PORTO, C. M. (A física de Aristóteles)

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Revista Brasileira de Ensino de F´ ısica, v. 31, n. 4, 4601 (2009) www.sbfisica.org.br A f´ ısica de Arist´oteles: uma constru¸c˜ ao ingˆ enua? (Aristotle’s physics: a naive construct?) C.M. Porto 1 Departamento de F´ ısica, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Serop´ edica, RJ, Brasil Recebido em 15/7/2009; Aceito em 29/7/2009; Publicado em 18/2/2010 Neste trabalho fazemos uma apresenta¸ c˜ao resumida da f´ ısica de Aristot´ eles. Mostramos como a ciˆ encia aris- tot´ elica constitui um esfor¸co complexo de compreens˜ao racional da realidade material, perfeitamente integrada a um sistema de pensamento orgˆanico e abrangente. Procuramos mostrar, sobretudo, como os elementos da ısica e da cosmologia aristot´ elica decorrem tanto de pressupostos de car´ater filos´ofico quanto de observa¸ oes emp´ ıricas, pr´oprias da vivˆ encia humana correspondente `aquele momento hist´orico-cultural. Palavras-chave: ısica aristot´ elica, hist´oria da ciˆ encia, ciˆ encia aristot´ elica. In this work we make a brief exposition on Aristotle’s physics. We show how aristotelic science constitutes a complex effort towards a rational understanding of material reality, completely integrated to an organic and comprehensive thought. We intended to show, above all, how physical and cosmological aristotelic elements come from philosophical tenets as much as from empirical observations characteristic of human experience belonging to that historic-cultural moment. Keywords: Aristotelic physics, Aristotelic science, history of science. 1. Introdu¸c˜ ao Alguns cursos de Licenciatura em F´ ısica tˆ em adotado em suas grades curriculares disciplinas versando so- bre hist´oria da f´ ısica. Por vezes, o conte´ udo pro- gram´atico dessas disciplinas de car´ater hist´orico re- monta `as origens do pensamento cient´ ıfico, identificado preponderantemente na civiliza¸c˜ ao grega, quando o es- for¸co humano de compreens˜ao dos fenˆomenos naturais se desviou das explica¸c˜ oes de natureza m´ ıtica, para uma an´alise puramente racional desses fenˆomenos [1]. Consideramos que o estudo da hist´oria da f´ ısica ´ e, de fato, relevante na forma¸c˜ ao de professores desta ciˆ encia, na medida em que revela, atrav´ es da an´alise da experiˆ encia hist´orica concreta, as diversas etapas do processo de articula¸c˜ ao intelectual necess´aria `a forma¸c˜ ao dos conceitos cient´ ıficos. Essa consciˆ encia da complexidade do processo de elabora¸c˜ ao dos conceitos cient´ ıficos, f´ ısicos em particular, nos ajuda a compreen- dar os obst´aculos cognitivos frequentemente enfrenta- dos pelos estudantes em seu processo de aprendizagem. No entanto, a ado¸c˜ ao de abordagens evolutivas da ısica esbarra, em certa medida, na escassez de bi- bliografias nacionais que contenham esta perspectiva hist´orica, sobretudo no que se refere `as etapas de desen- volvimento do conhecimento anteriores ao nascimento da ciˆ encia moderna, muitas vezes negativamente valo- radas por interpreta¸ oes reducionistas da hist´oria da ciˆ encia, que nelas tendem a ver t˜ao somente mani- festa¸c˜ oes primitivas do entendimento humano. Pelo contr´ ario, a f´ ısica de Arist´oteles foi uma cons- tru¸c˜ ao te´orica complexa, profundamente integrada a um pensamento filos´ofico extremamente abrangente e elaborada a partir dos elementos emp´ ıricos fornecidos pela vivˆ encia humana mais imediata. A for¸ca inte- lectual desse pensamento, assentada sobretudo nessa abrangˆ encia e em um car´ater fortemente orgˆanico, garantiu-lhe a primazia como forma sistem´atica de co- nhecimento cient´ ıfico por cerca de dezoito s´ eculos. Esse trabalho visa, pois, exatamente, a fazer uma apresenta¸ ao resumida deste sistema racional de com- preens˜ ao do nosso mundo. Buscamos salientar princi- palmente sua articula¸c˜ ao l´ogica com os demais aspec- tos do pensamento de seu autor. Nesse sentido, inici- amos o trabalho por uma breve exposi¸c˜ ao da metaf´ ısica de Arist´oteles, com o prop´osito, sobretudo, de mostrar como os elementos de sua vis˜ao de mundo est˜ao anco- rados na unidade sistˆ emica de seu pensamento. Anali- samos nas se¸c˜ oes dois e trˆ es o problema filos´ofico pri- mordial da ontologia do ser, passando ao problema do movimento e da causalidade, os quais est˜ao inti- mamente associados ao primeiro. Passamos na se¸c˜ ao quatro `a apresenta¸ ao da cosmologia aristot´ elica, en- 1 E-mail: [email protected]. Copyright by the Sociedade Brasileira de F´ ısica. Printed in Brazil.

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A física de Aristóteles

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Revista Brasileira de Ensino de Fısica, v. 31, n. 4, 4601 (2009)www.sbfisica.org.br

A fısica de Aristoteles: uma construcao ingenua?(Aristotle’s physics: a naive construct?)

C.M. Porto1

Departamento de Fısica, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropedica, RJ, BrasilRecebido em 15/7/2009; Aceito em 29/7/2009; Publicado em 18/2/2010

Neste trabalho fazemos uma apresentacao resumida da fısica de Aristoteles. Mostramos como a ciencia aris-totelica constitui um esforco complexo de compreensao racional da realidade material, perfeitamente integradaa um sistema de pensamento organico e abrangente. Procuramos mostrar, sobretudo, como os elementos dafısica e da cosmologia aristotelica decorrem tanto de pressupostos de carater filosofico quanto de observacoesempıricas, proprias da vivencia humana correspondente aquele momento historico-cultural.Palavras-chave: fısica aristotelica, historia da ciencia, ciencia aristotelica.

In this work we make a brief exposition on Aristotle’s physics. We show how aristotelic science constitutesa complex effort towards a rational understanding of material reality, completely integrated to an organic andcomprehensive thought. We intended to show, above all, how physical and cosmological aristotelic elements comefrom philosophical tenets as much as from empirical observations characteristic of human experience belongingto that historic-cultural moment.Keywords: Aristotelic physics, Aristotelic science, history of science.

1. Introducao

Alguns cursos de Licenciatura em Fısica tem adotadoem suas grades curriculares disciplinas versando so-bre historia da fısica. Por vezes, o conteudo pro-gramatico dessas disciplinas de carater historico re-monta as origens do pensamento cientıfico, identificadopreponderantemente na civilizacao grega, quando o es-forco humano de compreensao dos fenomenos naturaisse desviou das explicacoes de natureza mıtica, para umaanalise puramente racional desses fenomenos [1].

Consideramos que o estudo da historia da fısicae, de fato, relevante na formacao de professores destaciencia, na medida em que revela, atraves da analiseda experiencia historica concreta, as diversas etapasdo processo de articulacao intelectual necessaria aformacao dos conceitos cientıficos. Essa consciencia dacomplexidade do processo de elaboracao dos conceitoscientıficos, fısicos em particular, nos ajuda a compreen-dar os obstaculos cognitivos frequentemente enfrenta-dos pelos estudantes em seu processo de aprendizagem.

No entanto, a adocao de abordagens evolutivas dafısica esbarra, em certa medida, na escassez de bi-bliografias nacionais que contenham esta perspectivahistorica, sobretudo no que se refere as etapas de desen-volvimento do conhecimento anteriores ao nascimentoda ciencia moderna, muitas vezes negativamente valo-

radas por interpretacoes reducionistas da historia daciencia, que nelas tendem a ver tao somente mani-festacoes primitivas do entendimento humano.

Pelo contrario, a fısica de Aristoteles foi uma cons-trucao teorica complexa, profundamente integrada aum pensamento filosofico extremamente abrangente eelaborada a partir dos elementos empıricos fornecidospela vivencia humana mais imediata. A forca inte-lectual desse pensamento, assentada sobretudo nessaabrangencia e em um carater fortemente organico,garantiu-lhe a primazia como forma sistematica de co-nhecimento cientıfico por cerca de dezoito seculos.

Esse trabalho visa, pois, exatamente, a fazer umaapresentacao resumida deste sistema racional de com-preensao do nosso mundo. Buscamos salientar princi-palmente sua articulacao logica com os demais aspec-tos do pensamento de seu autor. Nesse sentido, inici-amos o trabalho por uma breve exposicao da metafısicade Aristoteles, com o proposito, sobretudo, de mostrarcomo os elementos de sua visao de mundo estao anco-rados na unidade sistemica de seu pensamento. Anali-samos nas secoes dois e tres o problema filosofico pri-mordial da ontologia do ser, passando ao problemado movimento e da causalidade, os quais estao inti-mamente associados ao primeiro. Passamos na secaoquatro a apresentacao da cosmologia aristotelica, en-

1E-mail: [email protected].

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fatizando como o Cosmos grego derivava sua estru-tura tanto de pressupostos filosoficos abstratos quantode concepcoes diretamente extraıdas de percepcoesempıricas, em alguns casos muito proximas do sensocomum. Nas secoes cinco e seis passamos do proble-ma cosmologico a fısica do chamado mundo terrestre,com o conceito teleologico dos movimentos naturais e adinamica dos movimentos forcados. Por fim, na secaosete, fazemos uma sıntese sumaria das crıticas obje-tadas a Mecanica de Aristoteles, ate que, apos muitosseculos de prevalencia, a visao de mundo aristotelicafosse substituıda por uma nova ciencia, em um processode transformacao vertiginoso, desencadeado pela revo-lucao astronomica do copernicanismo.

2. Os elementos da metafısica de Aris-toteles

Os gregos legaram a civilizacao ocidental uma reflexaoa respeito dos aspectos essenciais do pensamento. Afilosofia grega, inicialmente dirigida a realidade mate-rial a nossa volta, evoluiu para uma analise do proprioato do pensamento e de seu objeto. Todo pensamento,antes de mais nada, se refere a alguma coisa. Essacoisa possui suas caracterısticas, ou seja, e de uma de-terminada maneira. Porem, acima das diferencas queas coisas apresentam esta a ideia de que elas sao algo,isto e, esta o conceito de ser. Assim, na medida em quetudo o que e pensado antes de mais nada e, dizemosque o objeto primordial do pensamento e o ser, em suageneralidade.

Colocados entao diante da problematica do ser,os gregos defrontaram-se com uma duvida estrutural:como algo que e pode deixar de ser? Em outraspalavras, como explicar o movimento, entendido aqui,de forma mais ampla do que o simples deslocamentofısico, como mudanca e transformacao? Para este con-flito entre a estabilidade e a permanencia inerentes aoconceito de ser e a constatacao empırica da abrangentemutabilidade a nossa volta, os gregos conceberam ini-cialmente duas respostas fundamentais para o pro-blema: a da escola heraclitiana, que afirmava a na-tureza perpetuamente mutavel da realidade, e, por con-seguinte, a inexistencia do ser dotado de atributos defixidez, e a eleatica, para quem o ser permanece sempreidentico a si mesmo e, portanto, de forma ousada, ne-gava a realidade do movimento, em sua impossibilidadelogica, reduzindo-o a pura ilusao.

Aristoteles formulou uma outra solucao para esteconflito entre a estabilidade do conceito do ser,necessaria a sua inteligibilidade, e o dado empıricoda existencia do movimento, atraves das nocoes deser em potencia e ser em ato. Uma semente de umdeterminado vegetal nao ira se transformar aleatoria-mente em qualquer outra especie de vegetal, mas exa-tamente naquela da qual e semente. Diremos, pois,que na semente nao temos atualmente o vegetal plena-

mente desenvolvido, mas uma forma latente dele, queAristoteles denominou um modo de ser em potencia.Sua evolucao (movimento) sera caracterizada, entao,pela passagem do modo de ser em potencia ao serrealizado, ou seja, ao que ele chamou de ser em ato.Em outras palavras, existe na semente um elemento decausalidade, definido por sua essencia, que determinarasua evolucao. Podemos, portanto, identificar durantetoda a evolucao (movimento) que se da uma identidadesubjacente que permanece. Assim sendo, as nocoes deser em potencia e ser em ato conferem ao conceito de seruma natureza dinamica, que, no entanto, ao preservaruma identidade ontologica, permanece inteligıvel. Asmudancas que ocorrem no mundo a nossa volta, e saopercebidas pelos nossos sentidos, sao, por conseguinte,conciliaveis com o conceito de ser.

Segundo Aristoteles, todo ser perceptıvel atravesdos sentidos e constituıdo de alguma materia. No en-tanto, somente a nocao de que e constituıdo por algonao define este ser. Cada ser possui determinadas ca-racterısticas, e desta ou daquela maneira, possui umaforma, que e tambem um princıpio determinante desseser. Logo, para Aristoteles, todos os seres sensıveis saoformados pela composicao de materia e forma.

A materia e, em princıpio, indefinida, podendo assu-mir diferentes formas. Devido a esta completa “disponi-bilidade” a adquirir a forma que seja, para Aristoteles amateria sera puro estado de potencia, e, onde ela estiverpresente, introduzira um elemento de potencia, isto e,uma mutabilidade intrınseca ao ser em cuja composicaoentra:

Nao ha nada que seja corruptıvel poracidente. O acidente, na verdade, e aquiloque pode nao ser; a corruptibilidade, aocontrario, resulta das propriedades que per-tencem necessariamente as coisas onde estacorruptibilidade existe; senao, uma mesmacoisa poderia ser tanto corruptıvel, quantoincorruptıvel, desde que aquilo pelo qualela seja corruptıvel acontecesse nao existirnela. E preciso que em cada uma das coisascorruptıveis, a substancia mesmo seja cor-ruptıvel, ou que a corruptibilidade exista nasubstancia. [2]

Esta corruptibilidade e um elemento verificavel emtodas as coisas que pertencem ao nosso mundo terrestre.No entanto, o pensamento aristotelico considerava oscorpos celestes imutaveis em sua natureza. Considera-va que apenas sofressem deslocamentos fısicos, que emnada alteravam sua essencia. Tal consideracao tinhasua origem na propria vivencia dos homens, que sempreviram o ceu da mesma maneira. Deste modo, nada maisnatural do que lhe atribuir um carater de imutabili-dade, radicalmente oposta ao fluxo incessante de trans-formacoes a que estao submetidos os objetos no domınioterrestre.

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(...) o primeiro corpo de todos (isto e, amateria celeste) e eterno, nao sofre aumen-tos nem diminuicoess, mas e eterno, inal-teravel e impassıvel. Tambem penso que atese confirma a experiencia e e confirmadapor ela.(..) A verdade disso e tambem evi-dente na prova dos sentidos, pelo menos osuficiente para garantir o assentimento dafe humana; pois ao longo do tempo pas-sado, de acordo com os registros transmi-tidos de geracao para geracao, nao encon-tramos vestıgios de mudanca nem no con-junto do ceu nem em nenhuma de suaspartes. [3]

Assim sendo, se, para Aristoteles, a materia eraa fonte intrınseca da mutabilidade (potencialidade)presente na realidade sensıvel terrestre, a materia deque seriam feitos os corpos celestes nao poderia ser amesma, dado que estes corpos, embora perceptıveis pe-los sentidos, nao possuıam em sua natureza esse ele-mento de mutabilidade. Aristoteles afirmou, portanto,que, enquanto o mundo terrestre era composto dos qua-tro elementos: terra, agua, ar e fogo, o mundo celesteera composto de um outro tipo de materia, um ele-mento denominado eter ou quintessencia. Havia, por-tanto, dois tipos de substancias sensıveis: as celestes,formadas por materia incorruptıvel, e as terrestres,sujeitas a processos de geracao, transformacao e cor-rupcao. O Cosmos aristotelico sera marcado por essadicotomia metafısica radical entre um mundo terrestre(sublunar) e um mundo celeste (supralunar). No dizerde Pierre Duhem:

Constituindo os ceus com essa substan-cia eterna, a fısica peripatetica2 se separada fısica dos pitagoricos e de Platao; paraesses, na verdade, existiam apenas os quatroelementos corporais; compostos de um fogomuito puro, o Ceu e os astros nao eram se-parados dos corpos sublunares pela barreiraintransponıvel que Aristoteles eleva entreeles. Quantos esforcos serao necessariospara derrubar esta barreira! [4]

3. A fısica aristotelica e o problema domovimento

Em sua obra denominada Fısica, Aristoteles dedica-se detalhadamente a analise do conceito de movi-mento. Para ele, movimento tem significado de mu-danca; na sua terminologia, representa a passagemdaquilo que esta em “potencia” para o “ato” (reali-dade). Aristoteles identifica quatro modalidades destasmudancas: nascimento (geracao) e destruicao (cor-rupcao), mudancas de qualidades (alteracao), mu-

dancas de tamanho (crescimento ou diminuicao) edeslocamentos (que Aristoteles denominou de movi-mentos locais).

Para Aristoteles, todo movimento (mudanca) pos-sui uma causa. Em sua Metafısica, o filosofo analisou aideia de causa e identificou novamente a existencia dequatro tipos. Cumpre enfatizar que sua concepcao decausa nao corresponde ao conceito moderno de o agenteque produz a coisa; esta e, para Aristoteles, apenas umdos tipos de causa, denominada causa eficiente. As-sim, quando diz que todo movimento tem uma causa,nao se trata de um sistema mecanicista, tal qual o quesera construıdo pela fısica moderna, a partir da Revo-lucao Cientıfica. Em seu pensamento, causa tambemtem o significado de princıpio que determina ou que es-trutura a coisa [5]. Assim, por exemplo, na coisa quemuda ha um princıpio, pelo qual dizemos que ela e deuma maneira agora e nao sera mais dessa maneira de-pois; este princıpio e a forma da coisa. Existe, pois,uma modalidade de causa chamada formal. Tambema coisa que muda e constituıda de algo. Essa materiade que a coisa se constitui e chamada por Aristotelesde causa material. Se nao houvesse o movimento (mu-danca) e o ser fosse estatico, o elenco das causas sereduziria as formais e as materiais: a forma (imutavel)da coisa e o material de que e feita. No entanto, emface do movimento, surge a pergunta: quem ou o queo provoca e com que finalidade? Desta forma, paraAristoteles, alem dos dois tipos de causas anteriores,se fazem necessarias as ideias de causas eficientes e fi-nais. A causa eficiente e, como ja dissemos, o agenteque produz o resultado; a causa final corresponde a fi-nalidade da mudanca, a realidade para a qual a coisatende. Todos esses tipos de causas estao envolvidos nadeterminacao do ser e de sua evolucao. Em especial, aideia de finalidade esta no cerne da solucao aristotelicapara o suposto absurdo logico envolvido na caracteri-zacao da mudanca como passagem do ser ao nao-ser.De fato, para Aristoteles, a mudanca ocorre, nao comoa transicao do ser ao nao ser, mas com uma finalidadeprimordial, a da passagem de um modo de ser aindalatente a plena realizacao da essencia desse ser ou comoa realizacao das possibilidades nele contidas. Essa con-cepcao finalıstica dos movimentos desempenha um pa-pel fundamental na cosmologia e na fısica aristotelicas.

As formas de movimento identificadas por Aris-toteles apresentam nıveis hierarquicos distintos. Porexemplo, as mudancas de qualidade e de tamanho queuma coisa sofre pressupoem, antes de mais nada, a exis-tencia dessa coisa, que se principia em sua geracao.Deste modo, esta modalidade de movimento, a geracao,possui um carater de anterioridade em relacao as dequalidade e de tamanho. Entretanto, como qualquermovimento, tambem a geracao de algo nao pode seconstituir em um fenomeno aleatorio, sem causacao.Pelo contrario, deve possuir sua razao de ser. Para ex-

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plicar esses processos de geracao, Aristoteles estabele-ceu neste ponto um elemento marcadamente mecanicode causacao: como a geracao representa uma trans-formacao que ocorre em certo lugar, esta transformacaoso pode ser provocada pela aproximacao ou afastamentode algum agente causador, ou seja, pelo deslocamentodeste agente. [6]

Nos dizemos, alem disso, que o movi-mento local e a causa da geracao e da cor-rupcao. [7]

Em suma, atraves desse elemento mecanicista, ochamado movimento local adquire um grau de primaziasobre os demais [8]. Estes vınculos causais entre estamodalidade de movimento e as demais, observadas nomundo a nossa volta, desempenharao um papel impor-tantıssimo na concepcao da estrutura do cosmos aris-totelico, atraves do modelo (do qual falaremos logo aseguir) das esferas cristalinas homocentricas e de seusmovimentos.

4. O cosmos Aristotelico

A cosmologia de Aristoteles tem um duplo funda-mento: e impossıvel analisa-la sem compreender suasarticulacoes logicas primordiais com a Metafısica aris-totelica; ao mesmo tempo, o Cosmos aristotelico cons-titui uma sıntese das percepcoes empıricas acumuladasate entao pela vivencia humana.

Tendo em mente estes dois alicerces, sobre os quaisse constroi a estrutura do Cosmos aristotelico, analise-mos, primeiramente, a questao de sua constituicao.Para Aristoteles, a ideia de vacuo, como a existenciado nada, ou seja, do nao ser, era contraditoria em si,e, portanto, absurda. Desta maneira, seu Universo eracompletamente preenchido pela materia.

(...)nao existe tal coisa como uma entidadedimensional, exceto a das substancias ma-teriais. [9]

Ressalte-se que esta impossibilidade logica era, paraAristoteles, corroborada pela (suposta) constatacaoempırica da inexistencia do vazio. De fato, a base ex-perimental dessa constatacao nao poderia ser desmen-tida sem a ajuda de aparatos de que os gregos naodispunham e que so passaram a estar a disposicao dahumanidade muitos seculos mais tarde [10]. Assim,esta afirmacao da inexistencia do vazio ganhou statusde princıpio, chamado de “horror do vacuo”: a Na-tureza sempre agia no sentido de evitar a formacao devacuo. Muitos fenomenos da vida cotidiana foram ex-plicados com base nesse princıpio e constituıram a basefenomenica dessa assertiva.

Por outro lado, o pensamento aristotelico tambemrejeitava como absurdo logico a ideia de um infinito, naoem potencial, mas atualmente existente. Logo, para

Aristoteles nao era possıvel a ideia de uma extensaomaterial infinita. O Cosmos aristotelico era, portanto,necessariamente finito. Fortemente influenciado peloparadigma, recorrente entre os gregos, das formas per-feitas, Aristoteles concebeu-o como um espaco finito,plenamente preenchido, limitado por uma esfera, a qualestavam ligadas as estrelas e centrada na Terra.

Esse Cosmos era, como ja antecipamos, dividido emdois mundos: o mundo terrestre e o mundo celeste.No mundo terrestre, feito de materia corruptıvel, osfenomenos de geracao e destruicao ocorrem continua-mente. De acordo com Aristoteles, fenomenos destegenero sao causados por movimentos locais. Entao, es-pecificamente nesse caso, que movimentos locais os pro-duzem?

Para responder a essa pergunta, Aristoteles ado-tou o chamado modelo das esferas cristalinas. Otambem grego Eudoxo ja havia proposto um modelomatematico capaz de descrever as trajetorias dos plane-tas em torno da Terra. Para tanto, Eudoxo imaginou es-feras concentricas com a Terra e dotadas de movimentosuniformes de rotacao, porem com velocidades distintas,as quais os planetas estariam atrelados. A combinacaodesses movimentos de rotacao produziria as trajetoriasobservadas dos planetas. Aristoteles transformou entaoas construcoes matematicas de Eudoxo em esferas reais.Assim como no modelo de Eudoxo, os corpos celesteseram presos a essas esferas e as rotacoes combinadasdessas esferas produziam os movimentos observados dosplanetas. Porem, possuindo uma realidade material,essas esferas, ao se movimentarem, provocavam, porarraste mecanico, os movimentos de transformacao ob-servados no mundo terrestre.

5. O mundo terrestre e a teoria dosmovimentos naturais

No modelo cosmologico das esferas cristalinas, duas de-las desempenhavam um papel especial: a esfera das es-trelas, como ja vimos, limitava o Universo, enquantoa esfera da Lua representava os limites do mundo ter-restre, que compreendia a regiao envolvida por esta es-fera. Nesse mundo sublunar ou terrestre os elementosse dispunham segunda uma ordenacao hierarquica, for-mando camadas concentricas, da mais interior delas,composta pelo elemento mais pesado, a terra, a maisexterna, composta pelo mais leve, o fogo.

Esse ordenamento rıgido e a base da teoria aristote-lica dos “movimentos naturais”. Segundo Aristoteles,uma vez deslocados de seu local natural, os elementostendem espontaneamente a retornar a ele, realizandomovimentos chamados de naturais, no sentido de con-formes a sua natureza:

E razoavel que todo corpo seja levado aseu lugar proprio; (...) Nao e, tampouco,sem razao que cada corpo permaneca por

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natureza em seu lugar proprio; um corpopossui, com o conjunto do lugar que lhe eproprio, uma afinidade analoga aquela queuma parte, destacada de seu todo, guardacom seu todo. [11]

e ainda

O em cima nao e qualquer coisa, mas olugar para onde se dirigem o fogo e o que eleve; e, igualmente, o embaixo nao e qual-quer coisa, mas o lugar para onde vao ascoisas pesadas e feitas de terra. [12]

O espaco aristotelico e, portanto, formado de partes(lugares) qualitativamente diferenciadas. E, por con-seguinte, radicalmente distinto do espaco neutro quesera caracterıstico da ciencia moderna, este ultimo com-pletamente abstraıdo da variedade das existencias con-cretas e, assim, concebido como uma homogeneidadeabstrata, representavel por conceitos geometricos. Nodizer do filosofo Ernst Cassirer, no Universo aristotelico

Os lugares tem sua natureza e sua sin-gularidade da mesma forma que os corposas tem, ou de modo analogo. E entre essasduas naturezas existe uma relacao absolu-tamente determinada de comunhao ou re-pulsao, de simpatia ou antipatia. De formaalguma o corpo e indiferente ao lugar emque se encontra e no qual esta contido; aocontrario: o corpo guarda com o lugar umarelacao de causalidade real. Cada elementofısico procura o “seu”, lugar, o lugar que lhepertence e que lhe corresponde, e foge de umoutro lugar que se lhe opoe. Assim o lugar- relativamente a certos elementos - parecedotado de forcas, mas nao daquelas forcasque poderıamos definir como de atracao oude repulsao no sentido da mecanica moder-na. [13]

A queda dos corpos solidos nas proximidades da su-perfıcie da Terra e entao explicada em termos dessatendencia inerente ao corpo de retornar a posicao quelhe e propria. De acordo com Aristoteles, quanto maioro peso do corpo, maior seria esta tendencia e, con-sequentemente, maior a velocidade de sua queda emdirecao a Terra.

No entanto, e preciso que se esclareca que, segundoAristoteles, o movimento natural do corpo solido sedirige, nao exatamente ao centro da Terra, mas ao cen-tro do Universo. E somente na medida em que estecoincide com o centro da Terra que os corpos vao emdirecao ao centro do Planeta. Aristoteles o afirma notratado Dos Ceus:

Se a Terra fosse deslocada para onde aLua esta agora, partes separadas dela nao

se deslocariam para o todo, mas para ondeagora o todo esta. [14]

O movimento de um corpo nao e determinado, por-tanto, pelas relacoes de posicao entre esse e outros cor-pos, mas pela estrutura geometrica intrınseca de umespaco absoluto.

Essa tendencia dos corpos pesados em direcao aocentro do Universo e fundamental para o modelo cos-mologico aristotelico. Dela, Aristoteles extrai, pordeducao simples, a conclusao da imobilidade da Terra:

Dessas consideracoes depreende-se cla-ramente que a Terra nao se move, nem selocaliza em mais nenhum lado a nao serno centro. Alem disso, devido as nossasdiscussoes a razao de sua imobilidade ficaclara. Se e inerente a natureza da Terradeslocar-se de todos os lados para o cen-tro (como mostram as observacoes), e dofogo afastar-se do centro para as extremi-dades, e impossıvel para qualquer parte daTerra afastar-se do centro a nao ser com-pulsivamente... Se entao qualquer porcaoespecıfica for incapaz de se afastar do cen-tro, e evidente que a propria Terra como umtodo ainda e mais incapaz, uma vez que enatural que o todo esteja no local para ondeas partes tem um movimento natural. [15]

De resto, a esse argumento em favor da imobili-dade, fundado sobre um aspecto estrutural da consti-tuicao do Universo, Aristoteles acrescenta um outro,onde intervem um elemento empırico. Se nao e, comose disse, em direcao a Terra que os corpos pesados semovem, mas sim em direcao ao centro do Universo, casoeste Planeta se movesse, qualquer objeto que nao es-tivesse solidario a ele pareceria, a quem estivesse so-bre a sua superfıcie, se mover em sentido exatamentecontrario. Assim, uma pedra lancada para cima a umaaltura suficientemente grande cairia, nao sobre a mesmavertical, mas em um ponto afastado de seu ponto delancamento. Como nao e isso que mostram as ex-periencias, a hipotese do movimento e errada. Ressalte-se que este argumento conservou-se intacto por muitosseculos e foi utilizado por varios estudiosos contra ahipotese heliocentrica da astronomia copernicana. Foisomente pela elaboracao da lei da Inercia que a ob-servacao empırica pode ser devidamente interpretada,superando a conclusao aristotelica [16,17].

Da tendencia em direcao ao centro do universoAristoteles tambem deduz o carater esferico da Terra:

E evidente, primeiro, que se as partıcu-las se movem igualmente em todos os la-dos para o centro, a massa resultante deveser semelhante em todos os lados; porquese uma quantidade igual for acrescentada a

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sua volta, a extremidade deve estar a umadistancia constante do centro. Tal forma euma esfera. [15]

6. O Problema do lancamento de proje-teis

Para Aristoteles, paralelamente aos movimentos cujaexplicacao residia na propria natureza dos seres, exis-tiam movimentos que nao eram conformes a essa na-tureza. Segundo ele, esses movimentos jamais ocorriamespontaneamente, mas exigiam a acao de uma forca,exercida por algum outro corpo. Por este motivo, eramchamados de forcados ou violentos; uma vez que ces-sasse essa forca, esses movimentos cessavam imediata-mente.

A existencia desses movimentos fazia com que a or-ganizacao do Cosmos aristotelico nao fosse completa-mente estatica. Tomemos, por exemplo, o caso da esferalunar que, ao se mover, arrastava a camada do mundoterrestre subjacente a ela, formada pelo fogo. SegundoAristoteles, o movimento natural deste elemento e omovimento radial de subida em direcao a esfera lunar.No entanto, ao ser arrastado por essa esfera, o fogo re-alizava movimentos circulares, que nao correspondiama sua tendencia natural. Aristoteles explicava destaforma a origem dos cometas e meteoros. [6]

Assim como neste exemplo, no mundo sublunarocorriam permanentemente fenomenos fısicos em que osquatro elementos eram deslocados de seus lugares na-turais, atraves de movimentos violentos. Contudo, umavez desaparecida a causa destes movimentos violentos,os corpos, deixados por si mesmos, passavam a realizarmovimentos (agora naturais) espontaneos em direcaoao lugar que lhes cabia na estrutura ordenada do Uni-verso. O exemplo mais caracterıstico dessa situacaoera fornecido pelo lancamento para cima de um objetosolido. Sendo feito de materia pesada (terra), o movi-mento natural desse objeto seria o de cair em direcaoao centro do Universo, e, por conseguinte, em direcao asuperfıcie da Terra. Portanto, o movimento de subida,ou seja, de afastamento da Terra, era um movimentoanti-natural; sua causa nao poderia ser encontrada naessencia do proprio ser, mas lhe era exterior.

O problema com que Aristoteles se defrontava era ode como explicar a persistencia do movimento de subida(contrario a tendencia natural e, portanto, violento) dosobjetos lancados. Este objeto so poderia realizar essemovimento violento pela acao de alguma forca. Queforca seria essa?

Para Aristoteles, qualquer causa eficiente atuantesobre um objeto teria necessariamente de ser contıguaa ele; era inadmissıvel a ideia de uma acao exercida adistancia. Deste modo, para ele o movimento violentorealizado sobre o objeto solido lancado para cima sopoderia ser explicado por uma forca exercida pelo ar.Na realidade, o ar, ou qualquer que fosse o meio atraves

do qual o objeto se movimentasse, realizava dois tiposde acao sobre o movel: a primeira delas favoravel aomovimento, empurrando-o; a segunda, uma acao de re-sistencia, tao menor quanto maior fosse a sutileza domeio (em nossas palavras, quanto menor fosse a den-sidade desse meio). Segundo Aristoteles, a velocidadecom que o objeto se moveria seria tao maior quantomenor fosse a resistencia que o meio oferecesse ao movi-mento. Ora, se o movimento ocorresse no vazio, naohaveria resistencia alguma oferecida a ele e a sua ve-locidade seria entao infinita, fazendo com que os deslo-camentos se realizassem instantaneamente. Como aocorrencia desse infinito, nao so jamais havia sido ob-servada, como, para o filosofo, era absurda do ponto-de-vista logico, isto representava para ele mais um ar-gumento em favor da impossibilidade de existencia dovacuo.

6.1. A crıtica a fısica aristotelica e o nasci-mento da ciencia moderna

O problema do chamado lancamento de projeteis cons-tituiu um ponto de ataque a Mecanica aristotelica.As explicacoes da questao da persistencia do movi-mento violento propostas por Aristoteles foram objetode refutacao por parte de varios estudiosos, ao longodos seculos que lhe sucederam. Desta crıtica nasceua ideia que seria chamada de teoria do impetus, ini-cialmente formulada por Joao Filoponos, no seculo VID.C. [6], e retomada no seculo XIV, ja no fim da IdadeMedia, pela escola nominalista de Paris, atraves de JeanBuridan. A ideia central desta teoria consistia em que,no ato do lancamento, o lancador imprime no objetolancado uma tendencia (“impetus”) de prosseguir nomovimento. Esta tendencia, no entanto, no decorrer domovimento, iria se enfraquecendo, ate que esse movi-mento anti-natural se extinguisse por completo. Comessa abordagem, abandonava-se a exigencia de que,para qualquer movimento anti-natural, fosse necessarioa atuacao permanente de uma forca externa sobre omovel; transferia-se a explicacao do movimento violentode uma causa eficiente externa para uma “tendencia”,comunicada ao proprio movel pelo agente lancador,como consequencia do ato de lancamento.

Apesar da crıtica a dinamica dos movimentosforcados, a ciencia aristotelica prevaleceu durantemuitos seculos como pensamento cientıfico dominante,sobretudo por forca de sua grande unidade logico-filosofica. Foi somente com o surgimento da astrono-mia heliocentrica de Copernico que esta ciencia teveseu coracao mortalmente atingido, com o consequenteabandono da antiga visao de mundo, que perdurara portantos seculos, e a aquisicao de uma nova.

No entanto, nao e correto afirmar, como bem salien-tou Paul Feyerabend [16], que a fısica de Aristotelestenha sido abandonada em face de uma refutacao ex-perimental, apontada pelos adeptos da nova ciencia,

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surgida do copernicanismo. A adocao vertiginosa danova concepcao de mundo se deveu antes a influencia deelementos filosoficos, psicologicos e ate mesmo esteticos,do que a necessidade de uma resposta a inconsistenciasirremediaveis do aristotelismo vigente a epoca. Defato, a vitoria dos novos paradigmas sobre a cienciaaristotelica nao se obteve, desde o primeiro momento,atraves de um falseamento inquestionavel do pensa-mento entao vigente, mas atraves de uma reinter-pretacao dos elementos empıricos a partir de novos pres-supostos [16]. O fato experimental de que uma pe-dra largada do alto de uma torre toca o solo em umponto proximo a base desta torre e nao em um pontoafastado dela foi, durante algum tempo, utilizado pe-los partidarios do aristotelismo como prova da imobili-dade da Terra. Galileu reinterpretou este fato empıricoacrescentando a explicacao do fenomeno um conceitode inercia dos corpos, que faria com que a pedra, aposlancada, compartilhasse do movimento da torre, coma qual antes era solidaria, de tal modo que esse movi-mento seria para ela imperceptıvel e assim, para ela,a torre se comportaria como se estivesse em repouso[17]. Tınhamos, portanto, nao a imposicao de umacontradicao insoluvel ao pensamento estabelecido e simo confronto entre duas teorias alternativas, igualmentepossıveis e internamente coerentes.

A nova concepcao cientıfica se impos, porem, demaneira irresistıvel e teve como pontos fundamentais[18]:

1. a adocao da linguagem matematica como formade expressao de mecanismos impessoais de causacao dosfenomenos fısicos. A nova fısica distinguia-se radical-mente da fısica de Aristoteles pelo seu carater eminen-temente quantitativo.

2. a substituicao da ideia de um Cosmos ordenadosegundo criterios metafısicos por um espaco completa-mente neutro e indiferenciado, representavel por con-ceitos geometricos abstratos;

3. o abandono da concepcao aristotelica abrangentede movimento como processo de mudanca, muitasvezes decorrentes de tendencias inerentes a propria na-tureza do objeto ou de uma finalidade a ser cumprida,substituıdo por um conceito mais restrito de movi-mento, entendido apenas como deslocamento fısico.Abandonam-se, juntamente com isso, as ideias decausas formais e finais, em favor de uma concepcaomecanicista, fundada exclusivamente na nocao decausas eficientes, a determinarem o movimento so ob-jeto a partir de uma acao exterior.

7. Conclusao

Um aspecto decisivo para a compreensao da fısica aris-totelica e o de que ela constitui um elemento profunda-mente integrado a um sistema de pensamento marcadopor sua abrangencia e organicidade. Nao e possıvel

compreende-la de forma isolada, dissociando-a de suasarticulacoes metafısicas e cosmologicas. Do mesmomodo, a estrutura do Cosmos aristotelico, sua finitude eseu geocentrismo sao resultados duplamente fundamen-tados em sınteses de percepcoes empıricas e elementosfilosoficos apriorısticos.

A teoria aristotelica dos movimentos, por sua vez,esta fundamentalmente entrelacada com a doutrina doser, que encontra na ideia da passagem da potenciaao ato a possibilidade de identificacao de uma unidadesubstancial subjacente as transformacoes que se operamincessantemente a nossa volta. O movimento, enten-dido como mudanca, deixa de representar o paradoxoda passagem do ser ao nao ser, para significar a re-alizacao de potencialidades do ser ja presentes em suaforma. Ele e, assim, em muitos casos, o processo atravesdo qual o ser caminha em direcao a realizacao de algoque lhe e ditado por sua essencia ou por uma finalidadeassociada a criterios metafısicos de ordem, harmonia evalor. Toda a fısica dos movimentos naturais esta as-sociada a essa causalidade formal e final, que faz comque os elementos espontaneamente se dirijam aos lu-gares que lhe sao proprios, conforme suas essencias, emum Cosmos rigidamente ordenado. Explica-se, assim,o fenomeno da queda dos corpos como uma tendencia,inerente a sua natureza, de se aproximarem do centrodo universo.

A possibilidade ou nao das substancias sofrerem mu-dancas que lhe alterem a forma conduziu a ideia de doismundos radicalmente separados (terrestre e celeste),formados por materias distintas e sujeitos a princıpiosdiferentes. A astronomia e a fısica terrestre constituıamconhecimentos de natureza profundamente diversa, emrazao da diversidade de seus objetos. Essa separacaometafısica constituira um obstaculo epistemologico quelevara seculos para ser transposto, quando entao tantoos movimentos terrestres quanto os celestes serao ex-plicados pelas mesmas leis dinamicas, na unidade daciencia moderna.

Finalmente, podemos dizer que a vulnerabilidade daciencia aristotelica proveio, paradoxalmente, em grandemedida, desta mesma unidade logico-filosofica que con-tribuiu intensamente para o seu enorme prestıgio. Dadoo carater profundamente organico do pensamento deAristoteles, a rejeicao ou abandono de um de seus ele-mentos acarretava consequencias determinantes sobreos demais. Deste modo, o abalo da concepcao do Cos-mos aristotelico pela astronomia copernicana se trans-mitiu tambem a fısica de Aristoteles [17–20]. A novafısica, surgida nos alvores da revolucao cientıfica susci-tada pelo copernicanismo, adquiriu uma feicao comple-tamente distinta da ciencia aristotelica: pela adocaoda linguagem matematica, passou a constituir umaforma quantitativa de conhecimento, caracterizada poruma concepcao mecanicista, apoiada exclusivamente naideia de causas eficientes e onde os conceitos de causasformais e finais deixam de desempenhar qualquer papel.

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Agradecimentos

Agradeco ao Prof. Luis Elias Quintero Samaniego, doDepartamento de Fısica da UFRRJ, pelas sugestoesapresentadas.

Referencias

[1] G.E.R. Lloyd, Early Greek Science: Thales to Aristotle(W.W.Norton & Company, Inc, Nova York, 1970).

[2] Aristoteles, Metafısica, livro IX, cap. X, in AristotelisOpera (Firmin-Didot, Paris, 1850) tomo II, p. 184.

[3] Aristoteles, On the Heavens - The Loeb Classical Li-brary (Harvard University Press, Cambridge, 1939),p. 23-25.

[4] P.M.M. Duhem, Le Systeme du Monde: Histoire desDoctrines Cosmologiques de Platon a Copernic (Her-mann, Paris, 1997), v. 1, p. 173.

[5] G. Reale, in Metafısica (Ed. Loyola, Sao Paulo, 2001),v. 1.

[6] P.M.M. Duhem, Le Systeme du Monde: Histoire desDoctrines Cosmologiques de Platon a Copernic (Her-mann, Paris, 1997), v. 1.

[7] Aristoteles, in Aristotelis Opera, (Didot, Paris, 1850),tomo II, p. 464-465, citado por P.M.M. Duhem LeSysteme du Monde: Histoire des Doctrines Cos-mologiques de Platon a Copernic, (Hermann, Paris,1997), v. 1, p. 163.

[8] P.M.M. Duhem, Le Systeme du Monde: Histoire desDoctrines Cosmologiques de Platon a Copernic (Her-mann, Paris, 1997), v. 1, p. 161.

[9] Aristoteles, in The Works of Aristotle, I (ClarendonPress, Oxford, 1929), p. 331.

[10] T. Kuhn, A Revolucao Copernicana (Edicoes 70, Lis-boa, 2002).

[11] Aristoteles, in Aristotelis Opera (Didot, Paris, 1850),t. II, cap. V, p. 291, citado por P.M.M. Duhem,Le Systeme du Monde: Histoire des Doctrines Cos-mologiques de Platon a Copernic (Hermann, Paris,1997), v. 1, p. 207.

[12] Aristoteles, iin The Works of Aristotle, II (ClarendonPress, Oxford, 1930), 208b p. 8-22.

[13] E. Cassirer, Indivıduo e Cosmos na Filosofia do Re-nascimento (Martins Fontes, Sao Paulo, 2001).

[14] Aristoteles, On the Heavens, The Loeb Classical Li-brary (Harvard University Press, Cambridge, 1939),p. 345.

[15] Ibid., p. 188-189.

[16] P. Feyerabend, Contra o Metodo (Editora da UNESP,Sao Paulo, 2003).

[17] A. Koyre, Estudos Galilaicos (Publicacoes DomQuixote, Lisboa, 1992); C.M.P orto e M.B.D.S.M.Porto, Revista Brasileira de Ensino de Fısica, aceitopara publicacao.

[18] A. Koyre, Etudes Newtoniennes (Gallimard, Paris,1968).

[19] A. Koyre, Etudes sur l’Histoire de la Pensee Scien-tifique (Presses Universitaires de France, Paris, 1966).

[20] C.M. Porto e M.B.D.S.M. Porto, Revista Brasileira deEnsino de Fısica 30, 4601 (2008).