Posfácio de Carta Ao Pai

4
POSFÁCIO DE CARTA AO PAI Posfácio Por Modesto Carone SOBRE A "CARTA AO PAI" Franz Kafka escreveu a Carta ao Pai (Brief an den Vater) em novembro de 1919, aos 36 anos de idade. Não deixa de ser surpreendente que o escritor, cinco anos antes de morrer, tenha decidido investir tanta energia num acerto de contas com o pai despótico. A surpresa aumenta quando se recorda que, a essa altura da vida, ele já era o autor maduro de algumas obras-primas da prosa universal, como A Metamorfose e O Processo. Nesse aspecto também é intrigante a motivação profunda que o leva, guiado por circunstâncias externas (como a desaprovação do pai ao seu terceiro e último projeto de casamento), a dar expressão pessoal direta a um tema que - nas suas próprias palavras - já havia transformado em substância literária. Leia-se o trecho da cana em que afirma ao pai: "Meus escritos tratavam de você, neles eu expunha as queixas que não podia fazer no seu peito''. Sabe-se que esta frase cortante tem amaciado as dificuldades da crítica biográfica, que nela costuma pinçar, com júbilo apressado, a via real de acesso ao conjunto da obra kafkiana. Evidentemente os resultados desses estudos são insatisfatórios, pois em geral não conseguem acompanhar o impulso de generalização da forma estética - obviedade que num artista consciente como Kafka merece muita atenção. Seja como for, entretanto, fica difícil, diante da Carta, fugir à consideração de que ela tem um fundamento histórico e existencial concreto e de que, com cautela e mediações, o documento pode ser lido não apenas como curiosidade pessoal e psicanalítica, mas também como explicitação de uma dedicatória ou direção da obra no seu todo; pois é comprovável que, em última instância, a ficção de Kafka passa pela figura do pai e do tirano para chegar à falta de liberdade objetiva do mundo administrado. Não é sem razão que Walter Benjamin, num ensaio de 1934 sobre Kafka, vê irmanados na sua obra pais e burocratas: ''O pai - diz Benjamin - é a figura que pune. A culpa o atrai, como atrai os funcionários da Justiça. Há muitos indícios de que o mundo dos funcionários e

description

Análise da Carta ao Pai de Kafka

Transcript of Posfácio de Carta Ao Pai

  • POSFCIO DE CARTA AO PAI

    Posfcio

    Por Modesto Carone

    SOBRE A "CARTA AO PAI"

    Franz Kafka escreveu a Carta ao Pai (Brief an den Vater) em novembro de 1919, aos 36 anos de idade. No deixa de ser surpreendente que o escritor, cinco anos antes de morrer, tenha decidido investir tanta energia num acerto de contas com o pai desptico. A surpresa aumenta quando se recorda que, a essa altura da vida, ele j era o autor maduro de algumas obras-primas da prosa universal, como A Metamorfose e O Processo. Nesse aspecto tambm intrigante a motivao profunda que o leva, guiado por circunstncias externas (como a desaprovao do pai ao seu terceiro e ltimo projeto de casamento), a dar expresso pessoal direta a um tema que - nas suas prprias palavras - j havia transformado em substncia literria. Leia-se o trecho da cana em que afirma ao pai: "Meus escritos tratavam de voc, neles eu expunha as queixas que no podia fazer no seu peito''. Sabe-se que esta frase cortante tem amaciado as dificuldades da crtica biogrfica, que nela costuma pinar, com jbilo apressado, a via real de acesso ao conjunto da obra kafkiana. Evidentemente os resultados desses estudos so insatisfatrios, pois em geral no conseguem acompanhar o impulso de generalizao da forma esttica - obviedade que num artista consciente como Kafka merece muita ateno. Seja como for, entretanto, fica difcil, diante da Carta, fugir considerao de que ela tem um fundamento histrico e existencial concreto e de que, com cautela e mediaes, o documento pode ser lido no apenas como curiosidade pessoal e psicanaltica, mas tambm como explicitao de uma dedicatria ou direo da obra no seu todo; pois comprovvel que, em ltima instncia, a fico de Kafka passa pela figura do pai e do tirano para chegar falta de liberdade objetiva do mundo administrado. No sem razo que Walter Benjamin, num ensaio de 1934 sobre Kafka, v irmanados na sua obra pais e burocratas: ''O pai - diz Benjamin - a figura que pune. A culpa o atrai, como atrai os funcionrios da Justia. H muitos indcios de que o mundo dos funcionrios e

  • o mundo dos pais so idnticos em Kafka. Essa semelhana no os honra. Ela feita de estupidez, degradao e imundcie''[1] prprio Kafka, alis, no deixa por menos quando, na anlise fina e feroz que faz do pai, diz ao self-made man Hermann Kafka, projeo do patriarca expressionista: "Da sua poltrona voc regia o mundo. Sua opinio era certa, todas as outras disparatadas, extravagantes (...) Voc assumia o que h de enigmtico em todos os tiranos, cujo direito est fundado no no pensamento, mas na prpria Pessoa''. Diante disso, negligncia no lembrar das autoridades intangveis e arbitrrias que infernam a vida de Joseph K. em O Processo, dos Klamm e Momus que minam, com desdm ou chicana, a segurana e a identidade de K. em O Castelo, do pai vingativo que condenaGeorg Bendemann morte por afogamento em O Veredicto, ou do famoso Pai Samsa que vai aniquilando, com bengaladas, bombardeio de mas e confinamento, a triste esperana de Gregor na sua sobrevivncia como inseto. (Por sinal que a palavra-chave Ungeziefer, inseto daninho, designao dada por Kafka ao heri de A Metamorfose, aparece duas vezes na Carta, proferida pelo pai.) No bastasse isso, vigoram nas relaes reais entre pai e filho, tematizadas na Carta, o desmando da lei especial que informa a parbola "Diante da Lei " (ncleo de significado do romance O Processo), o delrio persecutrio e o medo da destruio que atormentam o bicho-narrador de A Construo, o sentimento de vergonha que preside morte de Joseph K. e a segregao final de Um Artista da Fome. Sem necessidade de forar a nota, as analogias podem ser ampliadas, sobretudo a concorrncia de perseguio, culpa e malogro, que assola o remetente da carta e os protagonistas da obra. Mas por intermdio da extraordinria imagem do pai estendido sobre o mapa-mndi que Kafka consegue figurar na Carta tanto a falta de espao do filho oprimido quanto a violncia sem fronteiras da dominao. Diante de uma metfora to poderosa, talvez no seja descabido lembrar, neste posfcio, duas observaes feitas por Adorno, uma sobre o prprio Kafka, a outra de ordem mais geral. A primeira diz o seguinte: ''A origem social do indivduo revela-se no final como a fora que o aniquila. A obra de Kafka uma tentativa de absorv-la''. A segunda afirma que, quando algum mergulha em si mesmo, no encontra uma personalidade autnoma, desvinculada de momentos sociais, mas sim as marcas de sofrimento do mundo alienado.

    Transformado pelo pai em filho deste sculo, Kafka deu o passo adiante, prprio do artista, e se tornou um poeta (crtico) da alienao. No pouco para quem se considerava um fracasso. * * *

    Como foi dito, Kafka escreveu a Carta ao Pai em novembro de 1919. Tinha pouco mais de 36 anos de idade e nesse ms estava hospedado, para tratamento de sade, na penso Stdl, de Schelesen, pequena localidade situada ao norte de Praga. O pretexto imediato para a elaborao da ''carta-gigante'' (Riesenbrief, como o escritor certa vez a descreveu para Milena Jesensk) foi uma pergunta feita pouco tempo antes por Hermann Kafka, que queria saber por que o filho afirmava ter medo dele. A carta de fato comea com uma frase assim, mas o mvel principal foi certamente o estremecimento das relaes entre pai e filho em torno da tentativa (logo abandonada) de casamento de Kafka com Julie Wohryzek, filha de Eduard Wohryzek, sapateiro e zelador de sinagoga num subrbio de Praga. O escritor tinha conhecido Julie naquele mesmo ano em Schelesen, e o repdio da moa por parte de Hermann

  • Kafka (que a desqualificou como noiva sobretudo por sua condio social, inferior dos Kafka) provocou uma discusso movimentada com o filho. Foi nesse clima de rompimento que Kafka confabulou com a irm predileta Ottla e decidiu escrever a carta. Esta deveria ser enviada a Hermann Kafka ainda durante a estada do escritor em Schelesen: o objetivo manifesto era menos um desagravo do que uma tentativa de desanuviar o relacionamento tenso com o pai. Evidentemente nada disso aconteceu, em primeiro lugar porque - dado o tamanho da carta Kafka chegou ao fim da sua licena de sade em Schelesen sem t-la terminado (s acabou de escrev-la em Praga) e em segundo porque ela nunca foi entregue ao pai. Foi s no fim de novembro de 1919 que bateu o texto mquina (provavelmente na repartio onde trabalhava, em Praga), deixando, por algum motivo, a ltima pgina escrita mo. Os comentadores acham que Kafka no entregou a carta seja porque Ottla e a me - que seguramente a leram - desaconselharam o seu envio ao pai, seja porque o prprio escritor ps em dvida o sentido do empreendimento (provavelmente diante da auto-imagem problemtica que o texto constri), desistindo do ato final. De qualquer modo, durante o ano de 1920, Kafka ainda pensava em remet-la ao pai, conforme demonstra sua correspondncia com Milena, que, ao que tudo indica, teve acesso carta num dos encontros com o escritor na rota Viena Praga.[2]

    Foi Max Brod que, na sua biografia de Kafka de 1937, citou pela primeira vez vrias passagens do texto; mas, ao que parece por considerao pela famlia, hesitou em public-la na ntegra at 1950, quando ento incluiu a Carta ao Pai (o ttulo dele) nas ''Obras Reunidas'' do autor. um fato curioso a indeciso de Brod quanto ao lugar onde deveria situ-la no conjunto da obra. Finalmente decidiu incorpor-la obra literria de Kafka, embora sempre tenha insistido no seu carter de carta particular. De certa forma esses escrpulos se refletem na fortuna crtica da Carta, onde os estudos dedicados a ela vo desde o ensaio biogrfico e psicanaltico at as reflexes scio-histricas, passando tambm pelas anlises imanentes de texto, que analisam a linguagem, o modo de composio, o personagem-autor e o personagem-destinatrio como partes integrantes de uma obra literria tout court.[3]

    Quanto traduo, vale a pena dizer que ela procurou, dentro do possvel, reproduzir o timbre estilstico do original, marcado sobretudo pela frase lapidar, em que a firmeza do enunciado se alia preocupao obsessiva com o recorte das nuanas. Nesse sentido evitou-se, principalmente, segmentar o perodo longo, aqui muito freqente, na tentativa de conservar a tenso dialtica do texto, que se articula no avano e retomada dos temas, no processo de acumulao que no recua diante das repeties, nas constantes viradas de sentido no curso das sentenas e no embate permanente entre os pronomes eu e voc'', atores do drama retratado na Carta e cuja reiterao no Pde ser elidida sob pena de obscurecer o desenho da argumentao. Seguindo esse mesmo rumo, foram traduzidas com insistncia as partculas de preenchimento em que ' Prdiga a prosa de Kafka, uma vez que a faxina desse recheio (de resto natural em alemo) substituiria o carter eriado de uma dico intencionalmente superdeterminada por um embelezamento injustificado.

    O tradutor agradece a Roberto Schwarz os comentrios gerais sobre a primeira verso deste trabalho, bem como os esclarecimentos sobre vrias falas de cunho fortemente coloquial; a Boris Schnaiderman, a leitura atenta e

  • generosa e as sugestes para o texto final; a Luiz Meyer, as explicaes sobre termos religiosos contidos na Carta, e a Marilene Carone a reviso geral da traduo.

    [1] A traduo de Srgio Paulo Rouanet, in: Walter Benjamin, Obras

    Escolhidas, vol. l, Brasiliense, 1985, p. 130.

    [2] Cf. Hartmut Binder (org.), Kafka-Handbuch, vol. 2, Krner, Stuttgart, 1979, pp. 579 e segs. [3] Christoph Stlzl fez uma resenha competente dessas anlises, in Hartmut Binder, op. cit., pp. 519-539.