Prefacio Livro PETER GAY

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PETER GAY O século de Schnitzler A formação da cultura da classe média 1815-1914 Tradução S. Duarte COMPANHIA DAS LETRAS

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Prefácio ao livro de Peter Gay sobre o século XIX

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PETER GAY

O século de SchnitzlerA formação da cultura da classe média 1815-1914

Tradução

S. Duarte

COMPANHIA DAS LETRAS

Prefácio

Este livro é a biografia de uma classe social, a classe média do século xix entre 1815 e 1914. Meu guia foi Arthur Schnitzler, autor austríaco de peças teatrais, romances e contos, o escritor mais interessante de seu tempo. Por que Schnitzler? Não se tratava de um burguês arquetípico. Em sua classe social houve muitíssimos outros, anónimos, nascidos no século xix, menos abastados, menos talentosos, menos articulados — menos neuróticos —, isto é, mais representativos do que ele. Se por "representativo" queremos dizer "mediano", Schnitzler não serviria a meus propósitos, pois "medíocre" seria o último dos epítetos aplicável a ele. No entanto, como descobri durante minha pesquisa, era dotado de qualidades que o tornam testemunha fidedigna e engenhosa do mundo da classe média que pretendo descrever neste livro. Em cada um dos capítulos seguintes ele estará presente, às vezes de maneira breve, para dar ímpeto a investigações mais profundas, outras vezes como participante. Achei-o imensamente interessante (embora nem sempre agradável), mas esse não seria motivo suficiente para transformá-lo em uma espécie de mestre-de-cerimônias para o drama muito mais abrangente que explorei e procurei compreender. Havia outras razões melhores e mais objetivas.

Na verdade Schnitzler era vienense até a medula dos ossos. Viajou relati-vamente pouco — nasceu em Viena em 1862, morreu em Viena em 1931, e

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(exceto rápidas visitas a Londres, Berlim e Paris, além de curtas férias no norte da Itália) passou a vida toda nessa cidade. Porém, devido a vigorosos e ca-racterísticos anseios, tratou de um espectro extraordinário de estilos e ideias, preservando para a posteridade o gosto e os sentimentos no diário que cons-cienciosamente redigiu durante muitos anos. Teve acesso privilegiado, jamais ingénuo, à mentalidade da classe média de seu tempo, à de seus contemporâneos e à sua própria. Numa palavra, sua cultura era cosmopolita; na verdade, sua vida e obra comprovam não ser necessário fazer longas viagens para ser viajado. Como foi o caso de Schnitzler, a mente é capaz de receber impulsos vindos de lugares distantes através das gerações, e com eles trabalhar. As lite-raturas modernas da França e da Inglaterra (sem excluir a americana) eram sua leitura, para não falar dos principais romancistas e dramaturgos russos e escandinavos. Era igualmente receptivo à música e à arte de muitos países. Posso dizer que com ele viajei à Noruega e à Itália, aos Estados Unidos e à Rússia. E, corno já dei a entender, mostrou-se cordial, confiável e imensamente informativo.

Schnitzler foi um homem do século xix cuja vida abarcou boa parte do século xx. E corno na verdade o século xix gerou seu sucessor, ele é também a nossa história. Schnitzler viveu em dois séculos diferentes, o que não significa mera sobrevivência. Já se disse muitas vezes, e de forma convincente, que os anos da Primeira Guerra Mundial separaram irremediavelmente duas épocas. Porém, o que era verdadeiro no domínio da ação política — as consequências daquela guerra desencadeariam, vinte anos depois, uma era de inédita mobilização e assassinato em massa — não o era nas regiões da alta cultura. Os estimulantes movimentos nas artes, literatura e pensamento que denominamos Modernismo e associamos ao século xx estavam incubados, e de certa forma já em andamento, muitos anos antes de 1914. Um esplêndido exemplo do quanto ainda devemos a nossos ancestrais vitorianos é Friedrich Nietszche, pensador subversivo que alterou drasticamente os contornos dos caminhos da filosofia e que, apesar de enlouquecer e emudecer em 1889, representou um prenúncio de um mundo intelectual no qual ainda vivemos.

O que digo pode ser comprovado por uma pequena amostra de artistas: Henrik Ibsen, George Bernard Shaw e depois deles August Strindberg, que re-volucionaram o drama, já eram famosos — ou notórios — bem antes de 1900, e Anton Tchekhov, ilustre em tal companhia, já havia morrido em 1904.

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Arnold Schoenberg desprezou as armaduras de claves e penetrou em domínios musicais inexplorados com seu segundo quarteto de cordas, em 1908. Os ro-mancistas mais significativos do período modernista — Proust e Joyce, Mann e Hamsun — iniciaram suas carreiras na virada do século. Já naquela época Tchekhov se tornara figura exponencial como contista, tal como já o era no teatro. A pintura académica, pressionada durante décadas por artistas inde-pendentes, viu o número e a influência dos rebeldes aumentar bem antes de 1900. Escolas radicais, uma após a outra — impressionistas, pós-impressionis-tas e expressionistas, além dos secessionistas austríacos e alemães que desafiavam a arte estabelecida —, agiam como impiedosos críticos dos artistas dos salões tradicionais: Vassily Kandinsky, que havia vários anos já vinha se afastando da pintura figurativa, produziu sua primeira abstração em 1910. A lista poderia ser ampliada à vontade: em poesia, arquitetura e urbanismo nascia uma nova cultura. Talvez seja significativo o fato de ter existido na virada do século uma escola de pintores, liderada por Pierre Bonnard e Édouard Vuillard, que se intitulava Nabis — profeta em hebraico. Em suas velas enfunadas estava o futuro.

Em sua obra de ficção, também Schnitzler pairava nos limites da respei-tabilidade burguesa e mais de uma vez aventurou-se mais além. Em 1897 es-creveu uma comédia de concepção brilhante e realização engenhosa, Reigen [A ciranda]. Consiste em dez diálogos amorosos entre dois apaixonados, nos quais um personagem de cada par reaparece na cena seguinte e assim por diante, até terminar o círculo, cada episódio terminando em uma relação sexual — ato que nem mesmo um audacioso não conformista como Schnitzler tentou mostrar no palco. Apesar dessa concessão ao recato, o texto não foi publicado durante vários anos e passou muitos mais sem ser representado em teatro. Em seguida, em 1900, num extenso conto, "Tenente Gustl", tão fascinante quanto Reigen, construiu o fluxo de consciência do jovem oficial explorando, a partir de dentro, a mortal ansiedade de um orgulhoso militar austríaco que enfrenta um duelo provocado por ele mesmo.

O conto demonstra a amplitude das leituras de Schnitzler: conhecera por acaso a difícil e inovadora técnica de narrativa, utilizada em "Gustl", em um conto do escritor francês Édouard Dujardin, "Lês Lauriers sont coupés". Schnitzler era suficientemente modesto para reconhecer suas limitações como artista, e não se considerava companheiro de imortalidade de Tolstoi ou de

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Tchekhov, mas encrespara-se diante da afirmação dos chamados críticos be-nevolentes de que sua abundante produção literária era, em essência, conven-cionalmente original, mera reciclagem de seus dramas anteriores sobre jovens solteiros irresponsáveis e. aventuras amorosas adúlteras. Na verdade, como protestou ele com certa indignação, era mais imaginativo, mais inventivo; numa palavra, mais moderno do que o supunham.

Tinha razão, mas, ainda assim, podemos tomar o testemunho de Schnitz-ler como prova aceitável da burguesia vitoriana? A pergunta pressupõe a existência de uma entidade única e definível, a classe média. Trata-se de tema muito discutido ao qual dedico um capítulo inteiro, o primeiro, deste livro. Durante anos os historiadores se ocuparam dele, e no final das contas a solução pode estar simplesmente numa questão de ênfase. Sem dúvida Schnitzler acreditava existir uma criatura chamada "burguês". Veremos que lhe devotava pouco respeito e tendia a equiparar burguês a maçante. Em troca, muitos burgueses sem dúvida qualificariam como excêntrica, quando não leviana, a visão que Schnitzler tinha da vida. Porém, como demonstrarei com detalhes, em muitos aspectos importantes Schnitzler era um sólido burguês, a seu modo altamente individualista. Escolheu disciplinadamente a profissão que seu pai queria, a de médico. Desejou desesperadamente que suas amantes fossem ainda virgens. Como milhões de outros burgueses, tentou sabotar os esforços das mulheres que amou e que desejavam ter profissão. Desprezava anacronismos aristocráticos, como o duelo. Pensava ter mentalidade aberta para com a cultura elevada, mas ver-se-á que não conseguiu reconciliar-se com as composições atonais de Schoenberg e nutria dúvidas a respeito do Ulisses, de Joyce. Era viciado no trabalho, amava a privacidade. Mas embora este livro comece com Schnitzler, não termina com ele. Como afirmei antes, se podemos dizer que seja biográfico, é por ser a biografia de uma classe social.

Mais do que um resumo, meu livro pretende ser uma síntese. No início dos anos 1970, interessei-me pela burguesia vitoriana como um tópico da história relativamente esquecido por meus colegas. Naturalmente existiam livros competentes sobre a classe média do século xix, mas o assunto não atraía a atenção de muitos historiadores e certamente não a dos mais interessantes entre eles. As áreas de pesquisa mais atraentes eram outras: história da mulher,

das relações de trabalho, do negro, e aquilo que um tanto pretensiosamente se intitulava a "nova" história da cultura. Durante bem mais do que duzentos anos, desde que os filósofos do século xvm secularizaram a causalidade his-tórica, a profissão de historiador vem periodicamente experimentando tais momentos de estimulante descontentamento, isto é, épocas em que os limites geralmente aceitos para a pesquisa histórica parecem estreitos, e mesmo asfi-xiantes.

Essa insatisfação foi em geral frutífera, levando a indagações que até então não haviam sido feitas e a respostas insuspeitadas. No entanto, gerou também certa confusão, especialmente depois que o terreno foi invadido pêlos mercadores pós-modernos do subjetivismo: em vez de ampliar os horizontes dos historiadores, lançaram dúvidas de maneira bem pouco razoável sobre a pesquisa da verdade a respeito do passado, à qual a maior parte dos historia-dores havia muito tempo vinha se dedicando. Nessa atmosfera inebriante, a minha própria maneira de tratar a história, isto é, a história cultural informada pela psicanálise — informada, não subjugada —, pareceu-me o caminho correto a seguir, assim como a classe média do século xix pareceu-me assunto altamente promissor, dada a indiferença geral. O que eu não sabia na ocasião, e levei alguns anos para perceber, era como meu trabalho resultaria bastante revisionista, pois não era essa a minha intenção. Simplesmente segui meu próprio rumo, para onde quer que me levassem os indícios.

O resultado foi um maciço estudo em cinco volumes aos quais dei o título geral de A Experiência Burguesa: Da Rainha Vitória a Freud. Escritos entre 1984 e 1998, concentram-se em assuntos pouco convencionais, como a sexualidade e o amor, agressão, vida interior e gostos da classe média. Embora os assuntos escolhidos claramente anunciassem o impacto de Freud em meu pensamento, tive o cuidado de ligar minha perspectiva do passado ao mundo "real", que é a pátria comum do historiador. Resumindo, diria que em minhas páginas havia grande quantidade de fatos. Alguns deles reaparecerão neste livro; simplesmente achei-os demasiadamente reveladores, demasiadamente tentadores para que fossem suprimidos. Quem tiver lido meus cinco volumes recordará essas peças essenciais: William Evart Gladstone, o vitoriano clássico, apalpando com doçura e dedicação os seios de sua mulher para aliviar uma obstrução que a impedia de amamentar o filhinho; Laura Lyman, americana da metade do século, a seduzir o marido ausente por meio de cartas in-

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flamadas que lhe prometiam "esvaziar teus cofres no próximo sábado até secá-los"; gente de classe média, apreciadores de arte, que foram os primeiros a reconhecer o mérito das telas revolucionárias de Cézanne; o pioneiro da unidade italiana, Giuseppe Mazzini, no exílio na Inglaterra, enfurecido ao descobrir que sua correspondência era violada por funcionários; o poeta van-guardista Charles Baudelaire louvando o gosto artístico da burguesia; o magnata alemão do aço, Alfred Krupp, a recusar um título de nobreza. Sem dúvida, existem outros exemplos.

Isso, porém, não significa que este livro, moderado na extensão ainda que não necessariamente nas conclusões, seja apenas uma condensação, ao estilo do Reader's Digest, dos volumosos textos que o precederam. Acrescentei grande quantidade de material novo e tratei com maior profundidade de temas como trabalho e religião, embora já os tivesse abordado nos cinco volumes de minha extensa pesquisa. Também reaparecerão aqui com destaque reinterpretações fundamentais de opiniões bastante divulgadas sobre a bur-guesia vitoriana, as quais haviam figurado abundantemente em A Experiência Burguesa, sobretudo no que se refere às atitudes da classe média para com a sexualidade, agressão, gostos e privacidade. Não se trata, no entanto, de vinho velho em garrafa nova. Refleti sobre esses temas e creio que os compliquei ainda mais.

também celebra as diferenças. Mas estou convencido de que existe uma grande semelhança de família entre os burgueses, em que pesem todas essas diferenças. Ao utilizar o termo vitoriano minha intenção é ressaltar essa semelhança.

E, agora, levantemos a cortina.

É preciso esclarecer desde o início o amplo uso que faço do termo vitoriano. O uso costumeiro há muito define essa palavra como algo britânico e, ainda mais precisamente, como algo que sugere os gostos, moralidade e modos ingleses. O sentido jamais ficou inteiramente confinado ao reinado da rainha Vitória, pois em geral se reconhece a existência de vitorianos antes de sua subida ao trono em 1837 e após sua morte em 1901. Em suma, o nome da soberana vem sendo aplicado de maneira ampla ao século xix, isto é, desde a derrota final de Napoleão em 1815 até a eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914. Mas também havia vitorianos fora do reino. Nos anos recentes, historiadores da cultura americana domesticaram o termo; e na minha opinião ele pode ser ainda mais generalizado. Não quero com isso dizer que os "vitorianos" franceses, alemães ou italianos fossem exatamente iguais a seus contemporâneos britânicos; além de ser uma tentativa de generalização, este livro

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Overture

"Foi encontrado um diário, naturalmente o mais recente (sobre Emilie).

Grandes cenas com meu pai." Nos capítulos seguintes, pretendo explorar as

implicações dessa anotação lacónica, utilizando como chave para a experiência

vitoriana da classe média uma aparente e fugidia escaramuça doméstica, uma

invasão não consentida das confissões secretas de um menino de escola; mas

não quero dar a impressão de que tal enfrentamento fosse comum. Uso-a, no

entanto, como breve abertura que apresente os temas a serem repetidos, de

forma muito ampliada e extensa, na ambiciosa composição à qual serve de in-

trodução. Aquela confrontação traumática revela o macrocosmo da cultura

burguesa do século xix. Tem a mesma significação daquele momento bem co-

nhecido de Em busca do tempo perdido, no qual o sabor de uma madeleine em-

bebida no chá de limão recupera para o narrador de Proust, assim como para o

leitor, um passado rico e havia muito esquecido. Essa anotação no diário é a

minha madeleine.

Eis os protagonistas: Arthur Schnitzler, rapazinho de dezesseis anos prestes a

sair de casa para as aulas do dia no Akademische Gymnasium, e seu pai, Johann

Schnitzler, eminente especialista de doenças da garganta e professor

universitário. Hora: manhã de 18 de março de 1879. Lugar: um apartamento de

classe média alta em Viena. Objeto da discussão: um livrinho vermelho que

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o pai retirou de uma gaveta trancada da escrivaninha do filho, registro indis-creto e sub-reptício ao qual o jovem confiou com detalhes algumas aventuras eróticas precoces, e não apenas com Emilie.

Ao relatar o incidente cerca de 35 anos mais tarde, em sua autobiografia, Schnitzler, já então o escritor mais proeminente e mais controvertido da Áustria, amplia as breves frases que escrevera no diário. Evidentemente o en-frentamento lhe deixara marca indelével. Recorda a "terrível reprimenda" que recebera do pai naquela manhã de março. O sermão terminara no consultório do professor, onde o filho foi obrigado a folhear os três volumes do tratado sobre sífilis e doenças da pele escrito por Moritz Kaposi, obras repletas de ilustrações explícitas e repelentes. Schnitzler reconhece que a lição foi útil: parou com as visitas às diversas "deusas gregas" que frequentava — às quais dava os nomes de Vénus, Hebe e Juno — e o tornou mais prudente nas aventuras sexuais.

Porém, nem todas as consequências foram igualmente salutares. Schnitzler faz questão de comentar que não dera ao pai a chave da gaveta e que se opusera fortemente, ainda que de maneira silenciosa, ao "método clandestino" paterno. Considerou-o como um ato de perfídia que as boas intenções não podiam desculpar. "Se na verdade jamais foi possível estabelecer entre nós um relacionamento inteiramente aberto, certamente a recordação inapagável daquela deslealdade foi em parte responsável." O laço com o filho, rompido pelo pai, jamais pôde ser reparado.

Não foi essa a única invasão de privacidade que o jovem teve de suportar. Três meses após a bem-intencionada intromissão paterna, um dos professores do Gymnasium, ao inspecionar certos textos que os alunos haviam introduzido às escondidas na sala de exames, percorreu as páginas iniciais de um novo diário de Schnitzler em que havia trechos provocantes a respeito de sua paixão do momento. Generosamente, o mestre não fez comentários sobre esse texto íntimo nem revelou sua existência ao dr. Schnitzler, mas o simples fato de havê-lo visto levou o jovem ao desespero: uma pessoa não autorizada havia tido acesso a seus papéis mais pessoais! Confidenciou a um amigo que a única coisa a fazer era matar-se com um tiro.

Evidentemente Schnitzler não realizou esse voto romântico da puberdade. Ao contrário, em julho de 1882 destruiu seus diários um a um, por estar convencido de que não passavam de tediosa "tagarelice sobre atritos domésti-

cos" além de uns poucos comentários, alguns arrebatados, outros frígidos, acerca de Fãnnchen, seu amor do momento. Não acabou com todos eles, porém; alguns trechos certamente eram demasiado interessantes para não serem transmitidos à posteridade. O desagrado de Schnitzler com as anotações de seu diário competia com certa afeição por suas transgressões juvenis, por isso ele copiou o que era essencial, a começar pela severa referência ao crime do pai. Em retrospecto, percebe-se o motivo: a violação de seu mundo infantil por parte de um adulto amargurou e plasmou sua maneira de olhar o mundo que ele iria observar tão detidamente e cuja anatomia descreveria com fe-rocidade. Vale a pena prosseguir na investigação da pista proporcionada pela tensão emocional do enfrentamento no seio da família Schnitzler, ainda que esta não possa ter durado muito mais de uma hora, numa vida de emoções intensas. Como o próprio escritor afirmou em Paracelsus, peça em um ato, de 1887, que pode ser considerada um texto-chave para a decifração de suas preo-cupações psicológicas, a vida é um jogo misterioso; a alma se deixa penetrar apenas raramente e, mesmo assim, somente pelo investigador atento e persis-tente. "O sonho e o despertar, a verdade e a mentira se misturam. Não há se-gurança em lugar algum." Não há segurança em lugar algum — este poderia ser o lema de Schnitzler, e também, como veremos, o de sua classe social.

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