PRIMADO DO INTERDISCURSO E DEFINIÇÃO DE ESPAÇOS T M S...

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PRIMADO DO INTERDISCURSO E DEFINIÇÃO DE ESPAÇOS DISCURSIVOS: UMA ANÁLISE DOS DESCRITORES DA PROVA BRASIL TAYSA MÉRCIA DOS SANTOS SOUZA DAMACENO UNIV. FED. DO RIO GRANDE DO NORTE - UFRN / INST. FED. DE EDUC. CIÊNCIA E TEC. DE SERGIPE - IFS Resumo Ao considerar os descritores da Prova Brasil como discursos analisáveis neste trabalho, evidenciamos a proposta teórica de Maingueneau(2007), que coloca a precedência do interdiscurso sobre o discurso. Nessa tela, o nosso objeto é dialógico, polifônico e por assim dizer interdiscursivo. O corpus é formado por itens elaborados a partir das Matrizes de Referência do SAEB/Prova Brasil (2011), uma vez que se trata de um “referencial curricular mínimo a ser avaliado em cada disciplina e série, informando as competências e habilidades esperadas dos alunos” (MEC, 2007, p. 30), embasados também nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN. Essas matrizes apresentam tópicos que serão avaliados, o que já elencamos aqui como descritores. Nesta pesquisa, analisamos o discurso desses descritores, procurando especificamente o objetivo dado ao ensino de Língua Portuguesa (LP). Isso que permitiu observar os posicionamentos do espaço discursivo sobre o conceito de língua e a abordagem didática a ser adotada pelas escolas, dando conta de uma parte da proposta interdiscursiva do postulado teórico de Maingueneau (2007). Nesse contexto, estudar os descritores sob a ótica da análise do discurso nos fez sistematizar os operadores de individuação desse espaço discursivo, culminando com a troca de outros espaços, como os da Ciência e os das Práticas cotidianas de letramento. Dessa forma, observou-se que o debate sobre essas temáticas pode nos valer como um diálogo aberto entre os novos paradigmas para o ensino de LP e a ordem do discurso em que eles acontecem. 1. Antes do ponto de vista, o objeto: a Prova Brasil e os descritores A Prova Brasil e o Saeb são avaliações propostas e aplicadas pelo Inep/MEC, que têm por finalidade diagnosticar a qualidade do ensino oferecido pelo sistema educacional brasileiro, a partir de testes padronizados e questionários socioeconômicos, especificamente em Língua Portuguesa. Segundo o Instituto Nacional de Estudos

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PRIMADO DO INTERDISCURSO E DEFINIÇÃO DE ESPAÇOS

DISCURSIVOS: UMA ANÁLISE DOS DESCRITORES DA PROVA BRASIL

TAYSA MÉRCIA DOS SANTOS SOUZA DAMACENO

UNIV . FED. DO RIO GRANDE DO NORTE - UFRN / INST. FED. DE EDUC. CIÊNCIA E

TEC. DE SERGIPE - IFS

Resumo Ao considerar os descritores da Prova Brasil como discursos analisáveis neste trabalho, evidenciamos a proposta teórica de Maingueneau(2007), que coloca a precedência do interdiscurso sobre o discurso. Nessa tela, o nosso objeto é dialógico, polifônico e por assim dizer interdiscursivo. O corpus é formado por itens elaborados a partir das Matrizes de Referência do SAEB/Prova Brasil (2011), uma vez que se trata de um “referencial curricular mínimo a ser avaliado em cada disciplina e série, informando as competências e habilidades esperadas dos alunos” (MEC, 2007, p. 30), embasados também nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN. Essas matrizes apresentam tópicos que serão avaliados, o que já elencamos aqui como descritores. Nesta pesquisa, analisamos o discurso desses descritores, procurando especificamente o objetivo dado ao ensino de Língua Portuguesa (LP). Isso que permitiu observar os posicionamentos do espaço discursivo sobre o conceito de língua e a abordagem didática a ser adotada pelas escolas, dando conta de uma parte da proposta interdiscursiva do postulado teórico de Maingueneau (2007). Nesse contexto, estudar os descritores sob a ótica da análise do discurso nos fez sistematizar os operadores de individuação desse espaço discursivo, culminando com a troca de outros espaços, como os da Ciência e os das Práticas cotidianas de letramento. Dessa forma, observou-se que o debate sobre essas temáticas pode nos valer como um diálogo aberto entre os novos paradigmas para o ensino de LP e a ordem do discurso em que eles acontecem.

1. Antes do ponto de vista, o objeto: a Prova Brasil e os descritores

A Prova Brasil e o Saeb são avaliações propostas e aplicadas pelo Inep/MEC,

que têm por finalidade diagnosticar a qualidade do ensino oferecido pelo sistema

educacional brasileiro, a partir de testes padronizados e questionários socioeconômicos,

especificamente em Língua Portuguesa. Segundo o Instituto Nacional de Estudos

e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - Inep, essas avaliações fazem

com que o MEC e as Secretarias Estaduais e Municipais de Educação traçam os projetos

para a orientação, formação de professores, melhoria na qualidade de ensino, uma vez

que as médias dessa avaliação são variáveis para o cálculo do o cálculo do Ideb1 nas

escolas públicas urbanas do país.

De acordo com o MEC, A Prova Brasil é elaborada a partir de matrizes de

referência. A matriz é um documento que descreve as orientações para a elaboração das

questões.

Em Língua Portuguesa (com foco em leitura) são avaliadas habilidades e competências definida em unidades chamadas descritores, agrupadas em tópicos que compõem a Matriz de Referência dessa disciplina. As matrizes de Língua Portuguesa da Prova Brasil e do Saeb estão estruturadas em duas dimensões. Na primeira dimensão, que é “objeto do conhecimento”, foram elencados seis tópicos, relacionados a habilidades desenvolvidas pelos estudantes. A segunda dimensão da matriz de Língua Portuguesa refere-se às “competências” desenvolvidas pelos estudantes. E dentro desta perspectiva, foram elaborados descritores específicos para cada um dos seis tópicos descritos anteriormente, diferentes para cada uma das séries avaliadas. (BRASIL/MEC/INEP, 2009)

Os descritores são determinantes para a concepção de ensino de Língua no

Ensino Fundamental, uma vez que eles ditam as competências e habilidades necessárias

para o ensino eficaz. Foi a partir dessa condição que o objeto de análise nos chamou

atenção, uma vez que como orientadores de condutas avaliativas dentro do processo

ensino aprendizagem de Língua Portuguesa na Educação Básica, os descritores

representam um discurso que carrega não só a voz da política de Educação do país, mas

também o norteamento científico veiculado na academia acerca do ensino de Língua

Materna. Essa percepção torna-se mais abrangente quando se faz a relação entre as

competências e habilidades em Língua Portuguesa pontuadas nos descritores e os

conceitos inovadores abordados pela Linguística Aplicada atrelados aos currículos hoje

vigentes nas escolas de ensino fundamental.

O instrumento avaliativo, que é uma prova escrita objetiva nas séries finais do

ensino fundamental, tem como foco na leitura e trabalha com as questões do português

1 Índice de Desenvolvimento da Educação Básica - um indicador educacional que relaciona de forma positiva informações de rendimento escolar (aprovação) e desempenho (proficiências) em exames padronizados, como a Prova Brasil e o Saeb. O Ideb é o indicador objetivo para a verificação do cumprimento das metas fixadas no Termo de Adesão ao Compromisso “Todos pela Educação”, eixo do Plano de Desenvolvimento da Educação, do Ministério da Educação, que trata da educação básica. Nesse âmbito que se enquadra a idéia das metas intermediárias para o Ideb.(Fernandes, 2010, disponível em: http://www.inep.gov.br/salas/download/ideb/Ideb_Projecoes.pdf)

no seu uso, a partir de gêneros textuais diversos, circulados no cotidiano. A concepção

de gramática aparece por intermédio da interpretação de textos e a produção escrita

também é avaliada.

Esse instrumento parte de orientações e tópicos denominados descritores. Assim,

considerá-los como discursos analisáveis neste trabalho, evidenciamos a proposta

teórica de Maingueneau(2007), que coloca a precedência do interdiscurso sobre o

discurso e nessa tela, o nosso objeto é dialógico, polifônico e por assim dizer

interdiscursivo.

Nosso corpus é formado por itens da Prova Brasil, elaborados a partir das

Matrizes de Referência do SAEB/Prova Brasil, pois trata-se de um “referencial

curricular mínimo a ser avaliado em cada disciplina e série, informando as

competências e habilidades esperadas dos alunos” (MEC, 2007, p. 30), baseado também

nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN. Essas matrizes apresentam tópicos a

serem avaliados, o que já elencamos aqui como descritores. “O descritor é uma

associação entre conteúdos curriculares e operações mentais desenvolvidas pelo aluno

que traduzem certas competências e habilidades” (MEC, 2007, p. 31). Serão analisados

neste trabalho alguns itens da avaliação de língua portuguesa, procurando

especificamente o objetivo dado ao ensino de Língua Portuguesa, o que permitirá

observar os posicionamentos do espaço discursivo sobre o conceito de língua e a

abordagem didática a ser adotada pelas escolas, dando conta de uma parte da proposta

interdiscursiva do postulado teórico de Maingueneau(2007).

Vejamos as linhas e as competências abordadas pelos descritores para que

possamos traçar a transversalidade discursiva desses tópicos com as outras vozes

“poderosas” acerca do ensino de Língua Materna, especificamente para a primeira fase

do ensino fundamental, delineando assim o recorte para as análises que dão corpo a este

trabalho. Veja-se o quadro2:

2BRASIL. Ministério da Educação. PDE: Plano de Desenvolvimento da Educação: Prova Brasil: ensino fundamental - matrizes de referência, tópicos e descritores. Brasília: MEC, SEB; Inep, 2008.

TÓPICOS DESCRITORES Procedimentos de Leitura

D1 – Localizar informações explícitas em um texto. D3 – Inferir o sentido de uma palavra ou expressão. D4 – Inferir uma informação implícita em um texto. D6 – Identificar o tema de um texto. D11 – Distinguir um fato da opinião relativa a esse fato.

D5 – Interpretar texto com auxílio de material gráfico diverso (propagandas, quadrinhos, foto, etc.). D9 – Identificar a finalidade de textos de diferentes gêneros.

Relação entre textos D15 – Reconhecer diferentes formas de tratar uma informação na comparação de textos que tratam do mesmo tema, em função das condições em que ele foi produzido e daquelas em que será recebido.

Coerência e Coesão no processamento do texto

D2 – Estabelecer relações entre partes de um texto, identificando repetições ou substituições que contribuem para a continuidade de um texto. D7 – Identificar o conflito gerador do enredo e os elementos que constroem a narrativa. D8 – Estabelecer relação causa /conseqüência entre partes e elementos do texto. D12 – Estabelecer relações lógico-discursivas presentes no texto, marcadas por conjunções, advérbios, etc.

Relação entre Recursos expressivos e Efeitos de Sentido

D13 – Identificar efeitos de ironia ou humor em textos variados. D14 –Identificar o efeito de sentido decorrente do uso da pontuação e de outras notações.

Variação Linguística D10 – Identificar as marcas linguísticas que evidenciam o locutor e o interlocutor de um texto.

Quadro 1: Tópicos e descritores da Prova Brasil.

Observa-se com o quadro que gêneros dos discursos, leituras interativas,

produção, recepção e efeitos de sentido do texto dão lugar ao que tradicionalmente eram

visto como conteúdos gramaticais. O discurso de mudança sobre o que aprender em

Língua Materna deixa de lado a tradição e a metalinguagem da língua em si mesma,

condição estruturalista, apontando agora para os recursos não só da construção de

sentidos, mas também dos efeitos. A competência leitora e as inferências surgem como

pontos de partida para as questões de ensino e aprendizagem. Este trabalho focalizará

então as trocas e os posicionamentos discursivos transparentes nesses descritores pelo

viés do primado do interdiscurso.

2. Abordagem Interdiscursiva e o recorte do espaço discursivo

No livro Gênese dos Discursos (2007), Dominique Maingueneau propõe a

hipótese do primado do interdiscurso que teria precedência sobre o discurso, já que o

estudo de um discurso relaciona-o com outros. Maingueneau (2007) afirma que essa

hipótese inscreve-se na perspectiva de uma heterogeneidade constitutiva, que amarra em

uma relação inextricável, o Mesmo do discurso e seu Outro. A proposta de

Maingueneau coloca o discurso como uma interação entre discursos, o que implica um

tipo de análise em que a identidade discursiva é definida pela interdiscursividade, isto é

da relação do seu discurso com o discurso do seu Outro. O autor diz que é necessário

refinar o conceito que aparece tão amplo. Para tanto, o a generalização do interdiscurso

será substituída pela tríade: universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo.

Veja-se como entender essa especificação da abrangência interdiscursiva pelo

diagrama3 em tela:

Por “universo discursivo”, o autor entende o conjunto de todos os tipos de

formações discursivas interagem numa condição de produção, também representa

necessariamente um conjunto finito, mesmo que não possa ser apreendido em sua

globalidade. Trata-se do horizonte mais amplo tratado no discurso, do qual serão

construídos os domínios mais estruturados para a pesquisa do analista do discurso: os

campos discursivos. Para Brunelli (2008), trata-se do conjunto de discursos que se

delimitam numa região determinada pelo universo discursivo, mantendo diversos tipos

de relações como o confronto aberto, aliança, aparente neutralidade. Ou seja, embora

sejam discursos com a mesma função social, divergem sobre o modo pelo qual essa

função deve ser preenchida. Para Maingueneau (2007, p.35), campo discursivo é “um

conjunto de formações discursivas que se encontram em concorrência, delimitam-se

reciprocamente em uma região determinada do universo discursivo”, divergindo, como

já fora dito, na forma como a função social do discurso será preenchida. Esse recorte em

campos é apenas uma abstração necessária, que deve permitir abrir múltiplas redes de

trocas. Para o autor, é no interior do campo discursivo que se constitui um discurso, e

3 Abordagem Interdiscursiva. Diagrama nosso.

sua hipótese é que tal constituição pode deixar-se descrever em termos de operações

regulares sobre formações discursivas já existentes. Não significa que os discursos se

constituam todos da mesma forma.

Tomando como base essas noções, podemos dizer que no interior do “universo discursivo” temos um “campo discursivo”, em que várias formações discursivas se encontram em concorrência, delimitando-se reciprocamente. Dentro do campo podem ser isolados os espaços discursivos, isto é, subconjuntos que ligam ao menos duas formações discursivas que mantêm relações privilegiadas, relações essas que o analista julga pertinente para o seu propósito. (LARA, 2004, p.118)

Dessa premissa, observa-se que as relações discursivas no mesmo campo

precisam de delimitações para que o analista possa construir o seu corpus. Buscar as

relações dos espaços discursivos, neste trabalho, é fazer um recorte das trocas existentes

entre os posicionamentos aparentes nos descritores da prova Brasil, uma vez que nesse

espaço encontramos discursos que se cruzam ou que mantêm alguma relação de

convergência ou divergência. Além disso, perceber como a hipótese do analista francês

reitera a abstração sobre as fronteiras nos campos, já que existindo diálogo, precede o

interdiscurso.

Essa precedência culmina com a concepção de que o discurso é uma “realidade

integralmente lingüística e integralmente histórica” (BRUNELLI, 2008, p.16), e não há

como concebê-lo como uma estrutura de superfície. Não há opacidade discursiva, mas

sim um sistema de restrições semânticas que determina a especificidade e o

posicionamento do sujeito discursivo, definindo, assim, o(s) espaço(s).

O espaço que construímos para esse trabalho é contextualizado pela relação

entre a inovação sobre o ensino de Língua Portuguesa, que resultou de uma filiação ou

negação de outros discursos ainda presentes em orientações oficiais, especificamente

aqui os descritores da Prova Brasil. Segundo Maingueneau (2007, p. 37), “é suficiente

considerar qual(is) outro(s) discurso(s) do campo é (são) citado(s) e recusado(s) pelo

discurso novo, identificando-o(s) como discurso anterior pelo qual ele se constituiu”

para assim chegarmos à determinação dos componentes pertinentes do espaço

discursivo, o que é aqui o nosso objeto.

Com a proposta de isolar os espaços discursivos, Maingueneau(2007) observa

que o analista pode julgar o que é pertinente para as análises segundo o posicionamento

dos sujeitos discursivos que enunciam desse espaço. Essas restrições, segundo

Possenti(2009), devem resultar apenas de hipóteses fundadas sobre um conhecimento

dos textos e um saber histórico, que serão em seguida confirmados ou infirmados

quando a pesquisa progredir.

... reconhecer este tipo de primado do interdiscurso é incitar a construir um sistema no qual a definição da rede semântica que circunscreve a especificidade de um discurso coincide com a definição das relações desse discurso com seu Outro. No nível das condições de possibilidade haveria, pois, apenas um espaço de trocas e jamais de identidade fechada. Esse ponto de vista vai de encontro ao que adotam espontaneamente os enunciadores discursivos; esses, longe de admitir esse descentramento radical, reivindicam, de fato, a autonomia de seu discurso.(POSSENTI, 2009, p.163, grifo do autor.)

Essa autonomia só é possível por conta do enfoque linguístico que Maingueneau

confere às análises discursivas. Na concepção do analista francês, o discurso é

entendido com uma interação entre discursos e a identidade discursiva emerge dessa

relação interdiscursiva. Assim, procuraremos analisar as vozes presentes no

interdiscurso dos descritores da Prova Brasil pela relações de trocas no espaço

discursivo, evidenciando poderes e construção de saberes de uma “voz poderosa”

determinadora de modelo avaliativo, que adentra na escola com o poder uníssono.

Foucault (2007) em A Ordem do Discurso, diz que a escola é um exemplo típico de

apropriação do discurso. Ela forma professores que constituem sociedades de discurso,

por sua vez o discurso produzido por esses sujeitos nos limites fixados pela disciplina, a

qual por sua vez determina o que é verdadeiro e o que é falso dentro de suas fronteiras

científicas.

Esses discursos acabam também controlados por aparelhos de ideologia, como

pontua Althusser (1998) observando que um dos Aparelhos Ideológicos do Estado

(AIE) é a escola. Os AIE são “um certo número de realidades que se apresentam ao

observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas” e que não se

devem confundir com os Aparelhos Repressivos do Estado, uma vez que os primeiros

funcionam pela Ideologia. O aspecto ideológico é marcador de ações e discursos

também no âmbito das condutas pedagógicas.

Sendo a Prova Brasil uma avaliação demarcada, planejada e com caráter

mensurável para resultados de políticas públicas, os seus descritores acabam tornando-

se discursos controladores das práticas pedagógicas. Na escola, o currículo, as

metodologias e os objetivos são controlados pelos documentos oficiais. Organiza-se,

padroniza-se o que fazer, como fazer, onde e por quê. Além desses procedimentos pré-

estabelecidos pelos discursos oficiais, o sistema educacional evidencia uma maneira

política de manutenção ou modificação da apropriação dos discursos com os saberes e

poderes que traz consigo. Não obstante, a escola, enquanto instituição, é um espaço que

determina o modo de produção e/ou reprodução de certos saberes considerados

necessários à construção de uma sociedade. Nesse contexto, os documentos oficiais são

percebidos como uma ação do Estado e tomado como um importante elemento utilizado

na política educacional.

Ainda assim, as orientações previstas nesses descritores são vozes também da

ciência. Há polifonia nos documentos oficiais pelos diálogos com a Linguística

Aplicada e suas orientações para o ensino de Língua Portuguesa, e como esses

reguladores ganham o patamar de vontade de verdade, endossam o discurso científico,

apoiam-se sobre um suporte institucional, já que são reforçados e reconduzidos por um

“conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, como o sistema de livros, de edição,

das bibliotecas, como as sociedades de sábios outrora, os laboratórios de hoje”

(FOUCAULT, 2007, p.17). Toda essa prática discursiva é também reconduzida pelas

sociedades de discurso(professores, escola, editores), como também é valorizada

distribuída e repartida, agindo como voz “poderosa” na sala de aula. Daí a pertinência

das análises interdiscursivas dos descritores da Prova Brasil.

3. Descritores: vozes determinantes de uma conduta avaliativa

As análises objetivaram contemplar a rede de troca de discursos no mesmo

espaço, uma vez que os descritores e as novas teorias aplicas ao ensino do ensino de

Língua Materna mantêm relações privilegiadas capazes de apreendermos a

especificidade desses espaços deflagradores de identidades e de constituição de poderes.

Segundo Brunelli (2008), a decisão do espaço é também uma decisão do

analista, baseada nas linhas da pesquisa e se fundamenta no saber histórico acerca do

tema proposto. Como a nossa linha é o ensino de Língua Portuguesa, fica aqui

demarcada a constituição de um discurso da mudança presente não só nos descritores

mas também em todas os porta-vozes das diretrizes sobre o ensino, como a escola, a

universidade e o estado.

Tentaremos demonstrar operadores de individuação desse discurso nos

descritores da Prova Brasil, a partir de uma análise interdiscursiva, dialógica e por assim

dizer, polifônica.

Veja-se:

DESCRITORES DISCURSO CIENTÍFICO D15 – Reconhecer diferentes formas de tratar uma informação na comparação de textos que tratam do mesmo tema, em função das condições em que ele foi produzido e daquelas em que será recebido.

“[...] as informações técnicas linguísticas ou não, são importantes como fonte de reflexão, mas a disposição para refletir sobre elas é ainda mais importante, e a disposição para aprender é pré-condição para ensinar.” (POSSENTI, 1996, p. 39)

“A escola tem de ser garantida como o lugar privilegiado de vivência de língua materna: língua falada e língua escrita, língua padrão e língua não-padrão, nunca como pares opositivos, ou como atividades em competição; enfim uma vivência da língua em uso em sua plenitude: falar, ler, escrever. A escola está aí para isso, e não pode desconhecer que tal atitude passa por uma valorização – com justiça há muito requerida – da língua falda no espaço escolar”. (NEVES, 2004, p. 90)

“Via de regra o aluno não procede de um meio letrado. Sua família enfrenta as tensões da vida urbana, uma novidade para muitas delas. A escola deve iniciar o aluno valorizando seus hábitos culturais, levando-o a adquirir novas habilidades desconhecidas de seus pais. O ponto de partida para a reflexão gramatical será o conhecimento linguístico de que os alunos dispõem ao chegar à escola: a conversação.” (CASTILHO, 2004, p. 21)

D1 – Localizar informações explícitas em um texto. D3 – Inferir o sentido de uma palavra ou expressão. D4 – Inferir uma informação implícita em um texto. D6 – Identificar o tema de um texto. D11 – Distinguir um fato da opinião relativa a esse fato.

“Cada pessoa, através da comunicação por gêneros textuais, aprende mais sobre suas possibilidades pessoais, desenvolve habilidades comunicativas e compreende melhor o mundo com que está se comunicando.” BAZERMAN (2005, p.106)

“Diante disso, deveríamos propor então um ensino de língua que tenha o objetivo de levar o aluno a adquirir um grau de letramento cada vez mais elevado, isto é, desenvolver nele um conjunto de habilidades e comportamentos de leitura e escrita que lhe permitam fazer o maior e mais eficiente uso possível das capacidades técnicas de ler e escrever.” (BAGNO, 2002, p. 52)

D5 – Interpretar texto com auxílio de material gráfico diverso (propagandas, quadrinhos, foto, etc.).

“Linguagem é para mim a capacidade do ser humano de se expressar através de um conjunto de signos, de qualquer conjunto de signos. Então, eu acredito numa linguagem pictórica, numa linguagem sonora, numa linguagem verbal etc. Então, linguagem é todo meio de expressão do ser humano através de símbolos.” (KOCH, 2005, p. 124)

D10 – Identificar as marcas lingüísticas que evidenciam o locutor e o interlocutor de um texto.

“A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra se apóia sobre meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor.” (BENTES, 2003, p. 255)

“Da perspectiva de uma pedagogia culturalmente sensível aos saberes dos alunos, podemos dizer que, diante de uma realização de uma regra não-padrão pelo aluno, a estratégia da professora deve incluir dois componentes: a identificação da diferença e a conscientização da diferença.” (BORTONI-RICARDO, 2006, p. 42)

Quadro 2: Interdiscursividade nos Descritores da Prova Brasil

O que se tem na exposição do quadro é um diálogo aberto das teorias veiculadas

na academia e das orientações para competências e habilidades em Língua Portuguesa,

traçando programas, parâmetros e currículos antenados com os avanços da educação em

língua materna e com as pesquisas científicas. A abordagem interdiscursiva de

Maingueneau (2007), na Gênese dos Discursos, faz uma distinção entre intertexto e

intertextualidade. Para o autor, o intertexto é um complexo de fragmentos citados em

um mesmo corpus enquanto a intertextualidade é conceituada como um sistema de

regras que define o intertexto. A intertextualidade torna-se plano de análise uma vez que

“todo campo discursivo define uma certa maneira de citar os discursos anteriores do

mesmo campo” (MAINGUENEAU, 2007, p.81). Citar os discursos do mesmo campo

significa, para o autor delimitar o espaço. Como operadores de individuação do

discurso, podemos perceber no quadro acima a intertextualidade como materialização

da interdiscursividade, e essa materialização não se dá por marcas linguísticas

específicas, mas de uma heterogeneidade constitutiva de temas entre as orientações dos

descritores e as teorias abordadas. Os temas “recaem diretamente sobre as articulações

essenciais do modelo semântico.” (MAINGUENEAU, 2007, p.85)

Um discurso recai no outro porque estão delimitados pelo mesmo campo e

convergem para o ensino centrado na textualidade, no efeito de sentido, na produção e

recepção de textos.

Esses discursos também ratificam aspectos teóricos anteriores, como o advento

da Sociolinguística, a Linguística sistêmico-funcional, os Gêneros Discursivos de

Bakhtin, entre outros de grande relevância nos estudos linguísticos. O que legitima o

discurso da mudança na formação docente e nos documentos oficiais, colocando a

escola como um sistema de apropriação de discurso e a academia, espaço de circulação

do discurso científico, também, já que formam professores de Língua Portuguesa.

No descritor D15 – Reconhecer diferentes formas de tratar uma informação na

comparação de textos que tratam do mesmo tema, em função das condições em que ele

foi produzido e daquelas em que será recebido – temos a compilação de um conjunto de

saberes propostos pelos autores elencados no quadro, embora outros descritores já

tragam também a proposta da língua como processo de interação. Os sistemas de

restrições vocabulares como texto, locutor, interlocutor, informações implícitas e

informações explícitas traçam essas trocas de um espaço discursivo em as vozes

convergem para um campo – o da mudança no ensino de LM.

Como os descritores tratam de habilidades a serem avaliadas em alunos do

ensino fundamental – 1ª fase, observamos a grande relevância da função social dos

textos que ganhou patamar de elemento nas propostas curriculares após o advento de

teorias como a Linguística Textual, a Análise do Discurso, que podem ser evidenciadas

nas linhas teóricas de autores como Bentes, Koch e Bazerman expostos no quadro 2.

Nesse contexto a teoria dos Gêneros Textuais também entra em questão, sendo um tema

de grande relevância nas exposições sobre o ensino aqui elencadas. Tratar do tema

dentro dessa proposta é também analisar uma categoria, que segundo Maingueneau

(2007), os temas recaem dentro do espaço discursivo e são caracterizadores de discursos

do mesmo espaço, refinando o termo amplo da interdiscursividade. Os descritores D1,

D3, D4, D6, D1 tratam do texto, das tipologias, das inferências como competências e

habilidades que o aluno do 1º ciclo do ensino fundamental. Nessa condição, observamos

uma proposta de mudança, uma vez que

O ensino tradicional nunca levou em conta a infinita variedade de gêneros textuais existentes na vida social, limitando-se a abordar somente os gêneros escritos literários de maior prestígio – o conto, o romance, às vezes a crônica, raramente a poesia –, e desprezando quase completamente o estudo dos gêneros textuais característicos das práticas orais, sobretudo por causa do milenar preconceito contra a língua falada, tradicionalmente considerada “caótica” e “sem gramática”. (BAGNO, 2002, p. 55)

O que se pode perceber são vozes que entram em duelo, mas que para os

descritores há uma espécie de apagamento, uma vez que são apresentadas competências

e habilidades apenas para a compreensão e produção de textos, e a abordagem

tradicional do ensino da gramática só é enfatizada dentro dos recursos linguísticos

próprios de textos formais, daí se perceber um ensino produtivo de língua funcional, não

sendo mais fechado e centrado na normatização. A desfocalização dessa forma de

ensino é tema comum dentro do espaço dos descritores da Prova Brasil e das Teorias

Aplicadas ao Ensino de Língua Materna.

Sob o ponto de análise interdiscursiva, o que interessa não é uma hierarquia de

temas, mas um conjunto da temática que se constrói a partir do tema central. Assim os

temas mais relevantes são os que “recaem diretamente sobre as articulações essenciais

do modelo semântico.” (MAINGUENEAU, 2007, p.85). Os temas, nessa conjuntura,

são restrições semânticas de um espaço discursivo.

Outro grande elemento de delimitação do campo discursivo de mudança e

evidente na rede de troca do espaço discursivo aqui analisado é o conceito de língua

como um elemento dinâmico de variação, em que a região, a economia, a faixa etária, a

escolaridade são fatores que evidenciam marcas na língua, demonstrando o quadro de

diferenças da linguagem e não como um objeto preconceituoso.

Essa realidade lingüística marcada pela diversidade já é reconhecida pelas

instituições oficiais encarregadas de planejar a educação no Brasil (MEC – Ministério

de Educação e Cultura). Assim, nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) podemos

ler que:

A variação é constitutiva das línguas humanas, ocorrendo em todos os níveis. Ela sempre existiu e sempre existirá, independentemente de qualquer ação normativa. Assim, quando se fala em “Língua Portuguesa” está se falando de uma unidade que se constitui de muitas variedades. (...) A imagem de uma língua única, mais próxima da modalidade escrita da linguagem, subjacente às prescrições normativas da gramática escolar, dos manuais e mesmo dos programas de difusão da mídia sobre “o que se deve e o que não se deve falar e escrever”, não se sustenta na análise empírica dos usos da língua.

O descritor D10 é característico de uma competência esperada na aprendizagem

da Língua Portuguesa, centrada não só no código escrito, mas na funcionalidade, o que

recai no diálogo com as linhas da Linguística.

Nessa tela, a interdiscursividade se sobrepõe a discursividade, uma vez que por

diálogos ou duelos, aqui no trabalho enfatizando o primeiro, podemos perceber como

todo o discurso é resultado de um universo em que posicionamentos de um sujeito são

delimitados em campos e que dentro desses campos há trocas e redes semânticas que

marcam os espaços discursivos.

Considerações finais

A rede de trocas de um espaço discursivo foi a tônica do nosso trabalho, que, a

princípio, objetivava analisar os discursos dos descritores da Prova Brasil, sob a ótica do

controle e das restrições semânticas do campo de mudança sobre o ensino de Língua

Materna. No entanto, as análises delinearam outro aspecto de grande relevância nesse

processo de avaliação institucionalizado como indicador de uma política de educação.

Dentro da perspectiva discursiva, as análises evidenciaram que os discursos dos

descritores são vozes que se deslocam do campo da inovação no ensino de Língua

Portuguesa, atreladas à Ciência Linguística que endossa a voz dominante do Estado.

Nesse contexto, o primado do interdiscurso ganhou a linha de análise mais pertinente,

uma vez que o espaço discursivo onde os descritores se realizam revela uma rede

polifônica, e por assim dizer interdiscursiva. Essa evidência nos levou a concluir que

mesmo tratando de competências e habilidades a serem adquiridas com a educação

básica, as orientações contidas nos descritores revelam a consolidação de propostas

inovadoras para o ensino, calcadas nas teorias eminentemente marcadas pelos Gêneros

Textuais, Análise do Discurso e Funcionalidade da Língua, entendendo este fenômeno

não apenas como um sistema de regras convencionais, mas como resultado de forças

sociais que atuam nos indivíduos falantes através do processo de interação verbal.

Além disso, estudar os descritores sob a ótica da análise do discurso nos fez

sistematizar os operadores de individuação desse espaço discursivo, culminando com a

troca de outros espaços, como os da Ciência e os das Práticas cotidianas de letramento.

Dessa forma, observou-se que o debate sobre essas temáticas pode nos valer como um

diálogo aberto entre os novos paradigmas para o ensino de LP e a ordem do discurso em

que eles acontecem, desde as delimitações das sociedades de discurso até ganhar o

patamar de vontade de verdade. Vale questionar como os desdobramentos dessas ordens

discursivas dentro dos espaços operam a aprendizagem, uma vez que a cada política de

educação, a ponta do iceberg só é vista como índices para investimentos, sem

percebermos os obstáculos que esses contextos trazem ao adentrarem na sala de aula,

espaço real de visibilidade desse processo.

Referências

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