PRÁTICAS ALIMENTARES (Marshall Sahlins e Mary Douglas)

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consoderações sobre as práticas alimentares, a partir de Marshall Sahlins e Mary Douglas.

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VANESSA MOREIRA DOS SANTOS

VANESSA MOREIRA DOS SANTOS

PRTICAS ALIMENTARES

Marshall Sahlins e Mary Douglas

Recife-PE

2012

PRTICAS ALIMENTARES

Marshall Sahlins e Mary Douglas

Vanessa Moreira dos Santos

Trabalho apresentado na disciplina de Histria e Teoria Antropolgica II, do Programa de Ps-Graduao em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para obteno de nota final.Recife PE

2012A antropologia tem dedicado ateno s prticas alimentares desde que Malinowski jogou luz importncia dos aspectos da produo, preparo e troca de comida na sociedade trobriandesa. Distinguir o ato alimentar - no qual o homem no se diferenciaria das outras espcies animais em relao nutrio - e o ato culinrio, prprio espcie humana, que capaz de cozinhar e combinar ingredientes, torna a comida uma categoria relevante, atravs da qual as sociedades constroem representaes sobre si e definem sua identidade em relao a outras.

De certa forma, o conhecimento sobre a alimentao est relacionado compreenso da diversidade dos costumes, mostrando o carter simblico que envolve as atividades humanas e como diferentes sociedades organizam de modo particular solues especficas para resolver problemas universais.

A anlise de hbitos alimentares pode ser associada a temas diversos, sobretudo com nfase na dimenso simblica dos alimentos, a qual est diluda nos seus sistemas de classificao, definindo a ordem do comestvel, as modalidades de aquisio, preparao, consumo e partilha, constituindo, assim, elementos significativos para se pensar a identidade social de seus consumidores.

O ato de comer especfico de cada sociedade e em torno da comensalidade construram-se inmeras regras que fazem parte de um sistema, j que alimentao no prtica isolada, mas integra um sistema simblico e relaciona-se com outros sistemas. Comer fundamental para a sobrevivncia, porm est cercado de tabus, interdies, prescries que fazem com que o impulso da fome, aspecto natural, s possa ser satisfeito observando-se as inmeras regras que delimitam a prtica alimentar. Cada cultura tem definido o que se pode e o que no se pode comer, alm das sanes para quem come alimentos proibidos. A alimentao uma atividade social complexa envolvendo outras pessoas na produo de alimentos, em seu preparo e, sobretudo, na prpria comensalidade, ocasio para se criar e manter formas ricas de sociabilidade em diferentes esferas da vida social, inclusive na dimenso do sagrado.

O ato de alimentar-se sempre mediado por regras dietticas, cujas origens e finalidades so mltiplas e so elaboradas a partir de diversas formas de saber, como o conhecimento cientfico, o senso comum, religies, que criam interdies para excluir do cardpio alimentos considerados culturalmente como nocivos.

Para Mary Douglas, no livroPureza e Perigo, os conceitos de poluio e de tabu, to frequentemente empregados para analisar o "pensamento primitivo", eram igualmente relevantes para a compreenso do cotidiano dos ocidentais, como dos outros. Na Inglaterra, assim como na frica, as crenas e as aes relacionadas pureza e impureza no so apenas questes de higiene. A higiene e a limpeza so um ritual que ajuda a criar ordem na vida das pessoas.

A antroploga inglesa parte da anlise dos textos do Levtico, um dos livros do Velho Testamento, para buscar aquelas que seriam as bases das interdies alimentares, como a proibio do consumo da carne de porco entre os judeus. Tal restrio seria expresso de um conjunto de valores da religio judaica dos quais fariam parte noes de santidade e de integridade, sendo consideradas de ordem simblica e no prtica ou utilitria. A partir dessas noes que os mandamentos sagrados classificam os animais que so bons para o consumo nesse caso, os ruminantes e de casco fendido tais como os carneiros e as cabras e os animais que no devem ser comidos. Nesse sentido, seria necessrio atentar no s para os animais considerados tabus, mas tambm para aqueles cujo consumo recomendado.

As grandes religies monotestas sempre se preocuparam em seus livros sagrados em estabelecer tabus alimentares delimitando o que os fiis podem ou no comer. Regras dietticas esto presentes na Bblia, no Levtico e no Deuteronmio, classificando os animais em puros e impuros, permitidos ou proibidos para consumo. Podem-se comer animais que tm unha fendida dividida em duas e que ruminam, como boi, ovelha, cabra; mas, so impuros e imprprios para o consumo aqueles que s apresentam uma dessas caractersticas, como camelo, lebre, porco, com a unha fendida e que no so ruminantes. Dos que vivem na gua so comestveis aqueles com barbatanas e escamas e imundos os que no tm essas duas caractersticas. Essas interdies, analisadas por Douglas, esto relacionadas ideia de santidade, de integridade. A raiz de santidade significa separar e estabelecer a ordem correta, fundada no sagrado. Os tabus alimentares visam separar alimentos cuja ingesto pode poluir quem os consome.

Para Douglas, a noo de poluio, de sujeira, no est relacionada a questes de higiene. As proibies do consumo de determinados alimentos no pretendem proteger o organismo biolgico, mas objetivam defender o organismo social dos membros de determinado grupo religioso, fixando suas identidades em contraponto s identidades de participantes de outros grupos religiosos.

O porco, portanto, considerado impuro para o consumo no por suas caractersticas ou hbitos, mas simplesmente porque ele foge classificao dos animais que so bons para o consumo segundo os mandamentos do Velho Testamento.

Essas regras dietticas no tm apenas carter prtico, fundado no conhecimento acerca das propriedades dos alimentos, mas fazem parte de um sistema simblico mais amplo, ancorado na ideia de sagrado, que estabelece fronteiras entre judeus e gentios.

Outro trabalho importante nesta rea Cultura e razo prtica do antroplogo norte-americano Marshall Sahlins, publicado em 1976 nos Estados Unidos, e no Brasil no final da mesma dcada, tendo sido reeditado em 2003. Em um dos captulos do livro denominado La pense bourgeoise - a sociedade ocidental enquanto cultura, h a discusso acerca do consumo de carne pelos norte-americanos.

Partindo da ideia de que nenhuma sociedade pode deixar de lado a manuteno biolgica da sua populao, Sahlins (2003:168) destaca que a cultura atua na escolha e classificao das formas possveis de sobrevivncia: "os homens no 'sobrevivem' simplesmente. Eles sobrevivem de uma maneira especfica. Eles se reproduzem como certos tipos de homens e mulheres, classes sociais e grupos, no como organismos biolgicos ou agregados de organismos." Os homens produzem objetos para sujeitos sociais especficos que possuem significados diversos em culturas diversas.

A pesquisa de Sahlins sobre consumo de carne refora a anlise da produo enquanto uma inteno cultural. Aps analisar as possibilidades e viabilidades de produo e comercializao de carne de gato, cachorro ou mesmo de cavalo, o antroplogo discute a recusa da sociedade norte-americana em consumir carne desses animais, ainda que a racionalidade econmica conferisse legitimidade. A produo de carne desses animais seria mais barata e nutricionalmente tambm so valorizados. Mas, a Amrica a terra do co sagrado. Fazendo uma analogia com a ndia, conhecida por ser a terra da vaca sagrada, - pas onde a populao no aceita a possibilidade de tornar a vaca um alimento- ele mostra que a lgica que est por trs da no comestibilidade de cachorros cultural. No a razo prtica que justifica esta escolha. Nos EUA reverbera-se a ideia de que o "co o melhor amigo do homem" e, portanto, inconcebvel o seu consumo, designando-se assim mais um tabu.

Sahlins nota tambm que h muitas nuances neste sistema classificatrio, estando o cachorro, a vaca e o cavalo em lugares distintos, onde a comestibilidade est inversamente relacionada com a humanidade. Quanto mais prximo do homem, menos comestvel. Trata-se de uma lgica simblica que define a demanda e no uma racionalidade econmica.

Comer carne bovina ou de cavalo, vestir seda ou jeans, tem mais implicaes do que as de ordem econmica, j que necessrio considerar o ethos simblico de cada povo. Os significados imbricados no consumo de determinados produtos, na comestibilidade, vo alm do referencial econmico e social, estando tambm na esfera da cultura e dos valores atribudos a determinados alimentos e produtos, de um modo geral. A produo para alm de prtica lgica de eficincia material, uma inteno cultural que privilegia o processo simblico e emana um quadro classificatrio imposto a toda cultura.

Tal abordagem refora a crtica de Marshall Sahlins ideia de que a cultura seja formulada por meio da atividade prtica e do interesse utilitrio. Para esse antroplogo, a cultura define a vida no por meio das presses materiais impostas pelo cotidiano, mas de um sistema simblico. Complementa essa concepo o argumento de Mary Douglas, de que as regras que constituem o sistema simblico so, em sua formulao, arbitrrias e possuem uma ntida inteno de disciplinar o comportamento humano.

Sahlins mostrou que h limites de intervenes da natureza na cultura e, nesse espectro, um determinado grupo tem possibilidade de muitas intenes racionais, sem mencionar as estratgias de produo que, ainda, podem ser inventadas a partir da diversidade de tcnicas existentes ou do exemplo das sociedades vizinhas ou, ainda, da negao de ambas.

Assim, na combinao de diferentes relaes com o meio e com outras culturas que as prticas culturais so criadas, sendo que dificilmente o conjunto valorizado por um grupo ser igual quele valorizado por outro.

luz dessas afirmaes, pode-se afirmar que nossos hbitos alimentares fazem parte de um sistema cultural repleto de smbolos, significados e classificaes, de modo que nenhum alimento est livre das associaes culturais que a sociedade lhes atribui. Nesse caminho, vale dizer que essas associaes determinam o que comestvel. Smbolos, significados, situaes, comportamentos e imagens que envolvem a alimentao podem ser analisados como um sistema de comunicao, no sentido de que comunicam sobre a sociedade que se pretende analisar.

Nas pesquisas de Mary Douglas e Marshall Sahlins, a ideia da comida enquanto cdigo e sistema de comunicao tambm est presente. Logo, as prticas alimentares podem ser analisadas como um cdigo complexo que permite compreender os mecanismos da sociedade qual pertence, da qual emerge e a qual lhe d sentido.

As escolhas alimentares, portanto, tambm expressam a posio de um indivduo na sociedade e a cozinha de um grupo a expresso de suas identidades. Mais que um ato de sobrevivncia comer um ato cultural e comunica muito sobre a sociedade que se deseja analisar, assim como a linguagem.

Sahlins(2003) sugere que as escolhas alimentares so feitas com base em outros elementos que vo bem alm do que seria considerado racional em termos prticos, nos remetendo a uma razo cultural. A definio do que ou no comestvel feita socialmente e culturalmente, a partir de fatores que passam tanto pelo material quanto pelo cultural.A partir de uma profunda crtica da viso marxista da economia como uma esfera autnoma da vida social visando a reproduo social, Sahlins elabora as bases para o rompimento definitivo com a dicotomia entre cultura e a razo prtica quando desenvolve a ideia de que o valor de uso dos objetos to social quanto o seu valor de troca, j que nenhum produto tem valor por si mesmo. A sociedade ocidental seria organizada em diferentes esferas distintas, sendo quea esfera econmica teria a tendncia a se sobrepor sobre todas as outras em virtude do carter racional de nossasescolhas. Esta viso utilitarista que v a razo prtica como fundamento das aes humanasacabouporgerarnascinciassociaisumatendnciaavero marxismo como a teoria explicativa da sociedade ocidental. Sahlins explora esta questo demonstrando que a relao entre a razo prticae a simbolizao no marxismo, relao esta diminuda por interpretaes parciais que geram uma imagem distorcida e etnocntrica da sociedademoderna, tambmapresentam,assimcomoastrocasprimitivas,umaformade simbolizao.Estasconclusessoimportantesparadimensionarmosa questo alimentar que sintetiza, ela mesma, os aspectos de materialidade e cultura a que serefere Sahlins. Assim como a identidade, a comida relacional e pode prestar-se a diferentes interpretaes. Dessa forma, as tradies alimentares so marcadas por mudanas constantes e so acionadas pelos grupos como expresso de identidade e como marcadores de fronteiras, revelando tambm as posies que os diferentes grupos ocupam em contextos relacionais.

Neste sentido, Sahlins comprovou que a comestibilidade da carne de boi e do porco, bem como o tabu na utilizao da carne de cachorro e cavalo nos EUA no so fatos originados das vantagens biolgicas, ecolgicas ou econmicas. A cultura americana est pautada na carne como principal alimento. Sua prpria estrutura de ocupao do espao e da natureza esta pautada neste axioma. Segundo este autor o consumo da carne nos EUA tem como base a impropriedade de comer animais que vivem conosco como nossos amigos. O significado, portanto, no est ligado s caractersticas intrnsecas do alimento.

A anlise de Douglas evidencia que por trs da aparente racionalidade das regras dietticas judaicas, encontra-se um complexo sistema simblico. nesse sentido que a antropologia submete interrogao a concepo ocidental de que atos humanos esto fundados em uma racionalidade s acessvel atravs do conhecimento formulado cientificamente. A anlise das regras dietticas judaicas, bem como de normas alimentares de outras religies, revela que seu fundamento no se encontra no materialismo mdico, mas essas regras constituem um sistema simblico dedicado a estabelecer padres normativos que tomam a comida como categoria relevante para estabelecer as identidades sociais de seus consumidores.

No basta ter acesso ao saber cientfico para modificar costumes alimentares, pois eles no esto fundados to somente na racionalidade humana. Esta certamente existe, mas convive tensamente com valores simblicos e com os prazeres propiciados pela comida, sejam eles gustativos, psicolgicos ou sociais, isto , provenientes das relaes criadas em torno das refeies. De fato, a humanidade come de tudo; inclusive a si prpria, como mostra a prtica do canibalismo. Neste caso, ingerir o corpo do outro pode representar uma maneira de t-lo simbolicamente perto de si e de superar a dor do luto e da perda.

procura do significado da alimentao na histria do homem, com a conseqente criao de uma cozinha "humana e humanizada", Catherine Perls (1979) prope uma distino entre o ato alimentar (no qual o homem no se distinguiria das outras espcies animais em relao nutrio) e o ato culinrio, prprio espcie humana (o homem o nico a cozinhar e combinar ingredientes).