Prescrição de Benzodiazepínicos por Clínicos Gerais

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Artigo de revisão publicado na Diagnóstico e Tratamento (APM) sobre a prescrição de Benzodiazepínicos por Clínicos Gerais.

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Diagn Tratamento. 2009;14(2):66-9.

Interesse geral

Prescrição de benzodiazepínicos por clínicos geraisDavid Gonçalves Nordon1 Carlos von Krakauer Hübner2

Centro de Ciências Médicas de Biológicas de Sorocaba

INTRODUÇÃOOs benzodiazepínicos se tornaram disponíveis a partir da

década de 1960 e, desde então, estão entre os psicofármacos mais prescritos.1 No Brasil, é a terceira classe de drogas mais prescrita,2 e 5,6% da população já os usou na vida (contra 8,3% nos Estados Unidos).3 Entre as décadas de 70-80, seu potencial de criação de dependência e seus efeitos colaterais passaram a ser mais estudados, e no mundo todo se iniciou uma política de contenção de seu uso, visível, no Brasil, com o formulário azul. Devido a isso, a prescrição de benzodiazepínicos, antes uma pa-naceia a todos os problemas relacionados à ansiedade e insônia, ficou restrita a tratamento de quadros agudos de ansiedade, cri-ses convulsivas e como sedativo para cirurgias, de caráter breve e com a menor quantidade possível.4

É consenso, atualmente, que benzodiazepínicos causam to-lerância e dependência com o uso prolongado (segundo alguns autores, mais que quatro semanas). Ademais, seu uso contínuo provoca efeitos colaterais mais graves do que a simples sono-lência diurna, como perda de memória, de função cognitiva, e desequilíbrio, levando a uma maior incidência de quedas em idosos.5-8 Entretanto, tendo em vista a sua perda de eficácia dentro de quatro meses, acredita-se atualmente que a depen-dência de benzodiazepínicos possa ter ultrapassado o fisiológico para se tornar algo comportamental, ou seja, a pessoa se torna dependente da função do que acha que o medicamento executa e do hábito de tomá-lo.9,10

A maioria dos problemas de origem psicológica ou psicos-social é vista primariamente pelo clínico geral, no atendimen-to primário. Se a prescrição de benzodiazepínicos é iniciada neste momento, e erroneamente, pode conduzir a um círculo vicioso que dura, muitas vezes, vários anos. Sendo assim, o conhecimento a respeito dos benzodiazepínicos e a sua pres-crição correta por clínicos gerais são de suma importância. Por isso, este trabalho tem como objetivo revisar artigos sobre a prescrição de benzodiazepínicos por clínicos gerais, na aten-ção primária.

MÉTODOSFoi feita uma revisão da literatura, por meio do portal da

Bireme (Biblioteca Regional de Medicina, www.bireme.br), pesquisando nas seguintes bases de dados: Medline (Medical Literature Analysis and Retrieval System Online), Lilacs (Li-teratura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde) e Biblioteca Cochrane de acordo com a estratégia descrita na Tabela 1.

RESULTADOS E DISCUSSÃOA quantidade de artigos encontrados de acordo com o

tipo, a sua estratégia de busca e a base de dados utilizada estão descritos na Tabela 1. Na base de dados Medline, foram en-contrados 336 artigos (alguns encaixados pela base de dados como mais de um tipo de publicação); na Lilacs, 11 artigos, e na Biblioteca Cochrane, foram encontrados 211 artigos. Dentre todos estes, foram selecionados os artigos relacionados exclusivamente à prescrição de benzodiazepínicos por clíni-cos gerais ou no atendimento primário, nas línguas inglesa, espanhola, portuguesa e francesa, totalizando 10 artigos; ne-nhum deles, infelizmente, é brasileiro ou sequer da América Latina, mostrando o quão escassa é a pesquisa a respeito em nosso país.

Características dos pacientesO uso de benzodiazepínicos é mais comum em mulheres,

de duas a três vezes mais do que em homens, e aumenta con-forme a idade.11-14 Um estudo espanhol11 classificou o usuário mais comum como uma mulher de 38 a 70 anos, com estudos primários ou nenhum estudo, casada ou com parceiro. Já outro estudo13 relacionou o uso de benzodiazepínicos como três vezes mais provável por pacientes com transtornos psiquiátricos. Um estudo escandinavo14 identificou que, dentre as prescrições de benzodiazepínicos, 52,7% eram direcionadas para pacientes de 65 anos ou mais e de quantidades duas vezes maiores de medi-camento que para adultos de 20 a 29 anos. 80% das prescrições

1 Acadêmico do quarto ano de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Sorocaba, São Paulo. 2 Doutor em Psiquiatria pela Heidelberg Universität e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Sorocaba, São Paulo.

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eram repetidas, em média, sendo de 86,9% em pacientes com 65 anos ou mais.

Características dos clínicos geraisUm estudo sueco12 demonstra que, na prescrição geral de

psicotrópicos, as médicas mais novas têm certa tendência a prescrever mais para mulheres e com maior frequência em geral do que homens e médicos (homens ou mulheres) mais velhos. Por outro lado, um estudo canadense15 específico para benzo-diazepínicos de longa duração relata que as chances de pres-crição aumentavam se o médico era homem, formado como generalista e antes de 1959. Ademais, os que prescreviam com maior frequência tendiam a ter mais pacientes mulheres e me-nos pacientes de quadros agudos em seus consultórios.

Motivos da prescriçãoO motivo mais citado e comum em todos os artigos revisa-

dos foi a falta de tempo,12,16-18 o que impediria outras orienta-ções, também importantes, para as queixas de insônia e ansie-dade. Outro motivo foi a falta de pagamento por diagnósticos psiquiátricos.16,17 Outros motivos podem ser o fato de clínicos gerais geralmente subestimarem a quantidade de seus pacien-tes que fazem uso de benzodiazepínicos ou a gravidade deste uso, subestimarem os efeitos colaterais das drogas,16-18 ou até mesmo verem as guidelines como inadequadas à realidade.17 Já a superprescrição para idosos pode se dever não só aos fatos citados, como também à avaliação de que os benefícios do uso eram maiores que o risco,14,17 e que o uso não era tão perigo-so por idosos quanto por mais jovens.14 Um estudo espanhol

demonstrou que o maior motivo de prescrição de benzodia-zepínicos era a queda do limiar de tolerância da população ao mal-estar emocional causado pela vida atual.16 Ademais, a prescrição pode ser vista, também, como uma forma de ajudar o paciente e se sentir útil.18 Um estudo escandinavo18 mostrou que os clínicos gerais iniciavam a prescrição para permitir que o paciente funcionasse propriamente em sua vida social ou profissional, para descansar de seus problemas ou reduzir o sofrimento. Por fim, a prescrição poderia ser feita como um modo de manter bom relacionamento com o paciente, tendo em vista que os médicos tinham medo das consequências da negação da prescrição da receita, em especial para pacientes já bem conhecidos.12,18

Adequabilidade da prescriçãoNão há nenhum estudo que se dedique exclusivamente a

avaliar a adequabilidade das prescrições de acordo com o trans-torno psiquiátrico. Contudo, tendo em vista os dados obtidos sobre a incidência, os motivos e a duração das prescrições, ficou evidenciado por um ou outro aspecto que a maioria das prescri-ções é inadequada em diversos estudos.12,14,16,17,19

Um estudo holandês19 demonstrou que clínicos gerais diag-nosticaram um problema de saúde mental em 13,2% dos par-ticipantes do estudo, sendo um terço psicossocial e um quarto de alterações de humor. Eles próprios trataram 86% destes e prescreveram um psicotrópico (em maioria antidepressivos e benzodiazepínicos) para 52%. Já um estudo escandinavo14 de-monstrou que, de 3.452 prescrições avaliadas, apenas uma in-cluía informações sobre a duração do tratamento.

Base de dados Estratégia de busca ResultadosMedline (Medical Literarure Analysis and Retrieval System Online)

“benzodiazepinas” [descritor de assunto] AND “prescrição de medicamentos” [descritor de assunto]

194 estudos controlados aleatórios

16 estudos de coorte

15 revisões sistemáticas

45 revisões narrativas

10 relatos de casos

10 editoriais

46 cartasLilacs (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde)

“benzodiazepinas” [descritor de assunto] AND “prescrição de medicamentos” [descritor de assunto]

6 estudos controlados e aleatórios

1 revisão sistemática

1 revisão narrativa

2 cartas

1 relato de casoBiblioteca Cochrane “benzodiazepines and prescription” Revisões sistemáticas da Cochrane: 55 (Revisões completas:

48, protocolos: 7)

Resumos de revisões sistemáticas com qualidade avaliada: 3

Registro Cochrane de Ensaios Controlados: 138

Sobre a Colaboração Cochrane: 4

Outras Revisões Publicadas: 1

Avaliações Econômicas do National Health Services (NHS): 10

Tabela 1. Base de dados, estratégia de busca e resultados dos artigos levantados

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CONSIDERAÇÕES FINAISAtualmente, estamos conduzindo um trabalho sobre pres-

crição de benzodiazepínicos em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) de Sorocaba, São Paulo, através do qual pretendemos quantificar a porcentagem de pacientes atendidos que fazem uso de benzodiazepínicos, há quanto tempo e por qual razão. Em resultados preliminares, já podemos observar que 10% dos frequentadores da UBS utilizam tais medicamentos, a maioria (75%) há mais de três anos, e a grande maioria para queixas de insônia e ansiedade (50% e 34,7%).

CONCLUSÕESNão há trabalhos brasileiros avaliando a prescrição de benzo-

diazepínicos na atenção primária, o que não deveria ocorrer em um sistema tão completo e complexo como o Sistema Único de Saúde (SUS). A bibliografia é escassa e restrita a países de primei-ro mundo, o que limita e pode alterar a amostra. O maior foco dos trabalhos é sobre a prescrição para pacientes idosos e não há estudos sobre a prescrição para pacientes jovens, exclusivamente. A análise dos artigos pôde demonstrar que os benzodiazepínicos são mais prescritos para mulheres (de duas a três vezes mais que para homens) e idosos, aumentando conforme a idade. Os que mais prescrevem são homens de formação mais antiga e gene-ralistas. O principal motivo para a prescrição é o tempo escasso da consulta, que impede que outras técnicas sejam utilizadas; além disso, é importante notar que a necessidade de o médico ser aceito pelo paciente e a sua empatia por ele faz com que o ben-zodiazepínico seja mais facilmente prescrito. A superprescrição também pode ocorrer ao se subestimarem os efeitos colaterais das drogas. Todos os estudos que falaram a respeito citaram que as prescrições são inadequadas, por um ou outro motivo. Tam-bém é notável que as prescrições raramente vêm acompanhadas de instruções com relação à duração do tratamento. Assim, re-comenda-se que todos estes fatores sejam levados em conta e, na prescrição de um benzodiazepínico, siga-se o guideline para tal.

INFORMAÇÕESEndereço para correspondência: Faculdade de Ciências Médicas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo — Campus SorocabaPraça Dr. José Ermírio de Moraes, 290Jardim FaculdadeSorocaba (SP) — CEP 18030-095Tel. (15) 3211-0212Fax. (15) 3211-0212E-mail: [email protected]

Fontes de fomento: nenhumaConflito de interesse: nenhum

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Data de entrada: 11/8/2008Data da ultima modificação: 19/03/2009

Data de aceitação: 23/3/2009

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RESUMO DIDÁTICO1. No Brasil, benzodiazepínicos são a terceira classe de drogas mais prescrita, e 5,6% da população já os usou na vida.

Não há trabalhos brasileiros avaliando a prescrição de benzodiazepínicos na atenção primária, o que não deveria ocorrer em um sistema tão completo e complexo como o Sistema Único de Saúde.

2. O uso de benzodiazepínicos é mais comum em mulheres, de duas a três vezes mais do que em homens, e aumenta conforme a idade.

3. Dentre as prescrições de benzodiazepínicos, 52,7% eram direcionadas para pacientes de 65 anos ou mais e de quantidades duas vezes maiores de medicamento que para adultos de 20 a 29 anos.

4. As chances de prescrição aumentam se o médico é homem, formado como generalista e antes de 1959. 5. O motivo mais citado e comum para a prescrição de benzodiazepínicos em todos os artigos revisados é a falta de

tempo, que impediria outras orientações, também importantes, para as queixas de ansiedade e insônia. 6. Clínicos gerais geralmente subestimam a quantidade de seus pacientes que fazem uso de benzodiazepínicos

ou a gravidade deste uso, os efeitos colaterais das drogas, ou até mesmo veem a guideline como inadequado à realidade.