Por que o método histórico-crítico não dá certo no Brasil...

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Por que o método histórico-crítico não dá certo no Brasil?

Julio Fontana*

Escrever um artigo que trate de um determinado método de interpretação bíblica não é uma tarefa muito fácil de ser realizada. Todavia, a difi culdade não se constituiu num obstáculo que me levasse à de-sistência. Confesso que ao iniciar o estudo fi quei um pouco desanimado com a complexidade do assunto devido aos inúmeros equívocos dogmáticos relacio-nados à hermenêutica bíblica e que vêm sendo per-petuados ao longo dos séculos. Antes de mais nada, devo começar a “quebrar” os tabus que se formaram em torno da interpretação bíblica para somente de-pois examinar a difi culdade na aplicação do método histórico-crítico no âmbito brasileiro.

1- Os autores bíblicos interpretando às suas próprias experiências

A expressividade é constitutiva do ser humano. Tão universal e tão entranhada no homem, que o herme-neuta Gadamer aponta “o caráter essencialmente lin-guageiro de toda experiência humana no mundo”.1

O que é linguagem? O fi lósofo Battista Mondin de-fi ne linguagem como um “sistema de signos que torna possível a comunicação entre os homens. Por signo entende-se algo que existe por outra coisa diferente, que indica algo diverso de si mesmo: por exemplo, a fumaça supõe fogo, a pomba traz à mente a idéia da paz. É, portanto, da essência do signo o ter caráter intencional: quer dizer, atrai a atenção não sobre si, mas sobre a coisa de que é signo”.2

• Devo frisar que a linguagem não participa da re-alidade das coisas, apenas as representa afi ns de comunicação.

A linguagem é, portanto, um sistema de signos ar-tifi ciais e convencionais destinados à comunicação.

Um dos aspectos primordiais da linguagem é o fato dela ser uma propriedade peculiar do homem. Somente o homem criou uma linguagem para se co-municar com seus semelhantes. Os objetos, as plan-tas e os animais não usufruem da linguagem. Apenas o homem é um ser lingüístico. Huxley, por exemplo, se pergunta: “O que faz do homem o que ele é?” Ele

sustenta que a única resposta válida seja a lingua-gem.3

Fora isso, a linguagem é de fundamental importân-cia na vida do ser humano. Cassirer, que produziu um estudo magistral acerca das formas simbólicas, a pro-pósito da importância da linguagem, exprime-se do seguinte modo: “A linguagem é um dos meios funda-mentais do espírito, graças ao qual se realiza a nossa passagem do mundo da sensação ao mundo da visão e da representação”.4 Gusdorf, por sua vez, escreve: “A invenção da linguagem é a primeira das grandes invenções, a que contém em estágio embrionário todas as outras, talvez menos sensacional que a do-mesticação do fogo, porém, mais decisiva”.5 Polanyi evidencia a importância da linguagem mostrando como nela se dá um salto qualitativo entre o homem e o animal. Ele declara que “a enorme superioridade do homem com relação aos animais é devida para-doxalmente a uma vantagem quase imperceptível no momento inicial nas suas faculdades inarticuladas. A situação pode ser retomada nos três pontos seguintes: a superioridade intelectiva do homem deve-se qua-se exclusivamente ao uso da linguagem. O dom da palavra, porém, não se pode dever a vantagens pré-lingüísticas. Todavia, se se deixam de lado os elemen-tos lingüísticos, os homens acham-se minimamente avantajados na resolução das espécies de problemas que nós submetemos aos animais. Disso decorre que as faculdades inarticuladas – as potências – com as quais o homem supera os animais e que, produzindo linguagem, explicam a superioridade intelectiva do homem, em si mesmas são quase imperceptíveis”.6 Heidegger chamou a atenção, sobretudo, para a im-portância “metafísica” da linguagem. Ele diz:

“O homem fala. Nós falamos na vigília e no sono. Fa-lamos sempre, até quando não proferimos nenhuma palavra, mas escutamos ou lemos, mas nos dedicamos a um trabalho ou nos perdemos porque o falar nos é inato. O falar não nasce de ato particular da vontade. Diz-se que o homem é de natureza falante e é próprio dele, ao contrário das plantas e dos animais, é o ser vivente capaz de falar. Dizendo isso, não se pretende afirmar apenas que o homem possui, ao lado de outras faculdades, também a de falar. Pretende-se dizer que

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propriamente a linguagem faz do homem o ser vivente, também a de falar”.7

Battista Mondin também ressalta a importância da linguagem. Ele diz:

“Hoje, a importância da linguagem em si e, por conse-guinte, também como argumento de reflexão filosófica é universalmente reconhecida. Não há nenhum aspecto da realidade e nenhum problema filosófico que não se ache possível resolver abordando-o do ponto de vista lingüístico. Não só a palavra nos permite falar de tudo, mas também achar a explicação de tudo”.8

Qual é a origem da linguagem? O estudo da lin-guagem teve início nos tempos pré-socráticos, os quais formulam claramente as duas principais ques-tões que, nessa matéria, ocuparão os fi lósofos por vá-rios milênios.a) A questão da origem da linguagem. Ela foi rece-

bida dos deuses ou elaborada pelo homem?

b) A questão da natureza da linguagem. As palavras são signos convencionais ou naturais das coisas?

Alguns pré-socráticos (Pitágoras, Demócrito, Em-pédocles) derivam a linguagem diretamente da na-tureza ou mesmo da divindade e a concebem com um espelho direto e imediato das coisas. Os sofi stas consideram convencional tanto a sua origem quanto a sua função. Aristóteles concebe a linguagem como instrumento do pensamento, e dado que o pensa-mento retorna às coisas, também a linguagem tem, em última análise, a função de representar as coisas, mas a escolha deste ou daquele som para signifi car uma dada coisa depende da decisão do homem. A linguagem é, portanto, natural na sua função, mas convencional na sua origem. Santo Agostinho estuda a relação da linguagem humana com as coisas e com o verbo interior, que ele identifi ca com o Verbo divi-no, e subordina a linguagem antes de tudo às coisas, mas defi nitivamente ao Verbo divino, que é a fonte de toda verdade.

No século XX, com a ascensão da linguagem na hierarquia dos interesses dos fi lósofos, até ocupar o primeiro lugar, a problemática da linguagem é abor-dada de muitos ângulos:a) do semântico: se busca um critério geral de sig-

nifi cação. É o caso dos neopositivistas e dos ana-listas da linguagem.

b) do gnosiológico: para os novos hermeneutas e em particular para Gadamer, reunindo a herança do passado, a linguagem constitui a fonte primá-ria do conhecimento.

c) do ontológico: para Heidegger, o segredo do ser revela-se na linguagem.

d) do social: é o aspecto que mais interessa aos marxistas e aos estruturalistas, os quais vêem na linguagem a estrutura que sustenta e clarifi ca to-das as outras estruturas da sociedade.

e) do psicanalítico: para os discípulos de Freud, os mistérios do subconsciente vêm à luz na lingua-gem.

Tendo sua origem divina ou não, a linguagem é a principal forma pela qual Deus pôde se comunicar com o homem. Ele se revelou aos autores da Bíblia das seguintes formas: de forma direta (principalmente aos patriarcas, ver Gn 12.1-3), através de revelações internas, (visões e sonhos, ver Is 6ss.; Jr 1.4ss.; Ez 1.1), pelas leis da natureza (Rm 1.20-24), pela lei mosaica (Rm 2.18) e pela história.9 Entretanto, todas essas co-municações foram reduzidas à forma escrita, no qual o resultado é a Bíblia. Destarte, o que é a Bíblia? É a forma com a qual o homem encontrou de fi xar, de perpetuar e de transmitir às gerações posteriores as revelações que recebera de Deus.

A Bíblia, no sentido que os fundamentalistas in-sistem, não é a Palavra de Deus. Ela é a palavra do homem buscando interpretar a sua experiência com Deus, ou seja, a revelação de Deus. A Bíblia, na ver-dade, é um “livro de confi ssões”. Homens no passa-do tiveram uma experiência do divino, e passaram a fi xá-las na forma escrita. Mas surge uma questão: será que palavras podem refl etir fi elmente uma experiên-cia, ou revelação?

As palavras não são idênticas à experiência. A ex-periência não se reduz a qualquer forma escrita. O que é subjetivo não pode ser descrito por meio de pa-lavras. Decorre que quem fala na Bíblia é o homem. Descreve sua experiência com Deus. Essa descrição não é uma representante fi el da experiência, e sim uma interpretação dela. A Bíblia em si é uma interpretação.

De tudo o que vimos até agora, qual é a melhor defi nição para a Bíblia? A Bíblia é a Palavra de Deus. Mas não se resume a isso. A Palavra de Deus tem um signifi cado mais amplo do que aquele da Sagra-da Escritura. A Bíblia, como já afi rmei é apenas um testemunho, um simples sinal da Palavra de Deus revelada. A Palavra de Deus é todo o conjunto da automanifestação divina. A automanifestação divina assume três aspectos ou formas: a revelação, a Bíblia e a pregação.a) A revelação é a forma a qual Deus se faz conhe-

cer aos homens. Ele não se revelou somente pela

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Escritura, mas também pela especulação (astro-logia, física, fi losofi a), pelas outras religiões (is-lamismo, zoroastrismo, budismo), pela criação (Rm 1.20), pela Lei (Rm 2.18) e, principalmen-te, pela consciência. Esta última é a que priorizo dentre todas as espécies de revelações.

b) A Bíblia é o dentre todas as formas de revela-ção, a mais exaustiva e sistemática. A consciên-cia (chamada por Paulo de “coração”), na minha opinião, é a mais profunda revelação dada por Deus às suas criaturas. Paulo disse em sua carta aos romanos: “De fato, quando os gentios, que não têm a Lei, praticam naturalmente o que ela ordena, tornam-se lei para si mesmos, embora não possuam a Lei; pois mostram que as exigên-cias da Lei estão gravadas em seu coração” (Rm 2.14,15). Mesmo assim a importância da Bíblia para a Igreja é fundamental, como observou Karl Barth: A Bíblia é “o instrumento concreto me-diante o qual a Igreja pode recordar a revelação de Deus ocorrida e ser solicitada, autorizada e guiada para a espera da revelação futura, e com essa, para a pregação”.10 Pode-se afi rmar que outros livros sagrados possuem seus respectivos valores, mas a Bíblia dos judeus e dos cristãos é a mais completa, coerente e sistemática.

c) A pregação é o anúncio da revelação ocorrida que é feito pela Igreja. Ela por isso, se subordina essencialmente à Palavra revelada, que forma a base, o seu critério, o acontecimento milagroso em que ela encontra o seu constituinte essen-cial. A pregação é aquela que mostra a efi cácia da Palavra de Deus, ela converte o ser humano, o provoca na sua existência, como disse Rubem Alves “a pregação não provoca a crise. Apenas a revela. Trata-se de um processo maiêutico que força a crise a sair do seu esconderijo”.11

2- O homem atual interpretando à BíbliaComo cristãos do século XXI, voltamo-nos para a

Bíblia para ouvir a mensagem que ela continua a nos transmitir hoje, precisamente como pessoas que vi-vem numa cultura ocidental sofi sticada, moldada nos últimos séculos pela Renascença, pela Reforma, pelo Iluminismo, pela era da ciência, indústria e tecnolo-gia. Porém nos voltamos para ela não como literalis-tas, mas como cristãos de pensamento moderno.

Rudolf Bultmann concentrou a maior parte dos seus esforços nesse empreendimento: tornar o evangelho inteligível ao homem moderno. Mondin comenta o programa da desmitologização de Bultmann:

“A desmitologização corresponde inegavelmente a uma das necessidades permanentes da fé, a de conser-var pura a mensagem revelada e manter intacta a sua inteligibilidade. Bultmann teve o mérito singular de ter revelado sua urgência num momento em que, por múl-tiplas razões, a mensagem original parece poluída por muitos elementos estranhos e parece ter perdido toda eficácia”.12

Mesmo que não tenha obtido o êxito esperado, Bultmann chamou nossa atenção para a necessidade de uma hermenêutica crítica. Uma volta à interpreta-ção pré-crítica é impossível.

Mas como o homem moderno tem interpretado a Bíblia? Ele tem interpretado de modo antropocên-trico. As pessoas sofrem uma verdadeira atração por procurarem na Bíblia respostas prontas para os seus problemas pessoais aqui na terra. Tudo que está es-crito na Bíblia deve ser obrigatoriamente aplicado às suas vidas a fi m de lhes trazerem segurança. Se não consentir a esse fi m não é a Palavra de Deus!

Fitzmyer aponta uma conseqüência dessa inter-pretação fundamentalista-pragmática:

“O que muitas vezes ocorre em conseqüência de se deixar atrair por este modo de ler a Bíblia é que inevi-tavelmente muitas dessas pessoas têm um crescimento intelectual e, percebendo não ser possível ler a Bíblia desse modo, simplesmente abandonam todos os com-promissos de fé”.13

O homem moderno deve interpretar a Bíblia pro-curando atender às suas necessidades reais, contudo sem esquecer que aquele texto foi escrito para nos dar um maior conhecimento acerca de Deus, reve-lando assim sua vontade e cobrando o nosso arrepen-dimento, o nosso retorno a criaturalidade. O método histórico-crítico, praticado de forma saudável, é in-dispensável para a interpretação da Bíblia hoje.

Superado os tabus podemos adentrar no tema en-sejador do estudo.

3- O método histórico-críticoEsse método de interpretação bíblica chama-se

“histórico-crítico” porque adota as técnicas da crítica histórica e da literária. Reconhece que, embora seja a Palavra de Deus escrita e inspirada, a Bíblia é um re-gistro antigo, composto por muitos autores humanos durante um longo período de tempo. Como tal, tem de ser lida, estudada e analisada como outros regis-tros antigos da história humana. Como a Bíblia narra acontecimentos que afetaram a vida dos judeus anti-gos e dos cristãos primitivos, seus diversos relatos têm de ser lidos, comparados e analisados nas línguas ori-ginais, contra os panos de fundo humano e histórico

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apropriados e nos contextos contemporâneos. Com efeito, esse método aplica à Bíblia todas as técnicas críticas da fi lologia clássica e, ao fazê-lo, recusa-se a priori a excluir qualquer análise crítica em sua busca do sentido do texto sagrado e inspirado. Chama-se um método “crítico” não porque crítica a Bíblia ou busca evocar o ceticismo sobre o registro histórico do texto antigo, mas porque compara e analisa seus detalhes, no esforço de chegar a um julgamento his-tórico e literário sobre ele.14

Joseph A. Fitzmyer relatou que “o método históri-co-crítico de interpretação bíblica tem sido o modo predominante nos últimos séculos, usado por intér-pretes da Bíblia católicos, judeus e protestantes”.15 Ênio Mueller é da mesma opinião, e diz:

“Atualmente, o ‘método histórico-crítico’ impera nos estudo bíblicos a nível mais especializado, praticamen-te em todas as latitudes onde o cristianismo se faz pre-sente”.16

As raízes do método histórico-crítico estão fi ncadas na Escola de Alexandria de interpretação nos últimos tempos helenísticos, em especial sob os Ptolomeus que fundaram a biblioteca de Alexandria e atraíram gramáticos, retóricos e fi lósofos ao Museion. Fitzmyer comenta que “embora hoje pareça um tanto primiti-vo, o método então usado constituiu um esforço críti-co para determinar a forma correta de textos antigos, o signifi cado fi lológico das epopéias homéricas e de outras obras de literatura grega, e o sentido literal dos livros veneráveis de gregos e bárbaros”.17 Os teólogos cristãos que se utilizaram do método para interpretarem as Escrituras foram Orígenes, Agostinho e Jerônimo.18

Mesmo tendo suas raízes na Antiguidade, o méto-do histórico-crítico predominou como método inter-pretativo a partir da Renascença. Nessa época houve uma forte ênfase em recursus ad fontes, ou seja, “vol-ta às fontes”, que envolvia o estudo do grego clássico, as línguas semíticas e os escritos dos autores antigos cujas obras tinham sido menosprezadas na baixa Ida-de Média. Então a busca do sentido literal da Escritu-ra foi empreendida de maneira renovada com todas as técnicas desenvolvidas nessa época.19

Nos séculos XVII e XVIII, o método histórico-críti-co desenvolveu-se mais, pelo esforço do jurista e teó-logo holandês Hugo Grotius, do oratoriano e biblista francês Richard Simon e do fi lósofo holandês Baruch Spinoza – portanto, pela obra de um protestante, um católico e um judeu.20

Um impulso maior foi dado a esse método de interpretação bíblico por ocasião do Iluminismo e pelo movimento do historicismo alemão no século XIX. Também contribuíram para o desenvolvimento

do método as grandes descobertas e fatos da história antiga que vieram à luz de uma forma que era desco-nhecida nos séculos anteriores, mesmo na época da Renascença e da Reforma.

Um dos praticantes mais renomados do método histórico-crítico é Adolf von Harnack (1851-1930) em seus estudos sobre o cristianismo, parte da con-vicção de que o método histórico-crítico, aprimorado pela ciência no século XIX, é um instrumento perfei-tamente idôneo, inclusive indispensável, para a inter-pretação da Revelação. Harnack considera que não pode haver outra interpretação séria da Sagrada Escri-tura e da tradição fora da interpretação científi ca.

Um dos principais elementos causadores do sur-gimento desse método, como Harnack salientou aci-ma, foi a pretensão de tornar os estudos bíblicos cien-tífi cos, ou seja, fazê-los compatíveis com o modelo científi co acadêmico.

4- O método histórico-crítico no contexto brasileiro

Mueller diz também que “poucos têm se disposto a contestar a validade do método em si”.21 Diante disso resta uma pergunta: Então por que esse método é visto ne-gativamente por alguns segmentos teológicos no Brasil?

Esses segmentos conservadores alegam que esse método desconsidera a Bíblia como a Palavra de Deus e transforma aquilo que seria uma casa constru-ída sobre a rocha em uma edifi cada sobre a areia, ou seja, a Bíblia, sendo interpretada a partir do método histórico-crítico, desmorona restando muitos escom-bros onde ninguém entende nada. Em parte, os críti-cos do método possuem razão, pois muitos dos quais utilizam esse método almejam perscrutar aquilo que são os detalhes da Bíblia e não seus pontos centrais. O método deve ser usado de forma natural, deixando que ele nos dê a interpretação e não usando o méto-do para justifi car aquilo que pensamos ou queremos provar. Mueller excetua desse abuso os anglo-saxões que, em geral, tem usado o método histórico-críti-co de maneira muito mais moderada, tendendo mais para o histórico e bem menos para o “crítico”, com todos os seus pressupostos. Diz ainda que muita coisa depende do que se entende com o uso desse termo, e das liberdades que ele pode conferir ao intérprete. Para uns ele implica muito mais em conferir juízos de valor do que para outros.22 Todavia, só o método, por conseguinte, não é responsável por todo o problema.

O erro de alguns de “desviar” o sentido de um mé-todo também é cometido por aqueles que se conside-ram ortodoxos. John A. Brodus observou uma vez:

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“É fato lamentável que os universalistas... [e] os mór-mons consigam encontrar na Bíblia um apoio aparente para suas heresias, sem interpretar mais frouxamente, sem fazer maior violência ao significado e conexão do Texto Sagrado do que às vezes é feito por homens orto-doxos, devotos e até inteligentes”.23

Mas só isso não explica o preconceito brasileiro contra o método histórico crítico.

Como já sabemos, o método histórico-crítico exi-ge a interdisciplinaridade, ou seja, busca o diálogo com outras ciências. Destarte, o praticante do méto-do deve possuir conhecimento balizado de sociolo-gia, psicologia, direito, história, arqueológica, grego, hebraico, fi losofi a, entre outras disciplinas. Aqui está um dos obstáculos ao método no Brasil: o nível in-telectual inferior dos exegetas brasileiros em relação aos europeus.

O nível intelectual inferior possui inúmeras ori-gens, contudo irei apontar uma que o Mondin obser-vou num dos seus livros de fi losofi a:

“sem determinadas condições sociais, econômicas e políticas, torna-se impossível qualquer especulação filosófica (como, além disso, qualquer outra atividade cultural séria). Quando o homem é atormentado pela fome ou pela miséria, ou oprimido pela escravidão ou pela ignorância, não tem tranqüilidade, nem tempo nem disposições mentais para formular hipóteses filo-sóficas rigorosas e sistemáticas sobre a finalidade de sua existência, sobre a origem das coisas, sobre os fun-damentos da ordem social e moral”.24

Não que os nossos exegetas vivam em condições de miséria, mas o povo sim, e a exegese é feita para o povo. Gerhard Maier, em seu ensaio Das Ende der Historisch-Kritischen Methode (O fi m do método his-tórico-crítico), arrola seis objeções ao método, dentre elas a falta de praticabilidade do mesmo. Veja:

Por alguma razão, a pesquisa histórico-crítica tem cria-do distância e até barreiras para com o povo comum nas igrejas. A ‘praticabilidade’ das suas pesquisas e conclusões tem sido pequena e muito indefinida. Isto se pode sentir até no fato de o teólogo assumir uma postura diferente quando sobe ao púlpito. As prédicas não condizem com as conclusões exegéticas. Isso re-vela que muitas vezes não se sabe o que fazer ao certo com relação aos resultados ‘seguros’ da pesquisa no dia-a-dia da comunidade.25

Tive a oportunidade de ser convidado pela Editora Paulinas, no ano de 2005, a elaborar as resenhas dos livros do autor Raymond E. Brown, praticante assumi-do do método histórico-crítico. Exegese perfeita, bem contextualizada, exaustiva, confi ável e coerente. To-

davia, pelo volume das obras nota-se a falta de pra-ticabilidade do método, principalmente, no âmbito brasileiro. São obras que jamais alcançarão o público igrejeiro, e os praticantes da baixa exegese. Apenas teólogos de ponta, ou seja, dos principais centros acadêmicos do país, usufruem dessas obras.

Isso acontece porque, excetuando-se uma ínfi ma parte da população, a grande maioria está alijada do processo intelectual.26 Por esses motivos, digo que a grande massa ainda não está preparada para o méto-do histórico-crítico, pois esse método tornaria a Bí-blia mais fechada para eles do que já é. Isso não quer dizer, porém, que por si só o método histórico-crítico seja ruim ou que não deva ser utilizado em hipótese alguma, apenas que ele fi cará condicionado a uma exigência:• O método só irá progredir juntamente com a

qualidade intelectiva dos membros das igrejas brasileiras, caso contrário continuará restrito aos estudiosos, pesquisadores e aos teólogos de pon-ta.

A disparidade intelectual entre países desenvolvi-dos e países em desenvolvimento é refl etida na teo-logia e mostrada por Battista Mondin em seu prefácio à obra Os Grandes Teólogos do Século XX, relançada pela Editora Teológica no ano de 2003. Mondin diz:

“Um dos mais surpreendentes fenômenos dos últimos anos é o interesse sempre mais vivo que os leigos vêm demonstrando pelas questões religiosas e teológicas, não apenas da própria Igreja, mas também de todas as igrejas e religiões, indistintamente. Hoje, não só os sa-cerdotes e teólogos de profissão, mas também os lite-ratos, os jornalistas, os universitários, os operários e as donas-de-casa tratam de assuntos como Deus, Cristo, a Eucaristia, o sacerdócio, o celibato eclesiástico, o ecu-menismo e as condições de salvação dos não-cristãos. Tais assuntos são tratados e discutidos, muitas vezes animadamente, não apenas nas igrejas e nos seminá-rios, mas também nos salões, nos trens e nas praças”.27

O oposto está ocorrendo no Brasil. O estudo teoló-gico está cada vez mais sendo colocado de lado, em favor de um maior investimento missionário (ação). Como nos mostra Rubem Alves em seu livro Religião e Repressão:

No ponto culminante das comemorações do Centená-rio da Igreja Presbiteriana do Brasil, em 1959, declarou um porta-voz da Igreja, em um sermão: “Os pastores brasileiros não são como Karl Barth, que gasta o seu tempo fazendo teologia diante da lareira, em meio às nuvens de fumaça do seu cachimbo. Nossos pastores são homens de ação”.28

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O Rev. Calvani também nos mostra esse desprezo pelo estudo teológico:

“Ultimamente, a crise financeira da maioria das igrejas tem levado seus líderes a considerar desperdício, o in-vestimento feito em seminários e centros teológicos de pesquisa”.29

Nesse mesmo artigo, Calvani diz que algumas igrejas pentecostais no Brasil consideravam ‘teolo-gia’, coisa do demônio sem perceber que todos os seus discursos, sermões, pregações, etc, eram herdei-ros de uma determinada teologia”.

Conseqüentemente, há o abandono da pesquisa mais profunda da Bíblia. Líderes de algumas denomi-nações fundamentalistas crêem que os cristãos não precisam saber teologia e que isso é coisa para cren-tes “frios”. Notamos essa tendência também no mer-cado editorial cristão. Cada vez mais são publicados livros que se encaixam, ou pelo menos isso é alme-jado pelos seus autores, na categoria de auto-ajuda (crescimento espiritual), os quais são elaborados por pessoas que não são especializadas no assunto. Temas que envolvem a atividade psíquica ou psicológica do ser humano, devem ser estudados por profi ssionais da área reconhecidos no ramo e não por pastores ou “teólogos” sem qualquer qualifi cação técnica especí-fi ca. Dessa defi ciência decorre que a maior parte des-sas obras não passam de leituras vazias e superfi ciais, que se autodenominam cristãs por apresentarem no início de cada capítulo do livro um verso da Bíblia. Na verdade essas obras não são nem bíblicas e nem de auto-ajuda. Sofrem de esquizofrenia!

Battista Mondin observa também que “em nosso século, a teologia está atravessando um momento propício em todas as Igrejas cristãs. Todas elas são iluminadas pelas fi guras de alguns teólogos excep-cionais: a Igreja Católica por seus Rahner, von Bal-thasar, Congar, Guardini, Daniélou, Chenu, Teilhard de Chardin; a Igreja Evangélica por seus Barth, Tillich, Cullmann, Niebuhr, Bultmann; a Igreja Ortodoxa por seus Evdokimov, Bulgakov, Lossky, Florovsky e ou-tros”.30

Para nós brasileiros, parece que o quadro é ou-tro. Duvido muito que os membros de nossas igrejas conheçam alguns dos nomes citados por Mondin. Ouso afi rmar que até muito pastores também não os conhecem. Os cristãos brasileiros, na verdade, não mostram muito interesse pelo estudo sistemático da Palavra de Deus. Digo isso em face do resultado de uma pesquisa recente onde foi constatado que mem-bros de seitas cristãs (mórmons) lêem mais a Bíblia do que os próprios cristãos.31 Poderíamos dizer que

a causa desse desinteresse seria a instrução precária que, nós brasileiros, recebemos do sistema de educa-cional vigente? Será essa falta devido a um forte senti-mento do “eu não posso” ou “eu não vou conseguir” imputado pelo nosso inconsciente? Ou será que a ra-zão do problema talvez seja o desestímulo imputado aos cristãos pelos próprios líderes das igrejas cristãs? Muitas são as perguntas e poucas respostas nos são dadas, mas acho que a liderança é fundamental nesse processo.

A liderança também está carente de conhecimen-to teológico. Nesse ponto o Rev. Carlos Calvani nos concede um testemunho muito propício. Ele confes-sa:

“Na condição de professor de teologia já há um bom tempo, confesso-lhes que às vezes me sinto extrema-mente frustrado com a falta de interesse de nossos atu-ais estudantes em pesquisas com avidez o que há de mais recente na teologia”. Diz ainda: “Tenho trabalha-do como professor em Seminários Evangélicos presbi-terianos, batistas, da Assembléia de Deus e interdeno-minacionais em diversos lugares e, tristemente, observo que nunca houve safras tão fracas de estudantes como nos últimos anos”.

Uma liderança mal preparada preza por liderados mal preparados. Liderados alienados não irão ver falta de conhecimento da liderança e muito menos ques-tionarão as decisões desta. Os políticos brasileiros adotam método semelhante de alienação coletiva.

5- ConclusãoSendo assim, não é justo dizermos que o método

histórico-crítico em si é inefi caz. Muitos abusam do método, mas isso não é algo inerente a ele. Qualquer método hermenêutico já sofreu abusos no decorrer da história.

Creio também que ao contemplarmos a Bíblia não fi camos jamais reduzidos apenas a um método, uti-lizamos vários ao mesmo tempo. Essa pluralidade de métodos nós chamamos de bom senso. Esse é o me-lhor método interpretativo.

Não quis nesse artigo fazer uma apologia ao méto-do histórico-crítico. Nem sequer defendi a sua exclu-siva utilização ao tratar-se de hermenêutica bíblica. O método histórico-gramatical deve ser largamente utilizado, bem como o alegórico, entretanto um não descarta o outro. O próprio texto exige o método que irá interpretá-lo. O que importa não é o método inter-pretativo, mas o diálogo entre os exegetas. Sigo aqui o pensamento do grande hermeneuta Habermas. Para

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ele a verdade não é questão de medida e quantifi -cação, mas de resultado da interação entre partici-pantes. A “comunidade de comunicação” promove a circulação das propostas dos diversos parceiros, até que surja a verdade como ação compartilhada.32

Notas* Estudioso da Bíblia, possui 26 anos, funcionário público e

reside no Rio de Janeiro. Articulista das revistas Inclusividade do Centro de Estudos Anglicanos e Teologia e Cultura da Editora Paulinas.

1 GADAMER, H. G., L’Art de Comprendre, Aubier, Paris, 1982, p. 124.

2 MONDIN, Battista, O Homem, que é ele? São Paulo: Paulus, 2003, p. 140.

3 T. H. Huxley, Man’s Place in Nature other Essays, Every man’s Library, Londres, 1933, p. 162.

4 E. Cassirer, Filosofia delle forme simboliche: Il linguaggio, Nuova Italia, Florença, 1961, p. 147.

5 G. Gusdorf, Filosofia del linguaggio, Cittá Nuova, Roma, 1970, p. 15.

6 M. Polanyi, Personal Knowledge, pp. 69-70.7 M. Heidegger, In cammino verso il linguaggio, Mursia,

Milão, 1973, p. 27.8 MONDIN, op. cit., p. 138.9 A consciência segundo o meu ver é a única revelação pura a

qual possuímos de Deus.10 Citado por MONDIN, Battista, Os Grandes Teólogos do

Século XX, São Paulo: Teológica, 2003, p. 64.11 ALVES, Rubem, Religião e Repressão, São Paulo: Teológica/

Loyola, 2005, p. 82.12 MONDIN, op. cit., p. 200.13 FITZMYER, Joseph A., A Bíblia na Igreja, São Paulo:

Loyola, 1997, p. 69.14 Ibid., p. 27.15 Ibid., p. 17.16 Ênio Ronald Mueller in: Entendes o que lês? Um guia para

entender a Bíblia com auxílio da exegese e da hermenêutica, de Gordon D. Fee e Douglas Stuart (São Paulo: Edições Vida Nova, 1999), p. 247.

17 Ibid., p. 18.18 A utilização do método histórico-crítico por esses importantes

teólogos não os impediu de se usufruírem outros métodos interpretativos como, por exemplo, o alegórico.

19 A esse período remonta o estudo da Bíblia em suas línguas originais – aramaico, grego e hebreu – em vez da Vulgata latina que fora praticamente a única Bíblia usada nos períodos intervenientes na Igreja Ocidental, desde Jerônimo.

20 FITZMYER, Joseph A., Escritura, a alma da Teologia, São Paulo: Loyola, 1997, p. 20.

21 MUELLER, op. cit., p. 237-318.22 Ibid., p. 269.

23 Para saber mais, ler Reflexões em Louisville: momento cristão apologético em conversação, de Carl Mosser e Paul Owen.

24 MONDIN, Battista, Curso de Filosofia, vol. I, São Paulo: Paulus, 2003, p. 15.

25 MUELLER, op. cit., p. 265s.26 Além do índice de analfabetismo dos países desenvolvidos

serem muito mais baixos do que os nossos, nesses países o exame para se verificar se alguém é analfabeto ou não consiste em elaborar uma redação de 25 linhas, enquanto aqui no Brasil o sujeito apenas precisa saber escrever seu nome.

27 O contexto no qual Mondin está falando é a década de 1970. Battista Mondin, Grandes Teólogos do Século Vinte. São Paulo: Editora Teológica, 2003.

28 ALVES, op. cit., p. 142.29 CALVANI, Carlos E. B., Desafios para o ensino da Teologia

Latino-Americana em nossos dias, Inclusividade, 2005, p. 118

30 Mondin, op.cit, p. 14.31 Para saber mais, ler Reflexões em Louisville: momento

cristão apologético em conversação, de Carl Mosser e Paul Owen.

32 ARDUINI, Juvenal, Destinação Antropológica, São Paulo: Edições Paulinas, 1989, p. 22.