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Preço € 1,00. Número atrasado € 2,00 L’O S S E RVATORE ROMANO EDIÇÃO SEMANAL Unicuique suum EM PORTUGUÊS Non praevalebunt Ano XLIX, número 24 (2.520) Cidade do Vaticano quinta-feira 14 de junho de 2018 y(7HB5G3*QLTKKS( +{!"!.!?!&! Apresentado o documento preparatório Rumo ao sínodo sobre a Amazónia Olhar histórico sobre os abusos sexuais Fim do silêncio CONTINUA NA PÁGINA 14 LUCETTA SCARAFFIA A questão dos abusos sexuais contra pessoas mais frágeis — crianças e mulheres — está a emergir com força nas sociedades ocidentais, exercendo uma transfor- mação radical na sociedade e na moral coletiva. Mas há um aspeto do problema que em muitos gera admiração e perplexidade: por que as testemunhas esperaram tanto pa- ra fazer a denúncia? Por que tantos anos de silêncio? Até os abusos têm uma história, que explica muitas coisas. A revo- lução sexual e a feminista, revolu- ções que mudaram as sociedades ocidentais nas últimas décadas do século XX, não só alcançaram al- guns dos objetivos que se tinham proposto, mas puseram em movi- mento transformações complemen- tares e imprevistas, como precisa- mente o emergir da questão dos abusos contra menores. Pensando bem, parece paradoxal que uma revolução que visava tor- nar lícitas e praticáveis todas as formas de relação sexual — em ca- sos documentados, as relações se- xuais deviam envolver também crianças — tenha levado, ao contrá- rio, a um novo rigor exatamente nesta matéria. Mais uma prova da heterogénese das finalidades! O que permitiu às vítimas falar, dizer aquilo que até àquele momento era geralmente considerado indizível, foi o fim de qualquer tabu relativo ao sexo. Portanto, até daqueles re- lativos à palavra que menciona o sexo para o denunciar. Inicialmente as vítimas temiam, e com razão, que as denúncias — as quais obviamente comportavam a transgressão deste tabu — levariam a estigmatizar também a elas, que tinham sofrido os abusos, e não só os agressores. Portanto, tinham bons motivos para ficar caladas, para se defender daquela que po- dia tornar-se outra possível forma de violência. No mesmo período, a revolução das mulheres agendou o desnível de poder no âmbito da relação se- xual, um tema até àquele momento descuidado, face a interpretações que analisavam sobretudo os aspe- tos lícitos ou ilícitos e as possíveis consequências. As mulheres, que sempre gozaram de um poder infe- rior ao dos homens, denunciaram ao contrário o uso do poder na re- lação sexual, do qual quase sempre eram vítimas. Estas duas consequências das re- No Angelus o apelo do Pontífice em vista dos colóquios de Singapura Um futuro de paz para a Coreia e o mundo Estratégia global para evitar mudanças climáticas desastrosas Conciliar eficiência energética e proteção ambiental Com seminaristas e sacerdotes Pais e irmãos não funcionários PÁGINAS 10 A 13 «A questão energética tornou-se um dos principais desafios para a comuni- dade internacional». E «depende do modo como ela for gerida os conflitos presentes em várias regiões do planeta encontrarão em diversas áreas do pla- neta novo combustível para se alimentar, queimando estabilidade social e vi- das humanas». O Papa Francisco usou imagens fortes para falar sobre os te- mas da transição energética e do cuidado da casa comum com os dirigentes das principais empresas do setor petrolífero e do gás natural, com os quais se encontrou no Vaticano na manhã de sábado, 9 de junho. Recebendo-os na conclusão de um simpósio, o Pontífice fez referência à “sede” de energia que o mundo tem, embora «infelizmente, ainda seja demasiado o número de quantos não têm acesso à eletricidade». PÁGINA 2 Foi apresentado na manhã de sex- ta-feira 8 de junho, o documento preparatório da assembleia especial do Sínodo dos bispos para a região pan-amazônica, que terá lugar em Roma em outubro de 2019 sobre o tema: «Amazônia, novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia in- tegral». Ilustraram-no aos jornalistas na Sala de Imprensa da Santa Sé o cardeal Lorenzo Baldisseri e o bispo Fabio Fabene, respetivamente secre- tário-geral e subsecretário do Sínodo dos bispos. PÁGINAS 8 E 9 Pablo Picasso, «A guerra e a paz» «Um percurso que garanta um futu- ro de paz para a península coreana e para o mundo inteiro»: eis o que o Papa Francisco espera da cimeira de 12 de junho, em Singapura, entre o presidente dos Estados Unidos da América e o líder da Coreia do Nor- te, por cujo êxito positivo rezou no Angelus de domingo 10. Na antevigí- lia do esperado encontro o Pontífice quis «fazer chegar novamente ao amado povo coreano um particular pensamento na amizade», convidan- do os fiéis presentes na praça de São Pedro a implorar «Nossa Senhora, rainha da Coreia», a fim de que «acompanhe estes colóquios». Antes da oração mariana o Papa comentou o evangelho dominical de Marcos (3, 20-35), centrado em «dois tipos de incompreensão que Jesus te- ve de enfrentar: dos escribas e dos seus próprios familiares». A primeira, explicou, é obra de «homens instruí- dos nas Sagradas Escrituras» que «são enviados de Jerusalém para a Galileia, onde a fama de Jesus come- çava a difundir-se, a fim de o desa- creditar aos olhos das pessoas». Tra- ta-se, explicou, de um episódio que «contém uma advertência» atual, vá- lida para «todos nós. De facto, pode acontecer que uma grande inveja pe- la bondade e pelas boas obras de uma pessoa possa impelir a acusá-la falsamente». No que diz respeito à segunda incompreensão, a dos fami- liares de Jesus, o Papa recordou que eles estavam «preocupados» pela sua «nova vida itinerante». Mas, con- cluiu Francisco, Cristo «tinha forma- do uma nova família, baseada não já em vínculos naturais mas na fé n’Ele, no seu amor». PÁGINA 5

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L’O S S E RVATOR E ROMANOEDIÇÃO SEMANAL

Unicuique suum

EM PORTUGUÊSNon praevalebunt

Ano XLIX, número 24 (2.520) Cidade do Vaticano quinta-feira 14 de junho de 2018

y(7HB5G3*QLTKKS( +{!"!.!?!&!

Apresentado o documento preparatório

Rumo ao sínodo sobre a AmazóniaOlhar histórico sobre os abusos sexuais

Fim do silêncio

CO N T I N UA NA PÁGINA 14

LU C E T TA SCARAFFIA

Aquestão dos abusos sexuaiscontra pessoas mais frágeis— crianças e mulheres — está

a emergir com força nas sociedadesocidentais, exercendo uma transfor-mação radical na sociedade e namoral coletiva. Mas há um aspetodo problema que em muitos geraadmiração e perplexidade: por queas testemunhas esperaram tanto pa-ra fazer a denúncia? Por que tantosanos de silêncio?

Até os abusos têm uma história,que explica muitas coisas. A revo-lução sexual e a feminista, revolu-ções que mudaram as sociedadesocidentais nas últimas décadas doséculo XX, não só alcançaram al-guns dos objetivos que se tinhamproposto, mas puseram em movi-mento transformações complemen-tares e imprevistas, como precisa-mente o emergir da questão dosabusos contra menores.

Pensando bem, parece paradoxalque uma revolução que visava tor-nar lícitas e praticáveis todas asformas de relação sexual — em ca-sos documentados, as relações se-xuais deviam envolver tambémcrianças — tenha levado, ao contrá-rio, a um novo rigor exatamentenesta matéria. Mais uma prova daheterogénese das finalidades! Oque permitiu às vítimas falar, dizeraquilo que até àquele momento erageralmente considerado indizível,foi o fim de qualquer tabu relativo

ao sexo. Portanto, até daqueles re-lativos à palavra que menciona osexo para o denunciar.

Inicialmente as vítimas temiam,e com razão, que as denúncias — asquais obviamente comportavam atransgressão deste tabu — levariama estigmatizar também a elas, quetinham sofrido os abusos, e não sóos agressores. Portanto, tinhambons motivos para ficar caladas,para se defender daquela que po-dia tornar-se outra possível formade violência.

No mesmo período, a revoluçãodas mulheres agendou o desnívelde poder no âmbito da relação se-xual, um tema até àquele momentodescuidado, face a interpretaçõesque analisavam sobretudo os aspe-tos lícitos ou ilícitos e as possíveisconsequências. As mulheres, quesempre gozaram de um poder infe-rior ao dos homens, denunciaramao contrário o uso do poder na re-lação sexual, do qual quase sempreeram vítimas.

Estas duas consequências das re-

No Angelus o apelo do Pontífice em vista dos colóquios de Singapura

Um futuro de pazpara a Coreia e o mundo

Estratégia global para evitar mudanças climáticas desastrosas

Conciliareficiência energética e proteção ambiental

Com seminaristas e sacerdotes

Pais e irmãosnão funcionários

PÁGINAS 10 A 13

«A questão energética tornou-se um dos principais desafios para a comuni-dade internacional». E «depende do modo como ela for gerida os conflitospresentes em várias regiões do planeta encontrarão em diversas áreas do pla-neta novo combustível para se alimentar, queimando estabilidade social e vi-das humanas». O Papa Francisco usou imagens fortes para falar sobre os te-mas da transição energética e do cuidado da casa comum com os dirigentesdas principais empresas do setor petrolífero e do gás natural, com os quaisse encontrou no Vaticano na manhã de sábado, 9 de junho. Recebendo-osna conclusão de um simpósio, o Pontífice fez referência à “sede” de energiaque o mundo tem, embora «infelizmente, ainda seja demasiado o número dequantos não têm acesso à eletricidade».

PÁGINA 2

Foi apresentado na manhã de sex-ta-feira 8 de junho, o documentopreparatório da assembleia especialdo Sínodo dos bispos para a regiãopan-amazônica, que terá lugar emRoma em outubro de 2019 sobre otema: «Amazônia, novos caminhospara a Igreja e para uma ecologia in-tegral». Ilustraram-no aos jornalistasna Sala de Imprensa da Santa Sé ocardeal Lorenzo Baldisseri e o bispoFabio Fabene, respetivamente secre-tário-geral e subsecretário do Sínododos bispos.

PÁGINAS 8 E 9

Pablo Picasso, «A guerra e a paz»

«Um percurso que garanta um futu-ro de paz para a península coreana epara o mundo inteiro»: eis o que oPapa Francisco espera da cimeira de12 de junho, em Singapura, entre opresidente dos Estados Unidos daAmérica e o líder da Coreia do Nor-te, por cujo êxito positivo rezou noAngelus de domingo 10. Na antevigí-lia do esperado encontro o Pontíficequis «fazer chegar novamente aoamado povo coreano um particularpensamento na amizade», convidan-do os fiéis presentes na praça de SãoPedro a implorar «Nossa Senhora,rainha da Coreia», a fim de que«acompanhe estes colóquios».

Antes da oração mariana o Papacomentou o evangelho dominical deMarcos (3, 20-35), centrado em «doistipos de incompreensão que Jesus te-ve de enfrentar: dos escribas e dosseus próprios familiares». A primeira,

explicou, é obra de «homens instruí-dos nas Sagradas Escrituras» que«são enviados de Jerusalém para aGalileia, onde a fama de Jesus come-çava a difundir-se, a fim de o desa-creditar aos olhos das pessoas». Tra-ta-se, explicou, de um episódio que«contém uma advertência» atual, vá-lida para «todos nós. De facto, podeacontecer que uma grande inveja pe-la bondade e pelas boas obras deuma pessoa possa impelir a acusá-lafalsamente». No que diz respeito àsegunda incompreensão, a dos fami-liares de Jesus, o Papa recordou queeles estavam «preocupados» pela sua«nova vida itinerante». Mas, con-cluiu Francisco, Cristo «tinha forma-do uma nova família, baseada não jáem vínculos naturais mas na fé n’Ele,no seu amor».

PÁGINA 5

página 2 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 14 de junho de 2018, número 24

L’OSSERVATORE ROMANOEDIÇÃO SEMANAL

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GI O VA N N I MARIA VIANd i re t o r

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Desafio epocalConciliar eficiência energética e proteção ambiental

Depende «do modo como for gerida» aquestão energética, «se os conflitospresentes em várias regiões do planetaencontrarão uma solução mais fácil»,ou se «descobrirão um novocombustível para se alimentar,queimando estabilidade social e vidashumanas», ressaltou o Papa Franciscorecebendo na manhã de 9 de junho, nasala Clementina, os participantes nosimpósio para os dirigentes dasprincipais empresas do setor petrolífero,do gás natural e de outras atividadesempresariais vinculadas, o qual tevelugar no Vaticano sobre o tema«Transição energética e cuidado dacasa comum».

Senhor CardealSenhores AdministradoresInvestidores e PeritosSenhores e Senhoras!Dou-vos as minhas cordiais boas-vindas no final do Simpósio dedica-do aos temas da transição energéticae do cuidado da casa comum, queteve lugar aqui no Vaticano.

É muito positivo que quantos de-sempenham um papel importante naorientação das opções, iniciativas einvestimentos no setor energético te-nham a oportunidade de um profí-cuo intercâmbio de opiniões e de co-nhecimentos. Agradeço-vos a vossapresença qualificada e espero que,na escuta recíproca, tenhais podidofazer uma averiguação aprofundadae considerar novas perspetivas.

Os progressos técnico-científicostornam todos os tipos de comunica-ção cada vez mais rápidos. Qualquernotícia verdadeira ou falsa, qualquer

ideia boa ou má, qualquer métodoeficaz ou desviante, uma vez lança-dos, propagam-se em poucos segun-dos. Também as pessoas podem en-contrar-se e as mercadorias podemser trocadas com um ritmo, uma ve-locidade e uma intensidade antesinimagináveis, superando rapida-mente oceanos e continentes. Asnossas sociedades estão cada vezmais interligadas.

Este intenso movimento de massasde informações, de pessoas e de coi-sas tem necessidade de muita ener-gia, uma necessidade superior aqualquer época passada. Grandeparte dos âmbitos da nossa vida sãocondicionados pela energia e infeliz-mente devemos constatar que aindasão demasiados aqueles que não têm

acesso à eletricidade: fala-se até demais de um bilião de pessoas.

Disto nasce o desafio de conseguirgarantir a enorme quantidade deenergia necessária para todos, comtais modalidades de exploração dosrecursos que evitem produzir dese-quilíbrios ambientais que causamum processo de degradação e polui-ção, o qual feriria gravemente toda ahumanidade de hoje e de amanhã.

A qualidade do ar, o nível dosmares, a consistência das reservas deágua doce, o clima e o equilíbrio deecossistemas delicados não podemdeixar de ser afetados pelas modali-dades com que os seres humanos sa-ciam a sua “sede” de energia, infeliz-mente com graves desigualdades.

Para saciar esta “sede” não é lícitoaumentar a verdadeira sede de água,nem a pobreza e nem sequer a ex-clusão social. A necessidade de ter àdisposição quantidades crescentes deenergia para o funcionamento dasmáquinas não pode ser satisfeita aopreço de envenenar o ar que respira-mos. A necessidade de ocupar espa-ços para as atividades humanas nãopode ser satisfeita de modo a colo-car em sério perigo a existência danossa e das demais espécies de seresvivos na Terra.

É um «falso pressuposto de que“existe uma quantidade ilimitada deenergia e de recursos a serem utiliza-dos, que a sua regeneração é possí-vel imediatamente e que os efeitosnegativos das manipulações da or-dem natural podem ser facilmenteabsorvidos”» (Carta Enc. Laudatosi’, 106).

Por isso, a questão energética tor-nou-se um dos principais desafios,teóricos e práticos, para a comunida-de internacional. Do modo como forgerida dependerá a qualidade da vi-da e se os conflitos presentes em vá-rias regiões do planeta encontraremuma solução mais fácil, ou então seeles, por causa dos profundos dese-

quilíbrios ambientais e da escassezde energia, descobrirem um novocombustível para se alimentar, quei-mando estabilidade social e vidashumanas.

Portanto, é preciso indicar umaestratégia global a longo prazo, queofereça segurança energética e destemodo favoreça a estabilidade econó-mica, proteja a saúde e o meio am-biente, e promova o desenvolvimen-to humano integral, assumindo com-promissos específicos para enfrentara problemática das mudanças climá-ticas.

Na Encíclica Laudato si’ fiz apeloa todas as pessoas de boa vontade(cf. nn. 3; 62-64) em prol do cuida-do da casa comum, e precisamentede uma «transição energética» (n.165), para evitar desastrosas mudan-ças climáticas que poderiam compro-meter o bem-estar e o futuro da fa-mília humana e da sua casa comum.Neste contexto é importante que,com seriedade de compromisso, seproceda rumo a uma transição quefaça crescer constantemente o uso deenergias de alta eficiência e baixa ta-xa de poluição.

Trata-se de um desafio epocal,mas também de uma grande oportu-nidade, na qual devemos ter particu-larmente a peito os esforços a favorde um melhor acesso à energia dospaíses mais vulneráveis, sobretudonas áreas rurais, e de uma diversifi-cação das fontes de energia, acele-rando também o desenvolvimentosustentável de energias renováveis.

Estamos conscientes de que os de-safios a enfrentar estão interligados.Com efeito, se quisermos eliminar apobreza e a fome, como exigido pe-los objetivos de desenvolvimentosustentável das Nações Unidas, maisde um bilião de pessoas que hojenão dispõem de eletricidade devempoder tê-la de maneira acessível.Mas, ao mesmo tempo, é bom quetal energia seja limpa, limitando ouso sistemático de combustíveis fós-seis. A perspetiva desejável de umaenergia para todos não pode levar auma não almejável espiral de mu-danças climáticas cada vez mais gra-ves, mediante um temível aumentodas temperaturas no globo, condi-ções ambientais mais duras e o in-cremento dos níveis de pobreza.

Como sabeis, em dezembro de2015, 196 nações negociaram e adota-ram o Acordo de Paris, com a firmeintenção de limitar o aumento doaquecimento global abaixo de 2°Cem relação aos patamares pré-indus-triais e, se possível, abaixo de 1,5°C.Dois anos e meio mais tarde, asemissões de CO2 e as concentraçõesatmosféricas devidas aos gases deefeito estufa são sempre muito eleva-das. Isto è bastante inquietante epreo cupante.

Intenção de oração para junho dedicada às redes sociais

Lugares de humanidade«A internet é um dom de Deus, e é também uma grande responsabilida-de»: foi dedicada ao mundo digital a intenção do Papa Francisco contidana mensagem vídeo para o mês de junho, confiada à Rede mundial deoração (www.thepopevideo.org).

Com eficiência, as palavras do Pontífice aparecem com a gráfica típicadas notificações dos telemóveis, e no ecrã passam imagens que ilustram as«possibilidades de encontro e solidariedade que as redes sociais nos ofe-recem»: familiares distantes que podem conversar através de uma video-chamada, um avô com o netinho que juntos usam um tablet, um jovemdeficiente que graças ao computador supera as suas dificuldades motoras,um pai com o filho que, de uma aldeia africana, se conectam à rede, ado-lescentes que conversam, partilham fotos, um professor que explica a li-ção com a ajuda de um computador. É a sequência que ilustra o modocomo a comunicação, os seus lugares e os seus instrumentos, provocaram«uma amplificação de horizontes para muitas pessoas».

Um contexto positivo, contanto que o digital seja «um lugar concreto,rico de humanidade». De facto, advertiu Francisco, o risco é de que aocontrário a web se torne «um lugar de alienação». Eis então o convite arezar «para que as redes sociais não anulem a própria personalidade, masfavoreçam a solidariedade e o respeito do outro na sua diferença».

Traduzido em nove línguas, o vídeo foi preparado pela Rede mundialde oração do Papa com a agência La Machi, que se ocupa da produção eda distribuição, em colaboração com Vatican Media que o gravou.

Laurie DeVault«Mudança climática 2»

número 24, quinta-feira 14 de junho de 2018 L’OSSERVATORE ROMANO página 3

Suscitam apreensão também ascontínuas explorações em busca denovas reservas de combustível fóssil,enquanto o Acordo de Paris aconse-lha claramente a manter no subsoloa maior parte do carburante fóssil.Eis por que razão é necessário deba-ter juntos — industriais, investidores,pesquisadores e usuários — sobre atransição e a procura de alternativas.A civilização requer energia, mas ouso da energia não deve destruir acivilização!

A descoberta de uma adequadamistura energética é fundamentalpara combater a poluição, erradicara pobreza e promover a equidadesocial. Muitas vezes, estes aspetosfortalecem-se reciprocamente, umavez que a cooperação no campoenergético está destinada a incidirsobre a diminuição da pobreza, so-bre a promoção da inclusão social esobre a salvaguarda ambiental. Tra-ta-se de objetivos para cuja consecu-ção é necessário assumir a perspetivados direitos dos povos e das culturas(cf. Laudato si’, 144).

Os instrumentos fiscais e econó-micos, a transferência de capacida-des tecnológicas e em geral a coope-ração regional e internacional, assimcomo o acesso à informação, deve-riam ser congruentes com tais objeti-vos, que não podem ser considera-dos fruto de uma ideologia em parti-cular, mas objetivos de civilização,que promovem até o crescimentoeconómico e a ordem social.

Uma exploração ambiental que,ao contrário, não considerasse asquestões a longo prazo somente po-deria procurar favorecer um cresci-mento económico a curto prazo, mascom um seguro impacto negativonum arco temporal mais amplo, inci-dindo tanto sobre a equidade inter-geracional, como sobre o processode desenvolvimento.

É sempre necessária uma atentaavaliação do impacto ambiental dasdecisões de natureza económica, pa-ra considerar bem os custos huma-nos e ambientais a longo prazo,comprometendo o mais possível asinstituições e as comunidades locaisnos processos decisórios.

Através dos vossos esforços foramalcançados progressos. As compa-nhias petrolíferas e de gás conti-nuam a desenvolver abordagensmais aprofundadas para avaliar o ris-co climático e, por conseguinte, mo-

dificar os seus planos empresariais.Isto é digno de louvor. Os investi-dores globais estão a rever as suasestratégias de investimento, para terem conta as considerações de natu-reza ambiental. Começam a sobres-sair novas abordagens das “finançasv e rd e s ”.

Sem dúvida, foram feitos progres-sos. Mas são suficientes? Mudamosa tempo? Ninguém pode respondercom certeza a esta pergunta, mas acada mês que passa o desafio datransição energética torna-se sempremais urgente.

Tanto as decisões políticas como aresponsabilidade social das empresase os critérios de investimento devemter presente a busca do bem comuma longo prazo, para que haja solida-riedade concreta entre as gerações,evitando oportunismos e cinismosdestinados a obter resultados par-ciais a curto prazo, mas que no futu-ro descarregariam custos muito ele-vados e prejuízos igualmente rele-vantes.

Além disso, existem também algu-mas profundas motivações éticas pa-ra caminharmos rumo a uma transi-ção energética global com um senti-do de urgência. Como sabemos, so-mos atingidos pelas crises climáticas.No entanto, os efeitos das mudançasclimáticas não são distribuídos demodo uniforme. São os pobres quesofrem em maior medida por causadas devastações do aquecimento glo-bal, com as crescentes perturbaçõesno campo agrícola, a insegurança dadisponibilidade de água e a exposi-ção a graves eventos meteorológicos.Muitos daqueles que mal podempermitir-se, já são obrigados a aban-donar as próprias habitações e a mi-grar para outros lugares, sem sabercomo serão recebidos. E muitos maisdeverão fazê-lo no futuro. A transi-ção para a energia acessível e limpaé uma responsabilidade que temospor milhões de nossos irmãos e ir-

mãs no mundo, pelos países pobrese pelas gerações vindouras.

Não se conseguirá proceder comdecisão por este caminho, sem umamaior consciência de que todos nósfazemos parte de uma única famíliahumana, ligada por vínculos de fra-ternidade e solidariedade. Somentepensando, agindo e prestando aten-ção constante a esta unidade funda-mental que ultrapassa todas as dife-renças, só cultivando um sentimentode solidariedade universal e interge-racional poderemos realmente proce-der com determinação pelo caminhoindicado.

Um mundo interdependente obri-ga a pensar e a levar adiante umprojeto comum a longo prazo queinvista hoje para construir o ama-nhã. O ar e a água não seguem leisdiversas, segundo os países que atra-vessam; as substâncias poluentes nãoadotam comportamentos diferentes,em conformidade com as latitudes,mas têm regras unívocas. Os proble-mas ambientais e energéticos já têmum impacto e uma dimensão global.Por isso, exigem respostas planetá-rias, procuradas com paciência e diá-logo, e perseguidas com racionalida-de e constância.

Uma fé absoluta nos mercados ena tecnologia levou muitos a crerque as mudanças nos sistemas eco-nómicos ou tecnológicos serão sufi-cientes para remediar os atuais dese-quilíbrios ecológicos e sociais. Con-tudo, devemos reconhecer que a pro-cura de um contínuo crescimentoeconómico comportou graves conse-quências ecológicas e sociais, vistoque o nosso atual sistema económicoprospera cada vez mais graças ao au-mento das extrações, do consumo edo desperdício.

«O problema é que ainda não dis-pomos da cultura necessária para en-frentar esta crise, e é preciso cons-truir lideranças que tracem cami-nhos, procurando dar resposta às ne-

cessidades das gerações atuais, in-cluindo todos, sem prejudicar as ge-rações futuras» (Laudato si’, 53).

A reflexão sobre estes temas cultu-rais mais profundos e basilares leva-nos a considerar de novo a finalida-de fundamental da vida. «Não have-rá uma nova relação com a natureza,sem um ser humano novo» (ibid., n.118). Esta renovação exige uma novaforma de liderança, e estes líderesdevem ter uma compreensão profun-da e perspicaz do facto de que aTerra constitui um único sistema eque a humanidade, igualmente, éum só conjunto. O Papa Bento XVIafirmou que «o livro da natureza éum só e indivisível, tanto sobre avertente do meio ambiente como so-bre a vertente da vida, da sexualida-de, do matrimónio, da família, dasrelações sociais, numa palavra, dodesenvolvimento humano integral.Os deveres que temos para com omeio ambiente estão ligados com osdeveres que temos para com a pes-soa considerada em si mesma e emrelação com os outros; não se po-dem exigir uns e espezinhar os ou-tros. Esta é uma grave antinomia damentalidade e do costume atual, queavilta a pessoa, transtorna o meioambiente e prejudica a sociedade»(Carta Enc. Caritas in veritate, 51).

Estimados irmãos e irmãs, dirijo-me em particular a vós, que recebes-tes muito em termos de capacidade ede experiência. Gostaria de vosexortar a fim de que quantos de-monstraram uma atitude favorável àinovação e a melhorar a qualidadeda vida de muitos, mediante o pró-prio compromisso e a própria com-petência profissional, possam contri-buir ulteriormente para isto, colo-cando as suas capacidades ao serviçode duas grandes fragilidades domundo de hoje: os pobres e o meioambiente. Convido-vos a ser o nú-cleo de um grupo de líderes queimagina a transição energética globalde maneira a ter em consideração to-dos os povos da Terra, assim comoas gerações vindouras e todas as es-pécies e ecossistemas. Que esta sejavista como a maior oportunidade deuma liderança para incidir de mododuradouro a favor da família huma-na, uma oportunidade que faça ape-lo à vossa imaginação mais audaz.Não se trata de algo que pode serrealizado só por vós, nem apenaspelas vossas empresas individual-mente. Mas juntos, e colaborandocom os outros, pelo menos existe apossibilidade de uma nova aborda-gem, que até agora não foi posta emevidência.

Acolher este apelo exige umagrande responsabilidade, que requera bênção e a graça de Deus, assimcomo a boa vontade de homens emulheres de todas as latitudes.

Não há tempo a perder: recebe-mos a Terra do Criador como umacasa-jardim; não a transmitamos àsgerações futuras como um lugar sel-vagem (cf. Laudato si’, 160).

É com reconhecimento que vosabençoo e rezo a Deus Todo-Pode-roso, a fim de que conceda a cadaum de vós grande determinação ecoragem, para servir a casa comummediante uma renovada forma deco op eração.

Audiência aos astronautasda missão espacial ISS 53

Na manhã de 8 de junho o Papa Francisco recebeu em audiência nasala do «Tronetto» os astronautas da missão ISS 53, com os quais tevea oportunidade de dialogar no dia 22 de outubro passado, quando es-tavam em órbita a bordo da estação espacial internacional. Entre osmembros da tripulação, acompanhados por alguns familiares, estavapresente Paolo Nespoli, que foi o intérprete durante o encontro. Comeles estavam também Paolo Castiglioni e Maurizio Saporiti, respetiva-mente presidente e vice-presidente da associação de pesquisa científicae tecnológica Space Experience.

página 4 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 14 de junho de 2018, número 24

O Pontífice recebeu um comboio de crianças

Sonhos de periferia“Avô” Francisco e os seus quinhen-tos netinhos: foi deveras com um es-tilo de família — entre confidências,conselhos e perguntas — que na ma-nhã de sábado, 9 de junho, o Paparecebeu mais uma vez o Comboiodas crianças no Vaticano, repetindoa iniciativa promovida pelo Pátiodos Gentios do Pontifício Conselhopara a cultura, em colaboração comas "Ferrovias italianas", a fim de pre-sentear aos pequeninos que vivemem condições desfavorecidas um diade alegria e festa. «Cidade amiga»foi o slogan desta edição, dedicadaàs periferias das metrópoles de Mi-lão e Roma.

No Frecciarossa 1000 de Trenitalia,que chegou à estação da Cidade doVaticano, desta vez viajaram os estu-dantes de quatro escolas das grandesperiferias de Milão: Gallaratese, Cor-vetto, Barona e Via Padova. Sãobairros marcados por relevantes com-plexidades e fragilidades sociais, comsignificativas presenças de famíliasestrangeiras, altas taxas de criminali-dade e sérios problemas urbanos. Osestudantes milaneses dos institutos

Ilaria Alpi, Riccardo Massa, Tomma-so Grossi e Via Giacosa foram rece-bidos no Vaticano pelos seus coetâ-neos de duas escolas de Roma: Gio-vanni Battista Valente no Prenestinoe a escola Arvalia do instituto Anto-nio Gramsci, do bairro Trullo.

Como um avô o Papa Francisco,respondendo a seis perguntas espon-tâneas das crianças, deixou-se levarpelas recordações da sua infância,começando pela primeira professora,à qual se afeiçoou de tal forma quenunca a perdeu de vista duranteanos, ajudando-a inclusivamente —era já bispo — durante a doença quea levou à morte. Depois Bergogliorecordou também a sua primeira es-cola, feita com tijolos vermelhos,distante só quatrocentos metros dasua casa, à qual ia sempre a pé. Co-mo naquele dia 25 de maio, festa na-cional na Argentina, quando pelaprimeira vez correu o risco de escor-regar por causa do gelo.

Precisamente a partir destas recor-dações pessoais, íntimas, o Papa deusugestões às crianças para que nuncapercam as próprias raízes, que não

se desenraízem perdendo a memóriados primeiros professores, da primei-ra escola, e inclusive da própria fa-mília.

Durante o diálogo com estes viva-zes “netinhos” milaneses e romanosFrancisco contou que, na praça pró-xima à sua casa, acabava regular-mente por ser o guarda-redes, desen-rascando-se de modo egrégio, noimprovisado campeonato de futebolde periferia, porque, reconheceu, de-certo não era um grande jogador co-

mo atacante. Contudo era muitobom a montar papagaios de papelcom varas, papel e fio. E pelas ruasdo barrio Flores, o seu amado bair-ro, não deixava de ir ao carnaval ede se agregar a alegres grupos mas-carados. E às vezes tocava as cam-painhas das casas a fim de remediaralguns cêntimos para comprar cho-colate.

Respondendo às perguntas formu-ladas pelas crianças, o Papa confi-denciou que sentiu “paz” no mo-mento da sua eleição ao pontificadoe, acrescentou, aquela “paz” aindacontinua a senti-la. Enquanto defi-niu um “cho que” a escolha de setornar sacerdote, indicando o diaexato da sua vocação: 21 de setem-bro, festa de São Mateus. Trabalha-va num laboratório químico, contouàs crianças, mas não se sentia satis-feito pois precisava de fazer algomais pelos outros.

Também as crianças contaram assuas histórias ao Pontífice. Cantan-do — reescreveram as palavras de umclássico da periferia milanesa comoIl ragazzo della via Gluck de AdrianoCelentano — e apresentando-lhe mo-delos de projetos sobre as suas peri-ferias elaborados durante um ano dedensas pesquisas.

Agradecendo-lhes pelo esforço,tão concreto que pode ser útil até àsadministrações locais, o Papa exor-tou os jovens a trabalhar com a inte-ligência, com as mãos e com o cora-ção. Três elementos, insistiu, que de-vem sempre estar juntos. E como re-cordação deste encontro ofereceupessoalmente a cada um um terço.

Os estudantes contaram a Francis-co o percurso pedagógico que os le-vou à descoberta dos próprios bair-ros e à elaboração de ideias e solu-ções para os conhecer e melhorar asua qualidade da vida. Durante todoo ano escolar, a fim de se prepararmelhor para o encontro com o Papa,entrevistaram avós e pais para enten-der como era o bairro no passado.Encontraram-se com assessores efuncionários dos próprios municí-pios para compreender as questõessociais e urbanísticas. E elaborarampropostas para melhorar o bairro: ci-clovias, lugares de agregação, luga-res de culto mais acessíveis, parquesmais cuidados e apetrechados, bi-bliotecas. Neste trabalho foramapoiados por diretores e professores,que ao Papa apresentaram as reali-dades das suas escolas de periferiafalando de inclusão, acolhimento ecriatividade. E, parafraseando a ex-pressão querida ao Pontífice, decla-

Com a graça da vergonhaPrefácio do Papa à sexta edição de «Quem reza salva-se»

«A vergonha é uma graça, se nos levar a pedir perdão,assim como é uma graça o dom das lágrimas, que lavao nosso olhar e nos faz ver melhor a realidade», ressal-ta o Papa Francisco numa espécie de vade-mécum para«se confessar bem», que é o prefácio por ele escrito re-centemente para a sexta edição do difundido livrinhoChi prega si salva, por obra do padre Giacomo Tantar-dini (1946-2012). O pequeno manual com as oraçõesmais simples da tradição cristã foi publicado pela pri-meira vez em 2001 pela revista «30Giorni». Seguiram-se outras edições, até àquela de 2005, a qual continhauma introdução assinada pelo então cardeal JosephRatzinger, que pouco tempo depois teria sido eleito aoPontificado. A versão atual manteve aquele texto, queprecedido por uma breve reflexão do Papa Bergoglio,o qual começa com as palavras de Santo Ambrósio naExpositio in Psalmum 118: «Vinde, pois, Senhor Jesus.Vinde a mim, procurai-me, encontrai-me, tomai-me nosbraços, carregai-me». Uma prece, explica Francisco,«muito querida a Tantardini», que «a recitava com fre-quência». A ponto de ter sido escolhida também comocapa do suplemento que o mensal internacional dirigi-do por Giulio Andreotti lhe dedicou por ocasião damorte do sacerdote lombardo, ocorrida a 19 de abril de2012, com uma recordação intitulada: «O meu amigopadre Giacomo», assinada no dia 6 de maio seguinte,precisamente pelo cardeal arcebispo de Buenos Aires.

No prefácio, datado de 28 de março de 2018, o pon-tífice evoca «o seu coração de criança, a sua oração tãoconsciente de que o Senhor é o primeiro que toma ainiciativa, e nós nada podemos fazer sem ele». Por is-so, acrescenta, «não foi por acaso que a este livrinho»,o autor «quis dar como título uma expressão de SantoAfonso Maria de Ligório».

«Traduzido nas principais línguas» e «difundido emcentenas de milhares de cópias no mundo inteiro, en-viado gratuitamente até a muitas missões católicas es-palhadas por todos os recantos do planeta», o «peque-no livro» — assim o define Francisco — nasceu de umaintuição de Tantardini «a pedido de jovens que se con-vertiam ao cristianismo». E hoje «os amigos do padreGiacomo consideram-no o seu presente mais bonito».Sobretudo porque — afirma o Papa — além das preces,reúne «tudo o que ajuda a fazer uma boa confissão».A propósito, o Pontífice cita uma frase que o sacerdote«repetia muitas vezes na última fase da sua vida:“Quem se confessa bem torna-se santo”». E inspiran-do-se nesta consciência, o próprio Francisco completa

o prefácio com uma espécie de vade-mécum para o pe-nitente que se aproxima do sacramento.

«O ponto de partida — esclarece — é o exame deconsciência, a dor sincera pelo mal cometido». Segue-se «a confissão dos pecados individualmente, com con-cretude e sobriedade. Sem se envergonhar da própriavergonha». De resto, como ensina o Evangelho, «parao Senhor é suficiente um sinal de arrependimento. Amisericórdia divina espera com paciência o regresso dofilho pródigo, aliás, antecipa-o, previne-o, tocando pri-meiro o seu coração, de modo a despertar nele o dese-jo de poder voltar a ser abraçado pela sua ternura infi-nita e de poder voltar a caminhar».

Eis por que razão, sugere o Papa, «no confessionáriotemos que ser concretos na confissão dos pecados, semreticências», dado que «depois vemos que é o próprioSenhor quem nos “fecha a boca”, como se nos dissesse:isto é suficiente! Basta-lhe ver aquele sinal de dor; Elenão quer torturar a tua alma, deseja abraçá-la. Quer atua alegria». Porque, conclui Francisco com uma certe-za frequente em todo o seu magistério, «Jesus veio pa-ra nos salvar assim como somos: pobres pecadores, quepedem para ser procurados, encontrados, abraçados ecarregados por Ele».

Sarojkumar Pattnaik, «Oração»

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O Pontífice recebeu um comboio de crianças

No Angelus o apelo do Santo Padre a favor da Coreia e do mundo

Um futuro de paz

raram que preferem «uma es-cola que se suja misturando-secom a realidade social do queuma escola que se conservalimpa no seu fechamento».

Portanto esta iniciativa, ex-plicou o cardeal GianfrancoRavasi, presidente do Pontifí-cio Conselho para a cultura,acompanhado pelo padre Lau-rent Mazas, ofereceu aos estu-dantes a oportunidade de so-nhar o modo como desejariamo seu bairro, enfrentando al-guns dos grandes problemasque os tocam de perto, como arequalificação urbana das peri-ferias, e observando em primei-ra pessoa a realidade que oscircunda. Por conseguinte, pa-ra os estudantes esta experiên-cia foi importante para redes-cobrir e reapropriar-se do seub a i r ro .

O cardeal observou aindaque entre as quinhentas crian-ças a maioria não é católica.Há muçulmanos, budistas, or-todoxos e ateus. E, acrescen-tou, é significativo que famíliaalguma se opôs à participaçãodos filhos a esta iniciativa cul-minada no Vaticano com o en-contro com o Pontífice.

Além disso o purpuradoagradeceu e apresentou ao Pa-pa os responsáveis das “Fe r ro -

vias italianas” que permitiram arealização desta iniciativa: apresidente Gioia Ghezzi e oadministrador delegado OrazioIacono. Recordando que é asexta edição do Comboio dascrianças, o cardeal frisou queaté agora vieram ao Vaticanopara se encontrar com o Papacentenas de crianças que vivemem condições desfavorecidas:

migrantes, pobres, filhos de en-carcerados e desempregados.Sem esquecer as crianças daszonas do centro da Itália atin-gidas pelo sismo.

Por fim, foi significativa apresença do coro Scuolacantao-ra, composto por crianças quetocam flauta e cantam junta-mente com os presos dos cárce-res de Chieti e Pescara.

«Nossa Senhora da Coreia»

Que os colóquios em Singapura entre Donald Trumpe Kim Jong-un «possam contribuir para odesenvolvimento de um percurso positivo que garantaum futuro de paz à Península coreana e ao mundointeiro», foram os votos formulados pelo Papa noAngelus de domingo, 10 de junho, na praça de SãoPedro. Antes da prece mariana o Pontífice comentouo excerto do evangelho dominical de Marcos(3, 20-35).

Amados irmãos e irmãs, bom dia!O Evangelho deste domingo (cf. Mc 3, 20-35)mostra-nos dois tipos de incompreensão que Jesusteve que enfrentar: a dos escribas e a dos seuspróprios familiares.

A primeira incompreensão. Os escribas eramhomens instruídos nas Sagradas Escrituras e en-carregados de as explicar ao povo. Alguns delessão enviados de Jerusalém à Galileia, onde a famade Jesus começava a difundir-se, a fim de o desa-creditar aos olhos do povo; para desempenhar afunção de linguarudos, desacreditar o outro, pri-var da autoridade, que coisa feia! E eles foram en-viados para fazer isto. Estes escribas chegam coma acusação clara e terrível — eles não poupammeios, vão ao centro e dizem o seguinte: «Eletem Belzebu, é pelo príncipe dos demónios queexpulsa os demónios» (v. 22). Ou seja, é o chefedos demónios que O impele; que equivale a dizermais ou menos: “ele é um endemoninhado”. Comefeito, Jesus curava muitos doentes, e eles preten-dem fazer crer que não o faz com o Espírito deDeus — como fazia Jesus — mas com o do Malig-no, com a força do diabo. Jesus reage com pala-vras fortes e claras, não tolera isto, pois aquelesescribas, talvez sem se darem conta, estão a cairno pecado mais grave: negar e blasfemar o Amorde Deus que está presente e age em Jesus. E ablasfema, o pecado contra o Espírito Santo, é oúnico pecado imperdoável — assim diz Jesus —

porque parte de um fechamento do coração à mi-sericórdia de Deus que age em Jesus.

Mas este episódio contém uma admoestaçãoque serve a todos nós. Com efeito, pode aconte-cer que uma grande inveja pela bondade e pelasboas obras de uma pessoa possa levar a acusá-lafalsamente. Há nisto um grande veneno mortal: amaldade com que, de maneira intencional se pre-

tende destruir a boa fama do outro. Deus nos li-vre desta terrível tentação! E se, examinando anossa consciência, nos apercebemos que esta ervadaninha está a germinar dentro de nós, vamosimediatamente confessá-lo no sacramento da Peni-tência, antes que se desenvolva e produza os seusefeitos malvados, que são incuráveis. Estai aten-tos, pois esta atitude destrói as famílias, as amiza-des, as comunidades e até a sociedade.

O Evangelho de hoje fala-nos também de outraincompreensão, muito diversa, em relação a Jesus:a dos seus familiares. Eles estavam preocupados,porque a sua nova vida itinerante lhes pareciauma loucura (cf. v. 21). Com efeito, Ele mostrava-se muito disponível com o povo, sobretudo comos doentes e os pecadores, a ponto de não tertempo nem sequer para comer. Jesus era assim:primeiro as pessoas, servir o povo, ajudar o povo,ensinar ao povo, curar as pessoas. Era para aspessoas. Não tinha tempo nem sequer para co-mer. Por conseguinte, os seus familiares decidemreconduzi-lo a Nazaré, a casa. Chegam ao lugaronde Jesus está a pregar e mandam chamá-lo.Disseram-lhe: «Estão ali fora, Tua mãe e Teus ir-mãos que te procuram» (v. 32). Ele respondeu:«Quem são Minha mãe e Meus irmãos?», eolhando para as pessoas que estavam em seu re-dor a ouvi-lo, acrescentou: «Aí estão Minha mãee Meus irmãos. Aquele que fizer a vontade deDeus, esse é que é Meu irmão, Minha irmã e Mi-nha mãe» (vv. 33-34). Jesus formou uma nova fa-mília, já não baseada nos vínculos de sangue, masna fé n’Ele, no seu amor que nos acolhe e nosune, no Espírito Santo. Todos aqueles que acolhe-rem a palavra de Jesus são filhos de Deus e ir-mãos entre si. Acolher a palavra de Jesus torna-nos irmãos entre nós, faz de nós a família de Je-sus. Falar mal dos outros, destruir a fama dos ou-tros, torna-nos a família do diabo.

Aquela resposta de Jesus não é uma falta derespeito para com a sua mãe e os seus familiares.Aliás, para Maria é o maior reconhecimento, poisprecisamente ela é a discípula perfeita que obede-ceu em tudo à vontade de Deus. Que a VirgemMãe nos ajude a viver sempre em comunhão comJesus, reconhecendo a obra do Espírito Santo queage n’Ele e na Igreja, regenerando o mundo paraa vida nova.

No final do Angelus, depois do apelo em vista dacimeira de Singapura, o Papa recordou abeatificação, na França, da irmã Maria daConceição e saudou alguns grupos de fiéis presentesna praça.

Queridos irmãos e irmãs!Desejo enviar de novo ao amado povo coreanoum particular pensamento na amizade e na ora-ção. Que os colóquios que terão lugar nos próxi-mos dias em Singapura possam contribuir para odesenvolvimento de um percurso positivo, quegaranta um futuro de paz à Península coreana eao mundo inteiro. Por isto rezemos ao Senhor.Todos juntos rezemos a Nossa Senhora, Rainhada Coreia, que acompanhe estes colóquios. [“AvéMaria...”].

Hoje, em Agen, na França, é proclamada Beataa irmã Maria da Conceição, no século Adelaidede Batz de Trenquelléon. Viveu entre os séculosXVIII e XIX, fundou as Filhas de Maria Imaculada,ditas Marianistas. Louvemos ao Senhor por estasua filha que consagrou a vida a Ele e ao serviçodos irmãos. Um aplauso à nova Beata, um aplau-so, todos.

Saúdo todos vós, queridos romanos e peregri-nos: os grupos paroquiais, as famílias, as associa-ções. Em particular saúdo os fiéis que vieram daEspanha: de Múrcia, Pamplona e Logroño. E daItália os de Nápoles, os jovens de Mestrino e ogrupo desportivo alpinos de Legnago.

Desejo-vos bom domingo. E por favor, não vosesqueçais de rezar por mim. Bom almoço e até àvista!

Visita «ad limina» dos bisposda Gâmbia, Libéria e Serra Leoa

Na manhã de segunda-feira, 11 de junho, o Papa recebeuos prelados da Conferência episcopal da Gâmbia, Libéria e Serra Leoa

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Missas matutinas em Santa MartaQuinta-feira, 7 de junho

Memória e esperançaÉ entre «memória e esperança» quepodemos «encontrar Jesus». E o Pa-pa Francisco sugeriu três conselhospráticos para não sermos «cristãosdesmemoriados» e portanto incapa-zes de dar «sal à vida»: recordar-nosdos primeiros encontros com o Se-nhor, de quantos nos transmitiram afé — a começar pelos pais e avós — eda lei de Deus. Foi nestas indicaçõesa «voltar atrás para ir em frente»que o Pontífice centrou a missa, pro-pondo também um exame de cons-ciência.

Francisco observou que «na pri-meira Leitura Paulo chama a atençãode Timóteo para a memória: “Meufilho, recorda-te de Jesus Cristo”».E, referindo-se ainda à segunda Car-ta paulina a Timóteo (2, 8-15), o Pa-pa recordou também que, «maisadiante», o apóstolo insiste escreven-do: «Lembra-te disto».

Em síntese, Paulo «exorta» Timó-teo «a recuar no tempo para encon-trar Jesus; e a memória, como éapresentada na Bíblia, não é umpensamento, diríamos, um pouco ro-mântico, como se disséssemos que“os tempos passados eram melho-re s ”». Não, explicou o Papa, «a me-mória é um voltar atrás para encon-trar forças e poder caminhar para afrente». Mais ainda, «a memóriacristã é sempre um encontro com Je-sus Cristo». Por isso, Paulo escrevea Timóteo: «Recorda-te de JesusCristo, lembra-te disto».

«A memória cristã é como o salda vida: sem memória não podemosir em frente», afirmou o Papa. Aponto que «quando encontramoscristãos “desmemoriados”, vemosimediatamente que perderam o sa-bor da vida cristã e acabaram» porser «pessoas que cumprem os man-damentos, mas sem mística, sem en-contrar Jesus». Ao contrário, «deve-mos encontrar Cristo na vida».

«Vieram-me à mente três situaçõesem que podemos encontrar Jesus»,disse o Papa, indicando-as: «Nosprimeiros momentos, assim os cha-mo; nos nossos pais, nos nossos an-tepassados; e na lei».

Portanto, «Recorda-te de JesusCristo nos primeiros momentos» é aprimeira indicação. E «a Carta aosHebreus é clara sobre isto: “Lem-brai-vos dos primeiros tempos, de-pois da vossa conversão”», um mo-mento em que «éreis tão fervoro-sos», ardentes.

De resto, disse o Pontífice, «cadaum de nós tem momentos de encon-tro com Jesus». E «na nossa vidaexiste um, dois, três momentos emque Jesus se aproximou, se manifes-tou». E é importante, observou,«não esquecermos estes momentos:temos que voltar atrás e retomá-los,pois são momentos de inspiração,onde encontramos Jesus Cristo».Nesta ótica, Francisco referiu-se no-vamente à Carta aos Hebreus: «Fi-xai os olhos, o olhar, em Jesus Cris-to, que é o Criador, o consumadorda fé; lembrai-vos daquele que so-freu tanta hostilidade». Portanto, eiso convite do Papa, «pensai sempreem Jesus Cristo, mas nos momentoscada um de nós tem momentos co-mo estes, quando encontrou Jesus

Cristo, quando mudou de vida,quando o Senhor lhe mostrou a pró-pria vocação, quando o Senhor o vi-sitou numa hora difícil».

E «no coração temos estes mo-mentos: procuremo-los, contemple-mos tais momentos», afirmou oPontífice, renovando a exortação a«lembrar-me dos momentos em queencontrei Jesus Cristo, dos momen-tos em que Jesus Cristo me encon-trou», pois aqueles momentos, expli-cou, «são a fonte do caminho cris-tão, a nascente que me fortalecerá».Por isso é importante «voltar sempreàqueles momentos para retomar asforças e poder ir em frente».

Nesta altura, insistiu o Papa, «ca-da um pode interrogar-se: lembro-me dos momentos de encontro comJesus, quando mudou a minha vida,quando me prometeu algo?». E «senão nos lembramos deles, procure-mo-los: cada um de nós os tem, bus-quemo-los».

A segunda situação para o «en-contro com Jesus» é a memória dosnossos antepassados», afirmou Fran-cisco. E «a Carta aos Hebreus é cla-ra também sobre isto: “R e c o rd a - t edos teus pais, de quantos te ensina-ram a fé”, dos que te transmitiram afé». Além disso, na mesma Cartaproposta pela liturgia, «um poucomais adiante Paulo volta a falar so-bre isto e diz a Timóteo: “R e c o rd a -te da tua mãe e da tua avó, que tetransmitiram a fé”».

Concretamente, o apóstolo indica«o exemplo dos nossos pais, dasnossas raízes, de quantos nos trans-mitiram a fé», porque «não recebe-mos a fé pelo correio». Foram «ho-mens e mulheres que no-la transmi-tiram. A ponto que se lê ainda naCarta aos Hebreus: «Olhai paraeles, que são uma multidão de teste-munhas, e hauri força daqueles quepadeceram o martírio e outros sofri-mentos».

Sem dúvida, acrescentou Francis-co, podemos receber a fé tambémdaqueles «que estão mais próximosde nós, como diz Paulo a Timóteo:da tua mãe, da tua avó, de quantosnos transmitiram a fé». Com a cons-ciência de que «sempre que a águada vida se torna um pouco turva éimportante ir à fonte e nela encon-trar a força para ir em frente».

Nesta direção, propôs o Pontífice,«podemos questionar-nos: recordo-me dos meus pais, dos meus ante-passados, sou um homem, uma mu-lher com raízes ou tornei-me desen-raizado, desenraizada, vivo só nopresente?». E se for assim, é oportu-no «pedir imediatamente a graça devoltar às raízes, às pessoas que nostransmitiram a fé: “Lembrai-vos dosvossos antepassados”».

«O terceiro ponto para trazer àmemória é a lei», disse o Papa. E ci-tando o trecho do Evangelho deMarcos (12, 28-34), explicou que«Jesus nos faz recordar da lei», re-petindo claramente que «o primeiromandamento é: “Escuta, Israel, oSenhor nosso Deus». Sim, «escutaIsrael!» é uma «palavra que se repe-te muitas vezes no Antigo Testamen-to, no Deuteronómio, quando hámuito o povo tinha perdido a me-mória, o Senhor» diz: «Escuta, Is-rael, não te esqueças, Israel!». Aponto que esta expressão «se tornouuma prece para os judeus: “Escuta,

Israel!”». Portanto, «repetem as pa-lavras do Senhor: a memória da lei».E «a lei é um gesto de amor do Se-nhor para connosco, porque nos in-dicou o caminho, dizendo: “Por estasenda não errarás”».

Eis a importância de «recordar alei: mas não a lei fria, que parecesimplesmente jurídica». Ao contrá-rio, «a lei de amor, a lei que o Se-nhor inseriu no nosso coração».Neste sentido, o Papa sugeriu quenos perguntemos se «somos fiéis àlei, se recordamos e respeitamos alei?». Pois «às vezes nós cristãos, atéconsagrados, temos dificuldade emrepetir de cor os mandamentos:“Sim, recordo-me deles”, mas depoisnum certo ponto erro, não me lem-bro». Por isso, a «memória da lei,lei de amor, mas concreta».

«Recorda-te de Jesus Cristo», rei-terou o Papa, convidando a manter«o olhar fixo no Senhor nos mo-mentos da minha vida em que en-contrei o Senhor, horas difíceis, deprovação; nos meus antepassados ena lei». Certos de que «a memórianão é só um voltar atrás», mas «éum voltar atrás para ir em frente».

Com efeito, observou Francisco,«memória e esperança caminhamjuntas: a memória cristã vai à espe-rança, e a esperança à memória».Assim «são complementares, com-pletam-se». Com esta consciência, oPapa renovou o convite a recordar-se«de Jesus Cristo, o Senhor que veio,que me resgatou e que há de vir, oSenhor da memória, o Senhor da es-p erança».

O Pontífice concluiu com umaproposta: «Hoje, cada um de nóspode refletir por alguns minutos pa-ra se questionar como está a própriamemória, a memória dos momentosem que encontrou o Senhor, a me-mória dos seus antepassados, a me-mória da lei». E interrogar-se tam-bém «como está a própria esperan-ça, no que espera». Desejando «queo Senhor nos ajude neste trabalhode memória e de esperança».

Sexta-feira, 8 de junho

Como a flor da amendoeiraPara compreender e viver o amornão servem lindos discursos, massimples obras de misericórdia — darde comer a quem tem fome, visitaros doentes e presos — que não de-vem ser confundidas com a benefi-cência leiga, mesmo se meritória.Pois ao amor de Deus, que é ilimita-do e se manifesta na pequenez e naternura, responde-se mais com obrasdo que com palavras. Eis a mensa-gem que o Papa Francisco relançoudurante missa de 8 de junho, soleni-dade do Sagrado Coração de Jesus.

«Podemos dizer que hoje a Igrejacelebra a solenidade litúrgica doamor de Deus: hoje é a festa doamor» afirmou o Pontífice no inícioda homilia. «O apóstolo João —acrescentou — diz-nos “o que é oamor: não porque nós amámos aDeus mas porque Ele nos amou pri-meiro. Ele esperava-nos com amor.Ele é o primeiro a amar”». E, acres-centou Francisco, «os profetas com-preendiam isto e usaram o símbolo

da flor de amendoeira: é a que flo-resce primeiro, na primavera». Tam-bém Deus «é assim: é sempre o pri-meiro: é o primeiro a esperar-nos, aamar-nos, a ajudar-nos». E «o amoré isto, é o amor de Deus».

A este propósito o Papa fez pre-sente também que «é difícil compre-ender o amor de Deus: Paulo, notrecho da carta proposta hoje pela li-turgia» (Ef 3, 8-12.14-19), fala de«anunciar às nações as riquezas im-penetráveis de Cristo». Em suma,«fala do mistério escondido desdehá séculos em Deus: aquelas “rique-zas impenetráveis” de Deus». Masreconheceu o Pontífice, «não é fácilcompreender isto: é uma coisa dis-tante, misteriosa».

Depois Paulo «reza a fim de queos cristãos sejam capazes de compre-ender qual é, e a este ponto cancelatodos os limites, a amplitude, ocomprimento, a altura e a profundi-dade do amor de Deus». Em síntese,o apóstolo «fala de Deus cancelandoo limite: vai sempre além». Estamosdiante de «um amor que não se po-de compreender» reafirmou Francis-co. Porque o «amor de Cristo supe-ra qualquer conhecimento, superatudo: como é grande o amor deDeus». A ponto que, afirmou, «umpoeta dizia que era como o “m a r,sem margens, sem fundo”, um marsem limites».

É precisamente este o amor quenós devemos compreender, o amorque nós recebemos», explicou o Pa-pa. E é «esta a graça que Paulo pe-de: compreender e “anunciar às na-ções as impenetráveis riquezas deCristo”».

Por conseguinte, a questão defundo, sugeriu o Pontífice, consisteem «como se pode compreender oamor» e também «como o Senhornos revelou este amor». Olhandopara «a história da salvação, o Se-nhor foi um grande pedagogo, coma pedagogia do amor». Referindo-seem particular ao excerto do profetaOseias (11, 1.3-4.8-9) proposto pelaliturgia, o Papa observou que «o Se-nhor explica como manifestou o seuamor: não com o poder, com o fazersentir tudo». Aliás, com a atitudecontrária. «Ouçamos» as palavrasdo profeta, sugeriu Francisco: «Eu,entretanto, ensivava Efraim a andar,tomava-o nos meus braços, mas nãocompreenderam que eu cuidava de-les». Por conseguinte, Deus tomavao seu povo pela mão, próximo, co-mo um pai». Ou melhor, continua otexto de Deus: «Atraí-os com cordashumanas, com laços de amor, e fuipara eles como os que tiram o jugode sobre as suas queixadas, e lhesdei mantimento — quanta ternura. Omeu coração revolve-se dentro demim, eu me comovo de dó e com-paixão».

O trecho de Oseias testemunha,afirmou o Pontífice, que Deus não«manifesta o amor com coisas gran-diosas: torna-se pequeno, pequeni-no, com estes gestos de ternura, debondade». É um Deus que «se fazpequenino, que se aproxima, e comesta proximidade, com esta peque-nez, faz-nos compreender a grande-za do amor».

«O que é grande deve ser com-preendido através do pequeno» in-sistiu o Papa, recordando tambémque Deus «vai além, envia o seu Fi-

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número 24, quinta-feira 14 de junho de 2018 L’OSSERVATORE ROMANO página 7

Foi beatificada em Agen Maria da Conceição

A baronesa de aventalO batismo «plasmou pouco a pou-co» a sua nobreza social, fazendocom que se tornasse santidadeevangélica. Na sua vida, Adélaïde-Marie-Charlotte-Jeanne-Joséphine,filha do barão de Trenquelléon, bri-lhou não «pelo bem-estar das ri-quezas terrenas, mas pela abundân-cia das suas virtudes cristãs», disseo cardeal Angelo Amato, prefeitoda Congregação para as causas dossantos, durante a beatificação da re-ligiosa francesa que, como consa-grada assumiu o nome de Maria daConceição. O rito, presidido pelopurpurado em representação do Pa-pa, foi celebrado na tarde de 10 dejunho, no parque das exposições deAgen, na França.

A nova beata — fundadora das fi-lhas de Maria Imaculada (marianis-tas) — nasceu no castelo de Tren-quelléon no início da Revoluçãofrancesa. Viveu de fé, frisou o car-deal. Nas cartas enviadas às irmãsde hábito, «exorta-as continuamen-te a viver de fé e a agir de modoconsequente». Repetia com fre-quência o convite a viver esta fé«absoluta, que não espera uma re-compensa terrena, mas reserva paraa eternidade as consolações do espí-rito».

Numa época turbulenta como asua, acrescentou o prefeito, «viverde fé significava experimentar omartírio da oferta da vida, prepa-rando-se até para o martírio de san-gue. Viver de fé ressaltava a radica-lidade do amor». Isto colocava-anuma dimensão espiritual de aber-tura total à vida eterna. MadreAdélaïde «aspirava ao Paraíso, de-sejava ardentemente a felicidadeeterna».

Tinha a firme confiança de que«a realização da sua santidade e aconsolidação da congregação eraminteiramente obra da graça e daProvidência divina». Por isso, não

da Virgem, padroeira da congrega-ção». Desde criança, recordou opurpurado, era «muito generosa ediligente para com os pobres». Co-mo leiga, ganhava 400 francos porano, destinando-os totalmente aosnecessitados dos arredores. «Quan-do a sua bolsa estava vazia, chega-va a recorrer a empréstimos, a bor-dados e até ao comércio». Era ge-nerosa também na caridade espiri-tual. Com efeito, dava esmolas,«instruía o pobre ignorante sobreas verdades da fé». E quando setratava de uma criança, convidava-aa frequentar as lições de catecismo.Pensava na educação e no sustentodos pequeninos, recomendando-o apessoas abastadas. Com a sua cari-dade fez voltar à Igreja alguns quese tinham afastado.

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lho, mas não o envia em majestade,em força, envia-o em carne pecado-ra: “o Filho humilhou-se a si mes-mo, assumiu a forma de servo até àmorte, à morte de cruz”». Por isso,reafirmou Francisco, «a grandezamaior tem que ser expressada namenor e mais dramática pequenez:este é o mistério do amor de Deus,deste amor que o Senhor nos ensinaa demonstrar mais com as obras doque com as palavras».

É «um amor total» afirmou Fran-cisco. E «o símbolo é o coração tres-passado: assim podemos compreen-der também o percurso cristão».Com efeito, explicou, «quando Jesusnos quer ensinar qual deve ser a ati-tude cristã diz-nos poucas coisas,mostra-nos aquele famoso protocolosobre o qual todos nós seremos jul-gados: Mateus 25».

E aquele protocolo evangélico,observou o Pontífice, «não diz “eupenso que Deus seja assim, entendio amor de Deus”». O excerto doEvangelho de Mateus, ao contrário,afirma: «Dentro das minhas possibi-lidades, pus em prática o amor deDeus: dei de comer ao faminto, deide beber ao sedento, visitei o doen-te, o preso». Porque, explicou o Pa-pa, «são precisamente as obras demisericórdia o caminho de amor queJesus nos ensina em continuidadecom este amor de Deus, grande». Efoi «com este amor sem limites queele se aniquilou, se humilhou em Je-sus Cristo, e nós devemos exprimi-loassim». Por conseguinte, prosseguiu,«o Senhor não nos pede grandesdiscursos sobre o amor; pede-nosque sejamos homens e mulheres comum amor grande ou pequeno, omesmo, mas que saibamos fazer es-tas pequenas coisas por Jesus, peloPa i » .

Nesta perspetiva, acrescentou oPontífice, «compreende-se a diferen-ça entre uma obra de beneficênciamerecedora, leiga, e as obras de mi-sericórdia que são a continuidadedeste amor, que se faz pequeno, che-ga até nós, e nós o levamos pordiante».

«Hoje é a solenidade do amor deDeus — concluiu Francisco — e oamor de Deus, se o quisermos com-preender, temos que o transmitir nasobras, nas pequenas obras de miseri-córdia: transmiti-lo assim, com sim-plicidade». E «este será o anúnciodaquele amor que não tem limites epor isso foi capaz de se expressarnas pequenas coisas». Com os votosde «que o Senhor nos faça entrarneste mistério do amor de Deus».

Elaborado o esboço da nova constituição apostólica

Praedicate evangeliumPraedicate evangelium: é o título do esboço da novaconstituição apostólica relativa à Cúria romana que oConselho de cardeais entregará ao Papa Francisco para«as ponderações que considerar oportunas, úteis e ne-cessárias», explicou Greg Burke, diretor da Sala de im-prensa da Santa Sé, no encontro com os jornalistas, namanhã de quarta-feira, 13 de junho, na conclusão da vi-gésima quinta reunião do organismo.

Grande parte dos trabalhos do Conselho foi dedica-da precisamente ao exame do esboço da nova consti-tuição apostólica. Os cardeais consideraram também amaneira como, segundo um princípio de gradualidademuitas vezes evocado pelo Papa, várias partes da refor-ma da Cúria, que já está a decorrer foram postas emprática durante os cinco anos de trabalho. A este pro-pósito, aos jornalistas presentes na sala de imprensa foidistribuído um texto elaborado pelo próprio Conselhocom o título significativo: O processo de reforma da Cú-ria romana. 13 de abril de 2013 — 10 de abril de 2018.No texto encontram-se enumeradas as etapas mais sig-nificativas destes últimos cinco anos, ou seja, desdequando, a 13 de abril de 2013 foi constituído o Conse-lho de cardeais para aconselhar o Papa no respeitanteao governo da Igreja universal e a outros temas afins,com a tarefa específica de propor a revisão da consti-tuição apostólica Pastor bonus.

Na reunião, que teve início na segunda-feira 11, par-ticiparam todos os membros do organismo, menos ocardeal Pell. O Papa esteve presente nos trabalhos, ex-ceto na manhã de quarta-feira, porque empenhado naaudiência geral na praça de São Pedro. As sessões fo-ram realizadas de manhã, das 9h00 às 12h00, e à tarde,das 16h00 às 19h00. Foi ouvido também o monsenhorBrian Ferme, secretário do Conselho para a economia,o qual apresentou a reforma da estrutura financeira-or-ganizativa da Santa Sé e do Governatorato. Além dis-so, monsenhor Ferme ilustrou os objetivos e os princí-pios fundamentais, entre os quais evitar esbanjamentos,favorecer a transparência, garantir a correta aplicaçãodos princípios contábeis, seguir o princípio do controleduplo e os padrões internacionais. O prelado frisouainda alguns resultados positivos: um procedimentouniforme para a preparação do orçamento e do balan-ço; maior atenção às despesas; mais cooperação e com-preensão da reforma financeira; gradual mudança dementalidade em relação à transparência e à accountabi-lity. Por fim, o cardeal Sean Patrick O’Malley, infor-mou acerca do trabalho da Pontifícia comissão para atutela dos menores.

A próxima reunião do Conselho de cardeais terá lu-gar nos dias 10, 11 e 12 de setembro.

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obstante as adversidades, «as in-compreensões e as muitas deserções— dolorosas as das amigas que pu-blicamente tinham decidido segui-la entrando no convento de Agen —ela pôs toda a sua desilusão nasmãos de Deus, afirmando que se afundação era vontade de Deus, aProvidência teria pensado em supe-rar todos os obstáculos».

A fé e a esperança encontravam oseu cumprimento na caridade. «Eraanimada por uma caridade sólida —disse o cardeal — que transpareciado seu rosto sereno e bom, e que atornava perseverante na sua consa-gração total ao Senhor». O seuapostolado era «sustentado poruma intensa vida interior, feita deoração, adoração, comunhão euca-rística e devoção à Virgem». Exor-tava as irmãs «a levar uma vida es-condida em Jesus Cristo, a exemplo

Tatiana Leony, «Amendoeira em flor»

A jovem Adele ensina catecismo às crianças

número 24, quinta-feira 14 de junho de 2018 L’OSSERVATORE ROMANO página 8/9

Apresentado o documento preparatório para a assembleia especial do Sínodo dos bispos para a Região pan-amazónica

Ver, julgar, agirLORENZO BALDISSERI*

Como foi anunciado pelo Santo Padrea 15 de outubro de 2017, a assembleiaespecial do Sínodo dos bispos sobre otema: «Amazónia, novos caminhos paraa Igreja e para uma ecologia integral»,terá lugar no mês de outubro do próxi-mo ano de 2019. Os novos caminhos deevangelização são pensados para e como povo de Deus que habita naquela re-gião. Por este motivo, desde o início docaminho sinodal, a Secretaria geral doSínodo dos bispos trabalhou em estrei-ta ligação com a Rede eclesial pan-amazónica (Repam), organismo quedesempenha as atividades eclesiais na-quela região.

Mesmo se o tema se refere a um ter-ritório específico, como a Pan-Amazó-nia — é por isso que se fala de sínodopan-amazónico — as reflexões que lhedizem respeito superam o âmbito regio-nal, pois elas concernem toda a Igreja etambém o futuro do planeta. Tais refle-xões pretendem ser uma ponte rumo aoutras realidades geográficas semelhan-tes como, por exemplo: a bacia fluvialdo Congo, o corredor biológico mesoa-mericano, as florestas tropicais da Ásiano Pacífico, o sistema aquífero Guara-ni. Este grande projeto eclesial, cívico eecológico permite alongar o olhar paraalém dos respetivos confins e redefinirlinhas pastorais tornando-as adequadasaos tempos atuais. Também por estasrazões o sínodo será celebrado em Ro-ma.

Na região pan-amazónica, a atençãoaos povos nativos, que nela habitam, éprioritária. Estes povos, como afirmouo Papa Francisco em Puerto Maldona-do (19 de janeiro de 2018), nunca esti-veram tão ameaçados como agora. Emsegundo lugar a atenção focalizará o te-ma do meio ambiente, da ecologia e docuidado da criação, a casa comum. Tu-do isto será apresentado à luz do ensi-namento e da vida da Igreja, ativa nare g i ã o .

Nesta linha se publica hoje o docu-mento preparatório, que reúne instân-cias, sugestões e propõe indicações parauma adequada preparação para a As-sembleia sinodal.

O documento preparatório consta deuma introdução e de três partes, quecorrespondem ao método do “ver, jul-gar (discernir) e agir”; método já utili-zado precedentemente (sínodo sobre afamília) com bons resultados. Por fim,inclui-se um questionário sobre o qualas Igrejas locais e outras entidades con-cernidas trabalharão.

A primeira parte do documento, de-dicada ao “ver”, delineia a identidadeda Pan-Amazónia e a urgência da escu-ta. Os temas enfrentados são: território;diversidade sociocultural; identidadedos povos indígenas; memória históricaeclesial; justiça e direitos dos povos, as-sim como a espiritualidade e sabedoriados povos amazónicos.

A região pan-amazónica desenvolve-se por mais de sete milhões e meio dequilómetros quadrados, com nove paí-ses que partilham este grande bioma

(Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador,Peru, Venezuela, Suriname, Guiana eGuiana francesa) e engloba sete confe-rências episcopais.

A bacia hidrográfica da Amazónia re-presenta, para o nosso planeta, umadas maiores reservas de biodiversidade(de 30 a 50% da flora e da fauna domundo) e de água doce (20% da águadoce não congelada de todo o planeta).Além disso, a região possui mais de umterço das florestas primárias do planeta,e é uma importante fornecedora de oxi-génio para a terra inteira.

A população neste imenso territórioconta cerca de 34 milhões de habitan-tes, dos quais mais de 3 milhões são in-dígenas pertencentes a mais de 390 et-nias. Incluem-se também povos e cul-turas de todos os tipos como afrodes-cendentes, camponeses, colonos, etc.Todos vivem numa relação vital com avegetação e com as águas dos rios se-gundo os seus movimentos cíclicos, taiscomo inundações, refluxos e períodosde seca.

Os centros habitados e as cidades naAmazónia aumentaram rapidamente emnúmero por causa do fenómeno migra-tório rumo às periferias, de modo que,atualmente, entre 70-80% da populaçãoreside nestes centros e cidades.

A riqueza da floresta e dos rios estáameaçada por grandes interesses econó-micos, nos diversos pontos do territó-rio, que provocam o desmatamento in-discriminado, a contaminação dos riose dos lagos, por causa do uso de agro-tóxicos, de derrame de petróleo, da mi-neração e da produção de drogas. A tu-do isto se junta um aumento dramáticodo tráfico de pessoas, em particular demulheres e crianças, para fins de explo-ração desumana de todos os tipos.

Desde a primeira evangelização aIgreja esteve presente de maneira fortee significativa, mesmo se com sombras,na defesa e no desenvolvimento dospovos até aos nossos tempos, nos quaisela se envolveu em maior medida coma sua ação eclesial e social em resgatedos povos oprimidos e marginalizados.A este propósito, são particularmenterelevantes as intervenções do episcopa-do latino-americano através dos docu-mentos de Medellín (1968), Puebla(1979), Santo Domingo (1992) e Apare-cida (2007).

Acerca da justiça e dos direitos dospovos, a orientação do Papa Franciscoé clara: «Acho que o problema essen-cial é como reconciliar o direito ao de-senvolvimento, inclusive social e cultu-ral, com a tutela das caraterísticas pró-prias dos indígenas e dos seus territó-rios [...] Neste sentido, deveria prevale-cer sempre o direito ao consenso prévioe informado» (Discurso ao Fórum dospovos indígenas, 15 de fevereiro de 2017).

A segunda parte do documento é re-lativa ao “discernir” novos caminhos apartir da nossa fé em Jesus Cristo, ilu-minados pelo magistério e pela tradiçãoda Igreja. Por conseguinte, o conteúdodesta parte está marcado pelo anúnciodo Evangelho na Amazónia, nas suasdiversas dimensões: bíblico-teológica,

social, ecológica, sacramental e eclesial-missionária.

As narrações bíblicas inspiram umaprofunda reflexão da realidade específi-ca da Amazónia, do seu destino e dasua dimensão cósmica, a partir do Gé-nesis até ao Apocalipse. À luz da pala-vra de Deus instaura-se a tensão entreo já e o ainda não que engloba a famí-lia humana e o mundo inteiro. «Porquea criação aguarda ansiosa a revelaçãodos filhos de Deus; porque a criação fi-cou sujeita à vaidade [...] Na esperançade que também a mesma criatura sejalibertada da servidão da corrupção, pa-ra a liberdade da glória dos filhos deDeus» (Rm 8, 19-22).

O anúncio evangélico tem um «con-teúdo inevitavelmente social» (Evangeliigaudium, 177) e implica o compromissoa favor do outro para melhorar a suavida e deste modo «tornar presente nomundo o Reino de Deus» (Eg, 176).

Esta dimensão social e comunitáriaencontra uma expressão relevante preci-samente no território amazónico, noqual o ecossistema se conjuga insepara-velmente com a vida das pessoas e ga-rante a estabilidade e a salvaguarda dacasa comum. Por isso, como nos recor-da o Papa Francisco, a obra de evange-lização não pode «mutilar a integrida-de da mensagem do Evangelho» (Eg,39), e ao mesmo tempo não pode dei-xar de ter em conta a exigência de dis-posições que ajudem a acolher melhoro anúncio: a proximidade, a abertura

ao diálogo, a paciência, o acolhimento(cf. Eg, 165).

Um elemento basilar que a evangeli-zação deve considerar é o desenvolvi-mento humano concebido como umprocesso integral, bem expresso com afórmula, muitas vezes usada pelo PapaFrancisco, «no mundo tudo está rela-cionado», aquele paradigma da ecolo-gia integral (cf. Laudato si’, 137-142).

Portanto, o processo de evangeliza-ção da Igreja na Amazónia não podeprescindir da promoção e do cuidadodo território (natureza) e dos seus po-vos (culturas). Para alcançar esta finali-dade será necessário articular os saberesancestrais com os conhecimentos con-temporâneos (cf. Ls, 143-146), com refe-rência particular ao uso sustentável doterritório e ao desenvolvimento coeren-te com os valores e as culturas das po-pulações.

Os auspiciados novos caminhos deevangelização da Igreja na Amazónianão se podem reger se não tiverem umolhar eclesial contemplativo da criaçãoe da prática sacramental. Com efeito,«os sacramentos constituem um modoprivilegiado em que a natureza é assu-mida por Deus e transformada em me-diação da vida sobrenatural. Através doculto, somos convidados a abraçar omundo num plano diferente» (Ls, 235).

Como afirma o documento prepara-tório, a celebração do batismo realça aimportância da “água” como fonte devida e de purificação, facilitando a in-

culturação de ritos e tradições do terri-tório.

De igual modo a Eucaristia, segundoo mesmo documento, nos reconduz ao«centro vital do universo, o centrotransbordante de amor e de vida ine-xaurível» do Filho encarnado, presentesob as aparências do pão e do vinho,fruto da terra e do trabalho dos ho-mens (cf. Ls, 236). Na Eucaristia a co-munidade celebra um amor cósmico,no qual os seres humanos, ao lado doFilho de Deus encarnado e de toda acriação, dão graças a Deus pela vidanova em Cristo ressuscitado (cf. ibi-dem). Por conseguinte, a Eucaristia, en-quanto constitui a comunidade peregri-na e festiva, torna-se fonte de luz e demotivação para as nossas preocupaçõespelo meio ambiente, e orienta-nos a serguardas de toda a criação» (cf. ibidem).No final da segunda parte, o documen-to fala da dimensão eclesial e missioná-ria. A este propósito afirma que numaIgreja “em saída” (cf. Eg, 46), «missio-nária por sua natureza» (Ad gentes, 2,Documento de Aparecida 347), todos osbatizados têm a responsabilidade de serdiscípulos missionários, participando navida eclesial com diversas modalidadesnos diferentes âmbitos.

A tomada de consciência da dimen-são missionária faz com que o anúncioimplique a afirmação dos princípiosmorais também na ordem social e exigeo respeito dos direitos fundamentais da

pessoa e a prática da justiça a favor dosp obres.

Relevante é o sentido religioso dospovos da Amazónia como expressão dosensus fidei. A tal ponto que o próprioPapa Francisco quis referir-se a istocom as seguintes palavars em PuertoMaldonado: «Quis vir visitar-vos e es-cutar-vos, para estarmos juntos no co-ração da Igreja, solidarizarmo-nos comos vossos desafios e, convosco, reafir-marmos uma opção sincera em prol dadefesa da vida, defesa da terra e defesadas culturas».

A Igreja, como nos recorda o PapaFrancisco, deve ser uma Igreja “em saí-da” (cf. Eg, 46), na qual todos os bati-zados têm a responsabilidade de serdiscípulos missionários, participando navida da mesma, de modo diverso e emvários âmbitos. Neste sentido, umaperspetiva missionária na Amazónia

exige como nunca um magistério ecle-sial exercido à escuta do Espírito Santoque age em todo o povo de Deus, e ga-rante a unidade e a diversidade dosfiéis.

Esta unidade na diversidade, seguin-do a tradição da Igreja, pressupõe osensus fidei do povo de Deus. Assim, oPapa Francisco retomou este aspeto en-fatizado pelo Concílio Vaticano II (cf.Lumen gentium, 12; Dei verbum, 10),com as seguintes palavras: «Em todosos batizados, desde o primeiro ao últi-mo, atua a força santificadora do Espí-rito que impele a evangelizar. O povode Deus é santo em virtude desta un-ção, que o torna infalível “in credendo”,ou seja, ao crer, não pode enganar-se[...] Deus dota a totalidade dos fiéiscom um instinto da fé — o sensus fidei —que os ajuda a discernir o que vemrealmente de Deus» (Eg, 119).

O sentido religioso na Amazónia, co-mo expressão do sensus fidei, precisa doacompanhamento e da presença dospastores (cf. Evangelii nuntiandi, 48).Nesta escuta recíproca entre o Papa (eas autoridades eclesiais) e os habitantesdo povo amazónico, alimenta-se e for-talece-se o sensus fidei do povo e cresceo seu ser eclesial: «Precisamos de nosexercitar na arte de escutar, que é maisdo que ouvir» (Eg, 171).

A terceira parte do documento refe-re-se ao “agir”. Ou seja, trata-se de en-contrar novos caminhos pastorais parauma Igreja com um rosto amazónico,com dimensão profética em busca deministérios e linhas de ação mais ade-quadas num contexto de ecologia deve-ras integral.

É o Papa Francisco quem nos indicao caminho para compreender a expres-são “rosto amazónico”. Com efeito, emPuerto Maldonado ele afirma: «Nós,que não habitamos nestas terras, preci-samos da vossa sabedoria e dos vossosconhecimentos para podermos penetrar– sem o destruir – no tesouro que en-cerra esta região, ouvindo ressoar as pa-lavras do Senhor a Moisés: “Tira astuas sandálias dos pés, porque o lugarem que estás é uma terra santa” (Êx 3,5)».

O que foi expresso encontra-se tam-bém no documento preparatório queafirma: «A Assembleia Especial para aRegião Amazônica é chamada a encon-trar novos caminhos para fazer crescero rosto amazônico da Igreja e tambémpara responder às situações de injustiçada região» (n. 12).

Por isso, uma pastoral da Amazóniarenovada requer a necessidade de «re-lançar a obra da Igreja» (Documento deAp a re c i d a , 11) no território e de apro-fundar o «processo de inculturação»(Eg, 126), com propostas concretas eeficazes.

Nos últimos decénios, também gra-ças ao grande impulso dado pelo Do-cumento de Aparecida, a Igreja naAmazónia tomou consciência da neces-sidade de «uma maior presença eclesial,a fim de poder responder a tudo o queé específico desta região a partir dosvalores do Evangelho, tendo consciên-cia, entre outras coisas, da imensa ex-tensão geográfica, muitas vezes de difí-cil acesso, da grande diversidade cultu-ral e da forte influência exercida atravésdos interesses nacionais e internacionaisem busca de um enriquecimento econô-mico fácil pelos recursos desta região.Uma missão encarnada exige repensara presença escassa da Igreja em relaçãoà imensidade do território e da sua va-riedade cultural» (Documento preparató-rio, 14).

Com efeito, a fim de intervir sobre apresença precária da Igreja e transfor-má-la numa presença mais incisiva eencarnada, há necessidade de estabele-cer uma hierarquia das urgências naAmazónia.

Uma prioridade consiste em esclare-cer os conteúdos, os métodos e as ati-tudes de uma pastoral inculturada. Ou-tra prioridade é propor ministérios eserviços para os diversos agentes pasto-rais, que correspondam às tarefas e àsresponsabilidades da comunidade (cf.ibidem., 14).

Como disse o Papa Francisco, a tare-fa da nova evangelização das culturastradicionais que habitam na regiãoamazónica e noutros territórios, requerque se empreste aos pobres «a nossavoz nas suas causas, mas também a serseus amigos, a escutá-los, a compreen-dê-los e a acolher a misteriosa sabedo-ria que Deus nos quer comunicar atra-vés deles» (Eg, 198). Por conseguinte,uma escuta atenta destas vozes amazó-nicas e da sabedoria que elas expressamdeverá marcar o rumo das prioridadespara os novos caminhos da Igreja naAmazónia.

Deste modo, a Igreja na Amazóniaprepara-se segundo uma «cultura doencontro» (Eg, 20), para celebrar a as-sembleia especial do Sínodo dos bisposem outubro de 2019.

*Cardeal secretário do Sínodo dos bispos

Os principais desafiosCLÁUDIO HUMMES*

É com alegria e esperança que a Igreja na Amazônia agradece ao Santo Pa-dre a convocação da assembleia especial do Sínodo dos bispos para a regiãopan-amazônica, que terá lugar em outubro de 2019.

O principal objetivo do sínodo, recordemo-lo, foi definido pelo próprioPapa no momento do anúncio, a 15 de outubro passado na praça de São Pe-dro, depois de ter canonizado os protomártires do Brasil, trucidados porcausa da sua fé em 1645.

«A principal finalidade desta convocação — disse Francisco — é indicarnovos caminhos para a evangelização daquela porção do povo de Deus, demodo especial dos indígenas, frequentemente esquecidos e sem a perspetivade um futuro sereno, até por causa da crise da floresta amazônica, pulmãode capital importância para o nosso planeta».

Apoiados pelas palavras do Pontífice e determinados a alcançar este obje-tivo, propomo-nos duas abordagens diferentes mas sempre interligadas emuito presentes na missão da Igreja na Amazônia: atualizar e fortalecer aevangelização, percorrendo “novos caminhos”; e, paralelamente, proteger acasa comum nesse território tão especial e ao mesmo tempo tão ameaçado.

Outra grande preocupação — e portanto prioridade para o Papa Francisco— é a situação na qual se encontram os indígenas. Por conseguinte, a suaevangelização, defesa e promoção são fundamentais, a fim de que sejam res-peitados e, com dignidade, voltem a ser protagonistas da própria história.

Por fim, gostaria de reiterar que tanto a inculturação da fé nas culturas in-dígenas como uma maior e constante sensibilização em relação à criação, nadefesa da floresta amazônica e dos direitos dos povos indígenas, representampara nós como Igreja as principais preocupações e, consequentemente, osprincipais desafios.

*Cardeal presidente da Rede eclesial pan-amazônica

Roberta Gandolfi, «Floresta amazónica»

página 10 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 14 de junho de 2018, número 24

O colóquio de 16 de março entre o Papa e os estudantes dos colégios eclesiásticos romanos

Pais e irmãosnão funcionários do sagrado

«Perguntei ao Cardeal Prefeito sevós sois católicos... Não digo qualfoi a sua resposta! Sim, disse quesim. Mas há que melhorar sempre.Obrigado! Obrigado por esta visita,por este encontro». Começou assim,com uma brincadeira do Papa Fran-cisco o diálogo com mais de doismil seminaristas e sacerdotes dos co-légios eclesiásticos romanos, acom-panhados pelo Cardeal BeniaminoStella, prefeito da Congregação parao clero, que teve lugar a 16 de marçopassado na sala Paulo VI. Publica-mos na íntegra o texto daquele coló-quio.

[Louis] Santo Padre, chamo-me Louis,sou um seminarista francês e, em nomede todos os que estão aqui e provêm daEuropa, gostaria de lhe fazer uma per-gunta. Estamos convictos de que a vi-da de discipulado e missionária é ofundamento da configuração a Cristoservo e pastor; como perseverar no ca-minho do discipulado, sem jamais se-parar o ministério presbiteral de umahumilde atitude pastoral e fraterna?Obrigado!

Discípulos, missionários e tambémfraternos, não é verdade? Pois nin-guém caminho sozinho. Há pessoasque caminham sós, mas o discípulomissionário não pode caminhar sozi-nho. E direi algumas palavras-chaveque talvez vos ajudem a pensar. Aprimeira: a caminho. O missionárioestá a caminho. Se és presbítero, nãopodes ser um sacerdote “quieto”, umpadre de sacristia, de escritório paro-quial, um sacerdote que escreveu naporta: “Recebe-se à segunda, quartae sexta-feira, de tal hora a tal hora”e “Confessa-se em tal dia, de tal ho-ra a tal hora”: pecai antes, porquedepois não se confessa. [riem]. Nãose pode! Tu estás a caminho. E vem-me à mente um bom sacerdote,bom, que era pároco num bairro delata. E certo dia, quando fui visitá-lo, ele disse-me: “Há dias em quegostaria de cobrir as janelas e a por-ta com cimento armado, porque ‘to cto c’, ‘toc toc’, ‘Pa d re ’, ‘toc toc’, umatrás do outro”. E o dia é a cami-nho, sempre a caminho, à espera dostelefonemas, cumprindo o serviço...a caminho.

E ao longo do caminho há surpre-sas; é necessário descobrir as surpre-sas; por isso, “a caminho” significatambém “à escuta”. Tu és missioná-rio, mas também discípulo, e o disci-pulado leva-te à escuta. À escuta doSenhor. Sim, no seminário é fácilporque, segundo o horário, de talhora a tal hora, a oração; de tal horaa tal hora, a escuta do Senhor; detal hora a tal hora, o estudo... Masassim não funciona! A vida inteiradeve ser à escuta, pelo menos abertaà escuta. E se tu não entendes, senão compreendes o que ouves, fazaquilo que fez Samuel: vai [Eli, oidoso sacerdote]. “Que significa estavoz?” — “Tu diz’: fala, que o teu ser-vo te ouve”. Sempre à escuta. Escutanão apenas das palavras, não só da-quilo que diz o povo de Deus, nãosomente das necessidades da huma-nidade, dos problemas, mas também

escuta na oração. “O senhor sabe,Padre, que Deus não fala, pareceque a Palavra se apagou, como notempo de Samuel...”. Não, a Palavranão se apagou! Tu apagaste o zelo,mudaste um pouco de registo e sóaprendeste a ouvir determinadas coi-sas. Não me digas que és surdo,não! Todos nós ouvimos. Mas ondeestá o teu registo de escuta? É umapergunta que deveis formular: “O n-de está o teu registo de escuta? Oque escuto com mais facilidade?”.

Homens a caminho, homens à es-cuta. E, quer a caminho, quer à es-cuta, nunca sozinhos. Três situações:a caminho, à escuta e em fraternida-de, em companhia. “Mas isto é fácil!”.Não é fácil. Agora é fácil, porque es-tais todos reunidos, todos num colé-gio com muitos sacerdotes ao vossoserviço que vos ajudam; mas quandoestiverdes numa paróquia, quandoestiverdes numa universidade paraensinar, não será fácil, porque a co-modidade, a mundanidade vos leva-rão a não estar a caminho. Porqueestar a caminho é cansativo. “Sim,mas trata-se de um caminho curto,breve, até aqui...”, e assim a vida co-meça a diminuir. Levar-te-á a ouvir

ta. Sempre à escuta, e pede a graçade discernir aquilo que sentes, paraencontrar a vontade de Deus; tam-bém para te corrigires, quando hou-ver situações desagradáveis, algo quenão funciona. E nunca sozinhos: sem-pre acompanhados. E há a fraterni-dade — vi que outra das perguntasse refere a este tema — há a fraterni-dade com os amigos, com os sacer-dotes mais próximos; mas existe ou-tra fraternidade, que vós deveis pre-servar: a fraternidade para com o sa-cerdote, ou com o monge, ou com oleigo, com aquele que Deus colocarperto de ti, no acompanhamento es-piritual. Pois a direção espiritual éum carisma laical, não é? Não é ne-cessariamente presbiteral, é laical.Também presbiteral, mas enquantolaical. E é preciso ter a coragem decontar com uma pessoa que teacompanhe: na tua vida interior, natua vida de fidelidade e de infideli-dade. “Sim, Padre, confesso-me sem-p re ”. Não, uma coisa é o confessor:onde fores, diz os teus pecados, eleperdoa-te e acaba ali. E outra coisa équem te acompanha: são duas situa-ções diferentes. E é melhor que nãoseja a mesma pessoa. Um é o con-

tazo” [da meia-idade]; e quando che-garem muitas outras dificuldades,todas derivadas do pecado original eda tentação do diabo. A propósitodo diabo, recentemente aproximou-se de mim um sacerdote que lera al-go que eu escrevi sobre a vida espiri-tual, não me recordo do que se tra-tava, e disse-me: “Esteja atento, por-que aquela vez o senhor mencionouo diabo, e ele vingar-se-á! É melhornão mencionar o diabo, fazer deconta que não existe”. Não, o diaboexiste! E o diabo — como diz Pedro— faz a ronda, como “leo rugens”[leão que ruge]. Estou convicto deque se agora eu vos fizer uma per-gunta, levantareis a mão: “A c re d i t a i sem Deus?” — “sim” — “acreditais emDeus Pai?” — “sim”, todos — “e emDeu Filho?” — “sim” — “e em DeusEspírito Santo?” — “sim” — “e nodiab o?” — “mas... depende... é ummito, não é muito claro...”. [riem].Ou então, com palavras direis: “Sim,sim, acreditamos!”, mas depois, ten-des o ‘f a ro ’ para o descobrir, quandose aproxima? E isto faz-se com odiscernimento e com o acompanha-mento espiritual. Mas não me querodeter muito neste assunto. Acho querespondi à tua pergunta, mais oumenos. Obrigado!

[Nebil] Bom dia, querido Santo Padre.Chamo-me Nebil, sou seminarista e ve-nho da África, do Sudão. Estou aquipara representar aqueles que provêm docontinente africano. A “Ratio funda-mentalis” convida-nos sempre ao discer-nimento da nossa vocação, inclusive de-pois da ordenação presbiteral. Na suaexperiência, como viveu este discerni-mento continuo? O que aconselha paradiscernir bem, para este discernimentoao longo de todo o percurso da nossavida? Obrigado!

Sou eu que te agradeço. Disseste:“Querido Santo Padre”. Obrigado,querido filho! As más-línguas dizemque “hoje o discernimento está namoda: este Papa veio aqui com estahistória... Que tem ele a ver com is-to?”. Mas o discernimento está noEvangelho! precisamente no Evange-lho e em toda a história da Igreja: éuma história de discernimento; e ahistória das almas é uma história dediscernimento. D i s c e r n i r, como a Ra-tio fundamentalis insiste muito. Saberentender na vida: isto sim, isso não;aquilo vem de Deus, isto vem demim, isso vem do diabo. Isto é ele-mentar, é elementar: trata-se de umalinguagem fundamental para a vidade cada cristão, ainda mais de umsacerdote. Discernir! Mas existemduas condições para que o discerni-mento seja certo e verdadeiro. Pri-meiro, que se faça em oração, isto é,perante Deus, na presença do Se-nhor. Saber entender bem aquiloque acontece no meu coração, naminha alma. “Devo fazer isto... masisso não me deixa tranquilo...; estábem... porquê?” — na oração. E se-gundo, é preciso c o n f ro n t a r - s e , ter al-guém com quem se confrontar sobreaquilo que levo em frente; uma tes-temunha: uma testemunha próxima,que não fala mas ouve e depois dá

somente aquilo que quiseres escutar,como aqueles surdos que não ouvemcertas coisas, mas escutam outras,não é? Surdos por escolha. Mas nin-guém dirá: “Quero ser surdo somen-te para não ouvir”, não! Ninguém odiz. Mas se não fores vigilante, a vi-da levar-te-á a isto; levar-te-á a isto.E depois, “sozinho”. “Sim, vou comos amigos sacerdotes...”. Mas és ca-paz de falar com os teus amigospresbíteros sobre os problemas quetens na paróquia, na diocese, na tuacomunidade, com Deus? Muitas ve-zes nós partilhamos com os amigosas coisas divertidas, e isto é bom.Apenas [mencionamos] algum pro-blema que houve... mas depois, senão levarmos a sério esta partilha, apartilha da vida como ela é, acabare-mos na bisbilhotice, a qual é umpouco como o ar que faz mal... En-tão estaremos acompanhados, masmal acompanhados.

Por isso, à tua pergunta, respon-derei: sempre a caminho. Mas discer-ne o caminho: que seja a vereda cer-

fessor, e o outro é quem te acompa-nha, e não deve ser necessariamentesacerdote: pode ser um monge, qual-quer pessoa. Mas que tenha o caris-ma para te acompanhar. Contudo, seestiveres parado, se andares sozinhoou escolheres somente aqueles que tedivertem um pouco e nada mais, edepois se não tiveres a capacidadede te unires em comunidade, nemde te deixares acompanhar por ou-trem, e se não ouvires, ficarás ali pa-rado. A capacidade de ouvir é umpouco como uma oração. E comorezas tu? Como o papagaio? Ou re-zas com os teus pensamentos, se-guindo os teus pensamentos, e con-fundes a oração com o seguimentodos teus pensamentos? Sabes rezarem silêncio, para escutar?

Acho que estas considerações aju-darão a responder à pergunta queme dirigiste: não, não é fácil! Hoje éfacílimo para todos vós. Mas prepa-rai-vos para quando vierem os de-mónios da vida, quando vier o de-mónio meridiano, o famoso “c u a re n -

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as orientações. Não te resolve [oproblema], mas diz-te: considera is-to, isso, aquilo... esta não parece seruma boa inspiração, por este moti-vo, aquela sim... Mas vai em frente edecide tu! Contudo ajuda-te, e é im-portante contar com ele desde o iní-cio. Esta foi a experiência que eu ti-ve. Descobri o desejo do discerni-mento quando estudava filosofia.Frequentei dois anos de noviciado —sem discernimento [riem, ri] — sim,bem, rezava-se; eu ia ter com o pa-dre espiritual, com o padre mestre edizia: “Senti isto...”. E ele esclarecia-me as situações à maneira, digamosassim, daquela época... Refiro-me aoano de 1958, e recentemente fiz 60anos de noviciado. Mas quando che-guei à filosofia, depois de um anode humanismo, ali havia um profes-sor de metafísica, um jesuíta muitobom, padre Fiorito, que era tambémo decano de filosofia. Era um “adep-to” da espiritualidade inaciana e umespecialista, um especialista não ape-nas teórico, mas prático do discerni-mento. E ali ensinou-nos muito. Ena teologia fiz com ele o mês deExercícios espirituais; aquele homemajudou-me muito a discernir. Alémdisso, quando eu estava para con-cluir o cargo de provincial, repeti omês a fim de me preparar para assu-mir outra função; e foi ali queaprendi o discernimento. Comeceina filosofia, porque encontrei aquelehomem que possuía este carisma.Era um filósofo, que obtivera a li-cenciatura, e fizera a tese de douto-ramento sobre a vontade de Deusem S. Tomás; depois ensinou metafí-sica e em seguida foi decano e padreespiritual; foi o meu padre espiritualaté ao fim, quando faleceu. Esta foia minha experiência: ajudou-mesempre. Mas eu nem sempre a des-crevia. Com o passar do tempo,quando fazes o discernimento, tor-na-se natural fazê-lo: “Isto é mau, émau mas agrada-me”, e vou em fren-te. Mas tu sabes que vais em frentecom algo negativo. Isto aconteceucomigo. Contudo, dizes a verdadediante de Deus. É preciso conheceras situações: “Esta é uma porta aber-ta, acho que devo avançar e ver oque o Senhor me diz...”. Então co-meço a percorrer esta senda. E o dis-cernimento é um pouco assim, levaconsigo a vida. Mas é bom ter sem-pre uma testemunha, alguém comquem se confrontar no meu êxito,numa situação, noutra e noutra ain-da... O discernimento é importante.Quando não há discernimento —prestai atenção a isto! — quando navida sacerdotal não existe discerni-mento — porque o ideal, quando osacerdote é maduro, é o discerni-mento feito quase com naturalidade,que deriva da prática constante, que

vem sozinho, e depois vem o con-fronto, mas vai sempre em frente —mas quando não existe discernimen-to, há rigidez e casuística. Quandona vida não és capaz de progredircom aquilo que te acontece ou comas coisas que ocorrem fora e não asconsegues julgar, serás rígido ou cai-rás na casuística, na lógica do “istopode-se, isso não se pode”. E tudopermanece fechado. O Espírito San-to não trabalha! Pois Aquele que teajuda no discernimento é o EspíritoSanto, mas nós temos medo do Es-pírito Santo... Ou então muitas ve-zes não o inserimos na nossa vida,como companheiro de caminho. Éprecisamente Ele que realiza a nossasantidade; é exatamente Ele que nosimpele rumo à missionariedade; éprecisamente Ele que prepara a nos-sa alma para a escuta. E é exatamen-te Ele que cria em nós a emoção es-piritual que nós mesmos devemosdiscernir. O Espírito Santo... Temosmedo do Espírito Santo; sentimossempre a tentação de o engaiolar,quer em gestos, quer em doutrinas,mas que não se mova demasiado.Mas na Igreja é Ele que se move.Discernir o Espírito: onde está o Es-pírito... Por exemplo, que fez Pedroquando foi visitar Cornélio (cf. Atcap. 10)? Viu que ali o Espírito agiae entendeu, fez o discernimento es-pontâneo: “Este é o Espírito deDeus, e se o Espírito desceu, eu ba-tizo”. Ponto! Toma a decisão numclima de discernimento. Que faz Fi-lipe, quando o Espírito o enviaàquela encruzilhada de estradas, poronde passava o ministro da econo-mia da rainha (cf. At 8, 26-40)? Vai,escuta, ouve que ele lê Isaías e co-meça a conversa; e o outro diz-lheque não entende nada disto; explica-lhe, mas sente que é o Espírito queo leva e, no final, o Espírito age nocoração do ministro da economia: vêa água e pede o batismo... Não é fá-cil converter um ministro da econo-mia! [riem]. Mas o Espírito Santoconseguiu fazê-lo. E como reagiu Fi-lipe? Não disse: “Mas... eu não trou-xe o livro de batismos... não trouxeo óleo para te batizar...”. Não! Dáouvidos ao Espírito, vai e batiza-o;senão, o Espírito pega nele pelos ca-belos e leva-o para outra parte.[riem]. Por que digo isto? Porquequando vives no Espírito, sais e li-bertas-te do “pode-se, não se pode”.Isto não quer dizer que podes fazerqualquer coisa, não! Mas sais da pri-são da casuística, sais da prisão darigidez. É outra linguagem, mas tra-ta-se de uma linguagem mais difícil:é um modo de agir mais difícil, por-que ali te envolves de uma maneiradiferente. Não deixas que os livrosdigam isto ou aquilo. Mas para istoé necessário ter familiaridade com o

Espírito Santo. Quando os Apósto-los, no primeiro Concílio de Jerusa-lém, devem decidir como agir comaqueles que provêm do paganismo,como começam a escrever a carta?“Pareceu-nos, ao Espírito e a nós...”.Realizaram o Concílio e deram aresposta no Espírito. Mas vós, na vi-da, devereis caminhar sempre no Es-pírito: no Espírito e na verdade.Com o Espírito Santo que, comoPaulo nos narra quando foi àquelacidade [Éfeso] — não me recordoqual — que “nem sequer sabiam queexistia um Espírito Santo” (cf. At 19,1-7). E muitíssimos sacerdotes — di-go-o com espírito positivo, com ter-nura e com amor — tantos sacerdotesvivem bem, na graça de Deus, mascomo se o Espírito não existisse.Sim, sabem que existe um EspíritoSanto, mas não faz parte da vida de-les. Esta é a importância do discerni-mento: entender o que o Espírito fazem mim, mas também como age oespírito inimigo e o que faz o meuespírito. São três, o diálogo é a três,o discernimento é a três, não a dois.Há o tentador, aquele que traz atentação, e há também o meu tem-peramento, os meus hábitos, porqueo homem não é corpo e alma: é cor-po, alma e espírito. Aqui há tudo!

Não sei se aqui escrevi algo sobreo discernimento... [consulta os seusapontamentos]. Sim, o discernimen-to, aquele que te confere um estiloespiritual... “Mas como é bom aque-le sacerdote, é muito espiritual!” —“Por que o diz?” — “Mas é sempreassim...”. Não, a bondade está sem-pre na benevolência interior unidaao diálogo com o Espírito. Com oEspírito! Como é bom aquele sacer-dote: sim, é bom porque dá ouvidosa todos, ouve Deus, caminha sem-pre, mantém sempre o coração aber-to, ama, reza... aquele presbítero ébom! E é feliz. Há um amigo do Es-pírito Santo — isto parece ser umablasfémia, mas não é; trata-se deuma minha reflexão — quando há oEspírito Santo, ele semeia sempre aalegria e também o sentido de hu-mor. E para compreender se umapessoa alcançou uma grande maturi-dade espiritual, questionemo-nos:“Ela tem sentido de humor?”. Deum sacerdote que morava aqui emRoma, e depois voltou para o Líba-no, onde faleceu — um homem comfama de santidade, faleceu idoso —dizia-se daquele homem: “ri de tu-do: ri dos outros, ri de si mesmo eaté da própria sombra”. Sentido dehumor! E para mim o sentido dehumor é a atitude humana — é hu-mano! — mais próxima da graça. Éaquele “re l a t i v i s m o ” bom, o relativis-mo da alegria, o relativismo da espi-ritualidade, aquele relativismo quenasce do Espírito Santo!

Os jovens — todos vós sois jovens— os jovens narcisistas fitam-se noespelho, penteiam-se... Às vezes —aconselho-vos — olhai para o espe-lho e ride de vós mesmos. Ride devós mesmos. Far-vos-á bem! [riem,aplausos].

[Jorge Moreno] Bom dia, Santo Pa-dre. Sou Jorge Moreno, sacerdote mexi-cano, e com grande honra represento osmeus irmãos presbíteros e seminaristasda América Latina. Então, formulo a

pergunta: o Senhor Jesus chamou-noscom tudo o que somos, para uma for-mação integral, ou seja, humana, espi-ritual, intelectual e pastoral. A seu ver,quais são os meios fundamentais parasalvaguardar o equilíbrio integral aolongo do percurso do ministério presbi-teral? Obrigado!

Obrigado! Acho que a esta per-gunta já respondi quando falei sobreouvir, pôr-se a caminho, estar em co-munidade, ter um guia espiritual, aoração... Um sujeito integral. Aquisó sublinhei a formação humana co-mo parte integrante da totalidade.Existem sacerdotes bons, que amamJesus Cristo, mas têm falta de desen-volvimento da personalidade, faltade educação. Encontras um presbíte-ro assim, por exemplo um sacerdotetriste mas que humanamente é inca-paz de chorar; ou que é incapaz —quem me transmitiu este critério foium sacerdote, quando eu era estu-dante — que é incapaz de brincarcom as crianças. Ele disse-me paraconsiderar isto: “Você brinca com osseus sobrinhos?” — “Sim!” — “Estáb em!”. Este é um critério de maturi-dade, de integridade. Quando en-contras alguém que não é capaz defazer isto, que é incapaz de se ale-grar e ou de passar tempo com ou-tros sacerdotes amigos, ali falta algo:falta a formação humana, sobre aqual não falei. Tudo aquilo que eudisse sobre a parte espiritual é válidotambém aqui; mas inclusive a partehumana, a humanidade do sacerdo-te, o humanismo sacerdotal. Muitospresbíteros sofrem porque não sãocapazes de expressar o que têm den-tro de si; ficaram bloqueados, elimi-naram da própria personalidade as-petos muito positivos, grandes capa-cidades, e nisto não cresceram.

A formação humana: dela fazemparte a capacidade social, de sociabi-lidade, a capacidade de respeitar osoutros, até aqueles que pensam deoutro modo, a capacidade de se ale-grar com os amigos, de jogar umaboa partida de futebol... destas coi-sas das quais [alguns pensam] “não,o sacerdote não pode...”. Tantas ca-pacidades humanas que não se de-senvolvem... Sobretudo a capacidadehumana de se inserir educativa eharmoniosamente no contexto so-cial. Por isso, eu disse que algunssão “educados mal”, neste sentido.Que não sabem inserir-se. E a capa-cidade humana de rejubilar: paramim isto é muito importante. Já fa-lei antes sobre isto, mas retomo o as-sunto agora. A capacidade de se ale-grar, de rejubilar por ser sacerdote,de se alegrar com os amigos presbí-teros, com os fiéis, mas de rejubilarsaudavelmente, de dar algumas gar-galhadas, coisas boas... É verdadeque nalguns lugares, em certos mo-mentos, digamos também a capaci-dade humana de se inserir social-mente não foi ajudada na formação.Quando te dizem que te deves com-portar assim, rigidamente, isto fazmal à capacidade humana da espon-taneidade. É verdade que a esponta-neidade te pode levar a alguma si-tuação desagradável, mas este é umperigo que deves discernir, defen-

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Jorge O. Cocco, «O bom pastor»

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Pais e irmãos não funcionários do sagrado

dendo-te contra isto. Contudo, umapessoa normal — digo normal, hu-mana — que vai visitar um doente,que o escuta e pega na sua mão, emsilêncio: isto é humano. Mas quemnada entende do humano vai visitaro doente e [diz:] “Estes sofrimentossão os padecimentos de Cristo eatravés deles você redime o mundocom Cristo, vá em frente...”, e o po-bre enfermo, sem nada compreender,permanece mais só do que antes,pois pelo menos antes pensava:“Quando vier o sacerdote, pelo me-nos me dará alguma consolação”. Acapacidade humana de perder tem-po com os enfermos, ouvindo. A ca-pacidade humana de acariciar bem...Ouvi bem isto: se não souberdesacariciar bem, como pais e irmãos, épossível que o diabo vos faça pagarpara acariciar. Estai atentos! A capa-cidade humana de ser pais. Não sebrinca com isto: ou és pai, ou és pa-drasto. A capacidade de ser pai é ca-pacidade de fecundidade, é capaci-dade de dar vida ao próximo. A for-mação integral deve pensar em for-mar para a fecundidade. Não vos di-go algo de novo, mas vós conheceisnumerosos sacerdotes que não sãopais, são “funcionários do sagrado”,como disse o Cardeal, são emprega-dos de Deus — bons, cumprem a sua

[Luigi] Santo Padre, bom dia. Cha-mo-me Luigi, venho dos Estados Uni-dos e sou diácono: se Deus quiser, sereiordenado sacerdote na festa de São Fi-lipe Neri, presbítero cheio de alegria. A“Ratio fundamentalis” revaloriza a es-piritualidade do sacerdote diocesano co-mo um caminho místico de identificaçãocom Cristo e de humilde serviço ao po-vo de Deus. Gostaríamos de saber,Santidade, quais são os traços funda-mentais da espiritualidade do sacerdotediocesano e como os pôr em prática nomeio do trabalho pastoral diário.

Obrigado. Digo isto: é mais fácilpara um religioso conhecer a própriaespiritualidade, porque tem o funda-dor e percebe muito bem a sua espi-ritualidade; mas para o diocesanonão é tão fácil descobri-la, e já ouvialguém dizer: “Não, pertenço à or-dem que São Pedro fundou”, dioce-sano, não é? [risos]. Mas ele temuma espiritualidade. Sintetizo-a nu-ma palavra: a espiritualidade do dio-cesano é a diocesanidade. Com tudoo que esta palavra significa: que nãoestás sozinho, estás num corpo que éa diocese, tens um pai que é o bispoe és pai de tantos fiéis. A diocesani-dade. Caminhando na estrada dadiocesanidade, começo a questionar-me sobre as relações da diocesanida-de. A espiritualidade do sacerdotediocesano reconhece um pai: o bis-po. “mas... é melhor nem falar do

diocesanidade e isto significa ter umpai.

Depois, significa ter irmãos, estarinserido num corpo presbiteral. Ecomo te comportas com o presbité-rio? Comportas-te bem, a tua per-tença ao presbitério é leal, aberta,sincera? Permites dizer tudo o que tevem à mente? Ou aprendeste a pra-ticar a autocensura para não fazermá figura? Aprendeste a fazer decontas ou a olhar para o outro lado?Uma fraternidade assim não estábem! És irmão dos teus irmãos pres-bíteros e isto deve crescer sempre.Não digo amigo íntimo, não, não épossível, isto não é real. Irmão.“Sim, vou às reuniões”. E quandoalguém do qual não gostas se pro-nuncia, o julgas imediatamente outentas ouvir e entender bem o queele diz? As relações no presbitério:gosto deste, aquele prefiro não o en-contrar... Examinai-vos sobre isto. Éo vosso carisma! É um presbitério. Equando a reunião acaba, por exem-plo, vou embora com dois ou trêsamigos e começamos a falar contraeste e aquele... “Mas olha o que dis-se aquele parvo, o que disse aqueleo u t ro . . . ”. O mexerico é a lepra! É alepra de um presbitério! As bisbilho-tices são a lepra! É uma maneira dedizer “dou-te graças, Senhor, porquenão sou como aqueles”, e de se afas-tar deles.

A relação com o pai, com os ir-mãos. E depois, o padre diocesanotem filhos: o relacionamento com osteus fiéis, com aqueles da paróquiana qual trabalhas. Como é este rela-cionamento? O de olhar para o reló-gio para sair cedo? Não deixar queas pessoas falem? Manter as pessoasà distância? — a distância nociva nãoa distância boa. Porque o segredodo bom pai espiritual, do bom pa-dre é aproximar-se bem e afastar-sebem. Sabeis que há alguns que seaproximam mal ou se afastam mal.Isto não é bom. O carisma é a dio-cesanidade e deveis permanecer emrelações que estão inseridas na dio-cesanidade: os relacionamentos como pai, com os irmãos e com os fiéis.Percorrendo estes três caminhos, setrabalhardes, tornar-vos-eis santos.Porque não é fácil manter uma boarelação com o bispo por toda a vida,não é fácil ter um bom relaciona-mento de fraternidade, de santidadecom os irmãos sacerdotes e não é fá-cil ter uma boa relação com os filhosna paróquia. Não sei se respondi.Diocesanidade: este é o carisma dacongregação religiosa que São Pedrofundou! Concordais? [risos, aplau-sos].

[Michael Aguilar] Bom dia, SantoPadre. Chamo-me Michael Aguilar, sa-cerdote das Filipinas: venho do conti-nente da Ásia, onde nasceu Jesus, ondenasceu a Igreja. [risos]. Gostaria delhe formular esta pergunta: nós sacer-dotes presentes em Roma encontramosuma oportunidade para a formaçãopermanente. Como cuidar da própriaformação durante este período extraor-dinário, e inclusive face ao futuro?Obrigado!

Agradeço-te. Não entendi bem:Jesus nasceu em Manila? [risos,aplausos].

A formação permanente é muitoimportante, porque é o acompanha-mento da vida. Vejamos primeira-

mente os quatro pilares da formação:formação espiritual, intelectual,apostólica e comunitária no presbité-rio: quatro. Na vida, estas relaçõesdevem amadurecer sempre e seremformadas cada vez mais. Por exem-plo, na parte pastoral deve haver no-vidades pastorais, novas abordagenspastorais, estar atualizados sobre is-to; o mesmo na parte intelectual eespiritual: os exercícios anuais, osencontros entre vós e o resto. E aparte comunitária, antes já falei umpouco a propósito do presbitério.

Agora, respondendo à tua pergun-ta direi algo que devemos compreen-der melhor. Antes de tudo, a forma-ção permanente nasceu da experiên-cia da própria debilidade; não tedão um certificado de santidade per-pétua quando és ordenado: man-dam-te trabalhar e que Deus te aju-de e os corvos não te comam. Sejaclaro: estás ciente da tua debilidade?Formulai esta pergunta todos osdias. “Estou consciente da minhadebilidade? E quais são os pontosonde sou mais frágil?”. Não é algotetro, mas a verdade: somos débeis.Estás ciente do teu ponto fraco? É aprimeira pergunta que deveis fazersempre, e se não o encontrares hoje[o teu ponto fraco], será amanhã ese não o encontrares amanhã, serádepois de amanhã. E se não encon-trares o teu ponto fraco, se não operceberes, procura alguém que teajude a encontrá-lo, no diálogo espi-ritual.

Depois, há outro risco: o de [pen-sar] “Sim, celebro a Missa, faço isto,é uma paróquia...” — “E como está aparó quia?” — “Ah, está muito bem.estou a fazer isto, aquilo...”. O riscode se tornar empregado do sagrado.Não, tu és sacerdote. Não és empre-gado do sagrado. Aconteceu a mimcerta vez que chegou um advogado— jovem, 26 anos, mais ou menos —e disse: “Padre, vou casar daqui a 15dias — estava próximo — e fui procu-rar as certidões na paróquia onde fuibatizado, deram-me imediatamente acertidão de batismo e até me felicita-ram, então perguntei: devo pagar?Não, mas se quiser deixar uma ofer-ta, deixe-a ali, contudo não se paga.Mas ontem fui à paróquia na qualdevo pedir a autorização para mecasar noutra paróquia e disseram-me: Sim, amanhã estará pronta, masvolte com tanto, deve pagar umaboa soma”. Seriam quase o equiva-lente a 70 dólares. E ele teve a cora-gem, dado que trabalhava no centroda cidade, de entrar no paço episco-pal e perguntar se o bispo estava ese o recebia. Estava desolado e dizia:“Padre, queremos fazer tudo bemfeito: não só dar início a uma convi-vência, mas preparamo-nos bem pa-ra o matrimónio... e vou à igreja efazem-me isto...” — “Tranquilo, vaisamanhã e quando te disserem parapagar diz que vieste ter comigo e eudisse que pago eu”. O sacerdote da-quela paróquia era um empregadodo sagrado. É um exemplo terrívelmas aconteceu, isto acontece! Com odinheiro e também com as atitudes.Por favor, prestai atenção para nãovos tornardes empregados do sagra-do.

Depois, a cultura contemporânea.Como me comporto com o meu te-

profissão — mas não são pais, nãosabem dar vida, aliás, quantos denós são solteirões, pois quando osouvimos pregar ou falar, temos avontade de perguntar: “Diz-me, oque tomaste hoje no pequeno-almo-ço? Café com leite, ou vinagre?”.[riem]. São incapazes de gerar a vi-da nos outros, não são fecundos.

Isto para responder à questão daintegralidade. Eu já tinha falado an-tes sobre a parte espiritual, mas aparte humana... Interroguemo-nosacerca da fecundidade: “É ele um sa-cerdote fecundo?”. E existem muitossacerdotes fecundos escondidos. OSenhor deseja que a fecundidade dealguns deles se manifeste. Na Itáliaexistem muitos párocos bons: sãopadres de um povoado, conhecem avida de todos e fazem-na crescer. Aocontrário, às vezes não se sabe, masvê-se no coração, diariamente: quan-tos padres estão nos confessionários,e também quantos solteirões apavo-ram as pessoas: existem ambos. Éuma fecundidade, a paternidade sa-cerdotal. Se algum de vós não desejatornar-se sacerdote, por favor vá em-bora, é melhor. Pois ser solteirão fazmal à Igreja. Entendestes? Está bem.[aplausos].

meu!”. Quantas vezes se estabelecemdistâncias entre o sacerdote diocesa-no e o bispo. Compreendem-se al-gumas distâncias, talvez devido aotemperamento do bispo que não éfácil, mas mesmo que o bispo sejadifícil, as distâncias não são justifica-das. Podes aproximar-te do teu pai,não para conversar, mas só para lhefazer sentir que é o teu pai, apenaspor isto. E o teu coração permanece-rá em paz. Mas se o teu coração nãoestiver em paz na tua relação com obispo, algo não está bem em ti. Dei-xemos de lado o que não nos agradano bispo: mas pensemos em ti, por-que tu és diocesano e à tua diocesa-nidade falta a relação com o pai. Ca-da um de vós deve perguntar-se: co-mo é o meu relacionamento com obispo? “Mas ele é mau, é neuróti-co...”. Como está o meu relaciona-mento com o meu pai que é mau eneurótico? O que aconselharíeis aum jovem que vem ter convosco evos diz que o pai está na prisão? Porexemplo. Ou que o pai maltrata amãe — o bispo que maltrata a Igreja.Dareis um conselho: “Reza pelo teupai, aproxima-te dele”, nunca diríeis:“Cancela o teu pai da tua vida”. Ocarisma do sacerdote diocesano é a CO N T I N UA NA PÁGINA 13

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lemóvel, nas minhas comunicaçõesvirtuais? Sabeis bem do que falo: oque procuro ver por curiosidade? Evós o sabeis. Há a cultura contem-porânea que entra na minha alma ea contamina. Depois, a atração dopoder e das riquezas: é sempre as-sim. Santo Inácio ensina nos Exercí-cios que há três degraus. O primeiroa riqueza, o segundo a vaidade e oterceiro a soberba, isto é, o poder. Odiabo entra pelos bolsos, não é?Gosto do dinheiro? Gosto da vaida-de? Esta é uma das dificuldades.Enumero algumas das dificuldades

da vida sacerdotal, depois falarei umpouco da formação permanente.

O desafio do celibato. Sobre istoestai preparados porque: “Se tivesseconhecido esta mulher antes de meo rd e n a r " ”. Em espanhol dizemos:“tarde piaste”, isto é “percebeste tar-de”. Mas sois homens normais, ten-des o desejo de estar com uma mu-lher, para amar. E quando apareceesta possibilidade, como reagis? Sen-tis o desejo de gerar filhos? Não sóespirituais, mas outros? Isto é algoque temos na nossa natureza e quenos foi dado por Deus. E depois, acomodidade no próprio ministério:“mas, se é mais cómodo não o faças

com muito esforço...”. Estas situa-ções que enumerei, agora que estaisa estudar, são fáceis de resolver, masna vida estareis mais sozinhos e en-contrareis estas realidades. Umas sãomás, outras boas; mas estarão pre-sentes. E por isso a formação perma-nente deve ser sempre importante.Não só para resolver as tentaçõesmas também para estar na atualida-de, no desenvolvimento da pastoral,da teologia, da vida da Igreja. Maspor favor ide sempre aos cursos es-pirituais da diocese, aos cursos deatualização e, se pensardes que é ne-cessário, depois de alguns anos, pediao bispo para fazer um ou dois me-

ses de formação; mas sempre, devidoa todas essas coisas que acontecem.

É quase hora. Temos que concluir.Antes porém, farei um pouco de pu-blicidade. [risos].

Há dois livros que vos ajudarão.O primeiro é uma Carta pastoralque o bispo de Albano escreveu re-centemente: “Custodiamo il nostro de-siderio”, falando do desejo sacerdo-tal, do modo como conservar o de-sejo. É uma jóia, recomendo-o, ébom. Procurai, é preciso lê-lo. Tal-vez o encontreis na internet, lede-oporque ajudará a conservar o desejointerior, o desejo de Deus, o desejodo apostolado, o desejo bom quenos dá. Então, recomendo este livro:é muito bom.

E outro que saiu há duas sema-nas: “10 cose che Papa Francesco pro-pone ai sacerdoti”. [risos]. São sim-ples. E pode ser um vade-mécum: épequenino, lê-se bem mas é necessá-rio relê-lo para não o esquecer.

Agradeço-vos esta reunião: gostomuito de me encontrar convosco; éuma das coisas que nos faz bemsempre, encontrarmo-nos para nosajudarmos a ir em frente na comuni-cação da fé comum. Assim Paulojustifica a Carta aos Romanos, cap.1, versículo 12: comunicar a própriafé para ir em frente.

Rezai por mim. Rezai uns pelosoutros. Rezai pelos vossos superio-res. Rezai pelo vosso bispo. Que oSenhor vos abençoe.

Convido-vos a recitar o An g e l u s :Angelus Domini...[Bênção].Bom almoço!

Preservar o planeta e proteger os povosMensagem papal ao patriarca de Constantinopla

«O cuidado da criação, vista como dom partilha-do e não como posse individual, requer sempre oreconhecimento e o respeito dos direitos de cadapessoa e de cada povo»: escreveu o Papa Francis-co na mensagem enviada ao patriarca Bartolo-meu, por ocasião do simpósio ecológico interna-cional «Rumo a uma Ática mais verde: Preservaro planeta e proteger os seus habitantes», que de-correu em Atenas e nas Ilhas Sarónicas, na Gré-cia, de 5 a 8 de junho.

No texto em inglês, datado de 28 de maio, de-pois de ter expressado «profundo apreço por estanobre iniciativa, que segue uma série de simpó-sios análogos em diversas partes do mundo», oPontífice saudou também Jerónimo II, arcebispode Atenas e de toda a Grécia, e afirmou que con-serva uma «viva recordação» da visita que realiza-ram juntos a Lesbos a 16 de abril de 2016 «paraexprimir ali a preocupação comum pelo dramados migrantes e dos refugiados». A tal propósitoconfidenciou que enquanto permanecia «encanta-do pelo cenário do céu azul e do mar» «pensavatambém que um mar tão bonito se tinha transfor-mado em túmulo de homens, mulheres e crianças,a maioria dos quais tinha apenas desejado fugirdas condições desumanas na sua terra natal». Aomesmo tempo, acrescentou Francisco «pude cons-tatar pessoalmente a generosidade do povo grego,tão ricamente permeado de valores humanos ecristãos, e os seus esforços, não obstante os efeitos

da própria crise económica, para dar conforto aquantos, desprovidos de todos os bens materiais,tinham chegado ao seu litoral». Eis então a con-vicção de que «as contradições dramáticas» expe-rimentadas durante aquela visita podem ajudar acompreender a importância do tema do simpósio.

«Não desabam apenas as casas das pessoas vul-neráveis no mundo como se pode ver no crescen-te êxodo de migrantes climáticos e refugiados am-bientais a nível mundial», esclareceu o Papa, queevocou um dos trechos mais incisivos da encíclicaLaudato si', na qual se manifesta a preocupaçãode que «provavelmente estamos a condenar as ge-rações futuras a uma casa comum deixada em ruí-nas». Por isso, exortou, «hoje devemos formularcom honestidade» a pergunta sobre qual tipo demundo «desejamos deixar» a quantos «vierem de-pois de nós», fazendo «um sério exame de cons-ciência relativo à proteção do planeta confiadoaos nossos cuidados».

De resto, segundo Francisco «a crise ecológicaque atinge agora a humanidade inteira está radi-cada também no coração humano, que aspiracontrolar e explorar os recursos limitados do nos-so planeta, ignorando os membros vulneráveis dafamília humana». Ao contrário, foi a sua denún-cia, «não podemos ignorar o mal difundido e pe-netrante na situação atual». A ponto que, obser-vou, «na nossa mensagem conjunta para o diamundial de oração pela criação do passado dia 1

de setembro afirmamos que “a chamada e o desa-fio urgentes para que assumamos o cuidado dacriação constituem um convite para toda a huma-nidade a comprometer-se por um desenvolvimen-to sustentável e integral”».

E se «o dever de cuidar da criação desafia to-das as pessoas de boa vontade», assinala Francis-co, sobretudo «exige dos cristãos o reconhecimen-to das raízes espirituais da crise ecológica e a coo-peração em dar uma resposta unívoca». Portanto,o dia mundial de oração pela criação constitui«um passo nesta direção, porque demonstra anossa preocupação comum e aspiração a trabalharjuntos para enfrentar esta delicada questão».

Por fim, Francisco reiterou a «firme intençãode que a Igreja católica continue a percorrer estelongo caminho juntamente com o Patriarcadoecuménico». Com a esperança — concluiu — deque católicos e ortodoxos trabalhem ativamentepelo cuidado da criação e por um desenvolvimen-to sustentável e integral».

Édouard Vuillard«Grand-mère et enfant au lit bleu» (1899)

CO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 12

Com os estudantes dos colégios eclesiásticos romanos

Audiência ao presidentedo conselho de ministros da Polónia

A 4 de junho, o Papa Francisco recebeu em audiência Mateusz Mo-rawiecki, primeiro-ministro da República da Polónia, o qual sucessi-vamente se encontrou com o cardeal Pietro Parolin, secretário de Es-tado, acompanhado pelo arcebispo Paul Richard Gallagher, secretáriopara as Relações com os Estados.

Durante os colóquios cordiais, foram evidenciadas as boas relaçõesbilaterais existentes entre a Santa Sé e a Polónia, e a colaboraçãoprofícua entre a Igreja e o Estado nos respetivos âmbitos de ação.Foram tratados temas de interesse comum como as políticas familia-res e a salvaguarda da criação, na perspetiva da conferência das Na-ções Unidas sobre as mudanças climáticas em Katowice em dezem-bro de 2018, e também alguns pontos de caráter ético.

Por fim, apresentaram questões acerca da situação europeia e inter-nacional, com particular referência ao acolhimento dos refugiados eao compromisso do governo polaco a favor dos refugiados da Ucrâ-nia e do Médio Oriente.

página 14 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 14 de junho de 2018, número 24

O terço de JuanGI O VA N N I MARIA VIAN

Nas casas dos mexicanos costuma-va-se pendurar nas paredes «umSagrado Coração, um retrato doPapa Paulo e outro de John F.Kennedy, o irmão de Robert».Quem o recordou, num longo arti-go de Víctor Fernández publicadoem «La Razón» do passado dia 3de junho, foi Juan Romero, o em-pregado de mesa de dezasseteanos que na noite de 5 de junhosegurou a cabeça de Rober Ken-nedy ferido mortalmente «porquenão queria que tocasse o chão decimento que estava sujo. Olhava àdireita até se virar em minha dire-ção. Dei-me conta de que moviaos lábios, procurando dizer algo.“Estão todos bem?” p erguntou-me. Disse-lhe que sim. “Então vaicorrer tudo bem” resp ondeu-me».E Juan colocou-lhe nas mãos o ro-sário que trazia sempre no bolso«para que Deus me ajudasse».Poucas horas mais tarde o senadorfalecia. «Bobby — escreveu, a 22de junho, Thomas Merton à viúvaEthel que hoje tem noventa anos— representava a verdadeira e realesperança de todo o país e domundo. Era o único que, sem dú-vida, tinha a oportunidade de fa-zer algo concreto pela paz». Àdistância de meio século daquelatrágica noite de 6 de junho, a filhaKerry ao falar ao diário «Corrieredella Sera» demonstra ter umamemória límpida: «Quando via al-go que não estava bem, meu paisentia-se moralmente obrigado aintervir, e nunca hesitava». Eacrescenta que num país dividido«se dedicou a solucionar as diver-gências»; e fê-lo «retomando osvalores fundamentais da América:liberdade, justiça e sacrifício pelobem comum. Hoje, a sua mensa-gem ressoa talvez ainda mais im-portante e urgente». O testemu-nho de Robert Francis Kennedy,está vivo e cuja memória deve poreste motivo ser eficaz.

A herança ideal dos irmãos Kennedy

Aqueles dias vistos do VaticanoGABRIELE NICOLÒ

Com a voz abalada pela como-ção Paulo VI, durante a au-diência geral de 5 de junho

de 1968, exprimia, inicialmente eminglês e depois em italiano, o seuprofundo pesar após ter recebido anotícia do atentado contra o sena-dor americano Robert Kennedy,ocorrido no dia anterior. O Pontífi-ce deplorava esta «nova manifesta-ção de violência e de terror» da qualtinha sido vítima um homem jovem«que estava a oferecer a própria pes-soa ao serviço público do seu país».

Internado em estado gravíssimono hospital do Bom Samaritano emLos Angeles, o senador faleceu a 6de junho, com 42 anos. Tinha sidoatingido por tiros no momento emque saía do hotel onde anunciara avitória nas eleições primárias do Es-tado da Califórnia. À sua cabeceiraestavam a esposa, o irmão, as irmãs,os cunhados e um sacerdote.

Naquele triste dia o presidentedos Estados Unidos, Lyndon John-son, proclamou luto nacional. E aochefe de Estado americano, Paulo VIenviou uma mensagem de pêsamesna qual definia Kennedy «um exce-

lente funcionário estatal» (outstan-ding public servant): o Papa transmi-tiu outra mensagem através do car-deal McIntyre, arcebispo de LosAngeles, à esposa Ethel, garantindoa ela e aos mais estreitos familiaresuma profunda proximidade espiri-tual num momento tão trágico e do-l o ro s o .

No comentário da primeira pági-na, intitulado As ideias e a violênciapublicado na quinta-feira 6, quandoainda se esperava e se rezava a fimde que Robert pudesse sobreviver,«L’Osservatore Romano» definia oatentado um «gesto insensato dequem, com a violência, pensa quepode deter a história em movimentorumo a novas fronteiras. Assim co-mo aconteceu em Dallas há cincoanos. Também o jovem senador —sublinhava-se no comentário — é umsímbolo: derrubá-lo não significadestruir a realidade que amadure-ce».

E na edição de sexta-feira, 7 dejunho, quando do além-mar chegoua temida notícia da morte, «L’O s-servatore Romano» publicou na pri-meira página um editorial, assinadopelo diretor Raimondo Manzini eintitulado Contra qualquer violência,em que se evidenciava uma tragédiaque «parecia incrível», porque seacrescenta ao precedente homicídio«do mais conhecido e audaz dosKennedy», determinando o destinode uma família «representativa edesventurada, infeliz e heroica». Ageração dos Kennedy, sublinhava oeditorial, paga o preço de um servi-ço prestado corajosamente ao país ea um ideal político que, resumindoos problemas e as dilacerações donosso tempo, pode ser consideradoum serviço prestado ao mundo intei-ro, indivisível nos seus problemas. Eé um ideal ao qual «se opõem fana-tismos brutais, até além do respeitopelas leis da civilização».

O editorial concentrava-se tam-bém na figura de Ethel que, ajoelha-da ao lado do marido para suplicare para o assistir até ao último respi-ro, «é quase o símbolo da humani-dade que sofre, reza em todos nós, enão só por uma vítima. Por todas asvítimas». Aquela mulher, aquela es-posa, aquela mãe, sofre «por causade todos os lugares onde a sugestão

infame da violência explode e sepropaga, até chegar à desprezíveldegradação de um certo tipo de cul-tura que se presta a teorizá-la, justi-ficá-la e codificá-la. Até aos limiaresda teologia! E isto apesar do assí-duo, incessante, incansável magisté-rio de paz de Paulo VI».

Ainda Manzini, num comentáriopublicado em «L’Osservatore Ro-mano» de 9 de junho, definia Johne Robert Kennedy «dois heróis davisão moral do homem e da socieda-de, do nosso tempo dramático etranstornado, no qual o ideal políti-co se concentra particularmente naexigência da liberdade porqueameaçada». Ambos tiveram o méritode fazer sentir que o homem é averdadeira e única medida da liber-dade. E do sacrifício da famíliaKennedy, evidenciava Manzini, bro-ta um testemunho religioso. Um tes-temunho que, banindo a deserção ea abdicação, exorta a engajar-se e aservir com dedicação corajosa e for-te. Até sacrificando a própria pes-soa.

No artigo de Fabrizio Alvesi, pu-blicado em «L’Osservatore dellaDomenica» de 16 de junho, foi feitauma comparação entre o destino deJohn e Bob Kennedy e o de Tibérioe Caio Graco. Assim como os doisirmãos da antiguidade, também osdois irmãos americanos eram ricos, ecomo eles não quiseram beneficiardas vantagens desta riqueza, perma-necendo no meio dos ricos, mas pre-feriram estar com os pobres e os de-serdados. E por este motivo, umapós outro, tanto em Roma comonos Estados Unidos, foram assassi-nados. «Contudo, diferentementedos Graco, os Kennedy — e s c re v i aAlvesi — ofereceram algo mais: dei-xaram uma herança ideal, que seconcretiza num modo de pensar, doqual os irmãos Graco não puderamdar testemunho. Os Kennedy reno-varam-nos o convite a considerar osbens desta terra como algo instávele insignificante, se não lhes dermosum valor que transcenda a utilidadeimediata e se eleve ao reino do espí-rito».

As exéquias foram celebradas nacatedral de São Patrício em NovaIorque, metrópole do Estado queRobert representava no senado. De-pois o seu corpo foi sepultado nocemitério nacional de Arlington, emWashington. Quem representou pes-soalmente Paulo VI, por ocasião dofuneral, foi o cardeal AngeloD ell’Acqua, vigário de Roma. Antesde partir de Fiumicino, dirigindo-seaos jornalistas e aos locutores de rá-dio, o purpurado recordou os seusvínculos de amizade com o pai dosenador Kennedy, ex-embaixadordos Estados Unidos em Londres, etambém sublinhou a particularíssi-ma devoção que Robert tinha porPaulo VI.

Uma devoção que se manifestouinclusive no significativo gesto depôr à disposição do Papa o automó-vel pessoal durante todo o períododa sua permanência em Nova Ior-que por ocasião da visita às NaçõesUnidas, realizada a 4 de outubro de1965.

O terço colocado nas mãosdo senador moribundopelo empregado de mesa mexicano Juan Romero

CO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 1

Fim do silêncio

voluções do século XX — a possibi-lidade de falar de sexo e de denun-ciar os abusos sem levantar suspei-tas sobre si, revelando a trama depoder subjacente — abriram o ca-minho à nova sensibilidade em re-lação aos abusos sexuais, que hojecondenamos com severidade, ou-vindo as palavras das vítimas. Tra-ta-se de uma revolução recém-ini-ciada, cujos efeitos só recentementese fazem sentir e cujas consequên-cias ainda não somos capazes deprever. Uma já em curso é que ago-ra as instituições já não podem dargarantias aos acusados: cada umdeve responder por si mesmo, numclima em que a busca da verdadecancelou a antiga tentação de es-

conder o mal para salvar a imagemda instituição de pertença, quer elaseja a família, a escola, a equipedesportiva ou a comunidade reli-giosa.

Com o tempo, esta nova severi-dade, esta busca da verdade jácompartilhada deveriam fazer dimi-nuir os casos de abusos e sobretu-do consciencializar todos do malque tudo isto acarreta. Desejamossobretudo à Igreja católica, ondemuitas vezes o abuso sexual é pre-cedido e acompanhado por abusosde autoridade e de consciência, eonde agora a intervenção decididade Bento XVI e de Francisco está aseguir um caminho corajoso nabusca da verdade. Mesmo quandoela incomoda, quando incomodamuito.

número 24, quinta-feira 14 de junho de 2018 L’OSSERVATORE ROMANO página 15

INFORMAÇÕESAudiências

O Papa Francisco recebeu em audiên-cias particulares:

A 7 de junhoD. Luis Francisco Ladaria Ferrer,Prefeito da Congregação para aDoutrina da Fé; D. Edward JosephAdams, Núncio Apostólico na Grã-Bretanha; D. Hubertus MatheusMaria van Megen, Núncio Apostóli-co no Sudão e na Eritreia; e os se-guintes Prelados da ConferênciaEpiscopal da Escandinávia, em visita«ad limina Apostolorum»: CardealAnders Arborelius, Bispo de Esto-colmo (Suécia); D. Czeslaw Kozon,Bispo de Copenhagen (Dinamarca);D. Teemu Sippo, Bispo de Helsinki(Finlândia); D. David Bartimej Ten-cer, Bispo de Reykjavík (Islândia),com o Bispo Emérito D. Peter Bür-cher; D. Bernt Ivar Eidsvig, Bispode Oslo (Noruega) e AdministradorApostólico «ad nutum Sanctae Se-dis» da Prelazia de Trondheim (No-ruega); e D. Berislav Grgić, Preladode Tromsø (Noruega).

A 8 de junhoO Senhor Cardeal Fernando Filoni,Prefeito da Congregação para aEvangelização dos Povos; D. PieroPioppo, Núncio Apostólico na Indo-nésia; D. Antonio Filipazzi, NúncioApostólico na Nigéria, Representan-te Permanente da Santa Sé junto daComunidade Económica dos Esta-dos da África Ocidental; e os Car-deais João Braz de Aviz, Prefeito daCongregação para os Institutos deVida Consagrada e as Sociedades deVida Apostólica, com D. José Rodrí-guez Carballo, Secretário do mesmoDicastério; e Angelo Amato, Prefeitoda Congregação para as Causas dosSantos.

A 9 de junhoOs Senhores Cardeais Marc Ouellet,Prefeito da Congregação para osBispos; e Leonardo Sandri, Prefeitoda Congregação para as IgrejasO rientais.

A 10 de junhoD. Léon Kalenga Badikebele, Nún-cio Apostólico na Argentina.

A 11 de junhoOs seguintes Prelados da Conferên-cia Episcopal da Gâmbia, Libéria eSerra Leoa, em visita «ad liminaApostolorum»: D. Gabriel Mendy,Bispo de Banjul (Gâmbia); D. LewisJ. Zeigler, Arcebispo de Monróvia(Libéria); D. Andrew Jagaye Karn-ley, Bispo de Cape Palmas (Libéria);D. Anthony Fallah Borwah, Bispode Gbarnga (Libéria); D. EdwardTamba Charles, Arcebispo de Free-town (Serra Leoa); D. Charles AllieuMatthew Campbell, Bispo de Bo(Serra Leoa); D. Henry Aruna, Au-xiliar de Kenema (Serra Leoa); e D.Natale Paganelli, AdministradorApostólico de Makeni (Serra Leoa).

Renúncias

O Santo Padre aceitou a renúncia:

No dia 11 de junhoDe D. Juan Barros Madrid, ao go-verno pastoral da Diocese de Osor-no (Chile).De D. Cristián Caro Cordero, ao go-verno pastoral da Arquidiocese dePuerto Montt (Chile).De D. Gonzalo Duarte García DeCortázar, S S.CC., ao governo pastoralda Diocese de Valparaíso (Chile).

No dia 13 de junhoDe D. Héctor Guerrero Córdova,S.D.B., ao governo pastoral da Prela-zia de Mixes (México).

Nomeações

O Sumo Pontífice nomeou:

A 8 de junhoBispo da Diocese de Raiganj (Ín-dia), o Rev.do Pe. Fulgence AloysiusTigga, do clero de Bettiah, até hojeVigário-Geral e Pároco da “Motherof God Church”.

D. Fulgence Aloysius Tigga nasceu a3 de março de 1965, em Katkahi (Ín-dia). Foi ordenado Sacerdote no dia 3de março de 1997.

Auxiliar da Diocese de Miao (Ín-dia), o Rev.do Pe. Dennis Panipit-chai, S.D.B., até agora Pároco da“Mary Immaculate Parish” emChingmeirong, simultaneamenteeleito Bispo Titular de Aggersel.

D. Dennis Panipitchai, S.D.B., nas-ceu em Colachel (Índia), no dia 27 dejulho de 1958. Recebeu a Ordenaçãosacerdotal a 27 de dezembro de 1991.

Auxiliar de Rockville Centre (E UA ),o Rev.mo Mons. Richard G. Hen-ning, do clero da mesma Diocese,até à presente data Reitor do “Semi-nary of the Immaculate Concep-

tion”, Diretor do “Sacred Heart Ins-titute for the ongoing formation ofc l e rg y ” em Huntington (Nova Ior-que) e Vigário Episcopal para o Vi-cariato Central da Diocese, simulta-neamente eleito Bispo Titular de Ta-bla.

D. Richard G. Henning nasceu a17 de outubro de 1964 em RockvilleCentre (EUA). Foi ordenado Sacerdoteno dia 30 de maio de 1992.

Auxiliar de Washington (E UA ), oR e v. mo Mons. Michael WilliamFisher, do clero da mesma Arquidio-cese, até esta data Vigário Episcopalpara o Clero e Secretário da “Minis-terial Leadership”, simultaneamenteeleito Bispo Titular de Truentum.

D. Michael William Fisher nasceuem Baltimore (EUA), no dia 3 demarço de 1958. Recebeu a Ordenaçãosacerdotal a 23 de junho de 1990.

A 11 de junhoAdministrador Apostólico “sede va-cante et ad nutum Sanctae Sedis” daDiocese de Osorno (Chile), D. JorgeEnrique Concha Cayuqueo, O.F.M.,atualmente Auxiliar de Santiago doChile.Administrador Apostólico “sede va-cante et ad nutum Sanctae Sedis” daArquidiocese de Puerto Montt (Chi-le), o Rev.do Pe. Ricardo Basilio Mo-rales Galindo, O. de M., atualmenteProvincial dos Mercedários no Chi-le.Administrador Apostólico “sede va-cante et ad nutum Sanctae Sedis” daDiocese de Valparaíso (Chile), D.Pedro Mario Ossandón Buljevic,atualmente Auxiliar de Santiago doChile.

A 13 de junhoBispo de Salina (E UA ), o Rev.mo

Mons. Gerald L. Vincke, do clero daDiocese de Lansing, até agora Páro-co da “Holy Family Parish.”

D. Gerald L. Vincke nasceu a 9 dejulho de 1964 em Saginaw (EUA). Foiordenado Sacerdote no dia 12 de junhode 1999.

Bispo Prelado de Mixes (México), oR e v. do Pe. Salvador Cleofás MurguíaVillalobos, S.D.B., até esta data For-mador junto da Direção dos Salesia-nos em Roma.

D. Salvador Cleofás Murguía Villa-lobos, S.D.B., nasceu em León (Méxi-co) no dia 25 de setembro de 1953.Recebeu a Ordenação sacerdotal a 11de dezembro de 1982.

Auxiliar da Arquidiocese de Katowi-ce (Polónia), o Rev.mo Mons. Grze-gorz Olszowski, do clero da mesmaSede, até agora Pároco da Paróquiade Santo António de Pádua emRybnik, simultaneamente eleito Bis-po Titular de Rhoga.

D. Grzegorz Olszowski nasceu a 15de fevereiro de 1967 em Mikołów (Po-lónia). Foi ordenado Sacerdote no dia13 de maio de 1995.

Início de Missãode Núncio Apostólico

D. James Patrick Green, ArcebispoTitular de Altinum, na Finlândia (23de abril).

Os bons votos do Papaa padre Gustavo Gutiérrez

CO N T I N UA Ç Ã O DA PÁGINA 7

Beatificada Maria da Conceição

Quando era jovem, durante ospasseios com os seus, aproximava-se dos «pastorinhos, educando-nosna fé», visitava «os casebres doscamponeses», ensinava «as criançasa recitar as orações» e exortava «ospais a cuidar da educação moral eespiritual dos filhos». Por isso,comprava e oferecia catecismos, si-labários e terços para a recitação dorosário. Além disso, madre Adélaïdeera «benévola e misericordiosa enão guardava rancor». Uma teste-munha afirmou que a única repre-ensão que se lhe podia fazer era deser demasiado bondosa. E «toda asua ternura de mãe era para as

doentes. Visitava-as, ouvia-as, con-solava-as e encorajava-as». Diziacom frequência que o caráter distin-tivo do instituto das filhas de Mariadevia ser a caridade. A última peça«preciosa do maravilhoso mosaicoda santidade de madre Adélaïde»,indicada pelo cardeal, é a humilda-de. Com efeito, «pouco a pouco elasubstituiu a vanglória e o orgulho,que tinha quando era jovem, comuma atitude modesta e humilde nospensamentos, nas palavras e nasações».

Uma grande prova de humildadefoi «suportar com simplicidade esem desassossego a humilhação denão ter sido escolhida para ser su-

periora da nova comunidade, nãoobstante fosse a fundadora». Masdepois de algum tempo, tambémpadre Guillaume Joseph Chamina-de, seu conselheiro e diretor espiri-tual, beatificado em 2000, se con-venceu de que Adélaïde era «a pes-soa destinada pelo céu a tornar-semadre desta nova família. Portanto,foi eleita superiora». Como tal vi-veu «com simplicidade e sem privi-légios». Ajoelhava-se frequentemen-te diante das irmãs, «pedindo per-dão pelas próprias omissões». Estacena, «gravada na memória e nocoração das irmãs — concluiu opurpurado — mostra a grandeza dasantidade evangélica de Adélaïde».

A 8 de junho padre Gustavo Gutiérrez Merino, teólogo peruano daordem dos pregadores e fundador da teologia da libertação, completounoventa anos. E efetivamente, intitula-se Teologia da libertação a suaobra mais conhecida, publicada em 1971, na qual aprofunda o tema dapobreza cristã, entendida quer como ato de solidariedade para com ospobres quer como libertação dos próprios pecados. Padre Gutiérrez,professor na universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, ensi-nou por um longo período na Pontifícia universidade do Peru e foiprofessor convidado em vários ateneus da América do Norte e da Eu-ropa. É membro da Academia peruana da língua, e em 1993 recebeu aLegião de Honra do governo francês. No passado dia 28 de maio, oPontífice enviou-lhe uma carta de bons votos para agradecer a contri-buição que deu «à Igreja e à humanidade», escreveu, «através do seuserviço teológico e do seu amor preferencial pelos pobres e pelos des-cartados da sociedade». A pobreza «nunca é uma só e sobretudo nun-ca é boa» explicou Gutiérrez numa entrevista publicada em L’O sserva-tore Romano de 11 de setembro de 2013.

página 16 L’OSSERVATORE ROMANO quinta-feira 14 de junho de 2018, número 24

Com uma exortação dirigida sobretudoaos jovens a não se contentarem com amediocridade, o Papa inaugurou naaudiência geral de quarta-feira, 13 dejunho, na praça de São Pedro, umnovo ciclo de catequeses, dedicado aosdez mandamentos.

Estimados irmãos e irmãs, bom dia!Hoje é a festa de Santo António dePádua. Quem de vós se chama An-tónio? Um aplauso a todos os “An-tónios”. Hoje começamos um novoitinerário de catequeses sobre o temados mandamentos. Os mandamentosda lei de Deus. Para o introduzir,inspiramo-nos no trecho que acaba-mos de ouvir: o encontro entre Jesuse um homem — é um jovem — que,de joelhos, lhe pergunta como podeherdar a vida eterna (cf. Mc 10, 17-21). E naquela pergunta há o desafiode cada existência, também da nos-sa: o desejo de uma vida plena, infi-nita. Mas como fazer para a alcan-çar? Que caminho percorrer? Viververdadeiramente, viver uma existên-cia nobre... Quantos jovens procu-ram “viver” e depois destroem-se, in-do atrás de coisas efémeras.

Alguns pensam que é melhor su-primir este impulso — o impulso deviver — porque é perigoso. Gostariade dizer, especialmente aos jovens: onosso pior inimigo não são os pro-blemas concretos, por mais sérios edramáticos que sejam: o maior peri-go da vida é um mau espírito deadaptação, que não é mansidão nemhumildade, mas mediocridade, pusila-nimidade.1 Um jovem medíocre temfuturo ou não? Não! Permanece ali,não cresce, não terá sucesso. A me-diocridade ou a pusilanimidade.Aqueles jovens que têm medo de tu-do: “Não, eu sou assim...”. Estes jo-vens não irão em frente. Mansidão,fortaleza e nenhuma pusilanimidade,nenhuma mediocridade. O BeatoPier Giorgio Frassati — que era umjovem — dizia que é preciso viver,não ir vivendo.2 Os medíocres vãovivendo. Viver com a força da vida.É necessário pedir ao Pai celeste pa-ra os jovens de hoje o dom da sau-dável inquietação. Mas em casa, nosvossos lares, em cada família, quan-do se vê um jovem sentado o dia in-teiro, às vezes a mãe e o pai pensam:“Mas ele está doente, tem algo”, elevam-no ao médico. A vida do jo-vem é ir em frente, ser desassossega-do, a saudável inquietação, a capaci-dade de não se contentar com umavida sem beleza, sem cor. Se os jo-vens não forem famintos de vida au-têntica, pergunto-me, que fim terá ahumanidade? Onde vai parar a hu-manidade com jovens quietos, e nãoinquietos?

A pergunta daquele homem doEvangelho que ouvimos ressoa den-tro de cada um de nós: como se en-contra a vida, a vida em abundância,a felicidade? Jesus responde: «Tu co-nheces os mandamentos» (v. 19), e citauma parte do Decálogo. É um pro-cesso pedagógico, com o qual Jesusquer orientar para um lugar específi-co; com efeito, da sua pergunta já é

claro que aquele homem não tem avida plena, procura mais, está in-quieto. Portanto, o que deve enten-der? Diz: «Mestre, «tenho observa-do tudo isto desde a minha mocida-de!» (v. 20).

Como se passa da mocidade para amaturidade? Quando se começa aaceitar os próprios limites. To r n a m o -nos adultos quando nos relativiza-mos e adquirimos a consciência da-quilo «que falta» (cf. v. 21). Este ho-mem é obrigado a reconhecer quetudo o que pode “fazer” não superaum “teto”, não vai além de umam a rg e m .

Como é bom ser homens e mulhe-res! Como é preciosa a nossa exis-tência! E no entanto, existe uma ver-dade que na história dos últimos sé-culos o homem rejeitou frequente-mente, com consequências trágicas:a verdade dos seus limites.

No Evangelho, Jesus diz algo quenos pode ajudar: «Não julgueis quevim abolir a Lei ou os Profetas. Nãovim para os abolir, mas sim para oslevar a cumprimento» (Mt 5, 17). OSenhor Jesus concede o cumprimen-to, Ele veio para isto. Aquele ho-mem devia chegar ao limiar de umsalto, onde se abre a possibilidadede deixar de viver de si mesmo, daspróprias obras, dos próprios bens e— precisamente porque falta a vidaplena — deixar tudo para seguir oS e n h o r. 3 Analisando bem, no convitefinal de Jesus — imenso, maravilhoso— não há a proposta da pobreza,mas da verdadeira riqueza: «Só tefalta uma coisa; vai, vende tudo o quetens e dá-o aos pobres, e terás um te-souro no céu. Depois, vem e segue-me!»(v. 21).

Quem, podendo escolher entreum original e uma cópia, escolheriaa cópia? Eis o desafio: encontrar ooriginal da vida, não a cópia. Jesusnão oferece sucedâneos, mas vidaverdadeira, amor v e rd a d e i ro , riquezaverdadeira! Como poderão os jovensseguir-nos na fé, se não nos viremescolher o original, se nos virem ha-bituados às meias-medidas? É desa-gradável encontrar cristãos media-nos, cristãos — permiti-me a palavra

das com Jesus, a fim de passar dasilusões da juventude para o tesouroque está no céu, caminhando atrásdele. Em cada uma daquelas leis,antigas e sábias, descobriremos aporta aberta pelo Pai que está noscéus para que o Senhor Jesus, que acruzou, nos conduza à vida verda-deira. A sua vida. A vida dos filhosde Deus!

1 Os Padres falam de pusilanimidade(oligopsychía). São João Damascenodefine-a como «o receio de realizaruma ação» (Exposição exata da fé or-todoxa, II, 15), e São João Clímacoacrescenta que «a pusilanimidade éuma disposição pueril, numa almaque já não é jovem» (A Escada, XX,1, 2).2 Cf. Carta a Isidoro Bonini, 27 defevereiro de 1925.3 «O olho foi criado para a luz, oouvido para os sons, cada coisa paraa sua finalidade, e o desejo da almapara se lançar rumo a Cristo» (Nico-lau Cabasilas, A vida em Cristo, II,90).4 Discurso à XXXVI C o n g re g a ç ã oGeral da Companhia de Jesus, 24 deoutubro de 2016: «Trata-se do “ma-gis”, do plus que leva Inácio a inau-

gurar processos, a acompanhá-los ea avaliar a sua real incidência na vi-da das pessoas, em matéria de fé, oude justiça, ou a misericórdia e cari-dade».

«Amanhã terá início o campeonatomundial de futebol, na Rússia», um«acontecimento que supera todas asfronteiras. Possa esta importantemanifestação desportiva tornar-seocasião de encontro, de diálogo e defraternidade», desejou o Papa,saudando os vários grupos presentes naaudiência geral.

Dirijo uma cordial saudação aos pe-regrinos de língua portuguesa, no-meadamente aos grupos brasileirosde Anápolis e Palotina, e aos nume-rosos fiéis de Lisboa e Porto, comdestaque para o «Colégio da Paz» ea «Confraria da Pedra». Para todos,peço a Deus o dom de uma sadiainquietude, de não vos contentardesjamais com uma vida sem ideal nembeleza. Apostai numa vida de jubilo-sa doação ao próximo. De bom gra-do vos abençoo, a vós e aos vossosentes queridos!

Amanhã terá início o CampeonatoMundial de Futebol, na Rússia. De-sejo transmitir a minha cordial sau-dação aos jogadores e aos organiza-dores, assim como a quantos segui-rem através dos meios de comunica-ção social este acontecimento quesupera todas as fronteiras. Possa estaimportante manifestação desportivatornar-se ocasião de encontro, dediálogo e de fraternidade entre dife-rentes culturas e religiões, favorecen-do a solidariedade e a paz entre asnações.

Dirijo um pensamento especialaos jovens, aos idosos, aos doentes eaos recém-casados. Hoje celebra-se amemória de Santo António de Pá-dua, Doutor da Igreja e Padroeirodos pobres. Ele vos ensine a belezado amor sincero e gratuito; somenteamando como Ele amou, ninguémao vosso redor se sentirá marginali-zado e, ao mesmo tempo, vós mes-mos sereis mais fortes nas provaçõesda vida.

Durante a audiência geral o Papa deu início a um ciclo de reflexões sobre os mandamentos

Não se contentar com a mediocridadeE pediu que o campeonato mundial de futebol na Rússia seja ocasião de encontro e diálogo

Com o Pontifício comitédas ciências históricas

Antes da audiência geral de quarta-feira, 13 de junho,num ambiente adjacente à sala Paulo VI o Papa saudou os participantes num congresso

promovido pelo Pontifício comité das ciências históricas

— “anões”; crescem até a umacerta estatura e depois não;cristãos com o coração reduzi-do, fechado. É desagradávelencontrar isto. É necessário oexemplo de alguém que meconvida a um “além”, a um“a c ré s c i m o ”, a crescer um pou-co. Santo Inácio denominava-o “magis”, «o fogo, o fervor daação, que desperta os sonolen-tos».4

O caminho do que faltapassa por aquilo que existe.Jesus não veio para abolir aLei ou os Profetas, mas paralevar a cumprimento. Deve-mos partir da realidade paradar o salto naquilo “que fal-ta”. Temos que sondar o ordi-nário para nos abrirmos aoe x t r a o rd i n á r i o .

Nestas catequeses pegare-mos nas duas tábuas de Moi-sés como cristãos, de mãos da-