saltitar... nos olhos das minhas pequenas... 1.ª... 2.ª... 3.ª... 4.ª classes... Que fartura de flores em botão!... Rosa... Emília... Lucília... Filomena... Fátima... E todas lindas e puras! Bocadinhos de terra a cultivar... Um jardim mais complicado que aquele outro que cultivamos lá fora... Eu e elas. E o Guilherme que, de menino ao colo, deu licença para acarretarem uns cestos de terra lavrada... Olho-as nos olhos. Que primavera em flor, meu Deus! Há cinco anos (1957- não foi noutro dia?!) que eu recebo a primavera entre os bancos de uma escola... Cinco anos! Não é maravilhoso esperá-la a olhar os olhos das crianças? Acabo o devaneio. Retiro-me da janela. Pois se o ditado da 3ª classe é tão estafante. Ao lê-lo, nem parece que vem aí a primavera! Agora... acabo mesmo. - ... nas colunas... - Então... Que maravilhosa manhã de março, risonha, fresca!

Maria Helena Amaro In, «Maria Mãe», 1973, p. 110-112.

Data da conclusão da edição no blogue – 12 de fevereiro de 2013

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