Preso No Passado Ou Aberto Ao Futuro_ - Revista de História
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15/12/2015 Preso no passado ou aberto ao futuro? - Revista de História
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Preso no passado ou aberto ao futuro?Após sua ascensão e queda, o socialismo enfrenta o desafio de continuarcomo alternativa real para a humanidade
Daniel Aarão Reis
1/11/2015
Insurretos prendendo e escoltando policiais àpaisana em Petrogrado nos dias da revolução(Imagem: Reprodução)
Ao longo do século XX, propostas socialistasalcançaram o poder político, realizandotransformações de alcance variado. Em certomomento, a alternativa socialista pareciainvencível, destinada à vitória universal. Nãofoi o que aconteceu. Ao contrário: osocialismo, embora ainda vivo, estámoribundo. Pode‐se considerá‐lo umaperspectiva, uma experiência aberta para ofuturo da humanidade? O socialismo contemporâneo surgiu na esteiradas revoluções americana e francesa, emfins do século XVIII. “Todos os homensnascem livres e iguais e têm o direito delutar pela felicidade” – a frase revolucionáriasuscitou um tsunami político e social.Entretanto, permaneceram as desigualdades sociais, de gênero e a escravidão. Milhões de sereshumanos continuaram sendo considerados inferiores, destinados a serem “civilizados” ou vítimasde genocídio, como aconteceu com os povos nativos da América, da África e da Ásia. Àaristocracia do sangue, fundada na hereditariedade, sucedeu uma outra, burguesa, baseada napropriedade privada dos bens de produção. Foi da esperança de vencer a burguesia que nasceu osocialismo. Mas nem todos os socialistas defendiam as mesmas propostas. Surgiram duas grandes vias, a darevolução e a da reforma, embora não houvesse muralhas intransponíveis entre elas. Naperspectiva revolucionária, os privilegiados haveriam de resistir pela força, e somente por elaseriam vencidos. A partir daí, bifurcavam‐se novamente os caminhos. Para uns, como MikhailBakunin (1814‐1876), tratava‐se de incentivar a mudança social. Ela viria como uma “destruiçãocriadora”, suscitando a Anarquia, uma ordem baseada na inexistência do Estado. Em outroregistro, defendido por nomes como Gracchus Babeuf (1760‐1797) e Auguste Blanqui (1805‐1881), propunha‐se uma organização clandestina capaz de, num momento de convulsão social,tomar o Estado e transformar a sociedade através de uma ditadura revolucionária. Com o tempo,as liberdades seriam estendidas a todos.
A perspectiva reformista não acreditava naeficácia da violência: as ideias socialistasavançariam devagar, ganhando asconsciências. As lutas sindicais e auniversalização do voto ocupariam um lugarcentral. A primeira demonstração destaproposta foi o Movimento Cartista, naInglaterra, nos anos 1840.
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A tomada do Reichstag, em Berlim, pelas tropassoviéticas em 1945. (Imagem: Reprodução)
Em 1848, uma onda revolucionária percorreua Europa, suscitando as questões daindependência nacional, da democracia e dosocialismo. Surgiu, então, uma novatendência, liderada por Karl Marx (1818‐1883). Compartilhava a ideia da violência eda tomada do poder do Estado para aplicar oprograma revolucionário, mas apresentavauma novidade: considerava‐se portadora deum novo tipo de socialismo, científico. Aassociação entre ciência e política tinha umaevidente lógica autoritária, mas isto só setornaria claro mais tarde. Naquele momento, explicitou‐se o caráterinternacional do capitalismo, da burguesiatriunfante e de sua ideologia, o liberalismo.O socialismo também definia‐se comointernacional. Em 1864, formou‐se aAssociação Internacional dos Trabalhadores(AIT), que durou pouco tempo, minada pelasquerelas entre Marx e Bakunin, pelarepressão desencadeada após a derrota daComuna de Paris, em 1871, e pela força donacionalismo, que empolgava as camadaspopulares. Nas últimas décadas do século XIX, ocapitalismo internacional mudaria depatamar, através de uma grande revoluçãocientífica e tecnológica. Liderados pelosbancos (capitalismo financeiro), apareceram
os grandes monopólios, concentrando imensos contingentes de trabalhadores. Surgiu oproletariado, que se tornaria a principal base social e política das propostas socialistas.Formaram‐se partidos de massa, muitos referenciados nas ideias de Marx. Tratava‐se decombinar, de forma original, reforma e revolução, lutas nacionais e articulação internacional,socialismo e democracia. Tomou corpo, então, a social‐democracia, estabelecendo um sinal deigualdade entre as duas ideias: só haveria socialismo com democracia. À nova InternacionalSocialista, fundada em 1889, caberia o papel de coordenar os diversos partidos nacionais. Entretanto, a social‐democracia foi capturada pelo nacionalismo e pelo reformismo. Sob sualiderança, os trabalhadores ganharam proteção social, direito de voto e liberdadesdemocráticas, integrando‐se como cidadãos às instituições políticas e sociais. Daí veio aconcepção reformista de que o socialismo se imporia através de uma transição pacífica, porefeito da força crescente das organizações sindicais, das políticas social‐democratas e dassucessivas crises econômicas geradas pelo capitalismo. O socialismo triunfaria nos centroscapitalistas importantes – a Europa e os Estados Unidos – e depois se estenderia para o resto domundo, sob a liderança do proletariado internacional e de suas organizações. A eventual irrupçãode uma guerra apressaria o advento do socialismo, pois os partidos social‐democratas selevantariam contra ela, realizando a esperada revolução. A Primeira Grande Guerra, entre 1914 e 1918, dissolveria estas esperanças. Salvo exceções, ospartidos proletários socialistas aderiram à defesa dos respectivos Estados nacionais. Ointernacionalismo e a revolução saíram do radar. No entanto, a partir de 1917, depois de
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Sob a liderança de Stalin, aquiretratado por Brodsky, a ditadurasoviética se radicaliza, alcançandocom prisões, deportações eexecuções os que se opuseram aosdesígnios do Estado. (Imagem:Reprodução)
milhões de mortos, começaram a eclodir revoltas entre trabalhadores e soldados, exigindo o fimdo conflito. O processo tomou força na Rússia, que já era uma potência, ainda queessencialmente agrária. O desastre provocado pelo confronto alcançou ali proporçõesdevastadoras, impulsionando a revolta social. Em fevereiro de 1917, em Petrogrado, capital da Rússia, manifestações contra a autocracia epelo fim da guerra levaram à queda do tsar. Instaurou‐se um governo provisório e abriu‐se umaconjuntura de efervescência social. Trabalhadores e soldados organizaram‐se em conselhos, ossovietes. Camponeses formaram comitês agrários. As nações não russas oprimidas revoltaram‐se.A convergência destes múltiplos movimentos ensejou uma outra revolução, em outubro. Vitoriosaem Petrogrado, estendeu‐se pelo país. Várias tendências socialistas participaram do processo, mas destacou‐se uma ala do partidosocial‐democrata russo: os bolcheviques, discípulos de Marx e liderados por Lenin (1870‐1924) eTrotsky (1879‐1940). Mais bem organizados, ousados e determinados, apostando que umarevolução vitoriosa na Rússia empolgaria o continente europeu, estabeleceram um novo governo,apoiado nos sovietes urbanos e nos comitês agrários. Seguiu‐se uma guerra civil, entre 1918 e1921, ao fim da qual venceram os revolucionários. Mas o país ficou inteiramente destruído e,para piorar, a experiência não se estendeu à Europa. A revolução não surgiu onde os socialistas a esperavam – nosprincipais centros capitalistas, com fortes classes operárias,sindicatos, partidos socialistas de massa e tradições deliberdade. Venceu num país que, embora relativamenteforte do ponto de vista militar, era ainda agrário e atrasadoem relação às grandes potências europeias, arrasado pelaguerra, sem valores democráticos e governado por umpequeno partido, centralizado e militarizado que, para semanter no poder, recorreu à ditadura revolucionária. A certeza de que eram os únicos a ter a compreensãocientífica da História, combinada com tradições místicas domessianismo russo, fez dos bolcheviques uma eficiente etemível máquina política. Sem contar com apoiointernacional, empreenderam, a partir de 1929, uma novarevolução, através do Estado e sob liderança de JosephStalin (1878‐1953): pela violência, coletivizaram a terra,que fora distribuída pelas famílias camponesas depois darevolução, e industrializaram o país de maneira planificada,universalizando os serviços de educação e saúde. A ditadurarevolucionária radicalizou‐se, alcançando com prisões,deportações e execuções todos os que se opuseram (ouforam acusados de se opor) aos desígnios do Estado. Ao longo dos anos 1930, enquanto os países capitalistasafundavam na crise econômica iniciada em 1929, a UniãoSoviética conhecia um gigantesco desenvolvimento,tornando‐se uma potência econômica e militar. A SegundaGuerra Mundial confirmaria esta mutação. O nazi‐fascismoseria vencido por uma Grande Aliança, mas o papel da URSS foi decisivo, tendo ela suportado osmaiores custos materiais e humanos provocados pelo conflito. Em 1945, no fim da guerra, era imenso o prestígio da União Soviética. Sua economia planificada inspirava políticas em todo omundo. Muitos criticavam o Estado ditatorial, até entre os socialistas, mas havia no arexpectativas de aberturas democráticas.
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Manifestação do Movimento Socialista Pan?helênico(Grécia, 2009). O fim da URSS provocou crises deidentidade, mas o ideal socialista continua ainspirar grupos e partidos no mundo. (Imagem:WIKICOMMONS / FOTO PASOK)
A URSS já não se encontrava isolada: o socialismo estendera‐se por quase um terço do mundo.Na Europa central, foi implantado pela ocupação dos exércitos soviéticos. No Extremo Oriente,as guerras nacionais camponesas, dirigidas pelos comunistas contra os exércitos japoneses,impuseram o socialismo na China, no norte da Coreia e do Vietnã. Repetia‐se, numa escala maisvasta, o que já se verificara com a revolução russa: o socialismo aparecia num contexto deguerras, em sociedades agrárias e empreendido por ditaduras revolucionárias. Seguiu‐se, entre 1946 e 1991, a bipolarização do mundo, na chamada Guerra Fria. Nos anos1970, a URSS parecia um ator incontornável nas relações internacionais. Mas já então seavolumavam críticas à sua economia: ineficiência, excessivo centralismo e estatismo, despesasmilitares exageradas. Do ponto de vista político, a ditadura perdia legitimidade. O socialismoainda era capaz de mobilizar tanques e aviões, mas já não inspirava a própria população,sobretudo os jovens. A tentativa de autorreforma, nos anos 80, conduziu, de modo fulminante einesperado, ao fim do socialismo soviético e à desagregação do país.
Era o fim de um ciclo. A China se afastouradicalmente do socialismo: a combinaçãoque ali se efetua, entre capitalismo edirigismo estatal, com a manutenção de umarigorosa ditadura política, causaperplexidade e é um desafio à imaginação. Omesmo se verifica, em menor escala, noVietnã, unificado em 1975, depois de umalonga e devastadora guerra. A Coreia doNorte é uma sinistra caricatura. E Cubaconserva sua independência muito mais pelasreservas nacionalistas de sua revolução doque pelas aspirações e pelos valoressocialistas. O nacionalismo radical na África,no mundo muçulmano e na Ásia, perdendo ogrande aliado, desagregou‐se ou se orientouem outras direções, distantes das concepçõesinspiradas na experiência soviética.
O modelo socialista soviético está bem morto e é difícil imaginar sua ressurreição. Pela grandezaque chegou a assumir, sua derrocada provocou uma profunda crise de credibilidade nos valoressocialistas, não apenas entre os adeptos, mas também entre os críticos. Como aventura humana, porém, o socialismo não necessariamente se encerrou. Tem a seu favoras contradições agudas que o capitalismo continua a operar, evidenciando desigualdadesgritantes e destrutivas. Elas são uma fonte recorrente de estímulo para que sejam pensadasalternativas que valorizem a igualdade e a liberdade. Estão dadas as bases para pensar o socialismo como uma experiência aberta para o futuro dahumanidade. Superadas as ilusões cientificistas, ela pode ser empreendida através da lutapolítica, que é sempre imprevisível mas da qual os socialistas dependem para persuadir asgentes, democraticamente, a respeito da validade e da superioridade de suas propostas. Neste sentido, continuam vigentes as referências das grandes revoluções de fins do século XVIII,quando esta aventura humana teve início. Se os homens não foram livres e iguais nos padrões dosocialismo soviético, nunca poderão ser livres e iguais sob regimes capitalistas. Daniel Aarão Reis é professor da Universidade Federal Fluminense e autor de Ditadura edemocracia no Brasil (Zahar, 2014).
15/12/2015 Preso no passado ou aberto ao futuro? - Revista de História
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Saiba Mais AARÃO REIS, Daniel. Uma revolução perdida – história do socialismo soviético. São Paulo: PerseuAbramo, 2007.BABEL, Isaac. O exército de Cavalaria. São Paulo: Cosac Naify, 2006.BERLIN, I. Pensadores russos. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.BROWN, Archie. Ascensão e queda do comunismo. Rio de Janeiro: Record, 2010.LEWIN, Moshe. O fenômeno Gorbatchev. São Paulo: Paz e Terra, 1988.LEWIN, Moshe. O século soviético. Rio de Janeiro: Record, 2007.SEGRILLO, Angelo. O Declínio da URSS – Um estudo das causas. Rio de Janeiro: Record, 2000.