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Universidade Federal de Pernambuco NEHTE / Programa de Pós Graduação em Letras CCTE / Programa de Pós Graduação em Ciências da Computação
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PRECONCEITO LINGUÍSTICO E INTOLERÂNCIA EM
ESPAÇOS VIRTUAIS
Levi José de Oliveira1(UPE)
Resumo: O artigo apresenta uma reflexão sobre o preconceito e a intolerância linguística propagada em espaços virtuais (Orkut e blogs). Os pressupostos teóricos que tomamos como base foram os estudos de Bagno (2003, 2007, 2009), Carboni e Maestri (2003), Leite (2008) entre outros pesquisadores. Analisamos postagens em algumas comunidades para observar como se manifestam seus participantes, comentaristas visando tão somente
desprezar ou reprimir os usuários das variedades populares. Isto nos permitiu obter uma visão explícita do preconceito e da intolerância linguística. Concluímos defendendo a ideia de que somente uma tomada de consciência linguística é capaz de minimizar as atitudes de discriminação no uso da linguagem. Palavras-chave: preconceito linguístico, intolerância, espaços virtuais.
Abstract: The article presents a reflection on prejudice and the linguistic intolerance propagated in virtual spaces (Orkut & Blogs). The theoretical assumptions we made were based on studies of Bagno (2003, 2007, 2009), Carboni and Maestri (2003), Leite (2008) among other investigators. We analyze postings in some virtual communities to observe how they are manifested in its participants, commentators aiming only to despise or penalize the users in the variety of popular postings. This allowed us to obtain an explicit vision of the prejudice and of the linguistic intolerance. We conclude defending the idea that it must be an awareness of linguistics in place to be able to minimize the attitudes of discrimination in the use of language.
Key Words: Prejudice linguistics, intolerance, virtual spaces.
Introdução
Este trabalho de pesquisa toma como base os estudos de Bagno (2003, 2007,
2009), os quais apresentam categoricamente mitos e falsas alegações sobre o
português do Brasil; bem como Carboni e Maestri (2003), em relação aos grupos,
poder e lutas de classes; Leite (2008), preconceito e intolerância na linguagem e
outros pesquisadores.
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Segundo Bagno (2007), os mitos não estão desvinculados da realidade
patente das desigualdades sociais que são firmadas pelos detentores do poder, já
Alkmim (2005) exclarece que se baseiam em critérios não linguísticos de caráter
político e social. As “deprimentes” associações entre língua e inteligência/falta de
inteligência, competência/incompetência, beleza/feiura, sucesso/insucesso
reforçam a já conhecida realidade: a divisão entre classes e a exclusão social
(SCHERRE, 2005). Sabe-se que as línguas variam e mudam por conta dos fenômenos
sociais e não há formas corretas ou erradas de expressão, mas adequadas ou não
aos diferentes contextos de uso, onde os fatores linguísticos e não linguísticos,
como contexto linguístico, classe social, sexo, faixa etária entre outros, são
observados (CEZARIO & VOTRE, 2008).
Após a Reforma Pombalina no século XIV, a língua portuguesa da metrópole
foi imposta como língua oficial, porém, esta imposição não impediu a diversidade
linguística, pois, por conta da diversidade étnica e da extensão geográfica do
Brasil, essa variedade tornou-se muito mais interessante (CARBONI & MAESTRI,
2003). Por isso, hoje é comum o uso de expressões e palavras que surgiram destas
influências, palavras que são usadas pelas camadas privilegiadas sem que se tenha
consciência de suas origens provando que existe um verdadeiro preconceito social,
pois estes mesmos falantes de prestígio tropeçam nos ditos erros prescritos pelos
defensores da “norma culta" (BAGNO, 2003). Corroboramos com Antunes(2009) de
que o falante aprende tanto a sua língua materna como uma particular variedade
da língua de sua comunidade linguística que pode ser diferente em alguns ou em
todos os níveis de outras variedades dessa mesma língua.
No entanto, mesmo com o conhecimento da realidade das variedades
linguísticas persiste a discriminação aos falares de pessoas oriundas das camadas
menos favorecidas, isso nos mostra que não são apenas mitos ou preconceitos
linguísticos que levam à discriminação, mas também, outro fator muito mais
prejudicial à dignidade humana, a intolerância linguística. A intolerância em
sentido restrito refere-se a não aceitação das diferenças e é direcionada a qualquer
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tipo de minorias (BOBBIO, 1992), assim, a não aceitação das diversas variedades da
língua deve ser combatida numa busca pela tolerância linguística, pois, a
discriminação resulta da intolerância e não apenas do preconceito linguístico.
Desta forma, buscamos discutir estes fenômenos mostrando que o conhecimento da
realidade das variedades linguísticas pode diminuir a incidência do preconceito
linguístico, porém, os fatores de intolerância históricos que resultam em atos de
discriminação só podem ser amenizados através de uma tomada de “consciência
linguística”.
Variedade Linguística, Preconceito e Intolerância
O estudo na área da linguagem tem mostrado que em sociedades complexas
convivem variedades linguísticas diferentes, usadas por diferentes grupos sociais e
estas diferenças são maiores na língua falada do que na língua escrita. Os estudos
comprovam que pessoas de um mesmo grupo social expressam-se com falas
diferentes de acordo com as diferentes situações de uso, sejam situações formais,
informais ou de outro tipo. Os falares são específicos para grupos específicos, como
profissionais de uma mesma área como médicos, professores, comerciantes,
profissionais de informática, metalúrgicos, jovens, velhos, grupos urbanos da
periferia, grupos de comunidades rurais, grupos religiosos, entre outros. Isto nos
mostra que, além do português padrão, há outras variedades de usos da língua
cujos traços mais comuns podem ser evidenciados em várias manifestações
linguísticas como simplificação da concordância (os livro/ os livros), ausência da
concordância verbal (chegou duas pessoa/ chegaram duas pessoas), simplificação
da conjugação verbal (nós ama/ nós amamos; eles ama/eles amam), redução de
ditongos (caxa/ caixa; fexe/feixe), etc. Todas estas manifestações mostram que:
independente de quem somos, é normal que mantenhamos algum tipo de
interação com pessoas de outras classes sociais, de outra idade, de outro
sexo, assim como é normal para qualquer um de nós produzir textos
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escritos e falados que utilizam formatos diferentes. Nestas várias formas
de interação, a língua que utilizamos muda, em alguma medida, para
adaptar-se ao interlocutor e ao contexto ou situação (ILARI & BASSO, 2007,
p. 195).
Somos seres que interagem socialmente, podemos dizer que adquirimos
traços e marcas dessa interação. Assim, não existem línguas uniformes, pois, todas
as línguas variam e estão sujeitas a diversos fenômenos linguísticos, também, não
existe sociedade ou comunidade na qual todos falem da mesma forma, pois a
variedade linguística é o reflexo da variedade social e como em todas as sociedades
existe alguma diferença de status ou de papel entre indivíduos ou grupos, estas
diferenças se refletem na língua (POSSENTI, 2000). Assim: impor com exclusividade
a variedade padrão é misturar uma pitada de intolerância para com a variedade
desses grupos gerando discriminação e preconceito, geralmente, apontar erros na
fala de outros não tem o propósito de corrigi-los, pois em muitos casos, é uma
forma de excluir o outro e de reforçar uma desigualdade percebida (ILARI & BASSO,
2007).
Grupo Social e Poder
Quando falamos de grupo social, falamos de um conjunto de indivíduos que
formam uma unidade onde pessoas interagem entre si em atitudes coletivas,
ativas, contínuas e comportamentos comuns, ações comuns e objetivos definidos.
Assim, o indivíduo inserido numa comunidade partilha com os membros dessa
comunidade uma série de experiências e atividades que se refletem em traços
comuns como linguagem, religião, trabalho, profissão, entre outros. Porém, “nas
sociedades em que é nítida a separação da população em classes sociais e
econômicas, a relação entre língua e classes sociais se verifica com bastante
evidência” (CEZARIO & VOTRE, 2008, p. 148). Sobre a relação entre a linguagem e
sua realização em determinado grupos sociais, assim define Bakhtin (1999):
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A cada época da história da vida ideológica e verbal, cada geração em
cada uma das suas camadas sociais, possui linguagem; além disso,
substancialmente, cada grupo etário tem seu ‘falar’, seu vocabulário, seu
sistema prosódico que, por sua vez, variam segundo a classe social, o
estabelecimento escolar e outros fatores de estratificação (apud, CARBONI
& MAESTRI, 2003, p. 104).
É por isso, que nenhum grupo social está livre da influência de outros grupos
sociais que de forma consciente ou inconsciente influenciam o grupo social
subalterno e vice-versa.
Além do mais, os falantes de uma língua não vivem confinados aos grupos
das regiões ou das classes sociais a que pertencem. Esses grupos movem-
se; convivem entre si, e as normas se interpenetram, se entrecruzam, se
influenciam mutuamente. Tocam-se, acentuando ainda mais a
possibilidade da existência de variação (ANTUNES, 2007, p. 91).
Isso é bastante visível nos espaços virtuais, pois é um meio onde interagem
pessoas de vários grupos e classes. Mas, geralmente, o grupo dominante se impõe
pela utilização da linguagem reprimindo as formas de expressão linguística das
classes menos favorecidas legitimando uma determinada variedade como padrão, a
qual é considerada superior, enquanto as outras variedades são consideradas
inferiores e incorretas (CARBONI & MAESTRI, 2003).
A imposição linguística da metrópole, no século XVI, ao grupo que já detinha
certo conhecimento da língua, não causou tanto problema, infelizmente, quando a
escola abriu as portas para um novo público, este que já sofria com o preconceito
social, passou também a sofrer o preconceito linguístico, provavelmente, o caráter
social passou a ser julgado estabelecendo a relação indivíduo pobre/linguagem
pobre. Da mesma maneira, a intolerância em relação aos grupos das camadas mais
pobres se transformou em intolerância linguística, principalmente por que na nossa
cultura vigora uma rígida e radical separação entre fala e escrita (CARBONI &
MAESTRI, 2003). Já Alkmim (2005, p. 42) esclarece que:
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A intolerância lingüística é um dos comportamentos sociais mais facilmente
observáveis, seja, na mídia, nas relações sociais cotidianas, nos espaços
institucionais etc. A rejeição a certas variedades lingüísticas,
concretizadas na desqualificação de pronúncias, de construções
gramaticais e de usos vocabulares, é compartilhada sem maiores conflitos
pelos não especialistas em linguagem.
É perfeitamente explicável que os grupos sociais subalternos não adquirem
a língua de modo imperfeito; na verdade, eles não “deturpam” a língua, pois
falam, e se comunicam muito bem em suas comunidades dentro dos seus grupos
sociais. Então, “pensar que a diferença linguística é um mal a ser erradicado
justifica a prática da exclusão e do bloqueio ao acesso a bens sociais. Trata-se
sempre de impor a cultura dos grupos detentores do poder (ou a eles ligados) aos
outros grupos- e a língua é um dos componentes do sistema cultural” (ALKMIM,
2005, p. 42- 43).
Preconceito Linguístico em Espaços Virtuais
O preconceito é “julgamento ou opinião concebida previamente, opinião
formada sem fundamento justo ou conhecimento suficiente” (HOUAISS, 2004, p.
589), ou seja, o preconceito revela desconhecimento de algo, pois sendo ele
ignorância dos fatos, no caso da sociolinguística é o desconhecimento das
variedades da língua e que estas são fenômenos presentes e visíveis nas
manifestações da linguagem. Por que dizer, por exemplo, que determinada
variedade não é português? Esse é o posicionamento típico de uma visão de língua
homogênea, porém,
as línguas variam e mudam ao sabor dos fenômenos de natureza
sociocultural que caracterizam a vida na sociedade. Variam pela vontade
que os indivíduos ou os grupos têm de se identificar por meio da linguagem
e mudam em função da necessidade de se buscar novas expressões para
designar novos objetos, novos conceitos ou novas formas de relação social
(CUNHA et al, 2008, p. 19).
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O desconhecimento desses fenômenos resulta numa confusão entre língua e
gramática normativa e esta confusão é uma das principais causas do preconceito
linguístico, pois o fato de que a língua falada é muito mais viva e flexível do que as
regras escritas em um manual de gramática normativa é algo mais do que provado
(BAGNO, 2007). Portanto, língua e gramática são coisas totalmente diferentes. Essa
confusão é vista em espaços virtuais, onde se confunde língua portuguesa com
gramática normativa, vejamos:
Quadro 1: Confusão entre gramática normativa e língua
Fonte: http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=1321526. Acesso em 05/02/2012.
Na verdade, os membros da comunidade Eu procuro erros de português
procuram erros gramaticais, nisto percebemos haver um visível preconceito, ou
melhor, desconhecimento da realidade das variedades linguísticas por parte
daqueles que apresentam e procuram os determinados “erros de português”. A
descrição da comunidade diz: Comunidade para aqueles que vivem procurando
erros de português (até em cardápio de restaurante). Outra comunidade faz um
“desesperado” apelo: Não mate a língua portuguesa!
Quadro 2: noção de erro em comunidade do Orkut
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Fonte: http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=11658260.Acesso em:05/02/2012.
Este é um típico apelo de quem desconhece a dinamicidade da língua
portuguesa e faz confusão entre gramática normativa e língua. Esse
desconhecimento é exibido no perfil da comunidade, quando diz: Para todos que
ficam indignados com aquelas pessoas que falam e escrevem: "seje", "imbigo",
"menas", "adevogado", "eu se machuquei", "entrometido", "com migo",
"previlégio", "derrepente", "concerteza" e várias outras coisas. Ninguém
merece! Esta explicação do perfil demonstra o desconhecimento do fenômeno
linguístico, pois, geralmente, as pessoas escrevem assim por que falam assim, e se
falam assim é por conta das diversas variedades existentes na língua portuguesa e
que só é considerado “errado” por que a gramática normativa ou a variedade
padrão decreta que deve ser assim. Bagno (2003) explica que:
É o preconceito de que existe uma única maneira “certa” de falar a língua. E que seria aquele conjunto de regras e preceitos que aparece estampado nos livros chamados gramáticas. Por sua vez, essas gramáticas se baseariam, supostamente, num tipo peculiar de atividade linguística-- exclusivamente escrita-- de um grupo muito especial e seleto de cidadãos, os grandes estilistas da língua (BAGNO, 2003, p. 43).
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Os defensores da gramática normativa como a “única variedade da língua”
colocam a variedade padrão como uma espécie de lei, uma obrigação e aqueles
que não a obedecerem estarão cometendo um crime digno de punições severas.
Segundo esta visão, aquele que não obedece à variedade padrão deixa em perigo o
“bom uso” da língua, assim, provavelmente, será considerado um “assassino da
língua portuguesa”. É o que vemos em comunidades nos espaços virtuais que são
criadas com o pensamento distorcido do que seja língua: Assassinaram a Língua
Portuguesa! Não Assassine o Português! Salvem a Língua Portuguesa! Como nesse
exemplo:
Quadro 3: preconceito linguístico em comunidade do Orkut
Fonte: http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=5077338. Acesso em 10/02/2012.
Na foto do perfil há um outdoor onde aparece o texto do salmo: “nada mim
faltará” que seria “nada me faltará” e as palavras “extranha”, “evete”, e
“decerpeção” em lugar de estranha, evite e decepção. Há, ainda, na descrição
da comunidade elogios à profissão dos gramáticos chamando-os de “abnegados
defensores do idioma” e ainda afirma que é vaidade humana criticá-los como se
não fosse vaidade humana criticar àqueles que não falam ou escrevem conforme a
gramática normativa como nos exemplos supracitados. São várias comunidades que
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defendem este pensamento, um fato importante é que essas comunidades são
criadas e moderadas, a maioria delas, por professores ou pessoas de nível social
elevado. Nisso, percebemos que a discriminação, de certo modo, é transmitida de
geração a geração. Carboni & Maestri (2003, p. 27) descrevem esta discriminação
histórica da seguinte maneira: “Para que os luso-brasileiros reinassem, entronizou-
se o português como língua colonial e reprimiram-se os falares extra-europeus e
crioulos e suas influências na língua dos colonizadores”. Desse modo, percebemos
que a discriminação à linguagem do outro é uma herança europeia, ou melhor, uma
herança dos colonizadores, “No Brasil, o uso da cultura e da língua como forma de
discriminação social constitui herança da colonização portuguesa” (CARBONI &
MAESTRI, 2003, p. 40). A não aceitação do outro, ou melhor, a não aceitação da
variedade linguística do outro é um ato de intolerância, já o preconceito, apesar
de muitas vezes ser mascarado e não percebido pela maioria das pessoas está
presente em todas as camadas sociais. Assim, “muitas vezes, os falantes das
variedades desprestigiadas deixam de usufruir diversos serviços a que têm direito
simplesmente por não compreenderem a linguagem empregada pelos órgãos
públicos” (BAGNO, 2007, p.17). Desse modo, a sacralização de uma determinada
variedade pelas classes privilegiadas, nada mais é, do que uma forma de
discriminação em relação ao direito histórico das variedades das comunidades
populares.
A Intolerância Linguística
Já a intolerância, diferentemente do preconceito, é “tendência a não
suportar ou condenar o que desagrada nas opiniões, atitudes, etc. alheias;
intransigência” (HOUAISS, 2004, p. 426), ou seja, é não admitir opiniões ou crenças
opostas às suas, ou modo de ser que reprovamos ou julgamos falsos. A intolerância
está relacionada aos valores culturais aceitos ou não aceitos por determinados
grupos. O conceito de superioridade cultural de um povo em relação a outro é
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antigo. Todo povo quando entra em contato com outro povo assimila determinados
traços da cultura do outro, mas também não aceita outros aspectos da cultura aos
quais menospreza colocando seus valores culturais como superiores aos outros,
muitas vezes de forma inconsciente.
Como a intolerância linguística passa quase despercebida pela opinião
pública e não provoca sérios abalos sociais, da mesma forma que aqueles
provenientes da intolerância religiosa ou política, parece nem existir.
Contudo, a intolerância lingüística existe e é tão agressiva quanto outra
qualquer, pois atinge o cerne das individualidades. A linguagem é o que o
homem tem de mais íntimo e o que apresenta a sua subjetividade. Não é
exagero, portanto, dizer que uma crítica à linguagem do outro é uma arma
que fere tanto quanto todas as armas (LEITE, 2008, p. 13).
Não são todas as pessoas que demonstram o preconceito em relação à
linguagem, às vezes, essas pessoas até pregam contra o preconceito, porém, a
intolerância linguística é explícita, pois se manifesta, geralmente, como uma
autoafirmação, uma demonstração de autoridade, poder e superioridade. Vemos
isso em algumas postagens em comunidades do Orkut:
Quadro 4: intolerância linguística em postagens do Orkut
Fonte:http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs?cmm=946031&tid=6848806&na=3&npn=2&nid=46
0316848806-4780884300848045113.Acessoem 24/01/2012.
O membro comenta um suposto “erro de português” no qual a pessoa
desejando usar o pretérito perfeito, falaram de mim, usou o futuro do presente,
falarão de mim. O que é interessante é que o membro nem percebe que também
cometeu seu “erro de português” grafando a conjunção nem (não, sequer) como
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nen, além de utilizar outras variedades típicas do ambiente digital como comu,
bjim e @ em lugar da interjeição Ah!
Todos estes “erros” utilizados são evidências que comprovam os fenômenos
linguísticos das variedades e variações presentes nas manifestações da linguagem,
mas a diferença, portanto, está na posição que o sujeito ocupa dentro da estrutura
social. Há “erros” que são tolerados como aqueles típicos do ambiente digital e
“outros” que por trazerem marcas sociais não são tolerados, pois, geralmente, a
posição do sujeito na estrutura social estará sendo julgado.
o preconceito não surge exclusivamente de uma dicotomia, pode ser uma
rejeição, um “não-querer”, um “não-gostar” sem razão, amorfos, e pode
até mesmo não se manifestar; a intolerância, por sua vez, nasce
necessariamente de julgamentos, de contrários, e se manifesta
discursivamente. É resultado da crítica e do julgamento de idéias, valores,
opiniões e práticas (LEITE, 2008, p. 22).
Desse modo, a intolerância se apresenta em atitudes de ódio e agressividade
para com indivíduos ou grupo de pessoas e geralmente está relacionada a não
aceitação da maneira de ser do outro, suas crenças, convicções, modo de
comportamento, modo de falar, modo de agir, por exemplo, expressões como: Eu
odeio nordestino! Eu odeio gente que fala errado! Eu não suporto quem escreve
errado! Quem escreve errado é burro! Odeio quem não sabe escrever! Estas
expressões intolerantes se refletem na criação de comunidades no Orkut. Odeio
quem escreve errado!
Quadro 5: intolerância linguística em comunidade do Orkut
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Fonte: http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=11218342. Acesso em 10/02/2012.
Note que a comunidade traz na foto do perfil a imagem do burrinho do filme
Shrek com a palavra “burrinho” sobreposta. A descrição da comunidade diz: Esta
comunidade é destinada aqueles que odeiam as pessoas que escrevem errado.
Apesar de considerar como “preguiça” o fato de algumas pessoas escreverem
diferente e que elas “matam” a gramática e não a língua portuguesa, ao dizer que
“odeia quem escreve errado” o fator de intolerância fica claro, pois o ódio é um
determinante para a ocorrência da exclusão, segregação, discriminação de pessoas
ou mesmo atos de violência física ou psicológica. Porém, um detalhe interessante é
que mesmo dizendo odiar pessoas que escrevem “errado” os criadores da
comunidade não percebem que não seguiram a regra da gramática normativa
quanto à concordância em “muita gente escreve sem ler e nem ligam” quando a
regra diz que deveria ser “muita gente escreve sem ler e nem liga”.
Em outras comunidades, as quais analisamos, são comuns as seguinte
expressões: “Comunidade para aqueles que odeiam, abominam, detestam e
querem ver bem longe pessoas que, contrariando todas as regras de semântica,
ortografia e gramática, assassinam a nossa bela língua”.
Nestas comunidades, mesmo que alguns membros participantes não sejam
intolerantes em relação à linguagem, percebemos que quando o preconceito
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linguístico aflora aquilo que era apenas preconceito é carregado com altas doses de
intolerância tornando-se explícita a discriminação. Apesar de explicar que há certo
tipo de intolerância positiva, Bobbio (1992), esclarece que a intolerância negativa
é aquela em que ocorre a exclusão do diferente:
Intolerância em sentido positivo é sinônimo de severidade, rigor, firmeza,
qualidades todas que se incluem no âmbito das virtudes; tolerância em
sentido negativo, ao contrário, é sinônimo de indulgência culposa, de
condescendência com o mal, com o erro, por falta de princípios, por amor
da vida tranqüila ou por cegueira diante dos valores (BOBBIO, 1992, p.
210).
Ainda, de acordo com esse autor, existe um contínuo entre tolerância e
intolerância e que não é fácil estabelecer quais os limites deste contínuo, para
além dos quais uma sociedade tolerante possa se transformar numa sociedade
intolerante, mas a intolerância no sentido negativo ocorre pela indevida exclusão
do diferente ao que Leite (2008, p. 24) diz: “Essa exclusão, como a história mostra,
não é silenciosa, ao contrário, implica comportamentos violentos, agressivos, que
atingem o outro na sua integridade física, moral ou racial”.
A associação que se faz de que quem escreve diferente é “burro”, feio,
deselegante é vista em algumas postagens nos espaços virtuais, como esta.
Quadro 6: intolerância linguística em postagens de comunidade do Orkut
Fonte:.http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs?cmm=1112147&tid=2431857673949772034. Acesso em 10/02/2012.
Será que a pessoa que fez este comentário é “burra”, “deselegante”, “feia”
ou incompetente? Pois ela utilizou em sua postagem algumas variedades não
aceitas pela norma padrão quanto às regras de grafia e sintaxe: + burros, vcs não
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acham? e qd. Ela ainda utilizou reticências quando deveria utilizar vírgulas e não
respeitou a regra quanto ao uso de letras maiúsculas no início de frases. Claro que
essa pessoa não é incapaz de coordenar ideias, mas é vítima dos fenômenos das
variedades e variações linguísticas tanto quanto aquelas a quem critica.
Outras ações intolerantes são vistas nos espaços virtuais, como nas seguintes
expressões: essa pessoa é burra; essa menina só pode ser débil mental para
escrever assim; eu odeio quem não sabe escrever; essa menina só pode ser
analfabeta; só sendo do nordeste mesmo, povo caipira e burro; quando vejo
esses erros de português já sei de onde é a pessoa (referindo-se aos moradores
da periferia); pobre quando escreve é pior do que falando; vai aprender
escrever antes do postar alguma coisa, idiota! Uma pessoa que é preconceituosa
em relação à linguagem, a partir do momento em que passa a ter o conhecimento
dos fenômenos linguísticos poderá agir de maneira diferente e passar a aceitar as
variedades linguísticas e respeitar os falantes dessas variedades, mas o
conhecimento das variedades linguísticas sem a aceitação do outro, da sua cultura,
do seu modo de viver, da sua condição na estrutura social e da sua linguagem é
intolerância. Portanto, consideramos que a sociedade, a partir da escola, deve
encarar o ensino tendo a língua como objeto passível de ser analisado e
interpretado através de métodos e critérios científicos para que não estimule o
preconceito e nem a intolerância linguística. Os “movimentos de defesa da língua
portuguesa”, que tem em vista a defesa da gramática normativa, subvertem os
fatos, pois “quando a escola ensina, o que ela ensina mesmo é a modalidade
escrita dessa língua, e não propriamente a língua” (POSSENTI, 2000, p. 32). Dessa
forma, é necessário que a escola ensine a língua em sua totalidade em todas as
suas variedades.
Considerações Finais
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Neste trabalho refletimos sobre a importância da tomada de consciência
acerca da intolerância e do preconceito linguísticos em espaços virtuais, tomando
como base como base pesquisas sobre a intolerância e sobre o mito do preconceito
que está enraizado na realidade linguística brasileira, a partir de vários autores.
Apresentamos a realidade da variedade linguística e partimos do pressuposto que o
seu conhecimento é imprescindível para a consolidação de um trabalho
diferenciado a fim de que com esclarecimentos acerca da sua manifestação o
preconceito e a intolerância linguísticas venham a ser minimizadas, sobretudo no
que se refere ao respeito do diferente e, a partir dele, refletir e investigar sobre as
causas das variações. Pudemos observar em nossas análises de exemplos coletados
da internet os diversos fatores que comprovam e reafirmam a realidade das
variedades linguísticas como algo presente em diversas manifestações da linguagem
e que não pode deixar de ser estudada.
Durante anos a escrita literária foi elevada a um padrão de beleza superior,
de modo que os detentores do poder vieram a desprezar as variedades existentes
nas camadas sociais marginalizadas a ponto de tentar suprimir o direito do falante
se expressar como um cidadão pleno e capaz de articular bem suas ideias em
qualquer variedade da língua, inclusive nos espaços virtuais, onde, a intolerância
linguística muito pior do que o preconceito, pode se manifestar de maneira
agressiva pela não aceitação do outro e disseminação do ódio contra os falantes e
escritores plenos da língua portuguesa.
As variedades linguísticas são facilmente observadas nos espaços virtuais por
ser um ambiente onde interagem diversas pessoas de diversos grupos sociais. O
estudo dessas variedades possibilita a utilização de uma infinidade de textos que
poderão ser usados como meio de conscientização dos aspectos não apenas
culturais e funcionais, mas também e essencialmente sociais e que irá nos auxiliar
a contextualizar cada explicação e cada abordagem em relação à monitoração
linguística, entre o aceitável e o não aceitável, definidos dentro do contexto e
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situação de fala, pois somente a análise do contexto e da situação é capaz de
definir como devemos falar ou escrever.
Por fim, vale salientar que não foi objetivo da pesquisa afirmar que escrever
fora das regras da gramática normativa ou não falar conforme a “norma culta” seja
plenamente aceitável. Deixamos claro que o que não é aceitável são o preconceito
e a intolerância promovidos nos espaços virtuais. Estamos cientes de que as regras
da gramática normativa devem ser ensinadas, já que são necessárias para a
comunicação escrita; se cada usuário da língua escrevesse de forma arbitrária, não
seria possível a interação. Sendo a linguagem, própria do cidadão, em situações
diversas de comunicação, seria importante uma tomada de consciência de
educadores, professores, pesquisadores e usuários dos espaços virtuais e, a partir
da escola, refletir sobre o processo de formação de cada região, suas influências
culturais, raízes étnicas, suas histórias e o falar de cada região levantando questões
que gerem discussões entre os alunos. E sabendo que os espaços virtuais é um local
de aprendizagem significativa, além de desenvolver ações que favorecem o
letramento digital poderá ser usado na luta contra o preconceito e a intolerância
que muitas vezes falantes de determinadas variedades sofrem por serem oriundos
de camadas pobres ou marginalizadas.
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1 Levi OLIVEIRA, (Prof.) Universidade de Pernambuco Campus Garanhuns (UPE)
E-mail: [email protected]