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POR UMA NOVA ORGANIZAÇÃO DAS RELAÇÕES AFETIVAS Organização é um princípio importante. Organização gera funcionalidade. Funcionalidade gera eficiência e sucesso generalizado. A maneira como organizamos as relações afetivas atualmente não deixa de ser, sim, uma organização, justamente por implicar em funcionalidade, eficiência e sucesso generalizado. Mas nem todo modelo é perfeito. Portanto, sucesso generalizado não é sucesso absoluto. A imperfeição é uma verdade inquestionável e inconveniente, que precisa ser reconhecida. Em par com essa realidade, trabalhamos então com modelos de organização mais ou menos perfeitos. Dessa forma, tudo se torna uma questão de avaliar o que é menos imperfeito ou mais perfeito, no sentido de distanciamento e aproximação do perfeito absoluto, um ideal não compatível com a realidade, repleta de variáveis. (Nota: é vital que, na busca de um ideal, por mais irrealizável que este seja, tenha-se ao menos uma noção de como ele se define, para que assim possamos explorar os caminhos a fim do mesmo. Portanto, definimos o “perfeito absoluto” pura e simplesmente como a satisfação absoluta de todos os indivíduos). Assim, propõe-se aqui uma maneira de organização considerada mais perfeita do que a já relativamente perfeita maneira como nos organizamos afetivamente. Com que intuito? Bem, parece lógico afirmar que uma organização mais perfeita, em comparação com uma menos perfeita (ainda que funcional, eficiente e bem-sucedida) é consequentemente de maior interesse aos indivíduos. Então, por que não buscá-la? Posto isso, seguimos com a proposta: A relação afetiva, estritamente, pode ser entendida como uma relação de permuta entre dois ou mais indivíduos, permuta essa envolvendo qualidades como: amor, apego, amizade, carinho, ternura, companheirismo, etc. Dentro do sistema organizacional ao qual estamos submetidos culturalmente, existem formas de legitimação de uma relação afetiva, e estas formas se apropriam de qualidades. Podemos considerar uma dessas formas como o namoro, e suas qualidades como o amor, o apego, a amizade, o carinho, a ternura e o companheirismo. De fato, o namoro não se apropria egoisticamente de todas essas qualidades, de modo a cercear a obtenção delas em outras formas de relação, como a relação denominada

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POR UMA NOVA ORGANIZAÇÃO DAS RELAÇÕES AFETIVAS

Organização é um princípio importante. Organização gera funcionalidade.Funcionalidade gera eficiência e sucesso generalizado. A maneira como organizamos asrelações afetivas atualmente não deixa de ser, sim, uma organização, justamente porimplicar em funcionalidade, eficiência e sucesso generalizado.

Mas nem todo modelo é perfeito. Portanto, sucesso generalizado não é sucessoabsoluto. A imperfeição é uma verdade inquestionável e inconveniente, que precisa serreconhecida.

Em par com essa realidade, trabalhamos então com modelos de organização mais oumenos perfeitos. Dessa forma, tudo se torna uma questão de avaliar o que é menosimperfeito ou mais perfeito, no sentido de distanciamento e aproximação do perfeitoabsoluto, um ideal não compatível com a realidade, repleta de variáveis.

(Nota: é vital que, na busca de um ideal, por mais irrealizável que este seja, tenha-se aomenos uma noção de como ele se define, para que assim possamos explorar oscaminhos a fim do mesmo. Portanto, definimos o “perfeito absoluto” pura esimplesmente como a satisfação absoluta de todos os indivíduos).

Assim, propõe-se aqui uma maneira de organização considerada mais perfeita do que ajá relativamente perfeita maneira como nos organizamos afetivamente.

Com que intuito? Bem, parece lógico afirmar que uma organização mais perfeita, emcomparação com uma menos perfeita (ainda que funcional, eficiente e bem-sucedida)é consequentemente de maior interesse aos indivíduos. Então, por que não buscá-la?

Posto isso, seguimos com a proposta:

A relação afetiva, estritamente, pode ser entendida como uma relação de permutaentre dois ou mais indivíduos, permuta essa envolvendo qualidades como: amor,apego, amizade, carinho, ternura, companheirismo, etc.

Dentro do sistema organizacional ao qual estamos submetidos culturalmente, existemformas de legitimação de uma relação afetiva, e estas formas se apropriam dequalidades. Podemos considerar uma dessas formas como o namoro, e suas qualidadescomo o amor, o apego, a amizade, o carinho, a ternura e o companheirismo.

De fato, o namoro não se apropria egoisticamente de todas essas qualidades, de modoa cercear a obtenção delas em outras formas de relação, como a relação denominada

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amizade, uma qualidade que é também forma, e que também pode se apropriar dequalidades como apego, carinho, ternura e companheirismo.

É criada uma tensão, no entanto, a partir do momento em que acontece umacirramento de distribuição entre as qualidades, de modo a questionar a denominaçãodas próprias formas dentro das quais os indivíduos se inserem.

Assim, a amizade de um indivíduo x - que namora um indivíduo y - com um indivíduo zpode, no intercâmbio de qualidades, gerar dúvida quanto à natureza denominativa darelação, de modo que ela possa parecer, de repente, mais com um namoro e menoscomo uma amizade, ao passo que o namoro, esmorecendo de algumas qualidades porele apropriadas, possa parecer-se menos com um namoro e mais com uma amizade.

A atitude do indivíduo diante de uma dúvida conceitual semelhante a essa é,geralmente, a de substituir a denominação das coisas, de modo a substituir a forma desuas relações e consequentemente as qualidades que estas oferecem. Por exemplo: aopegar-se intercambiando mais qualidades consideradas apropriadas ao namoro comum amigo, o indivíduo x pode “promover” esse amigo a namorado, e “rebaixar” aquelenamorado a um amigo.

A tensão, no entanto, não cessa. E a reorganização executada pelo indivíduo tampoucosoluciona o problema de modo duradouro, apenas de modo momentâneo, porqueessa mesma dúvida conceitual estará sujeita a reaparecer com o tempo. Percebe-se,então, uma realidade em que indivíduos desempenham uma realocação constante emformas conceitualmente definidas.

A filiação às formas é restringida culturalmente, de modo que um indivíduo não podeter mais de um namorado ao mesmo tempo, ainda que possa ter quantos amigosquiser.

É aqui que entra outra importante qualidade: a exclusividade. Exclusividade é umaqualidade apropriada pelo namoro, mas não pela amizade. A exclusividade impede quehaja demais trocas de qualidades que poderiam definir uma relação como namoro, demodo a preservar uma única filiação à forma namoro.

No entanto, considerando a natureza volúvel das qualidades permutadas, as formasestão sujeitas a uma constante flexibilidade, à variação de intensidade ou à supressãototal.

Para resolver esse paradigma, a maneira de organização atual das relações afetivasimpõe o reforço da forma sobre as necessidades de permuta das qualidades. Dessemodo, abre-se mão das necessidades de troca de carinho, companheirismo, amizade eternura com outras pessoas em favor da manutenção da forma da relação com umúnico indivíduo, e consequentemente do reforço dessas qualidades sobre uma só

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pessoa, mesmo que esta não reflita mais a sua fonte de obtenção de satisfação ou nãoseja suficiente para a realização de todas as suas necessidades de troca de qualidades.

Sobre esse paradigma, a maneira alternativa de organização das relações afetivaspropõe uma dissolução completa das formas, privilegiando de modo absoluto asnecessidades de troca de qualidades. Assim, acaba-se com denominações, que limitampor vias conceituais as liberdades de ação, e propõe o cumprimento das satisfaçõesunicamente relacionadas às necessidades de troca de qualidades entre indivíduos.

Nesse sentido, um indivíduo troca com o outro o que o momento dita, sem a sombrada forma e da cultura. Assim, atinge-se a satisfação sem nenhum tipo de efeitocolateral, que seria a insatisfação, gerada pelo não cumprimento da satisfação ou pelaimposição da satisfação do outro.

As relações, é importante ressaltar, não assumiriam o dinamismo aparente: para cadanecessidade de troca de qualidades, constrói-se uma relação que é imediatamentedescartada após a conclusão da satisfação momentânea, precisando ser construída denovo para um reinicio. O que coloca isso em xeque é outra qualidade: a intimidade.

A intimidade é a abertura que um indivíduo tem em relação à multidimensionalidadedo outro. A intimidade, por sua própria natureza, não é uma qualidade passível deexigência ou imposição, porque demanda recursos de construção, que são mobilizadospor necessidades de troca de qualidades menores, momentâneas e imediatas, porémrepetíveis; trocas de qualidades espontâneas, mas também cumulativas.

(A intimidade não é pois uma construção duradoura que, até mesmo na forma atual deorganização afetiva, ela é desenvolvida antes de qualquer legitimação de forma. Emalgumas culturas, em que há casamentos arranjados, os casais passam a vida sem criarintimidade, desenvolvendo apenas certo grau de convivência um com o outro).

Essa acumulação eventualmente pode abrir as portas para outros aspectos deconvivência, de modo a permitir o acesso de um indivíduo ao outro de maneirarecíproca e irrestrita, permitindo tanto mais as trocas de qualidades quanto avariedade das mesmas, expandindo a dimensão da relação entre dois ou maisindivíduos cada vez mais, de maneira sempre espontânea e natural, firmando umvínculo duradouro constituído pela afinidade e pela capacidade de satisfação mútuaentre essas duas pessoas, sem o cerceamento de suas liberdades e a imposição decumprimentos de forma.

A necessidade de exclusividade, por sua vez, nessa nova forma de organização afetiva,é dissolvida por completo, uma vez que esta é uma necessidade cultural, de costume,gerada por um senso de protecionismo ante as ameaças de perda. Quando o chamadociúme se manifesta, este nos alerta sobre os possíveis riscos de se perder o parceiropara outro. Sabe-se que, na troca denominativa das relações, na alteração dos rótulos

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(por exemplo, no caso de “promover” um amigo a namorado e “rebaixar” umnamorado a amigo), nem sempre, em nossa cultura, a troca é puramente conceitual,sem danos emocionais: muitos casos provam como uma convivência com um ex-namorado é dificultada pela própria forma do namoro e sua exigência de exclusividade.Isso porque o amigo “promovido”, agora namorado, ainda enxergaria seu antecessorcomo um perigo em potencial, disposto a articular a conquista (a reaver suapropriedade) de volta, assim acirrando as relações e criando tensões que forçammedidas derradeiras, tomadas por conveniência, de modo a privilegiar o bem-estar deuns em favor do mal-estar de outro: normalmente, o desapego forçoso em relação aum ex-parceiro, o apagamento total ou parcial da presença deste em sua vida.

É importante, no entanto, caracterizar outras faces do ciúme, que não se encerraapenas no medo da perda, se manifestando também em recortes de contextoespecíficos em que um indivíduo manifesta sentir ciúme pelo outro. Uma situaçãoilustrativa é a de uma festa, local onde normalmente existe a prerrogativa de seduçãosexual, em que a seguinte ocorrência invariavelmente surge: o indivíduo a se pegaatraído pelo indivíduo b, que, por sua vez, está mais atraído pelo indivíduo c (ahipótese, a fim de torná-la básica, pressupõe que os indivíduos não se conheçampreviamente); o indivíduo c, em seu turno, acaba por corresponder ao interesse doindivíduo b, deixando o indivíduo a excluído do espaço de conexão entre os indivíduos(culturalmente admitido só por dois). Nessa situação, pressupondo o desejo ardentedo indivíduo a por uma aproximação sexual ao indivíduo b, é natural que o primeiromanifeste, interna e às vezes externamente, um misto de desgosto, raiva e aperto doego que poderíamos denominar como ciúmes, gerando até mesmo tristeza. O queacontece é que, naquele recorte contextual, que compreende o ambiente e o tempoda festa (o aqui-agora), ou seja, a manifestação de desejo momentânea naqueleespaço determinado, o indivíduo a, dominado por sentimentos de vontade nãoresolvida, tem sua recompensa (a vontade, a expectativa) inibida. O motivo por trás danão seleção do indivíduo a pelo indivíduo b (que preferiu o indivíduo c) pode abrir, noprimeiro, vertentes de desgosto tais como a suposição de que ele é menos atraente oude que é menos capaz para a sedução. Ainda se alicerçando sobre o princípio do medoda perda, porém, essa face do ciúme é pertinente de ser ilustrada, uma vez que podefugir à compreensão sobre a organização afetiva atual que o medo da perda possa semanifestar em situações mais momentâneas que frustram realizações geradas peloaqui-agora do indivíduo, pintando-o, ainda por cima, como um perdedor, mesmo quemomentaneamente.

O novo modo de organização afetiva proposto, no entanto, esbarra em imperfeições.Mas estas, como veremos, são imperfeições também apresentadas pelo modo como jános organizamos afetivamente, e que, a bem da verdade, são de natureza não daorganização, mas dos ainda incógnitos motivos pelos quais atributos estéticos,comportamentais e intelectuais movem os desejos do indivíduo. Dessa forma,

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assumindo que o indivíduo a do exemplo anterior fosse absolutamente (ou seja, nostrês quesitos levantados acima: estético, comportamental e intelectual) não atraenteaos olhos do indivíduo b, ele jamais seria escolhido por este; e, ainda que a culturafosse mais liberal (num ideal proposto pela nova organização afetiva) e admitisse umaconexão de permuta de qualidades triangular (no senso-comum, um triânguloamoroso, ou um ménage-à-trois, considerando unicamente permutas físicas), oindivíduo a, se tão indesejável assim, igualmente não seria selecionado. Este marcointransponível (a não ser através de mudanças (completamente possíveis, aliás)estéticas, comportamentais e intelectuais articuladas pelo próprio indivíduo) configuraa conformidade zero que toda forma de organização deve admitir (caso contrário, seriaum atentado à liberdade), sendo de inteira responsabilidade do indivíduo indesejado arejeição por ele sofrida.

De fato, atestamos a funcionalidade, a eficiência e o sucesso generalizado desta formade organização. E ainda que outras facetas dessa organização proposta e problemáticasnão observadas possam surgir, a ideia central é estabelecer como essa maneira deorganização é a mais perfeita possível ou menos imperfeita possível, através dosargumentos fundamentais aqui oferecidos, sendo, portanto, um exercício de sensatezacatá-la e implementá-la socialmente, antes no seu meio próximo, e adiante comoefeito da aplicação sucessiva dos indivíduos atingidos em outros.