Práticas Musicais Nos Espaços Religiosos

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA PRÁTICAS MUSICAIS NOS ESPAÇOS RELIGIOSOS: O PROTESTANTISMO HISTÓRICO EM CAMPINA GRANDE Daniel Ely Silva Barbosa CAMPINA GRANDE – PB AGOSTO DE 2009

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE CENTRO DE HUMANIDADES

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    PRTICAS MUSICAIS NOS ESPAOS RELIGIOSOS: O PROTESTANTISMO HISTRICO EM CAMPINA GRANDE

    Daniel Ely Silva Barbosa

    CAMPINA GRANDE PB AGOSTO DE 2009

  • DANIEL ELY SILVA BARBOSA

    PRTICAS MUSICAIS NOS ESPAOS RELIGIOSOS: O PROTESTANTISMO HISTRICO EM CAMPINA GRANDE

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria, do Centro de Humanidades da Universidade Federal de Campina Grande, como requisito parcial para obteno do Ttulo de Mestre em Histria, rea de Concentrao em Histria, Cultura e Sociedade Campina Grande, 2009.

    Orientador: Prof. Dr. Jos Otvio Aguiar

    CAMPINA GRANDE PB AGOSTO DE 2009

  • DANIEL ELY SILVA BARBOSA

    PRTICAS MUSICAIS NOS ESPAOS RELIGIOSOS: O PROTESTANTISMO HISTRICO EM CAMPINA GRANDE

    Avaliado em: ____ /_____/______.

    Conceito: ___________

    BANCA EXAMINADORA

    ________________________________________________-

    Prof. Dr. Jos Otvio Aguiar PPGH/UFCG Orientador

    ________________________________________________-

    Prof. Dr. Eli Brando da Silva UEPB Examinador Externo

    ________________________________________________-

    Prof. Dr. Iranilson Buriti de Oliveira PPGH/UFCG Examinador Interno

    ________________________________________________-

    Prof. Dr. Lemuel Dourado Guerra UFCG Suplente Externo

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    Prof. Dr. Gervcio Batista Aranha PPGH/UFCG Suplente Interno

  • Eu sei, Senhor, que no cabe ao homem determinar o seu caminho, nem ao que caminha o dirigir os seus passos (Jeremias 10:23)

  • Para minha me Eva Betania Silva Barbosa (in memorian)

  • AGRADECIMENTOS

    A DEUS que me concedeu o dom da vida, e por tudo que Ele fez, tem feito e far pela minha vida, e pela oportunidade que me concedeu de produzir este trabalho, em suma pela sua fidelidade. Soli Deo gloria!!!

    Aos meus pais, Eva Betania Silva Barbosa (in memorian) e Jailton dos Santos Barbosa por tudo que me proporcionaram ao longo de minha vida.

    A toda a minha famlia, em especial a minha tia Maria da Paz Silva, tia Dia, a minha irm Patrcia e seu marido Filipe, ao meu av Jeremias, a minha tia Zza, ao meu tio Jeremias Filho e sua famlia, e ao meu primo Jnior, o agora pastor Abrao Barbosa da Silva Jnior, por todo o apoio no que se diz respeito s fontes bibliogrficas, pois sem o seu auxlio parte da pesquisa no poderia ser realizada.

    Ao meu orientador o Prof. Dr. Jos Otvio Aguiar, orientador exemplar, por toda a pacincia e dedicao ao longo desta jornada, que contou, sobretudo com a sua erudio.

    Ao Prof. Dr. Eli Brando da Silva, profissional genial, pela disposio em aceitar examinar este trabalho, que contou tambm com a sua colaborao desde a minha graduao.

    Ao Prof. Dr. Iranilson Buriti de Oliveira, ser humano excepcional, por ter aceitado examinar este trabalho, e por todo o apoio, h um amigo que mais chegado que um irmo.

    Ao Prof. Dr. Lemuel Dourado Guerra por seu apoio desde o perodo de minha graduao e ao Prof. Dr. Gervcio Batista Aranha por tudo que me proporcionou em termos de conhecimento, especialmente no plano da teoria da histria.

    Aos professores do mestrado Gervcio, Marinalva, Lucinete, Iranilson, Jos Otvio, Regina Coelli, Nilda, Clarindo por todos os ensinamentos que me modificaram enquanto profissional, e ao professor Fbio Gutemberg (in memorian) pelo seu apoio, mesmo que por um breve perodo de convivncia, e aos seus esforos na concretizao do mestrado.

  • Aos meus professores do perodo da graduao na UEPB Babi, Elisa, Auriclia, Mrcio, Flvio e ao meu orientador da monografia Jefferson.

    Aos meus colegas de turma pelo companheirismo e pela amizade. No poderia deixar de destacar os nomes de Fernanda (simpatia), Slvia (bom humor), Paula (companheirismo), Pvula (doura e generosidade) e Helmara (amiga fiel, e que seu tornou uma irm para mim), foi presena de vocs que tornou este espao acadmico habitvel.

    A Luciano Peres, grande amigo, voc uma beno.

    A Catarina por todo o apoio, grande amiga.

    A Thiago, amigo desde o perodo de minha graduao.

    A Saminha por seu contagiante bom humor.

    A Eva Dzya por sempre acreditar em mim e me incentivar.

    Aos funcionrios do mestrado Maressa e Arnaldo por toda a disponibilidade.

    A todos os entrevistados pela colaborao.

    E a todos que contriburam de maneira direta ou indireta para a concluso deste trabalho. Serei sempre grato a todos!

  • RESUMO

    At meados da dcada de 1980 as igrejas ligadas ao protestantismo histrico da cidade de Campina Grande (presbiteriana, congregacional, batista e metodista) s permitiam a presena de hinos ou cnticos que tivessem a mesma paisagem sonora em seus cultos. Foi nesse perodo em que os grupos instrumentais de louvor, compostos por guitarra, contrabaixo (ou baixo), teclado e bateria, passaram gradativamente a participar dos ditos momentos de louvor com cnticos que ficaram popularmente conhecidos como corinhos. Com base neste indcio lanamos o seguinte problema: por que a introduo deste novo formato musical causou tanta inquietao nos participantes de tais comunidades eclesisticas, especialmente por parte do pblico mais idoso? Dividimos a pesquisa em trs captulos, onde analisamos num primeiro momento a msica evanglica tradicional e a msica evanglica contempornea, num segundo momento as letras de algumas canes e num terceiro momento um evento evanglico denominado Cantinho da Paz e a relao dos fiis com a mdia. Discutimos a temtica a partir do conceito de artes de fazer de CERTEAU (2003), da noo de herana de RICOEUR (1997) e do conceito de autonomia de CASTORIADIS (2007). Pela escassez de bibliografia especfica a histria oral foi um dos recursos metodolgicos para estudar esta histria local.

    Palavras-chave: MSICA, HISTRIA e PROTESTANTISMO.

  • ABSTRACT

    Until the middle of 80s years, churches linked to historic protestantism in the city of Campina Grande (presbyterian, congregational, baptist and methodist), allowed in their services only hymns or songs that had the same sounds landscape. During this period of time, instrumental worship groups, using guitar, bass, keyboard and drums, gradually began to take part of those worship moments with songs that became popularly known as corinhos. Based on this evidence we release the following problem: why the introduction of this new music format has caused so much anxiety in the participants of such ecclesiastical communities, especially by the older audience? We divided the search into three chapters, where we look at the first place the "traditional gospel music" and "contemporary gospel music", in second place the lyrics of some songs and in third place an evangelical event called "Cantinho da Paz" and the relationship of faithful people with the media. We discussed the theme from the concept of art to make of CERTEAU (2003), the concept of inheritance of RICOEUR (1997) and the concept of autonomy of CASTORIADIS (2007). By the scarcity of specific literature, the oral history was a methodological resource for studying the local history.

    Keywords: MUSIC, HISTORY and PROTESTANTISM.

  • SUMRIO

    Introduo.......................................................................................................................... 11

    I Captulo A emergncia de uma sonoridade............................................................... 20 1.1. A msica evanglica tradicional em Campina Grande................................................. 21 1.2. A msica evanglica contempornea em Campina Grande.......................................... 43

    II Captulo Alm do que os olhos podem ver: os cnticos........................................... 68 2.1. (Ser) afetado pelo passado: os hinos protestantes......................................................... 69 2.2. Renunciar a uma herana teolgica? Os corinhos......................................................... 83 2.3. Uma expresso de louvor: as msicas de mensagem................................................. 99

    III Captulo Por uma geografia das prticas musicais................................................ 110 3.1. Conexes urbanas: o Cantinho da Paz....................................................................... 111 3.2. Entre pastagens em mltiplos simulacros: os evanglicos e a mdia............................ 122

    Consideraes Finais.......................................................................................................... 136

    Fontes e Bibliografia.......................................................................................................... 141

  • INTRODUO

    Por percursos mltiplos a multido se enuncia, trilhas de encontro com o sagrado, rumor de uma lngua que produz sonoridades. Prticas comuns, maneiras de fazer, modos ou esquemas de ao que remetem a uma lgica operatria. Constantes resignificaes dos signos que vo ao seu encontro, no entanto, de performances operacionais relativas a saberes antigos, que remontam a tempos recuados, imemoriais inteligncias, tticas que apresentam rupturas e continuidades. Paisagem que se insinua como um quebra-cabeas o qual no temos acesso a todas as peas, mas, que nos chega atravs das (super)aes do caminhar de passos regulares ou ziguezagueantes de uma gesta ambulatria que se auto-apresenta e que nos interroga por intermdio da fora de seus procedimentos. Vozes e cantos de um lugar inexpugnvel, um no-lugar, s conhecvel atravs de seus contextos de uso, de seus atos de praticar, de seus modos de emprego, de seus usos cotidianos. Linguagem popular cujo sentido se pronuncia a voz baixa, uma vez que a experincia pertence ao outro, mas, cujos movimentos podem ser interpretados atravs de suas formalidades prticas, de suas maneiras de proceder, rvores de gestos. Modalidades de ao que jogam com os espaos, onde ao se inserirem e se apropriarem do sistema urbano, da geografia deste prprio, conferem novos significados a estes, tornando-os habitveis e respirveis. Poesias ignoradas de pedestres que circulam em sistemas cada vez mais amplos, e que fazem da aldeia global e dos simulacros produzidos pela mdia um espao para a leitura e consumo. Viajantes que vo caar em terras alheias, em textos que no escreveram. Lugares de fala com os quais no se conformam, antes produzem com, tecem lugares, fazem com, onde no processo de constituio de suas identidades e de sua paisagem sonora se relacionam com o mundo e com o sagrado, com este Verbum, com este Texto que no se cansam de re-ler.

    A partir da dcada de 1980 as igrejas ligadas ao protestantismo histrico da cidade de Campina Grande (presbiteriana, congregacional, batista e metodista) permitiram que os grupos instrumentais de louvor, compostos por guitarra, contrabaixo (ou baixo), teclado e bateria, participassem dos perodos de louvor e adorao com cnticos que ficaram popularmente conhecidos como corinhos. a emergncia nesta cidade, do que chamaremos de msica evanglica contempornea, expresso que tambm j foi utilizada por telogos a exemplo de Joe Jordan (JORDAN, 2006).

    At ento estas quatro denominaes s permitiam a utilizao do piano ou/e rgo para o acompanhamento dos hinos e cnticos que tivessem mais ou menos a mesma sonoridade. Formato musical este que denominaremos de msica evanglica tradicional,

  • que herdeiro das igrejas protestantes dos EUA e Europa, que iniciaram o processo de evangelizao no Brasil ao longo do sculo XIX. Tal modificao ocorreu mais ou menos no mesmo perodo em outras igrejas evanglicas do Brasil. Partindo deste indcio, formulamos o seguinte problema: por que a introduo deste novo formato musical causou tanta inquietao em tais comunidades eclesisticas, especialmente por parte das pessoas que tinham mais de cinqenta anos de idade?

    Para o desenvolvimento da temtica teremos como recorte temporal a periodicidade: do incio da dcada de 1980 dcada de 2000. O que suscita uma discusso sobre a histria do tempo presente.

    A preocupao com os problemas contemporneos fazia parte de muitos dos ttulos dos pais fundadores da escola dos Annales. Febvre j convidava o historiador a pensar os problemas do passado partindo de inquietaes do tempo presente, no qual o intelectual vive e produz (DOSSE, 2003).

    Marc Bloch no considerava a histria enquanto um saber que tratasse unicamente do passado e afirmava que o historiador partia do presente para construir sua narrativa sobre o passado. Fazendo com que a comunidade de historiadores refletisse sobre o seu ofcio (DOSSE, 2003). Bloch chegou a escrever que A incompreenso do passado nasce afinal da ignorncia do tempo presente (CHAUVEAU e TETART, 1999, 10).

    A terceira gerao dos Annales abandonou o econmico e a longa durao braudeliana em favor do cultural, embora considerando ainda as estruturas durveis. Em muitos casos tornaram-se especialistas num tempo imvel. Ignoravam o tempo presente e

    trabalhavam o simblico e cultural. Tudo isto por conta de uma histria cultural ainda com o nome de mentalidades. poca em que a revista passa por uma grande mudana, uma vez que a sua direo substituda. Dosse afirma que este tipo de histria nada mais do que uma histria que tomou emprestada uma roupagem etnolgica (DOSSE, 2003, 249).

    No final dos anos 1970 muitos historiadores dos Annales se concentraram nos fenmenos culturais, no entanto, com uma ausncia de estudos sobre o contemporneo, uma vez que boa parte desses acadmicos eram medievalistas e modernistas. Embora j houvessem rompido com a longa durao, ou seja, ainda no trabalhavam com o tempo presente, mas j haviam feito opo por uma micro-histria. Jacques Le Goff afirmava que a histria do tempo presente era muito mais freqentemente realizada por socilogos, politlogos e alguns jornalistas (CHAUVEAU e TETART, 1999).

    Cabe ressaltar que em meados da dcada de 1950 Ren Rmond realizava uma histria poltica do presente. Mas foi a criao do Instituto Histrico do Tempo Presente, em

  • 1978, que ajudou a comunidade acadmica a perceber que no apenas a temtica do poltico que deve ser fruto de estudos do tempo presente (CHAUVEAU e TETART, 1999).

    O impacto dos acontecimentos do Ps II Guerra e o aumento da quantidade de informaes produzidas pela mdia levaram muitos historiadores a se concentrarem nos acontecimentos contemporneos. Da as colees de bolso que surgem na dcada de 1980 na Frana: 1945 a nossos dias (CHAUVEAU e TETART, 1999, p. 17).

    Le Goff prope alguns problemas para os historiadores que desejam analisar o tempo presente, e dentre alguns pontos destacamos: Primeiro, at que periodicidade preciso retomar para compreender determinado acontecimento? Segundo, como manter um distanciamento de objetos que ainda esto em curso? Terceiro, de que maneira lidar com a imensido de fontes produzidas pela mdia?

    Quanto ao primeiro ponto tomaremos como exemplo a nossa pesquisa, que tem por finalidade analisar as prticas musicais do protestantismo histrico em Campina Grande - PB. Assim, para melhor nos aproximarmos das inquietaes de alguns fiis entendemos que deve ser levado em conta no s as particularidades do protestantismo na cidade, e no tempo presente, mas, a teologia e os cdigos culturais das referidas denominaes (presbiteriana, congregacional, batista e metodista) em temporalidades anteriores, nos EUA e na Europa, uma vez que so grupos religiosos que no surgem no Brasil e tm toda uma tradio, que foi e continua sendo resignificada ao longo dos anos, mas que tambm guardam permanncias.

    Para Ricoeur o ser agente e testemunha de sua historicidade, portanto devemos estar atentos para o fato de que somos afetados e afetamos a histria. Considerando que, apesar de reconhecermos a existncia de modificaes, a histria no feita apenas de rupturas, mas tambm de permanncias, muitas delas especialmente por meio da linguagem, onde o passado nos chega como uma herana. Vozes vindas do passado, e que nos alcanam, questes que discutiremos ao longo de nossa escrita (RICOEUR, 1997).

    J quanto ao segundo ponto Ren Rmond acredita, por sua vez, que o objetivo da histria observar as mudanas que ocorrem na sociedade e realizar anlises. Argumenta que ela tambm afetada pelas modificaes que ocorrem na sociedade, por isto: as geraes dos historiadores que se sucedem no se parecem (RMOND, 1996, 13).

    Chauveau e Ttart afirmam que o profissional de histria que se dedica a escrever sobre o contemporneo ao mesmo tempo: testemunha e historiador, e da mesma maneira que os profissionais que trabalham com outras temporalidades, tambm imprimem suas marcas em suas narrativas. Considerando que ele historiador/cidado, e, com isto, diante da sociedade, tem responsabilidades enquanto intelectual (CHAUVEAU e TETART, 1999).

  • Quanto ao terceiro ponto, lembremos que a imensido de informaes que a mdia produz, da mesma maneira que a questo ambiental so problemas que independentemente da ao ou indiferena da academia afetam a todos, de modo que todos estes cdigos culturais tm por objetivo formar identidades.

    Em nossa pesquisa, que trata de um tema do tempo presente, e analisa prticas musicais de grupos religiosos locais, a escassez de fontes uma das maiores dificuldades. Atualmente o segmento evanglico tem produzido livros em larga escala, mas tal produo , em sua maioria, de carter teolgico, as prticas destes sujeitos no aparecem nestas obras. Mesmo em mbito nacional muitos dos livros que surgem fazem uma teologia da msica, poucas obras se dedicam a evidenciar as aes destes fiis. E uma maneira de lidar com tal dificuldade, para produzir uma histria local, a partir da metodologia da histria oral.

    Para a escola histrica Metdica, dita positivista, o documento escrito era entendido como prova histrica. Ao longo do sculo XX novas perspectivas tericas desconstroem essa concepo, alegando a intencionalidade da produo de tal documento, que seria elaborado para legitimar uma histria a ser preservada, a das elites (PINSKY, 2005). A Primeira Gerao dos Annales j amplia a concepo que se tinha de documento:

    A histria faz-se com documentos escritos, sem dvida. Quando estes existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando no existem (...) (FEBVRE Apud LE GOFF, 2003, 530).

    Seria uma grande iluso imaginar que cada problema histrico corresponde a um tipo nico de documentos, especializado para este uso [...]. Que o historiador das religies se contentaria em consultar os tratados de teologia ou as escolhas de hinos? Ele sabe bem sobre as crenas e as sensibilidades mortas, as imagens pintadas ou esculpidas nas paredes dos santurios, a disposio das tumbas, tm pelo menos tanto para lhe dizer quanto muitos escritos (BLOCH Apud LE GOFF, 2003, 531).

    Por histria oral entende-se o procedimento metodolgico que tem por finalidade a construo documental a partir de narrativas que tratem de determinada temtica (ou temticas). So entrevistas gravadas onde os entrevistados (ou o entrevistado), mediados(s) pelo entrevistador, tecem as suas verses sobre certas temporalidades (DELGADO, 2006).

    Foi com o surgimento do gravador de fita em 1948 que desenvolveu-se a produo da histria oral. Nos EUA, muitas das entrevistas eram feitas com pessoas que tinham grande insero na vida poltica, econmica e social do pas. Na dcada de 1960 surge uma histria oral militante, que visava dar voz aos vencidos, para produzir uma histria vista de baixo, que se opunha a histria positivista do sculo XIX. Acreditavam que estavam produzindo uma histria dos vencidos, a partir dos depoimentos destes (PINSKY, 2005).

  • O historiador Carlo Ginzburg afirma que a cultura das classes populares predominantemente oral, e que as fontes escritas nos chegam atravs de filtros, pelo fato de estas fontes estarem abertamente ligadas cultura dominante. Ginzburg, no entanto, atesta que estes filtros e intermedirios deformadores no inutilizam a pesquisa pelo fato de esta no ser uma fonte direta (GINZBURG, 1987, 21).

    A disseminao e consolidao da histria oral propiciaram no s a possibilidade de se contemplar temticas do tempo presente, mas tambm trabalhar com novos objetos. Sem contar a utilizao de outros tipos de fontes, a exemplo de registros sonoros, fotografias, iconografias, filmes, etc., que esto cada vez mais sendo utilizadas (PINSKY, 2005).

    A histria oral trabalha com as memrias de um indivduo ou de um grupo, onde a entrevista, alm de conter o encaminhamento temtico proposto pelo entrevistador, se faz, das lembranas do entrevistado. Memrias que trabalham com o vivido, em particular com as experincias que afetaram o cotidiano dos seus participantes (MONTENEGRO, 2003).

    Um mesmo espao pode ter significados distintos para cada grupo. Schama alega que na Alemanha a floresta primitiva era o lugar da auto-afirmao tribal contra o Imprio Romano, enquanto que na Inglaterra o bosque verde era o local onde o rei ostentava o seu poder em suas caadas reais. Para Schama, em determinados grupos, algumas lembranas podem perdurar por sculos e moldar instituies com as quais convivemos (SCHAMA, 1996, 25). Enquanto isso, para Thompson, em sua obra Senhores e Caadores, estes mesmos bosques ingleses tinham, para famlias pobres de caadores, outros significados, uma vez que para eles era um espao do qual retiravam o seu sustento (THOMPSON, 1997).

    Tambm utilizaremos a noo de Ponto de Saturao de Daniel Bertaux, que alega que em certas pesquisas as narrativas dos entrevistados comeam a mencionar pontos em comum, momento em que mais algumas entrevistas devem ser feitas para se ter uma viso ampla da temtica (PINSKY, 2005). Questo que reconhece, em grande medida, que certos acontecimentos ultrapassam a memria individual, sendo compartilhados por um grupo.

    No decorrer de cada entrevista mltiplas temporalidades so agenciadas, a saber, o recorte temporal da temtica, que pode contemplar tanto os acontecimentos vivenciados pelo colaborador, quanto temporalidades de fatos que lhe foram contados. E tambm o tempo presente, no qual a entrevista realizada (DELGADO, 2006).

    Para alguns autores o predomnio da subjetividade do entrevistado, a aplicabilidade do mtodo apenas para temticas contemporneas, e a influncia do tempo imediato seriam alguns dos problemas que a histria oral enfrentaria.

  • H que se considerar que apesar da influncia do tempo imediato, a histria oral possibilita: novos campos e temas de pesquisa; por em evidncia memrias locais, comunitrias, religiosas, etc.; registrar verses alternativas s de outras fontes; e associar acontecimentos da vida privada com a vida pblica. Lembrando que cada entrevista deve ser confrontada com outras entrevistas, e, quando possvel, outras fontes (DELGADO, 2006).

    E aqui recordamos a legitimidade que Paul Ricoeur confere ao Lembra-te da tradio judaico-crist, no no sentido de obrigao de lembrar, mas de trabalho da memria (DOSSE, 2004, 152).

    Para Ricoeur, o nosso gosto por celebrar dirige-se geralmente para situaes que consideramos reverenciosas, j o horror seria o lado negativo da admirao, de modo que h acontecimentos que necessrio nunca esquecer, numa tica ltima das vtimas. Menciona ento o exemplo das vtimas de Auschwitz, onde o horror seria uma venerao invertida, de modo que h crimes que no devem ser esquecidos, e s a possibilidade de no esquecer pode possibilitar que estes no voltem. Portanto, um lembrar tico (RICOEUR, 1997).

    As rememoraes efetuadas pelas entrevistas so lembranas vivas que lutam contra o esquecimento. Depoimentos que passam a ser documentos/monumentos, fontes de imortalidade. Falas que deixam suas marcas (DELGADO, 2006).

    O primeiro captulo A emergncia de uma sonoridade foi dividido em dois momentos, onde problematizamos, num primeiro momento, o que denominamos de msica evanglica tradicional, e num segundo momento, a msica evanglica contempornea. Buscamos historicizar as prticas destes fiis, de modo que, partimos do geral para o particular, para assim entendermos o local em sua interao com o global, considerando, neste segundo momento, especialmente as narrativas destes praticantes. Neste sentido, realizamos uma histria cultural destas trajetrias.

    No segundo captulo Alm do que os olhos podem ver: os cnticos optamos por interpretar alguns cnticos evanglicos que selecionamos. Subdividimos o captulo em trs momentos, onde avaliamos, respectivamente: hinos (presentes em hinrios protestantes), cuja paisagem sonora chamaremos de msica evanglica tradicional; corinhos (a dita msica evanglica contempornea) e o que denominamos de msicas de mensagem, de modo a tentar perceber as principais modificaes ocorridas em tais cnticos evanglicos. Optamos por buscar analisar canes, argumentaes de telogos (e de autores de um modo geral) e relatos de alguns entrevistados, a fim de facilitarmos a compreenso de leitores que no tenham uma maior aproximao com a temtica do protestantismo, e tambm interpretar os discursos que construram um lugar.

  • No terceiro captulo Por uma geografia das prticas musicais inicialmente buscamos compreender as diversas prticas que conferiram existncia ao Cantinho da Paz, que um evento evanglico realizado na cidade de Campina Grande. Trabalhamos tambm algumas das particularidades do ponto de vista de estilos musicais do mesmo. Num segundo momento buscamos avaliar o papel da mdia na construo do repertrio das igrejas locais.

    A nossa escrita tornou-se uma caa s diversas temporalidades e espacialidades relacionadas s prticas musicais do protestantismo histrico. Considerando os diversos significados elaborados pelos agenciadores desta histria, os fiis.

    Para o desenvolvimento da temtica nos utilizamos de livros, jornais, revistas, sites de internet, hinrios, e depoimentos orais para compor nosso lugar de fala enquanto historiador. Para uma histria da msica em geral e da msica evanglica trabalharemos estudos de HUSTAD (1986), LOT (1993), MURADAS (2003), PAHLEN (1966), WANDERLEY (1977), HOBSBAWM (1996), NAPOLITANO (2002), ALBUQUERQUE Jr. (1999), KERR NETO (1995), ANDRADE (1944), FRIEDLANDER (2004), CUNHA (2007), NESTROVSKI (2007), dentre outros.

    No que diz respeito a terminologias, optamos por utilizar, durante o texto, a expresso protestantismo para fazer referncia s denominaes histricas, ou seja, os presbiterianos, os congregacionais, os batistas e os metodistas; j o termo evanglico estar sendo utilizado no sentido de abranger todas as denominaes do segmento evanglico, incluindo os pentecostais e neopentecostais.

    Utilizaremos o conceito de artes de fazer, do autor Michel de Certeau. Pois entendemos que o povo, que esta cultura ordinria, se apropria e reapropria dos espaos, investindo capital simblico na paisagem sonora que se l. Num fraseado de tticas de rupturas e permanncias. Considerando as estratgias institucionais (do status quo, das lideranas das igrejas) e as astcias deste outro (os fiis). Uma outra contribuio do autor seria a chamada Questo Indiscreta, tentando entender como as prticas cotidianas so operacionalizadas, em outras palavras Como se Cria?. E tambm o conceito de contextos de uso, para balizarmos as formalidades destas prticas (CERTEAU, 2003).

    Para pensarmos tal questo faremos uma ponte com o conceito de autonomia, do filsofo Cornlius Castoriadis. Que alega que o sujeito, perpassado pelo mundo, se auto-institui, no pela eliminao do outro, mas pela constituio ativa do Eu. Para Castoriadis toda elaborao humana criao, conforme sua lgica e suas normas, de modo que todo simbolismo se edifica sobre as runas dos edifcios simblicos precedentes..., pois, chegamos a um mundo j repleto de sonhos, de idias (CASTORIADIS, 2007, 147).

  • Um outro conceito que utilizaremos do autor Castoriadis o de heteronomia. Que seria quando uma pessoa ou comunidade considera determinadas regras, leis, significaes, etc., absolutas e imutveis (CASTORIADIS, 1988). Tomaremos como exemplo o protestantismo, que considera a Bblia regra de f para suas vidas e fundamento para suas crenas, de maneira que, baseados neste referencial, passam a conduzir seu cotidiano.

    Mas apesar de reconhecermos o potencial criativo da humanidade, considerando os objetivos de nossa pesquisa, para citar Paul Ricoeur, ressaltamos: minha convico, a saber, que o sujeito no o centro de tudo, que ele no o senhor de sentido. De maneira que, preciso se considerar tanto as aes do eu, quanto este Outro que lhe escapa, este Sagrado que nos precede e nos ultrapassa (RICOEUR Apud GAGNEBIN, 2006, 177).

    Para discutirmos esta relao utilizaremos da noo de herana do autor Paul Ricoeur, pois, preciso reconhecer que nunca somos totalmente inovadores, antes somos afetados pelo passado, e estamos tambm na condio de herdeiros (RICOEUR, 1997).

    Alm de mencionarmos os conceitos e contribuies dos tericos supramencionados julgamos relevante enfatizar nossa concepo acerca da escrita da histria.

    Nas ltimas trs dcadas alguns historiadores desejavam reduzir a historiografia retrica, de modo que a histria no diferiria de um romance. Apontavam para a impossibilidade das palavras representarem coisas. Argumentaes que almejavam em muitos casos dicotomizar as produes deste campo de saber entre o realismo e o nominalismo. Neste sentido a histria seria ento pura tropologia? Uma variao da fico? O real s existe pelo discurso? (GINZBURG, 2002; DOSSE, 2004).

    Com suas Historiai, Herdoto desejava apresentar sua pesquisa para que o tempo no apagasse os trabalhos dos homens e que as proezas dos gregos e brbaros no cassem no esquecimento. Hoje a tarefa do historiador transmitir tanto as textualidades do status quo privilegiados em diversas narrativas quanto outras memrias. Assim, pensamos a construo de nossa escrita sobre o passado a partir dos rastros deixados por ele. Tecendo falas desta presena ausente e da ausncia da presena, onde partindo dos indcios o pesquisador constri sua narrativa (GAGNEBIN, 2006).

    Para uma anlise da religio acreditamos ser produtivo avaliar tanto a exegese de textos teolgicos quanto as prticas desta cultura ordinria. Numa histria cultural destas prticas, em favor de uma abordagem interpretativa deste outro, onde a narrativa possa partir de mais de um ponto de vista, possibilitando interpretaes possveis. Na elaborao de uma retrica da alteridade. Utilizao do tropo para representar coisas? (BURKE, 1992).

  • Em nossa anlise no pretendemos reproduzir o passado, nem entendemos os atores sociais enquanto meras figuras retricas. Mas, a partir de um distanciamento apontamos para certo princpio de realidade, pois apesar das vrias opinies, as fontes apontaram para pontos em comum. Assim buscamos compreender as estratgias institucionais (das lideranas das igrejas) e as tticas deste outro, que tornam-se conhecveis a partir de suas formalidades prticas, de suas maneiras de proceder, de operar (GINZBURG, 2002; CERTEAU, 2007).

    Pretendemos realizar um dilogo entre teoria e empiria para analisarmos a relao que os fiis estabelecem entre tradio e resignificao, e a maneira como as tradies e os costumes so legitimados e agenciados pelas comunidades (CERTEAU, 2003).

    E se, para Castoriadis, a heteronomia instituda pela autonomia dos praticantes, entendemos que a experincia do ser inominvel, pois esta pertence ao outro, no cabendo ao acadmico qualquer possibilidade de explicao no sentido de verificao de um dado comprovvel. Mas, a partir da anlise das textualidades deste outro ausente de ns, desejamos propor interpretaes das formalidades prticas, desta gesta ambulatria, para que a partir de tais indcios contemplemos a fronteira entre o dizer e o fazer.

  • Captulo I

    A emergncia de uma sonoridade

  • 1.1. A msica evanglica tradicional em Campina Grande

    Uma gerao louvar as tuas obras outra gerao; e anunciar os teus atos poderosos (Salmo 145.4)

    Em suas primeiras dcadas de existncia a maior parte das igrejas evanglicas do Brasil adotava os chamados hinos tradicionais, que so, em grande medida, tradues de hinos estadunidenses e europeus. Esta caracterstica foi quase hegemnica desde o final do sculo XIX at a dcada de 1950 (KERR NETO, 1995) 1. Na cidade de Campina Grande o repertrio musical das igrejas ligadas ao protestantismo histrico seguiu estes mesmos critrios estticos at o incio da dcada de 1980.

    Tratava-se de um formato musical herdeiro do perodo da Reforma Protestante, que adota o cntico congregacional, ou seja, as msicas eram realizadas com a participao da congregao, cantadas em lngua verncula, entoadas em unssono (todos em uma s voz), ou em quatro vozes: o estilo coral (WANDERLEY, 1977).

    Convencionalmente os conjuntos corais podem ser agrupamentos de cantores amadores ou profissionais que cantem um repertrio popular ou erudito, podendo ser entoados sem o acompanhamento instrumental (a capela) ou com acompanhamento de instrumentos musicais. Os coros podem ser masculinos, femininos, ou mistos (PAHLEN, 1966).

    A forma mais usual que os corais adotavam era o cro misto, cujas vozes adotavam geralmente o seguinte padro: soprano (vozes femininas de registros agudos), contralto (vozes femininas de registros graves), tenor (vozes masculinas de registros agudos) e baixo (vozes masculinas de registros graves).

    Este sistema no uma regra, o coral pode adotar outras subdivises alm desses quatro registros, ou mesmo cantar em unssono (todos em uma s voz). O formato coral foi muito utilizado pelas igrejas protestantes (PAHLEN, 1966).

    Cabe esclarecer que durante a Idade Mdia o canto homofnico, todos entoam uma mesma linha sonora de declamao musical. Nas igrejas catlicas a msica era exercida por clrigos de forma profissionalizada, com certa mstica e posteriormente complexa polifonia vocal, que a execuo de duas ou mais melodias cantadas. O clero tinha a responsabilidade

    1 No Brasil a partir da dcada de 1820 protestantes luteranos e em seguida anglicanos j residiam no pas, o

    denominado protestantismo de imigrao (no qual os fiis tinham por finalidade realizar suas prticas religiosas). A primeira denominao do protestantismo de misso (no qual o missionrio vinha com o intuito de realizar efetivamente a obra evangelstica) foram os congregacionais (1855), seguidos pelos presbiterianos (1859), pelos metodistas (1867) e pelos batistas (1882). Os metodistas comearam seu trabalho evangelstico em 1835 e pararam em 1841, s retomando em 1867 (CSAR, 2000).

  • de entoar os Salmos, cabendo congregao o direito de entoar, durante a execuo das msicas, os Amns e Aleluias (WANDERLEY, 1977).

    Com a Reforma Protestante emergiu uma nova maneira teolgica de se pensar a relao do ser com a transcendncia, a partir da crena na Bblia como nica fonte para se conhecer a palavra de Deus (doutrina da infalibilidade nica da Bblia). A crena de que o justo viver pela f, que ser a pedra angular do luteranismo (doutrina da justificao pela f), e que todos os salvos em Cristo Jesus so santos, separados (doutrina do sacerdcio universal) (LUIZETTO, 1994). Entendimentos que passaram a ter uma influncia significativa para o protestantismo, da mesma forma que a existncia um novo formato musical, o cntico congregacional.

    No s a disponibilizao da Bblia, mas a elaborao de um hinrio para o povo alemo em lngua verncula, foram preocupaes e realizaes de Lutero, que tambm era msico (HUSTAD, 1986). O reformador alemo era instrumentista e compositor, cuidava do canto congregacional e incentivava o trabalho dos compositores, que se preocupavam cada vez mais com o desenvolvimento das tcnicas musicais nas igrejas (WANDERLEY, 1977).

    O conhecimento musical de Lutero se tornou um marco na msica protestante. As melodias sacras populares adotadas nas igrejas luteranas podiam ser cantadas por toda a comunidade, sendo o rgo o instrumento utilizado para o acompanhamento da igreja durante a realizao das canes (CARPEAUX, 1964).

    Observando estas prticas musicais luteranas o Bispo Myles Coverdale traduziu alguns hinos alemes para o ingls, utilizando-os juntamente com outros materiais litrgicos. Posteriormente abandonaram este padro musical e adotaram verses musicais para os Salmos Bblicos (os Salmos Metrificados), o coro, em suas igrejas, era empregado para orientar a congregao e tambm para apresentar canes especiais (HUSTAD, 1986).

    Para adotar uma postura contrria ao modelo catlico de culto, quando Calvino comeou a pregar e ensinar em Genebra, o culto era sem msica. Um sistema que diferia dos demais segmentos protestantes da poca (HUSTAD, 1986). Tal prerrogativa pode ser entendida tambm pela nfase Palavra de Deus enquanto elemento central do culto na tradio calvinista em seus primrdios (LEMBO, 2000).

    Calvino queixava-se do tom frio dos cultos de Genebra, mas, ao visitar Estrasburgo, se impressionou com as verses alems para os Salmos (tambm conhecidas por salmodias), cantadas pelas congregaes locais. Calvino, imediatamente, traduziu estes cnticos para o francs, e, ao retornar para sua congregao, os Salmos passaram a ser

    cantados pelos fiis em unssono (HUSTAD, 1986).

  • Na tradio calvinista, somente a palavra de Deus deveria ser cantada. Desejavam a simplicidade litrgica do cristianismo primitivo (LEMBO 2000, 56). Com o passar do tempo o cntico coral, em quatro vozes, foi inserido nos cultos das igrejas calvinistas, mas a nfase continua sendo o cntico congregacional, porm sem acompanhamento instrumental. Os calvinistas no desejavam ter em suas igrejas um coro de msicos profissionais executando obras complicadas (CARPEAUX, 1964).

    As fontes das melodias destes primeiros hinos protestantes foram desde cantos gregorianos at canes populares da poca (WANDERLEY, 1977). Muitos hinos luteranos utilizavam melodias folclricas alems 2 (HUSTAD, 1986).

    Apesar de toda uma tradio em torno dos Salmos, Calvino recorreu ao trabalho do compositor francs Loys Bourgeois, que adaptou as canes populares e antigos hinos latinos (COSTA, 2000, 59).

    Muitas melodias de canes protestantes foram baseadas em determinados estilos musicais vigentes e de perodos anteriores. No eram elementos desarticulados da cultura. Hustad entende que, para os fiis, era a letra dos cnticos que marcava o diferencial entre o sacro e o profano (HUSTAD, 1986).

    Rubem Alves entende que no mbito da religio coisas e prticas so batizadas como sagradas, que a humanidade que nomeia os smbolos, que se tornam sinais de uma teia invisvel de significaes. Assim coisas concretas so consideradas sagradas, a exemplo de um instrumento musical que apesar de poder ser feito por encomenda quando feito em srie, em uma fbrica, no tem necessariamente um pblico restrito a alcanar, de maneira que ter o uso que o praticante estabelecer. No existiria um piano sagrado ou um piano profano, a ao do ser que confere sentido ao gesto de realizar algo, onde os objetos/smbolos satisfazem s necessidades a que forem evocadas (ALVES, 2000).

    Alves alega que no mundo existem coisas que significam outras, as coisas/smbolo, que tm valor para uma pessoa ou um grupo, que podem ser passveis de critrios de verdade ou falsidade para..., e coisas que no significam outras, que significam-se a si mesmas, que no podem ser pensadas sob critrios de verdade ou falsidade, no entanto podem ser transformadas em smbolos. Sendo as palavras coisas/smbolos por excelncia. Uma obra de um artista original e nica, ela significa a si mesma, simplesmente ser. Haveria ento coisas que significam para..., e coisas que no significam para..., onde na esfera da religiosidade o universo estaria bipartido entre coisas sagradas (sacralizadas por seus

    2 Nos sculos XIV e XV desenvolve-se a cano popular secular alem (ANDRADE, 1944).

  • participantes) e coisas profanas (no sentido de serem no sagradas ou consideradas imprprias por...). No plano secular coisas seriam balizadas por critrios de utilidade, j no plano religioso o ser se envolve por critrios que transcendem a lgica da utilidade, numa relao de reverncia e respeito ao sagrado, que lhe superior, e objeto de adorao (ALVES, 2000).

    Para os participantes do protestantismo suas msicas estabeleciam uma ligao com um passado longnquo: a musicalidade do perodo do Novo Testamento. Perodo em que estes primeiros cristos adotavam um modelo de adorao livre, espontneo, no qual todos podiam participar durante as reunies. Formato musical de adorao congregacional que adotado pelas Igrejas Protestantes e que difere da Igreja Catlica, na qual apenas determinados membros do clero podiam entoar os Salmos, cabendo congregao o direito de entoar, os Amns e Aleluias (WANDERLEY, 1977).

    Poucos indcios nos esclarecem sobre detalhes das caractersticas musicais dos cultos que eram realizados pelas denominaes do protestantismo histrico em seus primeiros anos de existncia. Sabe-se que numa Inglaterra acostumada a cantar os Salmos, Benjamim Keatch, um membro da denominao batista, inaugurou um novo estilo, que Hustad chama de hino de composio humana. Este novo estilo de composio incorporava a possibilidade de se compor canes para adorao a Deus com base na experincia pessoal que o compositor tem com o sagrado, no utilizando necessariamente os trechos bblicos para expressar esse sentimento de adorao. Isaac Watts (1674-1748), ministro da denominao congregacional, vivenciou este perodo de transio e considerado por alguns autores enquanto: o pai da hinologia inglesa. Este novo formato de cnticos passou a florescer nas chamadas igrejas livres (batistas, congregacionais, etc.), grupos estes que se contrapunham a formalidade do formato dos cultos dos anglicanos e luteranos (HUSTAD, 1986).

    Ao longo do sculo XVIII alguns praticantes do protestantismo na Inglaterra desejavam o que muitos telogos chamam de avivamento espiritual, uma religio mais emotiva, menos formal, o que fez com que os jovens John e Charles Wesley se tornassem os fundadores do Metodismo. Assim como Lutero, no desejavam criar uma nova religio, mas realizar um reavivamento espiritual na Inglaterra anglicana (CARROLL, 1960).

    Nas Ilhas Britnicas, no sculo XVIII, os irmos Wesley produziram hinos evangelsticos com base na teologia do arminianismo. Esta teologia baseava-se na crena da graa irrestrita da salvao, que estaria disposio de todos, no apenas de um grupo de eleitos (predestinados) como entendia o calvinismo com a teologia da predestinao. Com a teologia arminiana os Wesley enfatizavam que os indivduos optam por dizerem um sim ou um no a Deus, ressaltando o livre arbtrio em suas canes (HUSTAD, 1986).

  • Para uma melhor compreenso destas mudanas musicais ocorridas no protestantismo, cabe ressaltar que as transformaes culturais europias no perodo de 1500 a 1800, no qual a msica popular aqui entendida no sentido de ser uma msica no estabelecida pela aristocracia, mas elaborada e partilhada em meio ao povo passa a se firmar como uma forte tradio na Europa. Se hoje falamos da existncia de uma cultura letrada e de uma cultura do povo, foi a aristocracia europia que durante os sculos XVI XVIII que construiu esta diferena. o momento em que a cultura tradicional estava desaparecendo e o povo (folk) se tornou fonte de interesse para os intelectuais que passam a ir s casas de artesos e camponeses para aprender canes e estrias partilhadas no seu cotidiano. Surgem ento os alicerces para os estudos do folclore, ou seja, a nomeao da existncia de certos artefatos culturais produzidos por uma determinada parcela da sociedade, neste sentido uma cultura popular, que se oporia a uma cultura erudita (BURKE, 1995).

    Thompson alega que os membros da aristocracia inglesa afirmavam que no eram iguais ao povo, por haverem recebido uma educao diferenciada da classe popular. Na Inglaterra, na dcada de 1790, houve uma marcha do intelecto; que desvalorizava a cultura comum, do povo, baseada na experincia. Mas apesar das referidas afirmaes o povo continuava sendo a fonte para os estudos do folclore ingls (THOMPSON, 1997, 31).

    Na Frana, em fins do sculo XVIII, ocorreu uma valorizao idealizada dos tempos mais antigos, de uma pretensa simplicidade e do campo em contraposio perigosa cidade (SIC!), o que Certeau chamou de entusiasmo pelo popular (CERTEAU, 1995).

    Mas, entre o perodo de 1500 a 1800 reformadores catlicos e protestantes empreenderam um grande esforo em reformar a cultura popular. Pois objetavam teologicamente contra muitos itens e muitas prticas da cultura popular e da religio popular, consideravam-nas reminiscncias pags. Para os protestantes um ponto crucial era a separao entre o sagrado e o profano, desejavam eliminar costumes tradicionais e se relacionar com novos elementos, a exemplo da Bblia, da doutrina (aprendida por intermdio do catecismo protestante) e da cultura dos sermes. Os sermes podiam durar horas, pois os pregadores (mesmo os leigos) eram muito hbeis em apresentaes orais (BURKE, 1995).

    Burke, por sua vez, entende que entre a cultura erudita e a cultura popular, havia um trfego de mo dupla, e que um determinado tema ia e voltava entre ambas s tradies. Os folhetos estavam entre a cultura letrada e a cultura oral. Ajudavam a propagar e alimentar esta tradio popular, embora a maior parte da cultura popular fosse transmitida pela oralidade. Burke alega que pelo fato de as mulheres serem menos letradas que os homens do referido perodo, elas tornaram-se guardis da tradio oral mais antiga. Melodias de canes

  • viajavam por toda a Europa, mesmo que suas letras originais fossem muito modificadas. Todos estavam envolvidos na transmisso da cultura popular. Pastores faziam e tocavam suas prprias gaitas de fole (BURKE, 1995, 115).

    Em meados do sculo XVIII vrias canes galesas tinham melodias inglesas. Williams de Pantycelyn, grande lder metodista e criador da moderna hinologia galesa compunha a maior parte de suas melodias com base em sucessos populares ingleses da poca. Surgem, a partir de ento, prmios e medalhas para composies musicais, ou seja, a promoo de msicas nacionais. Compositores passam a produzir msicas seculares, melodias para concertos, msicas para hinrios religiosos, de forma que, no sculo XIX, j existiam vrios livros de canes galesas. No sculo XIX o Pas de Gales passa a ser conhecido como a Terra das Canes, tornando-se posteriormente a terra dos corais. A inveno deste mito leva a construo de uma identidade nacional. O mais interessante saber que a partir deste momento a tradio musical galesa sempre lembrada como se fosse muito antiga, ou seja, elaborado um mito de ancianidade (HOBSBAWM, 2002, 84).

    No tocante ao protestantismo em suas vrias ramificaes, a construo de sua paisagem sonora foi operacionalizada no cotidiano desses fiis. Uma rede de agenciamento e resignificao dos elementos culturais que estes vivenciaram, produziu assim um novo artefato cultural: a sua musicalidade.

    Retomando a discusso acerca dos irmos Wesley, destacamos o fato de eles terem sido considerados por alguns autores como os precursores dos hinos evangelsticos modernos. E, aqui, falamos da construo de um novo paradigma musical. Os Wesley se basearam nas novas msicas dos Salmos, melodias de peras e canes folclricas de origem germnica para compor as melodias de seus hinos (HUSTAD, 1986, 129).

    Vemos, ento, que a partir do perodo dos irmos Wesley as melodias das canes protestantes, dos luteranos aos metodistas, passam a ter uma sonoridade que cada vez mais se identifica com as expresses da cultura musical europia vigente, e de perodos anteriores. Para estes fiis o objetivo central da adorao protestante ento a letra e no a melodia, nas palavras de Hustad: uma letra digna santifica a melodia secular (HUSTAD, 1986, 130).

    Melodias de cantigas folclricas seculares ou mesmo msicas comerciais foram resignificadas ao receberem letras religiosas, tornando-se hinos, prtica que Lutero denominou de mtodo de contrafao (BURKE, 1995). Um deslocamento que atribui a estas melodias um novo significado simblico, j que a letra destes hinos representa, para estes fiis, uma linguagem musical sacra de adorao a Deus. Tais caractersticas musicais tambm foram adotadas pelos protestantes que vo habitar a Amrica.

  • Os primeiros grupos protestantes a ocuparem o Novo Continente foram uns poucos huguenotes que se estabeleceram na regio da atual Flrida, a partir de 1562. Estabeleceram-se por um perodo de curta durao. Os huguenotes utilizaram o Saltrio Genebrino, um hinrio com cnticos dos Salmos (HUSTAD, 1986).

    Os protestantes que falavam ingls (anglicanos, presbiterianos, etc.) adotaram as mesmas caractersticas musicais de adorao de seus pases de origem. Utilizavam o Saltrio de Sternhold e Hopkins que trouxeram consigo (uma verso antiga da Inglaterra) e o Saltrio Ainsworth (produzido em Amsterd em 1612). Pela falta de livros de uma maneira geral, em muitos casos esses Salmos eram passados pela tradio oral.

    s a partir do sculo XVIII que rgos e coros tornam-se comuns na maior parte das igrejas protestantes norte-americanas. Quando surgem no pas as escolas de canto. Muitas funcionavam noite e os professores iam de cidade em cidade realizando este trabalho com as comunidades, construindo esta cultura musical.

    Em 1735 imigrantes alemes morvios chegam Gergia, indo posteriormente para a Pensilvnia, em 1740. Tinham uma cultura musical muito sofisticada, que j fazia parte de sua vida cotidiana, em sua terra natal. Trouxeram consigo hinrios, mas, tambm, fizeram composies e desenvolveram a msica instrumental com modestas orquestras, onde a msica fazia parte do trabalho, da recreao e dos momentos de adorao.

    Em 1762, nas treze colnias, novos livros de canes eram publicados com msicas adicionais para os Salmos, msicas de melodias folclricas de origem inglesa, hinos de Isaac Watts. William Billings comps hinos baseados em melodias folclricas elisabetanas, hoje conhecidas como espirituais brancos (HUSTAD, 1986).

    No sculo XVIII um movimento espiritual marca a vida religiosa das treze colnias, o grande despertar (great awakening). Um movimento de renovao espiritual que emergiu em meio a esta populao evanglica que desejava um avivamento em suas respectivas igrejas (KARNAL, 1990). O grande despertar foi vivenciado no s pelas lideranas religiosas das igrejas evanglicas, mas, especialmente, pelos fiis, que passam a ter um novo olhar no que diz respeito a sua religiosidade (HOBSBAWM, 1990).

    Este reavivamento tem incio com igrejas Holandesas Reformadas, na dcada de 1720, em Nova Jersey. Pouco tempo depois um movimento semelhante ocorreu em meio aos Presbiterianos escoceses-irlandeses no estado da Pennsylvania, e com os congregacionais na Nova Inglaterra, em 1734 (HUSTAD, 1986).

    Para alguns autores o grande despertar seria fruto dos sermes de ministros religiosos protestantes que provocaram na populao um sentimento de renovao e de

  • mudana. Entendemos, no entanto que um povo s deseja modificar suas tradies se estas mudanas forem compatveis com os seus anseios. Thompson afirma que os cristos comuns s aceitam da Igreja o tanto de doutrina que possa ser assimilado experincia dos pobres (THOMPSON apud BURKE, 1995, 87).

    Em meados do sculo XVIII, figuravam nos cultos protestantes, os Salmos metrificados e tambm msicas dos irmos John e Charles Wesley e George Whitefield, e os hinos de Isaac Watts. O pregador metodista George Whitefield, associado aos irmos Wesley, foi um dos percussores a sair em viagens pregando nas colnias na costa martima, sendo ouvido por multides (HUSTAD, 1986).

    A partir de 1800 inicia-se uma nova tradio, a dos acampamentos ao ar livre. Estes comeam com os presbiterianos da Virgnia e se intensificam com os batistas e metodistas, que se unem em acampamentos nos anos de 1800 e 1801. Em Caine Ridge, Condado de Logan, Estado do Kentucky, canes simples, emocionais, com muita repetio eram caractersticas dos acampamentos que ocorriam. Muitas das canes eram improvisadas e continham poucos refres.

    No sculo XIX as escolas de msica continuaram a ser populares, especialmente nas regies fronteirias do Sul e meio-oeste dos EUA. Os tradicionais livros retangulares de msica tiveram vrias edies. Lowell Mason (1792-1872) que estudou e viajou pela Europa, desenvolveu o primeiro programa de educao musical nas escolas pblicas da Nova Inglaterra (HUSTAD, 1986, 148).

    O sculo XIX foi tambm um perodo de integrao cultural entre afro-americanos e anglo-americanos de classes populares na Amrica do Norte. O principal elemento de integrao entre estes grupos foi msica. Para os EUA os escravos africanos trouxeram

    consigo alguns elementos musicais, dentre eles a complexidade rtmica, alguns instrumentos percussivos, outros meldicos (tipo o banjo), e caractersticas de suas formas de cantar, a exemplo da tcnica do canto e resposta. Culturalmente, a polifonia vocal e rtmica, e a improvisao constante so marcantes no seu estilo musical (HOBSBAWM, 1990).

    Os elementos anglo-saxes que influenciaram a musicalidade afro-americana foram a lngua inglesa, a religio e a msica religiosa. Baladas de escoceses e irlandeses pobres do Sul tambm contriburam para a musicalidade popular americana, sobretudo para a afro-americana no sculo XIX.

    A tradio musical francesa tambm influenciou a cultura musical afro-americana em algumas reas do pas, com suas bandas militares, instrumentos de sopro, e seu repertrio de marchas e valsas (HOBSBAWM, 1990).

  • Hustad afirma que nos cultos de reavivamentos protestantes negros e brancos adoravam juntos, e que ambas as culturas contriburam para este formato dos cnticos espontneos, os spirituals (HUSTAD, 1986). Por spiritual Hobsbawm entende: Msica vocal coletiva, criada pelos americanos no sculo XIX, de fundo religioso, cuja secularizao e individualizao propiciaram o surgimento do blues (HOBSBAWM, 1990, 308).

    interessante perceber que s aps a Guerra de Independncia que a msica afro-americana comea a se desenvolver em paralelo a msica anglo-americana. Momento em que afro-americanos adotam msicas mais emotivas, ao passo que os anglo-americanos diminuem seu interesse por este estilo, adotando, gradativamente formatos musicais mais parecidos com os cnticos do perodo do incio da Igreja Reformada, em outras palavras, cnticos mais formais (HUSTAD, 1986).

    Um dado interessante que muitos estudos acadmicos indicam que no perodo anterior a 1740, proporcionalmente poucos afro-americanos eram convertidos ao cristianismo na Amrica do Norte. a partir dos movimentos de avivamento que converses afro-americanas aumentam especialmente em igrejas metodistas, batistas e denominaes independentes (BACCHIOCCHI, 2000).

    No sculo XIX ocorreu o denominado Segundo Despertamento na costa leste do pas, sob a direo de Charles Grandson Finney, presbiteriano arminiano. Se nos sculos anteriores pregadores calvinistas (baseados na teologia da predestinao) realizavam trabalhos evangelsticos, a exemplo de Edwards e Whitefield; Finney tem sua nfase wesleyana (arminiana) no livre arbtrio (HUSTAD, 1986).

    A simplicidade da estrutura fsica dessas igrejas refletia o formato proposto por este avivamento espiritual. Contavam com um plpito central que ficava de frente para o auditrio, e bancos simples que eram instalados para os fiis da comunidade. Durante o transcorrer do culto a pregao deveria ser a atividade central da adorao (HUSTAD, 1986, 150).

    William B. Bradbury comea a compor hinos para Escola Dominical em 1840 3. Os hinos de Bradbury tinham harmonias simples, um inevitvel refro, e ritmos e melodias cativantes para a sociedade americana da poca. Destas msicas emergem os hinos evangelsticos ou as canes evangelsticas (HUSTAD, 1986).

    Hobsbawm atesta que a primeira mescla entre msica europia e africana ocorre com o Grande Despertar, um movimento que no ocorre por uma imposio de cima, pelas

    3 As EBDs, Escolas Bblicas Dominicais, so classes que ocorrem nas igrejas protestantes nos domingos de

    manh com o propsito de se estudar a Bblia. Seu incio na Inglaterra, em 1780, onde tambm foram ensinadas por muitas dcadas moral e tica (DANIEL, 2007).

  • lideranas das Igrejas Protestantes nos EUA, mas a partir de converses espontneas, vindas de baixo; e que teve grande adeso, notadamente, de trabalhadores pobres negros e brancos do pas (HOBSBAWM, 1990).

    Hobsbawm afirma que os spirituals se desenvolveram em paralelo ao jazz, e os spirituals e as canes de gospel que foram uma fonte inesgotvel para o jazz. De modo que gospel significaria: Literalmente, Evangelho. Na tradio musical norte-americana, a msica de igreja das congregaes negras, fruto da adaptao do hinrio protestante cultura musical afro-americana (HOBSBAWM, 1990, 307).

    Os estudos de Kip Lornell indicam que a popularizao do gospel nos Estados Unidos foi um processo acelerado, e que houve significativa sofisticao na msica gospel negra desde os anos 1950, considerando, sobretudo as estratgias de marketing empregadas. Diversos integrantes do mundo gospel acreditam que esta passou a ser no s uma msica religiosa, mas tambm uma fora da cultura negra estadunidense. Afirmaes que desejam marcar um espao identitrio para suas prticas. Para muitos afro-americanos gospel seria msica religiosa, mais especificamente msica religiosa negra (modo o qual empregaremos o termo em nossa pesquisa). Phil Petrie por sua vez alega que ao longo do sculo XX o termo gospel tambm passa a designar msica religiosa moderna ou Msica Contempornea de Igreja (Contemporany Church Music/CCM), notadamente ligadas ao segmento evanglico 4 (CUNHA, 2007, 29).

    Hobsbawm comenta que os membros das igrejas negras do interior e das cidades do Sul dos EUA ao passo que cantavam o gospel, no incluam em seu repertrio cotidiano as canes do blues secular, apesar de o gospel ter influenciado o blues e jazz. E se hoje os amantes do jazz moderno incluem no seu repertrio canes de trabalho e spirituals, muitos evanglicos que cantavam gospel no cantavam msicas seculares, provavelmente por conta

    da letra (HOBSBAWM, 1996). Retomando ao sculo XIX percebemos que no s a msica congregacional, mas os

    coros com canes destinadas a comunicar determinados contedos, e em muitos casos com mensagens evangelsticas, passam a fazer parte da cultura evanglica mundial. Charles Alexander (1867-1920) se especializou em reger coros e congregaes. Em reunies no Royal Albert Hall, em Londres, os cultos realizavam-se das duas s seis horas da tarde. A mensagem

    4 Atualmente o prmio Grammy possui a categoria gospel. Mais recentemente o prmio j se subdivide em

    outras categorias, que so: gospel rock, gospel pop/contemporneo, gospel sulista, country ou bluegrass, gospel soul tradicional, gospel soul contemporneo e coral gospel (CUNHA, 2007).

  • era pregada por cerca de quarenta e cinco minutos e o resto do tempo era utilizado para cnticos, com o auditrio pedindo um hino aps o outro (HUSTAD, 1986, 135).

    Alexander foi responsvel pela utilizao de mais uma inovao: o piano, ligado at ento apenas msica secular. O piano era utilizado nesse contexto no apenas para produzir melodias, mas, como um instrumento de percusso, pois, suas teclas ajudavam a marcar o ritmo dos cnticos mais alegres.

    Um outro padro de avivamento foi realizado por D. L. Moody, e seu solista e dirigente de cnticos Ira D. Sankey, em 1873. Moddy fez pregaes teologicamente menos sofisticadas que Finney, mas tinha uma capacidade de improvisar, que se tornou uma de suas caractersticas marcantes. Os cultos eram iniciados com cnticos e Sankey incorporava solos e nmeros de corais.

    Nos EUA, no incio do sculo XX em igrejas batistas, especialmente em zonas rurais, era comum a promoo de festas de msica sacra. Assim percebemos que a msica sempre desempenhou um importante papel em reunies de grupos evanglicos.

    A dcada de 1930 considerada por alguns autores como o perodo de apogeu dos quartetos masculinos tradicionais nos Estados Unidos. Este estilo musical vocal, muitas vezes sem acompanhamento de instrumentos (a capela), se tornou popular principalmente em igrejas de regies rurais do Sul dos Estados Unidos (HUSTAD, 1986).

    Os chamados conjuntos vocais so geralmente grupos como duos, tercetos, quartetos, quintetos, etc., cujas vozes dos componentes podem ser de qualquer registro, e com ou sem acompanhamento instrumental. A composio dos quartetos masculinos geralmente se caracteriza pelas seguintes vozes: primeiro tenor (voz de registros agudos), segundo tenor (voz de registros mdios agudos), bartono (voz de registros mdios graves) e baixo (voz de registros graves). Podendo tambm adotar outras subdivises (PAHLEN, 1966).

    Observamos que atualmente, no meio evanglico, a designao conjunto vocal remete a grupos cuja principal caracterstica a utilizao da voz. Embora um grupo possa ter acompanhamento de instrumentistas, e mesmo que estes instrumentistas sejam membros do grupo, ainda assim esse grupo considerado um conjunto vocal.

    Na dcada de 1940, nos EUA, eram realizadas nas noites de sbado reunies da MPC (Mocidade Para Cristo). Ocasies que combinavam entretenimento, comunho e desafio religioso. O formato das canes destas reunies era muito parecido com os cnticos evangelsticos, realizados nos acampamentos, no sculo XIX. Muitos hinos deste perodo tinham uma maior nfase no refro (HUSTAD, 1986, 138).

  • A partir da dcada de 1950 as cruzadas evangelsticas do pregador e evangelista Billy Graham passaram a ter notoriedade pela utilizao da mdia. Talentos evanglicos que provinham do show-business a exemplo de Jonny Cash e Norma Zimmer atraam tambm pessoas que no freqentam igrejas evanglicas (HUSTAD, 1986).

    Diversos cantores e cantoras que se tornaram famosos mundialmente tiveram suas razes em igrejas evanglicas. Muitos msicos comearam sua carreira musical em comunidades eclesisticas, cantando ou tocando msica gospel, a exemplo de Paul Howard (HOBSBAWM, 1990). Alguns nunca abandonaram sua f e continuaram participantes em suas comunidades, como foi o caso de Buddy Holly, que foi, durante a sua vida, engajado com as atividades da igreja em que participava (FRIEDLANDER, 2004).

    A influncia do gospel na msica secular um ponto muito comentado por diversos autores. No s o elemento musical, mas o comportamento e a forma de se expressar de muitos msicos foram inspirados no gospel. Elvis Presley atribua a sua performance no palco a vivncia que teve com grupos religiosos de gospel negro: Os pastores estavam em todos os lugares, pulavam em cima do piano, movendo-se de um lado para o outro... acho que aprendi isso com eles (FRIEDLANDER, 2004, 71).

    Hustad afirma que ao longo do sculo XX a sonoridade de algumas canes que so compostas no meio evanglico tem se tornado mais aceleradas. Alega tambm que a msica folclrica evanglica e o rock evanglico tiveram os seus primeiros passos na Inglaterra,

    sendo logo transportados para os EUA, isso no incio da dcada de 1960. Possivelmente, por msica folclrica evanglica entende os diversos estilos musicais de origens populares surgidos ao longo dos sculos XIX e XX (HUSTAD, 1986).

    Avaliando a influncia que a igreja evanglica teve historicamente na msica secular e a utilizao de estilos de msicas seculares com letras e melodias compostas por grupos evanglicos, vemos que o ato de partilhar culturas musicais entre diversos grupos sociais nunca foi uma exceo.

    Argumentamos at ento que com a Reforma protestante uma nova sonoridade musical foi criada e agenciada pelos fiis. Uma ruptura com a maneira como a msica era exercida pelos catlicos no referido perodo e uma elaborao de um novo conjunto de prticas musicais.

    Algo essencial na criao a constituio do novo, a emergncia de novas instituies e novas maneiras de se viver, e de viver estas novas instituies. Constituio ativa de um signo o qual um grupo ou uma comunidade (o social-histrico) lhe imputam um significado, por um ato arbitrrio (CASTORIADIS, 2007).

  • O mundo social constitudo/articulado em funo de um conjunto de significaes, de maneira que estas, uma vez institudas, formam um imaginrio efetivo, que criao incessante e indeterminada (social-histrica e psquica) de figuras/formas/imagens. Considerando o ser que interpreta discursos e que cria novas possibilidades. Assim, entendemos que no ser e por-ser emerge o social-histrico, que ruptura do ser e apario da alteridade, fluxo de perptua auto-alterao e resignificao, figura e logo espaamento do que ele torna visvel, um ser-assim (CASTORIADIS, 2007).

    Mas preciso estar atento para o fato que a existncia efetiva do social constituda em si pelo fora de si, ou seja, na relao com este outro, que j estava. Da a sua relao com os signos que j lhe antecedem. No necessariamente na eliminao do outro a exemplo das mudanas acontecidas na msica protestante e sim na re-elaborao destes discursos, onde o outro est sempre presente como alteridade e ipseidade do sujeito.

    A existncia social e histrica de um grupo coletivo e annimo engloba e insere cada sociedade e o seu fazer, a materializao de suas instituies, de uma histria feita e se fazendo. A existncia humana a existncia de muitos (CASTORIADIS, 2007, 130).

    No mundo social-histrico o que se nos apresenta est entrelaado com o simblico, mas no se esgota nele. As instituies no se reduzem a ele, mas funcionam a partir de uma rede simblica, de maneira que a escolha de um smbolo no aleatria. Num co-pertencer instrumentado pelos indivduos, esquema de valor para..., havendo signos em diferentes nveis, funcionando mediante a sua combinao. Permissveis conforme os seus usos possveis e indefinidos enquanto possibilidades de uso.

    O fazer/representar coletivo e annimo da sociedade s possvel pela instituio do legein (distinguir-escolher-estabelecer-juntar-contar-dizer) e da lgica identitria-conjuntista. Por isto cada sociedade um autmato diferente, onde cada significao um feixe indefinido de remisses a outra coisa, que tomam de emprstimo um fora de si. O legein existe e faz existir fazendo valer. Pois, no social-histrico o entendimento o poder de ligao segundo regras (Kant), de maneira que pensar segundo regras ou categorias fazer ser..., a partir de..., apropriado a..., com vistas a... (CASTORIADIS, 2007, 292).

    Todo este trajeto que realizamos at ento nos servir de suporte para melhor compreendermos a msica evanglica no Brasil, que em suas primeiras dcadas de existncia era composta principalmente pelos chamados hinos tradicionais. Formato musical que foi quase que hegemnico at a dcada de 1950 na maior parte das igrejas do pas, conforme j havamos mencionado anteriormente.

  • O primeiro hinrio em lngua portuguesa a desembarcar no Brasil (porm impresso na Inglaterra) foi trazido em 10 de maio de 1855 pelo casal de evangelistas congregacionais: Robert e Sarah Kalley. Este Hinrio identificado por Cardoso como o Salmos e Hinos Primitivo, cuja autoria de Sarah Kalley (CARDOSO, 2005).

    O casal Robert e Sarah Kalley foram alguns dos que implantaram o protestantismo de misso em Portugal e no Brasil. Seu trabalho evangelstico se iniciou na Ilha da Madeira, Portugal, na cidade de Funchal em 12 de outubro de 1838. Robert Kalley realizou obras filantrpicas, a saber, a medicina e a alfabetizao. Isto at 9 de agosto de 1846, quando por perseguio religiosa o casal precisa deixar Portugal, vindo ento para o Brasil.

    Trs meses aps a chegada do casal ao Brasil os hinos dos cultos matinais dominicais da denominao congregacional eram cantados em alemo e ingls. A classe de Estudos Bblicos Dominicais, a EBD, foi inicialmente conduzida em trs idiomas: portugus, alemo e ingls. O hinrio Salmos e Hinos teve sua primeira edio publicada no Brasil em 1861, contendo 50 hinos (CARDOSO, 2005).

    O autor Dlcio Costa afirma que da Tipografia Evanglica Batista, fundada em 1894, que surge o primeiro Cantor Cristo, que o primeiro hinrio elaborado pela denominao batista no Brasil, contendo trinta hinos de Salomo Ginsburg (COSTA, 1964). Bill Ichter assegura que por setenta e cinco anos o Cantor Cristo foi o nico hinrio dos batistas brasileiros (ICHTER, 1967, 74).

    Cardoso afirma que em 1896 Sarah Kalley esposa de Robert Kalley autorizou aos presbiterianos residentes no Brasil a utilizao do hinrio Salmos e Hinos (CARDOSO, 2005). Os presbiterianos e metodistas tambm elaboraram seus prprios hinrios, o Novo Cntico (hinrio presbiteriano) e o Hinrio Evanglico (hinrio metodista), que foram muito utilizados pelas respectivas denominaes.

    Por serem em sua maioria tradues de hinos estadunidenses e europeus houve reciprocidade na utilizao destas canes, que contavam em muitos casos com poucas variaes nas letras 5.

    Outros hinrios coexistiram no meio evanglico brasileiro em suas primeiras dcadas. O hinrio Coros Sacros cujo autor Arthur Lakschevitz (nascido na Letnia) teve muitos dos seus hinos cantados por coros de diversas igrejas evanglicas brasileiras. O referido hinrio possuiu, no entanto diversos colaboradores (ICHTER, 1967).

    5 A anlise de hinos e canes evanglicas ser realizada no 2 e 3 captulos.

  • Apesar de as igrejas evanglicas brasileiras serem herdeiras do formato musical da chamada liturgia livre do perodo dos avivamentos nos EUA, o planejamento e a formalidade do culto foram elementos culturais que os primeiros missionrios trouxeram consigo de seus pases de origem (HUSTAD, 1986).

    A espontaneidade no fazia parte da msica dos primrdios do protestantismo no Brasil. Antes a seriedade, o formalismo, embora a alegria, a convico e o fervor, estivessem presentes nas primeiras dcadas. Kerr Neto entende que, para os primeiros evanglicos ficou a impresso de que a boa msica crist era a msica estrangeira (KERR NETO, 1995, 41).

    Na cidade de Campina Grande - PB, a partir da dcada de 1920, uma nova geografia do espao marcada pela instrumentalizao de um novo lugar religioso de f: a emergncia das igrejas protestantes (CMARA, 1998).

    Foram iniciados em 15 de novembro de 1920 os trabalhos da denominao congregacional, em de maro de 1922 da denominao batista (CMARA, 1998), em 03 de abril de 1938 da denominao presbiteriana e no ano de 1980 da denominao Metodista. As quatro denominaes dentre outras igrejas evanglicas representaro para a cidade de Campina Grande uma nova possibilidade de vivncia do cristianismo. Mas, no que se refere nossa pesquisa nos interessaro as prticas religiosas do protestantismo histrico na Cidade, mais precisamente as prticas musicais destes fiis.

    O entrevistado Vandilson das Chagas de Moraes6 afirma que at fins da dcada de 1970 e o incio da dcada de 1980 os hinrios eram amplamente utilizados nas igrejas protestantes campinenses. E que, no momento dos cnticos, pianos e/ou rgos acompanhavam a congregao (MORAES, 2008).

    Na Primeira Igreja Batista de Campina Grande a utilizao de msicas do Cantor Cristo (hinrio batista), acompanhadas pela regncia do diretor de msica da igreja, eram bem presentes no ano de 1956, conforme atesta senhor Abner Jorge de Andrade, membro da igreja: ... naquela poca s se usavam as msicas do Cantor Cristo, com raras excees, mas depois houve uma mudana de hinrio, mas parece que esta mudana nunca foi bem aceita... 7 (ANDRADE, 2006).

    A Primeira Igreja Batista por sua vez possuiu um rgo de fole, movido a ar, que era gerado pela movimentao dos pedais, para assim sustentar as notas. Depois a igreja adquiriu

    6 O colaborador afirma que se converteu na igreja Assemblia de Deus, tendo ficado na mesma de 1978 at o ano

    de 1982. No ano de 1983 passou a freqentar a igreja Presbiteriana Centro, a qual participa at hoje, tendo atuado sempre na rea da msica cantando e tocando violo em grupos instrumentais. 7 O entrevistado j foi professor de Escola Bblica Dominical, membro do coral, mas nunca teve cargos de

    liderana na rea da msica. Quando menciona a mudana de hinrio o entrevistado refere-se entrada do HCC (Hinrio para o Culto Cristo) na dcada de 1990, assunto que contemplaremos posteriormente.

  • um rgo eletrnico, tambm movido a ar, mas que possua um motor, conforme atesta Jos Hilrio da Costa Filho8. J nos trabalhos evangelsticos realizados pela igreja nas dcadas de 1950 e 1960 era utilizado o acordeom de 80 baixos. O colaborador segue nos informando:

    Na igreja eu trabalhei muito com evangelismo nos cultos nas casas, nos cultos de evangelizao nas segundas-feiras, nas sextas-feiras. Com aquelas lmpadas que a gente levava, com alto-falantes que funcionavam com baterias de carro, baterias que davam apenas para uma hora, uma hora e meia e acabava a bateria. Os bancos nas frentes das casas. Era uma verdadeira festa... (COSTA FILHO, 2006).

    O entrevistado nos relata que para formao musical dos fiis, alm da presena e atuao dos missionrios estadunidenses (bem presentes na igreja at a dcada de 1980), esporadicamente eram convidados professores do Seminrio de Recife (PE), para efetuar na igreja o que o colaborador denomina de: mini-clnica de msica. Que geralmente tinham a durao de um fim de semana, no qual eram fornecidas igreja aulas de teoria musical, regncia, etc.9. Motivado pelas aulas de teoria musical e regncia, o entrevistado pde realizar mini-clnicas de msica em outras igrejas batistas de Campina Grande e do Serto paraibano.

    Um fato curioso referente aos primeiros anos de existncia da Primeira Igreja Batista relatado pelo senhor Joabe Correa Costa10. Quando perguntado acerca dos instrumentos que foram utilizados para acompanhar os hinos nas primeiras dcadas mesmo no tendo presenciado tais acontecimentos o entrevistado relata:

    Os instrumentos mudaram. Tem uma curiosidade que voc pode registrar: O primeiro pastor da igreja foi av de minha esposa, o Rev. Augusto Felipe Santiago. Ele tocava violino, mas foi proibido de tocar violino na igreja porque, poca, se considerava o violino um instrumento mundano. O prprio piano teve resistncia de ser introduzir na igreja por ser considerado um instrumento igualmente profano, que se usava muito nos cabars e nas noitadas. Hoje ns temos o prazer de tocar msicas acompanhadas por piano, violino, flauta, etc. e todos gostam muito. Essa fase foi superada. Os hinos tradicionais eram sempre acompanhados somente do rgo, e quando falo rgo no o teclado de hoje no, o rgo mesmo, com pedais e fole... (COSTA, 2006).

    8 O entrevistado comeou a participar da Primeira Igreja Batista no ano de 1952, quando chegou na cidade de

    Campina Grande, trabalhou em cargos de liderana e atuou tambm na rea da msica por um perodo de aproximadamente quinze anos nas dcadas de 1950 e 1960. 9 Diversas igrejas evanglicas realizaram as chamadas mini-clnicas de msica (mesmo que outras

    terminologias possam ser utilizadas para esta mesma prtica) para oferecer suporte tcnico na rea musical de suas igrejas. Nos ltimos anos tem sido muito comuns palestras sobre adorao que, de acordo com os fiis, teriam como objetivo central sugerir para os participantes quais as motivaes ideais para os momentos querem coletivos ou individuais de louvor a Deus. 10

    O entrevistado membro da Primeira Igreja Batista, e alm de ter trabalhado em cargos de liderana da igreja, tambm trabalhou e ainda trabalha na rea de msica da igreja tocando piano, ou eventualmente regendo.

  • O relato do colaborador demonstra que mesmo instrumentos como o violino11 e o piano, que tendem a no produzir sonoridades que sejam agressivas se comparados a uma guitarra ou uma bateria no eram permitidos por fiis que os consideravam imprprios para os momentos de culto. Assim vemos que, em uma comunidade, apesar de alguns participantes aspirarem pelo novo, outros se recusam a alterar suas prticas, noutras palavras, se posicionam diante da manuteno ou modificao de uma tradio.

    Apesar de muitas igrejas protestantes contarem com a presena de corais, estes no foram uma constante em todas as igrejas protestantes, conforme atesta a senhora Neide Soares do Nascimento Melo12, que assegura que, em dcadas anteriores, o repertrio musical das igrejas evanglicas do interior da Paraba que tinham um pequeno nmero de membros foram basicamente os cnticos dos hinrios, sendo geralmente o que a colaboradora denomina de um louvor tradicional (MELO, 2006).

    Em se tratando das igrejas evanglicas brasileiras observamos que no existe uma relao direta entre o nmero de membros e a existncia ou inexistncia de corais. Nas igrejas protestantes campinenses, a presena de corais foi marcante ao longo de sua histria. o que afirma o entrevistado Vamberto Lima13:

    Antigamente a presena de corais nas igrejas era mais forte, era mais valorizada, eu diria assim. Hoje em dia mais um mero componente no culto. Antigamente existia encontro de corais nas igrejas. Um coral ia visitar outro coral, no aniversrio de um coral de uma igreja reuniam-se outros corais. No teatro, por exemplo, havia encontro de corais. Corais realizavam determinada programao, de natal por exemplo. Hoje em dia existem, mas no exercem influncia (LIMA, 2008).

    Para o entrevistado, da mesma forma que os corais os cnticos dos hinrios tambm tm perdido espao nas igrejas protestantes:

    No mais como antigamente. As msicas dos hinrios eram mais valorizadas, mais cantadas, dentro da programao do culto havia trs ou quatro hinos. Hoje apenas um, pra no deixar de ter, mas em determinados eventos, em determinados cultos no se canta msicas do hinrio. Salvo rarssimas excees como algumas igrejas tradicionais que fazem questo de cantar msicas do hinrio (Ibidem).

    11 At o sculo XVII o violino era um instrumento desprezado, utilizado por mendigos, embriagados de tavernas

    e camponeses. a partir deste perodo que passa a ser considerado um instrumento nobre (CARPEAX, 1964). 12

    A entrevistada trabalhou muitos anos enquanto liderana da Sociedade Feminina Missionria na Igreja Batista de Bodocong, e j participa da mesma a mais de vinte anos. 13

    O entrevistado comeou a freqentar a Igreja Presbiteriana Centro no ano de 1987. Antes participava da igreja Congregacional do Calvrio. Sempre atuou na rea da msica cantando e regendo, tendo colaborado inclusive com diversas igrejas evanglicas da cidade.

  • Esta tem sido de fato uma caracterstica marcante nos depoimentos, pois todos os entrevistados afirmaram que ao passo que gradativamente a msica contempornea evanglica ganha espao nas igrejas, a dita msica tradicional tem sido menos presente14.

    No que diz respeito aos hinrios, identificamos que nas igrejas batistas de Campina Grande o novo Hinrio para o Culto Cristo, o HCC, no foi to bem aceito quanto o antigo hinrio, o Cantor Cristo. O HCC inserido na dcada de 1990, e em certo sentido uma reviso lingstica do Cantor Cristo, com o acrscimo de alguns hinos.

    Muitos membros de igrejas batistas na cidade de Campina Grande nutrem um sentimento muito especial pelo Cantor Cristo, conforme pudemos observar em diversos depoimentos. A senhora Maria do Socorro Alves Almeida15 nos relata:

    ... a gente usa muito o Hinrio para o Culto Cristo. Eu sinto muita falta do Cantor Cristo, pois algumas frases so diferentes, e o hinrio veio pra corrigir. Gosto muito do louvor da minha igreja, pois a gente ainda no deixou de ouvir as autenticas msicas do Cantor Cristo... (ALMEIDA, 2006).

    Se HCC no teve tanta aceitao em meio aos fiis das igrejas batistas de Campina Grande, o apego aos hinos do Cantor Cristo foi algo que pudemos identificar na fala de muitos entrevistados. Quer seja pelo seu formato esttico, pela sua histria na denominao batista brasileira, ou pelo contedo de suas letras, o Cantor Cristo por sua vez parece inclusive no receber qualquer forma de rejeio enquanto uma parte integrante da liturgia dos cultos das igrejas da denominao batista.

    O Prof. Eli Brando da Silva16 enuncia que para muitos participantes de igrejas batistas do Brasil o Cantor Cristo deixou de ser um hinrio e passou a figurar enquanto uma Bblia. Isto pelo fato de estes hinos terem sido praticamente por muito tempo o nico formato musical adotado nestas igrejas. Para o entrevistado, a denominao batista brasileira deveria ter no apenas um hinrio, mas diversos hinrios da mesma maneira que nos EUA onde sempre novos hinrios esto sendo lanados, de forma que a hindia batista brasileira pudesse ser mais ampla (SILVA, 2006).

    14 Considerando os depoimentos orais e as visitas que pudemos realizar em vrias igrejas evanglicas da cidade

    de Campina Grande - PB. 15

    A entrevistada membro da igreja Batista Memorial, situada no bairro do Cruzeiro. Canta em conjuntos musicais e tambm trabalha no ministrio de crianas da igreja, sendo inclusive diretora de msica do conjunto musical gape, que um conjunto coral que atua na igreja em que participa. 16

    O Prof. Dr. Eli Brando da Silva foi pastor da Primeira Igreja Batista de Campina Grande no perodo de 1986 a 1997. Atualmente professor titular do curso de Letras e da ps-graduao do mestrado em Letras e Interculturalidade da Universidade Estadual da Paraba UEPB. tambm Pr-Reitor Adjunto do Planejamento na instituio, e no atua mais como pastor em igrejas evanglicas.

  • Apesar de o seu formato esttico remeter ao modelo europeu tradicional protestante de musicalidade, o estilo coral tambm foi muito bem aceito ao longo da histria das igrejas protestantes de Campina Grande. Embora algumas igrejas no possuam corais, quer seja pela falta de regentes, ou pela escassez de pessoas para participarem do mesmo, o estilo coral foi bem presente na cidade. Um depoimento que nos chamou ateno foi o do senhor Abner Jorge de Andrade ao relatar acerca do coral da Primeira Igreja Batista:

    Houve vrios regentes, e eu participei sob a direo de vrios. Eu acho que eles faziam o melhor que podiam, acontece que eles utilizam gente que no tem condio pra cantar, e pra cantar precisa ter o dom. Muitas vezes eles esto preocupados com a questo de nmeros e utilizavam pessoas como eu, que nunca tiveram condies de cantar. Eram cantadas geralmente msicas do Cantor Cristo, agora havia mais unio, participavam os jovens, adultos, pessoas idosas, todos os segmentos da igreja, isto h uns trinta anos atrs. Depois vieram as divises, os velhos ficaram pra um canto e a mocidade ficou pra o outro, a surgiu certo desentendimento, e hoje so grupos isolados. Os jovens no querem participar com os velhos, os velhos tambm no os aceitam e geralmente se acham donos da verdade... (ANDRADE, 2006).

    Para o entrevistado, a questo numrica dos participantes do coral era uma preocupao das lideranas, de modo que, a seu ver a aptido para a msica deveria ser uma prerrogativa para os participantes do coral. Quando o entrevistado menciona as divises est fazendo referncia emergncia de novos corais, com faixas etrias distintas que passam a existir a partir no referido perodo. Caractersticas que evidenciam que era do interesse das lideranas integrarem vrios segmentos da igreja na rea da msica, mesmo que com grupos musicais com faixas etrias distintas. Lembrando que mencionamos anteriormente que a igreja sempre investiu no aprimoramento da tcnica musical dos fiis. interessante notar a nova cartografia da Igreja descrita pelo depoente, seu senso de autocrtica e seu interesse em que haja comunicao, para se entender/compreender a juventude da igreja.

    Para Muradas, os jovens, de uma maneira geral, tendem a no participar de coros por alguns motivos que podem ocorrer: repertrio antigo, disciplina rgida, muita formalidade. Por estes e outros motivos sugere que as igrejas optem pela existncia de corais com faixas etrias distintas (MURADAS, 2003, 63).

    Partindo de preocupaes teolgicas, Muradas entende que muitas igrejas evanglicas seguem uma liturgia sem question-la e muitos hinos e corinhos so incorporados aleatoriamente no culto, sendo a espontaneidade quebrada em nome da liturgia aprendida no seminrio. Alguns no abrem mo da partitura, do rgo e do piano, defendem os hinos e desprezam os corinhos. Segue afirmando que muitos regentes so formados com um

  • excessivo enfoque erudito e tendem a reger congregaes com uma formalidade que s vezes excede a muitos concertistas seculares. Prticas que no seu entender dificultariam a manifestao da adorao a Deus por parte da congregao (MURADAS, 2003).

    Os seminrios evanglicos desempenharam um papel fundamental na msica das igrejas do protestantismo histrico no Brasil, pois alm da formao de pastores j que muitos realizavam e realizam atribuies na rea da msica em suas igrejas os seminrios tambm formavam Ministros de Msica coordenavam diversos trabalhos musicais nas igrejas, conforme nos afirma o Prof. Eli Brando da Silva (SILVA, 2006).

    O Prof. Lemuel Dourado Guerra, que j foi regente do coral da Primeira Igreja Batista de Campina Grande, em entrevista comenta um pouco sobre o Curso de Msica Sacra do Seminrio Teolgico Batista do Norte do Brasil, localizado em Recife PE:

    Quando freqentei o seminrio, no final da dcada de 1980 e incio da dcada de 1990 o curso de msica do seminrio tinha um nvel de qualidade muito alta. Tinha-se uma preocupao em dar aos alunos uma formao geral, e ao mesmo tempo aprofundada, voc tinha de estudar para ser: regente, cantor, compositor e instrumentista. Esta era a idia que circulava naquele momento em que estudei msica no Seminrio Teolgico Batista do Norte do Brasil. Agora no sei bem como esto s coisas, nunca mais fui ao seminrio, e no estou acompanhando bem isto. A influncia que tive de meus professores foi que, embora houvesse uma concentrao na msica sacra, na msica para ser cantada nas igrejas evanglicas, e neste seminrio houvesse a influncia norte-americana e o direcionava para um tipo de msica vinda dos Estados Unidos, voc era convidado a desenvolver uma viso ampla e informada a respeito da cultura musical internacional. Este foi um momento de formao muito interessante, o que eu atravessei no seminrio (GUERRA, 2006) 7.

    Em entrevista o Prof. Eli Brando da Silva nos fornece sua avaliao acerca do Curso de Msica Sacra do seminrio:

    O seminrio na medida em que tem ministros nas igrejas sempre exerce sua influncia na formao social das igrejas. A influncia positiva a questo da qualidade musical, no trato com os instrumentos, da percepo musical, da educao musical em si, o gosto musical, a sensibilidade musical. O ponto negativo que o seminrio representa tambm uma mentalidade tambm norte-americana, uma mentalidade presa ao piano. A formao do seminrio era se tocar piano, e o piano j no um instrumento popular dentro da igreja contempornea, e isso d um corte cultural, pois os hinos tambm so hinos norte-americanos, ingleses, que no fazem parte da cultura brasileira (SILVA, 2006).

    7 O Prof. Dr. Lemuel Dourado Guerra cursou Msica Sacra no STBNB de Recife PE por um perodo de quatro

    anos. Sendo o perodo de durao do curso de cinco anos. Atualmente professor Adjunto III da Universidade Federal de Campina Grande e diretor do Centro de Humanidades da instituio.

  • Para o entrevistado a influncia positiva do seminrio seria a preocupao com o cultivo da tcnica e da percepo musical, j no que se diz respeito ao formato musical proposto enuncia que o seminrio estaria vinculado a uma concepo ligada ao piano.

    Mas, se muitas igrejas brasileiras possuam um Ministro de Msica para coordenar a rea musical de suas igrejas, outras contavam unicamente com a experincia de um membro da igreja que tivesse noes de msica. Alm dos corais e da tradio de se reger a congregao no momento dos cnticos, os quartetos, principalmente os masculinos, os conjuntos que cantam utilizando a diviso de vozes foram muito comuns nas igrejas protestantes paraibanas, conforme o colaborador Rui Fragoso da Silva17 (SILVA, 2006).

    O entrevistado Harlann Justo da Silva Vieira Santos18 nos afirma que tanto os corais, quanto o estilo musical de se cantar utilizando a diviso de vozes so caractersticas das denominaes ligadas ao protestantismo histrico, a exemplo das igrejas: batista, presbiteriana, metodista e congregacional. Para o colaborador, as denominaes mais recentes, que no remontam a esta tradio musical, no vem nenhum problema em adotar estilos musicais vigentes a msica evanglica contempornea enquanto prticas

    musicais de adorao em suas igrejas (SANTOS, 2006). Podemos observar que a msica protestante brasileira, em suas primeiras dcadas de

    existncia, no era uma expresso musical prpria da musicalidade brasileira, antes uma herana musical. Sonoridade esta trazida pelos primeiros missionrios e agenciada pelos fiis das igrejas protestantes brasileiras, que se identificaram com esta e autorizaram-na enquanto prticas musicais litrgicas. E aqui abrimos espao para algumas reflexes do terico Paul Ricoeur que sero centrais para nossa pesquisa.

    Ricoeur sugere que pensemos a histria e o tempo da histria pela via da mediao aberta, inacabada, numa trama de perspectivas cruzadas entre a expectativa do futuro, recepo do passado e vivncia do presen