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POR UMA REFLEXÃO SOBRE O ARBÍTRIO E O GARANTISMO NA JURISDIÇÃO SÓCIO-EDUCATIVA ______________________________________________________________________________ APRESENTAÇÃO Este subsídio está sendo publicado numa iniciativa conjunta da ESCOLA SUPERIOR DA MAGISTRATURA, da ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO e da ESCOLA SUPERIOR DA DEFENSORIA PÚBLICA DO RIO GRANDE DO SUL, com apoio institucional do PODER JUDICIÁRIO, do MINISTÉRIO PÚBLICO e da DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, no intuito de compartilhar com a comunidade jurídica gaúcha uma reflexão das mais atuais e relevantes. Trata-se da questão da natureza jurídica da responsabilidade dos menores de 18 anos em caso de transgressão da lei penal, e dos reflexos dessa opção ( ou omissão ) conceitual na execução das medidas sócio-educativas. Por não ter sido ainda suficientemente abordada em lei ou em doutrina, a matéria vem deixando grande abertura à interpretação judicial, seara em que esbarra por vezes no subjetivismo e na discricionariedade resultantes da anomia normativa e da ausência de referências conceituais sistematizadas pelo trato científico. Os impasses produzidos por este vazio não fazem sentir-se somente no campo jurídico-judicial. Seus efeitos repercutem sobretudo na administração das políticas públicas de atenção ao jovem em conflito com a lei, que possivelmente não apresentem melhores resultados no País por conseqüência das decorrentes ambigüidades entre a proteção e a responsabilização do infrator em conflito com a lei. Nesse quadro, não espanta a ausência de efetividade de um sistema institucional que se propõe a promover a assimilação de normas e limites pelos jovens, quando ele próprio se sustenta em bases normativas ainda insuficientemente objetivadas. As implicações desta opção vêm gerando acaloradas controvérsias:

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POR UMA REFLEXÃO SOBRE O ARBÍTRIO E O GARANTISMO NA JURISDIÇÃO SÓCIO-EDUCATIVA______________________________________________________________________________APRESENTAÇÃO

Este subsídio está sendo publicado numa iniciativa conjunta da ESCOLA SUPERIOR DA MAGISTRATURA, da ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO e da ESCOLA SUPERIOR DA DEFENSORIA PÚBLICA DO RIO GRANDE DO SUL, com apoio institucional do PODER JUDICIÁRIO, do MINISTÉRIO PÚBLICO e da DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, no intuito de compartilhar com a comunidade jurídica gaúcha uma reflexão das mais atuais e relevantes.

Trata-se da questão da natureza jurídica da responsabilidade dos menores de 18 anos em caso de transgressão da lei penal, e dos reflexos dessa opção ( ou omissão ) conceitual na execução das medidas sócio-educativas.

Por não ter sido ainda suficientemente abordada em lei ou em doutrina, a matéria vem deixando grande abertura à interpretação judicial, seara em que esbarra por vezes no subjetivismo e na discricionariedade resultantes da anomia normativa e da ausência de referências conceituais sistematizadas pelo trato científico.

Os impasses produzidos por este vazio não fazem sentir-se somente no campo jurídico-judicial.

Seus efeitos repercutem sobretudo na administração das políticas públicas de atenção ao jovem em conflito com a lei, que possivelmente não apresentem melhores resultados no País por conseqüência das decorrentes ambigüidades entre a proteção e a responsabilização do infrator em conflito com a lei. Nesse quadro, não espanta a ausência de efetividade de um sistema institucional que se propõe a promover a assimilação de normas e limites pelos jovens, quando ele próprio se sustenta em bases normativas ainda insuficientemente objetivadas.

As implicações desta opção vêm gerando acaloradas controvérsias:

· É possível garantir a prevalência dos objetivos pedagógicos das medidas sócio-educativas e evitar a vala comum do sistema penal dos adultos, mesmo admitindo contenham carga retributiva de natureza penal?

· Ao não admitir sua natureza penal, não se estaria desconsiderando todo o correspondente sistema de garantias constitucionais em prejuízo dos jovens acusados?

· Desde o ponto de vista dos direitos humanos dos jovens acusados, que ganhos e que perdas decorrem da opção ou não pelo sistema da responsabilidade penal juvenil?

As respostas a estas indagações são muitas e controvertidas. Antes que solucioná-las, o que se pretende é enriquecê-las pelo debate, pelas críticas e subsídios a serem trazidos

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pela nossa comunidade jurídica. O texto que aqui se oferece é uma contribuição graciosa do autor que fazemos chegar aos colegas para fomentar a reflexão e o debate

Emilio Garcia MendezConsultor autônomo da UNICEF para a América Latina e Caribe

O tema da responsabilidade penal dos menores de idade não é novo na América Latina. Desde a constituição dos Estados nacionais até hoje, a percepção e o tratamento da responsabilidade penal dos menores de idade têm transitado por três grandes etapas.

Uma primeira etapa, que se pode denominar de caráter penal indiferenciado, estende-se desde o nascimento dos códigos penais de corte claramente retribucionista do século XIX até 1919. A etapa do tratamento penal indiferenciado caracteriza-se por considerar os menores de idade praticamente da mesma forma que os adultos. Com uma única exceção dos menores de sete anos, que eram considerados, tal como na velha tradição do direito romano, absolutamente incapazes e cujos atos eram equiparados aos dos animais, a única diferenciação para os menores de 7 a 18 anos consistia geralmente na diminuição da pena em um terço em relação aos adultos. Assim, a liberdade por um tempo um pouco menor que o dos adultos e a mais absoluta promiscuidade constituíam uma regra sem exceções.

Uma segunda etapa é a que se pode denominar de caráter tutelar. Esta etapa tem sua origem nos EEUU de fins do século XIX, é liderada pelo chamado Movimento dos Reformadores1 e responde a uma reação de profunda indignação moral frente à promiscuidade do alojamento de maiores e menores nas mesmas instituições. A partir da experiência dos EEUU é que a especialização do direito e a administração da justiça de menores se introduz na América Latina . Num arco de tempo de 20 anos, que começa em 1919 (ainda hoje vigente), todos os países da região terminaram adotando o novo modelo.

Contudo, uma análise crítica permite pôr em evidência que o projeto dos reformadores, mais que uma vitória sobre o velho sistema, consistiu num compromisso profundo com este. As novas leis e a nova administração da justiça de menores nasceram e se desenvolveram no marco da ideologia dominante nesse momento: o positivismo filosófico. A cultura dominante de seqüestro dos conflitos sociais, quer dizer, a cultura segundo a qual a cada patologia social devia corresponder uma arquitetura especializada de reclusão, somente foi alterada num único aspecto: a promiscuidade. A separação de adultos e menores foi a bandeira vitoriosa dos reformadores norte-americanos e em menor medida de seus seguidores europeus, sendo que, até pouco tempo, era mais uma expressão de desejos de seus emuladores latino-americanos. Neste último caso, onde ainda hoje a colocação de menores de idade nas prisões de adultos persiste como um problema não pouco importante em muitos países da região, somente a ignorância das conseqüências reais das decisões da administração de justiça, assim como o predomínio dos eufemismos permitiu “resolver” esta situação, mantendo “limpa” a consciência.

Não é o momento de reiterar aqui as vicissitudes e os motivos de sobrevivência do modelo tutelar na América Latina desde 1919 até 1989, para o qual remeto a vários

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escritos específicos sobre o tema2. Interessa-me muito mais registrar e caracterizar o nascimento de uma nova etapa em 1989, com a aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança (doravante tratada por CIDN).

A CIDN marca o advento de uma nova etapa que pode ser caracterizada como a etapa da separação, participação e responsabilidade.

O conceito de separação refere-se aqui à clara e necessária distinção, para começar no plano normativo, dos problemas de natureza social daqueles conflitos com as leis penais. O conceito de participação (admiravelmente sintetizado no art.12 da CIDN) refere-se ao direito da criança formar uma opinião e expressá-la livremente em forma progressiva, de acordo com seu grau de maturidade. Porém, o caráter progressivo do conceito de participação contém e exige o conceito de responsabilidade, que, a partir de determinado momento de maturidade, converte-se não somente em responsabilidade social mas, ao contrário e progressivamente, numa responsabilidade de tipo especificamente penal, tal como o estabelecem os arts. 37 e 40 da CIDN.

A terceira etapa é a da responsabilidade penal dos adolescentes que se inaugura, na região, com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) do Brasil, aprovado em 1990. O ECA constitui a primeira inovação substancial latino-americana a respeito do modelo tutelar de 1919. Durante mais de setenta anos, desde 1919 a 1990, as “reformas” das leis de menores constituíram apenas variações da mesma melodia.

2. O modelo de responsabilidade penal dos adolescentes constitui uma ruptura profunda, tanto com o modelo tutelar quanto com o modelo penal indiferenciado, que hoje se expressa exclusivamente na ignorante ou cínica proposta de redução da idade na imputabilidade penal .

Por sua parte, o modelo do ECA demonstra que é possível e necessário superar tanto a visão pseudo-progressista e falsamente compassiva, de um paternalismo ingênuo de caráter tutelar, quanto a visão retrógrada de um retribucionismo hipócrita de mero caráter penal repressivo. O modelo da responsabilidade penal dos adolescentes (doravante tratado por RPA) é o modelo da justiça e das garantias.

O modelo da RPA disposto pelo ECA possui algumas características essenciais que cabe pôr aqui em evidência3. Em primeiro lugar, e embora a CIDN, sobretudo em seu caráter de instrumento jurídico de caráter universal, defina como criança todo ser humano até os dezoito anos incompletos, o ECA parte por diferenciar juridicamente situações que o senso comum e a psicologia evolutiva já distinguiam há muito tempo: que não é o mesmo um ser humano de quatro e um de dezessete anos. Desta forma, o ECA define como criança todo ser humano até doze anos incompletos e como adolescente todo ser humano desde os doze até os dezoito anos incompletos. Inspiradas no ECA, todas as novas legislações latino-americanas substancialmente adaptadas à CIDN estabelecem a mesma distinção, variando somente e de forma leve a fronteira entre as duas categorias, para treze ou quatorze anos em alguns casos, inclusive colocando alguma distinção posterior para maiores de quinze anos, tal como o dispõe a lei de Responsabilidade Penal Juvenil da Costa Rica.

Em todo caso, o princípio geral que interessa pôr em evidência é a diversidade do tratamento jurídico com base na faixa etária. Assim, as crianças não somente são penalmente inimputáveis como também são penalmente irresponsáveis. No caso do cometimento por uma criança de atos que infrinjam as leis penais, somente poderão corresponder - eventualmente - medidas de proteção. Ao contrário, os adolescentes,

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também penalmente inimputáveis, são no entanto penalmente responsáveis. Quer dizer, respondem penalmente, nos exatos termos de leis específicas como o ECA, por aquelas condutas passíveis de serem caracterizadas como crimes ou delitos. Na história real do tratamento de fato e de direito do “menor infrator” (e não na história corporativa eufemística), a responsabilidade penal dos adolescentes por atos típicos antijurídicos e culpáveis constitui um avanço e uma conquista extraordinária sobre a “bondosa” responsabilidade por atos “anti-sociais”, construção típica das múltiplas variáveis da etapa tutelar.

Não é preciso ser muito perspicaz para entender que a categoria de “atos anti-sociais” não constitui outra coisa senão um eufemismo para legitimar o casuísmo subjetivo dos diferentes segmentos (judiciais ou administrativos) responsáveis pela questão “menorista”. Nesse contexto, a impugnação da responsabilidade penal constitui uma hipócrita ou ingênua reação, em primeiro lugar corporativista, na definição dos adolescentes como sujeitos reais de direitos e responsabilidades.

O modelo da responsabilidade penal dos adolescentes no Brasil transcendeu rapidamente as fronteiras nacionais e influenciou notavelmente posteriores processos de reforma legislativa na região.

A lei da Responsabilidade Penal Juvenil da Costa Rica (LRPJ) inscreve-se em tal tradição, porém representa ao mesmo tempo um salto qualitativo cuja importância não se pode desconhecer. Com exceção do art. 132 da LRPJ, artigo absurdo, demagógico e flagrantemente violador do artigo 37, inciso a, da CIDN, a LRPJ constitui uma visão superadora da técnica jurídica que inspirou o ECA. Sem desconhecer a sideral distância que separa a realidade brasileira da realidade costarriquenha, algumas semelhanças e discrepâncias merecem ser colocadas em evidência.

Ambas as leis se caracterizam por um alto consenso social, que, no caso do Brasil, se configurou como um enorme processo de mobilização social e, no caso da Costa Rica, pela ausência absoluta de oposição às transformações propostas pela nova lei. No caso do Brasil, o ECA criou e foi ao mesmo tempo o resultado de um processo jurídico endógeno onde os grandes nomes, do direito em geral e penal em particular, permaneceram ausentes ou indiferentes. Ao contrário, no caso da Costa Rica, os nomes mais significativos do direito em geral e muito particularmente do direito penal colaboraram e colaboram ativamente, tanto no processo de produção quanto no processo de implementação. O Direito da Infância e Adolescência na Costa Rica não é uma questão de “especialistas” (de menoristas), para dizê-lo sem eufemismos. O Direito da infância é, na Costa Rica, uma questão de direito e, sobretudo, de todos os juristas democráticos e garantistas. A Costa Rica não caiu na enganosa fraude da exagerada “autonomia do direito de menores”, outro eufemismo que esconde, nesse caso, o intento de legitimar violações grosseiras ao direito de todos os indivíduos. Não é demais reiterar aqui que é somente do direito constitucional que o (não) direito de menores foi autônomo.

Em todo caso (além, obviamente, de contextos sócio-econômicos diversos), as principais diferenças entre o ECA e a LRPJ da Costa Rica têm a ver com os tempos de aprovação e com a sofisticação das técnicas jurídicas muito mais refinadas e garantistas, quer dizer, menos abertas e discricionais no caso da lei da Costa Rica. Contudo, também me parece importante oferecer aqui alguns elementos de análise a partir dos processos distintos de resistências que geraram ambas as leis.

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No caso do ECA do Brasil, o caráter corporativo das reações contrárias – refiro-me aqui especialmente ao período inicial de sua aprovação parlamentar, assim como ao período inicial de implementação – ficou reduzido à resistência político-cultural gerada por setores públicos e explicitamente identificados com o velho Código de Menores (que havia sido aprovado no período da ditadura militar em 1979) e com as práticas tradicionais de institucionalização e criminalização da pobreza.

No caso da Costa Rica, as resistências nacionais à lei limitavam-se a inexpressivas críticas marginais, em geral de caráter verbal por parte de pequenos grupos da área de influência da cultura “alternativa”. O que torna interessante o caso da LRPJ da Costa Rica é que as resistências significativas a ela situaram-se sobretudo nas fronteiras nacionais. Escassos e ambíguos são os textos de impugnação à lei. As resistências se expressam muito mais em críticas veladas, quase envergonhadas, de caráter verbal, que se uniram a um aglomerado ideologicamente tão variado quanto pitoresco e contraditório.

A impugnação tout court ao direito penal juvenil, slogan adotado pelos opositores da LRPJ da Costa Rica, e as disposições do ECA relativas ao adolescente infrator, uniram objetivamente os interesses corporativos daqueles que, tendo funções judiciais ou administrativas, resistem à perda do poder discricional, com setores “progressistas” cultuadores das variadas formas do abolicionismo vernáculo.

Por isso, as objeções – sempre ambíguas e dissimuladas - incluíam um leque temático que ia desde a necessidade de considerar os “aspectos positivos da doutrina tutelar” até um alerta sobre o efeito inicial de redução da população privada de liberdade em condições de aplicação da LRPJ, no entanto com um crescimento posterior desmedido. As cifras da administração do sistema de justiça juvenil da Costa Rica, quatro anos depois da entrada em vigência da lei, desmentem completamente tais acusações4.

Paradoxalmente, a oposição “progressista” latino-americano às leis de RPJ acabou desembarcando no Brasil, dividindo o heterogêneo movimento de luta pelos direitos da infância. O Brasil, terra fecunda para diversos tipos de messianismos, acrescentou um a mais à sua longa lista.

A seguir, para informação do leitor, uma análise crítica do debate atual sobre a responsabilidade penal dos adolescentes no Brasil.

3. Talvez nada caracterize melhor os problemas atuais do “Estatuto da Criança e do adolescente” (ECA) que aquilo que se poderia denominar sua dupla crise, de implementação e de interpretação. Em todo o caso, se a primeira crise remete ao reiterado déficit de financiamento das políticas sociais básicas, a segunda é de natureza político-cultural.

A crise de implementação remete às carências em saúde e educação, assim como à (inútil) tentativa de substituir a qualidade e quantidade de políticas universais, como a escola e os serviços de saúde, por sucedâneos ideológicos, sejam estes de corte social-clientelista (inadequada focalização de políticas assistenciais), sejam de corte repressivo (ineficazes e ilegais políticas autoritárias de lei e ordem, sem respeito pelas liberdades individuais e sem nenhum aumento real da segurança cidadã). Nesse contexto, é paradoxal que os custos de legitimidade desta crise não sejam maiores para o sistema político em seu conjunto, devido às reiteradas denúncias e evidências sobre o mau uso

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dos - quase sempre – escassos recursos dedicados ao gasto social. Dito em outras palavras, o mal manejo do gasto social opera com um fator que legitima sua própria redução: “Já que gastam mal, que pelo menos gastem pouco”, é a expressão popular que melhor caracteriza essa situação. No mais, convém lembrar que, embora a crise de implementação remeta ao problema do baixo financiamento das políticas sociais, de forma nenhuma se deixa explicar unicamente por este. Ou, dito de outra forma, nas condições atuais das crises de implementação e interpretação não há aumento do financiamento do gasto social que permita resolver os problemas sociais que geram a primeira crise e amplificam a segunda.

Porém, a gravidade da situação atual somente pode começar a ser entendida se considerada a existência simultânea das duas crises. À recorrente crise de implementação é necessário acrescentar a (relativamente nova) crise de interpretação.

Muito mais complexa que a crise de implementação é a natureza e, conseqüentemente , a explicação da crise de interpretação. Em primeiro lugar, quero deixar claro que de nenhuma maneira me parece que a crise de interpretação seja de natureza técnica e que remeta, por exemplo, à complexidade dos novos tecnicismos jurídicos que possui o ECA . É sabido que, do ponto de vista estritamente técnico-jurídico, qualquer legislação garantista é no mínimo, processualmente, de caráter complexo. É óbvio que o contrário não se verifica de forma automática, nem toda a legislação complexa resulta necessariamente garantista.

O caráter garantista de uma legislação remete a uma dupla caracterização. Por um lado, o respeito rigoroso pelo império da lei, próprio das democracias constitucionais baseadas numa perspectiva dos direitos humanos, hoje normativamente estabelecidos, e, por outro, a existência de mecanismos e instituições idôneas e eficazes para a realização efetiva dos direitos consagrados. Desse ponto de vista, não existem dúvidas de que a face oposta do garantismo é o subjetivismo e a discricionariedade.

A derrocada do velho Código de Menores do Brasil de 1979 pelo ECA em 1990 não constituiu nem o resultado de um rotineiro processo de evolução jurídica, nem uma mera “modernização” de instrumentos jurídicos. Existem hoje inúmeras evidências que demonstram que tal substituição resultou numa verdadeira (e brusca) troca de paradigma, numa verdadeira revolução cultural.

Para aqueles que foram conscientes da verdadeira profundidade e natureza das transformações, era claro que não se tratava somente de erradicar de forma definitiva as más práticas autoritárias, repressivas e incriminadoras da pobreza. Tratava-se (e trata-se ainda), sobretudo, de eliminar as “boas” práticas “tutelares e compassivas”. Partia-se aqui da constatação, lamentavelmente confirmada reiteradamente pela história, de que as piores atrocidades contra a infância se cometeram (e se cometem ainda hoje) muito mais em nome do amor e da compaixão que em nome da própria repressão. Tratava-se (e trata-se ainda) de substituir a má, porém também “boa” vontade, nada mais – mas também nada menos – pela justiça. No amor não há limites, na justiça sim. Por isso, nada contra o amor quando o mesmo se apresenta como um complemento da justiça. Pelo contrário, tudo contra o “amor” quando se apresenta como um substituto cínico ou ingênuo da justiça.

Sem ignorar as profundas violações que ainda subsistem, especialmente nos “tratamentos” derivados da execução das medidas de privação de liberdade (deixa-se aqui de lado o tema da pertinência jurídica da medida, tema vinculado com a interpretação judicial da lei), seria injusto desconhecer a existência de sérios avanços na

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diminuição das más práticas. As formas mais grotescas e abertas do “menorismo” (e seus expoentes) estão não somente em retrocesso como também em franco processo de extinção. Não restam dúvidas de que os problemas hoje são de uma índole radicalmente diversa.

A crise de interpretação do ECA se vincula hoje muito mais especialmente com as “boas” práticas tutelares compassivas, ou, o que dá no mesmo, com a persistência de uma cultura – agora supostamente progressista do messianisno, do subjetivismo e da discricionariedade.

As bondades (e especialmente a excelência técnica-jurídica) do ECA não são somente intrínsecas a ele. Em boa parte elas derivam de uma correta e sobretudo rigorosa interpretação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (especialmente de seus artigos 37 e 40), assim como de outros instrumentos internacionais que em conjunto formam a chamada Doutrina da Proteção Integral. De igual forma (ainda que muito mais detalhadamente que a Convenção), também o ECA reformula radicalmente, para começar desde o ponto de vista normativo, as relações de crianças e adolescentes com o Estado e com os adultos. Assim, o que especifica tal reformulação é a sensível diminuição (ainda que não a eliminação) dos elementos que marcaram historicamente a relação do Estado e dos adultos com crianças e adolescentes: subjetivismo e discricionariedade.

Se ainda faltavam evidências, é precisamente nessa reformulação que está condensado o que, com justiça, se tem denominado a mudança de paradigma. Desse modo, os fundamentos filosóficos na percepção e tratamento da infância deslocam-se da “bondade” discricional à justiça garantista.

Ao fim da década de 80, foram os “excessos” do menorismo (em forma similar aos “excessos” das ditaduras) que provocaram e facilitaram a conformação de uma ampla frente opositora (na política e no social) que acelerou suas derrocadas (do menorismo e da ditadura). Da mesma forma que a oposição à ditadura, a oposição ao Código de Menores de 79 provocou a criação de uma vasta e sobretudo heterogênea frente de apoio ao ECA. Esse vasto movimento incluiu aqueles que viram corretamente – na transformação legislativa em particular - um instrumento para melhorar as condições materiais da infância e, em geral, uma extraordinária possibilidade de aumentar a qualidade e quantidade da vida democrática. Porém, esse vasto movimento incluiu também aqueles que – incorretamente - viram na potencialidade do processo de transformações jurídicas uma possibilidade de chegar à revolução social por outros meios, uma forma de canalizar diversos tipos de messianismos pessoais ou inclusive um modo novo de tentar a relegitimação de velhos corporativismos. Essa visão não somente era incorreta, como também profundamente limitada. Para ela, o que estava sendo tratado era a mera eliminação dos “excessos” até o dia das grandes transformações político-econômicas (o álibi estrutural, nas palavras de Antônio Carlos Gomes da Costa).

À discricionariedade e ao subjetivismo mau era possível, mas sobretudo necessário, opor a discricionariedade e o subjetivismo “bom”. A transformação jurídica se convertia assim em pretexto e razão suficiente para o que em realidade importava: a mera troca de pessoas. A mudança das instituições se produziria assim pela lei da boa vontade, tão poderosa como a lei da gravidade.

As divisões que se produzem hoje dentro do vasto movimento de luta pelos direitos da infância, não são arbitrárias nem superficiais. Respondem a percepções

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radicalmente diversas da justiça e do social vinculado com a infância. Por um lado, a convicção daqueles que pensam que somente é necessário (e suficiente) trocar conteúdos dos subjetivismos e das discricionariedades e, por outro, a convicção daqueles que pensam (entre os quais eu me encontro) que não existem discricionariedades e subjetivismos bons. Tal como o afirma o maior teórico do garantismo penal contemporâneo – o Professor Luigi Ferrajoli –, a ausência de regras nunca é tal; a ausência de regras é sempre a regra do mais forte. No contexto histórico das relações do Estado e dos adultos com a infância, a discricionariedade tem funcionado sempre de fato e de direito, a médio e longo prazo, como um mal em si mesmo. Além de incorreta, a visão subjetiva e discricional é miopemente imediatista e falsamente progressista.

Reafirmar um não claro à redução de idade da imputabilidade penal, posição que nos coloca de acordo com um grupo com o qual ao mesmo tempo possuímos discrepâncias profundas, é condição sine qua non, ainda que de nenhuma maneira suficiente, para a formulação de qualquer política séria e responsável na área da justiça juvenil.

Os adolescentes são e devem seguir sendo inimputáveis penalmente, quer dizer, não devem estar submetidos nem ao processo nem às sanções dos adultos e, sobretudo, jamais e por nenhum motivo devem estar nas mesmas instituições que os adultos. No entanto, os adolescentes são e devem seguir sendo penalmente responsáveis por seus atos (típicos, antijurídicos e culpáveis). Não é possível nem conveniente inventar eufemismos difusos tais como uma suposta responsabilidade social, somente aparentemente alternativa à responsabilidade penal. Contribuir com a criação de qualquer tipo de imagem que associe adolescência com impunidade (de fato ou de direito) é um desserviço que se faz aos adolescentes, assim como objetivamente uma contribuição irresponsável às múltiplas formas de justiça com as próprias mãos, com as quais o Brasil desgraçadamente possui uma ampla experiência.

A responsabilidade - neste caso penal - dos adolescentes é um componente central de seu direito a uma plena cidadania. Pretender construir cidadania sem responsabilidade constitui um contra-senso, produto da ingenuidade ou da incompetência.

4. É prematuro hoje fazer julgamentos, tanto sobre a extensão real das fissuras que dividem o movimento de luta pelos direitos da infância, quanto sobre seu caráter transitório ou irreversível. Sobre o que certamente não cabem dúvidas é sobre a impossibilidade (e sobretudo a inconveniência) de ignorá-las. No que se refere ao trabalho infantil (como em muitos países latino-americanos) ou dos adolescentes em conflito com a lei penal (como no Brasil), essas fissuras deixam explícito, em primeiro lugar, que a cultura adulta e estatal em relação à infância tem ficado (em alguns casos) abaixo das transformações legislativas e, sobretudo, abaixo ou por trás de uma verdadeira cultura garantista. A discricionariedade e o subjetivismo podem se amparar hoje em distorcidas interpretações de caráter moral, político ou religioso, ainda que não (como é o caso do Brasil) em argumentos rigorosos de caráter jurídico. A normativa do ECA (especialmente temas vinculados com os adolescentes em conflito com a lei penal) permite parafrasear Norberto Bobbio quando, em seu extraordinário livro A Era dos Direitos, afirma que "na era dos direitos humanos, o problema reside não tanto em sua fundamentação, mas muito mais em sua implementação".

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Em que medida no subjetivismo e na discricionariedade se ocultam formas "novas" de menorismo, é algo que está ainda por se elucidar. Nesse contexto, faz-se urgente e necessário, para ambas as partes, começar por entender a extensão e os termos reais das discrepâncias.

Até agora, o que se poderia denominar como um movimento de releitura discricional e subjetiva do ECA (característica típica da crise de interpretação) tem se expressado muito mais em e com slogans do que com argumentos. Um - duplamente incompreensível, por cínico ou por ingênuo - não ao direito penal juvenil (ao que não se soma, no entanto, um não à privação de liberdade), uma preferência por medidas sócio-educativas de caráter indeterminado, um favorecimento do aumento do poder discricional da justiça e da administração no processo de aplicação das medidas, assim como indicações claras na direção de manter um alto nível de "autonomia" científica a respeito do resto do direito em geral e da letra do ECA em particular (eufemismo para designar o ato discricional), parecem ser os componentes centrais que compõem o que aqui passei a chamar de crise de interpretação do ECA. A crise de interpretação se configura então como a releitura subjetiva discricional e corporativa das disposições garantistas do ECA e da Convenção Internacional dos Direitos da Criança. Dito de outra forma, a crise de interpretação se configura no uso do código "tutelar" de uma lei como o ECA claramente baseada no modelo da responsabilidade.

A negatividade (e, em alguns casos, a impossibilidade) de entender em primeiro lugar o adolescente infrator como uma categoria jurídica precisa, como sujeito de direitos, mas também de responsabilidade penal pelas infrações - culposa ou dolosamente - cometidas, assim como a miopia para entender a necessária e respeitosa articulação entre o direito da sociedade à sua segurança coletiva e o direito dos indivíduos (independentemente de sua idade) ao respeito rigoroso de suas liberdades individuais, constitui uma resposta não só equivocada como também perigosamente irresponsável na conjuntura atual. Por isso, é necessário distinguir aquelas interpretações equivocadas sobre o sentido garantista da responsabilidade penal, das interpretações guiadas pela demagogia ávida de aplauso fácil.

A construção jurídica da responsabilidade penal dos adolescentes no ECA (do modo que foram eventualmente sancionados somente os atos típicos, antijurídicos e culpáveis, e os atos "anti-sociais" definidos casuisticamente pelo juiz de menores), inspirada nos princípios do direito penal mínimo, constituiu uma conquista e um avanço extraordinário normativamente consagrado no ECA. Sustentar a existência de uma suposta responsabilidade social em contraposição à responsabilidade penal não só contradiz a letra do ECA (art. 103) como também constitui - pelo menos objetivamente - uma posição funcional a políticas repressivas, demagógicas e irracionais. No contexto do sistema de administração da justiça juvenil proposta pelo ECA, que prevê expressamente a privação de liberdade para delitos de natureza grave, impugnar a existência de um direito penal juvenil é tão absurdo como impugnar a lei da gravidade. Se em uma definição realista o direito penal se caracteriza pela capacidade efetiva - legal e legítima - de produzir sofrimentos reais, sua impugnação, ali onde a sanção de privação da liberdade existe e se aplica, constitui uma manifestação intolerável de ingenuidade ou o regresso sem dissimulação ao festival do eufemismo que era o direito de menores.

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5. Este é o contexto no qual - para o bem ou para o mal - deve situar-se o debate atual entre o subjetivismo discricional e uma posição conseqüentemente garantista.

A urgência do debate público se vincula sobretudo com a necessidade de esclarecer posições. O bloco dos que impugnam a responsabilidade penal dos adolescentes é o contrário de um bloco homogêneo. É necessário distinguir a competência e a boa-fé dos que pensam que a utilização de uma linguagem desprovida, porém sobretudo não eufemística (me refiro ao uso do termo penal), poderia incrementar e legitimar posições irracionalmente repressivas, de má-fé, daqueles profissionais da injúria gratuita e da autopromoção.

Faz já bastante tempo que alguns meios de comunicação têm sido sumamente "eficazes" em vincular, de forma praticamente automática, o problema da segurança/insegurança urbana com comportamentos violentos atribuídos aos jovens, muito especialmente com aqueles menores de dezoito anos. No entanto, não me parece que a iniciativa possa ser atribuída aos (inclusive pouco sérios e irresponsáveis) meios de comunicação. Ao contrário, me parece que a iniciativa tem surgido de políticos pouco escrupulosos que antes de mais nada concebem a política como espetáculo e traficam com necessidades e angústias legítimas da população, tais como o medo e a insegurança urbana. Essa posição, que invariavelmente cobra força durante os períodos eleitorais, consiste em realizar o que eles pensam como uma simples operação de troca no mercado eleitoral: a troca de votos seguros pela ilusão da segurança. A conjuntura eleitoral passa, os votos ficam e a ilusão da segurança se evapora. O efeito duplamente perverso de uma situação como essa tem como resultado que, longe de conduzir a indignação contra os políticos inescrupulosos, alguns setores da população e alguns meios de comunicação confirmam seu desprezo por soluções sérias no marco da lei e sobretudo seu desprezo indiscriminado pela política, os políticos e as instituições. Não poucas barbáries da justiça privada têm sua origem e “legitimação” nesse tipo de processo.

Sobretudo nos começos dessas campanhas de alarme social, a falta de informação quantitativa confiável operava como um elemento justificativo da impunidade com que se distorcia a pouca e confusa informação disponível. Convém reconhecer que muito se tem avançado nesse terreno, mas que também há muito por fazer. A obtenção de informação confiável é só em segunda instância um problema de competência técnica. Em primeiro lugar, ela é o resultado da prioridade e da vontade política. Ninguém brinca hoje com os números da inflação ou do desemprego; é de se esperar que ninguém brinque no futuro com os números dos problemas sociais que afetam profundamente a vida de nossas sociedades.

Para enfrentar com seriedade e responsabilidade o problema e, por conseguinte, o debate sobre o tipo de responsabilidade que se deve atribuir aos adolescentes, é necessário começar por colocá-lo em sua justa dimensão quantitativa. No entanto, o esclarecimento da dimensão quantitativa é e deve ser entendido como condição necessária, embora não suficiente, de uma política sócio-jurídica séria e responsável para os adolescentes em particular e para a sociedade em geral. Me interessa então mencionar aqui um último aspecto de caráter político e conceitual: a demanda social por segurança do cidadão não somente é real como também é legítima.

Desde o ponto de vista de seus conteúdos substantivos, e quisera que este ponto ficasse absolutamente claro, o ECA constitui uma resposta adequada, eficiente e consonante com os mais altos padrões internacionais de respeito aos direitos humanos.

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O ECA satisfaz o duplamente legítimo requisito de assegurar simultaneamente a segurança coletiva da sociedade, com o respeito rigoroso das garantias dos indivíduos sem distinção de idade.

A necessidade de leis reguladoras das medidas sócio-educativas, a área mais obscura da administração da justiça juvenil, não se justifica nem se legitima por imperfeições técnicas do ECA e sim, ao contrário e sobretudo, para enfrentar a sobrevivência de uma cultura da "proteção" subjetiva e discricional.

O debate - oxalá com todo mundo do direito e não somente com os especialistas - continua aberto.

Buenos Aires - Belo Horizonte, fevereiro de 2000.

REFERÊNCIAS

1. Ver sobre este movimento o já clássico livro de Anthony Platt “Los salvadores del niño, o la invención de la delincuencia”. México, Siglo XXI, 1982.

2. Ver, sobre o particular, os artigos reunidos no livro de minha autoria “Infância: dos Direitos e da Justiça”. Buenos Aires, Del Puerto, 1998.

3. Para uma análise dos sistemas de responsabilidade penal dos adolescentes implementados na América Latina, ver BELOFF, Mary. “Os Sistemas de Responsabilidade Penal Juvenil na América Latina” in MENDEZ, García e BELOFF, Mary. “Infância, Lei e Democracia na América Latina: Análise crítica do panorama legislativo no marco da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1989-1999)’’. Bogotá, Têmis de Palma, 2ª ed. aumentada e atualizada, 1999.

4. Em quatro anos de vigência da Lei Penal Juvenil da Costa Rica, o número de adolescentes privados de liberdade nesse país não ultrapassa a cifra de trinta.

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O GARANTISMO NO SISTEMA INFANTO-JUVENIL

Janine Borges Soares Promotora de Justiça de Barra do Ribeiro/RS;

Especialista em Infância e Juventude pela Escola Superior do Ministério Público/RS;

Mestranda em Ciências Criminais pela PUC/RS

O estudo do garantismo no sistema infanto-juvenil traz implícita a sensação de que não é possível prescindir do questionamento acerca do direito de punir, pois da histórica inimputabilidade penal do adolescente surgiram os antigos Códigos de Menores e o atual Estatuto da Criança e do Adolescente, com os quais sempre coexistiram as idéias de redução da maioridade penal como fórmula de combate à violência e à criminalidade, temas de grande destaque especialmente na sociedade moderna.

Partindo do pressuposto histórico de que a inimputabilidade penal do adolescente no Brasil sofreu várias alterações, desde as Ordenações Filipinas até o atual Estatuto da Criança e do Adolescente, a necessidade de se buscar uma justificação para o direito de punir logo esbarra nos ensinamentos de Barreto1, segundo o qual

O direito de punir, como em geral todo o direito, como todo e qualquer phenomeno da ordem physica ou moral, deve ter um principio; mas é um principio historico, isto é, um primeiro momento na serie evolucional do sentimento que se transforma em ideia, e do facto que se transforma em direito. Porém essa fase historica ou antes pre-historica, considerada em si mesma, explica tão pouco o estado actual do instituto da pena, como o embryão explica o homem, como a semente a arvore2

No início do trabalho a lógica do estudo se inverte: se é difícil compreender o direito de punir do Estado, o mesmo não ocorre com relação à inimputabilidade do adolescente. Ao contrário, esta possui fundamentos históricos, sociais, biológicos, psicológicos e jurídicos.

Das Ordenações Filipinas, quando a imputabilidade penal iniciava aos sete anos e as crianças e jovens eram severamente punidos sem muita diferenciação quanto aos adultos, até o atual Estatuto da Criança e do Adolescente, que estabelece um sistema jurídico próprio para o tratamento dos adolescentes autores de atos infracionais, ocorreu uma grande evolução. A imputabilidade penal aos dezoito anos, erigida no Brasil à categoria de preceito constitucional3., e a adoção da Doutrina da Proteção Integral 4. são conquistas históricas e sociais, resultado da luta de inúmeros segmentos nacionais e internacionais.

O primeiro Código de Menores do Brasil, conhecido como Código Mello Mattos (Decreto n° 17.943-A, de 12 de outubro de 1927), consolidou as leis de assistência e proteção aos menores5 , refletindo um profundo teor protecionista e a intenção de controle total das crianças e jovens, consagrando a aliança entre Justiça e Assistência, constituindo novo mecanismo de intervenção sobre a população pobre. Neste momento,

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constrói-se a categoria do MENOR, que simboliza a infância pobre e potencialmente perigosa, diferente do resto da infância.

O sistema de proteção e assistência do Código de Menores submetia qualquer criança, por sua simples condição de pobreza, à ação da Justiça e da Assistência. A esfera jurídica era a protagonista na questão dos menores, por meio da ação jurídico-social dos Juízes de Menores.

Após o Código Penal de 1940 6 (Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940) fixar a imputabilidade penal aos 18 anos de idade, adotando o critério puramente biológico, a Lei n° 6.697, de 10 de outubro de 1979 estabelece o Novo Código de Menores, consagrando a Doutrina da Situação Irregular, mediante o caráter tutelar da legislação e a idéia de criminalização da pobreza. Seus destinatários foram as crianças e os jovens considerados em situação irregular, caracterizados como objeto potencial de intervenção dos Juizados de Menores, sem que fosse feita qualquer distinção entre menor abandonado e delinqüente: na condição de menores em situação irregular enquadravam-setanto os infratores quanto os menores abandonados.

Surgem as figuras jurídicas de "tipo aberto", tais como "menores em situação de risco ou perigo moral ou material", ou "em situação de risco", ou "em circunstâncias especialmente difíceis", estabelecendo-se o paradigma da ambigüidade. Isto afeta diretamente a função jurisdicional, pois o Juiz de Menores, além das questões jurídicas, será encarregado de suprir as deficiências das políticas públicas na área do menor, para tanto podendo atuar com amplo poder discricionário.

A medida especialmente tomada pelo Juiz de Menores, sem distinção entre menores infratores e menores vítimas da sociedade ou da família, costumava ser a internação, por tempo indeterminado, nos grandes institutos para menores. Como é inerente às instituições totais, o objetivo "ressocializador", porém, permanecia distante da realidade.

Freqüentemente as instituições totais afirmam sua preocupação com a reabilitação, isto é, com o restabelecimento dos mecanismos auto-reguladores do internado, de forma que, depois de sair, manterá, espontaneamente, os padrões do estabelecimento.(...) Na realidade, raramente se consegue essa mudança, e, mesmo quando ocorre mudança permanente, tais alterações freqüentemente não são as desejadas pela equipe dirigente, refere Goffman8.

Em nome da "proteção" dos menores, eram-lhes negadas todas as garantias dos sistemas jurídicos do Estado de Direito, praticando-se verdadeiras violações e concretizando-se a criminalização da pobreza e a judicialização da questão social na órbita do Direito do Menor. Com a determinação abstrata do que deve sofrer a ingerência do Juizado de Menores, negavam-se aos menores os direitos fundamentais de liberdade e igualdade, esquecendo-se de que, conforme Ferrajoli9, O desvio punível (...) não é o que, por características intrínsecas ou ontológicas, é reconhecido em cada ocasião como imoral, como naturalmente anormal, como socialmente lesivo ou coisa semelhante. Ao contrário, só pode ser punido o fato formalmente descrito pela lei, segundo a clássica fórmula nulla poena et nullum crimen sine lege.

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Neste tempo, de vigência do Código de Menores, a grande maioria da população infanto-juvenil recolhida às entidades de internação do sistema FEBEM no Brasil, na ordem de 80%, era formada por crianças e adolescentes, "menores", que não eram autores de fatos definidos como crime na legislação penal brasileira. Estava consolidado um sistema de controle da pobreza, que Emílio Garcia Mendez define como sociopenal, na medida em que se aplicavam sanções de privação de liberdade a situações não tipificadas como delito, subtraindo-se garantias processuais. Prendiam a vítima, sustenta Saraiva10.

Com a Doutrina da Situação Irregular, os menores passam a ser objeto da norma, por apresentarem uma "patologia social", por não se ajustarem ao padrão social estabelecido. Surgiu uma clara diferenciação entre as crianças das classes burguesas e aquelas em "situação irregular", distinguindo-se criança de menor, sendo comuns expressões como "menor mata criança".

Conforme Mendez11, As novas leis e a nova administração da justiça de menores nasceram e se desenvolveram no marco da ideologia dominante nesse momento: o positivismo filosófico.

Na passagem dos anos 50 para os 60, quando vigorava o Código de menores Mello Mattos, de caráter também puramente tutelar, ficou claro que a tentativa de salvar o país ao salvar a criança restara frustrada. Nos anos 70 os debates sobre a necessidade de criação do Novo Código de Menores tomam nova força, resultando no Novo Código de Menores de 1979 que, entretanto, consagrava a Doutrina da Situação Irregular, mantendo o caráter tutelar do Código anterior.

Paralelamente, na década de 50 os Estados Unidos estão dominados pelas teorias criminológicas da anomia e das subculturas, que se baseiam num modelo funcionalista da sociedade. Vigorava a criminologia positivista, sob o império do paradigma etiológico, segundo o qual o delinqüente, objeto da criminologia, era um ser patológico, que necessitava de tratamento, sendo sua conduta determinada por causas biológicas, psicológicas e sociais. El positivismo criminológico se asociaba con la idea de un ser patológico, distinto o enfermo, determinado al delito por unas causas, y con necesidad de tratamiento, esclarece Larrauri 12.

A teoria da anomia de Merton é um prolongamento da teoria da anomia de Durkheim, que buscou explicar as conseqüências patológicas da divisão do trabalho, do declínio da solidariedade social e do conflito entre as classes sociais, partindo do pressuposto de que Qualquer sociedade é uma sociedade moral. Em certos aspectos, este carácter é mesmo mais pronunciado nas sociedades organizadas. Porque o indivíduo não se basta, é da sociedade que recebe tudo o que lhe é necessário, como é para ela que trabalha 13.

Salienta Larrauri 14 que “De acuerdo a la teoria de la anomia desarrollada por Merton (1957), los individuos anhelan aquellos objetivos que son valorados en cada sociedad. (...) Debido a que las metas culturales son anheladas por todos y las oportunidades estructurales para su consecución son limitadas surge una tensión (strain), una situación de anomia. Una de las respuestas que el individuo puede adoptar frente a esta tensión es el comportamiento delictuvo”.

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O conceito sociológico de anomia envolve o contexto da estrutura cultural e da estrutura social, sendo a primeira o conjunto de valores normativos que governam a conduta dos membros de uma determinada sociedade, e a segunda o conjunto organizado de relações sociais. Para Merton 15, a anomia é então concebida como uma ruptura na estrutura cultural, ocorrendo, particularmente, quando há uma disjunção aguda entre as normas e metas culturais e as capacidades socialmente estruturadas dos membros do grupo em agir de acôrdo com as primeiras. Conforme essa concepção, os valôres culturais podem ajudar a produzir um comportamento que esteja em oposição aos mandatos dos próprios valôres.

Dentro da estrutura social é fácil e possível para alguns indivíduos, que ocupam certa posição dentro da sociedade, agir de acordo com os valores ditados, o que não ocorre com o restante. A estrutura social então poderá funcionar como barreira para o desempenho dos mandatos culturais. Quando a estrutura social e cultural estão mal integradas, a primeira exigindo um comportamento que a outra dificulta, há uma tensão rumo ao rompimento das normas ou ao seu completo desprezo, diz Merton16.

Embora a teoria da anomia tenha sido criticada por sua excessiva linearidade, deixou um importante legado para as teorias subculturais, cujo principal representante é Cohen.

A teoria de Cohen baseia-se na teoria de Merton e destina-se à explicação da delinqüência juvenil. Para Cohen, a estrutura de classes causa a delinqüência, que é produto de soluções coletivas para os problemas se status, necessidades e frustrações das classes baixas num mundo de valores da classe média.

Em síntesis, las teorias subculturales aceptarán que el joven situado en los estratos inferiores de la sociedad se enfrenta a una tensión por no poder acceder a los objetivos culturales valorados. Frente a esta tensión el joven renegará de los objetivos culturales dominantes y desarrollará unos valores propios de su (sub)cultura de acuerdo a los cuales ser valorado. El desarrollo de una subcultura delictiva aparece como una respuesta a los problemas planteados por una (mala) ubicación en la estructura social, conclui Larrauri 17.

A participação na subcultura dá status e prestígio aos menores (um êxito às avessas), aliviando as frustrações decorrentes do fato de não alcançarem as metas da classe dominante.

O Código de Menores de 1979, nos moldes do Código de Menores Mello Mattos, reflete o pensamento criminológico positivista, adotando o paradigma etiológico ao estabelecer que a criança e o adolescente são objetos da norma que merecem tratamento quando se encontram em situação irregular, o que legitimava práticas autoritárias, repressivas e incriminadoras da pobreza.

Importante salientar que enquanto na Europa, no final da década de 60 e início da década de 70, influenciada pelo libelling approuch, pela antipsiquiatria, pela etnometodologia e pelo marxismo, surgia a Nova Criminologia, que criticava

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severamente os postulados positivistas, os Códigos de Menores Mello Mattos e o Código de Menores de 1979 adotavam claramente seus preceitos.

Na época da contrarreforma da Criminologia Crítica (meio dos anos setenta e início dos anos 80), no Brasil vigorava o pensamento decorrente do golpe militar de 1964, que inclusive interrompeu o processo de reforma do Código de Menores Mello Mattos, fazendo cessar as discussões que estavam em andamento. Com o golpe, a questão do menor foi elevada à categoria de problema de segurança nacional, prevalecendo o implemento de medidas repressivas que visavam cercear os passos dos menores e suas condutas "anti-sociais". Estavam em pleno vigor os postulados positivistas.

Neste clima de ditadura militar, é aprovada a Lei n° 4.513, de 01 de dezembro de 1964, que cria a Política Nacional de Bem-Estar do Menor, estabelecendo uma gestão centralizadora e vertical. O órgão nacional gestor desta política passa a ser a FUNABEM (Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor) e os órgãos executores estaduais eram as FEBEMs (Fundações Estaduais de Bem-Estar do Menor).

Durante a crise da criminologia crítica (década de 80), quando ocorreu o fim da NDC (National Deviance Conference) e surgiram os realistas de esquerda (Young), os abolicionistas (Christie, Mathiesen, Bianchi e Hulsman) e os defensores do direito penal mínimo (Baratta), estava em pleno vigor no Brasil o Código de Menores de 1979, que substituiu o Código Mello Mattos, mas manteve sua postura positivista: o menor, infrator ou abandonado, seguia sendo um objeto que, por apresentar uma "patologia social", merecia tratamento.

No final da década de oitenta, em plena crise da criminologia crítica, o Brasil retomará o caminho de evolução para a Doutrina da Proteção Integral, interrompido pela Ditadura Militar, e iniciado em 20 de novembro de 1959 quando, onze anos depois Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, a ONU produzira a Declaração dos Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil, e que constitui um marco fundamental no ordenamento jurídico internacional relativo aos direitos da criança.

Paralelamente aos movimentos internacionais, no Brasil dos anos 80 foi concebida uma Constituição Federal voltada para as questões, mundialmente debatidas, dos direitos humanos de todos os cidadãos, a conhecida "Constituição Cidadã", de 1988, destacando-se, nesse contexto, o movimento denominado "A Criança e o Constituinte", voltado para a defesa dos direitos da criança.

Com o avanço da abertura política no Brasil vozes surgiram de diferentes segmentos para denunciar as injustiças e atrocidades que eram cometidas contra os menores. De acordo com Rizzini18 , As denúncias desnudavam a distância existente entre crianças e menores no Brasil, mostrando que crianças pobres não tinham sequer direito à infância.

Muitos movimentos questionavam o tratamento dado às crianças em "situação irregular" e as indiscriminadas internações determinadas pelos Juizados de Menores. A visibilidade crescente dos meninos de rua nos anos 80 também impulsionou a articulação de vários grupos em defesa dos direitos dos menores.

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Com a promulgação no Brasil do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8069, de 13 de julho de 1990) que, nos moldes da Constituição Federal, consagrou a Doutrina da Proteção Integral, foi revogada a arcaica concepção tutelar do menor em situação irregular. Estabeleceu-se que a criança e o adolescente são sujeitos de direito, e não mais objetos da norma, sendo totalmente remodelada a Justiça da Infância e da Juventude, abandonando-se o conceito de menor, como subcategoria da cidadania.

A substituição do Código de Menores de 1979 pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, constituiu uma verdadeira troca de paradigma, uma revolução cultural. Partindo do pressuposto de que as piores atrocidades contra a criança foram cometidas numa época em que, em nome do "amor", reinavam os ideais de messianismo, subjetivismo e discricionariedade, afirma Mendez19 que Tratava-se (e trata-se ainda), sobretudo, de eliminar as "boas" práticas "tutelares e compassivas". (...) Tratava-se (e trata-se ainda) de substituir a má, porém também "boa" vontade, nada mais – mas também nada menos – pela justiça.

O Estatuto da Criança e do Adolescente veio por fim às ambigüidades existentes entre a proteção e a responsabilização do adolescente infrator em conflito com a lei, criando a responsabilidade penal dos adolescentes 20.

Sustenta Mendez 21 que por sua parte, o modelo do Estatuto da Criança e do Adolescente demonstra que é possível e necessário superar tanto a visão pseudo-progressista e falsamente compassiva, de uma paternalismo ingênuo de caráter tutelar, quanto a visão retrógada de um retribucionismo hipócrita de mero caráter penal repressivo.

Foi criando, então, o modelo da justiça e das garantias para o adolescente em conflito com a lei. Antagonicamente ao subjetivismo e à discricionariedade do Código de Menores, surge uma legislação com caráter garantista, que estabelece o respeito rigoroso ao império da lei.

No sistema de responsabilidade penal do adolescente em conflito com a lei, no qual a medida socioeducativa tem natureza sancionatória, mas com caráter pedagógico, aplicam-se todas as garantidas asseguradas aos maiores de idade que infringem a lei penal, dentre as quais podemos destacar as seguintes: devido processo legal 22 (art. 5o, inciso LIV, da CF, e arts. 110 e 111, incisos I a VI, do ECA); princípio da tipicidade (art. 103, do ECA); necessidade de que o fato, além de típico, seja antijurídico e culpável 23 ; predomínio dos princípios do Direito Penal Mínimo, optando a lei juvenil pelas penas restritivas de direitos como alternativas à privação de liberdade; prevalência da máxima de que ninguém deverá ser privado de liberdade se a lei admitir liberdade provisória (art. 5o, inciso LXVI, da CF); gratuidade judiciária (art. 141, parágrafo 2o, do ECA); direito do adolescente de ser ouvido pela autoridade competente (art. 141, "caput", do ECA, e art. 5o, XXXV, da CF), direito à celeridade do processo, ao qual deverá ser dada prioridade absoluta (art. 227, "caput", da CF, e arts. 4o, "caput", art. 108, "caput", e art. 183, do ECA), etc. Somam-se a estas garantias àquelas inerentes às execuções das medidas, dentre as quais destacam-se o princípio da progressividade das medidas (art. 120, § 2o, in fine, c/c art. 121, "caput", primeira parte, do ECA, e art. 227, § 3o, da CF) e a aplicação dos direitos constitucionais de ampla defesa e contraditório

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(art. 5o, LV, da CF). Por fim, cabe dizer que os procedimentos para apuração de ato infracional correm em segredo de justiça, visando assegurar a inviolabilidade física e moral do adolescente (arts. 17 e 143, "caput", do Estatuto da Criança e do Adolescente).

Não se pode ignorar que o Estatuto da Criança e do Adolescente instituiu no país um sistema que pode ser definido como de Direito Penal Juvenil. Estabelece um mecanismo de sancionamento, de caráter pedagógico em sua concepção e conteúdo, mas evidentemente retributivo em sua forma, articulado sob o fundamento do garantismo penal e de todos os princípios norteadores do sistema penal enquanto instrumento de cidadania, fundado nos princípios do Direito Penal Mínimo, sustenta Saraiva 24

A construção jurídica da responsabilidade penal dos adolescentes constituiu uma conquista e um avanço extraordinário normativamente consagrado no Estatuto da Criança e do Adolescente, salientando Mendez 25 que (...) o ECA constitui uma resposta adequada, eficiente e consonante com os mais altos padrões internacionais de respeito aos direitos humanos. O ECA satisfaz o duplamente legítimo requisito de assegurar simultaneamente a segurança coletiva da sociedade, com o respeito rigoroso das garantias dos indivíduos sem distinção de idade.

Feitas estas considerações gerais, resta concluir que passados dez anos da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente no Brasil, embora já seja possível comemorar profundas e significativas alterações, é preciso manter viva a consciência de que a implementação do sistema de garantidas quanto à responsabilização penal do adolescente ainda depende de muitas ações para ser alcançada plenamente. Entretanto, para Mendez 26 a necessidade de leis reguladoras das medidas sócio-educativas, a área mais obscura da administração da justiça juvenil, não se justifica nem se legitima por imperfeições técnicas do ECA e sim, ao contrário e sobretudo, para enfrentar a sobrevivência de uma cultura da "proteção" subjetiva e discricional.

É certo que, como ocorre com a criminologia, que passou por importantes reformas e críticas e que está ainda em crise, pois, conforme Larrauri 27, La dificultad aparece en consecuencia en cómo compaginar uma criminología fundamentalmente teórica, que ejerza la crítica contra el sistema, com el interes de transformar la realidad, na questão do adolescente está presente o mesmo problema. Parece que teoricamente o Estatuto da Criança e do Adolescente rompeu com o paradigma anterior, possibilitando a construção de um novo modelo, com primazia às garantias constitucionais. Na prática, porém, verifica-se que a realidade ainda está distante destes ideais. Assim como no âmbito do direito penal persistem pensamentos e práticas do positivismo filosófico, embora coexistindo com as novas idéias propostas pela criminologia crítica, com relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente subsistem resquícios do subjetivismo e arbitrariedade herdados dos Códigos de Menores. Opera-se com os dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente, mas a cultura menorista está ainda presente e atuante, persistindo muitas vezes a lógica da Situação Irregular.

Neste sentido, Pareciera que modificar las asunciones que se basan em la aparencia de los hechos sociales, descontruyéndolos y mostrando su verdadera esencia, ayudará a

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transformar la sociedad. Cambia las ideas y deja que éstas cambien el mundo, conclui Larrauri 28 . Entretanto, sem esquecer que o primeiro passo para a reforma é a transformação do pensamento, é preciso ter presente que somente novas idéias não mudam o mundo.

Por outro lado, as dificuldades de implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente jamais deverão servir de fundamento para a redução da menoridade penal, sob pena desta postura representar a derrota dos ideais da Doutrina da Proteção Integral, caracterizando um retrocesso sem precedentes na área da infância e da juventude. Se no âmbito do sistema infanto-juvenil está difícil consolidar totalmente as garantias constitucionais dos adolescentes infratores, na órbita do direito penal esta meta se transformará automaticamente numa utopia. A crise no sistema de atendimento a adolescentes infratores privados de liberdade no Brasil só não é maior que a crise do sistema penitenciário, para onde se pretende transferir os jovens infratores de menos de dezoito anos, refere Saraiva29.

Submeter os adolescentes infratores ao sistema penal significaria subjugá-los a um sistema de poder no qual, segundo Zaffaroni 30, a seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais (...).

A irracionalidade e o processo de produção e reprodução de violência do sistema de execução penal tornam inadmissíveis quaisquer posicionamentos favoráveis à redução da menoridade penal. A perversão do discurso jurídico-penal faz com que se recuse, com horror, qualquer vinculação dos menores (especialmente os abandonados), dos doentes mentais, dos anciões e, inclusive, da própria prostituição com o discurso jurídico-penal (...), diz Zaffaroni 31.

Impõe-se, pois, um trabalho democrático entre a sociedade, a família e o Poder Público no sentido de assumir um compromisso pessoal, social e profissional com o adolescente em conflito com a lei, aceitando-se inteiramente os princípios da Convenção da ONU, da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente. Somente a percepção clara e o comprometimento de todos quanto às novas concepções e diretrizes do garantismo no sistema infanto-juvenil de responsabilização penal do adolescente infrator tornará possível a luta em busca de um resultado desejável e alcançável, no qual predomine a Doutrina da Proteção Integral.

1 BARRETO, Tobias. Menores e loucos. Recife: Typografhia Central, 1886, p. 132 2Importante dizer que tal assertiva foi elaborada quando estava em vigor o Código Criminal do Império do Brasil, de 13 de dezembro de 1830, que fixava a imputabilidade penal plena aos 14 anos de idade, estabelecendo, ainda, um sistema biopsicológico para a punição de crianças entre sete e quatorze anos. Entre sete e quatorze anos, os menores que agissem com discernimento poderiam ser considerados relativamente imputáveis, sendo passíveis de recolhimento às casas de correção, pelo tempo que o Juiz entendesse conveniente, contanto que o recolhimento não excedesse a idade de dezessete anos.. 3 Dispõe o art. 228, da Constituição Federal: "São penalmente inimputáveis os menores

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de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial 4 A Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente, a nível internacional, estabeleceu-se principalmente pela Convenção das Nações Unidas de Direito da Criança de 1989, e pelo seguinte conjunto normativo: - Regras mínimas das Nações Unidas para a Administração dos Direitos dos Menores, conhecidas como Regras de Beijing (29/11/1985);- Regras das Nações Unidas para a Proteção dos Menores Privados de Liberdade (14/12/1990); - Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil, conhecidas como Diretrizes de Riad (14/12/1990). No Brasil, a Doutrina da Proteção Integral foi expressa na Constituição Federal de 1988, que inclusive se antecipou à Convenção das Nações Unidas de Direito da Criança, e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8069, de 13 de julho de 1990) 5 Nessa época vigorava no Brasil o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil - Decreto n° 847, do dia 11 de outubro de 1890, que estabelecia a imputabilidade penal plena, com caráter objetivo, aos quatorze anos de idade. Irresponsável penalmente seria o menor com idade até nove anos. Quanto ao menor de quatorze anos e maior de nove anos, era adotado ainda o critério biopsicológico, fundado na idéia do "discernimento", estabelecendo-se que ele se submeteria à avaliação do magistrado. 6 Prevê o art. 23, do Código Penal de 1940: "Os menores de dezoito anos são penalmente irresponsáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial. 7 A reforma penal de 1984, inspirada na doutrina de Francisco de Assis Toledo, através da Lei n° 7.209, de 11 de julho de 1984, deu nova redação à Parte Geral do Código Penal, reafirmando a imputabilidade penal aos 18 anos de idade, em seu art. 27. 8 GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 67.

9 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 30.

10 SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente em conflito com a lei: da indiferença à proteção integral: uma abordagem sobre a responsabilidade penal juvenil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 47.

11 MENDEZ, Emilio Garcia. Por uma reflexão sobre o arbítrio e o garantismo na jurisdição sócio-educativa. Buenos Aires - Belo Horizonte, fevereiro de 2000. 12 LARRAURI, Elena. La herencia de la criminología crítica. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores, 1991, p. 12.

13 DURKHEIM, Émile. A divisão social do trabalho. Portugal: Editorial Presença, 1977, p. 261.

14 LARRAURI, Elena. Op. cit. p. 04.

15 MERTON, Robert K. Sociologia, teoria e estrutura. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1968, p. 36. 16 MERTON, Robert K. Op. Cit. p. 237.

17 LARRAURI, Elena. Op. Cit. p. 08.

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18 RIZZINI, Irene. A Criança e a Lei no Brasil – Revisitando a História (1822-2000). Brasília, DF: UNICEF; Rio de Janeiro: USU Ed. Universitária, 2000, p. 74 19 MENDEZ, Emilio Garcia. Por uma reflexão sobre o arbítrio e o garantismo na jurisdição sócio-educativa. Buenos Aires - Belo Horizonte, fevereiro de 2000. 20 Importante dizer que foi criada a responsabilidade penal do adolescente com idade entre 12 e 18 anos. Os menores de 12 anos, além de inimputáveis, são penalmente irresponsáveis, sendo passíveis apenas de receber medidas de proteção quando infringirem as leis penais (art. 105, do Estatuto da Criança e do Adolescente). 21 MENDEZ, Emílio Garcia. 22 Na garantia ao devido processo legal incluem-se os mandamentos constitucionais relativos ao princípio do juiz natural (art. 5o, XXXVII e LII), a garantia do respeito à integridade física e moral (art. 5o, XLIX), o direito ao contraditório e ampla defesa (art. 5o, LV), o princípio da presunção da inocência (art. 5o, LVII), a obrigatoriedade do relaxamento da prisão ilegal (art. 5o, LXV), partindo da premissa de que "as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata" (art. 5o, LXXVII e parágrafo 1o) 23 É certo que os elementos da culpabilidade, à exceção da imputabilidade, devem estar presentes para a caracterização do ato infracional 24 SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e ato infracional, garantias processuais e medidas socioeducativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 45.

25 MENDEZ, Emilio Garcia. Por uma reflexão sobre o arbítrio e o garantismo na jurisdição sócio-educativa. Buenos Aires - Belo Horizonte, fevereiro de 2000.

26 Idem.

27 LARRAURI, Elena. Op. Cit. p. 238.

28 LARRAURI, Elena. Op. Cit. p. 239.

29 SARAIVA, João Batista Costa. Direito Penal Juvenil: adolescente e ato infracional, garantias processuais e medidas socioeducativas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 45.

30 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 15.

31 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. Cit. p. 22.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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