PRECONCEITO LINGUÍSTICO E INTOLERÂNCIA EM … · linguística, pois, por conta da diversidade...

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Universidade Federal de Pernambuco NEHTE / Programa de Pós Graduação em Letras CCTE / Programa de Pós Graduação em Ciências da Computação - 1 - PRECONCEITO LINGUÍSTICO E INTOLERÂNCIA EM ESPAÇOS VIRTUAIS Levi José de Oliveira 1 (UPE) Resumo: O artigo apresenta uma reflexão sobre o preconceito e a intolerância linguística propagada em espaços virtuais (Orkut e blogs). Os pressupostos teóricos que tomamos como base foram os estudos de Bagno (2003, 2007, 2009), Carboni e Maestri (2003), Leite (2008) entre outros pesquisadores. Analisamos postagens em algumas comunidades para observar como se manifestam seus participantes, comentaristas visando tão somente desprezar ou reprimir os usuários das variedades populares. Isto nos permitiu obter uma visão explícita do preconceito e da intolerância linguística. Concluímos defendendo a ideia de que somente uma tomada de consciência linguística é capaz de minimizar as atitudes de discriminação no uso da linguagem. Palavras-chave: preconceito linguístico, intolerância, espaços virtuais. Abstract: The article presents a reflection on prejudice and the linguistic intolerance propagated in virtual spaces (Orkut & Blogs). The theoretical assumptions we made were based on studies of Bagno (2003, 2007, 2009), Carboni and Maestri (2003), Leite (2008) among other investigators. We analyze postings in some virtual communities to observe how they are manifested in its participants, commentators aiming only to despise or penalize the users in the variety of popular postings. This allowed us to obtain an explicit vision of the prejudice and of the linguistic intolerance. We conclude defending the idea that it must be an awareness of linguistics in place to be able to minimize the attitudes of discrimination in the use of language. Key Words: Prejudice linguistics, intolerance, virtual spaces. Introdução Este trabalho de pesquisa toma como base os estudos de Bagno (2003, 2007, 2009), os quais apresentam categoricamente mitos e falsas alegações sobre o português do Brasil; bem como Carboni e Maestri (2003), em relação aos grupos, poder e lutas de classes; Leite (2008), preconceito e intolerância na linguagem e outros pesquisadores.

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PRECONCEITO LINGUÍSTICO E INTOLERÂNCIA EM

ESPAÇOS VIRTUAIS

Levi José de Oliveira1(UPE)

Resumo: O artigo apresenta uma reflexão sobre o preconceito e a intolerância linguística propagada em espaços virtuais (Orkut e blogs). Os pressupostos teóricos que tomamos como base foram os estudos de Bagno (2003, 2007, 2009), Carboni e Maestri (2003), Leite (2008) entre outros pesquisadores. Analisamos postagens em algumas comunidades para observar como se manifestam seus participantes, comentaristas visando tão somente

desprezar ou reprimir os usuários das variedades populares. Isto nos permitiu obter uma visão explícita do preconceito e da intolerância linguística. Concluímos defendendo a ideia de que somente uma tomada de consciência linguística é capaz de minimizar as atitudes de discriminação no uso da linguagem. Palavras-chave: preconceito linguístico, intolerância, espaços virtuais.

Abstract: The article presents a reflection on prejudice and the linguistic intolerance propagated in virtual spaces (Orkut & Blogs). The theoretical assumptions we made were based on studies of Bagno (2003, 2007, 2009), Carboni and Maestri (2003), Leite (2008) among other investigators. We analyze postings in some virtual communities to observe how they are manifested in its participants, commentators aiming only to despise or penalize the users in the variety of popular postings. This allowed us to obtain an explicit vision of the prejudice and of the linguistic intolerance. We conclude defending the idea that it must be an awareness of linguistics in place to be able to minimize the attitudes of discrimination in the use of language.

Key Words: Prejudice linguistics, intolerance, virtual spaces.

Introdução

Este trabalho de pesquisa toma como base os estudos de Bagno (2003, 2007,

2009), os quais apresentam categoricamente mitos e falsas alegações sobre o

português do Brasil; bem como Carboni e Maestri (2003), em relação aos grupos,

poder e lutas de classes; Leite (2008), preconceito e intolerância na linguagem e

outros pesquisadores.

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Segundo Bagno (2007), os mitos não estão desvinculados da realidade

patente das desigualdades sociais que são firmadas pelos detentores do poder, já

Alkmim (2005) exclarece que se baseiam em critérios não linguísticos de caráter

político e social. As “deprimentes” associações entre língua e inteligência/falta de

inteligência, competência/incompetência, beleza/feiura, sucesso/insucesso

reforçam a já conhecida realidade: a divisão entre classes e a exclusão social

(SCHERRE, 2005). Sabe-se que as línguas variam e mudam por conta dos fenômenos

sociais e não há formas corretas ou erradas de expressão, mas adequadas ou não

aos diferentes contextos de uso, onde os fatores linguísticos e não linguísticos,

como contexto linguístico, classe social, sexo, faixa etária entre outros, são

observados (CEZARIO & VOTRE, 2008).

Após a Reforma Pombalina no século XIV, a língua portuguesa da metrópole

foi imposta como língua oficial, porém, esta imposição não impediu a diversidade

linguística, pois, por conta da diversidade étnica e da extensão geográfica do

Brasil, essa variedade tornou-se muito mais interessante (CARBONI & MAESTRI,

2003). Por isso, hoje é comum o uso de expressões e palavras que surgiram destas

influências, palavras que são usadas pelas camadas privilegiadas sem que se tenha

consciência de suas origens provando que existe um verdadeiro preconceito social,

pois estes mesmos falantes de prestígio tropeçam nos ditos erros prescritos pelos

defensores da “norma culta" (BAGNO, 2003). Corroboramos com Antunes(2009) de

que o falante aprende tanto a sua língua materna como uma particular variedade

da língua de sua comunidade linguística que pode ser diferente em alguns ou em

todos os níveis de outras variedades dessa mesma língua.

No entanto, mesmo com o conhecimento da realidade das variedades

linguísticas persiste a discriminação aos falares de pessoas oriundas das camadas

menos favorecidas, isso nos mostra que não são apenas mitos ou preconceitos

linguísticos que levam à discriminação, mas também, outro fator muito mais

prejudicial à dignidade humana, a intolerância linguística. A intolerância em

sentido restrito refere-se a não aceitação das diferenças e é direcionada a qualquer

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tipo de minorias (BOBBIO, 1992), assim, a não aceitação das diversas variedades da

língua deve ser combatida numa busca pela tolerância linguística, pois, a

discriminação resulta da intolerância e não apenas do preconceito linguístico.

Desta forma, buscamos discutir estes fenômenos mostrando que o conhecimento da

realidade das variedades linguísticas pode diminuir a incidência do preconceito

linguístico, porém, os fatores de intolerância históricos que resultam em atos de

discriminação só podem ser amenizados através de uma tomada de “consciência

linguística”.

Variedade Linguística, Preconceito e Intolerância

O estudo na área da linguagem tem mostrado que em sociedades complexas

convivem variedades linguísticas diferentes, usadas por diferentes grupos sociais e

estas diferenças são maiores na língua falada do que na língua escrita. Os estudos

comprovam que pessoas de um mesmo grupo social expressam-se com falas

diferentes de acordo com as diferentes situações de uso, sejam situações formais,

informais ou de outro tipo. Os falares são específicos para grupos específicos, como

profissionais de uma mesma área como médicos, professores, comerciantes,

profissionais de informática, metalúrgicos, jovens, velhos, grupos urbanos da

periferia, grupos de comunidades rurais, grupos religiosos, entre outros. Isto nos

mostra que, além do português padrão, há outras variedades de usos da língua

cujos traços mais comuns podem ser evidenciados em várias manifestações

linguísticas como simplificação da concordância (os livro/ os livros), ausência da

concordância verbal (chegou duas pessoa/ chegaram duas pessoas), simplificação

da conjugação verbal (nós ama/ nós amamos; eles ama/eles amam), redução de

ditongos (caxa/ caixa; fexe/feixe), etc. Todas estas manifestações mostram que:

independente de quem somos, é normal que mantenhamos algum tipo de

interação com pessoas de outras classes sociais, de outra idade, de outro

sexo, assim como é normal para qualquer um de nós produzir textos

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escritos e falados que utilizam formatos diferentes. Nestas várias formas

de interação, a língua que utilizamos muda, em alguma medida, para

adaptar-se ao interlocutor e ao contexto ou situação (ILARI & BASSO, 2007,

p. 195).

Somos seres que interagem socialmente, podemos dizer que adquirimos

traços e marcas dessa interação. Assim, não existem línguas uniformes, pois, todas

as línguas variam e estão sujeitas a diversos fenômenos linguísticos, também, não

existe sociedade ou comunidade na qual todos falem da mesma forma, pois a

variedade linguística é o reflexo da variedade social e como em todas as sociedades

existe alguma diferença de status ou de papel entre indivíduos ou grupos, estas

diferenças se refletem na língua (POSSENTI, 2000). Assim: impor com exclusividade

a variedade padrão é misturar uma pitada de intolerância para com a variedade

desses grupos gerando discriminação e preconceito, geralmente, apontar erros na

fala de outros não tem o propósito de corrigi-los, pois em muitos casos, é uma

forma de excluir o outro e de reforçar uma desigualdade percebida (ILARI & BASSO,

2007).

Grupo Social e Poder

Quando falamos de grupo social, falamos de um conjunto de indivíduos que

formam uma unidade onde pessoas interagem entre si em atitudes coletivas,

ativas, contínuas e comportamentos comuns, ações comuns e objetivos definidos.

Assim, o indivíduo inserido numa comunidade partilha com os membros dessa

comunidade uma série de experiências e atividades que se refletem em traços

comuns como linguagem, religião, trabalho, profissão, entre outros. Porém, “nas

sociedades em que é nítida a separação da população em classes sociais e

econômicas, a relação entre língua e classes sociais se verifica com bastante

evidência” (CEZARIO & VOTRE, 2008, p. 148). Sobre a relação entre a linguagem e

sua realização em determinado grupos sociais, assim define Bakhtin (1999):

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A cada época da história da vida ideológica e verbal, cada geração em

cada uma das suas camadas sociais, possui linguagem; além disso,

substancialmente, cada grupo etário tem seu ‘falar’, seu vocabulário, seu

sistema prosódico que, por sua vez, variam segundo a classe social, o

estabelecimento escolar e outros fatores de estratificação (apud, CARBONI

& MAESTRI, 2003, p. 104).

É por isso, que nenhum grupo social está livre da influência de outros grupos

sociais que de forma consciente ou inconsciente influenciam o grupo social

subalterno e vice-versa.

Além do mais, os falantes de uma língua não vivem confinados aos grupos

das regiões ou das classes sociais a que pertencem. Esses grupos movem-

se; convivem entre si, e as normas se interpenetram, se entrecruzam, se

influenciam mutuamente. Tocam-se, acentuando ainda mais a

possibilidade da existência de variação (ANTUNES, 2007, p. 91).

Isso é bastante visível nos espaços virtuais, pois é um meio onde interagem

pessoas de vários grupos e classes. Mas, geralmente, o grupo dominante se impõe

pela utilização da linguagem reprimindo as formas de expressão linguística das

classes menos favorecidas legitimando uma determinada variedade como padrão, a

qual é considerada superior, enquanto as outras variedades são consideradas

inferiores e incorretas (CARBONI & MAESTRI, 2003).

A imposição linguística da metrópole, no século XVI, ao grupo que já detinha

certo conhecimento da língua, não causou tanto problema, infelizmente, quando a

escola abriu as portas para um novo público, este que já sofria com o preconceito

social, passou também a sofrer o preconceito linguístico, provavelmente, o caráter

social passou a ser julgado estabelecendo a relação indivíduo pobre/linguagem

pobre. Da mesma maneira, a intolerância em relação aos grupos das camadas mais

pobres se transformou em intolerância linguística, principalmente por que na nossa

cultura vigora uma rígida e radical separação entre fala e escrita (CARBONI &

MAESTRI, 2003). Já Alkmim (2005, p. 42) esclarece que:

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A intolerância lingüística é um dos comportamentos sociais mais facilmente

observáveis, seja, na mídia, nas relações sociais cotidianas, nos espaços

institucionais etc. A rejeição a certas variedades lingüísticas,

concretizadas na desqualificação de pronúncias, de construções

gramaticais e de usos vocabulares, é compartilhada sem maiores conflitos

pelos não especialistas em linguagem.

É perfeitamente explicável que os grupos sociais subalternos não adquirem

a língua de modo imperfeito; na verdade, eles não “deturpam” a língua, pois

falam, e se comunicam muito bem em suas comunidades dentro dos seus grupos

sociais. Então, “pensar que a diferença linguística é um mal a ser erradicado

justifica a prática da exclusão e do bloqueio ao acesso a bens sociais. Trata-se

sempre de impor a cultura dos grupos detentores do poder (ou a eles ligados) aos

outros grupos- e a língua é um dos componentes do sistema cultural” (ALKMIM,

2005, p. 42- 43).

Preconceito Linguístico em Espaços Virtuais

O preconceito é “julgamento ou opinião concebida previamente, opinião

formada sem fundamento justo ou conhecimento suficiente” (HOUAISS, 2004, p.

589), ou seja, o preconceito revela desconhecimento de algo, pois sendo ele

ignorância dos fatos, no caso da sociolinguística é o desconhecimento das

variedades da língua e que estas são fenômenos presentes e visíveis nas

manifestações da linguagem. Por que dizer, por exemplo, que determinada

variedade não é português? Esse é o posicionamento típico de uma visão de língua

homogênea, porém,

as línguas variam e mudam ao sabor dos fenômenos de natureza

sociocultural que caracterizam a vida na sociedade. Variam pela vontade

que os indivíduos ou os grupos têm de se identificar por meio da linguagem

e mudam em função da necessidade de se buscar novas expressões para

designar novos objetos, novos conceitos ou novas formas de relação social

(CUNHA et al, 2008, p. 19).

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O desconhecimento desses fenômenos resulta numa confusão entre língua e

gramática normativa e esta confusão é uma das principais causas do preconceito

linguístico, pois o fato de que a língua falada é muito mais viva e flexível do que as

regras escritas em um manual de gramática normativa é algo mais do que provado

(BAGNO, 2007). Portanto, língua e gramática são coisas totalmente diferentes. Essa

confusão é vista em espaços virtuais, onde se confunde língua portuguesa com

gramática normativa, vejamos:

Quadro 1: Confusão entre gramática normativa e língua

Fonte: http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=1321526. Acesso em 05/02/2012.

Na verdade, os membros da comunidade Eu procuro erros de português

procuram erros gramaticais, nisto percebemos haver um visível preconceito, ou

melhor, desconhecimento da realidade das variedades linguísticas por parte

daqueles que apresentam e procuram os determinados “erros de português”. A

descrição da comunidade diz: Comunidade para aqueles que vivem procurando

erros de português (até em cardápio de restaurante). Outra comunidade faz um

“desesperado” apelo: Não mate a língua portuguesa!

Quadro 2: noção de erro em comunidade do Orkut

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Fonte: http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=11658260.Acesso em:05/02/2012.

Este é um típico apelo de quem desconhece a dinamicidade da língua

portuguesa e faz confusão entre gramática normativa e língua. Esse

desconhecimento é exibido no perfil da comunidade, quando diz: Para todos que

ficam indignados com aquelas pessoas que falam e escrevem: "seje", "imbigo",

"menas", "adevogado", "eu se machuquei", "entrometido", "com migo",

"previlégio", "derrepente", "concerteza" e várias outras coisas. Ninguém

merece! Esta explicação do perfil demonstra o desconhecimento do fenômeno

linguístico, pois, geralmente, as pessoas escrevem assim por que falam assim, e se

falam assim é por conta das diversas variedades existentes na língua portuguesa e

que só é considerado “errado” por que a gramática normativa ou a variedade

padrão decreta que deve ser assim. Bagno (2003) explica que:

É o preconceito de que existe uma única maneira “certa” de falar a língua. E que seria aquele conjunto de regras e preceitos que aparece estampado nos livros chamados gramáticas. Por sua vez, essas gramáticas se baseariam, supostamente, num tipo peculiar de atividade linguística-- exclusivamente escrita-- de um grupo muito especial e seleto de cidadãos, os grandes estilistas da língua (BAGNO, 2003, p. 43).

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Os defensores da gramática normativa como a “única variedade da língua”

colocam a variedade padrão como uma espécie de lei, uma obrigação e aqueles

que não a obedecerem estarão cometendo um crime digno de punições severas.

Segundo esta visão, aquele que não obedece à variedade padrão deixa em perigo o

“bom uso” da língua, assim, provavelmente, será considerado um “assassino da

língua portuguesa”. É o que vemos em comunidades nos espaços virtuais que são

criadas com o pensamento distorcido do que seja língua: Assassinaram a Língua

Portuguesa! Não Assassine o Português! Salvem a Língua Portuguesa! Como nesse

exemplo:

Quadro 3: preconceito linguístico em comunidade do Orkut

Fonte: http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=5077338. Acesso em 10/02/2012.

Na foto do perfil há um outdoor onde aparece o texto do salmo: “nada mim

faltará” que seria “nada me faltará” e as palavras “extranha”, “evete”, e

“decerpeção” em lugar de estranha, evite e decepção. Há, ainda, na descrição

da comunidade elogios à profissão dos gramáticos chamando-os de “abnegados

defensores do idioma” e ainda afirma que é vaidade humana criticá-los como se

não fosse vaidade humana criticar àqueles que não falam ou escrevem conforme a

gramática normativa como nos exemplos supracitados. São várias comunidades que

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defendem este pensamento, um fato importante é que essas comunidades são

criadas e moderadas, a maioria delas, por professores ou pessoas de nível social

elevado. Nisso, percebemos que a discriminação, de certo modo, é transmitida de

geração a geração. Carboni & Maestri (2003, p. 27) descrevem esta discriminação

histórica da seguinte maneira: “Para que os luso-brasileiros reinassem, entronizou-

se o português como língua colonial e reprimiram-se os falares extra-europeus e

crioulos e suas influências na língua dos colonizadores”. Desse modo, percebemos

que a discriminação à linguagem do outro é uma herança europeia, ou melhor, uma

herança dos colonizadores, “No Brasil, o uso da cultura e da língua como forma de

discriminação social constitui herança da colonização portuguesa” (CARBONI &

MAESTRI, 2003, p. 40). A não aceitação do outro, ou melhor, a não aceitação da

variedade linguística do outro é um ato de intolerância, já o preconceito, apesar

de muitas vezes ser mascarado e não percebido pela maioria das pessoas está

presente em todas as camadas sociais. Assim, “muitas vezes, os falantes das

variedades desprestigiadas deixam de usufruir diversos serviços a que têm direito

simplesmente por não compreenderem a linguagem empregada pelos órgãos

públicos” (BAGNO, 2007, p.17). Desse modo, a sacralização de uma determinada

variedade pelas classes privilegiadas, nada mais é, do que uma forma de

discriminação em relação ao direito histórico das variedades das comunidades

populares.

A Intolerância Linguística

Já a intolerância, diferentemente do preconceito, é “tendência a não

suportar ou condenar o que desagrada nas opiniões, atitudes, etc. alheias;

intransigência” (HOUAISS, 2004, p. 426), ou seja, é não admitir opiniões ou crenças

opostas às suas, ou modo de ser que reprovamos ou julgamos falsos. A intolerância

está relacionada aos valores culturais aceitos ou não aceitos por determinados

grupos. O conceito de superioridade cultural de um povo em relação a outro é

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antigo. Todo povo quando entra em contato com outro povo assimila determinados

traços da cultura do outro, mas também não aceita outros aspectos da cultura aos

quais menospreza colocando seus valores culturais como superiores aos outros,

muitas vezes de forma inconsciente.

Como a intolerância linguística passa quase despercebida pela opinião

pública e não provoca sérios abalos sociais, da mesma forma que aqueles

provenientes da intolerância religiosa ou política, parece nem existir.

Contudo, a intolerância lingüística existe e é tão agressiva quanto outra

qualquer, pois atinge o cerne das individualidades. A linguagem é o que o

homem tem de mais íntimo e o que apresenta a sua subjetividade. Não é

exagero, portanto, dizer que uma crítica à linguagem do outro é uma arma

que fere tanto quanto todas as armas (LEITE, 2008, p. 13).

Não são todas as pessoas que demonstram o preconceito em relação à

linguagem, às vezes, essas pessoas até pregam contra o preconceito, porém, a

intolerância linguística é explícita, pois se manifesta, geralmente, como uma

autoafirmação, uma demonstração de autoridade, poder e superioridade. Vemos

isso em algumas postagens em comunidades do Orkut:

Quadro 4: intolerância linguística em postagens do Orkut

Fonte:http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs?cmm=946031&tid=6848806&na=3&npn=2&nid=46

0316848806-4780884300848045113.Acessoem 24/01/2012.

O membro comenta um suposto “erro de português” no qual a pessoa

desejando usar o pretérito perfeito, falaram de mim, usou o futuro do presente,

falarão de mim. O que é interessante é que o membro nem percebe que também

cometeu seu “erro de português” grafando a conjunção nem (não, sequer) como

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nen, além de utilizar outras variedades típicas do ambiente digital como comu,

bjim e @ em lugar da interjeição Ah!

Todos estes “erros” utilizados são evidências que comprovam os fenômenos

linguísticos das variedades e variações presentes nas manifestações da linguagem,

mas a diferença, portanto, está na posição que o sujeito ocupa dentro da estrutura

social. Há “erros” que são tolerados como aqueles típicos do ambiente digital e

“outros” que por trazerem marcas sociais não são tolerados, pois, geralmente, a

posição do sujeito na estrutura social estará sendo julgado.

o preconceito não surge exclusivamente de uma dicotomia, pode ser uma

rejeição, um “não-querer”, um “não-gostar” sem razão, amorfos, e pode

até mesmo não se manifestar; a intolerância, por sua vez, nasce

necessariamente de julgamentos, de contrários, e se manifesta

discursivamente. É resultado da crítica e do julgamento de idéias, valores,

opiniões e práticas (LEITE, 2008, p. 22).

Desse modo, a intolerância se apresenta em atitudes de ódio e agressividade

para com indivíduos ou grupo de pessoas e geralmente está relacionada a não

aceitação da maneira de ser do outro, suas crenças, convicções, modo de

comportamento, modo de falar, modo de agir, por exemplo, expressões como: Eu

odeio nordestino! Eu odeio gente que fala errado! Eu não suporto quem escreve

errado! Quem escreve errado é burro! Odeio quem não sabe escrever! Estas

expressões intolerantes se refletem na criação de comunidades no Orkut. Odeio

quem escreve errado!

Quadro 5: intolerância linguística em comunidade do Orkut

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Fonte: http://www.orkut.com.br/Main#Community?cmm=11218342. Acesso em 10/02/2012.

Note que a comunidade traz na foto do perfil a imagem do burrinho do filme

Shrek com a palavra “burrinho” sobreposta. A descrição da comunidade diz: Esta

comunidade é destinada aqueles que odeiam as pessoas que escrevem errado.

Apesar de considerar como “preguiça” o fato de algumas pessoas escreverem

diferente e que elas “matam” a gramática e não a língua portuguesa, ao dizer que

“odeia quem escreve errado” o fator de intolerância fica claro, pois o ódio é um

determinante para a ocorrência da exclusão, segregação, discriminação de pessoas

ou mesmo atos de violência física ou psicológica. Porém, um detalhe interessante é

que mesmo dizendo odiar pessoas que escrevem “errado” os criadores da

comunidade não percebem que não seguiram a regra da gramática normativa

quanto à concordância em “muita gente escreve sem ler e nem ligam” quando a

regra diz que deveria ser “muita gente escreve sem ler e nem liga”.

Em outras comunidades, as quais analisamos, são comuns as seguinte

expressões: “Comunidade para aqueles que odeiam, abominam, detestam e

querem ver bem longe pessoas que, contrariando todas as regras de semântica,

ortografia e gramática, assassinam a nossa bela língua”.

Nestas comunidades, mesmo que alguns membros participantes não sejam

intolerantes em relação à linguagem, percebemos que quando o preconceito

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linguístico aflora aquilo que era apenas preconceito é carregado com altas doses de

intolerância tornando-se explícita a discriminação. Apesar de explicar que há certo

tipo de intolerância positiva, Bobbio (1992), esclarece que a intolerância negativa

é aquela em que ocorre a exclusão do diferente:

Intolerância em sentido positivo é sinônimo de severidade, rigor, firmeza,

qualidades todas que se incluem no âmbito das virtudes; tolerância em

sentido negativo, ao contrário, é sinônimo de indulgência culposa, de

condescendência com o mal, com o erro, por falta de princípios, por amor

da vida tranqüila ou por cegueira diante dos valores (BOBBIO, 1992, p.

210).

Ainda, de acordo com esse autor, existe um contínuo entre tolerância e

intolerância e que não é fácil estabelecer quais os limites deste contínuo, para

além dos quais uma sociedade tolerante possa se transformar numa sociedade

intolerante, mas a intolerância no sentido negativo ocorre pela indevida exclusão

do diferente ao que Leite (2008, p. 24) diz: “Essa exclusão, como a história mostra,

não é silenciosa, ao contrário, implica comportamentos violentos, agressivos, que

atingem o outro na sua integridade física, moral ou racial”.

A associação que se faz de que quem escreve diferente é “burro”, feio,

deselegante é vista em algumas postagens nos espaços virtuais, como esta.

Quadro 6: intolerância linguística em postagens de comunidade do Orkut

Fonte:.http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs?cmm=1112147&tid=2431857673949772034. Acesso em 10/02/2012.

Será que a pessoa que fez este comentário é “burra”, “deselegante”, “feia”

ou incompetente? Pois ela utilizou em sua postagem algumas variedades não

aceitas pela norma padrão quanto às regras de grafia e sintaxe: + burros, vcs não

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acham? e qd. Ela ainda utilizou reticências quando deveria utilizar vírgulas e não

respeitou a regra quanto ao uso de letras maiúsculas no início de frases. Claro que

essa pessoa não é incapaz de coordenar ideias, mas é vítima dos fenômenos das

variedades e variações linguísticas tanto quanto aquelas a quem critica.

Outras ações intolerantes são vistas nos espaços virtuais, como nas seguintes

expressões: essa pessoa é burra; essa menina só pode ser débil mental para

escrever assim; eu odeio quem não sabe escrever; essa menina só pode ser

analfabeta; só sendo do nordeste mesmo, povo caipira e burro; quando vejo

esses erros de português já sei de onde é a pessoa (referindo-se aos moradores

da periferia); pobre quando escreve é pior do que falando; vai aprender

escrever antes do postar alguma coisa, idiota! Uma pessoa que é preconceituosa

em relação à linguagem, a partir do momento em que passa a ter o conhecimento

dos fenômenos linguísticos poderá agir de maneira diferente e passar a aceitar as

variedades linguísticas e respeitar os falantes dessas variedades, mas o

conhecimento das variedades linguísticas sem a aceitação do outro, da sua cultura,

do seu modo de viver, da sua condição na estrutura social e da sua linguagem é

intolerância. Portanto, consideramos que a sociedade, a partir da escola, deve

encarar o ensino tendo a língua como objeto passível de ser analisado e

interpretado através de métodos e critérios científicos para que não estimule o

preconceito e nem a intolerância linguística. Os “movimentos de defesa da língua

portuguesa”, que tem em vista a defesa da gramática normativa, subvertem os

fatos, pois “quando a escola ensina, o que ela ensina mesmo é a modalidade

escrita dessa língua, e não propriamente a língua” (POSSENTI, 2000, p. 32). Dessa

forma, é necessário que a escola ensine a língua em sua totalidade em todas as

suas variedades.

Considerações Finais

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Neste trabalho refletimos sobre a importância da tomada de consciência

acerca da intolerância e do preconceito linguísticos em espaços virtuais, tomando

como base como base pesquisas sobre a intolerância e sobre o mito do preconceito

que está enraizado na realidade linguística brasileira, a partir de vários autores.

Apresentamos a realidade da variedade linguística e partimos do pressuposto que o

seu conhecimento é imprescindível para a consolidação de um trabalho

diferenciado a fim de que com esclarecimentos acerca da sua manifestação o

preconceito e a intolerância linguísticas venham a ser minimizadas, sobretudo no

que se refere ao respeito do diferente e, a partir dele, refletir e investigar sobre as

causas das variações. Pudemos observar em nossas análises de exemplos coletados

da internet os diversos fatores que comprovam e reafirmam a realidade das

variedades linguísticas como algo presente em diversas manifestações da linguagem

e que não pode deixar de ser estudada.

Durante anos a escrita literária foi elevada a um padrão de beleza superior,

de modo que os detentores do poder vieram a desprezar as variedades existentes

nas camadas sociais marginalizadas a ponto de tentar suprimir o direito do falante

se expressar como um cidadão pleno e capaz de articular bem suas ideias em

qualquer variedade da língua, inclusive nos espaços virtuais, onde, a intolerância

linguística muito pior do que o preconceito, pode se manifestar de maneira

agressiva pela não aceitação do outro e disseminação do ódio contra os falantes e

escritores plenos da língua portuguesa.

As variedades linguísticas são facilmente observadas nos espaços virtuais por

ser um ambiente onde interagem diversas pessoas de diversos grupos sociais. O

estudo dessas variedades possibilita a utilização de uma infinidade de textos que

poderão ser usados como meio de conscientização dos aspectos não apenas

culturais e funcionais, mas também e essencialmente sociais e que irá nos auxiliar

a contextualizar cada explicação e cada abordagem em relação à monitoração

linguística, entre o aceitável e o não aceitável, definidos dentro do contexto e

Universidade Federal de Pernambuco NEHTE / Programa de Pós Graduação em Letras CCTE / Programa de Pós Graduação em Ciências da Computação

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situação de fala, pois somente a análise do contexto e da situação é capaz de

definir como devemos falar ou escrever.

Por fim, vale salientar que não foi objetivo da pesquisa afirmar que escrever

fora das regras da gramática normativa ou não falar conforme a “norma culta” seja

plenamente aceitável. Deixamos claro que o que não é aceitável são o preconceito

e a intolerância promovidos nos espaços virtuais. Estamos cientes de que as regras

da gramática normativa devem ser ensinadas, já que são necessárias para a

comunicação escrita; se cada usuário da língua escrevesse de forma arbitrária, não

seria possível a interação. Sendo a linguagem, própria do cidadão, em situações

diversas de comunicação, seria importante uma tomada de consciência de

educadores, professores, pesquisadores e usuários dos espaços virtuais e, a partir

da escola, refletir sobre o processo de formação de cada região, suas influências

culturais, raízes étnicas, suas histórias e o falar de cada região levantando questões

que gerem discussões entre os alunos. E sabendo que os espaços virtuais é um local

de aprendizagem significativa, além de desenvolver ações que favorecem o

letramento digital poderá ser usado na luta contra o preconceito e a intolerância

que muitas vezes falantes de determinadas variedades sofrem por serem oriundos

de camadas pobres ou marginalizadas.

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1 Levi OLIVEIRA, (Prof.) Universidade de Pernambuco Campus Garanhuns (UPE)

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