Predisposição Genética, Hereditariedade e Reabsorções

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R Dental Press Ortodon Ortop Facial 136 Maringá, v. 9, n. 2, p. 136-145, mar./abr. 2004 Predisposição genética, hereditariedade e reab- sorções radiculares em Ortodontia. Cuidados com interpretações precipitadas: uma análise crítica do trabalho de Al-Qawasmi et al. 1 Alberto CONSOLARO*, Maria Fernanda MARTINS-ORTIZ** O trabalho de Al-Qawasmi et al. 1 , publicado em março de 2003 pelo American Journal of Orthodontics and Dentofacial Orthopedics, procurou estabelecer uma predisposição gené- tica para justificar as reabsorções dentárias em Ortodontia, mas apresentou algumas limi- tações metodológicas e equívocos na interpretação de seus resultados. A análise criteriosa deste artigo ressalta que, na maioria, estas limitações foram mencionadas e reconhecidas pelos autores na discussão do trabalho, mas o seu resumo e título foram muito taxativos e conclusivos. A linguagem de estudos genéticos nem sempre é familiar a todos os clínicos e isto também requer uma análise esclarecedora à luz de uma visão mais aplicada ao cotidiano ortodôntico. Referenciar ou citar este trabalho de Al-Qawasmi et al. 1 , para afirmar de forma taxativa que se demonstrou a natureza hereditária das reabsorções dentárias em Ortodontia, pode denotar falta de conhecimento sobre o assunto ou uma leitura ou compreensão apenas do seu título. Ou ainda, a citação deste trabalho como prova definitiva de associação entre hereditariedade e reabsorções dentárias em Ortodontia pode traduzir também o desejo de excluir da prática clínica a responsabilidade de planejar de forma individualizada e deta- lhada cada tratamento com base no conhecimento das possibilidades e limitações técnicas oferecidas pela ciência ortodôntica, bem como nas suas bases biológicas, por exemplo, va- lorizando a morfologia radicular e da crista óssea alveolar e o papel dos cementoblastos na proteção da superfície radicular. Resumo Palavras-chave: Reabsorções dentárias. Reabsorção radicular. Genética. Hereditariedade. Movimen- tação ortodôntica A RTIGO I NÉDITO * Professor Titular de Patologia da Faculdade de Odontologia de Bauru, USP ** Mestre em Ortodontia e Doutoranda em Patologia Bucal pela Faculdade de Odontologia de Bauru, USP Justificativa e objetivos da análise crítica A hereditariedade como fator de predispo- sição à reabsorção dentária com freqüência é citada e pesquisada para tentar diminuir a natu- reza iatrogênica das reabsorções radiculares na Ortodontia. Os estudos sobre o assunto devem ser extremamente criteriosos, pois podem es- tigmatizar toda uma família como portadora de genes não favoráveis ao tratamento ortodôntico. Quando criteriosamente analisados, os trabalhos

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Predisposição Genética, Hereditariedade e Reabsorções

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  • R Dental Press Ortodon Ortop Facial 136 Maring, v. 9, n. 2, p. 136-145, mar./abr. 2004

    Predisposio gentica, hereditariedade e reab-sores radiculares em Ortodontia. Cuidados com interpretaes precipitadas: uma anlise crtica do trabalho de Al-Qawasmi et al.1

    Alberto COnsOlArO*, Maria Fernanda MArtins-Ortiz**

    O trabalho de Al-Qawasmi et al.1, publicado em maro de 2003 pelo American Journal of Orthodontics and Dentofacial Orthopedics, procurou estabelecer uma predisposio gen-tica para justificar as reabsores dentrias em Ortodontia, mas apresentou algumas limi-taes metodolgicas e equvocos na interpretao de seus resultados. A anlise criteriosa deste artigo ressalta que, na maioria, estas limitaes foram mencionadas e reconhecidas pelos autores na discusso do trabalho, mas o seu resumo e ttulo foram muito taxativos e conclusivos. A linguagem de estudos genticos nem sempre familiar a todos os clnicos e isto tambm requer uma anlise esclarecedora luz de uma viso mais aplicada ao cotidiano ortodntico. Referenciar ou citar este trabalho de Al-Qawasmi et al.1, para afirmar de forma taxativa que se demonstrou a natureza hereditria das reabsores dentrias em Ortodontia, pode denotar falta de conhecimento sobre o assunto ou uma leitura ou compreenso apenas do seu ttulo. Ou ainda, a citao deste trabalho como prova definitiva de associao entre hereditariedade e reabsores dentrias em Ortodontia pode traduzir tambm o desejo de excluir da prtica clnica a responsabilidade de planejar de forma individualizada e deta-lhada cada tratamento com base no conhecimento das possibilidades e limitaes tcnicas oferecidas pela cincia ortodntica, bem como nas suas bases biolgicas, por exemplo, va-lorizando a morfologia radicular e da crista ssea alveolar e o papel dos cementoblastos na proteo da superfcie radicular.

    resumo

    Palavras-chave: Reabsores dentrias. Reabsoro radicular. Gentica. Hereditariedade. Movimen-tao ortodntica

    A r t i g o i n d i t o

    * Professor Titular de Patologia da Faculdade de Odontologia de Bauru, USP ** Mestre em Ortodontia e Doutoranda em Patologia Bucal pela Faculdade de Odontologia de Bauru, USP

    Justificativa e objetivos da anlise crticaA hereditariedade como fator de predispo-

    sio reabsoro dentria com freqncia citada e pesquisada para tentar diminuir a natu-reza iatrognica das reabsores radiculares na

    Ortodontia. Os estudos sobre o assunto devem ser extremamente criteriosos, pois podem es-tigmatizar toda uma famlia como portadora de genes no favorveis ao tratamento ortodntico. Quando criteriosamente analisados, os trabalhos

  • CONSOLARO, A; MARTINS-ORTIZ, M. F.

    R Dental Press Ortodon Ortop Facial 137 Maring, v. 9, n. 2, p. 136-145, mar./abr. 2004

    que sugeriram uma relao entre hereditarieda-de e reabsores dentrias ortodnticas apresen-tam limitaes metodolgicas importantes. A linguagem de estudos genticos nem sempre familiar a todos os clnicos e isto tambm requer uma anlise luz de uma viso mais aplicada ao cotidiano ortodntico. O trabalho analisado procurou estabelecer esta relao de forma mui-to interessante, mas a forma incisiva e conclusiva de seu ttulo e resumo nos estimularam a uma abordagem crtica do mesmo. Na poca de pu-blicao do trabalho, o autor era recm formado no Departamento de Desenvolvimento Oral e Facial da Universidade de Indiana.

    Sobre a proposio, concepo e metodolo-gia utilizada

    Na segunda frase do resumo os autores afir-mam: Estudos anteriores sugeriram que a rea-bsoro radicular apical externa (EARR) apre-senta um componente gentico substancial. Entretanto, citam apenas dois trabalhos no pri-meiro pargrafo. Os prprios autores ressalvam a respeito do artigo de Newman6: Em 1975 (trabalho analisado em artigo especfico neste fascculo), Newman6 sugeriu o agrupamento familiar de reabsoro radicular apical externa, embora o padro de hereditariedade no esti-vesse claro. Depois, em seguida, reconhecem haver apenas um trabalho na literatura no qual se basearam para obter a premissa de seu estu-do: No houve nenhuma evidncia direta para uma predisposio gentica at o relato de 1997 (trabalho analisado em artigo especfico neste fascculo) de Harris, Kineret e Tolley.3 Na in-troduo do trabalho os autores afirmam a res-peito do trabalho de Harris, Kineret e Tolley3: Embora as estimativas de hereditariedade no forneam informao sobre o nmero de ge-nes que possam possivelmente contribuir com o fentipo, indicou-se que provavelmente h uma predisposio gentica importante para a EARR.

    Para procurar uma predisposio gentica nos pacientes portadores de reabsores radi-culares apicais na movimentao ortodntica, os autores estudaram os aspectos relacionados aos genes da interleucina-1 alfa e beta em 118

    membros de 35 famlias americanas localizados no cromossomo 2q13. Este mediador representa um dos inmeros mediadores locais que atuam nos processos reabsortivos sseos e dentrios.

    As vrias formas de genes da interleucina-1 alfa e beta foram analisadas a partir do DNA ob-tido de clulas da mucosa jugal removidas com swabs. Cada varivel de um gene em cromosso-mos homlogos denomina-se de alelo (Consulte o Tpico Especial deste fascculo) e os genes em cada pessoa possuem dois alelos, pois sempre temos dois pares de cromossomos homlogos (Consulte o Tpico Especial deste fascculo). No todo so 23 pares de cromossomo em cada c-lula somtica. Em uma populao pode-se ob-servar vrios alelos diferentes para um mesmo gene, como acontece com os vrios tipos ou gru-pos sanguneos, por exemplo.

    Na concepo do trabalho os autores pode-riam ter destacado que antes dos mediadores atuarem sobre as clulas responsveis pela reab-soro radicular necessrio remover os cemen-toblastos da sua superfcie, pois estas clulas protegem a superfcie radicular por no apre-sentarem receptores para os mediadores locais e sistmicos da remodelao ssea2, 5 (Fig. 5). Os mediadores qumicos locais ou sistmicos, sem a remoo dos cementoblastos, no promovem reabsoro radicular e esta remoo depende de fatores locais como a compresso do ligamento periodontal, morte por ao bacteriana ou qu-mica, ou ainda manipulao cirrgica da rea. Entretanto, Al-Qawasmi et al.1 no mencionam, nem sequer citam o papel dos cementoblastos, simplesmente ignoram estas clulas. A biologia e fisiologia ssea no se aplicam de forma total-mente equivalente biologia e fisiologia dent-ria e ou periodontal. Os tecidos odontognicos, incluindo-se o osso fasciculado ou alveolar pro-priamente dito, possuem origens embriolgicas diferentes, assim como anatomia, histologia e fisiologia especficas.

    Ainda na introduo do artigo, Al-Qawasmi et al.1 justificam o estudo dos referidos media-dores, mencionando relatos encontrados na lite-ratura a respeito da presena destes mediadores em fluidos gengivais de dentes movimentados ortodonticamente, em fenmenos teciduais re-

  • Predisposio Gentica, hereditariedade e reabsores radiculares em OrtodontiaCuidados com interpretaes precipitadas e uma anlise crtica do trabalho de Al-Qawasmi et al.1

    R Dental Press Ortodon Ortop Facial 138 Maring, v. 9, n. 2, p. 136-145, mar./abr. 2004

    lacionados reabsoro ssea e no dentria durante o deslocamento dentrio induzido. Isto indica apenas que mediadores qumicos esto presentes durante a movimentao e no a ocor-rncia de reabsoro dentria. O texto em que se apresentam estes fundamentos foram assim explicitados literalmente: A presena de IL-1 no tecido periodontal durante a movimentao dentria sugere a participao desses media-dores na reabsoro tecidual. Detectaram-se nveis aumentados de IL-1 tanto nos fluidos creviculares quanto nos tecidos gengivais de pacientes submetidos movimentao dentria ortodntica. A IL-1 foi associada reabsoro ssea (modelao catablica) acompanhando a movimentao dentria ortodntica. A variao no nvel de IL-1 entre os pacientes submetidos a tratamento ortodntico bem documentada. Acredita-se que correlacionar as diferenas in-terindividuais na quantidade de translao den-tria pode contribuir com a suscetibilidade EARR.

    As reabsores foram estudadas nos incisivos centrais superiores e inferiores e nas razes me-sial e distal do primeiro molar inferior, mas aca-baram-se utilizando apenas os resultados das re-absores dos incisivos centrais superiores, pois foram as nicas significantes. A anlise apenas dos incisivos centrais superiores representa uma importante limitao do trabalho, pois foram as nicas significantes nos testes estatsticos ado-tados (Fig. 1). Mas, em pesquisa, no podemos descartar resultados apenas porque no convm para a hiptese inicialmente estabelecida. Se os

    resultados fossem analisados nos dentes inicial-mente propostos eles no seriam significantes.

    Sobre os resultados e sua interpretaoOs resultados, segundo os autores, indicaram

    que o polimorfismo encontrado no gene da IL-1 beta foi responsvel por 15% da variao total da reabsoro apical ortodntica nos incisivos centrais superiores. Deve-se destacar que os re-sultados nos outros dentes no foram significan-tes.

    A relao gentica que procuraram estabe-lecer foi responsvel pela variao de 15% des-tas reabsores detectadas em radiografias pa-normicas e telerradiografias em norma lateral (cefalomtricas) em incisivos centrais superio-res. As imagens dentrias e especialmente radi-culares nos incisivos centrais superiores, neste tipo de radiografia, sofrem enormes distores e variaes de 15% deveriam ser descartadas e no relevadas, principalmente considerando-se a importncia do assunto. Os autores reconhecem esta importncia em seu artigo, mas os dados so questionveis para afirmaes conclusivas to fortes, inclusive no ttulo. Na ilustrao das imagens radiogrficas os autores optaram por delinear a imagem dos incisivos para ajudar o leitor a identificar os limites dos dentes de to tnues que se apresentaram (Fig. 2).

    Sobre estas limitaes, assim explicitaram os autores: Uma limitao deste estudo foi o uso de cefalogramas laterais na determinao da EARR para os incisivos superiores e inferiores e de radiografias panormicas para o primeiro

    FIGuRA 1 - Apresentao da Tabela III de Al-Qawasmi et al.1, na qual demonstram que os resultados foram significantes apenas para os incisivos centrais superi-ores. Para os demais dentes os ndices de reabsoro radicular no foram significantes e por isto estranhamente desprezados. A legenda da tabela relata: Anlise do desequilbrio de ligao para os traos quantitativos (Q-TDT) nos polimorfismos de IL-1B e IL-1A.*

    Marcadores

    Varivel IL-1B(+3954)

    IL-1A(-899)

    Incisivo central superior 0.0003 NS

    Incisivo central inferior NS NS

    Primeiro molar inferior, raiz mesial NS NS

    Primeiro molar inferior, raiz distal NS NS

    Valor mximo de EARR .0004 NS

    * Resultados somente para o modelo linear de Allison; NS, no significante (P > .05).

  • CONSOLARO, A; MARTINS-ORTIZ, M. F.

    R Dental Press Ortodon Ortop Facial 139 Maring, v. 9, n. 2, p. 136-145, mar./abr. 2004

    molar inferior. McFadden et al. (Referncia do texto original de Al-Qawasmi et al.1) indicaram que o erro de mensurao, utilizando compassos ou paqumetros eletrnicos sobre as telerradio-grafias laterais ou cefalomtricas, foi aproxima-damente 2,5 vezes maior quando comparado s mensuraes em radiografias periapicais. Tam-bm se sugeriu que a utilizao de radiografias panormicas para a mensurao de reabsoro radicular pode ocasionar superestimativas da quantidade de perda radicular em aproximada-mente 20% ou mais; e que estas radiografias no so to precisas ou confiveis quanto as radio-grafias intrabucais.

    Ainda sobre o diagnstico das reabsores radiculares detectadas, ficou estabelecido um li-mite de 2mm para que os pacientes fossem clas-sificados como acometidos pela reabsoro, en-quanto pacientes com medidas inferiores foram

    considerados no afetados. Os pacientes com reabsores de 1,9mm, ou um pouco menos, se-riam verdadeiramente diferentes geneticamente quanto sua predisposio, a partir de resulta-dos cuja variabilidade foi de apenas 15%? A su-tileza revela uma fragilidade na interpretao e extrapolao destes resultados, principalmente considerando-se o tipo de radiografia utilizada.

    Alguns dados importantes apresentam pro-blemas estatsticos no trabalho quanto ao diag-nstico das reabsores dentrias nos grupos com os alelos do gene da IL-1 beta ou com ape-nas um tipo alelo no gene da IL-1 beta (Fig. 3). O desvio padro da mdia de reabsoro den-tria nos trs grupos apresentados (2.76mm, 1,45mm e um pouco superior a zero de acordo com o grfico apresentado) to grande que es-tatisticamente possvel que, nos trs grupos, os ndices de reabsoro apical sejam iguais.

    FIGuRA 2 - Reproduo da figura 4 do trabalho de Al-Qawasmi et al.1 apresentando o tipo de radiografias nas quais realizaram-se os diagnsticos de reabsores radiculares. A legenda assim constitui-se: Figura 4. Cefalogramas laterais a. pr-tratamento e b. ps-tratamento para os indivduos tratados nas famlias A e B na Fig. 3, com heredogramas. Os incisivos centrais esto destacados em branco.

  • Predisposio Gentica, hereditariedade e reabsores radiculares em OrtodontiaCuidados com interpretaes precipitadas e uma anlise crtica do trabalho de Al-Qawasmi et al.1

    R Dental Press Ortodon Ortop Facial 140 Maring, v. 9, n. 2, p. 136-145, mar./abr. 2004

    O desvio padro da diferena estatstica no grau de reabsoro dentria nos trs grupos de apre-sentao dos genes alelos para a IL-1 beta to amplo, que no permite afirmaes conclusivas como as apresentadas (Fig. 3).

    Trabalhos anteriores utilizados como pre-missa bsica

    Os autores justificaram seu interesse pelo assunto a partir do trabalho de Newman6, de 1975, no qual o autor reconhece textualmen-te suas limitaes conclusivas quanto relao hereditariedade e reabsores dentrias (artigo analisado neste fascculo).

    Por sua vez, ao destacar Harris, Kineret e Tol-ley3*, mencionam que o padro de reabsoro dos irmos ortodonticamente tratados por estes autores foi muito semelhante. Harris, Kineret e Tolley3, porm, no constituram um grupo con-trole onde um igual nmero de pares de pacien-tes no irmos, com condies clnicas parecidas fossem submetidos a movimentao dentria e cujos graus de reabsoro fossem comparados ao grupo de pacientes irmos. Os tipos de m ocluso, de morfologia dentria e de discrepn-cias sseas geralmente so semelhantes entre irmos e o tipo de tratamento se assemelha. Uma comparao entre pares de pacientes no irmos com condies clnicas semelhantes, em

    um grupo controle, mostraria possivelmente re-absores tambm semelhantes e isto eliminaria a hiptese gentica. Mas, no trabalho, Harris, Kineret e Tolley3 no estabeleceram um grupo controle, o que prejudicou os seus resultados.

    Sobre a discusso da metodologia, resulta-dos e interpretao

    Na discusso os autores afirmam Durante muitos anos o reconhecimento da tendncia familiar de EARR sugeriu a possvel existncia de um gene ou genes de maior efeito3,6. Sendo que apenas os dois trabalhos so citados para suportar o muitos anos. Atestam o reconheci-mento da tendncia familiar de EARR com base no trabalho de Newman6 para o qual eles pr-prios afirmaram: no apresentar nenhuma evi-dncia direta para uma predisposio gentica. A premissa do trabalho avaliado baseou-se uni-camente no trabalho de 19973, apenas poucos anos atrs. Pode-se considerar uma certa impru-dncia Al-Qawasmi et al.1 basearem-se em um nico trabalho, de Harris, Kineret e Tolley3, com metodologia altamente questionvel, para ex-trair sua hiptese de pesquisa.

    Os prprios autores afirmam: Essas obser-vaes, entretanto, no eliminam a possibilidade de que alguns componentes do ambiente fami-liar, como os hbitos bucais, nutrio e outros

    FIGuRA 3 - A reproduo da figura 2 do trabalho de Al-Qawasmi et al.1 mostra um desvio padro da mdia de reabsoro dentria to grande nos trs grupos avali-ados que estatisticamente possvel que o ndice de reabsoro dentria apical entre os grupos seja praticamente a mesma. Na legenda original os dados so apresentados da seguinte forma: A. EARR mdia em 3 grupos de paciente com base nos gentipos de IL-1B. A barra representa 1 DP proveniente da mdia do grupo. B. Freqncia relativa de gentipos diferentes de IL-1B em indivduos afetados e no afetados pela EARR. Valor de EARR de 2 mm utilizado para dividir os indivduos em grupo afetado (> 2 mm) e no afetado (< 2 mm). A percentagem mais elevada de indivduos afetados com a EARR ocorreu no gentipo (72%) de IL-1B (1,1), seguido por (1,2) gentipo (39%); a menor percentagem (0%) foi no gentipo (2,2).

    EARR

    (mm

    )

    5.0

    4.0

    3.0

    2.0

    1.0

    0.0

    -1.0(1,1) (1,2)

    IL-1B Gentipo(2,2) (1,1) (1,2)

    IL-1B Gentipo(2,2)

    Perc

    enta

    gem

    Indi

    vidu

    ais

    1.0

    0.9

    0.8

    0.7

    0.6

    0.5

    0.4

    0.3

    0.2

    0.1

    0.0

    No afetado

    Afetado

  • CONSOLARO, A; MARTINS-ORTIZ, M. F.

    R Dental Press Ortodon Ortop Facial 141 Maring, v. 9, n. 2, p. 136-145, mar./abr. 2004

    fatores comuns ao meio ambiente afetando a severidade da m-ocluso, possam explicar essa condio entre os membros familiares.

    Novamente afirmam que diversos estudos su-geriram uma influncia gentica sobre a EARR associada ao tratamento ortodntico, entretanto, sabe-se que foram apenas os de Newman6 e o de Harris, Kineret e Tolley3, e ainda assim questio-nados pelos prprios autores.

    Os autores ressaltam que a IL-1 apresenta-se na periodontite crnica avanada e nos tecidos de dentes movimentados ortodonticamente. A presena de IL-1 em periodontites e no fluido gengival de dentes movimentados ortodontica-mente representa um evento natural em tecidos com intensa atividade celular, posto que um mediador da comunicao intercelular em pra-ticamente todos os tecidos conjuntivos. A maior presena da IL-1 indica apenas que a ativida-de celular e metablica do local apresenta-se aumentada. Estas evidncias foram utilizadas para justificar a maior predisposio gentica reabsoro dentria pela presena maior desta citocina.

    E complementam: Os genes IL-1 foram investigados porque codificam as citocinas co-nhecidas por estarem envolvidas na reabsoro ssea (modelao catablica) acompanhando a movimentao dentria ortodntica. Por que ser que em nenhum momento, os autores co-gitam que o paciente supostamente predisposto geneticamente reabsoro dentria, pela cito-cina pesquisada ser a mesma, apresente tambm excesso de reabsoro ssea gentica, ossos fr-geis e osteoporticos e necessidade de uma ava-liao mdica sistmica?

    Em todos os pontos, quando se refere ao as-pecto hereditrio ou gentico que estaria pre-sente em apenas 15% dos pacientes, de acordo com resultados apresentados, os prprios Al-Qa-wasmi et al.1 ressaltam: O fator gentico junta-mente com outros fatores associados a um maior risco de EARR, como um trespasse horizontal e a necessidade de extraes dentrias, devem ser considerados no plano de tratamento. Estes fa-tores no poderiam ser os maiores responsveis para essa sugerida predisposio gentica?

    A transmissibilidade dos genes e alelos da IL-

    1 e o mtodo utilizado para comprovar isto no so passveis de questionamentos, mas sim o pa-pel deste gene nas reabsores dentrias apenas nos incisivos centrais superiores, como se este dente fosse diferente geneticamente dos demais. Comprovar isto com uma variao de 15% aps diagnsticos e mensuraes em radiografias pa-normicas e telerradiografias em norma lateral (cefalomtricas) limita muito a credibilidade dos resultados obtidos. Alm disso, as radiogra-fias periapicais para controle das reabsores dentrias j so preconizadas desde 1914, por Ottolengui8.

    Ao justificar as reabsores radiculares du-rante o tratamento ortodntico os autores mini-mizaram ou at ignoraram alguns aspectos como a morfologia radicular e a grande variabilidade inerente tcnica ortodntica. Neste pargrafo podemos observar esta preocupao dos auto-res na valorizao dos seus resultados: Embora a EARR no tratamento ortodntico requeira o carregamento mecnico dos dentes, a magnitu-de, a direo e a durao de fora sobre os den-tes, estes fatores no explicaram completamente as diferenas em severidade de EARR. Estudos tm demonstrado que a variao individual obs-curece o efeito da magnitude de fora assim como o tipo de fora quando se trata de reab-soro radicular. Da mesma forma, o mecanismo de tratamento (isto , os fatores sob o controle do ortodontista) foi considerado responsvel por apenas aproximadamente da variao ob-servada em EARR. Geralmente no h nenhum mecanismo para se determinar quais pacientes respondero movimentao dentria ortodn-tica com reabsoro radicular apical. A ausncia de marcadores seguros para a suscetibilidade de pacientes a EARR tem dificultado a identifica-o pr-tratamento daqueles com maior risco. Embora diversos estudos tenham sugerido uma influncia gentica sobre a EARR associada ao tratamento ortodntico, no h nenhum estudo utilizando os marcadores de DNA polimrficos para identificar esses fatores genticos.

    A participao da IL-1 na remodelao ssea, como um dos mediadores importantes, est bem determinada. Para os fenmenos celulares sse-os se repetirem na superfcie dentria, os prin-

  • Predisposio Gentica, hereditariedade e reabsores radiculares em OrtodontiaCuidados com interpretaes precipitadas e uma anlise crtica do trabalho de Al-Qawasmi et al.1

    R Dental Press Ortodon Ortop Facial 142 Maring, v. 9, n. 2, p. 136-145, mar./abr. 2004

    cipais fatores etiolgicos devem provocar a re-moo dos cementoblastos. Sem a remoo dos cementoblastos, os mediadores presentes no conseguiriam mobilizar as clulas para atuarem na raiz dentria. Os cementoblastos so surdos para os mediadores do turnover sseo2,6, ou seja, no apresentam receptores de superfcie, ouvi-dos bioqumicos para estes mediadores, por isto protegem a raiz dentria da remodelao ssea (Fig. 4).

    Alm das variaes anatmicas, um aspec-to limitante nas pesquisas sobre os fatores que mais influenciam na intensidade das reabsores dentrias a heterogeneidade das tcnicas e dos operadores. Quando so vrios os operadores, especialmente de clnicas de graduao e de v-rias clnicas que determinam a amostragem, tor-na-se difcil reduzir a influncia destas variveis nos resultados. Os autores reconhecem isto em sua discusso, colocando estas variveis como limitadoras de suas concluses.

    Em sua discusso, os auto-res destacam que no se pode descartar que seus resultados advenham da possibilidade dessas observaes decorre-rem de componentes do am-biente familiar, como: hbitos bucais, nutrio e outros fato-res comuns ao meio ambiente, afetando a severidade da m ocluso, o que explicaria essa condio entre os membros familiares (tabela II do traba-lho original). Esta afirmao refora que o ttulo do traba-lho e a concluso foram muito afirmativos e taxativos.

    As pesquisas objetivando demonstrar efetivamente a relao de marcadores gen-ticos, detectados antes do tra-tamento ortodntico, podem ser muito importantes, mas para isto os resultados preci-sam ser convincentes. Estu-dos sobre essas questes de-

    vem incluir potencialmente uma anlise de se-qncia de DNA em larga escala de indivduos. Os efeitos do gene da IL-1B sobre a reabsoro dentria apical e uma provvel predisposio gentica, de acordo com os prprios autores, envolvem tendncias muito mais probabilistas do que uma programao gentica pr-deter-minada.

    Os prprios autores reconhecem isto e, de forma elegante, textualizam que seus resultados indicam que a variao gentica da IL-1B no age como um nico gene responsvel pelas dife-renas entre os pacientes com risco de reabsor-es apicais durante o tratamento ortodntico. Ao contrrio, o desequilbrio de ligao, sem evidncia forte, mais consistente com uma interpretao de que as reabsores apicais re-presentam uma complexa condio polignica. Seriam necessrios muito mais genes envolvidos

    FIGuRA 4 - Clula com receptor de superfcie em sua membrana, ouvido acoplando-se a um mediador mensagem e provocando alterao bioqumica intracelular (1), fazendo com que um gene, localizado no ncleo (2), ordene a realizao de uma determinada funo (3). Os cementoblastos no apresentam recep-tores, so surdos para as mensagens emitidas pelos mediadores da remodelao ssea, protegendo as-sim, a superfcie radicular. Estudar a gentica do mediador no implica estudar como a reabsoro dentria se inicia ou sua susceptibilidade.

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  • CONSOLARO, A; MARTINS-ORTIZ, M. F.

    R Dental Press Ortodon Ortop Facial 143 Maring, v. 9, n. 2, p. 136-145, mar./abr. 2004

    com forma, tamanho, cor, nmero e diversas outras caractersticas dentrias para determinar o envolvimento gentico de certas reabsores dentrias. Para os autores a variao gentica da IL-1B pode ser uma influncia importante, mas no exclusiva, sobre o risco do paciente. Esta re-lao mencionada no apresenta correlao com a predio da severidade de reabsores nos pa-cientes ortodonticamente tratados.

    Sobre as concluses do trabalhoEm suma, este trabalho no mapeou os genes

    da reabsoro dentria, e nem se props a isto, como se fez no projeto genoma, apenas procu-rou estabelecer uma relao com um determi-nado gene de um dos mediadores, para talvez, depois de outros estudos, servir como exame de-tector de susceptibilidade gentica, a ser ainda determinada e confirmada, caso exista ou no.

    Um destaque especial deve ser atribudo ltima frase do artigo analisado: De qualquer forma, provvel que os fatores genticos que influenciam a reabsoro api-cal ortodntica sejam heterogne-os e com mecanismos diferentes em pessoas afetadas, ou mesmo nas respostas especficas de cer-tos locais na mesma pessoa. Ou seja, no se pode, a partir deste trabalho, afirmar que h suscepti-bilidade gentica; o estudo apenas representa mais uma tentativa v-lida, apesar das limitaes meto-dolgicas, para esclarecer os vrios fatores envolvidos na reabsoro dentria induzida durante o trata-mento ortodntico.

    No texto do artigo os autores referem-se aos genes estudados sempre como genes candidatos, eles prprios reconhecem quase todos estes aspectos limitadores abordados, mas, ao nosso ver, exa-geraram na forma incisiva e taxa-tiva ao formularem o ttulo e ao redigirem o resumo do trabalho,

    quando omitiram o termo candidato. O fato de desconhecerem que o mais importante pre-servar os cementoblastos que recobrem a super-fcie radicular para evitar as reabsores e tam-bm de no relevarem a influncia da morfolo-gia radicular e da crista ssea na previsibilidade das reabsores radiculares em Ortodontia, pro-vavelmente esteja relacionado com o foco que escolheram para as suas pesquisas.

    Um dado curioso do trabalho apresenta-se na citao de uma frase de Ketcham4 em suas concluses: Deve haver uma causa subjacente ou talvez uma susceptibilidade no reconhecvel at agora aos efeitos patolgicos provenientes de estmulo mecnico, frase esta retirada de um trabalho de 1929, apesar da investigao genti-ca ter sido realizada luz da cincia e tecnologia deste novo sculo.

    FIGuRA 5 - Fluxograma ilustrativo dos vrios fatores que interferem na iniciao, induo, estmulo e manuteno da reabsoro radicular indicando a sua multiplicidade e simultaneidade.

    Estruturas importantes naproteo radicular

    cementoblastos e cemento fibras de Sharpey restos epiteliais de Malassez espao e ligamento periodontal

    Fatores inerentes tcnica ortodntica

    tipo e extenso de movimento intensidade das foras uso de elsticos intermaxilares mecnicas intrusivas extraes dentrias associadas

    Fatores inerentes ao paciente

    tipo de m ocluso forma radicular morfologia apical proporo coroa-raiz morfologia da crista ssea anodontia parcial

    Mediadores sistmicos atuante no local

    paratormnio estrgenos calcitonina vitamina D3

    Mediadores locais

    citocinas: interleucinas, TNF fatores de crescimento: EGF, TGF eicosanides: prostaglandinas xido ntrico

    Fenmenos essenciais para a ocor-rncia da reabsoro radicular

    remoo/morte dos cementoblastos superfcie livre de pr-cemento exposio de tecido mineralizado presena de mediadores do estresse ce-lular ou inflamatrios

    Efetores da reabsoro radicular unidade osteoremodeladora

    clastos osteoblastos macrfagos

  • Predisposio Gentica, hereditariedade e reabsores radiculares em OrtodontiaCuidados com interpretaes precipitadas e uma anlise crtica do trabalho de Al-Qawasmi et al.1

    R Dental Press Ortodon Ortop Facial 144 Maring, v. 9, n. 2, p. 136-145, mar./abr. 2004

    rias em Ortodontia pode traduzir tambm o desejo de excluir da prtica clnica a responsabilidade de planejar de forma individualizada e detalhada cada tratamento com base no conhecimento das possibi-lidades e limitaes tcnicas oferecidas pela cincia ortodntica, bem como nas suas bases biolgicas, por exemplo, valorizando a morfologia radicular e da crista ssea alveolar e o papel dos cementoblas-tos na proteo da superfcie radicular.

    Comentrio finalReferenciar ou citar este trabalho de Al-Qa-

    wasmi et al.1, para afirmar de forma taxativa que se demonstrou a natureza hereditria das reabsor-es dentrias em Ortodontia, pode denotar falta de conhecimento sobre o assunto ou uma leitura ou compreenso apenas do seu ttulo. Ou ainda, a citao deste trabalho como prova definitiva de as-sociao entre hereditariedade e reabsores dent-

    Genetics predisposition, heredity and radicular resorption, in Orthodontics. Cares with precipitated interpretations and a critical analysis of Al-Qawasmis work

    Abstract

    The study published in the American Journal of Orthodontics and Dentofacial Orthopedics last March by Al-

    Qawasmi et al. tried to implicate dental resorption during orthodontic treatment to genetic predisposition. The

    methodology used, however, presents limitations and interpretative mistakes of the results. When analyzing the

    article sensibly, one is able to find that these limitations, mostly acknowledged and mentioned by the authors in

    the discussion, does not allow concluding as they did in the end or even being so decisive in the abstract. Since

    most clinicians are not familiar with genetic terminology, an elucidative analysis is required in order to apply this

    knowledge to everyday life in orthodontic practice. When referencing or citating Al-Qawasmi et al. one must be

    careful its limitations acknowledged by the authors themselves, despite their decisive title. Affirming that the re-

    ferred paper demonstrates the heritable nature of root resorption in Orthodontics may reveal lack of knowledge

    on the subject, an inappropriate interpretation of it or even the exclusive reading of its title. In another hypothesis,

    citating this study as decisive scientific proof of heritability implicated in dental resorption in Orthodontics may

    indicate the wish to exonerate the clinician of responsibility to consider root and alveolar crest morphology when

    individualizing treatment plan based on a deeper knowledge of Orthodontic techniques.

    Key words: Root resorption. Dental resorption. Genetic predisposition. Heritability. Orthodontic movement.

    Induced tooth movement.

  • CONSOLARO, A; MARTINS-ORTIZ, M. F.

    R Dental Press Ortodon Ortop Facial 145 Maring, v. 9, n. 2, p. 136-145, mar./abr. 2004

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    endereo para correspondnciaProf. Dr. Alberto ConsolaroAlameda Octvio Pinheiro Brisolla, 9-75 - Vila UniversitriaCEP 17 012 901 - Bauru [email protected]