Preservação Documental No Brasil

download Preservação Documental No Brasil

of 16

Transcript of Preservação Documental No Brasil

  • R V O

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, no 2, p. 31-46, jul/dez 2010 - pg. 31

    A Preservao Documental no Brasil

    Notas para uma reflexo histrica

    Aloisio Arnaldo Nunes de CastroRestaurador de artes plsticas/papel do Museu de Arte Murilo Mendes da Universidade Fe-deral de Juiz de Fora (UFJF). Mestre em Histria pela UFJF. Doutorando em conservao e restaurao pelo Programa de Ps-Graduao em Artes da Escola de Belas Artes da UFMG.

    O patrimnio sobre o papel do sculo

    XIX est agonizando; o patrimnio do

    sculo XX se esvai em uma tranquila

    indiferena porque outras tcnicas de

    registro da informao ocultam a funo

    sempre essencial do papel. Indo alm

    Este artigo tem por objetivo resgatar e analisar

    aspectos histricos relativos preservao docu-

    mental no Brasil, ao longo do sculo XX. luz das

    reflexes apontadas pela histria cultural, examina

    as prticas, as narrativas, os atores sociais, os mar-

    cos tericos, os paradigmas, as influncias inter-

    nacionais e as polticas culturais que aliceraram a

    insero e a construo dessa disciplina especializa-

    da no mbito brasileiro.

    Palavras-chave: preservao documental;

    conservao; restaurao; patrimnio cultural;

    histria cultural.

    This paper aims to retrieve and analyse historical

    aspects that concern document preservation in

    Brazil through the twentieth century. The study is

    carried out under the reflections on the field of

    cultural history. It seeks to investigate the practices,

    narratives, social actors, theoretical frameworks,

    patterns as well as international influences and

    cultural policies that served as a background to

    the integration and construction of this specialized

    discipline in Brazil.

    Keywords: record preservation; conservation;

    restoration; cultural heritage; cultural history.

    das palavras e das nuances, existe a rea-

    lidade das bibliotecas e dos livros que o

    tempo que passa aflige. O tempo passa?

    Ora, o tempo no, mas o papel que se

    torna p no espera que nossa conscin-

    cia desperte para o seu destino.1

    artigo_Aloisio_Arnaldo.indd 31 6/6/2011 12:06:18

  • A C E

    pg. 32, jul/dez 2010

    Este artigo pretende ser um exer-

    ccio reflexivo sobre o percurso

    histrico da preservao docu-

    mental no Brasil, abordando, por meio de

    diferentes fios narrativos, alguns aspectos

    histricos em suas distintas temporali-

    dades e em suas mltiplas relaes com

    as instituies e as vrias dimenses da

    sociedade. Assim, pensar a preservao

    documental na sua historicidade signifi-

    ca ampliar, sobremaneira, o territrio de

    anlise da construo cultural preservacio-

    nista brasileira. Da mesma forma, tem-se

    em mira a compreenso mais abrangente

    acerca do prprio campo de trabalho no

    qual os profissionais da preservao do-

    cumental esto inseridos.

    A despeito do pioneirismo e da importn-

    cia das iniciativas basilares na preservao

    do patrimnio documental, que remontam

    s primeiras dcadas do sculo passa-

    do, assim como dos mltiplos esforos

    preservacionistas empreendidos pelas

    instituies detentoras de acervos e pela

    sociedade em geral nas ltimas dcadas,

    observamos que ainda so poucos os es-

    tudos dedicados histria da preservao

    do patrimnio cultural no Brasil, conforme

    se pode constatar num rpido exame da

    produo cientfica nos ltimos anos. Por

    conseguinte, h a necessidade de apro-

    fundamento no campo temtico relativo

    memria cultural expressa no suporte

    de papel. Faltam, ainda, pesquisas aca-

    dmicas que busquem discutir e refletir

    as prticas e representaes construdas

    e legitimadas no espao social brasileiro,

    assim como o processo de circularidade

    cultural e de apropriao dos mltiplos

    saberes inerentes preservao, conserva-

    o e restaurao do patrimnio documen-

    tal. Nesse sentido, necessrio concordar

    com Maria Jose Martinez Justicia quando a

    historiadora sustenta que a reconstruo

    da histria da restaurao daria, sem d-

    vida, resposta a mltiplas interrogaes,

    proporcionaria novos dados e, sem dvida,

    nos livraria de muitos equvocos.2 Frank

    Matero, ao abordar os estudos de tica e

    poltica na conservao, desperta-nos a

    ateno para a necessidade de reavaliao

    crtica e o chamamento para o dilogo

    com as disciplinas das cincias humanas.

    Matero salienta que toda conservao

    um ato crtico, de interpretao. Desse

    modo, ns preservamos com um objetivo

    e esse objetivo deve ser de forma contnua

    questionado, avaliado e modificado se

    necessrio.3 tambm nesse contexto de

    reviso historiogrfica que Beatriz Mugayar

    Khl nos alerta que as aes de preser-

    vao no deveriam prescindir, jamais, da

    histria e historiografia e os profissionais

    atuantes na preservao, mesmo no sen-

    do historiadores, deveriam possuir uma

    viso histrica.4

    Assim, conclumos que um estudo minu-

    cioso sobre a histria da preservao do-

    cumental no Brasil ainda est por vir. Pes-

    quisar, analisar e historiografar a histria

    da preservao documental so desafios

    lanados na arena do pensar preservacio-

    nista. Todavia, se de um lado detectamos

    essa significativa lacuna historiogrfica,

    artigo_Aloisio_Arnaldo.indd 32 6/6/2011 12:06:18

  • R V O

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, no 2, p. 31-46, jul/dez 2010 - pg. 33

    de outra parte os estudos historiogrficos

    sobre a preservao documental no m-

    bito brasileiro constituem-se um universo

    temtico pleno de possibilidades interpre-

    tativas, contemplando posicionamentos

    crticos, questionadores e reflexivos. H

    que se ressaltar, ainda, o fato de que

    acervos em papel compreendidos pelas

    colees bibliogrficas, documentais e

    de obras de arte em suporte de papel

    representam, em termos quantitativos,

    um dos maiores estoques informacionais

    e culturais do pas. De modo paradoxal,

    constatamos essa carncia de estudos, o

    que ratifica a proposio de investigar as

    aes da sociedade em preservar, conser-

    var e restaurar esta significativa parcela do

    patrimnio cultural brasileiro.

    Para o desenvolvimento deste estudo,

    tomou-se como chave conceitual de an-

    lise as proposies da histria cultural

    que destacam a emergncia dos novos

    problemas, novas abordagens e novos

    objetos no seio das questes histricas.5

    Tal como prope o historiador francs

    Roger Chartier, trata-se de identificar

    os modos como em diferentes lugares e

    momentos uma determinada realidade so-

    cial construda, pensada e dada a ler.6

    Assim, sob os novos olhares e domnios

    da Clio, esta pesquisa pretende analisar a

    preservao documental como uma cons-

    truo cultural, procurando identificar os

    modos como a preservao da memria

    expressa em papel, no seio da sociedade,

    pensada, interpretada, apropriada, pra-

    ticada e legitimada.

    No cenrio internacional, o final do sculo

    XIX referncia para o ingresso da preser-

    vao documental no campo cientfico.

    Vrios autores indicam a data de 30 de

    setembro de 1889 como o nascimento

    da restaurao de livros e documentos

    enquanto disciplina moderna, em razo

    do profcuo debate sobre temas como

    a deteriorao da tinta ferroglica em

    manuscritos, o estudo de fungos e trata-

    mentos de palimpsestos estabelecidos na

    Conferncia Internacional de San Gallo,7

    ocorrida na Sua. Carlo Federici e Libero

    Rossi defendem que o moderno restau-

    ro e o surgimento do restaurador como

    figura profissional so frutos da referida

    conferncia.8 Alm disso, as consequn-

    cias dos bombardeios da Primeira Guerra

    Mundial sobre as bibliotecas na Itlia

    contriburam para o desenvolvimento de

    pesquisas de laboratrio acerca da degra-

    dao dos acervos, como, por exemplo,

    os efeitos dos inseticidas e bactericidas

    sobre papis. Outrossim, a necessidade

    de dar tratamento sistemtico aos acervos

    em suporte de papel levou fundao pio-

    neira do Istituto per la Patologia del Libro,

    organizado em 1929, por Alfonso Gallo.

    Deve-se crdito a Gallo por ter entendido

    que as aes de preservao deveriam ser

    inscritas numa perspectiva interdisciplinar,

    ou seja, na interao da pesquisa qumica,

    biolgica, fsica e tecnolgica.9

    No contexto brasileiro, podemos mapear

    as primeiras referncias sobre a problem-

    tica de preservao documental vinculadas

    ao destruidora dos insetos biblifagos,

    artigo_Aloisio_Arnaldo.indd 33 6/6/2011 12:06:18

  • A C E

    pg. 34, jul/dez 2010

    sobretudo ao longo do sculo XIX e nas

    dcadas iniciais da Primeira Repblica.

    Segundo Messias Carrera,10 em seu artigo

    Histria dos insetos inimigos dos livros,

    j podemos encontrar, no sculo XIX, re-

    presentaes literrias que fazem aluso

    ao danosa dos insetos biblifagos. No

    Brasil, parece que a mais antiga refern-

    cia aos insetos nocivos aos livros data de

    1817, quando veio a lume a Corografia

    braslica, do padre Manuel Aires de Casal.

    Nesta obra, a cidade de So Paulo con-

    siderada local ideal para os fundamentos

    de uma universidade. Dentre outros mo-

    tivos, destaca-se o fato de que por ali os

    insetos menos danificam bibliotecas.11 Em

    1849, no relatrio de Cyro Cndido, ento

    diretor do Arquivo Pblico do Imprio,12

    verificamos a preocupao com a ao

    dos insetos destruidores no acervo docu-

    mental.13 Sob as denominaes cupim,

    insetos daninhos, polilha e vermes,

    observamos que a atuao dos insetos

    problemtica constante, reiterada, portan-

    to, nos relatrios dos diretores do Arquivo

    Pblico do Imprio nos anos de 1850,

    1856, 1860, 1870, 1873 e 1874.14

    J nas primeiras dcadas do sculo XX, en-

    contramos a sistematizao de pesquisas

    dedicadas aos insetos biblifagos pelos

    mdicos Pedro Severiano de Magalhes,

    Diogo Teixeira de Faria e Jaime Silvado.

    Observa-se, nos referidos estudos de ento-

    mologia, que a preocupao preservacio-

    nista estava relacionada necessidade de

    conhecimento dos males biolgicos que

    ento degradavam os acervos em papel.

    Assim, tornava-se premente a identificao

    destes agentes patolgicos de deteriora-

    o sob o ponto de vista cientfico, o es-

    tudo do ciclo dos insetos, o conhecimento

    das condies climticas de procriao e

    das preferncias alimentares, para, em

    seguida, indicar as medidas de combate

    e preveno contra tais espcimes. Cons-

    tata-se, em tais narrativas, que a palavra

    cincia utilizada de modo recorrente. A

    conservao dos livros concebida como

    cincia e experincia e o sculo XX alu-

    dido como o sculo da cincia. Partindo

    desse ponto de vista, vemos o desenvolvi-

    mento do conhecimento cientfico a partir

    do dilogo interdisciplinar da biologia, da

    qumica e da medicina. Nessa literatura

    tcnica, dedicada aos estudos dos inse-

    tos biblifagos, observa-se a construo

    de um enunciado preservacionista que

    se quer dizer metodolgico e cientificista

    em contraposio, portanto, s tcnicas

    empricas de conservao e restaurao

    de bens culturais mveis.

    Na Era Vargas, com a promulgao da

    Constituio Federal de 1934, criada a

    proteo legal do patrimnio artstico e

    histrico brasileiro. Em 1936, o ministro

    da Educao e Sade, Gustavo Capane-

    ma, encomenda a Mrio de Andrade a ela-

    borao do anteprojeto de lei que tratasse

    da preservao do patrimnio artstico e

    nacional, em razo de sua experincia

    no Departamento Municipal de Cultura e

    Recreao de So Paulo. Quando analisa-

    mos a proposta marioandradiana, h que

    se ressaltar a preocupao com a defesa

    artigo_Aloisio_Arnaldo.indd 34 6/6/2011 12:06:18

  • R V O

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, no 2, p. 31-46, jul/dez 2010 - pg. 35

    da preservao de acervos em papel

    configurada no item relativo categoria

    arte histrica, no qual explicitada

    a salvaguarda de documentos grficos:

    [...] a iconografia nacional; iconografia

    estrangeira referente ao Brasil (gravuras,

    mapas); brasiliana (todo e qualquer im-

    presso ou manuscrito que se refira ao

    Brasil, de 1850 para trs. Todo e qual-

    quer manuscrito referente ao Brasil, com

    mais de 30 anos, se indito [...].Aps

    alteraes no texto original de Mrio de

    Andrade, criado em 1936 o Servio do

    Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    (SPHAN), tendo o jornalista Rodrigo Melo

    Franco como presidente do rgo. Vincu-

    lado aos contedos caros ao Estado Novo,

    como o patriotismo e o nacionalismo, o

    decreto-lei no 25 de 1937 determina quais

    bens sero objeto de proteo. Conforme

    se verifica no captulo I do decreto-lei,

    constatamos que o papel, como tipologia

    de bem cultural, definido como patri-

    mnio a ser preservado, sob a gide da

    noo de excepcionalidade.15 Embora no

    explicitado de modo mais claro no texto

    do decreto, depreende-se que no bojo da

    denominao bibliogrfico ou artstico

    encontram-se contemplados os bens cul-

    turais concernentes aos acervos em su-

    porte de papel. Na anlise dos critrios de

    valorao dos acervos em papel a serem

    preservados, sintomtico verificar que

    se, por um lado, a conjuntura poltica do

    Estado Novo determinara a preservao

    de livros raros e de valor excepcional,

    tendo em vista a consolidao da histria

    oficial da nao, de outra parte verifica-

    mos a destruio de livros por parte do

    prprio Estado Novo. Exemplo disso foi o

    episdio da queima, em 1937, em praa

    pblica na Bahia, de cerca de dois mil

    livros de autoria de Jorge Amado, ento

    apreendidos e julgados como simpati-

    zantes do credo comunista.16

    No que diz respeito aos crit-

    rios tericos e s prticas de

    intervenes, constatamos, na

    dcada de 1930, algumas aes que exem-

    plificam que a preservao documental es-

    taria associada ao ofcio da encadernao,

    prtica artesanal. Como, por exemplo,

    verificamos em noventa volumes da Co-

    leo Papis Avulsos correspondentes

    ao perodo de 1800 a 1841, alocados no

    acervo do Arquivo Histrico Municipal

    Washington Lus, sediado na cidade de

    So Paulo em que h uma etiqueta co-

    lada em determinadas contraguardas dos

    volumes, indicando a data do trmino dos

    trabalhos e que o referido exemplar foi

    restaurado e encadernado pela Seo

    Grfica do Departamento de Cultura.

    Portanto, depreende-se a ideia da restau-

    rao vinculada ao ato da encadernao,

    ou seja, a feitura de velaturas nas folhas e

    colocao de carcelas nas bordas laterais

    esquerdas dos documentos manuscritos

    com o objetivo de agrup-los, estrutural-

    mente, num volume encadernado.17

    Na dcada de 1940, destaca-se a atuao

    pioneira de Edson Motta no campo da con-

    servao e restaurao de papel. Em 1944,

    Edson Motta convidado por Rodrigo Melo

    Franco de Andrade para ocupar o cargo

    artigo_Aloisio_Arnaldo.indd 35 6/6/2011 12:06:19

  • A C E

    pg. 36, jul/dez 2010

    de conservador18 do SPHAN, organizan-

    do o Setor de Recuperao de Obras de

    Arte. Em 1945, a pedido de Rodrigo Melo

    Franco, Edson Motta obtm uma bolsa de

    estudos pela Fundao Rockefeller a fim

    de realizar estgio no Fogg Art Museum da

    Universidade de Harvard.19 Neste museu,

    Edson Motta permanece at 1947 e estuda

    com professores renomados como: Ri-

    chard Buck, restaurador especializado na

    estabilizao de pinturas sobre madeira;

    Rutherford Gettes, qumico; George Stout,

    restaurador especializado no estudo dos

    materiais; Morton Bradley, restaurador

    interessado pelas teorias da cor. Ainda

    em 1947, Edson Motta retorna ao Brasil e

    inicia a organizao do Setor de Recupe-

    rao da Diretoria do Patrimnio Histrico

    e Artstico Nacional (DPHAN). A partir de

    1948, verificamos a atuao de Edson

    Motta no acervo da Biblioteca Nacional

    com servios prestados na conservao

    de gravuras, desenhos e pesquisas de

    laboratrio referentes aos mtodos de eli-

    minao de fungos. Num relatrio dirigido

    ao ento diretor da Biblioteca Nacional,

    Josu Montelo, verifica-se a preocupao

    do restaurador em implementar no Brasil

    o que, provavelmente, foi o primeiro la-

    boratrio de conservao e restaurao

    especializado somente em papel, numa

    estruturao cientfica, em contraposio,

    portanto, aos mtodos empricos anterior-

    mente empregados.20 Assim, a atuao

    pioneira de Edson Motta vem, de fato,

    colaborar com a interpretao da insero

    da disciplina nos moldes ditos cientficos

    no contexto ps-Segunda Guerra, com a

    apropriao de uma linha conceitual tipi-

    camente americana.

    Em relao ao ensino de metodologias de

    conservao e restaurao documental,

    observamos influncias relacionadas ao

    campo da museologia no livro Introduo

    tcnica de museus, autoria de Gustavo

    Barroso, publicado em 1948. Nesta publi-

    cao h tpicos relacionados ao suporte

    em papel.21 Podemos situar, no contexto

    da poca, o pensamento de Barroso de

    vertente nacionalista que categorizava

    a restaurao no sentido da proteo e

    conservao das relquias do passado.22

    Conforme observamos na narrativa bar-

    rosiana, a restaurao da relquia do

    passado metaforizada como um ato

    mdico compreendido por dois momentos

    distintos: diagnstico e teraputica. Para

    dar tratamento s relquias do passado,

    Barroso ilustrava as qualidades do ento

    perfil do profissional restaurador ao afir-

    mar que toda conservao e toda restau-

    rao requerem duas virtudes essenciais:

    pacincia e modstia.23 Ainda com rela-

    o ao ensino, criada no mbito uni-

    versitrio, em 1951, a disciplina teoria,

    conservao e restaurao da pintura,

    na Escola de Belas Artes da Universidade

    do Brasil (atual UFRJ), por Edson Motta, a

    convite do ento diretor da Escola prof.

    Flexa Ribeiro, considerada pioneira na

    Amrica Latina.24 No que diz respeito aos

    contedos programticos ministrados na

    referida disciplina, Maria Luiza Guimares

    Salgado,25 aluna da Escola de Belas Artes

    nos anos de 1969 e 1970, menciona que

    artigo_Aloisio_Arnaldo.indd 36 6/6/2011 12:06:19

  • R V O

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, no 2, p. 31-46, jul/dez 2010 - pg. 37

    o curso era dividido em trs partes: papel,

    imaginria e pintura. A disciplina era te-

    rica e prtica e em relao s atividades

    voltadas para os acervos documentais

    havia um pequeno laboratrio na Escola

    de Belas Artes onde os alunos pratica-

    vam banhos em gravuras, bem como em

    documentos deteriorados, e executavam

    retoques em pequenas reas.

    No que concerne ao emprego de metodolo-

    gias de interveno curativa na dcada de

    1950, seria oportuno observar a influncia

    americana atravs dos processos tcnicos

    desenvolvidos por Willian Barrow, com a

    aquisio pioneira na Amrica Latina de

    um exemplar da mquina Laminadora

    Barrow. Conforme os anais da Bibliote-

    ca Nacional, v. 71, p. 1-4, publicado em

    1951, Josu Montelo, ento diretor da

    Biblioteca Nacional, comentou a bela

    aquisio, a ltima palavra na tcnica de

    preservao de documentos: a conser-

    vao de nossa riqussima documentao

    manuscrita, seriamente ameaada pelo

    tempo, encontrou sua soluo adequada

    no processo de laminao Barrow, que a

    Biblioteca Nacional, por nossa iniciativa,

    acaba de adotar.26 A noo de interveno

    curativa tambm constatada na criao,

    em 1958, da Seo de Restaurao do

    Arquivo Nacional, incumbida de reparar

    e restaurar os documentos que com esse

    fim lhe forem destinados.27

    Percebe-se que os congressos de biblio-

    teconomia e documentao tambm

    atuaram como locus de discusso da con-

    servao e restaurao de papel, possibi-

    litando a reflexo cientfica e dando lugar

    s reivindicaes preservacionistas. Em

    1961, verifica-se, de modo pioneiro, a atu-

    ao de Lindaura Alban Corujeira28 com a

    apresentao do trabalho Conservao e

    restaurao de livros e documentos, no III

    Congresso Brasileiro de Biblioteconomia

    e Documentao, realizado em Curitiba.

    Tendo como referncia os estudos realiza-

    dos na Biblioteca Nacional de Madri, nos

    anos de 1958 e 1959, Corujeira abordou

    o documento e seu valor como fonte de

    informao, os agentes fsicos, qumicos

    e biolgicos de deteriorao de livros e

    documentos e os respectivos meios de

    combate, a necessidade da restaurao

    de livros e documentos, as qualidades do

    restaurador e as fases da restaurao.29

    Em 1962, a DPHAN estabeleceu a sistema-

    tizao do Setor de Recuperao de Pintu-

    ra, Escultura e Manuscritos, subordinado

    Diviso de Conservao e Restaurao

    (DCR).30 Deve-se notar, nesse momento,

    que a restaurao de papel encontra-se

    includa sob a denominao de manus-

    critos e podemos depreender, tambm,

    que a restaurao de obras de arte em

    suporte de papel estaria, provavelmente,

    inserida sob a denominao de pinturas.

    Dessa forma, com a criao do referido

    Setor, verificamos a meno oficial das

    atividades de conservao e restaurao

    de papel sob a gide do rgo federal.

    H que se analisar, ainda, o emprego da

    terminologia Recuperao do referido

    Setor, o que denota a atribuio de sig-

    nificado atividade profissional, muito

    artigo_Aloisio_Arnaldo.indd 37 6/6/2011 12:06:19

  • A C E

    pg. 38, jul/dez 2010

    mais focada na prtica e nos mtodos de

    recuperao do bem cultural do que pro-

    priamente em aes de conservao dos

    acervos culturais, denotando, assim, a pr-

    tica de uma restaurao intervencionista.

    Verifica-se, ainda, no perodo em que se

    convencionou denominar fase herica,

    que a preservao documental no confi-

    gurava como linha prioritria da DPHAN,

    muito embora os acervos bibliogrficos

    considerados de valor excepcional se en-

    contrem contemplados no decreto-lei no

    25 de 1937. No mbito do rgo oficial de

    proteo do patrimnio cultural, as aes

    de conservao e restaurao de papel

    so realizadas, de modo muito restrito e

    com poucos recursos tcnicos, em meio s

    outras atividades consideradas preponde-

    rantes como a conservao e restaurao

    de igrejas, pinturas de cavalete, talhas e

    esculturas policromadas.31

    Na dcada de 1960, as dificuldades con-

    cernentes formao de profissionais

    na conservao e restaurao de bens

    culturais nos pases situados na faixa tro-

    pical j eram observadas e constituam-se

    objeto de preocupao da comunidade

    internacional, conforme apontou Paul

    Coremans em seus estudos.32 Outros-

    sim, quando o arquiteto Renato Soeiro,

    assume, em 1967, a direo da DPHAN,

    observamos que dentre as aes do incio

    da sua gesto, destaca-se a elaborao

    de um projeto encaminhado Comisso

    de Educao da Organizao dos Estados

    Americanos (OEA), relativo criao de

    um laboratrio-atelier a ser localizado no

    Brasil com o fim especial de atender os

    estudantes oriundos dos pases situados

    na regio sul da Amrica, bem como os

    trabalhos de conservao a serem realiza-

    dos no pas.33 Verifica-se neste projeto a

    preocupao com o ensino da conserva-

    o e restaurao de papel nas categorias

    de gravuras, livros e documentos. Nota-se

    na listagem de equipamentos indispens-

    veis instalao do laboratrio-atelier, o

    pedido de um Laminador Barrow, o que

    reflete, portanto, a adoo de uma linha

    americana de restaurao de papel.

    sintomtico observar nos anos

    de 1970 a insero de um cres-

    cente debate da preservao

    documental no campo da arquivologia

    por meio da participao dos profissionais

    nos temrios dos Congressos Brasileiros

    de Arquivologia. Assim, em 1972, no I

    Congresso, ocorre o Painel sobre con-

    servao e restaurao de documentos

    com a participao acanhada de apenas

    dois palestrantes. Em 1974, no II Con-

    gresso, ocorre a Sesso plenria: Con-

    servao e restaurao de documentos,

    contando com cinco participantes. J de

    forma bastante ampliada realizado, no

    III Congresso, o I Seminrio Brasileiro de

    Preservao e Restaurao de Documen-

    tos. Na abertura dos trabalhos, Edson

    Motta, como representante do Instituto do

    Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    (IPHAN), discursa sobre a importncia do

    referido Seminrio, ressaltando a impor-

    tncia do intercmbio de informaes

    tcnicas e metodologias de trabalho

    artigo_Aloisio_Arnaldo.indd 38 6/6/2011 12:06:19

  • R V O

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, no 2, p. 31-46, jul/dez 2010 - pg. 39

    possibilitada pela presena de especia-

    listas estrangeiros como: Vicente Vias,

    da Espanha, F. Paole, George e Dorothy

    Cunha dos Estados Unidos.34 Em 1979,

    no IV Congresso, ocorre o II Seminrio

    Brasileiro de Preservao e Restaurao

    de Documentos.

    Com relao produo de literatura tc-

    nica, em 1971 so lanadas duas obras

    pioneiras no campo da conservao e

    restaurao de papel no mercado brasi-

    leiro: O papel: problemas de conservao

    e restaurao, de Edson Motta e Maria

    Luiza Guimares Salgado, e Conserve e

    restaure seus documentos, de Lindaura

    Alban Corujeira.35 Dada a escassez de

    informaes tcnicas, essas obras, pu-

    blicadas no contexto da dcada de 1970,

    tornam-se material de referncia. Em

    Motta & Salgado observamos a prevaln-

    cia de autores norte-americanos o que

    evidencia a formao de Motta no Fogg

    Museum da Universidade de Harvard, in-

    cluindo a obra The treatment of pictures,

    autoria de Morton C. Bradley Jr.,36 na qual

    o papel abordado como categoria da

    pintura. Em contraposio, em Corujeira

    observa-se maior influncia de autores

    europeus, visto que sua formao na rea

    de conservao e restaurao de papel

    fruto de cursos e estgios realizados na

    Biblioteca Nacional de Madri e no Istituto

    de Patologia del Libro Alfonso Gallo, em

    Roma, Itlia.

    No que tange s influncias internacio-

    nais na formao da disciplina no mbito

    brasileiro, Jannice de Mello Monte-Mr,

    ento diretora da Biblioteca Nacional, so-

    licita ajuda Unesco para a preservao

    e restaurao do acervo da instituio,

    possibilitando a vinda ao Brasil, em 1974,

    da doutora Maria Di Franco, diretora da

    Biblioteca Valiceliana, em Roma. Durante

    a sua permanncia por quinze dias no

    Brasil, a especialista visitou o Arquivo

    Nacional, proferiu conferncia no Minis-

    trio da Educao e Cultura e observou

    detalhadamente a situao da Bibliote-

    ca Nacional.37 Em relao prtica de

    conservao e restaurao ento desen-

    volvida pelo laboratrio de restaurao

    da Biblioteca Nacional, a especialista

    contundente ao apontar aspectos que re-

    velam a falta de aparato tcnico-cientfico

    bem como a inadequao da metodo-

    logia empregada pelo setor.38 Apontou,

    ainda, em seu relatrio, grande nfase

    formao de pessoal, evidenciando a

    necessidade de trabalhar sob a orientao

    cientfica, motivando qumicos e bilogos

    no Brasil a desenvolver estudos cientfi-

    cos na rea.39 Ao concluir seu relatrio,

    a doutora Maria Di Franco apresenta um

    plano de trabalho a ser implementado na

    Biblioteca Nacional, destacando a neces-

    sidade de treinamento profissional por

    meio de realizao de estgio de carter

    prtico e de curta durao na Itlia.40

    Por conseguinte, a Unesco ofereceu duas

    bolsas de estudos para que funcionrios

    da Biblioteca Nacional fossem receber

    treinamento no Istituto de Patologia del

    Libro Alfonso Gallo, em Roma. Dessa

    forma, Gilda Lefebvre e Eucdia Guima-

    res, ento bibliotecrias da Biblioteca

    artigo_Aloisio_Arnaldo.indd 39 6/6/2011 12:06:19

  • A C E

    pg. 40, jul/dez 2010

    Nacional, obtiveram a bolsa de estudos

    e, em 1975, iniciaram o treinamento no

    referido Instituto.41

    A partir dos anos de 1970, as linhas de

    trabalho direcionam-se para o conceito

    europeu, seja pelo despertar advindo das

    aes desenvolvidas aps a enchente de

    Florena, ocorrida em 1966, seja pela for-

    mao dos conservadores-restauradores

    em cursos e estgios de mdia ou curta

    formao subsequentes ao prof. Edson

    Motta em centros europeus que inspi-

    raram, de certo modo, o surgimento dos

    ncleos iniciais de conservao-restau-

    rao. Portanto, nas dcadas de 1960,

    1970 e 1980, os princpios basilares da

    conservao-restaurao fundam-se, no-

    tadamente, nos modelos institucionais

    da Espanha, Itlia, Portugal, Alemanha,

    Frana e Inglaterra.

    Num estudo publicado pela Unesco, em

    1973, o restaurador indiano Yash Pal

    Kathpalia salientou a necessidade de im-

    plantao de laboratrios de conservao

    e restaurao nas instituies detentoras

    de acervos. De modo sintomtico, a partir

    do final da dcada de 1970, verificam-se

    as iniciativas de elaborao de projetos

    com vistas a implantar os laboratrios de

    conservao e restaurao especializados

    em papel, os quais, de certo modo, teriam

    o propsito de substituir os locais de tra-

    balho ainda caracterizados por sees

    ou por ateli geralmente de pequeno

    porte nas instituies brasileiras deten-

    toras de acervos. Nessa fase de cunho

    tecnicista, detecta-se a predominncia

    da discusso em torno do diagnstico do

    estado de conservao dos acervos dete-

    riorados, bem como dos critrios, tcnicas

    e metodologias a serem aplicados nos

    bens deteriorados. Desse modo, verifica-

    mos que a implantao dos laboratrios

    de conservao e restaurao de papel

    no Brasil representou o inaugurar de uma

    nova fase, ou seja, as instalaes fsicas

    e o aparato tecnolgico constituam-se

    elementos fundamentais para o desenvol-

    vimento das atividades de conservao

    e restaurao de papel em consonncia,

    portanto, com as matrizes conceituais e

    os progressos cientficos assinalados em

    centros estrangeiros de referncia.

    Em 1977, o ento Setor de Conservao

    e Restaurao de Pintura, Escultura,

    Talha, Manuscritos e Cdices passa a

    denominar-se Centro de Conservao e

    Restaurao de Bens Culturais do IPHAN,

    sob a direo de Maria Luiza Guimares

    Salgado. Tal mudana coaduna as influ-

    ncias do iderio de Alosio Magalhes,

    ocasio em que ele substitui a noo de

    valor de patrimnio histrico e artstico

    por bem cultural. Em 1978, Maria Luiza

    Guimares Salgado realiza um estudo so-

    bre a definio de atribuio de tcnico

    de assunto cultural rea de restaurao.

    H nesse estudo uma descrio detalhada

    sobre o perfil do restaurador de papel no

    qual verificamos o empenho da autora

    em justificar a importncia da atividade

    e, consequentemente, a reivindicao

    do status e do reconhecimento profis-

    sional no contexto do servio pblico.42

    artigo_Aloisio_Arnaldo.indd 40 6/6/2011 12:06:19

  • R V O

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, no 2, p. 31-46, jul/dez 2010 - pg. 41

    Embora a autora saliente a importncia

    das pesquisas cientficas e do laborat-

    rio cientfico na rea de papis, ainda se

    verifica o perfil do profissional ancorado

    em aptides de natureza artstica como:

    habilidade manual, destreza manual,

    sensibilidade e agudo senso crtico. Tais

    qualidades evidenciam o perfil profissio-

    nal da dcada de 1970, focado em ativi-

    dades curativas e intervencionistas. Dessa

    forma, depreende-se a preponderncia do

    perfil artstico sobre o perfil cientfico,

    no qual os conhecimentos de qumica e

    biologia ainda no se encontravam sedi-

    mentados na disciplina da conservao e

    restaurao de papel. No que concerne

    formao profissional, Salgado elabora

    o estudo Laboratrio-escola para restau-

    rao de papis, ressaltando o volume

    quantitativo de acervos em papel locali-

    zados no territrio brasileiro, bem como

    a problemtica de conservao num pas

    de clima tropical.

    No final da dcada de 1970, destaca-se o

    pioneirismo da implementao de um cen-

    tro especialmente dedicado ao tratamento

    do papel, o Laboratrio de Conservao

    e Restaurao de Documentos Grficos

    (LACRE) do Centro de Documentao da

    Fundao Casa de Rui Barbosa, a partir

    da aprovao de projeto da Financiadora

    de Estudos e Projetos (FINEP). Por meio

    de cursos e estgios supervisionados, o

    LACRE participou efetivamente, nos anos

    de 1980 e 1990, na formao de grande

    parcela de conservadores-restauradores

    especializados em documentos grficos,

    tornando-se referncia no mbito nacional

    na implantao de laboratrios e ncleos

    iniciais de conservao-restaurao de

    papel em diversos museus, arquivos, bi-

    bliotecas e universidades.

    Quanto aos critrios de valorao do bem

    cultural e, consequentemente, das esco-

    lhas do patrimnio a ser preservado, os

    movimentos sociais possibilitados pela

    abertura do regime poltico, em fins da

    dcada de 1970, contriburam no sentido

    de dar voz pluralidade de vivncias e

    reapropriao da memria. No processo

    de reivindicao pela democratizao da

    cultura, os agentes culturais trabalham no

    sentido da ampliao da noo de bem

    cultural, so eleitas novas memrias, e te-

    mas como pertencimento, transformao

    social e cidadania inserem-se no debate

    preservacionista.

    Nesse contexto, Alosio Magalhes no-

    meado diretor do IPHAN, inaugurando-

    se a fase moderna do rgo oficial

    de proteo do patrimnio brasileiro.

    Recm-empossado, Magalhes participa

    do I Encontro Brasileiro de Conservao e

    Restaurao de Livros e Documentos, em

    30 de julho de 1979, no Museu Paulista.

    Magalhes profere o discurso A preser-

    vao da memria nacional e lembra o

    conceito abrangente de bem cultural, tal

    como propusera Mrio de Andrade. Ma-

    galhes nos chama a ateno para a ne-

    cessidade de preservao do conjunto de

    bens culturais que integram o patrimnio

    brasileiro, fazendo meno, em particular,

    ao papel enquanto categoria tipolgica

    artigo_Aloisio_Arnaldo.indd 41 6/6/2011 12:06:19

  • A C E

    pg. 42, jul/dez 2010

    de bem cultural a ser preservado: ou

    comeamos a cuidar de nossos papis,

    onde esto contidas informaes, dados,

    e valores que traam a trajetria evoluti-

    va, ou vamos carecer dessas informaes,

    fundamentais na explicitao do futuro.43

    Ao frisar a importncia dessa conscien-

    tizao cultural Magalhes assevera que

    no caso especfico do papel e do docu-

    mento, o papel o suporte de grande

    parte da nossa informao histrica. E se

    esse suporte no merecer um trato ade-

    quado, desaparece a informao que nele

    foi depositada em tempos passados.44

    oportuno destacar a relevncia do dis-

    curso oficial de Magalhes na medida em

    que ele valoriza o papel como tipologia

    de bem cultural a ser preservado, eviden-

    ciando significativos avanos conceituais

    na poltica patrimonial brasileira.

    Em 1979, criada a Coordenadoria de

    Conservao e Restaurao de Livros

    e Documentos do Estado de So Paulo

    (CORLIDOSP) com o objetivo de elaborar

    e implantar uma sistemtica de restaura-

    o e conservao de livros e documentos

    histricos, abrir novos campos de pes-

    quisas historiogrficas e aperfeioar as

    tcnicas de restaurao, destacando-se a

    realizao, ainda em 1979, do I Encontro

    Brasileiro de Conservao e Restaurao

    de Livros e Documentos.45 tambm no

    bojo das aes da CORLIDOSP que se d

    a elaborao de projetos pioneiros de

    implantao de laboratrios de conserva-

    o e restaurao de papel no mbito do

    estado de So Paulo, bem como o projeto

    do Centro de Conservao e Restaurao

    de Livros e Documentos do Museu Paulista

    da Universidade de So Paulo.46

    Em 1984, criado o Programa Nacional de

    Preservao da Documentao Histrica

    Pr-Documento tendo como finalidade

    preservar, em todo territrio nacional,

    os acervos documentais privados de va-

    lor permanente, demarcando a atuao

    do Estado brasileiro na defesa da docu-

    mentao privada em mbito nacional.47

    Com relao aos objetivos especficos

    estabelecidos no Pr-Documento, ressal-

    tamos aspectos ligados conservao e

    restaurao de papel como a assessoria

    s atividades tcnicas de melhoria das

    infraestruturas de armazenagem e acon-

    dicionamento, alm da manuteno de

    atividades permanentes de desinfestao

    de documentos. Em 1987, realizou-se o

    I Seminrio de Biodegradao de Bens

    Culturais Papel e Madeira. Lamentavel-

    mente, o Programa durou apenas trs anos

    e foi desmobilizado em 1988.

    Vinculado ao iderio de Guita

    Mindlin e Thereza Nickelsburg

    Brando Teixeira, em 1988

    criada a Associao Brasileira de Encader-

    nao e Restauro (ABER), exemplificando

    a importante participao da sociedade

    civil no campo da conservao e restau-

    rao de livros, documentos impressos e

    manuscritos, bem como da encadernao

    artesanal.48 Em convnio com a Escola Se-

    nai Theobaldo de Nigris, a ABER criou, em

    1990, o curso de conservao-restaurao

    de documentao grfica, considerado o

    artigo_Aloisio_Arnaldo.indd 42 6/6/2011 12:06:19

  • R V O

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, no 2, p. 31-46, jul/dez 2010 - pg. 43

    nico em nvel tcnico na Amrica Latina,

    verificando-se a importncia da criao

    do primeiro laboratrio-escola em mbito

    nacional. O curso tem como finalidade

    preparar auxiliares na preservao, con-

    servao e restauro de documentao

    grfica. Ao longo dos seus vinte anos

    de funcionamento, encontra-se na 32a

    turma, tendo formado cerca de trezentos

    tcnicos representantes de diversas re-

    gies brasileiras e de pases vizinhos na

    Amrica Latina.

    Na dcada de 1990, marcam-se mu-

    danas de paradigmas conceituais mo-

    tivadas pelo despertar da conservao

    preventiva.49 nessa perspectiva que

    as aes da preservao documental

    pautam-se, notadamente, em refern-

    cias bibliogrficas de autores norte-

    americanos, conforme evidenciado no

    Projeto Conservao Preventiva em

    Bibliotecas e Arquivos (CPBA).50 Com a

    apropriao dos conceitos estabelecidos

    pela conservao preventiva, nota-se o

    paulatino desligamento da aplicao de

    tcnicas curativas do bem cultural e,

    por conseguinte, verificamos as iniciati-

    vas com tnica no desenvolvimento de

    programas de preservao dos estoques

    informacionais, planejados sob a tica

    interdisciplinar, os quais compreendem

    aspectos polticos, culturais, tcnicos

    e administrativos. Com isso, tem-se a

    quebra de paradigma, mudando o foco

    da disciplina, anteriormente dirigida ao

    bem cultural deteriorado e agora con-

    servao dos estoques informacionais.

    No mbito das sociabilidades, verifica-

    mos, ao longo da primeira dcada dos

    anos de 2000, o desenvolvimento de

    vrios projetos de preservao de acer-

    vos em papel caracterizados por prticas

    inclusivas.51 Desse modo, cabe analisar a

    ampliao do perfil dos agentes sociais

    que se integram tarefa preservacionis-

    ta. Se, primeiramente, vemos a atividade

    restrita aos especialistas no mbito das

    instituies detentoras de acervos bi-

    bliogrficos e documentais, atualmente

    verificamos a realizao de projetos de

    cidadania cultural que, ao romper frontei-

    ras institucionais e acadmicas, ganham

    contornos democrticos, promovem a

    conscientizao patrimonial e envolvem

    um maior nmero de atores sociais no

    espao plural preservacionista.

    As reflexes que entreteceram este artigo

    tentaram trazer cena algumas prticas e

    narrativas ainda pouco conhecidas e/ou

    estudadas da preservao documental,

    descortinando espaos que estimulem

    novos debates tericos e historiogrficos

    relativos preservao documental no Bra-

    sil. certo afirmar que muitas investiga-

    es ainda se fazem necessrias tendo em

    vista a melhor compreenso da construo

    cultural da disciplina. Ao voltar-se para

    essa perspectiva de anlise, este estudo

    tem o propsito de lanar luz e fustigar a

    discusso de questes concernentes ao

    caminho trilhado pela preservao dos

    acervos em papel, de modo a contribuir

    para o preenchimento de uma ampla la-

    cuna historiogrfica.

    artigo_Aloisio_Arnaldo.indd 43 6/6/2011 12:06:19

  • A C E

    pg. 44, jul/dez 2010

    N O T A S1. ARNOULT, Jean-Marie. Le Centre de Sabl (1979-1984). In: NORTIER, Michel (dir.). tudes sur

    la bibliothque nationale et tmoignages: runis en hommage Thrse Kleindienst. Paris: Bibliothque Nationale, 1985, p. 173 apud ROSSI, Libero & GUASTI, Gisella. Dal restauro alla conservazione: la gestione del patrimonio librario. Roma: La Nuova Itlia Scientifica, 1987, p. 75. (traduo nossa).

    2. MARTINEZ JUSTICIA, Maria Jose. Historia y teoria de la conservacin y restauracin artstica. Madri: Tecncos, 2000, p. 42.

    3. MATERO, Frank. Ethics and policy in conservation. The GCI Newsletter, v. 15, n. 1, Spring 2000, p. 4.

    4. KHL, Beatriz Mugayar. Histria e tica na conservao de monumentos histricos. Revista do Patrimnio Cultural, USP, So Paulo, v. 1, n. 1, p. 17, nov. 2005/abr. 2006.

    5. CHARTIER, Roger. A histria cultural: entre prticas e representaes. Rio de Janeiro: Difel, 1990, p. 14.

    6. Idem, ibidem, p. 16-17.

    7. EHRELE, F. Della Conferenza Internazionale di S. Gallo (1898). Revista delle biblioteche e degli archivi, v. XX (1909), p. 113 apud FURIA, Paola. Storia del restauro librario. Roma: Istituto Cen-trale per la Patologia del Libro; Milo: Editrice Bibliografia, 1992, p. 48.

    8. FEDERICI, Carlo & ROSSI, Libero. Manuale di conservazione e restauro del libro. Roma: La Nuova Italia Scientifica, 1983, p. 27.

    9. GALLO, Alfonso. Vicende e danni di guerra. Boll. I.P.L., VI 91947, p. 1-14 apud FURIA, Paola, op. cit., p. 65-66.

    10. Entomologista do Departamento de Zoologia da Secretaria da Agricultura do Estado de So Paulo.

    11. CARRERA, Messias. Histria dos insetos inimigos dos livros. Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia, v. 33, n. 3, p. 354, 1981.

    12. O Arquivo Pblico do Imprio foi criado por meio do regulamento n. 2, de 2 de janeiro de 1838.

    13. ARQUIVO NACIONAL. Relatrio do Arquivo Pblico do Imprio de 1846 apud HOLLS, Adriana Lcia Cox. Entre o passado e o futuro: os limites e as possibilidades da preservao documental no Arquivo Nacional do Brasil. 2006. Dissertao (Mestrado em Memria Social), UNIRIO, Rio de Janeiro, p. 50.

    14. Idem, ibidem, anexo F, p. 91-99.

    15. SUBSECRETARIA DO PATRIMNIO HISTRICO E ARTSTICO NACIONAL. Bens mveis e imveis inscritos nos livros do tombo do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Braslia: 1982, p. 11.

    16. Cf. Ata de Incinerao transcrito do Jornal Estado da Bahia, de 17 de dezembro de 1937, apud DUARTE, Eduardo de Assis. Leitura e cidadania. Disponvel em http://www.unicamp.br/iel/memoira/Ensaios/leitura%20e%20cidadania.htm. Acesso em: 9 abr. 2007.

    17. Cf. Coleo Papis Avulsos alocados no Arquivo Histrico Municipal Washington Lus, de So Paulo.

    18. Edson Motta ocupava, como servidor pblico, o cargo de conservador do patrimnio histrico e artstico, na ento Diretoria do Patrimnio Histrico e Artstico do Ministrio da Educao e Cultura. Arquivo Noronha Santos IPHAN, Srie Conservao e Restaurao.

    19. MOTTA, Edson. Pinturas. Rio de Janeiro, 1982. No paginado. (Catlogo de exposio, 9 set./ 3 out. 1982, Museu Nacional de Belas Artes, Ministrio da Educao e Cultura, Fundao Nacional Pr-Memria).

    20. Arquivo Noronha Santos IPHAN. Srie Centro de Restaurao de Bens Culturais. Relatrio sobre as atividades do Laboratrio da Biblioteca 1948-50, Rio de Janeiro, 6 de novembro de 1950.

    21. BARROSO, Gustavo. Arrumao de livros/Conservao de livros. In: BARROSO, Gustavo. Introdu-o tcnica de museus. Rio de Janeiro, v. 1, Grfica Olmpica, 1946, p. 222-224.

    artigo_Aloisio_Arnaldo.indd 44 6/6/2011 12:06:19

  • R V O

    Acervo, Rio de Janeiro, v. 23, no 2, p. 31-46, jul/dez 2010 - pg. 45

    22. Idem, ibidem, p. 13-14.

    23. Idem, ibidem, p. 84.

    24. MOTTA, Edson. Pinturas, op. cit.

    25. Conservadora-restauradora aposentada, ex-diretora do Centro de Conservao e Restaurao de Bens Culturais do IPHAN.

    26. Apud BERNWANGER, Ktia Ins e CHRISTO, Tatiana R. Restaurao de incunbulo, reverso de laminao Barrow. Boletim Informativo da Associao Brasileira de Conservadores-Restauradores de Bens Culturais, p. 11, mar./abr./maio 2001.

    27. HOLLS, Adriana Lcia Cox. Entre o passado e o futuro, op. cit., p. 44.

    28. Bibliotecria da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal da Bahia e professora do curso de restaurao do Arquivo Pblico do Estado.

    29. CORUJEIRA, Lindaura Alban. Conservao e restaurao de livros e documentos. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE BIBLIOTECONOMIA E DOCUMENTAO, 3, 1961, Curitiba. Anais... Curitiba, 1961, p. 41-58.

    30. Resumo das decises tomadas nas reunies convocadas pelo diretor-geral, Rodrigo Melo Fran-co de Andrade, realizadas na sede do DPHAN nos dias 3, 4 e 5 de dezembro de 1962, com o fim especial de estabelecer normas e planos para ordenao dos trabalhos de recuperao de obras de arte. Arquivo Noronha Santos IPHAN, Centro de Restaurao de Bens Culturais do SPHAN.

    31. Arquivo Noronha Santos IPHAN, Srie Conservao e Restaurao.

    32. COREMANS, Paul. Organizacin de un Servicio Nacional de Preservacin de los Bienes Culturales. In: UNESCO. La conservacin de los bienes culturales. Paris: Unesco, 1969, p. 83.

    33. Arquivo Noronha Santos IPHAN, Srie Centro de Restaurao de Bens Culturais. Documento de 5 de fevereiro de 1968.

    34. MOTTA, Edson. Palavras de abertura. In: SEMINRIO BRASILEIRO DE PRESERVAO E RESTAU-RAO DE DOCUMENTOS, 1, 21 e 22 de outubro de 1976, Rio de Janeiro. Anais... CONGRESSO BRASILEIRO DE ARQUIVOLOGIA, 3, 1976, Rio de Janeiro, 1979, p. 813.

    35. Bibliotecria da Universidade Federal da Bahia e professora do curso de restaurao do Arquivo Pblico da Bahia.

    36. BRADLEY JR., Morton C. The treatment of pictures. Cambridge, Massachusetts: The Cosmos Press, 1950.

    37. Arquivo Noronha Santos IPHAN, Srie Centro de Restaurao de Bens Culturais.

    38. Conservao e restaurao: problemas da Nacional do Rio de Janeiro. Revista de Biblioteconomia, Braslia, v. 3, n. 2, p. 199-208, jul./dez. 1975. Trad. Elton Eugnio Volpini, p. 5-6.

    39. Arquivo Noronha Santos IPHAN, Srie Centro de Restaurao de Bens Culturais.

    40. Conservao e restaurao: problemas da Nacional do Rio de Janeiro, op. cit.

    41. Depoimento de Gilda Lefebvre realizado em 5 de maio de 2006.

    42. Arquivo Noronha Santos IPHAN, Srie Centro de Restaurao de Bens Culturais (Laboratrio).

    43. COORDENADORIA DE CONSERVAO E RESTAURAO DE LIVROS E DOCUMENTOS DO ESTADO DE SO PAULO (CORLIDOSP). Relatrio de atividades. So Paulo: 1980, p. 5. (cpia xerogrfica).

    44. Idem.

    45. Cabe registrar que tal evento no foi, portanto, o primeiro encontro no campo conservao e restaurao de papel a ser realizado no mbito brasileiro. De fato, o primeiro evento realizado foi o I Seminrio Brasileiro de Preservao e Restaurao de Documentos, realizado no Centro de Tecnologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 1976, como parte integrante do III Congresso Brasileiro de Arquivologia.

    46. Arquivo Noronha Santos IPHAN, Srie Conselho.

    artigo_Aloisio_Arnaldo.indd 45 6/6/2011 12:06:19

  • 47. PROGRAMA NACIONAL DE PRESERVAO DA DOCUMENTATAO HISTRICA Pr-Documento. Rio de Janeiro: Fundao Nacional Pr-Memria, 1984, p. 3.

    48. Boletim ABER, ano X, n. 2, p. 2, 1998.

    49. Cf. GUICHEN, Gal de. La conservation preventive: un changement profond de mentalit. Study series, Bruxelas, ICOM-CC/ULB, v. 1, n. 1, p. 4-5, 1995.

    50. Pelo alcance dos resultados obtidos, o Projeto CPBA recebeu, em 1998, o Prmio Rodrigo Melo Franco de Andrade.

    51. Como, por exemplo: Penitenciria Estadual de Maring, Penitenciria Talavera Bruce no Rio de Janeiro, Ong Novo Papel, Fundao Pedro Calmon na Bahia e Centro de Estudos de Restauro do Patrimnio em Olinda (CERPO).

    Recebido em 25/10/2010

    Aprovado em 26/11/2010

    artigo_Aloisio_Arnaldo.indd 46 6/6/2011 12:06:19