Por Núcleo Prisma · de Santa Maria (PRISMA) efetivaram um meio pelo qual as inda-gações sobre o...

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Por Núcleo Prisma Revista Inter Ação | UFSM - Universidade Federal de Santa Maria | Vol. 3, nº 3 | jul/dez. 2012 ISSN 2178-1842

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Por Núcleo Prisma

Revista Inter Ação | UFSM - Universidade Federal de Santa Maria | Vol. 3, nº 3 | jul/dez. 2012

ISSN 2178-1842

ISSN 2178-1842

Revista Inter Ação | UFSM - Universidade Federal de Santa Maria | Vol. 3, nº 3 | jul/dez. 2012

UNIverSIdadereItor

Prof. Felipe Martins MüllerVice-Reitor: Prof. Dalvan José Reinert

CeNtro de CIêNCIaS SoCIaIS e HUmaNaS – CCSHdIretor

Rogério Ferrer KoffVice Diretor: Mauri Leodir Löbler

departameNto de CIêNCIaS eCoNômICaSCHefe

Orlando Martinelli JúniorSubchefe: Adriano José Pereira

Corpo edItorIaledItor

José Renato Ferraz da Silveira

ComItê edItorIal

Bruna Toso de Alcântara, Cristina Farias, Fernanda Maschio, Juliana Graffunder Barbosa, Junior Ivan Bourscheid, Leonardo Augusto Peres, Marcelo Carvalho Ribeiro, Marcelo Fabri Junior, Nerissa Krebs Farret e Walterney Paulino da Silva.

CoNSelHo edItorIal

Adayr da Silva Ilha (UFSM), Adriano José Pereira (UFSM), André Luiz Reis da Silva (UFRGS), Antônio Carlos Lessa (UnB), Gláucia Campregher (UFGRS), José Carlos Martines Belieiro Junior (UFSM), José Luiz de Moura Filho (UFSM), José Renato Ferraz da Silveira (UFSM), Marcelo Arend (UFSC), Ricardo Seitenfus (UFSM), Sérgio Alfredo Massen Prieb (UFSM), Uacauan Bonilha (UFSM).

Nota: Os trabalhos assinados exprimem conceitos da responsabilidade de seus autores, coincidentes ou não com os pontos de vista da redação da Revista.

Todos os direitos Reservados: Proibida a reprodução total ou parcial, sem a prévia autorização do Núcleo, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos ou videográficos. Vedada a memori-zação e/ou recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de quaisquer partes desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e §§, do Código Penas, cf Lei nº 6.895, de 17-12-1980) com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreenção e indenizações diversas (arts. 122, 123, 124 e 126, da Lei nº 5.988 de 14-12-1973, Lei dos Direitos Autorais).

pareCerIStaS

Alfredo Gugliano (UFRGS)Doutorado em Ciencias Políticas y Sociología

(Universidad Complutense de Madrid)

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Álvaro Augusto de Borba Barreto (UFPEL)Doutorado em História (PUC-RS)

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Antônio Manoel Elibio Júnior (UFSC)Doutorado em História Social Política (Unicamp)

e pós-doutorando em Ciência Política e Relações

Internacionais (UFP)

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Ceres Karan Brum (UFSM)Doutorado em Antropologia

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Danilo da Cás (IESB)Doutorado em Pedagogia (Universidade Estadual

Paulista – Marília) e Doutorado em Pedagogia (USC)

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Diorge Alceno Konrad (UFSM)Doutorado em História Social

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Fernando da Silva Camargo (UFPEL)Doutorado em História (PUC-RS)

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Graciela De Conti Pagliari (UFSC)Doutorado em Relações Internacionais (UnB)

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Jerônimo Siqueira Tybusch (UFSM)Doutorado em Direito

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Léo Rodriguez Peixoto (UFPEL)Doutorado em Sociologia (UFRGS)

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Mônica Salomón (UFSC)Doutorado em Ciência Política (Universidad Autónoma

de Barcelona)

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Norma Breda dos Santos (UnB)Doutorado em História e Política Internacional (Institut

Universitaire de Hautes Études Internationales - Suíça)

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Reginaldo Teixeira Perez (UFSM)Doutorado em Ciência Política (Instituto Universitário de

Pesquisas do Rio de Janeiro)

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Sebastião Peres (UFPEL)Doutorado em Educação (UFMG)

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Thiago Rodrigues (UFF)Doutorado em Relações Internacionais

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Interação/Universidade Federal de Santa Maria. Centro de Ciências Sociais e Humanas. Departamento de Ciências Econômicas - Vol. 3, n. 3 (jul/dez. 2012) - Santa Maria, 2012

Semestral.ISSN: 2178-1842Vol. 3, n. 3 (jul/dez. 2012)

CDU 327

Ficha catalográfica elaborada porMaristela Eckhardt - CRB-10/737Biblioteca Central da UFSM

apreSeNtação

artIgoS

07

Vinicius de Paula Rezende

traNSfUSão de SaNgUe: dIgNIdade e aUtoNomIa doS relIgIoSoS teStemUNHaS de Jeová

135

Andrês Uliana Posser // Lucas Gonçalves Conceição

a efICáCIa daS deCISõeS JUrISdICIoNaIS lImINareS eStraNgeIraS No ordeNameNto JUrídICo

braSIleIro

185

Leandro Carvalho Sanson

o Caráter global da QUeStão ambIeNtal 211

Marcos Pascotto Palermo

paradIplomaCIa e poder legISlatIvo No rIo graNde do SUl: Um relato Sobre a ComISSão mISta permaNeNte do merCoSUl e aSSUNtoS

INterNaCIoNaIS (1996-2002)

233

Cristine Koehler Zanella // Eduardo Ernesto Filippi

CoalIZõeS HorIZoNtaIS No marCo SUl-SUl:refleXõeS Sobre eSpaçoS eStratÉgICoS de

Cooperação

259

Katiuscia Moreno Galhera Espósito

“Neo X Neo”: o papel da traNSNaCIoNalIZação SINdICal NoS debateS teórICoS daS relaçõeS

INterNaCIoNaIS Na dÉCada de 1970

161

Os editores

apreSeNtação

13Federico Aznar Fernández

CoNflItoS No medIterrÂNeo

37Francisco J. Berenguer Hernández

HaCIa el NUevo paradIgma árabe

55

Nicole da Silva Paulitsch

NotaS Sobre a epIStemologIa JUrídICa de HaNS KelSeN: o SeNtIdo do dIreIto e da CIêNCIa Na

teorIa pUra do dIreIto

79Marcelo Carreiro

preveNção do terrorISmo INterNaCIoNal – Uma CoNteXtUalIZação HIStórICa

97

Rodrigo dos Santos Rainha

a profISSão de fÉ No reINo vISIgodo: Um eStUdo Comparado Sobre oS flavIUS vISIgodoS,

reCaredo e reCeSvINto

113Gabriela Soares Balestero

a eUropa NeCeSSIta de Uma CoNStItUIção? aS dIfICUldadeS de atINgIr CoNSeNSoS

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apresentação

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InterAção | 9

apresentação

Haja vista a necessidade de formar indivíduos capacitados a analisar, dialogar e emitir diagnósticos sobre realidade internacional, os pesquisadores do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais de Santa Maria (PRISMA) efetivaram um meio pelo qual as inda-gações sobre o cenário internacional e suas dinâmicas fossem fomen-tadas, através da publicação da revista InterAção, direcionada tanto à comunidade acadêmica, bem como à sociedade em geral.

Deste modo, a InterAção constitui-se um canal de dissemina-ção do conhecimento produzido pela área de Relações Internacionais, abarcando suas distintas esferas afins, como a política, a economia, o direito, a sociologia e a filosofia, em uma profunda interação do saber.

A fim de promover um diálogo entre reflexões de escopo aca-dêmico, o presente periódico apresenta seu terceiro número, contan-do com trabalhos de alto nível, entre artigos e ensaios. Com efeito, ao visar continuamente fruir os patamares mais elevados do Sistema Qualis, a partir de esforços da labuta intelectual que se materializa impressa e online, projetamos deste instante adiante a semestralidade das edições.

Decerto, a cada lançamento evidenciamos a ampliação qua-litativa do conteúdo submetido, ao passo que dilatamos nossas visões ao horizonte. Este exemplar torna patente a internacionalização da InterAção, que expande-se, trazendo consigo autores de outros países, que desenvolvem estudos sobre uma realidade global em que estamos igualmente inseridos.

O corpo editorial, por meio do Conselho e do Comitê edi-

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torial, juntamente com o auxílio de pareceristas especializados nas temáticas de interesse, analisou com minúcia, de forma prévia, inde-pendente e imparcial os produtos que expomos à apreciação.

Portanto, agradecemos aos leitores e autores que submeteram seus artigos. E, desde já, colocamos a revista InterAção à disposição da comunidade acadêmica das Relações Internacionais, seja a brasi-leira, seja a mundial.

Os Editores

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ensaios

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ConFLitos no MeDiterrÂneo

Federico Aznar Fernández-Montesinos

O Mediterrâneo ocupa um espaço central na maioria das re-presentações do mundo, próprias da cultura ocidental (mapas, etc...), particularmente nas européias. Assim, não é um paradoxo o signifi-cado dos nomes que se deram aos grandes berços das civilizações do mundo; o Mediterrâneo, literalmente o mar no meio da terra, situado no paralelo da China, o império do meio; a Península Ibérica e a Tur-quia, cadinhos de outras culturas, marcam seu eixo axial. E, citando Platão em Fédon, “há muitos homens em outras partes que vivem em lugares semelhantes. É que por toda a Terra há muitas concavidades, de formas e tamanhos variáveis, para as quais converge água, vapor e ar”.

Mas o Mediterrâneo não é só um espaço físico como Platão também indicava “nós outros, moradores da região que vai do Fásis às Co-lunas de Hércules, ocupamos uma porção insignificante da terra, em torno do mar, à feição de formigas e rãs na beira de um charco”, mas também cultural; os seus limites oscilam dependendo do aspecto considerado. Portugal é um país mediterrâneo, como é o Cáucaso e o Irã. Há nele muito de vontade.

No entanto, o peso do Mediterrâneo diminuiu, mesmo dentro da Europa; seu centro de gravidade econômico se deslocou para o nor-te; assim, por exemplo, os três principais portos europeus já são atlânti-cos. Desse modo, deixa seu papel de berço e de centro para se tornar em fronteira com o outro mundo, cujas raízes se instalam em suas margens; e nele convergem as três grandes civilizações da casa de Abraão (o Islã

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se auto define como Millet Ibrahim, a religião de Abraão). A História converteu-o em berço, união e fronteira ao transformar sucessivamente seu papel, reforçando alguns dos seus atributos.

É surpreendente a observação de como, depois de séculos de esforço para conseguir a liberdade dos mares, o Mediterrâneo, mar de ligação e de intercambio ao longo da história, passou a ser percebido como um acidente geográfico que, como material dielétrico, isola os pólos com a maior diferença de potencial de desenvolvimento do mun-do; a diferença de renda per capita entre suas margens é de 15 para 1.

E se por séculos o Mediterrâneo uniu culturas, agora se tornou o foco onde convergem conflitos econômicos, políticos e até de civiliza-ção, contribuindo para a formação e o afastamento de mundos constru-ídos de forma autônoma. A margem norte tem sido sacudida por uma crise econômica de grandes proporções, mas a crise da margem sul, que alguns chamam de primaveras, abalou as bases de sua cultura.

1. religião e Cultura como pontos fundamentais dos conflitos no Medi-

terrâneo.

O Islã é uma religião que reúne diferentes culturas em todo o planeta. A diversidade do Islã e o seu multiculturalismo já tiveram reflexos entre os companheiros do profeta Maomé, que admitiram em seu seio e trataram como iguais a Salman, o Persa, ou a Bilal, que havia sido um escravo negro alforriado; “ouvi e obedecei, mesmo que tivésseis como chefe um escravo da Abissínia, cuja cabeça fosse como uma uva passa”.

O Islã não é monolítico; é pluralismo, diversidade e diferença.

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O pluralismo das sociedades islâmicas é prova de que foi possível a coexistência com os não crentes, isso sim, desde que se submetessem à autoridade do Islã.

O Alcorão também é diferença porque permite distintas vi-sões do livro sagrado, abordagens diversas para a religião, sem uma hierarquia que possa fixar uma doutrina oficial, a verdade. E é diversi-dade pelas diferentes culturas que estão associadas à religião, como re-sultado da extensão geográfica de sua área de domínio. A diversidade e a diferença se articulam no âmbito de uma sociedade que pretende ser igualitária.

1.1. Cultura e poder

As culturas têm um sistema de valores completo, único, fe-chado, um modo de ver o mundo, que não é constante ao longo do tempo, mas que varia em cada momento. Os valores são praticamente os mesmos, sem grandes alterações: o que varia em cada uma das culturas é a sua priorização.

Assim, para o Ocidente o eixo de referência é o indivíduo, en-quanto que para o mundo islâmico o eixo é a comunidade, a Ummah. Ainda mais, para o Ocidente do século XXI o primeiro dos valores a ser considerado é sem dúvida a liberdade, embora nem sempre tenha sido assim (a liberdade de pensamento é uma concepção iluminista). No entanto, para muitos muçulmanos é a justiça. E a partir daí, se estivéssemos num espaço unidimensional, estariam em uma ordem de prioridade diferente todos os demais. Trata-se, como foi dito, de um sistema. Assim, a existência de uma palavra sem tradução direta para outro idioma é uma expressão dessa desigualdade quanto ao or-

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denamento de valores.Com cada um dos sistemas de valores se faz uma abordagem

do mundo, de seus problemas e se tomam decisões. Compreende-se a simplificação por sua plasticidade, é diferente a abordagem que se faz e as decisões que consequentemente são tomadas, considerando em primeiro lugar a liberdade, ao invés de considerar como primeiro valor a preservar a igualdade ou a justiça (com a liberdade teríamos o modelo liberal do século XIX; considerando a igualdade, as democra-cias populares; e intercalando liberdade, igualdade e justiça, o Estado Social e Democrático de Direito).

O etnocentrismo apresenta-se como algo natural e lógico, transparente ao usuário, enquanto o alheio é estranho, extravagante, quando não uma agressão. Acrescente-se a isso que a lógica do mun-do ocidental é racional cartesiano, enquanto o resto não é necessaria-mente assim.

O resultado é que uma cultura constituída sobre um siste-ma de valores, ao qual se sobrepõem estruturas de poder construídas umas sobre outras, com as quais não se consegue um encaixe perfeito, aparecendo constantes atritos e tensões. A cultura transforma o poder e o poder transforma a cultura. E a cultura e os movimentos sociais são sempre mais fortes, o que não significa que o resultado seja, entre outras coisas, uma crise de identidade.

1.2. problemas do desenvolvimento pós colonial

Por outro lado, devem-se considerar os sucessivos fracassos que têm atingido os regimes autoritários pós coloniais que foram im-postos em muitos países árabes e que propuseram alternativas, desde

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o laicismo ao desenvolvimento econômico (como as “indústrias de in-dustrialização” argelinas); a chamada via socialista árabe, finalmente levou a uma crise econômica, social, habitacional, sanitária, que con-duziu ao desemprego, ao subemprego e à emigração de jovens (mais de 70% das populações têm menos de 35 anos), assim como a uma perda de confiança em soluções alternativas.

Além disso, as políticas sociais apoiadas pela ajuda e pelo co-mércio com o Ocidente não puderam resistir à crise econômica mun-dial, como se deduz da simples observação dos relatórios do PNUD; a diminuição desses recursos pode ser considerada como o detonante das Primaveras Árabes, como ocorreu nos anos oitenta com “as re-voltas da farinha”, processo semelhante ao atual - embora de inten-sidade diferente -, causado naquela época pela elevação dos preços dos gêneros de primeira necessidade e pela diminuição das receitas provenientes do petróleo.

Acrescente-se a isso o problema da corrupção, que tem um inegável componente cultural (no sistema Makhzen se exige uma gorjeta), e da transmissão patrimonial do poder. Há países que desde a independência não haviam realizado uma troca de poder; as demo-cracias autoritárias em fase de substituição de poder - Egito, Líbia - resistiram mal aos protestos, mas as monarquias, somente se res-sentiram. E toda fase de transição, por pacífica que seja, enfraquece o poder e torna-o vulnerável.

Junte-se também a existência de estruturas sociais pré-esta-tais (clãs, tribos), cujos limites, não coincidem com os do Estado, que, em alguns casos, somente se aglutinaram na luta pela descolonização (Argélia se consolidou como país em uma luta que uniu suas 805

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tribos) ou simplesmente não se uniram, o que requer complexos e oscilantes equilíbrios entre os diversos interesses dos grupos.

O resultado é a incapacidade do Estado em resolver essas ques-tões, sua principal função, levando à sua deslegitimação e criando gran-des áreas de exclusão social. O poder tem sido exercido com o uso de um forte aparato policial, quando não pelo emprego das Forças Arma-das, convertidas em árbitros da situação. Isso tem eliminado qualquer dissidência, qualquer ajuste, mas seu uso não impediu as grandes como-ções, gerando o debate entre a imobilidade e a revolução.

Paralelamente, a falta de uma oposição organizada e a hete-rogeneidade dos grupos parece conduzir a luta em duas etapas e dão mais incerteza ao resultado final, com o risco de uma nova guerra civil. Um primeiro passo procuraria abolir o regime em vigor e uma segunda etapa procuraria estabelecer a representação dos diferentes grupos, bem como das idéias que eles defendem.

Os apelos por mais democracia são acima de tudo uma cha-mada desesperada à solução desses problemas por qualquer meio; o que se pretende conseguir é simplesmente o pão (o processo é pa-ralelo ao aumento dos preços dos produtos básicos), por mais que se utilizem fórmulas mais ou menos transcendentes para articular a demanda e inovações como redes sociais e telefones celulares para a ativação de movimentos (na verdade um espaço imaterial que se en-caixa muito bem no conceito místico da Ummah).

A conseqüência dessa falta de expectativa tem sido a busca de modelos alternativos, ainda mais quando se declaram a solução do problema e contam com a legitimidade adicional de terem sido opo-sitores de um regime ineficiente; além disso, a falta de uma oposição

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organizada coloca o debate no plano laico/religioso (no Ocidente a maioria dos debates são profanos e dão muito de si por mais que se fale sobre o final das ideologias).

Como resultado, a posição inicialmente laica desses mo-vimentos deu lugar, de forma natural, a movimentos islâmicos que foram colocados nos corredores do poder pelas mãos de processos eleitorais. E essa é a solução ofertada a partir de sua cultura, quando as discussões são apresentadas em termos dicotômicos e o outro lado da equação tenha falhado.

Acrescente a isso o apoio especial que se dá a esse tipo de or-ganizações; algumas grandes fortunas ligadas ao negócio do petróleo, em resposta ao mandato islâmico da Sadaqa (esmola), tendo em vista a Dawa (pregação), e que promovem formulações muito estritas do Islã, que chocam, inclusive, com a sua concepção popular dominante.

O surgimento de sociedades islâmicas assistenciais, como a Frente Islâmica de Salvação (FIS) argelina, os Irmãos Muçulmanos ou a própria Hezbollah (literalmente o Partido de Deus), que com-plementam ou substituem exemplarmente o Estado e contribuem para a sua marginalização, é a prova de sua fragilidade. Mas esses movimentos populares, parcialmente desvertebrados, sob a égide de declarações como “O Alcorão é a nossa Constituição”, incorporaram simultaneamente vários discursos contraditórios e mal resolvidos so-bre questões fundamentais, como a própria democracia ou a econo-mia de mercado.

1.3. o islã político

Do ponto de vista religioso, Maomé não se pronunciou so-

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bre qualquer forma específica de governo, mas fixou seus princípios motores. O governo tem uma natureza instrumental e não se trata da construção do reino de Deus no mundo. O Estado é um meio de garantir a realização de um propósito mais elevado, localizado na Outra Vida.

O poder do governante muçulmano tradicional é um poder limitado, como consequencia de sua fonte de autoridade limitada; é obrigado a respeitar e aplicar a Sharia e a cujo âmbito se encontra res-trito: “O muçulmano tem que ouvir e obedecer, gostando ou não, a menos que uma transgressão seja ordenada, então nem ouve e nem obedece”. Por isso, o governante não é um déspota, faz o que deve e não o que quer. Em contrapartida, o Alcorão estabelece uma obrigação de obediência: “obedecei aqueles que têm a autoridade”, diz o verso do Alcorão dos Emirs.

Além disso, uma mera transgressão não desabilita o líder para o exercício do poder; como diz o hadith “deve-se rezar, mesmo que seja um transgressor”. Nem desabilita seu caráter injusto, porque, como ob-servou Ibn Taymiyya, o governo injusto é preferível ao tumulto: “Se-tenta anos de tirania é melhor do que uma noite de guerra civil” ou “quem abomina qualquer coisa de seu chefe, que seja paciente, porque aquele que tire um pingo da obediência ao poder morrerá como pagão”.

No entanto, no sentido não-conformista, se manifestam outros hadiths: “não ajude a um tirano se você sabe que ele é assim”, “apoiar a comu-nidade quando ela está errada é como cair num poço por estar preso à cauda de um camelo que está a ponto de cair” ou “quando um muçulmano é obri-gado a cometer um pecado, não tem a obrigação de ouvir e nem de obedecer”.

Resumindo, não há meios ou medidas que sirvam para articu-lar a desobediência. Na verdade, a prática histórica mostra um espírito

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que tende à inação diante do tirano, desde que ele não viole os limites estabelecidos pela Sharia e se lhe impute uma patente impiedade. Isso não só justifica a rebelião da comunidade, mas se obriga a ela. E a au-toridade no Islã é um acordo entre governante e comunidade, em que se articulam diferentes formas de controle e de limitação de poder.

Alguns fundamentalistas acreditam que o ponto em que o Islã e a democracia se compatibilizam se encontra na democracia islâmi-ca, já que a concepção ocidental de democracia é modificada a partir de uma percepção religiosa; dessa forma, é liberada dos preconcei-tos próprios do Cristianismo, resultando um sistema de governo que consegue conciliar as liberdades políticas com a natureza religiosa do espaço público.

Dentro desse quadro, é possível a existência de partidos po-líticos e até de liberdade de imprensa, desde que, logicamente, se as-suma e não se questione os princípios, valores e regras islâmicas. No entanto, a dificuldade está em definir o espaço religioso, que pode variar desde o laicismo ocidental à quase total regulamentação (há hadiths que indicam a forma correta de dormir). Para outros, sem exceções, a democracia é um conceito ocidental incompatível com as formas clássicas islâmicas, que estão perfeitamente articuladas.

O Islã político, como seu nome indica, trata de levar à área política os princípios e crenças do Islã tradicional; em princípio, uma teoria política parece ter muito em comum com a democracia cristã; a diferença pode estar em que os sistemas de governo e de adminis-tração pública mais avançados, incluindo o próprio Estado, têm sido criados segundo padrões de valores ocidentais, diferentes das formas tradicionais islâmicas de governo; procuram transformar, assim, as

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bases do sistema, algo que a democracia cristã não questiona. A des-vantagem é uma politização da religião e de sua maior visibilidade, de modo que o plano religioso e transcendental seja um plano mais ativo de conflito.

O modo mais ou menos possibilista da proposta política, sua flexibilidade e jogo de cintura são fatores determinantes na realiza-ção de uma catalogação adequada e contribuem para sua distribuição espectral. O problema reside em distinguir o Islã do radicalismo is-lâmico, pelo difuso de seus limites. Ambos podem querer o mesmo e é muito difícil definir um como islâmico, por sua moderada rei-vindicação islâmica, e chamar outros de radical, embora, como disse Protágoras Samos, “O homem é a medida de todas as coisas, das que são como são e das que não são como não são”.

Em vista dessas considerações e não esquecendo a proposta po-lítica desses movimentos, a classificação parece ser feita de acordo com a metodologia da ação proposta, com base em aceitar o sistema institucio-nal e a aplicação ou não da violência, ou assumir seus objetivos.

Excluir uma idéia do jogo democrático, banir o que não gosta, é não articular um conflito; tais posições devem ser sempre tomadas com precaução, pois podem comprometer a legitimidade das institui-ções. Além disso, o choque com a realidade costuma ser o Termidor de todo movimento revolucionário e utópico, porque como diz o ditado, uma coisa é criticar e outra coisa é dar o trigo. Não se pode entender a exclusão permanente, às vezes, de mais de 60% da população.

E parece natural o fato de que uma sociedade profundamente religiosa se reflita em seus governantes e nas leis que a regem. É a re-islamização desde abaixo, de que falou Gilles Kepel. A questão

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é saber se o Ocidente pode aceitar um resultado nas urnas em favor dos islâmicos, de acordo com os princípios democráticos proclama-dos, mesmo que isso possa afetar os seus interesses ou inclusive a sua segurança.

Pelo contrário, não aceitá-los parece de alguma forma apoiar fórmulas autoritárias contrárias às crenças e essências ocidentais, que, aliás, já foi feito antes em nome da Segurança. O Ocidente se coloca, assim, frente às suas próprias contradições internas, embora deva ficar claro que aceitar uns resultados não obriga apoiar o governo que os obtêm, a não ser que esteja de acordo com suas políticas. Assim, há sus-peitas de terrorismo sobre líderes políticos islâmicos próximos ao poder.

2. Geografia dos conflitos Mediterrâneos

Sem querer quebrar a natureza integral da área Mediterrâ-nea, estudar-se-á o Magreb e os diferentes conflitos que coexistem no Oriente Médio, com ênfase especial sobre aqueles em que ocorreram as chamadas primaveras árabes (tão diferentes entre si), assumindo uma relativa calma no lado norte, mesmo no caso dos Bálcãs. É a MENA (Middle East and North Africa - Oriente Médio e Norte da África em inglês).

2.1. o Magreb

A palavra Magreb significa literalmente “o ocidente” e integra cinco países: Marrocos, Argélia, Líbia, Mauritânia e Tunísia, Estados cujas consolidações foram favorecidas pelos processos de indepen-dência. No entanto, apesar de compartilhar etnias, história, cultura

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e religião, não estão sequer minimamente integradas, bastando dizer que o comércio entre eles não atinge 4% do PIB e que não há infra--estruturas comuns. Além disso, embora formalmente formem parte da União do Magreb Árabe (UMA), que tem até uma cláusula de defesa mútua, isso, até agora, é algo inconsistente.

Se bem que a região pareça culturalmente distante, está pro-vavelmente muito mais próxima do que a realidade africana, que se encontra atrás e cuja pressão demográfica atinge seus países, tendo se tornado em um amortecedor de interesses. Sua estabilidade é de grande interesse para a Europa, embora seu nível de desenvolvimento seja baixo (no Índice de Desenvolvimento Humano de 2011, a Tuní-sia ocupava o posto 94, Argélia o 96, Marrocos o 130 e Mauritânia o 159 em uma lista de 187 países).

A área é caracterizada pela rivalidade entre Marrocos e Ar-gélia, originada depois da independência deste país e levando a uma guerra cruel, a Guerra das Areias. Historicamente, a soberania não era um conceito territorial, mas pessoal e variável, ligado à tribo des-dobrada num território, com uma tradicional cerimônia anual de ho-menagem, a beia, na qual esse reconhecimento era ritualizado. Bled Makhzen aqueles que aceitavam a autoridade do sultão e bled siva aqueles que não.

Se Marrocos (que nunca foi ocupado pelos otomanos) exalta os Almorávides, Argélia fala de Yugurta e Masinissa; ambos os países mantêm as fronteiras fechadas, como só acontece no mundo entre as duas Coréias. Atores internacionais na zona combinam uma relação preferente com um e complementar com o outro.

A questão do Saara Ocidental, em poder do Marrocos desde

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1975 no contexto do conflito Este-Oeste, faz parte dessa lógica, a do Grande Magreb, reivindicado por Allal Al Fassi e construído a partir desse país; o processo de mediação continua buscando um referendo de autodeterminação que parece cada vez mais distante, enquanto o Marrocos segue levando 36 anos de controle sobre a região. As pos-sessões espanholas no Norte da África e até mesmo as Ilhas Canárias têm sido objeto de reivindicação por parte do Marrocos.

Há também a questão berbere, etnia distribuída em toda a área, e que em algum momento da História foi usada para dividir os magrebes; atualmente, com suas tensões, esse problema parece resol-vido, mas pode ressurgir em torno do Rif ou da Cabília argelina.

Os grandes espaços vazios do Saara têm sido ocupados pela franquia da Al Qaeda na região, protegida pelas redes tribais e pela imensidão de um vasto deserto na área do Mali, da Mauritânia e da Argélia, que, por si só, torna inoperante o fraco poder desses Estados.

Com relação ao regime interno dos Estados, a aceleração das reformas democráticas empreendidas pelo Marrocos em 2011 e a in-corporação ao poder dos islâmicos moderados (Partido da Justiça e Desenvolvimento), juntamente com a legitimidade histórica e reli-giosa de seu Rei, têm conseguido moderar a resposta da população e ampliar a base social do regime que, por outra parte, conta com a legitimidade outorgada pelo crescimento econômico dos últimos dez anos (a pobreza diminuiu de 16,2% para 9% nesse período, com um crescimento notável das infra-estruturas básicas). Ficam atrás os tur-bulentos anos de chumbo; essa crise é bem distinta.

No caso da Argélia, cabe recordar que o país sofre uma déca-da de conflito armado (não se pode falar propriamente de uma guerra

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civil, pois não houve um controle permanente de uma porção do seu território), com aproximadamente 200.000 mortos, sem que tenha se acabado por completo; a memória de sangrentos massacres de civis, à base de machados e facas, assim como as denúncias de excessos pelos corpos e forças de segurança, ainda estão presentes. Cabe lembrar também as várias anistias e o processo de reconciliação nacional, cuja eficácia tem sido questionada pelo retorno à violência de alguns da-queles que se beneficiaram dos indultos.

O sistema político argelino tem permitido a participação de islâmicos moderados e os incorporou ao poder, onde as Forças Ar-madas têm muito peso. As estruturas de governo passaram por um processo de re-islamização em resposta às demandas sociais.

O crescimento econômico dos últimos anos, decorrente do processo de liberalização dos anos 80, contribuiu para a legitimidade do regime e se assenta nos elevados preços do petróleo e de seus deri-vados (97% das exportações e 30% do PIB), permitindo políticas que têm diminuído a efervescência social (se reduziram impostos e tam-bém tarifas sobre alguns produtos básicos) e o desenvolvimento de infra-estruturas; as reformas (abolição do estado de emergência, nova lei eleitoral e de partidos) e o cansaço de uma década de violência têm sido uma vacina enfraquecedora da primavera.

Mauritânia é um Estado heterogêneo tribal e frágil, que tem dificuldades em assumir o controle total do seu território, um vasto espaço desértico (três quartos do país) entre o Saara e o Sahel, ponte natural entre os árabes berberes e os negros, em parte colonizada por grupos criminais e terroristas de diferentes tipos (por exemplo, tráfico de cocaína procedente do Golfo de Guiné, tráfico de armas, tráfico

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humano e seqüestros) e de venda, que se aproveitam das “brechas de vizinhança” das quais já se comentou. Isso, juntamente com a desco-berta de campos de petróleo offshore, tem atraído a atenção da comu-nidade internacional, interessada em sua estabilização.

Desde a independência, o país tem sofrido uma sucessão de golpes de Estado e de governos militares; estes estão de volta ao po-der depois de umas eleições muito contestadas, que têm diminuído a estrutura institucional do regime. Problemas étnicos permanecem entre os árabes berberes, os maures e os negros africanos (e até mesmo casos documentados de escravidão), que já foram fonte de violência para aquilo que se chama de causa dos processos de arabização e isla-mização empreendidos.

Na Tunísia, a primavera árabe começou causando a queda do presidente Ben Ali (que anos antes tinha dado um golpe de Estado médico contra o seu predecessor Bourguiba, como aconteceu com Ludwig II da Baviera); a vitória eleitoral (em um processo modelo, referência para outros países em situações similares) do moderado partido islâmico Ennahda, o Renascimento, que pretende se inspirar no modelo turco (o moderado AKP, Partido da Justiça e do Desen-volvimento, o mesmo nome que o partido marroquino), tem sido até agora o ponto culminante desse movimento, causado pela efervescên-cia social resultante da crise econômica que o país enfrenta.

O Estado líbio, com uma fraca coesão herdada das arbitrárias fronteiras coloniais, foi capaz de se tornar um Estado rentista, depen-dente dos hidrocarbonetos, com que subsidia a sociedade, ou melhor, as 140 tribos (três delas com autêntico poder decisório) que a inte-gram; isso, juntamente com a gestão dos códigos religiosos, confe-

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riu legitimidade ao regime. Ambiciosos projetos de unificação como o “Great Man Made River Project”, com capacidade para expandir a agricultura irrigada por todo o país, permanecem pendentes para o novo governo.

Gaddafi foi capaz de permanecer no poder nesse complexo ce-nário desde 1969, com flexibilidade política e conhecimento da situa-ção; assim, promoveu o valor simbólico das referências islâmicas, a fim de reforçar as estruturas do Estado, com um militarismo pan-arábico para resolver o problema da identidade do país e um Estado rentista diretamente relacionado com as autoridades tribais, que se vigiavam mutuamente tratando sempre de prevalecer umas sobre as outras.

Finalmente, os problemas de incompetência e corrupção, jun-tamente com questões religiosas e de distribuição de benefícios (cerca de um terço da população está abaixo da linha de pobreza, apesar do país ocupar o posto 64 no Índice de Desenvolvimento Humano de 2011), empresários afetados pelas nacionalizações e um Exército que desconfiava de sua liderança trouxeram a alteração desses equilíbrios e a fratura das Forças Armadas.

Esse tipo de mudança não é a primeira vez que ocorre; o pro-blema é que antes não houve precedentes bem sucedidos. Além disso, o regime de Gaddafi, apesar dos progressos e da recente abertura política, havia sido identificado como terrorista, o que de cara tornava muito difícil contar com o apoio internacional, qualquer que fosse seu rival.

Prevêem-se lutas pelo poder no seio do Conselho Nacional de Transição (o assassinato do Chefe de Estado Maior do Conselho e a recusa de dissolução das milícias fazem parte dessa lógica) depois que desapareceu o inimigo comum que unia as diferentes milícias,

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rearmadas com arsenais de Gaddafi, cujo controle tanto preocupa o Ocidente nesse estado de anarquia (por exemplo, estima-se em 20 mil os mísseis portáteis superfície-ar em posse das Forças Armadas líbias antes do conflito).

A questão é que quem substitua Gaddafi virá do mesmo “saco” que ele, como se viu nas tristes imagens de Misrata ou nas mortes de prisioneiros suspeitos de serem mercenários por sua cor; as coisas podem mudar, mas não é sensato pensar que muito, já que as soluções partem da mesma cultura e Gaddafi esteve no poder por alguma ra-zão. As transições terão os mesmos defeitos que a maioria dos casos dos regimes anteriores.

2.2. oriente Médio

Oriente Médio é um vespeiro onde convergem três continen-tes. Falar sobre Oriente Médio é falar, de início, do problema entre israelenses e palestinos, um conflito longo e convulso, fonte de tensão na área, cujo fim não se pode prever; sua permanente oscilação, resul-tado das forças que convergem e da cultura de barganha dominante, chega paradoxalmente a aborrecer; perde-se o fio da meada, mas sem-pre é fácil de retomar pelas poucas mudanças reais que acompanham os sucessivos processos de negociação.

Questões recorrentes incluem o direito de retorno dos refu-giados, o status de Jerusalém, os assentamentos de judeus nos ter-ritórios ocupados, o muro, o problema da água, o reconhecimento do Estado palestino e sua viabilidade... Alguns atores mudaram; o Hamas (Irmãos Muçulmanos, para alguns uma organização terro-rista; em qualquer caso, com a primavera árabe, mudaram de tática

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e manifestaram o desejo de entendimento com Israel, cuja existência estão dispostos tacitamente a reconhecer) governa na Faixa de Gaza, enquanto o Al Fatah o realiza na Cisjordânia. A diáspora palestina contamina o resto dos conflitos.

Turquia, como vimos, é outra inevitável referência. O modelo kemalista turco foi capaz de integrar o laicismo, o Islã, a democracia e o nacionalismo. Mas esse foi um primeiro passo; o segundo era ine-vitável ao longo do tempo e passava pelo reequilíbrio com os padrões culturais da sociedade.

Assim, em 2002, chegou ao poder, após um processo eleitoral, o AKP, partido de origem islâmica, mas que não faz bandeira do Islã e que tem mantido os eleitores mais religiosos e, simultaneamente, atraído o voto de centro-direita, pois evitou questionar os princípios kemalistas, particularmente o laicismo do Estado, enquanto promo-via o controle civil sobre as Forças Armadas, espinha dorsal da orga-nização do Estado.

O resultado tem sido uma lenta e gradual islamização da so-ciedade e o deslocamento dos centros de poder para fórmulas mais democráticas; todos eles, por sua vez, dão ao partido a legitimidade de serem gestores da mudança e lhes converte em um modelo a seguir; um modelo que, pelos prazos, é de evolução e não de revolução, algo muito diferente do que alguns pretendem. Mas isso não significa que seja uma referência indispensável na marcha à democracia dos países do MENA, que encarna um paradoxo, dadas as dificuldades nas suas relações com os antigos membros de seu império.

Quanto aos conflitos que envolvem a Turquia, há problemas com os curdos e os armênios, que afetam vários países da região. No

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Cáucaso, a Armênia ocupou Nagorno Karavaj, território do Azerbaijão, que conta com apoio turco. O reconhecimento do genocídio armênio no contexto da Primeira Guerra Mundial, que os turcos aceitam, mas não na magnitude de um genocídio, reconhecido apenas como excessos em tempo de guerra, disfarça uma disputa de fronteiras.

A questão das ilhas e do mar territorial é um problema que faz parte do passado conjunto de gregos e turcos, onde também faz parte a questão de Chipre, que no verão de 2012, assumirá a presidên-cia rotativa da União, um país dividido entre comunidades (a ocupa-ção turca do norte de Chipre foi em 1974). A descoberta de petróleo e de gás entre sua costa e a de Israel tornou o confronto mais visível.

O Egito sempre tem sido o farol intelectual do mundo islâ-mico; do Egito são as principais abordagens do Islã, desde Hassan Al Banna e os Irmãos Muçulmanos a Al Zawahiri e Al Qaeda. Constru-ído em torno do Nilo (com conflitos com Sudão pela distribuição de água), é a ponte entre a África e a Ásia; é também o país muçulmano mais populoso (80 milhões), além dos dois milhões de emigrantes distribuídos em toda a área.

E existe um profundo mal estar social, já que 40% da popu-lação vive abaixo da linha de pobreza, com um enorme setor público (30% da força de trabalho) sustentada somente pelos baixos salários; o aumento dos preços dos produtos básicos (que chegou em 2010 a 25% em alguns), juntamente com o precedente da Tunísia, está entre os detonantes da crise atual.

A onda de protestos encenada na Praça de Tahrir levou à que-da de Hosni Mubarak (que pretendia transferir o poder para seu fi-lho) e à criação de um Conselho Nacional de Transição, sob liderança

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do Marechal Tantawi, mão direita do General Mubarak; com isso o poder nunca deixou de estar nas mãos das Forças Armadas, a final de contas, a estrutura de maior prestígio de todo o país e profundamente enraizada na vida política e administrativa; elas permaneceram em uma atitude ambivalente até as revoltas estarem bem avançadas, o que lhes deu um prestígio para liderar e mediar a transição à maneira do exército turco.

No entanto, iniciou-se um processo de reforma de três fases, previsto para estar finalizado em 2012, com a eleição de um novo presidente. Os islâmicos souberam aproveitar o processo de mudança e, nas eleições legislativas, os “Irmãos Muçulmanos” (Partido da Liber-dade e Justiça) e os salafistas de “Al Nur” (uma excisão radical) foram os dois partidos mais votados, por em cima do setor oficial; isso vai diferenciar o Egito do modelo turco de transição, onde a islamização da sociedade ocorreu sobre um laicismo firme e bem estabelecido.

Estão previstas futuras tensões por questões como o ritmo das reformas, o modelo de governo e a reforma do aparato policial do anti-go regime (1.300.000 funcionários). A islamização da sociedade trouxe tensões sobre as minorias não-muçulmanas, especialmente os coptos.

No entanto, é difícil conceber o Egito do marabutismo, do Islã popular, governado a partir de princípios radicais; ele pode fazer com que os partidos islâmicos adotem, pelo menos em curto prazo, posturas mais possibilistas. A radicalização proporcionaria também uma pro-funda alteração no frágil equilíbrio em que se baseia a paz no Oriente Médio, o que preocupa a comunidade internacional como um todo.

Líbano, país de complexos equilíbrios entre as diversas reli-giões (institucionais ou não) nele existentes, foi criado como um lar

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para os cristãos tirados da Síria; com o passar do tempo (e também com a diáspora palestina), alterou-se a composição demográfica do país. A debilidade do país permitiu o surgimento da organização He-zbollah que, apoiado pelo Irã e com a legitimidade de sua resistência a Israel durante a invasão de seu território, tem substituído o papel do Estado, oferecendo segurança e serviços básicos, não apenas a xiitas, e formando uma zona de estabilidade e de ordem, apesar de seu radical anti-semitismo.

Outro país afetado pelas primaveras é a Síria, um país de bai-xa renda (ocupa o posto 119 no Índice de Desenvolvimento Humano de 2011), governado desde 1963, após o fracasso da união com o Egi-to, pelo Baas, um regime patrimonial de partido quase único. É um partido que se define como nacionalista árabe e socialista, fundado por um cristão e um alauíta (70% da população é sunita, enquanto os alauítas estão no poder), que fez do laicismo e do pan-arabismo sua bandeira. No entanto, esse fato tem conformado, por excluir o plano religioso, uma base de confrontação.

O alinhamento e a doutrinação das Forças Armadas com o governo explicam sua duração no tempo, mas, por outro lado, têm impedido a criação de alternativas em um regime ineficiente. Uma excessiva centralização do governo, que gira em torno das grandes cidades do centro do país, e o peso do componente tribal condenam a sociedade à debilidade, com um limitado sistema de proteção social. A queda de receitas e o previsível esgotamento dos recursos petrolífe-ros desestabilizaram definitivamente o sistema.

Os primeiros protestos contra um processo, que já causou mi-lhares de mortos, vêm a reboque dos eventos da Tunísia e do Egito.

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Os passos para as reformas têm sido fracos e dados somente quando o governo foi forçado a, tardiamente, realizá-los (como a revogação do estado de emergência em vigor desde 1963; a repressão das manifes-tações prejudicou a imagem do presidente Asad, até então tido por re-formista; enquanto simultaneamente aparecia uma violência religiosa.

Os protestos cresceram em intensidade como também a re-pressão; a violência se disseminou e se organizou, ameaçando a coe-são das Forças Armadas e privando o regime do apoio internacional, mesmo na tensa e frágil situação regional; assim, a ameaça de uma guerra civil se fez presente.

ConsiDerações Finais

Fatores polemológicos são os elementos que fundamentam a origem dos conflitos, que, de forma independente, podem conduzir ou não a um enfrentamento; este poderia ocorrer dependendo da pre-sença de certos catalisadores ou detonantes. Sua existência permite os conflitos e a concentração de vários os tornam mais prováveis, mas não os assegura, embora seja fácil bancar o adivinho a posteriori.

Os conflitos, como todos os fatos que afetam as coletividades humanas, podem surgir em meio a razões difusas, apresentar contor-nos mal definidos e, geralmente, admitir uma pluralidade de explica-ções; seus motivos se distanciam muito da simplicidade uni causal, são ou costumam ser de natureza plural e multifacetada.

Por outro lado, a complexidade do conflito leva a tratar cada caso como resultado de circunstâncias especiais que não se repetirão. Da mesma forma, não cabe o extremo oposto, isto é, que exista uma

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lei espacial da qual não se pode escapar. Os conflitos não são fenôme-nos únicos, mas singulares.

De uma revolução, sabe-se quando começa, mas não se sabe como ou quando termina. A Revolução Francesa levou à forca um rei, para acabar entronizando um imperador. O processo segue aberto e há quem acredita que em fase incipiente. Se observarmos a diversi-dade das origens e da história – lembrar que houve quem inscrevesse os acontecimentos de 15-M na Espanha no contexto das primaveras árabes – dos países envolvidos, veremos que pode haver diferentes evoluções; os equilíbrios turcos podem servir de inspiração, mas não de modelo para um mundo tão heterogêneo, especialmente quando seus pontos de partida são bem diferentes.

Além disso, não pode causar surpresa que um movimento ini-cialmente laico passe a outro de inspiração religiosa, toda vez que este obedeça à sua cultura. A crise de identidade que está por trás deles não é menor do que a crise econômica que os impulsiona e coloca o Ocidente frente às suas próprias contradições.

Assim, seguem abertos os dilemas que levam o apoio a um governo saído das urnas, respondendo às novas exigências de câmbio de grandes setores da população, e a tolerar a criação subsequente de uma área de instabilidade em zonas de alto valor estratégico ou que possam afetar o fornecimento energético.

Nesse contexto, a mudança se torna necessária, além de ine-vitável. A melhor coisa a se fazer não é apoiá-la, mas dirigi-la, ofere-cendo uma saída a sociedades sem expectativas, que, às vezes, falam de mais democracia, quando, na verdade, querem dizer mais pão, algo que os regimes recém eleitos dificilmente conseguirão em curto pra-

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zo, prejudicando sua legitimidade. É prematuro e voluntarista apre-sentar esse processo como uma nova onda de democratização.

O progresso não implica em uma moralidade superior, mas em níveis mais altos de contradição interna. A chegada ao poder dos radicais pode também situá-los frente às suas próprias contradições; entre suas crenças e a necessidade de atender às demandas reais da população, aceitando sua concepção religiosa. Estes países não podem viver à margem do Ocidente em um mundo que foi dobrado sobre si mesmo; ninguém é uma ilha, nem mesmo por vontade própria. Por-tanto, os fluxos econômicos que do exterior financiam o radicalismo extremo devem ser controlados.

A solução para todos os problemas reside no fortalecimento do Estado e em torná-lo adequado à sociedade em que se instala, en-quanto satisfaz suas demandas. O Estado está para a sociedade e não o inverso; o outro é, na melhor das hipóteses, transitório e se chama ditadura. Em qualquer caso, a necessidade de mudança não pode ig-norar a realidade do que foi conseguido até agora.

A geografia e a globalização obrigam-nos a compartilhar o destino. Somos forçados a conviver e a nos relacionar. Como disse D’Ors “Uma e outra vez se foram sucedendo no domínio daquele mar, uns e outros povos, umas e outras esquadras, mas o mar seguia sendo para todos o Mar nosso”.

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HaCia eL nUeVo paraDiGMa ÁraBe

Francisco J. Berenguer Hernández

Teniente Coronel DEM

Analista Principal IEEE

resumen

A lo largo de 2011 se ha comenzado a perfilar el cambio de modelo de Estado árabe que probablemente se generalizará duran-te los próximos años. Va a ser un tiempo tanto de riesgos como de oportunidades, en el que probablemente el ámbito mediterráneo su-frirá cambios profundos que tendrán implicaciones en el campo de la seguridad. El apoyo y asesoramiento occidental a los procesos re-volucionarios es imprescindible, pero debe de mantenerse vigilante sobre posibles desviaciones que pongan en riesgo tanto las ansias de libertad y justicia social de los como la seguridad en el ámbito inter-nacional y muy especialmente en el espacio mediterráneo.

Palabras clave: Estado árabe, primaveras árabes, seguridad en el Mediterráneo, islamismo.

abstract

Throughout 2011 the arab State model has begun to change. It may be a generalized trend in the coming years. It will be a time of both risks and opportunities while profound changes will probably

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arrive around the Mediterranean in the field of security. The western countries advice and support to the revolutionary processes is essen-tial, but those nations must remain vigilant on possible deviations that endanger both the desire for freedom and social justice as well as security in the international arena and especially in the Mediter-ranean area.

Keywords: Arab State, Arab Spring, security in the Mediterranean, islamism.

1 el principio del nuevo modelo

En prácticamente un año transcurrido desde el inicio en Tú-nez de los procesos revolucionarios en numerosos países árabes obli-ga, en cierto modo, a reflexionar sobre lo sucedido en el convulso y recientemente finalizado 2011. Pero desde luego no desde la perspec-tiva de un ciclo finalizado, sino muy al contrario, desde el convenci-miento de que en estos doce meses transcurridos se han cimentado los pilares de unos acontecimientos que van a ser transcendentes en el panorama estratégico de las próximas décadas.

Efectivamente el proceso de cambio no ha hecho más que empezar, hasta el punto de que de lo único que podemos dar testimo-nio en estos momentos es de la finalización del viejo paradigma del mundo árabe. Bien a través de reformas constitucionales o concesio-nes más o menos amplias que amplían las libertades y representati-vidad de los ciudadanos, bien por medio de insurrecciones armadas, lo cierto es que el panorama político del mundo árabe con el que se

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inicia 2012 difiere radicalmente de aquél con el que se cerró el tan cercano 2010.

Como consecuencia de ese conjunto de procesos, con sus re-alidades nacionales distintas, surge en cambio un modelo para cada Estado que presenta algunas características comunes, hasta donde puede en estos momentos vislumbrarse, la más importante de las cua-les es el liderazgo político de los partidos islamistas. En consecuencia, el viejo modelo constituido por regímenes que presentaban un amplio abanico, desde sistemas parlamentarios tutelados y no plenamente representativos hasta dictaduras de carácter auténticamente tiránico, surgidos en gran medida del proceso de descolonización pero para-dójicamente en buenas relaciones con Occidente, principalmente de-bido a su papel como muro de contención y represión del activismo islámico y el terrorismo de él originado, simplemente ha prescrito.

En su lugar, a esta cierta homogeneidad del mundo árabe está sucediendo paso a paso un nuevo modelo que se presenta también re-lativamente similar en numerosas naciones. Está constituido por regí-menes plenamente democráticos, o al menos mucho más de lo que lo eran anteriormente, en los que la opción que representa al islamismo político se ha impuesto ya en las primeras elecciones, como es el caso de Túnez o Marruecos, está en camino de imponerse como en Egipto o Libia, o se impondrá tras el inevitable fin del régimen alauí de Si-ria. Está en consecuencia en camino un escenario constituido por un mundo árabe con gobiernos de mayoría islamista suní, que se unen al ya dilatado ejemplo en la misma dirección que representa Turquía, con los que va a ser necesario coexistir del mismo modo que se ha hecho hasta ahora con los antiguos regímenes, tratando de equilibrar

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los encuentros y desencuentros que sin duda vendrán con el objetivo de preservar la paz y la prosperidad de todos.

2 primeros indicios del nuevo orden

Como ya sucediera en el comienzo de las revueltas, el mejor indicador de lo que está sucediendo es Túnez. Debido a su más tem-prano inicio y al desarrollo en gran medida ejemplar del proceso que está viendo el país, los acontecimientos tunecinos marcan la pauta y resultan en buena medida indicativos de lo que puede suceder en otras naciones cuyos procesos revolucionarios se encuentran en fases más tempranas.

La amplia victoria en las elecciones celebradas en el pasado mes de octubre del partido Ennahda, plenamente enmarcado en la corriente denominada en la abundante literatura generada como is-lamista moderada, se debe principalmente a dos causas convergentes. Una de ellas esencial y de carácter social, mientras que la segunda es más instrumental pero determinante sobre todo en estos primeros tiempos de funcionamiento del nuevo régimen. En el fondo de la cuestión se encuentra una realidad que va a tener vigencia muy pro-bablemente en un período considerable de tiempo, que no es otra que la orientación islamista de un sector muy importante de la población. A pesar de que Túnez cuenta con los mejores índices de educaci-ón y preparación de su población en la zona, de un modo paralelo a la creciente incapacidad de satisfacer las necesidades y demandas de la población del régimen del derrocado presidente Zine El Abidine Ben Ali, los servicios sociales sustitutivos de los que corresponderían

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al Estado prestados por las organizaciones religiosas islamistas, uni-dos a una eficaz propaganda encargada de explotar esta circunstancia, han conseguido un crecimiento sostenido del islamismo político en el país. Sobre todo en aquellas zonas menos evolucionadas donde cubrir las necesidades primarias del día a día pesan bastante más que los debates, la teoría política o las ideologías de cualquier cuño. A los is-lamistas les ha bastado con aflorar a la superficie constituidos en par-tido político para tener un amplio apoyo electoral, sostenidos por una organización disciplinada, estructurada y experimentada, preexistente a la caída del antiguo régimen y el proceso electoral.

Además las características propias de cualquier régimen de partido único, como el establecido en Túnez en torno a la Reagrupa-ción Constitucional Democrática de Ben Ali, han impedido el desar-rollo de agrupaciones políticas de orientación distinta a la islamista a las que estas primeras elecciones han sorprendido divididos, en fase de constitución y consolidación. Demasiado “verdes” y con escaso ca-lado popular en resumen. El resultado de la unión de ambos factores, en unas elecciones calificadas por la misión de observación de la Uni-ón Europea como limpias y transparentes, ha sido el triunfo islamista.

Lo sucedido en Túnez se está repitiendo y muy probable-mente lo va a hacer aún más en el futuro inmediato en otros países por la sencilla razón de que las dos razones expuestas en los párrafos anteriores, en mayor o menor medida, concurren igualmente en ellos. Evidentemente las generalizaciones hacen caer inevitablemente en el error, y las diferencias de los procesos emprendidos por ejemplo en Marruecos y en Libia, que se encuentran en extremos opuestos del abanico de sucesos experimentados en el mundo árabe a lo largo de

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2011, son inmensas. Pero el triunfo del marroquí Justicia y Desarrollo y el que probablemente obtendrán las opciones islamistas libias, o los Hermanos Musulmanes en Egipto, se corresponden en el fondo con causas muy similares. E incluso en algunos casos incrementadas en su intensidad, como puede ser el caso del ámbito rural egipcio, y el consecuente apoyo incluso a un islamismo menos moderado como es el caso de los salafistas de Al Nour. Este es el principal motivo por el que los partidos islamistas están impulsando en todos los procesos la celebración de elecciones a la mayor brevedad, ya que son muy conscientes de la ventaja que tienen en este momento y de que la organización de los partidos no islamistas no hará sino mejorar con el paso de los meses.

El vigor de los avances islamistas ha empezado a manifestarse incluso en un país relativamente alejado hasta la fecha del torbellino generado alrededor de sus fronteras. Hasta ahora participante en la coalición de gobierno que sostiene al presidente Buteflika, la Alianza Presidencial, el Movimiento para la Sociedad y la Paz argelino, re-presentante político del islamismo moderado en este país, acaba de anunciar su pase a la oposición con el evidente objetivo de presentarse a las elecciones que tendrán lugar en la próxima primavera. Su líder Bouguerra Soltani implícitamente ha dado por concluida la reconci-liación nacional tras la sangrienta guerra civil de los años noventa, y considera llegado el momento de optar al poder en unas elecciones libres y transparentes. Queda por ver si en los argelinos tendrá más influencia el temor a una nueva victoria islamista en las urnas, he-cho que sin duda ha contribuido a mantener a Argelia relativamente apartada de los procesos revolucionarios, o si por el contrario la pu-

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janza islamista de sus vecinos y correligionarios tiene un efecto de contagio, alcanzando entre el 35 y el 40% de los votos como parecen indicar los pronósticos.

En lo que respecta a la situación de Siria, la revuelta contra el régimen y la violenta represión que éste ejerce no tiene un final fácil ni rápido, pero lo cierto es que en su desmesura el régimen ha acaba-do perdiendo la práctica totalidad de los apoyos exteriores de los que disfrutaba. Consentidas las sanciones por Rusia y China, abandonado el apoyo del que una vez disfrutó desde el Golfo y con su principal valedor Irán inmerso en sus propios problemas derivados del pulso a la comunidad internacional que mantiene debido a la no cancelación de su programa nuclear, el final de la dinastía Assad parece inevitable. Aunque posiblemente no inminente, porque la capacidad represiva del régimen sigue siendo muy superior a la de respuesta tanto política como militar de la oposición, que apenas comienza a vertebrarse.

El apoyo exterior a dicha oposición, posiblemente enmarca-da en una dimensión mayor, con Irán y su “media luna Chií” como damnificado colateral, puede verse incrementado paulatinamente, mientras que el enrocamiento del régimen en la represión violenta y desproporcionada no hará sino incrementar la sensibilidad y simpatía hacia los opositores. Si el régimen sirio cae, lo que en estos momentos parece inevitable, el proceso democrático resultará en un panorama similar al de sus países hermanos, con un parlamento con fuerte pre-sencia del islamismo suní representado por la rama siria de los Her-manos Musulmanes. Como ya se explicó en un documento de análi-sis anterior esto supondría un cambio cualitativo en las relaciones de poder en Oriente Medio.

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Pero quizás el mayor indicio de que un cambio mayor está en marcha en la región es la actitud adoptada por Hamás. Conven-cidos del cese del apoyo sirio, al menos en los términos hasta ahora establecidos, y en consecuencia del obtenido de Irán, ha decidido tor-nar su posición hacia un pragmatismo del que hasta ahora no había hecho gala. La aceptación de un estado Palestino de acuerdo con las fronteras anteriores a la Guerra de los Seis días por parte de su lí-der Jaled Meshal, su anunciado retorno a Jordania para entrevistarse con el monarca jordano, o la visita a Estambul de su segundo, Ismael Haniya, evidencian una nueva estrategia que permitan a Hamás la vuelta a su entorno natural, alejándose de la circunstancial y operativa alianza que ha mantenido con el Irán chií y su aliado sirio. La recon-ciliación definitiva con Al-Fatah y el acercamiento a las posiciones políticas sostenidas por los Hermanos Musulmanes será la baza que Hamás intentará jugar en las elecciones palestinas fruto de este cam-bio y reconciliación.

3 aspectos positivos del islamismo en el ámbito Árabe

Como todas las situaciones, sean nuevas o no, el estableci-miento de gobiernos islamistas en la mayoría de las naciones árabes, ofrece al menos a priori dos caras, con aspectos positivos y negativos, aunque es necesario subrayar el hecho de que esta nueva etapa de la historia árabe sólo está comenzando a escribirse.

En el lado positivo de la balanza hay que destacar la posi-ble disminución o erradicación de las prácticas de corrupción de los antiguos regímenes. Posiblemente uno de los factores que mayor

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hartazgo ha ido reuniendo en los ciudadanos, el islamismo, debido a su vertiente ética y de mayor pureza en el comportamiento y las costumbres, presenta una esperanza real de que la endémica corrup-ción, tanto política como económica, sea erradicada de estas naciones, situándose en una escala de normalidad similar al de otras naciones de otros ámbitos geográficos y culturales. En este aspecto el proceso electoral desarrollado en Túnez, transparente, pacífico e irreprochable, es un ejemplo esperanzador a seguir.

Por supuesto hay que añadir los aspectos relacionados con el ejercicio de un sistema planamente democrático, donde los poderes del Estado y las Instituciones sean un reflejo mucho más cercano de la sociedad de la que emanan, sin olvidar aspectos tan esenciales como la seguridad jurídica, la libertad de expresión, etc, negados sistemáti-camente por los antiguos regímenes.

Otro aspecto en el que pueden experimentarse mejoras sus-tanciales es en el posible aumento de un cierto sentido de universalidad panárabe, alimentada por la proximidad ideológica de los gobiernos, que sirva para disminuir el fuerte nacionalismo postindependentista, siempre presente en los sistemas políticos derribados. De este modo se mejorarían las expectativas de la tan necesaria integración sur-sur, muy deficiente en estos momentos.

En cuanto a la integración norte-sur paradójicamente muy superior, tan importante para Europa en general y España en par-ticular, no tiene por qué verse perjudicada, como demuestra la larga convivencia con países como Arabia saudí y las monarquías del Golfo, que desde una óptica tan distinta a la de Occidente, están en cambio perfectamente imbricados en la comunidad internacional. O, por su-

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puesto el caso turco.Pero quizás el aspecto más positivo pueda ser el enfrentamien-

to de los nuevos gobiernos islamistas tanto a la realidad del ejercicio del poder en su propio país como a la de las relaciones internaciona-les. Siempre situados hasta cierto punto en la demagogia que pueden permitirse los que son conscientes de que no tendrán que asumir las responsabilidades de gobierno, comienza a ser hora de reconducir el discurso y las ambiciones islamistas a través de los cauces democráti-cos, limitados por los preceptos constitucionales, haciendo más difícil la argumentación de los sectores radicales y antidemocráticos. El ejer-cicio del poder es uno de las mayores curas de realismo que existen, tal y como muchos mandatarios han experimentado en sus propias carnes. El contacto con las instituciones internacionales, la econo-mía real y los gobiernos extranjeros con sus intereses y sensibilidades, templa inevitablemente a los más fuertemente ideologizados.

En consecuencia, durante estas primeras legislaturas, el ejer-cicio del poder mostrará a la población si esta opción política, perse-guida por unos e idealizada por otros antaño, es una opción real de mejora de las condiciones de vida del ciudadano medio o si, por el contrario, focaliza sus políticas en aspectos doctrinales que no logren satisfacer las ansias de mejora de la calidad de vida de la población, perdiendo entonces parte del apoyo mayoritario del que ahora gozan.

Finalmente no hay que olvidar que fue durante el largo man-dato de los gobiernos corruptos y autoritarios cuando se produjo prin-cipalmente el proceso de radicalización de un sector de la población, llegando en algunos casos al ejercicio del terrorismo. Dichos gobier-nos fueron en buena medida causantes de ese proceso, al mismo tiem-

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po que lo reprimían. Occidente durante años ha preferido tener en cuenta más este segundo aspecto que el primero, pero no cabe duda que en conjunto la cuenta de resultados de estos dirigentes ya apar-tados del poder ha sido negativa. Los gobiernos autoritarios hicieron germinar en su seno el radicalismo más extremo y el terrorismo, por lo que el nuevo sistema que ahora comienza a articularse merece una oportunidad y difícilmente puede empeorar el balance interno y ex-terno de aquéllos. Sin olvidar que de resultar exitosos los cambios en marcha contribuirán sin duda a la desactivación de la mayoría de los argumentos conducentes a la radicalización y al terrorismo.

4 riesgos de la expansión estatal del islamismo

Sería absurdo no obstante caer en la tentación de un exagera-do buenismo y obviar los riesgos que se esconden detrás de las revolu-ciones en desarrollo y de otras que probablemente vendrán en varios países. Hay que tener en cuenta que las revueltas se han generado por causas que tienen más que ver con la falta de libertades, la corrupción, la injusticia social, el estallido demográfico árabe, la expansión de las comunicaciones y el conocimiento, etc… que con principios ideoló-gicos. Fueron lanzadas y encabezadas por sectores sociales en general alejados del islamismo, pero sin embargo tras las elecciones éstos pa-recen ser los principales beneficiarios.

Es dudoso que el islamismo sea capaz de satisfacer todas las demandas de los manifestantes, antes bien parece apuntar en direc-ción contraria a muchas de las reivindicaciones, pudiendo crearse así el germen de una nueva insatisfacción y una división de la sociedad

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en islamistas y antiislamistas. Un buen ejemplo de este problema es la petición de suspensión temporal de las elecciones egipcias por una nueva oleada de manifestantes ante las condiciones que atraviesa el país, que han contado con la inmediata oposición de Hermanos Mu-sulmanes al sentirse principales beneficiarios del proceso electoral.

No hay que ocultar tampoco la abundancia en todos los pa-íses implicados de declaraciones preocupantes de líderes religiosos respecto a aspectos fundamentales. Sin ir más lejos Ahmed el Tayeb, conocido líder religioso egipcio, consideró las protestas de la comu-nidad internacional por los actos violentos ejecutados contra la mi-noría copta como una injerencia en los asuntos internos de Egipto. U otras varias referidas a las obligaciones “islámicas” de los visitantes extranjeros, lo que supondría de hecho la creación en estos países de santuarios islamistas, con la obligatoria práctica de sus preceptos más allá del ejercicio de las normas de cortesía intercultural que con toda naturalidad se han venido observando todos estos años, lo que pro-vocaría sin duda la radical disminución del turismo, fuente de ingre-sos irrenunciable para países como Túnez o Egipto. Aunque es cierto que estas declaraciones pueden ser interpretadas en el contexto actual en clave electoralista, no es menos cierto que de ser así presentaría una lectura de la opinión pública preocupante, pues significaría que “cuanto más radical más popular”.

Por otra parte abundan en mayor proporción los mensajes de carácter moderado e integrador, producto en gran medida de la necesidad de no alarmar a occidente y a amplios sectores de sus pro-pias sociedades. Queda por ver si esa moderación es compartida por todos los sectores del islamismo político o, por el contrario, se camu-

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flan actualmente en su seno elementos antidemocráticos que aspiran a alcanzar una islamización forzada e intransigente de sus respectivos países, lo que supondría el fracaso de los procesos revolucionarios y en definitiva el cambio de una tiranía por otra a medio plazo.

El enfrentamiento entre ambas opciones puede visualizarse en las diferencias que separan a salafistas y Hermanos Musulmanes en Egipto en aspectos esenciales de la vida nacional, como la econo-mía, la aceptación de las minorías, especialmente religiosas, con el consiguiente peligro de la creación de ciudadanos de “segunda” (cris-tianos, judíos, sufíes, chiíes), la política exterior, los derechos indivi-duales del ciudadano o el ya referido turismo.

Dentro del normal desarrollo de la vida parlamentaria, la hi-potética constitución en sucesivas legislaturas de partidos islamistas menos moderados, como Gama´a Islamiya, los citados salafistas u otros equivalentes en las distintas naciones, en partidos bisagra nece-sarios para establecer coaliciones de gobierno o asegurar la estabili-dad, conseguiría sucesivamente arrancar concesiones a sus postulados contribuyendo a condicionar las políticas de los partidos gobernantes, en un mecanismo similar al que viene sucediendo en otras naciones con formaciones minoritarias de corte regionalista, ecologista, o de extrema derecha, por ejemplo.

En el mismo contexto parlamentario, y en relación con el punto anterior, puede estar presente el interesado enfrentamiento de las iniciativas de la oposición con el dogma religioso como forma de invalidación de dicha oposición, desvirtuando el juego democrático. También en esta órbita se sitúa la tentación de “tomar la calle”, uti-lizando a las masas de correligionarios, principalmente tras las ora-

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ciones de los viernes en períodos y fechas de especial sensibilidad religiosa, para invalidar el papel de la oposición, deslegitimándola. Nos enfrentaríamos en este indeseable caso con la utilización ins-trumental del sistema democrático para su destrucción, provocando el establecimiento de teocracias, lo que supondría el total fracaso de los procesos revolucionarios y una alteración de las condiciones de seguridad de nuestro entorno más inmediato.

Estas alteraciones podrían presentar muchas facetas, pero una de las más significativas podría ser el apoyo a la intensificación del pro-selitismo islamista radical en Occidente, ya preocupante en diversos países europeos, dificultando el proceso de integración de las poblacio-nes musulmanas y favoreciendo el ya iniciado auge de los partidos ul-tranacionalistas y xenófobos europeos. Sin olvidar un recrudecimiento del conflicto árabe-israelí, al sustituir gobiernos dotados de un cierto pragmatismo por otros muy fuertemente ideologizados.

Por último, pero no por ello de gran importancia, entre los riesgos de la islamización de los gobiernos árabes no debe de olvi-darse el referido al posible retroceso en la condición de la mujer. Ésta ha experimentado notables avances en muchos países árabes y ha sido protagonista en buena medida de la revolución, pero en caso del triunfo de opciones menos moderadas puede ser la principal damnifi-cada. Las intimidatorias pruebas de virginidad practicadas a manifes-tantes egipcias, o la presentación de candidatas salafistas por medio de fotos de sus maridos en la cartelería electoral ante la imposibilidad de mostrar su rostro ni aún velado, no son buenos indicios, lo que está llevando a la creación de organizaciones de defensa de los derechos de la mujer por parte de activistas temerosas de esta posibilidad, como es

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el Frente 24 de Octubre tunecino.En definitiva un panorama lleno de luces y sombras que au-

gura un apasionante proceso constituyente en la mayoría de los países afectados por la ola de cambios.

5 el papel de la orilla norte del Mediterrâneo

En gran medida la postura de Occidente, representado por las posiciones oficiales de la UE y de Estados Unidos, ya ha sido definida y se ha puesto en práctica. El apoyo inequívoco a los pro-cesos revolucionarios ha pasado pronto de las palabras a los hechos, como demuestran los apoyos económicos y de asesoramiento que en estos momentos se están aplicando, por lo que no cabe hablar sino de una política proactiva de apoyo y ayuda al mejor desarrollo de los procesos, lo que constituye una postura coherente en lo ideológico y además preñada de pragmatismo.

En este sentido, parece que se han conseguido, al menos ini-cialmente, eliminar prejuicios y evitar posicionamientos hostiles pre-vios al desarrollo de los acontecimientos, a pesar de que los dictadores acosados no dudaron en su momento de agitar el fantasma del temor al islamismo y al terrorismo yihadista como parte y promotor de las revueltas, patrón que vuelve a repetirse meses más tarde por parte del régimen del presidente sirio Al Assad, mientras que los atentados terroristas en Damasco, coincidentes con la presencia del equipo de observadores de la Liga Árabe, son sospechosamente oportunos, sin que hasta el momento haya sido posible determinar ni los autores ni la causa a la que sirven.

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Pero este apoyo, necesario y positivo, no debe de dejar de ser ciego. La vigilancia sobre aspectos fundamentales en el desarrollo de los procesos políticos es igualmente imprescindible, principalmente en los que se refieren al respeto de derechos fundamentales de los ciudadanos, pluralidad y transparencia en los procesos electorales y respeto a las leyes tanto en su dimensión interna como en el ámbito internacional. Sucesos como la ejecución extrajudicial de Gadafi, las referidas prácti-cas intimidatorias de los militares egipcios contra mujeres participantes en las recientes manifestaciones o la visita a Trípoli del presidente su-danés Omar al Bashir, a pesar de estar perseguido por el Tribunal Penal Internacional, por poner sólo algunos ejemplos, no van en la buena dirección que se ha de exigir a las nuevas autoridades.

Aunque hay que reconocer que en todo proceso revoluciona-rio se producen desajustes y excesos, éstos no deben de convertirse en la norma, y mucho menos instalarse en los nuevos regímenes como prácticas aceptadas y habituales. En estos términos el papel a jugar por la UE, en buenas relaciones con todos los países afectados, debe de ser determinante. Para ello debe de observar y apoyar los procesos, como está haciendo, pero también exigir que las nuevas autoridades, sean de la tendencia o el color que sean, no crucen ciertas líneas rojas, clara e inequívocamente establecidas, inaceptables para las sociedades occidentales y el conjunto de la comunidad internacional.

ConCLUsiones

Vivimos evidentemente tiempos de cambio. A la retracción estratégica que está experimentando occidente, no sólo por motivos

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económicos por cierto, y la irrupción en el primer plano del panorama mundial de las potencias emergentes, con la relativamente reciente pero muy intensa implicación china en el contexto internacional, hay que sumar el cambio de modelo de Estado árabe que se ha comenza-do a perfilar en 2011.

Aflora por tanto un tiempo tanto de riesgos como de opor-tunidades, en el que probablemente el ámbito mediterráneo sufrirá cambios profundos que tendrán implicaciones en el campo de la se-guridad. Es necesario que las revoluciones triunfen y que el mundo árabe experimente en los próximos tiempos un gran salto adelante, demasiado postergado tras los procesos independentistas a lo largo del siglo XX.

Este salto no puede darse de espaldas a la realidad social árabe, que indudablemente ha experimentado en los últimos años una cre-ciente islamización. Pero no puede darse tampoco a cualquier precio. El apoyo y asesoramiento occidental a los procesos revolucionarios y sus consecuencias políticas es imprescindible y muy positivo, pero debe de conjugarse con la observación y la vigilancia sobre posibles desviaciones que pongan en riesgo tanto las ansias de libertad y jus-ticia social de los pueblos que están en proceso o han logrado librarse de gobernantes autoritarios y corruptos, como la seguridad en el ám-bito internacional y muy especialmente en el espacio mediterráneo.

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notas soBre a episteMoLoGia JUrÍDiCa De Hans KeLsen: o sentiDo Do Direito e Da CiÊnCia na

teoria pUra Do Direito

Nicole da Silva Paulitsch1

resumo

O presente trabalho objetiva uma análise epistemológica do terceiro capítulo da obra Teoria Pura do Direito, Direito e ciência, do jurista austríaco Hans Kelsen. Através da uma breve exposição dos prin-cipais aspectos bibliográficos e das ideias centrais do autor, em especial de sua concepção epistemológica jurídica no campo do normativismo, ressalta suas características e contribuições ao Direito. Descreve, ainda, o centro de interesse da Teoria Pura, qual seja a tentativa de conferir à ciência jurídica um método e um objeto próprios, depurando-os de quaisquer influências da ideologia política e dos elementos da ciência natural. Ao final, expõe e arrazoa algumas das objeções designadas à concepção de ciência subjacente ao pensamento kelseniano.

Palavras-chave: Teoria pura do direito. Epistemologia jurídica. Normativismo. Direito e ciência. Hans Kelsen.

1 Mestranda em Direito Ambiental na Universidade de Caxias do Sul. Especialista em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do RS. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande. Professora titular da Faculdade Anhanguera do Rio Grande. Advogada inscrita na OAB/RS. E-mail para contato: [email protected]

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introDUção

O jurista e filósofo austríaco Hans Kelsen, considerado um dos maiores pensadores do século XX, deixou um vasto legado te-órico-literário, do qual se destaca sua obra Teoria Pura do Direito. A importância desta obra se dá, especialmente, pelo rompimento com os ditames da filosofia jurídica tradicional da época, a qual, segundo Kelsen, era contaminada com a ideologia política de todos os ele-mentos da ciência natural. Pretendia o autor, assim, desenvolver uma teoria jurídica pura, ou seja, consciente da legalidade específica do seu objeto (KELSEN, 2009, p. XI).

Neste aspecto, o objetivo do presente trabalho é empreen-der uma incursão ao pensamento de Kelsen, em especial na análise da relação entabulada entre ciência e direito proposta pelo autor no capítulo terceiro de sua obra magna – a Teoria Pura do Direito, con-siderando sua atuação no paradigma normativista, apresentando suas diretrizes basilares, bem como uma análise das suas limitações, por meio de um arrazoado das críticas mais pertinentes recebidas.

Para tanto, antes de se passar à análise da obra referida, nota-damente no referido capítulo acerca do Direito e Ciência, a primeira parte do presente artigo destina-se a descrever breves linhas sobre a biografia do autor, a qual se justifica pelo auxilio na compreensão de muitas de suas escolhas metodológicas.

Após, em uma segunda etapa, procura apresentar uma exposi-ção das principais ideias contidas nos prefácios a primeira e segunda edições, assim como daquelas inseridas no capítulo fulcral do presente estudo, qual seja o terceiro capítulo de Teoria Pura do Direito – Direito

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e Ciência. Tendo em conta a extensão e a importância da obra em apreço, o recorte temático faz com que o objetivo do presente artigo não assuma a pretensão de esgotar todos os aspectos do pensamento teórico constantes na obra, mas tão-somente aqueles arrolados no ca-pítulo terceiro, que aborda a relação entre direito e ciência.

Ao final, a terceira parte trata da análise às objeções suscitadas pela doutrina no que pertine à formulação de Kelsen na determina-ção de objeto e métodos próprios ao Direito, livre de toda e qualquer influência da ideologia política e dos elementos da ciência natural, além do normativismo proposto pelo autor, através de um viés her-menêutico.

Hans Kelsen: breve perspectiva biográfica

Hans Kelsen nasceu em Praga em 11 de outubro de 1881. Graduou-se na Faculdade de Direito na Universidade de Viena, ins-tituição em que iniciou sua carreira lecionando a partir de 1911 até 1930. Convocado em 1917, serviu como assessor jurídico no Minis-tério da Guerra, colaborando com a redação da nova Constituição Republicana. Atuou, ainda, como juiz da Corte Constitucional da Áustria no período de 1921 a 1930. Após, mudou-se para Colônia, onde permaneceu até ser expulso pelo governo nacional-socialista da Alemanha em 1933, ocasião em que se dirigiu para Genebra e, do-ravante, para Praga. Em 1940, transferiu-se para os Estados Unidos, onde lecionou junto às Universidades de Harvard e Berkeley, até sua aposentadoria em 1952. Faleceu em 19 de abril de 1973 (MORERI-RA, 2009, p. 261).

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Importa salientar que, no período em que Hans Kelsen le-cionou junto à Universidade de Viena, esteve em contato o neo-positivismo do chamado “Círculo intelectual de Viena”, os quais exerceram – assim como Kant – grande influência sobre a obra de Kelsen. A Escola de Viena era caracterizada pela busca da metodo-logia perfeita, ou seja, as palavras da lei deviam fazer valer as regras semânticas, pois, para seus seguidores, inexistia na lei letra a mais do que o necessário, e, por este motivo, encontra-se em seu corpo. Para o Círculo de Viena, a crise da ciência residia no problema da linguagem, que restaria solucionado com a descoberta de uma lin-guagem neutra, capaz de traduzir perfeitamente o axioma vigente (SCHWARTZ, 2000, p. 97).

A propósito, pode-se verificar a extensão de tal influência desde as premissas neokantianas, como na formulação do princípio de pureza, da possibilidade de interlocução do Direito com outras áreas, a matriz positivista, na rejeição do transcendentalismo e tam-bém na noção de escalonado do ordenamento jurídico no positivismo jurídico kelseniano.

No entanto, adverte Reale acerca do alcance desta influência do Círculo de Viena sobre Kelsen, referindo que:

Há duas Escolas de Viena: — uma, a dos neopo-sitivistas, no campo da Filosofia científica; e outra, a de Kelsen, nos domínios do Direito. Já temos visto, muitas vezes, confusões sobre este ponto, embora se deva reconhecer que, em certas conse-quências, as duas correntes apresentam, máxime nos últimos anos, crescentes pontos de contato, assemelhando-se por sua tendência antimetafísica e pelo empirismo radical (REALE, 2008, p. 458).

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No que concerne à obra teórico-literária, verifica-se que Kel-sen publicou seu primeiro livro em 1911, intitulado Problemas capitais da teoria do direito estatal (no original, Hauptprobleme der Staatsrech-siehre entwickelt aus der Lehre vom Rechtssatze). Com esta obra, sua carreira como teórico legal começou a ter expressão no meio acadê-mico, sendo possível encontrar neste trabalho bases da sua teoria pura do direito, as quais seriam aprofundadas em sua obra magna: Teoria Pura do Direito.

Destarte, tem-se que a obra de maior denodo de Kelsen é a Teoria Pura do Direito, que consiste na condensação de todos os estudos do autor acerca do direito, contando com quatro edições fundamentais – ou, como insinuam alguns críticos de Kelsen, quatro versões da mesma obra. Sua primeira edição, intitulada “Reine Re-chtslehre” foi publicada em 1934, na cidade de Viena. Por sua vez, a segunda foi editada pela Universidade de Harvard em 1945, com o nome “General Theory of Law and State”, e a terceira foi a edição fran-cesa, publicada na Suíça, em 1953, chamada “Théorie Pure du Droit” (MOREIRA, 2009, p. 281).

A quarta e definitiva edição, foi a chamada segunda edição alemã de “Reine Rechtslehre”, publicada em 1961, e, tal como a pri-meira, restou editada na cidade de Viena, registrando um maior apro-fundamento em diversos pontos e um refinamento nas noções básicas de sua teoria pura, inclusive chegando a modificar alguns de seus po-sicionamentos inicialmente sustentados quando da edição de 1934.

Logo, considerando a importância e o caráter compilador de Teoria Pura do Direito, em especial a abordagem desempenhada pelo autor acerca da relação entre o direito e a ciência, tem-se que justifi-

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cado o estudo ora empreendido, o qual possui por objeto o exame e apreciação crítica desta relação entabulada entre o direito e a ciência.

teoria pura do direito: aspectos introdutórios

O mote inicial de Teoria Pura do Direito, enquanto marco te-órico, se situa quando Hans Kelsen enfaticamente eleva o Direito a uma categoria científica autônoma. Para tanto, apõe uma depuração do objeto da ciência jurídica, em especial de toda ideologia política, moral e dos elementos de ciência natural, ou seja, uma teoria jurídica pura pautada na neutralidade científica. Assim, alicerça sua proposi-ção nos ideais de objetividade e especificidade, levados a termo pelo autor através da definição das normas jurídicas como objeto da ci-ência jurídica, sublinhando, ainda, se tratar de ciência jurídica e não política do Direito (KELSEN, 2009, p. 79).

Oportuno ressaltar, neste aspecto, que esta pureza sugerida por Kelsen não se cinge ao objeto do estudo, mas igualmente enquan-to método, conforme anota Moreira:

Metodologicamente Kelsen é detalhista, minu-cioso, repetitivo, extraordinariamente lógico. Foi um defensor da neutralidade científica aplicada à ciência jurídica. Sempre insistiu na separação entre o ponto de vista moral e político. A ciência do Direito não caberia fazer  julgamentos morais nem avaliações políticas sobre o direito vigente. Com o objetivo de discutir e propor os princípios e métodos à teoria jurídica - até então inexisten-tes -  aliado à necessidade de dar ao Direito uma autonomia científica própria, capaz de superar as confusões metodológicas da livre interpretação do direito, uma tendência à um retorno aos parâme-

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tros do direito natural ou mesmo a aplicação de critérios de livre valoração, Kelsen propõe o que denominou princípio da pureza. O princípio da pureza aplica-se portanto tanto ao método como ao objeto do estudo, ou seja é instituto instrumental e delimitador da ciência ju-rídica, significando que  a premissa básica desta é o enfoque normativo. O direito para o jurista deveria ser encarado como norma (e não como fato social ou como valor transcendental) (MO-REIRA, 2001, texto digital).

Corrobora com a tese aludida, a própria manifestação de Kelsen no prefácio à primeira edição, quando afirma ser seu objetivo formular uma teoria pura do direito, i.e., purificada de toda ideologia política e dos elementos de ciência natural, consciente da legalidade específica do seu objeto. Esclarece, ainda, que sua luta se trata, de fato, pela relação entre ciência jurídica e a política, pela rigorosa separa-ção entre elas, pela renúncia ao costume de, invocando-se a égide da ciência do Direito e, apelando a uma suposta objetividade, advogar postulados políticos de caráter deveras subjetivo (KELSEN, 2009, pp. XI-XII).

E isso implica a diferenciação entre a Teoria Pura do Direi-to e a ciência jurídica tradicional, a qual, variavelmente, possui um caráter ideológico. Notadamente, por sua tendência antiideológica, revela-se a teoria pura do direito como verdadeira ciência do Direito. Com efeito, conforme elucida Wolkmer, “a ciência tem, como conheci-mento, a intenção imanente de desvendar seu objeto. A ‘ideologia’, porém, encobre a realidade enquanto [...] a desfigura.” (2002, p. 164).

Note-se, portanto, que a importância da teoria pura do direito formulada por Kelsen consiste justamente no rompimento com os

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paradigmas até então adotados no período, o jusnaturalismo, assim como o realismo jurídico, através do estabelecimento de uma ciência jurídica autônoma e neutra de quaisquer influências político, morais, sociais e de outras ciências. Na mesma medida, o autor sugere uma ciência do direito alicerçada em proposições normativas que descre-vem sistematicamente o direito, ou seja, nas palavras de Rocha (2005, p. 16), “propõe uma ciência do direito como uma metalinguagem dis-tinta de seu objeto”.

Sem embargo, afere-se que este ideal de ciência pura restou delineado no capítulo terceiro de Teoria pura do direito, possuindo como uma de suas diretrizes epistemológicas fundamentais o dua-lismo kantiano, entre ser e dever ser, no qual os juízos de realidade e juízos de valor restam contrapostos. Seguindo a orientação neo--kantiana, Kelsen elegeu a edificação de um sistema jurídico centra-do exclusivamente no mundo do dever ser. No entanto, tal escolha acarreta na superestimação dos aspectos lógicos constitutivos da teo-ria pura, em detrimento dos suportes fáticos do conhecimento (RO-CHA, 2005, p. 16).

o direito e a ciência apresentados na teoria pura do direito

Na presente seção serão apontadas, brevemente, as principais ideias de Kelsen acerca do Direito e a ciência, as quais foram articu-ladas no terceiro capítulo de sua obra magna, de igual nomenclatura – Direito e ciência.

O autor inicia o supramencionado capítulo esclarecendo que o objeto da ciência jurídica cinge-se nas normas jurídicas, sendo a conduta humana apenas quando configurar conteúdo da norma ju-

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rídica, ou seja, a ciência jurídica procura apreender o seu objeto ju-ridicamente, sob o ponto de vista do Direito. Isso porque, em suas palavras, afirma que “[...] apreender algo juridicamente não pode, porém, significar senão apreender algo como Direito, o que quer dizer: como norma jurídica ou conteúdo de uma norma jurídica, como determinado através de uma norma jurídica.” (KELSEN, 2010, p. 79).

No que concerne à conduta humana, observa o pensador austríaco, enfatizando que esta apenas o será objeto da ciência ju-rídica quando configurar o próprio conteúdo da norma jurídica seja enquanto pressuposto ou consequência, representando assim uma in-terpretação normativa destes fatos de conduta.

Logo, para compreender a teoria do ordenamento jurídico proposta por Hans Kelsen, necessária se faz traçar a distinção entre norma jurídica (Rechtsnorm) e proposição jurídica (Rechtssatz).

Com efeito, tem-se que as normas jurídicas não são juízos, nem tampouco traduzem, diretamente, nenhum comando ou impe-rativo. Isso porque, a norma é logicamente indicativa e de estrutura hipotética, uma vez que se limita a ligar um fato condicionante a uma consequência – a sanção –, sem enunciar qualquer juízo a respeito do valor moral ou político dessa conexão. Assim, se a lei natural discorrer que: se A é, B tem de ser; a lei jurídica, por seu turno, irá declarar: se A é, B deve ser, sendo que a ligação «deve ser» significa uma forma de conexão inequívoca com a do nexo entre causa efeito.

Note-se que o sentido deste ato é diverso do sentido da proposição jurídica, juízo hipotético, descreve as relações constituídas, através das normas jurídicas, entre os fatos por elas determinados, ou seja, descreve o Direito, não importando a forma de exteriorização

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do enunciado, mas seu sentido. A norma jurídica, editada pela auto-ridade, tem caráter prescritivo e consiste na manifestação de ato de vontade, enquanto a proposição jurídica, emanada da doutrina, tem natureza descritiva e decorre de ato de conhecimento. A função sig-nificativa de uma norma jurídica, portanto, não é enunciar, porém prescrever determinado comportamento humano, i.e., impor um de-ver (DINIZ, 2003, p. 69).

Mister destacar, ainda, a observação de que Kelsen situa as normas jurídicas no plano da validade, atraindo para estas a aplicação dos princípios lógicos, em especial o princípio da não contradição e as regras da concludência do raciocínio. Isso se dá, uma vez que tais princípios são aplicáveis unicamente à proposição cujo resultado seja falso ou verdadeiro – e as proposições da ciência jurídica enquanto prescrições são válidas ou inválidas.

Daí, possível compreender a crítica do pensador austríaco às proposições de uma teoria metafísica do direito e sua observação de que, limitada às descrições normativas, à ciência jurídica não cabe investigar a eficácia da norma, mas tão somente se pronunciar acerca de sua validade formal, ou se possui vigência. Isso porque, ao discorrer se determinada norma é ou não vivenciada como regra social, estaria emitindo juízos referentes à ordem do ser, juízos sobre a realidade, o que fere seu propósito de pureza (NOLETO, 2002, texto digital).

Causalidade e imputação

A concepção normativista e seu ideal de pureza formulados por Kelsen têm como uma de suas bases a diferenciação entre lei da natureza e norma jurídica. Isso porque, no mundo do ser (Sein),

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na natureza os sistemas de elementos estão interligados entre como causa e efeito, isto é, pelo princípio da causalidade, que prescreve que “quando é A, B também é (ou será)”. A relação entre pressuposto e consequência está expressa na lei natural, não é produzida (KELSEN, 2010, p. 100).

Nestes termos, cumpre-se destacar a lição de Rocha, o qual traz à baila tal dicotomia fundamental entre ser e dever ser no pensa-mento de Hans Kelsen, in verbis:

A TPD (Teoria Pura do Direito) tem, como uma de suas diretrizes basilares, o dualismo metodo-lógico Kantiano, entre ser/dever ser. [...] Como sabemos, entre os juízos de realidade e os juízos de valor, Kelsen, fiel à tradição relativista do neo--Kantismo, de Marburgo, optou pela construção de um sistema jurídico centrado unicamente no mundo do dever ser. Tal ênfase, acarretou a supe-restimação dos aspectos lógicos constitutivos nas análises Kelsenianas, em detrimento dos suportes fáticos do conhecimento (ROCHA, 1984, p. 60).

A conduta humana se situa no mundo do dever ser (Sollen), devendo ser entendida como ordem normativa da conduta dos ho-mens entre si, estando sob a égide do princípio da imputação, do qual se atribui uma consequência em razão da prática de determinado ato. O esquema estrutural das normas jurídicas e morais, constituindo--se numa proposição, é diverso daquele das leis físico-naturais, pois, como afirma Kelsen (2010, p. 100), “quando é A, B deve ser”, inclu-sive por força do princípio da imputação. Sua relação de pressuposto e consequência se dá por meio de uma norma posta pelos homens, porém independente de toda a intervenção desta espécie, ou seja, com interferência e definição a partir da vontade e liberdade humanas.

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Com efeito, verifica-se que a norma jurídica não preceitua um juízo de valor, todavia apenas comina uma sanção ou consequência no caso de se preferir conduta contrária à juridicamente devida. Como adverte Reale (2008, p. 461), o “fazer é algo que não pertence ao cam-po estritamente jurídico: quando um homem pratica certo ato, age por motivos que não são jurídicos.”.

Para Kelsen, a norma jurídica possui uma estrutura lógica com a forma do dever ser lógico, consistente na imputação de uma consequência a um suposto fato. Nessa perspectiva, constata-se que o autor apoia sua teoria no denominado princípio da imputação. Tendo por base a liberdade, essencial para as relações humanas e requisito indispensável da imputação, o princípio da imputação caracteriza-se como uma relação normativa ou de imputação, cujos elos desta série imputativa são limitados.

Gize-se que a sobredita liberdade se refere ao homem, como personalidade jurídica ou moral, livre e, portanto, responsável. A im-putação encontra seu ponto terminal na conduta do homem, inter-pretada como ato meritório, como pecado ou ilícito. Segundo Kelsen (2010, p. 104), “sua vontade é causa de efeitos, mas não é ela mesma o efeito das causas.”, concluindo que não se imputa algo ao homem porque ele é livre; mas ao contrário, o homem é livre porque se lhe imputa algo.

De outra banda, o princípio da causalidade está atrelado a uma relação causal, cuja base se fulcra na necessidade. A cadeia de causa e efeito é interminável, pois na natureza toda causa pressupõe como efeito uma outra causa; e todo efeito deve ser considerado como causa de um outro efeito concreto. Note-se que o homem enquanto

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parte da natureza não é livre, ou seja, sua conduta, considerada como fato natural, é por força de uma lei da natureza, causada por outros fatos.

Por conseguinte, um indivíduo será moral ou juridicamente responsável por um evento quando provocado por seu ato de vontade ou pela omissão de um ato de vontade que evitaria o evento, estando a imputação e a liberdade ligadas essencialmente entre si. O homem é livre porque sua conduta determina à imputação, ainda que seja ca-sualmente determinada. Logo, não contradição entre causalidade da ordem natural e a liberdade sob a ordem moral ou jurídica, tendo em conta que a primeira é uma ordem do ser e as outras são ordens do dever ser, e apenas podem haver contradições entre um ser e um ser, ou entre um dever ser e um dever ser, enquanto objeto de asserções ou enunciados (KELSEN, 2010, p. 110).

a negação do dever ser e o Direito como ideologia

Na segunda edição de Teoria Pura do Direito, Hans Kelsen buscou aprofundar seus posicionamentos adotados na primeira edi-ção obra, por vezes redefinindo conceitos como por outras vezes re-colocando-os, a fim de evitar mal entendidos que motivavam repúdio à sua teoria, mas especialmente buscou esclarecer muitas das críticas sofridas.

No que se refere ao capítulo em análise – Direito e ciência, Kelsen arrazoou acerca da tese suscitada por seus opositores, na qual a possibilidade de uma ciência normativa é posta em questão sob o argumento de que o conceito de dever ser, cuja expressão é a norma, seria sem sentido ou se constituiria em mera ilusão ideológica.

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Com efeito, na construção de uma ciência do Direito, efetu-ada através da identificação de objeto próprio de estudo do Direito, depurado de toda e qualquer variável que não pertença ao Direito, Kelsen tece distinção fundamental entre a Sociologia do Direito, cujo objeto foca-se nos fenômenos paralelos da natureza, i.e., nos fatos da ordem do ser, e a Teoria Pura do Direito, que se ocupa das normas ju-rídicas, descrevendo o dever ser da norma. A Ciência Normativa, por seu turno, é aquela que descreve o Direito como sistema de normas, no qual o dever ser é expresso na norma.

Logo, ao se referir que se trata de ilusão ideológica, significa que impossível uma ciência jurídica normativa ou apenas possível en-quanto compreendida como sociologia jurídica. Nesta ótica, os atos jurídicos são tomados apenas na sua facticidade, não levando em con-ta o sentido específico de seu teor. Todavia, Teoria Sociológica jurídi-ca ocupa-se com os fatos da ordem do ser, não colocando em relação às normas válidas. Em outros termos, descreve a conexão causal entre quaisquer fatos políticos ou econômicos e atos produtores de direito, assim como entre atos produtores de direito e a conduta humana vi-sada – quando motivada pela representação da intenção de um ato –.

No entanto, conforme explicita Kelsen, a proposição jurídica que descreve o direito não se cinge em mero significado de uma cone-xão funcional específica. Isso porque, na imputação há conexão fun-cional distinta daquela decorrente do nexo causal, pois os fatos que a imputação jurídica conexiona entre si são diversos, na medida em que a imputação jurídica liga o fato, determinado pela ordem jurídica, com a consequência fixada pela mesma ordem jurídica.

Portanto, ao se considerar o direito como ideologia, tem-se

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que este não seria exigível, ou seja, que as normas jurídicas não seriam aplicáveis, assim como seria equivocada, vez que a ideologia é por si mesma equivocada. Destarte, esta formulação acaba por distanciar-se da neutralidade apregoada pelo autor em sua teoria pura do direito, de forma que, nas palavras de Wolkmer, “[...] toda e qualquer siste-matização jurídica que não seja a ‘teoria pura normativa’ [...] resulta em formulações ideológicas.” (2002, p.164). Tal ilusão possui vez, contudo, quando, com o dever ser jurídico, se afirme um valor moral absoluto.

No que concerne à negação do dever ser, i.e., do conceito do dever ser como algo sem sentido, equivaleria declarar que os atos de produção jurídica apenas podem ser conhecidos como meios de pro-vocar determinada conduta dos indivíduos a quem se dirigem tais atos. Ou seja, o sentido jurídico positivo torna-se equivalente ao sen-tido moral, perdendo-se o sentido na afirmação de que algo “deve ser”. Entretanto, verifica-se que tal posição encontra óbice no fato de que as normas são imperativas.

Críticas à teoria de Kelsen

A tese formulada por Hans Kelsen, em que defende uma ci-ência do Direito, com objeto próprio de estudo do Direito e livre de toda e qualquer influência da ideologia política e dos elementos da ciência natural, bem como sua proposição de que o Direito deveria ser apreendido como norma e não como fato social, foi recepcionada na época de sua publicação com grande polêmica e ressalva.

Uma das críticas cardiais sofridas por Kelsen diz respeito à

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denúncia de que sua teoria seria deveras reducionista quanto ao obje-to jurídico e a natureza puramente normativa ventiladas pelo autor, de forma a olvidar as dimensões sociais e valorativas, relegando o fenô-meno jurídico a uma mera forma normativa. De fato, a cientificidade e pureza propaladas pelo mestre normativista não deixam, também elas, de serem consideradas ideologias por si próprias, uma vez que transforaram-se em instrumentos de legitimação de inúmeras ordens político jurídicas (WOLKMER, 2002, p. 166).

Para Warat, o caráter idealista da teoria pura de Kelsen, sob a égide epistemológica, se denota a partir da não-diferenciação entre o idealismo – ou metafísica – e o positivismo, vez que, para o referido autor, este seria tão-somente uma forma de idealismo, afirmando que:

[...] A fusão de algumas ideias do kantismo com outras do positivismo determinou um processo dialético entre ambas as posturas, cuja síntese é a teoria pura do Direito. Isto é, um pensamento re-lativamente distante e reformulado dos pressupos-tos indicados. Quaisquer que sejam as variantes introduzidas nas diversas versões da teoria pura, durante a longa vida de Kelsen, o saldo teórico não deixa de ser um pensamento idealista, e isto por-que, tanto o processo positivista do conhecimento (em sua forma experimental ou em sua modali-dade lógica) como o racionalismo (em sua forma pré-gnoseológica e dogmática ou transcendental) têm como base a mesma problemática epistemo-lógica, definem a mesma temática fundamental e ao mesmo tempo evitam possíveis relações da teo-ria com a realidade.Por razões epistemológicas, sustento a tese de que o positivismo é uma forma de idealismo, porquan-to diacronicamente define sua problemática atra-vés de um movimento duplo: racional e empírico, conceitual e referencial, que, aceitando sua dialé-

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tica, ao mesmo tempo está desprezando tanto o idealismo puro como o empirismo ingênuo. Con-sequentemente, temos como síntese um idealismo crítico que não admite um conhecimento exclu-sivamente processado pelo pensamento sem fazer referência à experiência para constituir a razão em fator determinante do conhecimento a partir da experiência; e um positivismo lógico, que se dis-tancia dos dados sensíveis, desembocando em um conceitualismo vazio e formal, que se conforma com um controle sintático da realidade.A Teoria pura do Direito, ao ser reduzida a um conceitualismo presente tanto no idealismo crítico como no positivismo lógico, consegue eliminar de sua problemática a discussão sobre os fatores co--determinantes da realidade jurídica, como tam-bém sobre o papel social e político do Direito e as dimensões ideológicas dos diversos discursos en-quanto prática jurídica concreta (WARAT, 1995, pp. 131-132).

Importa observar, ainda, outra objeção fundamental em Kel-sen, qual seja a impossibilidade de proceder com a separação rígida entre o mundo do ser e do dever ser, concebidos como categorias ontológicas radicalmente distintas. Isso porque, entre ser e dever ser existe um nexo de implicação e polaridade, o que torna compreensí-vel a complementariedade dialética própria do Direito, mantendo-se, porém, infenso a qualquer apreensão deste tipo.

Logo, o embasamento lançado pelo filósofo, de um forma-lismo normativista abstrato, vai de encontro com um dos fundamen-tos inerentes à essência do próprio Direito: a matéria social regulada. De fato, tem-se que a ciência jurídica deve se ocupar na elaboração de uma racionalidade prática na definição de critérios e mecanismos razoáveis de decisão, sob pena de recair no relativismo imposto pelo positivismo.

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Na esteira desse raciocínio, certeira é a lição de Reale, que enfrenta com muita propriedade tal questão, argumentando que:

Ora, é impossível focalizar-se o problema da fun-cionalidade de dever ser e ser, como assunto de Teoria do Direito, sem necessariamente se ultra-passar a esfera da Lógica Jurídica, ou seja, sem se correlacionar o que está prescrito na norma jurí-dica in abstracto com o que ela efetivamente re-presenta no plano concreto dos comportamentos humanos.À margem desta questão, não é demais repetir duas observações fundamentais, que se completam: — é verdade que do mundo do ser não se pode passar para o dever ser, porque aquilo que é não se trans-forma naquilo que deve ser; a recíproca, porém, não é verdadeira, porque o dever ser, que jamais possa ou venha a ser, é sonho, é ilusão, é quimera, não é dever ser propriamente dito. Quando reco-nhecemos que algo deve ser, não é admissível que jamais venha a ser de algum modo. Um dever ser que nunca se realize parcialmente é uma abstração sem sentido. O que acontece, porém, é que, por outro lado, jamais o dever ser poderá converter--se totalmente em ser. Para que haja dever ser, é necessário que o ser jamais o esgote totalmente [...] (REALE, 2002, p. 469).

Vislumbra-se, portanto, o caráter de distanciamento da rea-lidade que assume o filósofo austríaco, por sua proposição de que o direito deve ser encarado como juízo hipotético formalmente elabo-rado composto por dois elementos ligados pela cópula do dever ser, a despeito da necessária postura que os sistemas jurídicos, na qualidade de conjuntos de premissas mutáveis, devem conservar de uma textura abertura em relação à constante atualização das questões relacionadas à sociedade e a justiça.

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Em que pese às censuras pela impossibilidade prática de se-paração do ser e dever ser, urge-se destacar a oportuna anotação de Rocha, no sentido de que Kelsen não nega a complexidade do mun-do, tendo como escopo a investigação por uma metalinguagem para elaboração de uma teoria capaz de reduzir a complexidade social, ar-gumentando que:

Kelsen, ao contrário do que pensam seus críticos apressados, por filiar-se à tradição da “teoria do conhecimento”, assume como inevitável a com-plexidade do mundo em si. Para ele, o social (e o direito) são devido as suas heteróclitas manifesta-ções constituídas por aspectos políticos, éticos, re-ligiosos, psicológicos e históricos. E a esse respeito não cabe ao cientista do direito nada comentar. A função do cientista é a construção de um objeto analítico próprio e distinto destas influências. A partir desta constatação é que Kelsen vai procurar, assim como Kant, depurar essa diversidade e ela-borar uma “ciência do direito”. Ou seja, na teoria pura uma coisa é o direito, outra distinta é a ciên-cia do direito. O direito é a linguagem objeto e a ciência do direito a meta-linguagem: dois planos lingüísticos diferentes (ROCHA, 2003, P. 72).

Afere-se, portanto, o intransponível argumento de que o Di-reito é indissociável da comunicação com outros ramos e ciências, em particular a ética, na medida em que se dirige à conduta social do homem no complexo da realidade social e se coaduna, enquanto ca-ráter de valor, na qual sua fonte comum axiológica é próprio homem. Assim sendo, tem-se que superada a tese do filósofo austríaco na qual o Direito deveria se limitar às descrições normativas, posto que o ju-rista quando procede com a imputação, acaba necessariamente por compreender a norma aplicando sua interpretação.

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Nessa direção, desdobram-se as posições de Viehweg e Pe-relman. Para Viehweg, o sistema jurídico, isto é, o Direito efetivo – realidade normativa passível de descrição científica, segundo orienta Kelsen – é algo desde logo impuro, corrompido pela interpretação do jurista, que é um tipo de pensamento que deve, conforme Viehweg, mover-se dentro do estilo da tópica (1979, p. 89).

Perelman, por seu turno, também comunga a opinião de que a teoria pura articulada por Hans Kelsen é maculada, pois depende de decisões, de atos de vontade, que não se fundam em direito, mas se justificam por considerações de ordem política ou moral.

Corrobora o argumento suscitado, igualmente, a questão acerca da validade e eficácia das normas jurídicas, as quais dependem para serem consideradas válidas em um sistema jurídico de sua cons-tatação prática e vivência social. Ou seja, um sistema jurídico existe, enquanto tal, unicamente como realidade social, que por sua vez con-siste no fato que a população aceita e obedece a certas normas.

Em complementação, importa ressaltar que a estrutura ló-gica da norma não se confunde com sua existência real e concreta. Isso porque, a norma não se esgota como estrutural formal ou, nas palavras do mestre austríaco, trata-se de uma pura proposição lógica de natureza ideal. Mas, ao revés, afigura como momento culminante da experiência jurídica, com existência real, no tempo e espaço, com finalidades e valores implícitos.

A objeção última que se estabelece na teoria de pureza do Di-reito, diz respeito ao fracasso da tentativa da matriz analítica, na qual se classifica o ideal kelseniano, em elaborar uma linguagem pura para o direito. Isso porque, adotando-se a classificação propedêutica de Ro-

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cha (2005, pp. 15-16) das matrizes teórico-jurídicas de acordo com a sua inserção semiótica, contempla-se que a teoria kelseniana encontra guarida na filosofia analítica enquanto desdobramento da sintaxe, em consequência de seu postulado de uma ciência do direito alicerçada em proposições normativas que descrevem sistematicamente o objeto direito, ou seja, através da análise lógico formal das normas jurídicas.

Entretanto, verifica-se que tal matriz segue uma postura de neutralidade no tocante aos seus aspectos políticos, provocando con-sequências teóricas graves, devido a sua incapacidade de pensar uma complexidade social mais ampla.

Dessa feita, a filosofia analítica normativista, baseada em cri-térios sintático-semânticos, conforme proposto por Kelsen em Teoria Pura do Direito, passou a enfrentar dificuldades ante ao surgimento de novos anseios teórico-sociais. Em resultado às exigências, a filoso-fia analítica iniciou um processo de reestruturação, a fim de voltar-se para a análise de critérios pragmáticos de racionalidade.

ConsiDerações Finais

A despeito das críticas formuladas à teoria de pureza apregoa-da por Hans Kelsen, tem-se que inegável a importância e genialidade de seu pensamento na determinação das construções lógico-formais da Ciência Jurídica, em especial no rompimento de paradigmas vi-gentes em sua época, desqualificando o direito natural como teoria válida do Direito, além das inumeráveis contribuições na seara da dogmática, tais como na reformulação dos conceitos e objetivo do próprio Direito fomentados por suas ideias revolucionárias.

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Nem demais notar, desde logo, que a problemática em torno da objetividade científica do direito atualmente se encontra no cer-ne de discussões do chamado neopositivismo ou pós-positivismo, em particular considerando as novas abordagens epistemológicas acerca do direito e sua ciência, com notável acento na hermenêutica jurídica, e contando com o desenvolvimento da filosofia da linguagem e da argumentação jurídica. Logo, afere-se que o tema ainda persiste fas-cinante quanto controvertido.

Nesta perspectiva, a tomada de uma posição ligada ao nor-mativismo e ao Estado pode se tornar extremamente limitada. Na lição de Rocha “não se pode assim continuar mantendo uma noção de racionalidade no Direito ao se insistir no ideal kelseniano” (2007, texto digital).

A guisa de conclusão, impõe-se destacar a necessidade pre-mente de se produzir uma epistemologia construtivista que tenha como fundamento a temática da pluralidade social, partindo-se da premissa da complexidade do mundo em si, dos paradoxos e riscos, a fim de tentar superar – ou ao menos contornar – a crise instaurada no Direito e suas instituições. Isso porque, a crise do Direito não se insurge de mera deficiência em sua estrutura tradicional, contudo, ao revés, tal crise emerge de igual forma da ausência de integração dos seus pressupostos dogmáticos e as necessidades decorrentes da socie-dade globalizada – os chamados novos direitos.

reFerÊnCias

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preVenção Do terrorisMo internaCionaL – UMa ContextUaLização HistóriCa

Marcelo Carreiro1

resumo

Além da resposta meramente militar e o discurso triunfalista pontual, o combate ao terrorismo internacional é antigo tema do direito internacional público, o que esboça um esforço global continuado para a solução do tema – esforço este que, embora não tenha sido inaugurado pelos eventos de setembro de 2001, certamente ganhou fôlego com a par-tir daí, com a projeção política do tema. O artigo em tela analisa o histó-rico dos tratados referentes ao combate ao terrorismo, delineia seu caráter intrinsecamente global e aponta seus desdobramentos, como o respeito aos direitos humanos e o controle das armas de destruição em massa.

Palavras-Chave: Terrorismo. Direito internacional público. Histó-ria das relações internacionais.

abstract

Besides the purely military response and the occasional trium-phalist discourse, the fight against international terrorism is an old is-

1 Bacharel em História (UFRJ), Mestre em História Comparada (Programa Pró-Defesa em Relações Internacionais, Segurança e Defesa Nacionais-PPGHC/UFRJ) e Douto-rando em História Comparada (PPGHC/UFRJ).

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sue of public international law, which outlines an ongoing global effort to resolve the issue – an effort that, while has not been opened by the events of September 2001, certainly picked up steam in from there, with the political projection of the theme. This article examines the history of the treaties concerning the combating of terrorism, outlines their global character and points its developments, such as the respect for human rights and the control of weapons of mass destruction.

Keywords: Terrorism. Public international law. History of the inter-national relations.

introDUção

Ao completarmos a trágica efeméride de uma década com-pleta dos atentados de 11 de setembro de 2001, temos a distância histórica para analisarmos as alterações estruturais nas relações inter-nacionais levadas a cabo para o combate ao terrorismo internacional.

Quando dos atentados, tornou-se lugar-comum no imagi-nário estadunidense o slogan de que os ataques terroristas “mudaram tudo”. Esse discurso inflamado visava calcar uma mudança de pa-radigma nas políticas norte-americanas, internas e externas, inau-gurando um novo contexto da História, sem compromisso com o passado ao qual fora desconectado de forma tão abrupta e violenta.

Usado ad nauseam pela imprensa2, logo o discurso do “tudo

2 E.g. WALSH, Mary. Urban Pain, From Sea to Sea. The New York Times. Nova Iorque, 30 de Setembro de 2001. Disponível na Internet no endereço http://query.nytimes.

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mudou” foi entronizado pelas falas oficiais do executivo3, tornando--se a visão oficial dos atentados, que garantiam a liberdade do go-verno para reestruturar sua agenda de segurança interna e de política externa a partir de seu contexto neoconservador.

Sem dúvida, os atentados de 9/11 são um marco de inflexão da história dos EUA em suas relações externas, que tenderam desde então ao unilateralismo e ao esvaziamento dos fóruns multilaterais – especialmente no tocante à segurança internacional e ao combate contra o novo terrorismo globalizado jihadista.

No entanto, o direito internacional público possui uma longa tradição no combate ao terrorismo, datada desde o início do terro-rismo nacionalista de âmbito internacional inaugurado na década de 1970, quando surge o “terrorista playboy”, abarrotado de finan-ciamento através de ações “expropriatórias” ou garantidas através do patrocínio por um Estado simpatizante, sendo então possíveis ações estonteantemente performáticas, como sequestros de políticos/em-baixadores ou de aviões comerciais (algo que se inicia já em 1931)4.

Atos de terrorismo são combatidos pelo direito internacio-nal público desde 1963, quando é elaborada em Tóquio a primei-ra convenção sobre o assunto, a Convenção Relativa às Infrações e a Certos Outros Atos Cometidos a Bordo de Aeronaves5. No documento,

com/gst/fullpage.html?res=9802E7D9163DF933A0575AC0A9679C8B63, acessado em 1° de fevereiro de 2012.3 E.g.: CHENEY, Richard. Discurso “Remarks by the Vice President” na McChord Air Force Base, Tacoma, Washington em 22 de Dezembro de 2003. Disponível na Internet no endereço http://www.usembassy.it/viewer/article.asp?article=/file2003_12/alia/a3122306.htm, acessado em 1° de fevereiro de 2012.4 LAQUEUR, Walter. A History of Terrorism. New Jersey: Transaction Publishers., 2001.5 Disponível na Internet no endereço http://untreaty.un.org/English/Terrorism/Conv1.

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que entrou em vigor em 1969, a palavra terrorismo é ausente – mas tipificam-se as ameaças de um voo (contra a defesa nacional, con-tra a aeronave, contra os passageiros, contra os bens transportados), além de combater potenciais perigos à ordem e disciplina de bordo estabelecendo a autoridade do comandante da aeronave em situações de risco.

Na verdade, a Convenção trata do estatuto legal dos voos e suas jurisdições, no contexto de aumento das viagens internacionais aéreas. Sequestros de aeronaves ainda eram raros, passando a ocorrer sistematicamente apenas no decorrer ao início da década de 1970.

É nesse período que uma série ações terroristas consecutivas teriam lugar: em 21 de fevereiro o atentado da Frente Popular para a Libertação da Palestina (PFLP) contra o voo 330 da Swissair em Zurique, matando 38 passageiros; em 31 de março o sequestro do voo 351 da Japan Airlines realizado pelo Exército Vermelho Japonês; em 6 de setembro o sequestro simultâneo de quatro aeronaves (TWA 741, Swissair 100, El Al 219, PanAm 93), evento conhecido como os “sequestros de Dawson Field”; em 7 de setembro o sequestro do voo 775 da British Overseas Airways Corporation, pela PFLP, comple-mentando os sequestros do dia anterior.

Nesse cenário de súbita insegurança internacional, tem lu-gar em Haia, em dezembro de 1970, a Convenção para a Repressão ao Apoderamento Ilícito de Aeronaves (ou Convenção de Aeronaves)6, que entra em vigor em 1973. No documento, é tratado o caráter in-

pdf, acessado em 1° de fevereiro de 2012.6 Disponível na Internet no endereço http://untreaty.un.org/English/Terrorism/Conv2.pdf, acessado em 1° de fevereiro de 2012.

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ternacional do crime – ainda que não se fale em terrorismo. A ideia é visivelmente evitar a normatização do termo, combatendo-se suas ações práticas e evitando-se o debate sobre a tipificação do método – a árdua definição precisa da categoria “terrorismo” se torna menos importante do que efetivamente combatê-lo.

Esse cuidado no uso do termo será revisto logo em 1971 pela OEA, que promulga em fevereiro a Convenção para Prevenir e Punir Atos de Terrorismo Configurados na Forma de Delitos Contra as Pessoas e a Extorsão Conexa, Quando Tiverem Eles Transcendência Internacio-nal (ou Convenção da Tomada Ilegal)7. Na convenção, aparece pela primeira vez a palavra terrorismo, citado da seguinte forma em seu preâmbulo: “A Assembleia Geral da Organização, na Resolução 4, de Junho de 1970, fortemente condena os atos de terrorismo, especificamente o sequestro de pessoas e as extorsões em conexão com esses crimes, que são declarados como sérios crimes comuns”.

Tipificado dessa forma, apenas referente a sequestros, o ter-rorismo é tratado explicitamente como crime comum, cuja natureza internacional o tratado tenta jurisdicionar - assim como a colabora-ção internacional no caso de sequestros e extradições de terroristas.

O combate ao terrorismo internacional e suas ações aéreas é desenvolvido pela ONU em 1971, através da Convenção para a Re-pressão de Atos Ilícitos Contra a Segurança da Aviação Civil (ou Con-venção da Aviação Civil)8, organizada pela Organização Internacio-

7 Disponível na Internet no endereço http://www.oas.org/juridico/english/treaties/a-49.html , acessado em 1° de fevereiro de 2012.8 Disponível na Internet no endereço http://untreaty.un.org/English/Terrorism/Conv3.pdf , acessado em 1° de fevereiro de 2012..

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nal de Aviação Civil (ICAO) em Montreal. A Convenção, que entra em vigor em 1975, torna crime a violência contra passageiros – caso ameace a aeronave. Também criminaliza a cumplicidade e a intenção do crime, além de especificar como ilegal o transporte de explosivos.

A convenção conclama a “punição severa” dos crimes que ela prevê, na tentativa de combate ao nascente terrorismo nacionalista internacional – mas não sugere penas.

Com tais medidas internacionais, o terrorismo deixa de lado os atentados aéreos – e passa a focar suas ações em embaixadas e corpos diplomáticos. Em setembro de 1972, imediatamente após o Massacre de Munique, a organização Setembro Negro envia uma carta-bomba à embaixada israelense em Londres, assassinando um diplomata. Em março de 1973, sequestram cinco diplomatas saudi-tas da embaixada em Cartum, no Sudão – três diplomatas ocidentais são assassinados. Em 14 de Dezembro, o Consulado Algeriano em Marselha é bombardeado pela organização anti-árabe Grupo Char-les Martel, assassinando quatro pessoas e ferindo outras vinte. No mesmo dia, respondendo a esses atentados, a Assembleia Geral da ONU adota a Convenção sobre a Prevenção e Punição de Crimes Contra Pessoas que Gozam de Proteção Internacional, Inclusive os Agentes Di-plomáticos (ou a Convenção dos Agentes Diplomáticos)9, que entra em vigor em 1977.

Na nova Convenção, são definidas as pessoas que gozam de proteção internacional (chefe de Estado, Ministro do Exterior, re-presentante ou oficial de organização internacional – e seus familia-

9 Disponível na Internet no endereço http://untreaty.un.org/English/Terrorism/Conv4.pdf , acessado em 1° de fevereiro de 2012.

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res). Além disso, requer aos signatários que criminalizem e tornem puníveis atos contra essas pessoas, seus bens, meios de transporte e acomodações.

Como resposta, mais uma vez o terrorismo troca de alvo: em março de 1978, membros da organização indonésia República da Moluca do Sul (RMS), em luta armada por sua independência da Holanda, ocupam o prédio da administração da província de Assen, mantendo mais de 67 reféns e assassinando um policial. Em novem-bro de 1979, cerca de 1500 manifestantes sunitas ocupam a Grande Mesquita de Meca, tomando o governo saudita de surpresa. A ocu-pação durou duas semanas, teve o nebuloso envolvimento de para-quedistas franceses e teve como resultado 225 mortos e 556 feridos entre os terroristas e peregrinos – e 127 mortes e 451 feridos entre os militares. A “Tomada da Grande Mesquita”, como ficou conhecido o evento, teve efeito devastador no cenário internacional, além de influenciar o recrudescimento do governo saudita em sua aplicação do direito islâmico, fechando o regime10.

O resultado da comunidade internacional a esses eventos foi a adoção da Convenção Internacional Contra a Tomada de Reféns (ou Convenção dos Reféns)11, de Dezembro de 1973. O acordo, que entrou em vigor apenas em 1983, criminaliza não apenas o uso de reféns, a detenção, mas também as ameaças de morte e injúrias como atos de pressão política contra Estados, organizações internacionais

10 WRIGHT, Lawrence. O Vulto das Duas Torres – A Al-Qaeda e o Caminho até o 11/9. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2006. Pg. 105-109.11 Disponível na Internet no endereço http://untreaty.un.org/English/Terrorism/Conv5.pdf, acessado em 1° de fevereiro de 2012.

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intergovernamentais, pessoas físicas ou jurídicas, ou mesmo grupo de pessoas.

Pouco depois, em outubro 1979, tem lugar em Viena a Con-venção Sobre a Proteção Física de Materiais Nucleares (ou Convenção para Materiais Nucleares)12, no contexto do final da deténte da Guer-ra Fria. O acordo, que entra em vigor em 1987, criminaliza a posses-são ilegal de material nuclear, assim como seu uso, transferência ou roubo – deixando, portanto, as potências nucleares como detentoras únicas dos materiais físseis disponíveis. O tratado, no entanto, vai além do estabelecimento do oligopólio nuclear e criminaliza o uso ou ameaça de uso de material nuclear para morte, injúria ou dano substancial à propriedade – portanto, seu uso em um ato terrorista.

A convenção é, assim, o primeiro passo na prevenção do ter-rorismo nuclear – tema que ganha vulto no mundo pós 9/11 e após Guerra do Iraque como pior método de ação terrorista, alimentando uma insegurança pública que, por vezes, beira a histeria. Voltaremos ao terrorismo nuclear a seguir, mas é significativo que seu combate internacional efetivo comece em 1979 – e não no contexto antiter-rorista do 9/11.

Tolhido pela crescente legislação internacional sobre suas práticas, o terrorismo internacional passa a visar ainda um outro alvo – aeroportos. Em dezembro de 1975, o aeroporto nova-iorquino de La Guardia é atingido por uma bomba – onze pessoas morrem e setenta e cinco ficam feridas. Em maio de 1981 é a vez do JFK, tam-

12 Disponível na Internet no endereço http://untreaty.un.org/English/Terrorism/Conv6.pdf, acessado em 1° de fevereiro de 2012.

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bém em Nova Iorque, sofrer um atentado à bomba, onde é assassina-da uma pessoa. Em 1982 é a vez do aeroporto de Ancara, na Turquia – nove pessoas são mortas e setenta feridas. Em 1983 o aeroporto de Orly também sofre um atentado, morrendo oito pessoas e deixando mais de 50 feridas. Em 1985, no aeroporto de Tóquio, uma bomba explode no carregamento de um avião, matando dois bagageiros. Em dezembro do mesmo ano os aeroportos de Roma (Da Vinci, 16 mor-tes e 99 feridos) e Viena (Schwechat, dois mortos e 39 feridos) são atacados simultaneamente.

Sete atentados em menos de dez anos, com um total de qua-renta e nove mortos e trezentos e três feridos, acabam por pressionar a comunidade internacional, que em 1988 apresenta o Protocolo para a Repressão de Atos Ilícitos de Violência em Aeroportos Que Prestem Ser-viço à Aviação Civil Internacional, Complementar à Convenção para a Repressão de Atos Ilícitos contra a Segurança da Aviação Civil (ou Protocolo dos Aeroportos)13. O acordo, que entra em vigor em 1990, estende de forma perspicaz as deliberações da Convenção de 1971, que deliberava sobre a aeronave e seus passageiros, aos aeroportos e seus transeuntes.

O mesmo princípio de proteção de transportes internacio-nais é aplicado às embarcações marítimas, através da Convenção para a Supressão de Atos Ilegais Contra a Segurança da Navegação Marítima (ou Convenção Marítima)14, de 1988. A convenção combate ações

13 Disponível na Internet no endereço http://untreaty.un.org/English/Terrorism/Conv7.pdf, acessado em 1° de fevereiro de 2012.14 Disponível na Internet no endereço http://untreaty.un.org/English/Terrorism/Conv8.pdf, acessado em 1° de fevereiro de 2012.

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terroristas no mar, como o sequestro do cruzeiro Achille Lauro pela Força de Libertação da Palestina (PLF), em Outubro de 1985.

Da mesma forma, também em 1988 é estabelecido o Proto-colo de Repressão a Atos Ilegais Contra a Segurança de Plataformas Fixas Continentais (ou Protocolo das PlataformasFixas)15, que expande as mesmas proteções e garantias às plataformas marítimas, entrando em vigor em 1992.

Seguindo com a mesma proposta de combate às ações ter-roristas, ainda sem nomear ou definir o termo terrorismo nas con-venções e protocolos, a ONU é impulsionada pelo atentado ao voo 103 da Pan Am a procurar uma solução mais ampla para o de safio do terrorismo internacional. No atentado, em Dezembro de 1988, a aeronave foi destruída por terroristas líbios sobre Lockerbie, a Escó-cia, matando 270 passageiros, sendo o maior atentado terrorista até então à vidas americanas – e o maior número de mortes em tempos de paz no Reino Unido16.

Com o ataque, a ONU apresenta em 1991 a Convenção para a Marcação de Explosivos Plásticos para Fins de Detecção (ou Convenção de Explosivos Plásticos)17, que designa o controle e o limite interna-cional do uso de explosivos plásticos – arma principal do terrorismo até então. Pela primeira vez as palavras terrorismo e terror são usadas numa convenção internacional da ONU, embora sem uma definição

15 Disponível na Internet no endereço http://untreaty.un.org/English/Terrorism/Conv9.pdf, acessado em 1° de fevereiro de 2012.16 Special Report: Lockerbie. The Guardian, reportagem especial disponível na Internet no endereço http://www.guardian.co.uk/Lockerbie, acessado em 1° de fevereiro de 2012.17 Disponível na Internet no endereço http://untreaty.un.org/English/Terrorism/Conv10.pdf, acessado em 1° de fevereiro de 2012.

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precisa – a estratégia continua sendo o cerceamento das ações ter-roristas, evitando-se o debate sobre a definição do termo terrorismo.

Essas determinações serão completadas em 1997 pela Con-venção Internacional Sobre a Supressão de Atentados Terroristas com Bombas (ou Convenção sobre Atentados à Bomba)18. O acordo, que vigora a partir de 2001, cria um regime de jurisdição universal sobre o uso e intenção de uso de explosivos em lugares públicos, visando causar danos pessoais ou a destruição de propriedades.

É nesse contexto legal que se surge o terrorismo global con-temporâneo, nos atentados da Al-Qaeda às embaixadas americanas no Quênia e na Tanzânia em 1998, onde são assassinadas 225 pesso-as e feridas mais de 4.000. Após a investigação do FBI e a descoberta de uma ampla rede de financiamento e simpatizantes internacionais do novo terrorismo, a ONU apresenta em Dezembro de 1999 a Con-venção Internacional para a Supressão de Financiamento do Terrorismo (ou Convenção Sobre o Financiamento Terrorista)19.

No documento, os signatários se comprometem a prevenir e combater o financiamento direto e indireto de organizações ter-roristas e grupos ligados ao tráfico de drogas e de armas. Para isso, prevê o congelamento de bens e a expropriação de fundos alocados em atividades terroristas, alegando que o sigilo bancário não é mais justificação adequada para a ausência de cooperação na área.

Delineia-se um quadro de combate multilateral sistemático

18 Disponível na Internet no endereço http://www2.mre.gov.br/dai/TerrorBombas.htm, acessado em 1° de fevereiro de 2012.19 Disponível na Internet no endereço http://www2.mre.gov.br/dai/m_5.640_2005.htm, acessado em 1° de fevereiro de 2012.

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das atividades terroristas, que teve início com o combate ao sequestro de aeronaves, seguido pelo de pessoal diplomático, passando ao com-bate à tomada de reféns e a proteção de aeroportos, navios e platafor-mas – até o controle de explosivos, o combate às bombas terroristas e, finalmente, chega à atividade raiz de suporte do terrorismo: seu financiamento, mesmo quando encoberto por sigilo bancário.

Nessa realidade de constante perda de terreno da atividade terrorista é que tem lugar o espetacular ataque de 9/11, que emprega mais uma vez táticas novas ao usar um sequestro de avião não como uma arma política – mas uma arma militar, tornando a aeronave um míssil contra alvos fixos em terra. Com sua estrutura descentralizada, que chega a levantar dúvidas da aplicabilidade do termo organiza-ção20, a Al-Qaeda apresenta uma nova realidade ao combate inter-nacional do terrorismo – que será continuado apesar da relutância norte-americana em confiar seu tema principal de segurança nacio-nal à um debate multilateral.

A realidade de um novo terrorismo global e pulverizado numa rede21 é um tema inerentemente multilateral, dado seu alcance universal resultado de sua estrutura não-territorial. Mesmo a hiper-potência pouco pode fazer sozinha em seu ataque unilateral naïve às bases do terrorismo – campos de treinamento não são fontes de financiamento, nem centros de propaganda. O terrorismo, como es-

20 CURTIS, Adam. The Power of Nightmares – The Rise of Politics of Fear. BBC, 2004.21 Que, mesmo se existente, é de tal volatilidade que desafia a definição do termo, assemelhando-se mais a células independentes guiadas por diretrizes gerais emana-das de um centro que atua mais como um guia do que como uma cadeia de comando efetiva.

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tratégia de ação, não possui fortaleza central para ser sitiada – e essa sua “aterritorialidade” é exacerbada com o modelo pulverizado e em rede da Al-Qaeda.

Imediatamente após os atentados de 2001, a OEA promulga sua Convenção Interamericana Contra o Terrorismo22, que reconhece todas as Convenções anteriores e estreita a colaboração do sistema interamericano no combate ao terrorismo. Além disso, o acordo eli-mina justificativas de asilo político à extradição de terroristas e se compromete integralmente com os Direitos Humanos conforme a Carta da ONU e da OEA, além dos demais acordos, convenções e tratados sobre o tema.

O próximo passo global no combate ao terrorismo aconte-ce em Setembro de 2005, com a Convenção para a Supressão de Atos de Terrorismo Nuclear (ou Convenção para Terrorismo Nuclear)23. O documento discorre sobre atentados contra instalações nucleares – e não sobre o uso de armamentos nucleares em atividades terroristas, como seu título pode dar a entender. Nesse enfoque, estabelece a co-operação em casos de crise e pós-crise, inclusive prevendo o emprego a Agência Internacional Atômica (IAEA).

Finalmente, em setembro de 2006 a ONU promulga a Es-tratégia Contra-Terrorista Global 24 apresentada como resolução da

22 Disponível na Internet no endereço http://www.oas.org/juridico/english/treaties/a-66.html, acessado em 1° de fevereiro de 2012.23 Disponível na Internet no endereço http://untreaty.un.org/English/Terrorism/En-glish_18_15.pdf, acessado em 1° de fevereiro de 2012.24 Disponível na Internet no endereço http://unbisnet.un.org:8080/ipac20/ipac.jsp?session=11982904TSX52.2002&menu=search&aspect=power&npp=50&ipp=20&spp=20&profile=bibga&ri=1&source=%7E%21horizon&index=.

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Assembleia Geral (A/RES/60/288). A origem do documento resi-de numa proposta do Secretário-Geral no encontro de setembro de 2005. Nessa proposta, são delineados cinco pilares de ação para o terrorismo – a dissuasão para grupos não recorrerem ao terrorismo; negar os meios de terroristas conduzirem seus ataques; negar a Es-tados os meios de financiar grupos terroristas; desenvolver as capa-cidades estatais de contenção do terrorismo; defender os Direitos Humanos no contexto do terrorismo e contraterrorismo.

Posteriormente aceita na Conferência de setembro de 2005, e com os pilares de ação desenvolvidos pelo Secretário-Geral, a pro-posta foi finalmente aceita em uníssono pela Assembleia Geral, cujos membros começaram em maio de 2006 a realizar consultas sobre o desenvolvimento de formas futuras de cooperação global nas ações contra terroristas. É interessante a semântica – as medidas propostas como base de desenvolvimento do contraterrorismo possuem caráter explicitamente defensivo. Medidas ofensivas, denominadas de anti-terrorismo, não são contempladas pelas discussões25.

A proposta é ousada: estabelecer uma Força Tarefa de Im-plementação do Contraterrorismo, composta multidisciplinarmente por membros da ONU oriundos de diversos escritórios ativos na proposta, tais como a Agência Internacional de Energia Atômica, a Organização Mundial de Saúde, Organização Civil Internacional, o

UD&term=a%2Fres%2F60%2F 288&x=0&y=0&aspect=power, acessado em 1° de fevereiro de 2012.25 Sobre as diferenças entre contra terrorismo e anti terrorismo ver PINHEIRO, Gen. Bda. Álvaro de Souza. O Antiterrorismo e o Contraterrorismo. Portal Defesa@Net, Mar-ço de 2004. Disponível na Internet no endereço http://www.defesanet.com.br/noticia/terrorismo.htm, acessado em 1° de fevereiro de 2012.

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Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, a Organização Marítima Internacional, dentre vários outros, na tentativa de prover um framework de trabalho para ações preventivas de caráter global, regional, sub-regional e local (estatal) contra atos terroristas – sem-pre com atenção explícita e clara de defesa dos Direitos Humanos no processo de combate ao terrorismo26.

É compreensível esperarmos resultados desse gigantesco tra-balho conjunto de colaboração nos próximos anos. Auspiciosa já foi a unanimidade inédita da Assembleia Geral na condenação do terro-rismo, quando da aprovação da resolução 60/288, em 2005, expressa em seu parágrafo 81 da seguinte forma:

“We strongly condemn terrorism in all its forms and manifestations, committed by whomever, wherever and for whatever purposes, as it constitutes one of the most serious threats to international peace and security.”27

É possível afirmar, finalmente, que o 9/11 de fato mudou tudo – sem ele, não teríamos o nível de parceria atual no combate ao terrorismo, agora visto como fenômeno global e uma das ameaças do processo inconcluso (e polissêmico) da globalização. Portanto, dependendo exclusivamente da ação conjunta dos Estados através da cooperação internacional através dos mecanismos multilaterais (essencialmente a ONU), na criação de uma legislação internacio-

26 Factsheet disponível na Internet no endereço http://www.un.org/terrorism/pdfs/CT_factsheet_may2007x.pdf, acessado em 1° de fevereiro de 2012.27 Texto final do encontro, disponível na Internet no endereço http://www.un.org/ter-rorism/strategy/worldsummit-outcome.html, acessado em 1° de fevereiro de 2012..

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nal que proteja cidadãos, garanta os princípios estabelecidos dos Direitos Humanos e previna o terrorismo em sua nova modalidade histórica.

Trabalho claramente além das capacidades possíveis para um único Estado e suas noções neo-realistas de política – mesmo que esse Estado se apresente como a única superpotência atual.

Nesse esforço conjunto da comunidade internacional, é marcante a participação brasileira ao ratificarmos prontamente to-das as convenções – com a curiosa exceção apenas da Convenção Marítima de 1988, referente à proteção da navegação marítima, e seu protocolo adicional sobre as plataformas continentais. Chama a atenção essa ausência brasileira especialmente pela rationale atual da Marinha brasileira, que justifica sua expansão como proteção à prospecção crescente de petróleo na costa brasileira, na área cha-mada pelo marketing militar de “Amazônia Azul”. 28

Se a Marinha, conforme seu discurso, busca proteger o pré--sal de agressões externas promovidas por terroristas29, deveria co-meçar por recomendar a assinatura da convenção de 1988 e seu protocolo adicional, adequando plenamente a posição brasileira com o combate internacional ao terrorismo.

28 Vidigal, Armando Amorim Ferreira et al. Amazônia Azul: O Mar que nos Pertence. Rio de Janeiro: Record, 2006. Pág. 258.29 De MARTINI, Fernando. Área do Pré-Sal Terá Patrulha da Marinha. In Poder Naval, 25 de agosto de 2008. Disponível na Internet no endereço http://www.naval.com.br/blog/2008/08/25/area-do-pre-sal-tera-patrulha-da-marinha/#axzz1uySvf8tN, aces-sado em 1° de fevereiro de 2012.

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Listagem dos tratados internacionais de prevenção ao terrorismo inter-

nacional, Com a participação Brasileira

Convenção / Protocolo Data de Apresentação

Data da Entrada em

Vigor

Ratificação pelo Brasil

Convention on Offences and Certain Other Acts Committed Onboard Aircraft

Setembro de 1963

Dezembro de 1969

Abril de 1970 (Decreto 66520)

Convention for the Suppression of Unlawful Seizure of Aircraft

Dezembro de 1970

Março de 1973

Fevereiro de 1972 (Decreto 70201)

Convenção para Prevenir e Punir Atos de Terrorismo Configurados na Forma de Delitos Contra as Pessoas e a Extorsão Conexa, Quando Tiverem Eles Transcendência Internacional

Fevereiro de 1971

Fevereiro de 1971

Abril de 1999 (Decreto 3018)

Convention for the Suppression of Unlawful ActsAgainst the Safety of Civil Aviation

Setembro de 1971 Julho de 1975 Junho de 1973

(Decreto 72383)

Convention on the Prevention and Punishment of Crimes against Internationally Protected Persons, Including Diplomatic Agents

Dezembro de 1973

Fevereiro de 1977

Setembro de 1979 (Decreto 3167)

International Convention Against the taking of Hostages

Dezembro de 1979

Junho de 1983 Junho de 2000(Decreto 3517) –Com reservas ao Art. 16.

Convention on the Physical Protection of Nuclear Material

Março de 1980

Fevereiro de 1987

Abril de 1991(Decreto 95)

Convention for the Suppression of Unlawful Acts Against the Safety of Civil Aviation

Setembro de 1988

Dezembro de 1990

Junho de 1998 (Decreto 2611)

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Convention for the Suppression of Unlawful ActsAgainst the Safety of Maritime Navigation

Março de 1988

Junho de 1992 Não participou (52 Estados Ratificaram )30

Protocol for the Suppression of Unlawful Acts Against the Safety of Fixed Platforms Located on the Continental Shelf

Março de 1988

Março de 1992 Não participou

Convention on the Marking of Plastic Explosives for the Purpose of Detection

Março de 1991

Março de 1991

Novembro de 2001 (Decreto 4021)

International Convention for the Suppression of Terrorist Bombings

Dezembro de 1997 Maio de 2001

Setembro de 2002 (Decreto 4394) Com reservas ao Parágrafo 1 do Art. 20

International Convention for the Suppression of the Financing of Terrorism

Dezembro de 1999 Abril de 2002 Dezembro de 2005

(Decreto 5640)

Inter-American Convention Against Terrorism Junho de 2002 Junho de 2002 Dezembro de 2005

(Decreto 5639)

International Convention for the Suppression of Acts of Nuclear Terrorism

Setembro de 2005

Outubro de 2005

Não ratificado (em trâmite31) – mas assinado em 14 de Setembro de 2005

30 Conforme citado no Seminário “Comunicação e Violência: a opinião pública no combate ao terror”, disponível na Internet no endereço http://www.sinprorp.org.br/Cursos/2001/cursos120.htm, em Dezembro de 2007.

31 Conforme o Sistema de Consultas de Tramitações da Câmara dos Depu-tados, disponível no endereço http://www2.camara.gov.br/internet/proposi-coes/chamadaExterna.html?link=http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Lista.asp?ass1=terrorismo&co1=%20AND%20&Ass2=nuclear&co2=Ass3=, acessado em 1° de fevereiro de 2012.

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a proFissão De FÉ no reino VisiGoDo: UM estUDo CoMparaDo soBre os FLAVIUS VisiGoDos,

reCareDo e reCesVinto

Rodrigo dos Santos Rainha – Mestre – PPGHC/UFRJ1

Orientadora: Leila Rodrigues da Silva

Os séculos VI e VII são marcados pelo estabelecimento da

transação entre as elites episcopais, principais representantes das populações hispano-romanas, e visigodas, que então governavam a maior parte dos territórios na península Hispânica.

Neste texto, sublinharemos dois momentos em que a relação de aproximação entre esses grupos fica evidenciada – quando aconte-cem as reuniões conciliares, especialmente aquelas em que suas atas são marcadas pelo discurso do monarca em sua introdução, prática que podemos identificar, por exemplo, nas atas do III e VIII Concí-lios de Toledo.

Nossa comunicação, então, visa identificar semelhanças e di-ferenças no processo de ascensão ao poder dos reis indicados, nas atas anteriormente mencionadas, como os autores dos discursos: Flavius Recaredo e Flavius Recesvinto. Os dois monarcas têm em comum o fato de serem filhos de governantes que enfrentaram grande oposição por parte de setores o episcopado – no caso Leovigildo e Chindas-vinto, respectivamente –, assumiram o trono de maneira hereditária e

1 Temática deste artigo foi apresentada originalmente na VII Semana de Estudos Medievais, e foi revisto e reformulado para este artigo.

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direcionaram suas políticas no sentido de constituir uma aliança entre episcopado e monarquia.

apresentação

A preocupação em relacionar eventos políticos e religiosos nas pesquisas de História é um aspecto que embora não seja novo, continua sendo de vital importância para a Nova História Política.2 E este é o prisma trazido para análise da relação entre a monarquia e o episcopado no reino visigodo. O que apresento nessa comunicação é apenas uma das possibilidades. Para esse entendimento no caso visigodo, elegemos dois reis e suas participações em duas das principais reuniões concilia-res de todo o reino, o III e o VIII Concílios de Toledo.

Em minha dissertação de mestrado, recém-defendida e apro-vada em junho passado pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada,3 enfatizei as relações entre o poder e a educação, e sua difusão por parte do episcopado visigodo durante o século VII. Essa pesquisa está vinculada ao Programa de Estudos Medievais, orien-tada pela professora Leila Rodrigues da Silva. Em nossa disserta-ção, continuamente chamou a atenção o imbricamento entre o campo religioso e político.4 Por um lado, a linguagem se manifesta, mesmo

2 Cf.: COUTROT, A. Religião e Política. In: REMOND, R. Para uma História Política. Rio de Janeiro: UFRJ, 1998.3 Cf.: RAINHA, R. S. A Educação no Reino Visigodo: as relações de poder e o epistolá-rio do bispo Bráulio de Saragoça. Rio de Janeiro: HP Comunicações, 2007.4 Cf.: BOURDIEU, P. Gênese e Estrutura do Campo Religioso. ___. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2003.

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por monarcas, que assumiam ares sacerdotais, por outro, questões de administração, patrimônio, lei e diplomacia se faziam presentes em áreas que, teoricamente, os elementos a serem abordados deveriam ser teológicos.

A partir dessa reflexão, decidimos construir essa comunicação de modo que o entendimento da relação entre monarquia e episco-pado no reino visigodo ficasse mais visível. Para tal, compararemos os discursos dos reis Recaredo, considerado pela historiografia5 como responsável pela aliança entre a igreja seguidora da ortodoxia nicena e a monarquia visigoda no ano de 589; e Recesvinto, um dos mo-narcas de mais longo reinado à frente dos visigodos e tratado6 como legislador de maior relevância, na abertura dos Concílios III e VIII de Toledo.

problema

A presença dos visigodos na Península Ibérica é ampliada e fixada após a batalha de Voulé, mas sua relação com as populações ro-manas já podiam ser observadas anteriormente. Essa convivência tem como uma de suas principais características a identificação dos visi-godos com diversos elementos romanos, como a religião cristã, ainda que ariana, sua administração e reconhecimento da língua latina.

Durante seu estabelecimento, observaram-se no grupo guer-

5 Cf.: GARCIA MORENO, Luis A. Historia de España Visigoda. Madrid: Cátedra, 1989; ORLANDIS, J. História Del Reino Visigodo Español. Madrid: Rialp, 1990.6 Cf.: GARCIA MORENO. Op. cit. p. 280-353.

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reiro que suas principais relações, marcadamente pessoais, se estabe-leciam na tradição e nos chefes militares, Estes, utilizaram-se dessas diferenças como forma de afirmação e distinção das populações lo-cais, em superioridade numérica.7

Segundo Santiago Castellanos8, o amadurecimento dessas relações no século VI, assim como a gradual aproximação das elites hispano-romanas, trouxe a necessidade de politicamente modificar o processo autônomo dos chefes militares, fortalecendo a ideia de constituição de um regnum.9

Durante esse mesmo estabelecimento do reino visigodo, po-de-se notar uma população hispano-romana, em primeiro momento, órfã das antigas lideranças e necessitando de um elo que as unisse, ou ao menos as representasse – apresenta-se o papel da igreja de inspira-ção romana. Esse grupo religioso busca sua legitimidade nos padrões da romanidade, fortalecendo seus quadros e aproximando de seus es-paços privilegiados os membros da elite local.

Assim, os grupos da aristocracia visigoda, no intuito de cons-tituir seu reino, estabeleceram questões jurídicas como a proibição de

7 Cf.: VELASQUEZ SORIANO, Isabel. Âmbitos y ambientes de la cultura escrita em Hispania (s. VI): De Martín de Braga a Leandro de Sevilla. Studia Ephemeridis Augus-tinianum, Roma, n. 46, p. 329-351, 1994.8 Cf.: SANTIAGO CASTELLANOS. La Hagiografia Visigoda. Dominio social y proycción cultural. Logroño: Fundación San Millán de la Cogolla, 2004. p. 163 – 302.9 Cf.: FRIGHETTO, R. A imagem do rei nas fontes hispano-visigodas: aspectos teóri-cos. In: Anais da XXI Reunião da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica. Curitiba, p. 81-96, 2002; ___. O problema da legitimidade e a limitação do poder régio na Hispania visigoda: o reinado de Ervígio (680-687). Gerión, Madrid, v. 22, n. 1. p. 421 – 435, 2004.

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casamentos mistos, entre godos e hispano-romanos,10 além dos direi-tos sobre as terras serem aproximados e determinados. Leovigildo, o então monarca, como principal arquiteto dessa transformação, busca o mesmo processo em relação à religião, e nesse momento dois grupos entram em conflito: os ortodoxos, seguidores da Igreja romana e dos Concílios de Nicéia e Calcedônia, e os Arianos, discípulos de Ário e elo integrador entre a nobreza visigoda.

No processo deflagrado por Leovigildo o centro de suas dis-cussões é o fortalecimento das “instituições” que poderia constituir um status de reino. Neste sentido o apoio ao arianismo, como estrutura representativa de toda aristocracia dos visigodos em termos religiosos, tornam-se a opção do monarca na tentativa de unificação religiosa. Mas sem apoio de outros importantes grupos locais, enfrenta uma revolta liderada pelo próprio filho, com justificativa de uma unifica-ção religiosa pela via ortodoxa.11 Leovigildo vence a batalha, mas não consegue dar prosseguimento a seu projeto político.

Mas a força do rei garante a ascensão de seu outro filho ao trono, Recaredo. Aproximando-se da Igreja ortodoxa, ele dá con-tinuidade, com sucesso, ao empreendimento de seu pai. E é nesse processo que, em 589, o rei Recaredo abre a seção do III Concílio de Toledo, e ainda, ao seu final, segue um édito, o que dá à reunião ecle-siástica, peso de lei. Serão esses os elementos que utilizaremos para comparar a profissão de Recaredo, que assumindo uma clara romani-

10 Cf.: THOMPSON, E. A. Los Godos en España. Madrid: Alianza, 1971. p. 299-342.11 Cf.: ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. A Tirania de Um Santo na Antiguidade Tardia (século VI). In: I Simpósio de sobre História das Religiões. Assis, 1999. Disponibilizado: http://members.tripod.com/bmgil/ afro20.htm. (acessado em 08/06/2007).

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dade, adota Flavius como título em sua firma conciliar.Se a aliança entre monarca e Igreja fortalece a presença de

um reino em si, em que o cargo máximo é inquestionável (uma vez que era legitimada por Deus), a posição do rei passa a ser o objetivo máximo das diversas correntes ou grupos da nobreza visigoda.

No princípio do século VII, a primeira prova desse novo mo-mento é o assassinato do filho de Recaredo, rompendo com a sucessão hereditária e dando início a uma série de golpes. Em toda primeira metade do século VII, os golpes sucederam-se. Observa-se que ape-nas Sisebuto e Chindasvinto têm transições em paz e hereditárias.12

Nesse momento de instabilidade, a Igreja visigoda, fortalecida como legitimadora e apresentando uma estabilidade frente à convul-são política, experimenta um incremento de seu poder, aumentando de forma substancial sua produção intelectual e sua influência junto ao monarca. Isso se pode observar nos IV, V e VI Concílios de Toledo, convocados por monarcas que recém-ascenderam ao poder e busca-ram legitimidade nas deliberações conciliares.

Essa aliança experimenta uma parcial ruptura quando da as-censão de um chefe militar chamado Chindasvinto. Considerado por parte do episcopado como rude, tirano, velho13, esse monarca busca fortalecer o poder real - elimina candidatos ao trono, assassina parte da nobreza palaciana, desapropria terras eclesiásticas, nomeia bispos

12 Cf.: ORLANDIS, J. Op. cit. p. 316 – 370.13 É importante sublinhar que Chindasvinto é um chefe militar de idade avançada e teria, segundos fontes conciliares, em torno de 80 anos. Cf.: Concílios Visigoticos e Hispano-Romanos. Jose Vives. (Ed.) Madrid: CSIC. Instituto Enrique Florez, 1963. X Concílio de Toledo.

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contra a vontade do episcopado, modifica leis, abre frentes de batalha. Essas atitudes atribuídas ao rei revelam-nos sua principal preocupa-ção: o fortalecimento do seu próprio poder.14

Durante seu governo, parte da Igreja busca uma aproximação, sugerindo que Chindasvinto abandonasse o trono em favor de seu fi-lho.15 Segundo as alegações presentes na carta assinada por uma série de clérigos e um nobre da região de Saragoça, essa atitude evitaria disputas por sucessão. Além do mais novo ser mais capaz de guerrear, tinha como principais características, segundo Bráulio de Saragoça, a serenidade e a clemência, principalmente por ter sido educado pela Igreja.16

Chindasvinto primeiro associa seu filho ao trono,17e no VIII Concílio de Toledo comemora sua ascensão ao trono após a morte de seu pai. Nesta comunicação abordaremos justamente a profissão de fé nessa reunião, em que ele é a chamado a ser o monarca, sem divisão, com a recente vontade do pai.

Comparação

A partir desse quadro, nossa hipótese é que ao compararmos as profissões de fé de Recaredo e Recesvinto, apesar da distância tem-

14 Cf.: Concilios. Op. cit. e Lynch, C. H. e GALINDO, P. San Braulio O bispo de Zaragoza (631 – 651): Su vida y sus obras. Madrid: Instituto Enrique Florez, 1950. 15 Cf. RAINHA, R. S. Op. cit. 61 – 89.16 Idem.17 Cf.: FRIGUETO, R. Cultura e Poder na Antigüidade Tardia Ocidental. São Paulo: ABDR, 2000.

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poral, temos dois marcos que servem como elementos de renovação da aliança entre monarquia e episcopado, mas sem, no entanto, rom-perem os processos políticos iniciados por seus antecessores.

O Concílio ocorrido em 653 é uma reafirmação da aliança de 589, transformada pelas características do reino, mas que em nenhum momento estivesse sido inteiramente rompida.

A escolha dos dois monarcas para esse tema pode ser entendi-da por alguns elementos em comum: a sucessão hereditária e advinda de reis contestados; a adoção do nome Flavius, que tem característica de título e é uma retomada romana; ambas as assembléias terem es-pecialmente sublinhado seu peso de lei e reafirmação da aliança entre monarca e episcopado.

Elegendo alguns eixos como forma de comparar os discursos de ambos nos Concílios que analisamos: a participação na abertura desses Concílios, a erudição, a leitura dos monarcas sobre a fé, o que é entendido como obrigação da igreja, o que é papel do monarca na aliança e o papel político de seus discursos.

A abertura do termo conciliar é feita e dominada por Lean-dro de Sevilha. Nessa fase, é dada voz a Recaredo, por três vezes, de forma explícita: a primeira, quando esle faz a abjuração do arianismo, seguindo os preceitos do Concílio de Nicéia; a segunda, quando abju-ra em nome de todos os nobres, seguindo o Concílio da Calcedônia; e a terceira, na confirmação de sua profissão de fé feita de forma breve. Em outras passagens, Leandro sublinha que todos seguiram a atitude do monarca em determinado gesto ou prática.18

18 Cf. Concílios... Op. cit. III Concílio de Toledo.

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Devemos sublinhar que em sua profissão de fé Flavius Re-caredo, apesar da referência romana, não apresenta indicativos de profundo conhecedor dos elementos educacionais, pois seus gestos e práticas são direcionados e repetem um padrão.

O mesmo não se pode afirmar do posicionamento de Reces-vinto no VIII Concílio. De forma assegurar seu domínio da reunião, assim como seu discurso, o redator das atas escreve que “serão trans-critas as palavras do Sereníssimo rei Recesvinto”.

Como já indicado, esse monarca fora educado no seio da Igre-ja. Tinha uma relação especial com diversos membros do episcopado, solicitando inclusive a um desses que organizasse o código jurídico, obra que marca o seu governo.19 Sua profissão de fé tem seis páginas, e na sua firma, além de reproduzir o padrão, “firmo com as próprias mãos,”20 faz questão de sinalizar que concordava e o fazia após expor suas ideias e sua vontade.

A questão do entendimento da religião por parte dos mo-narcas é o que podemos realçar como foco do primeiro Concílio. A negação de todo e quaisquer elementos arianos, em especial o posi-cionamento da trindade, indica que sob esta estaria o próprio rei.

Recaredo, além da abjuração que mencionamos e de acordo com o redator das atas, reconhece e obriga todos os que estavam em erro a ajoelharem-se e seguirem a verdadeira fé. O posicionamento como chefe dos godos e seu trato simbólico no reconhecimento da ortodoxia nicena é um marco para o estabelecimento da aliança entre

19 Codex Recesvintus ou Lex Wisigothorum.20 Cf. Concílios... Op. cit. VIII Concílio de Toledo.

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monarca e episcopado no reino visigodo.21

A postura de Recesvinto sobre a questão da fé é mais tênue. Em seu discurso, reconhece a prevalência da Igreja católica e a uni-dade de seu credo, respeitando “sua regra verdadeira, santa e sincera que firmemente abraço a tradição apostólica e reconheço os concílios.”22 A posição de líder da Igreja, respeitador de seus clérigos não é um acaso – faz parte da postura assumida pelo rei, nos diversos concílios que este convoca, em que adota uma postura sacerdotal.

O arianismo não é sequer citado. Para o rei, a fé verdadeira é una, ou seja, a aliança estabelecida por Recaredo ainda é vigente, ainda que transformada e apresentando novos elementos.

Na construção de um pacto, que é em nossa comunicação a principal questão, temos uma via de mão dupla na qual os monarcas têm obrigações de protetores para a Igreja, entretanto o episcopado teve um cuidado especial na legitimação de seu rei. Seja em Recaredo ou em Recesvinto, identificamos essa relação:

1- Na profissão de fé do III Concílio de Toledo, a Igreja tem como função reconhecer e afirmar a tradição da estirpe visi-goda, indicando que esta fora traída pela heresia de Ário e seus doutores. Analisando-os como pertencentes à ortodoxia nicena, após abjuração da heterodoxia, a Igreja reconhecia o papel e o direito do monarca em guiar os povos da Hispania.2- Recesvinto proclama na sua profissão de fé que, ‘por Deus

21 José Orlandis (Op. cit.) acredita que a unção fosse algo comum desde Recaredo, mas só teremos registro oficial desse fenômeno com o rei Wamba, no final do século VII.22 Cf.: Concilios. Op. cit. VIII Concílio de Toledo.

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e pela Igreja’, aqueles que atentassem contra o monarca ja-mais mereceriam perdão e estariam condenados para sempre, jurídica e religiosamente. Nota-se um amadurecimento e im-bricamento da aliança, na qual a função legitimadora se espe-cializa. Ainda que não haja um relato oficial neste momento de unção régia, nesse Concílio, Recesvinto recebe a benção do episcopado para suas atitudes.23

Por parte dos reis, a obrigação não era menor. Recaredo sina-liza a obrigação de que todos os representantes da Igreja Ariana, assim como os nobres, e ele próprio, reconhecessem a verdade da fé católica publicamente. E mais que isso, em um édito real ao final do Concílio, dá peso de lei às decisões tomadas ali. Em outras palavras, é oferecida como contrapartida a prevalência católica no campo religioso.

Na metade do século VII, o posicionamento no campo religio-so certamente não era mais o principal questionamento, e por isso a posição de Recesvinto é a de ser o defensor máximo da Igreja – papel no qual ele, de certa forma, se considera o representante máximo. Assim, o monarca afirma que todos os súditos do reino são, também, súditos da Igreja e a ela devem respeito e obediência, pois ‘aquele que não o fizer sentirá o peso de sua autoridade real’.

A adoção do título-nome Flavius por Recesvinto e Recare-do é um aspecto relevante. A utilização do termo demonstra a clara busca pela afirmação de legitimidade no Império Romano. Apesar do ocidental neste momento já ser uma lembrança, sobrevive no imagi-nário como algo que é genuíno, e não à toa passará a ser buscado pelos

23 Idem.

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visigodos quando se afirma a ideia do estabelecimento do Regnum.24 Além disso, a presença do oriente, em especial durante o rei-

nado de Recaredo, é um espelho para o fortalecimento e confirmação, em termos de política externa, da posição do próprio reino. E é nesse ponto que o episcopado é fundamental, e, provavelmente, a fonte de inspiração para esta confirmação.

A influência de Recesvinto para adoção do mesmo título, em nossa leitura, está diretamente vinculada a Recaredo, uma vez que este assume para os demais monarcas posição especial no ideário lo-cal. Em um projeto de reorganização do reino proposto por Reces-vinto, aproximar-se de alguma forma de Recaredo seria uma forma de se autolegitimar.

ConsiDerações Finais

Nesta comunicação exploramos a intensa relação estabelecida entre o episcopado e a monarquia no reino visigodo. Elegendo como marcos os III e VIII Concílios de Toledo, e procurando a voz dos monarcas nessas reuniões, identificamos como característica princi-pal uma continuidade de processo. Significa dizer, que em ambos, de maneira diversa por seus contextos, tratam de alinhavar alianças em que tanto o rei necessitava do poder da Igreja, como o episcopado se escorava no poder do monarca para seu próprio fortalecimento. Com efeito, são membros da elite local legitimando-se mutuamente e criando um sistema em que política e religião tornam-se quase um

24 Cf.: FRIGHETTO, R. A imagem do ... Op. cit.

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único campo. O primeiro Concílio, no qual Flavius Recaredo é o expoente,

estabelece as bases da aliança entre a Igreja e a monarquia proporcio-nando o estabelecimento de um regnum visigodo; o segundo, liderado por Flavius Recesvinto, busca ratificar, na continuidade da aliança, a concentração de poder obtida por seu pai, mas optando por uma via diplomática e tornando-se um rei sacerdote.

Para reforçar e aclarar as novas relações entre monarca e epis-copado, em especial pelas novas conjunturas de uma nobreza de ca-racterística palaciana no princípio da segunda metade do século VII, o segundo escora-se nas atitudes do primeiro e da sua capacidade de arregimentar o episcopado em torno de si.

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artiGos

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a eUropa neCessita De UMa ConstitUição? as DiFiCULDaDes De atinGir Consensos

Europe needs a Constitution? The dificulties of achieving consensus

Gabriela Soares Balestero1

resumo

A fragmentação da sociedade moderna causada pela comple-xidade social, no quadro da União Européia, abre uma possibilidade de reordenação, de um desafio ao modelo de ordem constitucional nacional. Nesse cenário origina-se a formação e unidades políticas regionais como a União Européia, sendo, portanto a Europa o cenário desta mudança mundial a caminho de uma consolidação constitucio-nal de suas estruturas jurídico normativas, de maneira a proporcionar uma Constituição para além do Estado.

Palavras – chave: Reordenação. União Européia. Unificação jurídica.

abstract

The fragmentation of modern society caused by social com-

1 Gabriela Soares Balestero, Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Buenos Aires, Mestre em Direito (Constitucionalismo e Democracia) pela Facul-dade de Direito do Sul de Minas, especialista em Direito Constitucional e em Direi-to Processual Civil pela FDSM, bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora Universitária. Advogada. Email: [email protected].

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plexity in the framework of the European Union, opens the possibility of reordering, a challenge to the model of the national constitutional order. In this scenario stems from the formation and regional political units like the European Union and therefore Europe change the lan-dscape of this world heading for a consolidation of its structures cons-titutional legal norms, so as to provide a constitution beyond the state.

Keywords: Reordering. European Union. Unified legal.

introDUção

Diante da derrocada do regime comunista no leste europeu e com o fim da Guerra Fria, houve a revalorização das Nações Unidas com o fim de solucionar os conflitos entre as nações, surgindo novos temas de interesse global em sede internacional. Essa abertura do Di-reito Internacional propõe o respeito pelas nações dos princípios e regras do direito internacional. Essa situação verifica-se com a União Européia.

A fragmentação da sociedade moderna causada pela comple-xidade social, no quadro da União Européia, abre uma possibilidade de reordenação, de um desafio ao modelo de ordem constitucional nacional. A sociedade internacional passa por uma reestruturação su-pranacional do globo.

Nesse cenário origina-se a formação e unidades políticas regio-nais como a União Européia, sendo, portanto a Europa o cenário desta mudança mundial a caminho de uma consolidação constitucional de suas estruturas jurídico normativas. Eis o objetivo do presente estudo.

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o projeto de uma Constituição para a europa

Para a análise da questão são necessários o estudo de alguns antecedentes históricos como a transmutação do Tratado da União Européia, as propostas fracassadas de constituições formais, o Tratado de Nice, a Declaração de n. 23 e o Conselho Europeu de Laeken e o método descrito no projeto de Constituição Européia que é o da convenção.

O Tratado que tentou estabelecer uma Constituição para a Europa foi elaborado pela Convenção Européia para o futuro da Eu-ropa que foi apresentado ao Conselho Europeu de Salônica em 20 de junho de 2003, sendo que o texto integral foi entregue ao Presidente do Conselho Europeu em Roma em 18 e julho de 2003.

O projeto de Constituição Européia entrou em discussão no dia 04 de outubro de 2004, tendo praticamente sido encerrado em 2009, na qual, diante dos bloqueios de alguns estados foi transforma-do em um novo tratado, o Tratado de Lisboa.

A proposta de uma Constituição Européia visava transmutar os Tratados que instituem as Comunidades Européias e o Tratado da União Européia em uma constituição material. Ao longo dos anos, o Parlamento Europeu sempre apresentou projetos de criação formal de uma constituição, porém sempre houve o bloqueio dos Estados. O Tratado da União Européia é um tratado de direito internacional, pois foi oriundo de um acordo de vontades entre os Estados europeus produzindo efeitos jurídicos e regidos em alguns aspectos por normas de direito internacional.

Diante das propostas fracassadas de constituição européia em

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sentido formal é necessário saber se a União necessita de uma cons-tituição formal e instrumental. Desde a década de 80 o Parlamento Europeu apresentou projetos de constituição européia, sendo que o primeiro projeto foi o Tratado da União Européia mais conhecido como Tratado Spinelli, que, segundo alguns, possui esse caráter cons-titucional.

A constituição somente entraria em vigor quando os Estados que representassem quatro quintos da população a ratificasse. No sé-culo XXI, mais precisamente em 12 de maio de 2000 a problemática da possibilidade de uma constituição européia foi novamente retoma-da por intermédio do discurso do Ministro dos Negócios Estrangei-ros alemão Joschka Fischer.

Em 2000 foi instituído o Tratado de Nice que debateu as seguintes questões relacionadas na luta pelo poder dentro da União entre os Estados pequenos e médios como: a composição da Comis-são, a ponderação de votos e as regras de votação no seio do Conselho, questões em aberto desde o Tratado de Maastricht. No Tratado de Nice foi introduzida a declaração de n. 23 tratando de questões como a delimitação da competência entre os Estados Membros e a União Européia, respeitando princípio da subsidiariedade, a simplificação dos Tratados.

Em 15 de dezembro de 2001 o Conselho Europeu de Laeken encarregou a convenção européia sobre o futuro da Europa formulan-do propostas visando: “a aproximação dos cidadãos do projecto (sic) europeu e das instituições européias; a estruturação da vida política e do espaço político europeu numa União alargada; a consagração da União num factor de estabilização e numa referência na nova ordem

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(...)”. (MARTINS, 2004, p. 29)O projeto de Constituição Européia é dominado em grande

medida pelos Estados na qual é necessária a adoção de uma regra de unanimidade, sendo necessário a ratificação dos Estados e está bem longe do ideal de democracia representativa na qual os seus represen-tantes devem estar mais próximos dos seus representados na tomada de decisões políticas, devendo nesse processo haver uma participação mais ativa dos cidadãos e não somente de seus órgãos representativos.

Nesse passo, foi criado um grupo que se autodenominou Convenção na qual tentou uma maior aproximação entre os cidadãos da União e originou a Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia com o objetivo de tornar visíveis os direitos já existentes, proteger os cidadãos e trazer segurança jurídica. Essa Carta se baseou na Convenção Européia de Direitos do Homem no que tange aos direitos civis e políticos, no próprio tratado no que tange aos direitos dos cidadãos, a Carta Comunitária de Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores de 1989 e a Carta Social Européia no que tange aos direitos sociais.

No dia 01 de março de 2002, a Convenção sobre o Futuro da Europa iniciou os seus trabalhos que foi dividido em três fases na qual a primeira foi a de audições na qual poderiam participar os membros da convenção e também da sociedade civil, a segunda foi a fase do exame na qual foram formados grupos de discussão e a terceira fase foi de propostas na qual foram discutidos projetos concretos de revi-são dos tratados no inicio de 2003.

O projeto de constituição para a Europa não se enquadrou apenas na questão da revisão dos Tratados e sim da manifestação de

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um poder constituinte originário. Esse ponto é bastante enigmático, ou seja, a fronteira entre o poder de revisão e o poder de criação ori-ginária. O uso do termo constituição tenta trazer o debate do plano internacional para o plano constitucional.

O projeto de constituição européia tenta redefinir a União Européia em relação às estruturas de sua base de legitimidade. No artigo primeiro do projeto há o estabelecimento da União dotada de personalidade jurídica, com uma estrutura unitária e a sua base de legitimidade.

Como a União se compõe de Estados e cidadãos, a sua fonte de legitimidade deve se originar dos Estados e também dos cidadãos, destacando a composição dos órgãos nos quais ambos Estados e cida-dãos devem estar representados.

O projeto de constituição européia consagra a cláusula de so-lidariedade no seu artigo 42 na qual estabelece que “a União se com-promete a mobilizar todos os instrumentos ao seu dispor, incluindo os meios disponibilizados pelos Estados membros, no caso de um deles ser alvo de um ataque terrorista ou de uma catástrofe de origem natural ou de origem humana”. (MARTINS, 2004, p. 83)

Cabe ressaltar que a vida democrática da União Européia nos termos do projeto de constituição européia admite várias formas de concretização como: a) o princípio da igualdade no sentido da União tomar medidas de combate à discriminação em virtude do sexo, raça, etnia, religião, crença, deficiência, idade, ou orientação sexual; b) o princípio da democracia representativa na qual os cidadãos devem eleger os seus órgãos decisores, controlar os governantes e também participar da adoção de certas decisões políticas; c) o princípio da

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democracia participativa previsto no artigo 46 do projeto na qual confere ampla participação da sociedade civil e das organizações re-presentativas da União Européia; d) a criação de partidos políticos europeus; e) parceiros sociais; f ) o Provedor de Justiça Europeu, uma espécie de ouvidoria encarregada de receber críticas relativas ao caso de má administração; g) o Estatuto das igrejas e das organizações não confessionais.

Contudo, o projeto de constituição européia infelizmente não foi ratificado por todos os países sendo transformado em um novo Tratado da União Européia, o Tratado de Lisboa no ano de 2009. As dificuldades de aprovação do projeto serão analisadas no presente estudo.

a europa necessita de uma Constituição?

A possibilidade da existência de uma Constituição Européia

possui déficites que se prende em especial no que tange à legitimação do projeto comunitário, bem como diante da necessidade da aceitação e do consenso de todas as nações envolvidas.

O que chama a atenção é na União Européia é como a econo-mia, a política e o direito se efetiva junto com a questão cultural, pois o processo supranacional europeu está alicerçado em adesões espon-tâneas e não em imposições.

Um fator que causou dificuldades quanto à ratificação em al-guns Estados membros foram incompatibilidades do projeto de cons-tituição européia com normas constitucionais internas dos países e o receio de que uma possível constituição pudesse afetar a sua soberania.

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Além disso, a União Européia é formada por comunidades muito complexas que geraram a heterogeneidade aprofundando a atuação da União Européia para além dos aspectos econômicos.

O caráter unitário da União iria permitir uma melhor afirma-ção internacional, respeitando também a soberania dos Estados e o princípio da atribuição constitucional de competências, o princípio da subsidiariedade bem como das competências residuais dos Estados.

No ambiente comunitário não são ignoradas as atividades que devam estar sob a responsabilidade dos Estados menores, sendo assim, deve ser reconhecido um ente supranacional que tenha por objetivo a realização de metas comuns.

Há quem diga que os Estados europeus alcançaram o consen-so sobre um rol de valores inspirados na dignidade da pessoa humana, criando círculos de consenso no interior dos países, que culminaram em um ente supranacional e por fim, a atuação dos Tribunais Cons-titucionais.

Contudo, a idéia de déficit democrático decorre do modo de surgimento da União Européia, através da associação entre os Esta-dos, e também da própria estrutura institucional da União Européia tendo em vista que há a necessidade de uma participação mais efetiva dos Estados membros além de meras consultas esporádicas às popu-lações.

Conforme já analisado anteriormente a União Européia pos-sui órgãos considerados de direção política como os conselhos, órgãos de direção, decisão e execução como o Parlamento Europeu, órgãos de controle como o Tribunal de Contas e órgãos auxiliares.

Verifica-se o déficit democrático quando não há a possibilida-

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de do cidadão refletir e deliberar sobre certa questão muitas vezes de estrema importância para o seu Estado. Pode-se verificar tal situação com o Parlamento Europeu, pois apesar de ser um órgão comunitá-rio democrático por ser eleito pelos cidadãos dos estados membros da União Européia o Parlamento continua desprovido de capacidade decisória plena tendo em vista que sua atuação em questões cruciais é restrita ou até mesmo consultiva com pouco caráter decisório. Tal situação também pode ser vista no Conselho da União Européia.

Portanto, o principal desafio dessa constelação pós nacional, mais precisamente, da efetividade e da implementação de uma Cons-tituição Européia estaria na dificuldade da passagem da dimensão material para a dimensão popular, ou seja, seria a questão da existên-cia de legitimidade.

Jürgen Habermas ao analisar o modelo europeu se focou em dois aspectos que são os cidadãos e a relação dos cidadãos com a Eu-ropa. Para que os cidadãos associados possam regular democratica-mente o seu convívio em sociedade e efetivamente exercer influência política, para Habermas, teriam que ser preenchidos alguns requisi-tos: a) a existência de um aparelho político competente para auxiliar na implementação de decisões obrigatórias que atinjam a sociedade; b) o caráter auto – referencial da autodeterminação e da auto – in-fluenciação política do sujeito coletivo de maneira clara e definida, passando a ser possível a atribuição de teor obrigatório nas decisões coletivas; c) a existência de uma coletividade de cidadãos que estejam aptos a participarem dos processos de formação política da opinião e da vontade em benefício do bem – estar comum, sem perder de vista uma administração democraticamente programada que consi-

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ga produzir serviços de organização e de direcionamento legítimos. (HABERMAS, 2003, p. 105).

Nesse passo, haveria um déficit de representação, pois, segun-do Habermas não estaria mais existindo uma correspondência entre os círculos, ou seja, os círculos dos que decidem que são formados pelos responsáveis na tomada de decisões não estariam em conformi-dade com o círculo daqueles que sofrem com as decisões, ou seja, com aqueles que são atingidos por elas.

Consoante Habermas, a simples criação de instituições polí-ticos como os organismos de Bruxelas, a Corte Suprema Européia e o Banco Central não implicariam em um fortalecimento da política. Nesse sentido, aqueles que pretendem fazer da Europa uma federa-ção visam a uma transformação dos atuais contratos internacionais, que passariam a formar uma Constituição política capaz de assegurar uma base de legitimação.

Portanto, é necessária a abertura dos canais de participação de maneira que a integração da comunidade européia não seja apenas no plano econômico e sim no âmbito político através de uma intercomu-nicabilidade semelhante ao que ocorre na esfera econômica.

Segundo Francisco Lucas Pires “por um lado, problematizase, como se faz habitualmente, a inexistência de ‘um povo europeu’, de verdadeiros ‘partidos políticos supranacionais’ ou de uma ‘língua co-mum’.” (LUCAS PIRES, 1997, p. 65)

Questiona-se, portanto, a existência de uma democracia nacional e uma democracia européia, sobre a possibilidade de uma continuidade e de uma autonomia recíproca. Tal situação se torna problemática diante da passagem da legitimidade tecnológica e de-

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mocrática, ou seja, diante, da colisão entre a tecnologia e a democra-cia, tendo em vista que a própria democracia nacional necessita de uma catalisação de seus impulsos democráticos.

Nesse passo, a dificuldade encontra-se no processo de inte-gração européia em conciliar o plano nacional e o plano europeu, sen-do necessário, além das fronteiras pós nacionais do próprio povo, a necessidade de adaptação das próprias constituições nacionais.

Um aspecto preocupante na União Européia são os assuntos regulados através das negociações interestatais, pois, geralmente lhes falta uma formação democrática discursiva que são dependentes das arenas nacionais. Uma das soluções apontadas por Habermas é a for-mação de espaços públicos europeus que proporcionaria um embate conjunto de processos institucionalizados de deliberação, de decisão, da produção de opinião em nível de sociedade global de maneira a permitir que os cidadãos reflitam, debatam e se posicionem diante de temas controversos. A integração dependeria de uma cultura política partilhada por todos os cidadãos. (HABERMAS, 2003, p. 120).

Segundo Habermas “a União Européia apresenta-se como um megaespaço continental, densamente interconectado pelo merca-do e pouco regulado verticalmente por aparelhos político – adminis-trativos legitimados para tal.” (Idem, p. 117)

Cabe destacar que a União Européia já abriu as suas fronteiras internas com o GATT, com a articulação entre empresas, universida-des e outras instituições da sociedade civil. O ideal é que a sociedade de informação (LUCAS PIRES, 1997, p. 69) também se transforme em uma sociedade de cidadania.

Por isso, a idéia de democracia está atrelada à construção eu-

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ropéia e à constituição européia, havendo níveis de compartilhamento de soberania, envolvendo simultaneamente os parlamentos nacionais e o parlamento europeu.

Verifica-se, portanto, a falta de transparência do processo de-cisório da União Européia de maneira a dificultar a própria integra-ção entre os cidadãos, gerando um desequilíbrio entre a integração econômica, ou seja, o mercado único e o poder das instituições de-mocráticas da União, dificultando a formação de um espaço público.

A redução desse déficite democrático é um dos grandes obje-tivos da União Européia. Essa questão mostra outra necessidade: uma constituição institucional e funcional, ou seja, unânime, uma Consti-tuição Européia.

Seria a transformação das conquistas do Estado nacional eu-ropeu para um outro aspecto ultrapassando as fronteiras nacionais.

É necessária uma reforma que discuta em todas as dimen-sões os problemas institucionais para que haja um aprofundamento e alargamento da união e uma paridade dos direitos dos pequenos e grandes Estados. Seria importante não somente uma reponderação de votos dos Estados do Conselho e sim um consenso mais direto dos “cidadãos europeus” (LUCAS PIRES, 1997, p. 74), que são os sujeitos e os destinatários diretos das decisões tomadas pela União Européia.

A debilidade estaria relacionada com a ausência de um poder constituinte genuíno, tendo em vista que as normas comunitárias são constituídas através de um acordo consensual, mesmo não unânime.

Há a falta da identificação de um povo, de um território e da soberania diante da complexidade social que é mutante, temporal por excelência, além de ser um conceito extremamente aberto.

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Além disso, existem aqueles que alegam que a ausência de personalidade jurídica da União Européia como causa da falta de re-presentação unitária, completa.

Consoante Francisco Lucas Pires “esta personalidade jurídica parece assim depender tanto ou mais do seu reconhecimento inter-nacional do que de uma explicitação prévia e formal”. (Idem, p. 79).

Ainda é alvo de críticas a indefinição sobre a natureza jurídi-co – política da União Européia que, segundo Francisco Lucas Pires

(1997, p. 85), está baseada em três paradigmas clássicos: Estado Fe-deral (integração perfeita) Confederação ou Organização Interestatal (cooperação pura) e Organização Internacional de caráter suprana-cional (posição intermédia).

Vale destacar que se fala em união não somente de Estados e sim de povos, pois é necessária uma legitimação democrática que seja independente de uma legitimação por intermédio dos Estados.

Francisco Lucas Pires assume a sua preferência pela idéia de federação tendo em vista que “a distinção principal entre Associação e Federação de Estados consiste em aceitar ou não a possibilidade de uma verdadeira ‘democracia européia’”. Para o autor, a associação de Estados implica na autorização do exercício dos poderes soberanos. (Idem, p. 95)

Materialmente falando, a Constituição européia existe há muito tempo diante da existência dos tratados instituidores e de suas respectivas atualizações.

Portanto, o que prevalece é a fórmula confederal, ou seja, a regra da unanimidade, da integração, pois se passarmos para o federa-lismo será necessário a criação de uma nova entidade que seja gerida

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pelos órgãos centrais da federação, porém no momento o clima não é propício para o modelo federal.

É necessário verificar no pensamento de Jürgen Habermas se a Europa necessita de uma Constituição. Para isso Habermas apre-senta o seguinte diagnóstico:

Alguns entendem que, inexistindo juridicamente um povo europeu a aspiração de alguns federalistas radicais não seria realista. Contudo, Habermas (2004, p. 183) rebate essa afirmação dizendo que enquanto não existir um povo europeu suficientemente homogêneo, com vontade comum e com o objetivo de realmente formar uma von-tade política não deverá haver uma Constituição Européia. Portanto, não se poderia falar em Constituição uma vez que inexistiria um povo europeu.

Nesse passo, a União Européia, além de órgãos decisórios, ne-cessita de uma legitimação de ordem material de maneira a afastar o déficit democrático existente.

Além disso, apesar de existir o reconhecimento de uma cole-tividade de cidadãos europeus, ao conceber a união como uma asso-ciação de Estados é como se houvesse uma autorização para o exercí-cio dos poderes soberanos dada pela União Européia à Constituições Nacionais e aos Parlamentos Nacionais. A tese que defende a federa-ção pressupõe a necessidade da democracia européia se autolegitimar, ou seja, se legitimar em si mesma.

Ressalta-se que a unidade e autonomia de uma comunidade democrática dependem mais de sua capacidade de integração do es-paço e da população do que de entidades preexistentes. Nesse sentido, a União Européia poderia ter um projeto político de unidade.

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No que tange á soberania as duas esferas, tanto a comunitária quanto a nacional, são autônomas, porém podem ser olhadas de uma forma conciliada, de uma forma cooperativa e não contraditórias e nem sequer competitivas em relação ao mesmo objeto.

A Constituição Nacional teria uma relação estruturalmente diferente da do direito internacional e do direito europeu, pois este é uma ordem própria que se impõe sem qualquer intermediação.

Segundo Francisco Lucas Pires (1997, p. 114) “Pelo contrário, ela é orientada, permanente e sistematicamente, em função do objec-tivo que é a “união européia” em si mesma. Mais do que “abertura”, os conceitos em causa implicam uma “adesão” positiva...”

Para Portugal, a existência de uma constituição européia representaria um fator de equilíbrio e dinamismo de Constituição portuguesa na qual introduziria um dialogismo de lei fundamental portuguesa com a entidade constitucional européia.

A abertura do direito constitucional português à união eu-ropéia ocorreu em 1976, primeiramente por questões econômicas. Diante dos períodos de estabilização houve uma mudança consti-tucional leve, informal e contínua, na qual, diante dessa abertura o direito europeu, tornou-se um fator de equilíbrio e de dinamismo do constitucionalismo português.

Nesse sentido, é cabível a existência de uma Constituição Européia, porém os princípios e as estruturas das Constituições Na-cionais que implicam no respeito às identidades locais devem ser res-peitadas, sendo o direito constitucional europeu um prolongamento, uma continuidade do direito nacional.

Porém, infelizmente nem os governos e nem os povos euro-

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peus estão preparados na construção de uma Constituição em sentido próprio e nem a formação de um Estado Europeu que concentre as decisões.

A integração deve ser conduzida como um meio de desen-volvimento econômico e social com o escopo de propiciar a melhora na qualidade de vida, o estreitamento das relações pacíficas entre os povos. Porém, alguns incrédulos não acreditam que é por intermédio do discenso que se alcança o consenso, ou seja, a possibilidade da exis-tência de uma Constituição Européia deveria ter sido analisada com outros olhos pelos países membros da União Européia.

A noção de povo para Jürgen Habermas não é restrita somen-te ao âmbito do Estado, e sim ao reconhecimento do pluralismo, do multiculturalismo e sua autocompreensão entre os Estados, de ma-neira a haver o reconhecimento ético e político de uma idéia de uma coletividade que esteja direcionada na “institucionalização jurídica de uma comunicação” entre os cidadãos, na qual, a identidade européia seria uma unidade na pluralidade.

As dificuldades para atingir consensos são inúmeras, pois há tradições constitucionais muito diferentes entre os Estados membros no que tange à forma de e encarar a proteção dos direitos fundamentais.

Por fim, Habermas (2003, p. 305) defende que “O estado de cidadão do mundo deixou de ser uma simples quimera, mesmo que ainda estejamos muito longe de atingi-lo. A cidadania em nível na-cional e a cidadania em nível mundial formam um continun cujos contornos podem ser vislumbrados no horizonte.”

Entretanto, lamentavelmente quando o tema é Constituição não há coesão entre os países membros da União Européia e diante

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da impossibilidade de uma Constituição a única saída que restou foi a elaboração de um novo tratado da União Européia.

Essa situação se justifica no sentido de que o voto contrá-rio ao Tratado Constitucional representaria também o voto contra os alargamentos do bloco, pois o ingresso de novos membros poderia afetar o nível de emprego e a ampliação dos gastos sociais.

Devido o tema Constituição Européia ocasionar o confronto de posições diferentes e inconciliáveis uma séria de lideranças eu-ropéias notou que a proposta de um outro tratado mais curto teria talvez conseguido angariar apoio maior e aprovação sem a realização dos referendos. E isso ocorreu, pois em 13 de dezembro de 2007 foi assinado o Tratado de Lisboa ou Tratado de Reforma Institucional da União Européia que substituiu a fracassada Constituição Européia.

ConsiDerações Finais

Como analisado, o processo de integração européia há muito tempo vem sendo questionado diante do seu expressivo “déficit” de-mocrático em dilemas como a elaboração de uma Constituição Eu-ropéia no que tange à participação popular do povo europeu, ou seja, da população que integra a União Européia e na condução da própria política externa.

Tal situação ocorre porque os seus membros não são eleitos diretamente pela população e também diante do fato de que há certa distância entre os avanços jurídicos, econômicos e institucionais e as populações regionais.

Nesse passo, o ideal a ser atingido passa a ser fundamentado

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no ideal de cooperação entre os Estados e a proteção da pessoa huma-na, independente de culturalismos e de regionalismos.

Portanto, busca-se uma cidadania única baseada em uma identidade coletiva regional baseada no respeito ao pluralismo, ao multiculturalismo e a democracia. Nesse passo, passa a ser necessá-rio a consolidação da legitimidade de convivência dessa pluralidade, respeitando os regionalismos e quebrando as barreiras da intolerância diante de práticas racistas e xenófobas2.

O problema passa a ser a resistência regional e das nações à integração com base nas ideologias e até mesmo no desrespeito ao pluralismo e à democracia.

É necessário, portanto, a consolidação de uma identidade única européia e uma cidadania que seja legitimada pela participação popular.

Conforme estudado a integração legal, jurídica é uma mola propulsora para a integração política e nesse sentido, é de extrema importância o papel da Corte de Justiça européia ao alargar os po-deres do Conselho Europeu criando, de certa maneira, um direito comunitário.

Uma Constituição, portanto, apesar da proposta ser rejeitada

2 Tal situação pode ser verificada recentemente na França na qual o governo des-mantelou acampamentos de ciganos romenos que viviam de forma irregular e os ex-pulsou do país em 19 de agosto de 2010. A regra é que seriam expulsos aqueles que não estivessem exercendo atividade laborativa, porém as leis trabalhistas do país são tão rígidas que inibem o acesso dos ciganos ao mercado de trabalho. Além disso, o governo associou a imigração com a criminalidade, utilizando como argumento para a expulsão em massa dos ciganos romenos. Houve crítica mundial e da Organização das Nações Unidas que classificou como prática xenófoba e racista no contexto da crise econômica pela qual passa o país.

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por algumas nações, representaria um meio para a construção de uma identidade coletiva pautada na valorização e integração civil e jurídica garantindo regras claras e comuns a todos, respeitando as diferenças culturais e regionais.

É fundamental a existência de uma Constituição na União Européia visa fortalecer os laços de convivência entre os povos dos Estados membros, propondo uma unidade e uma integração legal da Europa.

Contudo, conforme foi estudado, diante dos bloqueios, das recusas de integração por parte dos países, fracassou a proposta de uma Constituição Européia e entrou em vigor o Tratado de Lisboa assinado em 13 de dezembro de 2007, com suas alterações a partir de 2009.

Infelizmente, a recusa à integração de algumas nações predo-minou e por esperamos que o Tratado realizado venha a realmente a suprir as necessidades da população européia ou que pelo menos seja o caminho para o fortalecimento da União Européia.

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transFUsão De sanGUe: DiGniDaDe e aUtonoMia Dos reLiGiosos testeMUnHas De JeoVÁ

Vinicius de Paula Rezende1

resumo

Este estudo analisa se a dignidade e a liberdade dos religiosos, denominados testemunhas de Jeová, possuem imbricação com a au-tonomia dos mesmos, quanto à escolha de tratamento médico. Deste modo, visa-se relatar a conceituação formal de direitos fundamentais, bem como, delimitar suas características essenciais. Ademais, consti-tui objetivo desta pesquisa a compreensão da recusa à transfusão de sangue por mencionados religiosos, sob a ótica dos juízos integrantes da máxima da razoabilidade, consistentes nos juízos de adequação, de necessidade e de razoabilidade stricto sensu. A metodologia desenvol-vida consiste na pesquisa teórica ou bibliográfica, a qual se sustenta por intermédio do levantamento bibliográfico feito para se obter pa-râmetros objetivos de interpretação razoável. Deste modo, utilizou-se o método dedutivo em razão de se considerar premissas universais (não existe ser humano que possua menos dignidade e liberdade que outro) com o escopo de se alcançar assertivas singulares (o religioso testemunha de Jeová possui dignitas na mesma proporção das demais

1 Estudante do mestrado em Direito Público da Faculdade de Direito Prof. Jacy de Assis da Universidade Federal de Uberlândia. Professor da UNIPAC, Campus Araguari, [email protected]

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pessoas de direito). Por derradeiro, conclui-se pela existência de di-reito de autonomia de transfusão de sangue, desde que respeitados os critérios jus-filosóficos da igualdade, democracia, paz e debilidade.

Palavras-chaves: Direitos fundamentais. Dignidade da pessoa hu-mana. Autonomia do paciente.

abstract

This study examines whether the dignity and freedom of reli-gion, known as Jehovah’s Witnesses, have overlapping with the same autonomy as to the choice of medical treatment. Thus, the aim is to report the formal concept of fundamental rights, as well as define their essential characteristics. Moreover, objective of this research is to understand the refusal of blood transfusions for religious men-tioned, from the perspective of members of the highest judgments of reasonableness, consistent in judgments of appropriateness, necessity and reasonableness in the strict sense. The methodology consists of theoretical research and literature, which is supported through the literature review done to obtain objective parameters of reasonable interpretation. Thus, we used the deductive method due to be con-sidered universal premises (there is no human being with less dignity and freedom than others) with the aim of achieving assertive indi-viduals (the Jehovah’s Witness religion has the same proportion of dignitas others of law). For the last, we conclude the existence of a right of autonomy of blood transfusion, provided they comply with jus-philosophical criteria of equality, democracy, peace and weakness.

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Keywords: Fundamental Rights. Human dignity. Patient’s autonomy.

introDUção

A problematização desta pesquisa repousa no suposto conflito entre o direito à vida e os valores de dignidade e liberdade de escolha à tratamento médico. Deste modo, a busca pelo entendimento do as-sunto advém da persecução de duas etapas. A primeira se desenvolve nos itens seguintes, por meio de pesquisa teórica, tendo em vista que se funda na concepção doutrinária e objetiva demonstrar as contribuições da Ciência Jurídica para a discussão sobre o direito à vida, bem como, os valores de dignidade e liberdade humanas. Neste diapasão, procede-se ao resgate ideológico do assunto, com fulcro nas noções constitucionais, sobretudo, difundidas por Luigi Ferrajoli e Juan Cianciardo.

A pesquisa se destina a alcançar uma dedução lógica, não apenas por aclarar ou reproduzir teorias dos direitos inatos à huma-nidade, visto que a singela dedução não é suficiente para averiguar veracidade dos fatos. Assim, este estudo pretende, por meio de pre-missas universais (critérios e máximas), alcançar conclusões particula-res (legalidade ou ilicitude na recusa de transfusão de sangue). Neste sentido, o trabalho explica o conteúdo das premissas e estas premissas sustentarão o futuro desfecho, considerando-se que os casos particu-lares são dedutíveis de princípios gerais. Enfim, busca-se demonstrar que um acontecimento especial subordina-se a uma lei geral.

A segunda fase desta pesquisa desenvolver-se-á, tão logo, o Conselho de Ética da Universidade Federal de Uberlândia aprove os questionários que serão propostos aos entrevistados, a fim de se rea-

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lizar pesquisa de campo com os religiosos em questão. Neste futuro momento, a busca de dados na realidade social robustecerá o conteú-do teórico, tendo em vista que comparará os sentimentos e as expec-tativas dos testemunhas de Jeová quanto à utilização de sangue em transfusões. Logo, nesta etapa a posteriori observar-se-á a ocorrência de fatos jurídicos espontâneos no mundo do ser (mundo fático), sob o regramento do ordenamento jurídico brasileiro.

teoria geral dos direitos fundamentais na Carta Magna brasileira

A Constituição Federal brasileira de 1988 possui natureza polifacética, tendo em vista que contempla normas de conteúdo, fi-nalidade e origem substancialmente diversas que visam concretizar valores decorrentes de elementos estruturais. “Essas normas, geral-mente agrupadas em títulos, capítulos e seções, em função da cone-xão do conteúdo específico que as vincula, dão caráter polifacético às constituições [...].” (SILVA, 2000, p. 46.)

Esta pesquisa se preocupa com os elementos limitativos e, so-bretudo, com os elementos sócio-ideológicos da Lei Maior de 1988, tendo em vista que neles se encontram os direitos fundamentais e, em especial, os direitos sociais. Os elementos limitativos versam sobre os limites da atuação do Estado, restringindo a atividade do Estado, em razão de definirem direitos e garantias individuais (ex.: art. 5º). Os elementos sócio-ideológicos revelam o compromisso da ordem constitucional estabelecida com determinados princípios ideológicos do Estado (ex.: arts referentes aos direitos sociais da CF/88, dentre os quais se destaca o direito à saúde).

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Portanto, emprega-se a expressão direitos fundamentais, ten-do em vista que eles estão presentes no texto constitucional que re-gula os fundamentos da organização social e política do Estado bra-sileiro, bem como, porque mencionada locução, além de açambarcar direitos individuais, sociais, de nacionalidade e de cidadania, limita o presente estudo aos direitos protegidos pelo legislador constituinte. Diferenciam-se direitos fundamentais, direitos humanos e direitos naturais, haja vista que os primeiros são direitos dos seres humanos positivados na Constituição Federal, os segundo constituem direitos dos seres humanos assegurados nas normas internacionais, indepen-dentemente de previsão na ordem constitucional, que aspiram vali-dade e eficácia universais (direitos supra-positivos) e os terceiros são direitos preexistentes a ordem jurídica (pré-positivos)2.

Neste sentido, qualquer direito fundamental somente pode ser compreendido com a substituição do Estado absolutista ante a formação do Estado de Direito (Rechtssat) o qual, enquanto Estado de razão tipicamente burguês, consagra, além do princípio de legali-dade do positivismo teórico ou lógico, também o princípio de liber-

2 Deste modo, apresenta-se a formação dos direitos fundamentais, para comprovar sua historicidade. Na Idade Antiga, a filosofia estóica defendeu a unidade humana e a doutrina cristã pregou a igualdade dos homens advindos de um único Deus. Na Idade Média, advogou-se a idéia o valor humano inato em razão da dignidade e, neste caminho evolutivo, floresceu o jusnaturalismo que pugnou pelos direitos naturais. O iluminismo conduziu os homens a bradarem armas pelas liberdades públicas e, nos tempos modernos, a positivação dos direitos revelou-se uma conseqüência racio-nal. Os primeiros direitos positivados tinham caráter de estamentais, isto é, somente foram atribuídos a determinadas castas, entretanto, os privilégios se internaciona-lizaram, por intermédio das declarações universais, e alcançaram a esfera pública gradualmente, universalizando-se.

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dade formal. Nele impera a lei a fim de evitar as arbitrariedades do soberano. Este Estado derruba o monarca do trono e ergue em subs-tituição um altar onde se cultua a legalidade. No lugar do governo dos homens se estabelece o governo das leis. A Administração Pública adquire um limite e tão somente pode agir nos contornos da lei.

Todavia, somente o Estado Democrático institui o princípio do constitucionalismo, por meio do esvaziamento da função liberal da lei, como norma que sistematiza e ajusta o conflito entre autoridade e liberdade.  O princípio da constitucionalidade assegura o objetivo de unidade do ordenamento e essa unificação não pode ser feita de maneira hierárquica, mecânica e silogística, sob pena de retorno ao reducionismo meramente legalista.  Tal unidade somente revela-se possível tendo-se em conta a própria separação entre os distintos as-pectos que compõem os direitos do século XX: a separação entre di-reitos e lei. Na tradição francesa o direito legitima o poder legislativo. Na tradição americana, os direitos possuem primazia em relação à lei, em razão de serem anteriores ao poder legislativo.

A despeito do dissídio doutrinário sobre a pater-nidade dos direitos fundamentais, disputada entre Declaração de Direito do provo da Virgínia, de 1776, e a Declaração Francesa, de 1789, é a pri-meira que marca a transição dos direitos de liber-dade legais ingleses para os direitos fundamentais constitucionais. As declarações americanas incor-poraram virtualmente os direitos e liberdades já reconhecidos pelas suas antecessoras inglesas do século XVII, direitos estes que também tinham sido reconhecidos aos súditos das colônias ame-ricanas, com a nota distintiva de que, a despeito da virtual identidade de conteúdo, guardaram as características da universalidade e supremacia dos direitos naturais, sendo-lhes reconhecida eficácia

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inclusive em relação à representação popular, vin-culando, assim, todos os poderes públicos (SAR-LET, 2010, p. 43)

Nas sociedades pluralistas atuais a Constituição estabelece o projeto de vida das pessoas. Ele assinala que, na feição atual, a tarefa política primordial não se resume a estabelecer um projeto prede-terminado, mas, ao contrário, cumpre ao governo tornar efetivas as condições de vida em comum numa sociedade pluralista e multicul-tural. A Constituição revela-se como plataforma de partida, o que garante legitimidade para atuação dos setores sociais. Deste modo, é possível afirmar a existência de uma soberania da Constituição em substituição à soberania do Estado. A Lei Maior de 1988 prescreve um compromisso com as possibilidades e representa um centro para o qual tudo se converge. A Constituição consiste numa carta de ponde-ração, na qual coexistem direitos pluralistas. Portanto, a plenitude da vida exige moderação e na Carta Magna brasileira convivem diversos princípios, não se podendo aceitar normas absolutas.

Neste contexto, cumpre recordar que na órbita constitucional convivem direitos decorrentes do pensamente liberal de cunho indi-vidualista3, que surgiram para demarcarem a zona de intervenção do

3 Estes direitos podem ser elencados como direitos de resistência, correspondentes a expressão alemã abwehrrecht ou direitos de defesa ou direitos de status negati-vo, advindos da formação do Estado de Direito. As normas sobre estes direitos, pela perspectiva do Estado, representam uma competência negativa visto que limitam a atuação do Poder Público em razão da dimensão defensiva da dignidade da pessoa humana. Estes direitos proíbem a interferência do Estado nas decisões das pessoas e asseguram a resistência das pessoas face às condutas estatais, sendo que a inge-rência do Estado permite uma repulsa da pessoa natural ou jurídica, dotada do direito de liberdade.

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Estado, exigindo uma abstenção do Poder Público.

Eles “[...] têm por titular o indivíduo, são oponí-veis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico: enfim, são di-reitos de resistência ou de oposição perante o Es-tado.” (BONAVIDES, 2007, p. 564)

Os direitos sociais, econômicos e culturais surgiram com o escopo de assegurarem a justiça social, exigindo uma ação afirmativa do Poder Público para obtenção das liberdades materiais concretas. A liberdade perante o Estado e igualdade perante a lei (direitos for-mais) tornam-se liberdade e igualdade por intermédio do governo e das normas legais. Assim, estes valores asseguram “[...] um direito de participar do bem-estar social.” (LAFER, 1991, p. 127)

Os direitos sociais fizeram nascer a consciência de que tão importante quanto salvaguardar o indiví-duo, conforme ocorreria na concepção clássica dos direitos da liberdade, era proteger a instituição, uma realidade social muito mais rica e aberta à participação criativa e à valoração da personalida-de que o quadro tradicional da solidão individu-alista, onde se formara o culto liberal do homem abstrato e insulado, sem a densidade dos valores existenciais, aqueles que unicamente o social pro-porciona em toda a plenitude. (BONAVIDES, 2007, p. 565)

Os denominados direitos sociais ou direitos a prestação ou direitos de status positivo advém da formação do Estado Social, cuja missão precípua foi obter a igualdade substancial. As normas sobre estes direitos, pela perspectiva do Estado, representam uma compe-tência positiva visto que obrigam a atuação do Poder Público em ra-

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zão da dimensão prestacional da dignidade da pessoa humana4.Os direitos de solidariedade protegem os grupos humanos e

possuem como titulares pessoas indeterminadas, sendo decorrência de um desgaste dos direitos de oposição. Nesta terceira categoria, des-tacam-se os direitos políticos ou de status ativo, em razão dos quais o indivíduo pode participar da formação das decisões políticas e pode exigir a publicidade efetiva das deliberações tomadas. Estes direitos constituem os pilares que sustentam o Estado Democrático, consubs-tanciado na expressão “governo do povo, pelo povo e para o povo”. As normas relacionadas a estes direitos permitem que o cidadão influen-cie a esfera de atuação do Estado.

Neste diapasão, percebe-se que todo o sistema dos direitos fundamentais possui como horizontes os direitos de liberdade e os de justiça. O direito de liberdade se vincula aos direitos de resistência (direitos de defesa ou direitos negativos) visto que protege a livre von-tade das pessoas e os direitos lhe vinculados são ilimitados na relação entre particulares. O direito de justiça se vincula aos direitos refe-rentes à sobrevivência da humanidade atual e futura. Estes direitos de fraternidade integram a nova ordem globalizada (BONAVIDES, 2007, p. 571).

4 Estes direitos permitem que a pessoa exija do poder público uma atuação com a finalidade de melhorar as condições de existência digna e garantir meios materiais para o exercício da liberdade. Estas prestações estatais apresentam-se em duas mo-dalidades, sendo que a primeira ocorre quando o Estado oferece bens e serviços às pessoas que não podem adquiri-los no mercado e constitui-se como prestação mate-rial (ação fática positiva). A segunda espécie de prestação, consistente na prestação normativa (ação normativa positiva), ocorre quando o Estado cria os textos legais e reconstrói normas, por intermédio da interpretação.

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Sem a pretensão de esgotar todas as inferências possíveis da globalização na teoria geral dos direitos fundamentais, cumpre eluci-dar algumas de suas contribuições importantes para a ciência jurídica, dentre as quais estão a contemporaneidade das conclusões e o entre-laçamento do contexto histórico e realidade da sociedade globalizada. O direito e o Estado já não conseguem trilhar um caminho seguro para a garantia dos direitos fundamentais, que muitas vezes estão re-legados a último plano.

Desta forma, destacam-se como esteios da alteração do modo de relacionamento do homem com o mundo dois fenômenos históri-cos: o desenvolvimento de uma rede de transportes marítimos e ter-restres e o definitivo desenvolvimento de centros urbanos comerciais e industriais. A rede de transportes aparece como mecanismo eficien-te à transposição de aspectos geográficos tanto no sentido de facilitar a locomoção de pessoas como de intensificar as trocas comerciais5.

Por um processo natural, o camponês passou a ser consumi-dor dos bens produzidos na cidade. Este fato estabeleceu uma “[...] relação de constantes trocas e, por conseqüência, de múltiplas e recí-procas dependências” (COLEHO, 2003, p. 43). A burguesia, então, emerge como classe dominante dos meios de produção capitalista. Buscando sempre maior produção e produtividade, a burguesia valeu-

5 Indubitavelmente, o desenvolvimento das cidades materializa uma série de rela-ções comerciais e concede outra perspectiva ao campo, vez que este passa a depen-der dos instrumentos tecnológicos urbanos para produzir bens excedentes àqueles anteriormente utilizados tão somente para consumo de subsistência. Paulatinamente, o campo transmutou-se para atender às necessidades urbanas, assim como para adequar-se à nova realidade produtiva concentrada em aumentar os fluxos de co-mércio dos produtos do campo.

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-se do desenvolvimento tecnológico (surgimento da energia a vapor, do tear mecânico, da máquina de fiar, etc.) para introduzir a produção massificada de bens. A revolução industrial, coadunada à ideologia liberal legitimadora do discurso da burguesia industrial, encaixou-se perfeitamente na lógica de mercado desejada6.

Na esfera política, as interconexões entre economias mun-diais promovem a dispersão do poder político tipicamente estatal em diversos organismos financeiros nacionais e internacionais, que con-dicionam e interferem na adoção de políticas econômicas internas dos países. Reflete-se a questão política a partir de dois pensamentos: otimistas e céticos radicais. Para os otimistas, o Estado-nação abre espaço para um sistema mundial de trocas econômicas autoreguladas. Já os céticos defendem a existência do Estado-nação como resposta social-democrata à globalização.

A concentração de riquezas em poucos pólos econômicos en-sejou a proposição de um regime de governabilidade global, o qual envolve regulamentação de moedas, de movimentação de capitais e do comércio, bem como, preservação ambiental. Com este intento, a globalização da economia mundial pode, sem desvencilhar-se de seus objetivos lucrativos, estar a serviço da proteção dos direitos humanos7.

6 Deste modo, “[...] emergiu a ideologia liberal como discurso legitimador da burgue-sia industrial, a qual assumiu gradativamente o poder nas cidades. Afinal, detendo o poder econômico, pôde pouco a pouco organizar-se politicamente.” (COELHO, op. cit, p. 45)7 Note-se a ocorrência de uma crise do Estado como instituição política e do Estado de Direito como referência jurídico-política. Diante da sociedade globalizada e visan-do atender às demandas sociais, os Estados devem cumprir duas funções: organizar a economia e garantir a cidadania. Tais papéis exprimem a recomposição do Estado

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Neste diapasão, vislumbra-se uma grande contribuição trazi-da para a cultura científica ao se destacar que o Estado e os direitos fundamentais devem caminhar sempre juntos, de forma que estes não sejam deixados a cargo somente de organizações não-estatais e, ao contrário, sejam objeto de atuação direta de cada país e da sociedade internacional. Qualquer outro caminho que não seja rumo à proteção dos direitos fundamentais desvirtuaria a condição humana de exis-tência, visto que um cidadão é cidadão em qualquer parte do mundo.

axiologia do princípio da dignidade da pessoa humana na escolha de

tratamento médico

Neste diapasão, qualquer direito fundamental concebe-se como mecanismo jurídico e histórico, do qual emana um mandamen-to supremo e limitativo ao poder estatal em razão da preponderância da liberdade individual. Ademais, estes direitos são previstos nos dis-positivos constitucionais e dotados de normatividade constitucional, por conseguinte à interpretação que transforma o texto em normas. Desta maneira, os direitos possuem uma fundamentalidade formal por decorrerem de normas qualificadas pela supremacia constitucio-nal e porque suas restrições devem observar os limites formais e ma-teriais do art. 60 da Constituição Federal brasileira.

Ademais, eles são dotados de uma fundamentalidade material quando o alcance e a relevância social dos direitos forem demasiados,

e de seus objetivos, os quais devem estar atrelados à proteção dos direitos funda-mentais.

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independente de previsão na Lei Maior, o que acarreta um conceito formalmente aberto dos direitos fundamentais. Logo, é preciso des-mistificar a idéia segundo a qual direitos fundamentais consistem so-mente naqueles protegidos por cláusulas pétreas, bem como, mister entender que definir direito fundamental como preexiste à ordem jurídica não lhes garante proteção nem promoção.

Além desta dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, que os concebe como direitos subjetivos de resistência, de prestação ou políticos, também persiste uma dimensão objetiva que os revela como elementos fundamentais da sociedade. Sob esta óptica, os direi-tos fundamentais constituem valor jurídico previsto na Constituição e fornecem diretrizes para os poderes estatais agirem. Desta forma, as normas que os prescrevem são dotadas de imperatividade e eficácia, sobremodo, porque circundam o valor, o princípio e a regra da digni-dade da pessoa humana8.

Logo, a idéia de dignidade, como valor intrínseco ao ser hu-mano, remonta ao pensamento filosófico da Idade Clássica e à teoria do cristianismo. A dignitas (dignidade) se vincula-se com o status so-cial e com a qualidade distintiva do homem em relação aos demais animais. Todavia, foi Kant quem esclareceu o fundamento filosófico moderno da dignidade, a qual repousa na capacidade abstrata de auto-

8 A compreensão dos direitos fundamentais se revela complexo, porque o legislador infraconstitucional, em inúmeras situações, não atua para efetivar o texto constitu-cional. Assim, estes direitos possuem imbricação imediata com política e economia, o que enseja uma comprometida interpretação normativa. Por conseguinte à salutar introdução, para tratar-se de direitos fundamentais, ressalta-se a relação destes com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

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-determinação do ser humano, sendo que a Declaração Universal da ONU segue esta diretriz. Neste sentido, o homem possui dignidade e as coisas possuem preço. Portanto, o homem, em razão da dignidade, torna-se sujeito do direito e não pode ser concebido como objeto, isto é, a pessoa não pode ser “coisificada” ou se tornar um instrumento9.

Uma pessoa é um sujeito cujas ações lhe podem ser imputadas. A personalidade moral não é, portanto, mais do que a liberdade de um ser racional subme-tido a leis morais [...] Disto resulta que uma pes-soa não está sujeita a outras leis senão àquelas que atribui a si mesma (ou isoladamente ou, ao menos, juntamente com outros). (KANT, 2008, p. 65)

Na perspectiva jurídico-constitucional, a dignidade represen-ta uma cláusula em constante processo de construção e atualização e pode ser compreendida como atributo imprescindível para a condição humana. Assim, a dignidade não precisa ser reconhecida pelo direito, pois revela-se preexistente, embora este reconhecimento acarrete suas proteção e promoção. A dignidade possui uma perspectiva política, em razão de assegurar pluralidade de participação e igualdade de tra-tamento político, prestado pelo Estado, revelando-se a condição para se exercer a ação humana e não como uma das possíveis condições10.

9 É “[...] a permanência da concepção kantiana no sentido de que a dignidade da pessoa humana, esta (pessoa) considerada como fim, e não como meio, repudia toda e qualquer espécie de coisificação e instrumentalização do ser humano. (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 36. )10 A dignidade também possui um sentido cultural, revelando-se simultaneamente limite e dever do Estado e da comunidade em geral. Deste modo, a dignidade possui uma dupla dimensão: defensiva e prestacional. Na condição de instrumento de defe-

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Portanto, o Estado não cumpre sua função protetiva e de pro-moção da dignidade, se não respeita a liberdade e a autonomia das pessoas, se não assegura as condições mínimas de existência digna nem presta os direitos fundamentais sociais. Por conseqüência, neste Estado, o homem se torna objeto do direito e a dignidade não se apresenta como norma (princípio e valor)11.

Desta maneira, a dignidade, como valor fundante do Estado, torna-se o centro do sistema jurídico dos direitos fundamentais. O texto constitucional, ao ser interpretado, torna-se norma que impõem o respeito a dignidade e, por conseqüência, aos direitos fundamentais. Logo, a dignidade revela-se norma finalistíca e possui função com-plementar, em razão de contribuir para a solução de conflitos dentre os diversos critérios possíveis. Porém, a dignidade também revela-se como regra, haja vista que ela prescreve condutas de modo imperati-vo, no sentido de impedir o tratamento do ser humano como objeto do direito. Por derradeiro, a dignidade pode ser definida como pos-

sa do cidadão (limite do Poder Público) a dignidade não pode ser alienada e impõe restrições a atuação estatal. Na dimensão prestacional (tarefa da sociedade política), a dignidade exige uma atuação estatal que proteja, promova e que oferte a possibili-dade para todos exercerem sua dignidade. 11 Neste contexto, salienta-se que a Constituição Federal brasileira de 1988, na ge-ração da defesa dos direitos fundamentais, sobremaneira, os denominados sociais, prescreve, em seu artigo 1º, inciso III, que a dignidade da pessoa humana constitui um princípio fundamental, inovando a história do constitucionalismo nacional. Neste diapasão, o legislador constituinte determinou mandamento, segundo o qual existem fundamentos que embasam e informam todo o ordenamento jurídico e, sobretudo, que respaldam os direitos fundamentais, sendo a dignidade um destes princípios basilares. Desta maneira, reconhece-se que o Estado brasileiro existe em função das pessoas, sendo que sua finalidade precípua consiste em assegurar dignidade aos seres humanos.

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tulado normativo em razão de auxiliar a interpretação de normas de primeiro grau12.

Resta claro que a questão discutida vai bastante além do es-tatuto epistemológico da ciência do direito. A natureza dos conceitos da teoria do direito com relação aos conceitos da dogmática jurídica e da natureza dos conceitos da filosofia política da justiça coloca-se como de imprescindível discussão. Em termos de direitos fundamen-tais e epistemologia jurídica, este substrato da dignidade da pessoa humana constrói uma definição formal de direitos fundamentais, en-tendidos estes como direito universais e indisponíveis da pessoa física, do cidadão, do sujeito capaz de trabalhar.

Se trata de una tesis bastante comprometida, no sólo en el plano teórico sino también en el metate-órico, ya que aborda la añeja cuestión de la relación entre derecho y lógica y, al mismo tiempo, entre derecho y teoría del derecho. Así lo ha puesto de relieve Mario Jori quien, además, me formu-la una crítica: esta tesis no comporta un cambio de paradigma de la teoría kelseniana del derecho, sino que es sólo su perfeccionamiento crítico. Es-toy parcialmente de acuerdo, con dos precisiones. (FERRAJOLI, 2009, p. 180)

12 Neste sentido, insta ressaltar os pontos de contato da dignidade da pessoa hu-mana com os direitos fundamentais. Primeiro, ela legitima a ordem constitucional, representando início e fim dos direitos fundamentais como valor constitucional su-premo. Segundo, ela preenche de conteúdo os direitos fundamentais, sobremodo, por vincular-se a noção de autodeterminação ou autonomia pessoal. Terceiro, ela acar-reta uma transcendência dos direitos fundamentais em razão de permitir uma eterna construção do sentido jurídico e de impedir a restrição dos mesmos, sendo elemento e medida destes direitos. Quarto, ela impõem ao Estado a proteção, a promoção e a realização efetiva destes direitos fundamentais, especialmente, dos denominados direitos sociais, cuja natureza revela-se prestacional.

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A democracia substancial parte do jusnaturalismo e o cons-titucionalismo rígido confere um inevitável papel normativo à teo-ria dos direitos fundamentais. As antinomias e lacunas não podem ser eliminadas mediante simples interpretação sistemática, conforme dois tradicionais critérios de prevalência: 1º- das normas sucessivas em relação às precedentes e 2º- das normas especiais em relação às gerais. O maior respeito à dignidade situa-se no critério a ser utiliza-do para solucionar conflitos entre normas constitucionais que pres-creve o dever de o Estado garantir a vida e o direito de o paciente escolher seu tratamento médico.

Direito de autonomia de transfusão de sangue conforme critérios jus-

filosóficos da igualdade, democracia, paz e debilidade dos testemunhas

de Jeová

Desta maneira, mister se concentrar na abordagem sobre a conciliação dos conceitos de integração e diferenciação político--social, premente em alguns Estados crescentemente multiétnicos e com numerosas minorias diferenciadoras (no caso os testemunhas de Jeová), compostas por nacionalidades com reivindicações histó-ricas de autogoverno. Partindo da mutação ocorrida no conceito de Estado-nação, entende-se que a regeneração autêntica da democracia no novo contexto atual só será alcançada a partir de um modelo de cidadania plena.

Nesta proposta faz-se necessário desenhar um conceito de cidadania que permita aos grupos sociais desfavorecidos ou margina-lizados e às minorias étnicas, religiosas ou culturais, sua regeneração

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no Estado sem perder em virtude disso seus traços diferenciais pró-prios. Além disso, é preciso um conceito de cidadania que permita a integração diferenciada de tais minorias não só como indivíduos, mas também como grupos específicos.

Atualmente resulta clarividente o fracasso do conceito hege-mônico de cidadania integrada, com sua política sociocultural de in-tegração por homogeneização simples. Deste modo, defende-se que uma teoria adequada de cidadania precisa de um estudo dos processos de integração e de diferenciação sociocultural, que são extraordina-riamente complexos. As abordagens unilaterais de integração têm o condão de fixar somente um conceito insatisfatório de cidadania. De-ve-se buscar uma teoria acerca do complexo processo de integração--diferenciação sobre a identidade pessoal e grupal.

Diante deste espectro, emerge a teoria da cidadania múltipla como resultado de uma adequada educação multicultural, pressu-pondo um cubo de cidadania fundada em três variáveis fundamen-tais: elementos (identidade, virtude, legal/civil, político e social); nível geográfico (mundial, continental/regional, nação/Estado e local); e educação (educação cívica em conhecimentos, atitudes e habilidades).

Assim, dissertando-se acerca da conciliação de pertinência e participação, arrisca-se propor um novo conceito de cidadania com-plexa, o qual pode ser ilustrado mediante o jogo dialético dos con-ceitos de pertinência e de participação, que são chamados a entre-cruzar-se e complementar-se, mas que também podem produzir um descompasso nos âmbitos social e político caso não sejam adequada-mente conjugados.

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Sólo una ciudadanía compleja puede resolver sa-tisfactoriamente estas tensiones entre pertenencia y participación. En efecto, la ciudadanía comple-ja es la que atiende adecuadamente a una triple exigencia: a) iguales derechos fundamentales para todos […]; b) derechos diferenciales de todos os grupos, mayoría y minorías, que componen la es-tructura organizativa del Estado […] y c) condi-ciones mínimas de igualdad para la dialéctica o diálogo libre y abierto de los grupos sociocultura-les, lo que conlleva una política multicultural […]. (CARRACEDO, 2000, p. 28)

No que tange aos direitos fundamentais haver-se-á de preve-nir possíveis desajustes e até contradições que podem apresentar-se entre os mesmos. Procedida a esta interface alcança-se o sentido da política de reconhecimento e sua respectiva complementação dada pela política universalista, o que viabiliza a definição de um dos fa-tores primordiais que definem a dignidade da pessoa humana: cada indivíduo e cada povo possui uma personalidade cultural própria.

Por conseqüência, percebe-se que compete ao hermeneuta buscar o equilíbrio na aplicação das normas, sem olvidar que as regras constituem instrumentos de concretização das ponderações obtidas com os princípios. Nesta perspectiva, o sistema jurídico revela-se aber-to, sobretudo, pela eficácia horizontal dos direitos fundamentais sociais, a qual permite a modificação do sistema jurídico em razão da constante contextualização dos direitos fundamentais, não sendo razoável conce-ber o direito como estruturas submissas ao raciocínio lógico-dedutivo, tendo vista que a ordem jurídica deve ser funcionalizada.

Cumpre salientar que o texto legal constitui objeto da inter-pretação e que a norma consiste no resultado da interpretação, sendo, portanto, diversas as concepções de norma e de dispositivos legais.

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Deste modo, esclarece-se que o intérprete não se limita a descrever o significado dos dispositivos, tendo em vista que ele contribui para a elaboração da significação do texto legal. Enfim, o aplicador do direi-to promove a reconstrução do significado do texto e, nestes termos, pode-se afirmar que ele constrói normas. A função do juiz é sempre criadora, sendo que a ordem jurídica necessita da lei e do intérprete, ou seja, as normas não decorrem por si só dos textos legais, dependen-do necessariamente da interpretação do juiz.

Por conseguinte, ressalta-se que além das normas de primei-ro grau (princípios e regras) existem normas de segundo grau que consistem nos postulados. As primeiras possuem como objeto a in-terpretação e as secundas possuem como objeto a orientação da inter-pretação. Neste diapasão, os postulados estabelecem diretrizes metó-dicas que auxiliam o aplicador do direito e não são concebidos como normas que descrevem comportamentos (como as regras) nem como normas que estabelecem um dever-ser ideal (como os princípios).

Portanto, os princípios, enquanto normas, são dotados de eficá-cia jurídica. A eficácia interna pode ser direta, quando o princípio atua sem intermediação e exerce função integrativa, ou pode ser indireta, quando o princípio somente é aplicado em razão da interposição de regra ou de sub-princípio e, nesta situação, ele exerce a função de de-limitar as regras, a função interpretativa ou a função bloqueadora que afasta elementos incompatíveis com o estado de coisas pretendido13.

13 Os postulados se dividem em duas categorias: hermenêuticos ou aplicativos. Os primeiros se destinam a compreensão geral do direito e dentre eles se destaca o postulado da coerência, o qual relaciona as normas de primeiro grau com outras normas de primeiro grau superiores, acarretando uma sistematização do direito em

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Os princípios não são descritivos e proporcionam escolhas possíveis, sendo que a estas normas se adere, pois vinculam-se aos valores. Eles possuem uma função integrativa e corretiva das regras. Em resumo, qualquer máquina cumpre uma regra quando programada porque sua aplicação é au-tomática e mecânica. Ao contrário, um princípio somente pode ser aplicado em razão de raciocínios em conformidade com os fatos. (ZAGREBEL-SKY, 2009, p. 48)

Deste modo, conscientes de que as normas sobre direitos fun-damentais são principiológicas, mister compreender quatro critérios, enunciados por Luigi Ferrajoli, que podem ser identificados na defi-nição de quais direitos são fundamentais neste contexto da recusa à transfusão de sangue pelos religiosos testemunhas de Jeová.

O primeiro critério consiste para formação de uma defini-ção do que seja direito fundamental consiste no nexo deste conceito com igualdade. A igualdade de titularidade dos sujeitos dos direitos representa fator determinante. Se as pessoas são titulares das mesmas situações jurídicas, por consequência, são iguais. Portanto, a igualdade jurídica representa a igualdade conforme a lei. Os homens são iguais nos mesmos direitos e deveres, perante a lei na medida em que são titulares das mesmas situações jurídicas de modo universal.

O segundo critério repousa no nexo entre direitos fundamen-tais e democracia, sobremaneira, na sua dimensão substancial. Este critério deriva da definição formal. Somente as constituições demo-

razão de toda norma se fundamentar em outra superior. Diversamente, os postulados aplicativos se destinam a estruturar a aplicação concreta das normas de primeiro grau, sendo que desta modalidade destacam-se os postulados da razoabilidade e da proporcionalidade.

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cráticas asseguram direitos e promovem a separação dos poderes. Na democracia os direitos fundamentais representam limites e vínculos. A democracia formal se refere a “quem” e “como” decidem, sendo relevante para direitos civis e políticos. A democracia substancial se vincula ao “que” se decide (objeto do que é decidido), relevante para direitos de liberdade e sociais. Os direitos fundamentais, portanto, em razão de sua definição pela democracia, explicam a estrutura do Es-tado e de um núcleo indisponível de direitos conferidos às pessoas14.

O terceiro constitui no nexo com a paz, visto que desta de-corre a vida e tem como pressuposto a autodeterminação dos povos. A guerra estabelece uma constante instabilidade. A paz internacional deve ser vista como critério que marca dos direitos fundamentais. O quarto critério concebe-se como o nexo com a lei do mais débil, em razão do qual está protegido o mais fraco fisicamente num estado ho-bbesiano em relação ao mais forte fisicamente ou economicamente. A lei do mais débil impede o massacra das minorias. Deste modo, este critério se relaciona com o pluralismo social15.

14 A democracia sempre é política e a democracia constitucional que marca os direi-tos fundamentais, consiste em poder do povo para adotar decisão coletiva limitada, que pode suprimir limitar ou derrogar direitos. A democracia constitucional não pode ser chamada de liberal ou social porque a dimensão não é liberal ou social, mas vin-culada as decisões legislativas. Os direitos fundamentais são aqueles que atendem a todo o povo e não somente à maioria do povo. No entanto, não é preciso um consenso de todos com se verá em outro critério. O pacto constitucional sobre direitos funda-mentais funda-se na autonomia política.15 Portanto, desmistifica-se a existência de um universalismo cultural porque as culturas possuem no seu interior outras micro-culturas. Ademais, também não exis-te um principio de igualdade universal, haja vista que a história ensina a diferença natural das pessoas. Não se pode exigir, sob a justificativa de uma absoluta verdade, que pessoas sejam obrigadas a receberem material sanguíneo contra a sua vontade

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ConsiDerações Finais

Esta pesquisa valoriza, antes mesmo da concepção religiosa, a obediência cega ao binômio principiológico da razoabilidade e pro-porcionalidade, que se desmembra nos juízos da adequação, da ne-cessidade e da razoabilidade (proporcionalidade) stricto sensu16. Este princípio apresenta-se como o caminho para superar-se as disputas metodológicas dos conflitos jusfundamentais. Desta forma, a sua ple-na aplicação permite resolver os conflitos entre dever de assegurar a vida e direito de escolher o tratamento médico.

O juízo da adequação ou idoneidade revela-se exigido por uma medida legislativa necessariamente, a qual deve ter uma finali-dade adequada para alcançar seu êxito. Indaga-se, então, se incumbe aos juízes analisar a adequação de uma medida ou se a competência é exclusiva do legislador. Ressalta-se que a exigência de adequação vem acompanhada do controle de constitucionalidade lato sensu. Se

própria. A recusa ao tratamento médico com doação de sangue revela-se constitu-cional conforme estes critérios, haja vista que: 1- funda-se na igualdade dos religio-sos testemunhas de Jeová em escolherem como quaisquer outras pessoas a melhor forma de cura; 2- respeita a democracia por valorizar uma concepção religiosa que prefere outras formas de tratamento, como as produzidas pelo uso de medicamentos que estimulam o aumento do plasma do sangue do paciente e 3- protege o mais frágil, visto que os testemunhas de Jeová não representam a maioria da população brasileira e, em razão desta condição, devem ser respeitados em suas opções por tratamento médico ou pela recusa.16 “Hay acuerdo en definir la proporcionalidad en sentido amplio como una pres-cripcin en virtude de la cual toda intervención pública ha de ser: a) idônea; b) indis-pensable; y finalmente, c) proporcionada.” (CIANCIARDO, Juan. El conflictivismo em los derechos fundamentales. Navarra/Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, 2000, p. 288)

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os juízes devem controlar a constitucionalidade, podem e devem tam-bém examinar a adequação das leis aos fins constitucionais que se propõem17.

Em relação ao julgamento de necessidade, também chama-do de juízo de indispensabilidade, busca-se a medida adotada pelo legislador enquanto a menos restritiva das normas jusfundamentais dentre as igualmente eficazes. Neste caso, levantam-se três questões: a) a possibilidade do juízo de necessidade, b) o juízo de eficácia e c) a eleição da medida necessária. A eleição da medida necessária deter-mina a existência de vários meios igualmente adequados e eficazes - e/ou a existência de meios alternativos mais eficazes que o eleito - para o cumprimento do fim constitucional. A recusa à doação de sangue revela-se constitucional por ser a menos restritiva de todas, equacionando o grau de restringibilidade da medida adotada, ten-do em vista que existem tratamentos não invasivos que aumentam o plasma sanguíneo18.

17 No que concerne à profundidade do juízo de adequação, importa estabelecer se análise judicial de idoneidade deve ser técnico, ou seja, se os juízes devem examinar todos os impactos sociais da medida questionada para julgar se foi alcançada a fina-lidade que o legislador se propunha. A resposta exige ter em conta os mandatos con-trapostos para chegar a certo equilíbrio: de um lado, o controle de constitucionalida-de como imperativo constitucional, que poderá ser base suficiente para admitir que os juízes realizem juízos técnicos e, de outro, a declaração de inconstitucionalidade como ultima ratio do controle, que concilia a constitucionalidade em todos os casos duvidosos. Assim, a recusa à doação de sangue deve se vista como juízo adequado ante a constitucional permissão para liberdade de tratamento médico e em razão da autodeterminação quanto às opções religiosas.18 O sub-princípio da razoabilidade stricto sensu estabelece que a medida deve guardar uma relação razoável com fins legislativos. Não é possível uma aplicação do

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reFerÊnCias

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FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. 4. ed. Madri: Trotta, 2009.

princípio da razoabilidade sem valoração para o equilíbrio entre vantagens e des-vantagens. A imposição de doação de sangue resulta em maiores desvantagens que benefícios, porque o sangue jamais foi concebido em qualquer ramo da medicina como remédio que cura e concede vida. Enfim, a transfusão de sangue acarreta um aumento da circulação sanguínea e aumenta os batimentos cardíacos, mas não tem o poder de salvar a pessoa, porque esta quando doente somente é curada com medicação. Ademais, a transfusão nos testemunhas de Jeová eliminam a dignidade, ante suas crenças, não se podendo olvidar que toda ofensa a dignidade mata a hu-manidade que reside no homem.

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“neo x neo”: o papeL Da transnaCionaLização sinDiCaL nos DeBates teóriCos Das reLações

internaCionais na DÉCaDa De 1970

ESPÓSITO, Katiuscia Moreno Galhera1

resumo

O presente trabalho visa compreender e localizar historica-mente alguns debates acadêmicos das Relações Internacionais em torno do fenômeno da transnacionalização das relações de trabalho ocorridos a partir da década de 70.

Especificamente, o exame será realizado sobre a transnaciona-lização sindical, dentro de dois debates específicos: o (neo) realismo e o (neo) liberalismo, tendo como pano de fundo alguns acontecimen-tos memoráveis, como o descongelamento das relações Leste-Oeste sob a Guerra Fria, a Guerra do Vietnã, o Tratado de Não-Proliferação Nuclear, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo, Bretton Woods, os New Industrialized Countries (NICs) e a Comissão Eco-nômica para América Latina e Caribe (CEPAL).

Tendo abordado os dois paradigmas, em um segundo momen-to, sob os auspícios da literatura neoliberal, abordaremos algumas ques-tões que problematizam e enriquecem este debate: universalidade vs. relatividade; spillover vs. exclusão e soberania vs. intervencionismo.

1 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas – Unesp/Unicamp/PUC-SP. E-mail: [email protected]

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Ao final do artigo procuraremos demonstrar a efetiva inter-nacionalização das demandas de trabalhadores, via estudo de caso (BASF), ocorrida justamente no período em questão (década de 70).

O método utilizado será o indutivo. Partiremos da realidade concreta para formular conclusões que acreditamos parcialmente li-vres de preceitos prescritos.

Palavras-chave: Relações Internacionais. (neo) realismo. (neo) libe-ralismo. Sindicalismo. Anos 1970.

abstract

The article aims to understand and localize some historically academic debates of International Relations around the phenomenon of transnationalization of labor relations which occurred in the 70’s.

Specifically, the study is going to be placed on the unions’ transnationalization, in two specific debates: the (neo) realism and the (neo) liberalism, with the backdrop of some memorable events as the deténte of East-West relations in the Cold War, the Vietnam War, the Nuclear Non-Proliferation Treaty, the Organization of Pe-troleum Exporting Countries, Bretton Woods, the New Industria-lized Countries (NICs) and the Economic Commission for Latin America and the Caribbean.

Having addressed the two paradigms, at a second stage and under the auspices of neo-liberal literature, we are going to discuss some issues which enrich this debate: universality / relativity; spillover / exclusion and sovereignty / intervention.

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At the end of the article, we will try to demonstrate the effec-tive internationalization of the labor demands (BASF case), which occurred at the period (70’s).

The method used is inductive. Based on a real case, we will formulate conclusions that we believe free of formulated conclusions.

Key-words: International Relations.(neo) realism. (neo) liberalism. Unionism. The 70’s.

introDUção

A década de 70 apresentou-se como um marco para as Rela-ções Internacionais (RI). Acontecimentos desse período, como detén-te, Guerra do Vietnã, Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP) e a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), apenas para citarmos alguns, afetaram pessoas, instituições e países e refletem no cotidiano de diversos atores até os dias atuais.

Como de praxe, tendo em vista a dimensão dos fatos e suas consequências, esta década trouxe, para o debate acadêmico, novas e renovadas contribuições de duas conhecidas escolas teóricas: o Re-alismo (transformado em Realismo Clássico) e o Liberalismo (ou Idealismo). Reformuladas, tais correntes de pensamento se concre-tizariam no chamado Debate Racionalista, onde Neo-realistas (ou Realistas Estruturais) contrapunham suas idéias aos Neo-liberais, enriquecendo a produção intelectual na área. O “Primeiro Grande Debate”, realizado entre os “realistas modernos” (1939-1979) teve fim justamente nesta década, com a publicação da obra de Kenneth

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Waltz, “Theory of International Politics” (1979). As mudanças foram visíveis: se antes o Realismo, calcado na

visão estadocêntrica de processos e atores, se focava em premissas como raison d’état, segurança, sobrevivência, auto-ajuda, anarquia, in-teresse nacional e balança de poder, dentre outros, durante os anos 1970 tal arcabouço teórico parecia insuficiente para explicar o Sis-tema Internacional (SI), como veremos em pormenores no próximo item deste artigo. O próprio conceito de SI certamente sofreu nova reflexão por parte dos realistas clássicos, afinal, como explicar que or-ganizações afetassem países, como foi o caso da OPEP, e não o opos-to, como pregava o Realismo Clássico?

O Liberalismo, por sua vez, encontrava-se desacreditado nos meios acadêmicos por sua visão “idealista” de mundo: fé em uma mo-ral universal e em sua conseqüente cooperação guiada pelo individua-lismo livre e tolerante, SI ordenado, paz democrática, desenvolvimen-to, harmonia de interesses e autodeterminação dos povos eram temas ultrapassados e comprovadamente inócuos na prática. Contudo, a partir dos 70, o (neo) liberalismo ganha novos contornos, níveis de análise, metodologia, adeptos e premissas. Ressurge uma escola, agora reformulada e correspondente às demandas práticas das RI.

A transnacionalização do movimento sindical2 na forma em que a estudamos3 ocorre justamente a partir da década em questão e

2 Destacamos que sempre existiu, dentro do sindicalismo, movimento transnacio-nais, como a 1ª. Internacional Comunista, por exemplo. Outra demonstração do trans-nacionalismo sindical é o famigerado Manifesto Comunista: “operários do mundo, uni-vos!” Entretanto, o movimento sindical se organizou preponderantemente dentro de bases nacionais.3 Confederações Internacionais de Sindicatos, ou Global Union Federations.

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encontra seu arcabouço teórico, neste período, nos argumentos Neo--liberais. A própria cooperação entre classes traz em seu bojo um ter-mo fundamental – cooperação –, bem como dois atores fundamentais da relação capital-trabalho: as empresas (multinacionais) e os sindi-catos (internacionais), variáveis de análise impensáveis nos marcos do Realismo Clássico.

A escolha pelo debate na década de 70 foi devida a um fator--chave: o aumento da frequência de internacionalizações de empresas, fato que ocorreu a partir da década de 60, sendo mais intensa a partir dos anos em questão (COX, 1971, p. 559 e 563). A internacionaliza-ção de uma empresa leva à descentralização de sua cadeia produtiva e, assim como acontece no sistema Ohno de produção, a capacidade de organização dos trabalhadores e de respostas às estratégias empresa-riais tornam-se mais difícieis ou morosas. É este o quadro que muitos sindicalistas passam a enfrentar a partir dos anos 70.

Nota-se que nosso contexto histórico data de quatro séculos de distância. Nosso objetivo, neste artigo, não é explicar todas as mu-danças estruturais que ocorreram no mundo desde esta década até os dias atuais, mas pincelar alguns debates que possibilitaram a discus-são em torno da prática de transnacionalização de processos e atores, além de destacar outros debates em torno do tema. Para tanto, come-çaremos contextualizando quais fatos históricos tornaram o ambiente acadêmico propício para o debate sobre o transnacionalismo.

Ao final do artigo procuraremos demonstrar a efetiva inter-nacionalização das demandas de trabalhadores, via estudo de caso (BASF), ocorrida justamente no período em questão (década de 70).

O método utilizado será o indutivo. Partiremos da realidade

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concreta para formular conclusões que acreditamos parcialmente li-vres de preceitos prescritos.

Década de 1970: fatores-chave que contribuíram para a virada paradig-

mática do realismo Clássico para o Debate racionalista (neo-realismo

versus neo-liberalismo).

No começo da década de 70, alguns acontecimentos decisivos mostraram ao debate acadêmico nas Relações Internacionais que o pa-radigma Realista, como corrente, já não supria todas as necessidades te-óricas de explicação para nova configuração do Sistema Internacional.

Talvez o acontecimento mais significativo tenha sido o des-congelamento das relações Leste-Oeste, ainda sob a égide da Guerra Fria (GF). Na deténte as grandes potências ainda estavam negociando, principalmente, a questão da segurança. A segurança, entretanto, já não é entendida apenas como mera sobrevivência dos Estados.

Um exemplo claro da defasagem do militar como item provi-do apenas pelo Estado, entra em questionamento ao final da Guerra do Vietnã: os vietnamitas, de chinelos e aparato militar débil (isto é, sem os quilos de equipamentos ou a tecnologia militar provida pelo Estado) saíram vitoriosos da Guerra, ainda que haja controvérsias so-bre esta asserção.

A análise realista clássica de Morgenthau, que aborda o Esta-do como ator central nas relações internacionais, é débil para analisar a Guerra do Vietnã. O poderio militar estatal, se tomado como única variável de análise, torna-se igualmente um argumento frágil. Assim, no ano de 1971, em pleno conflito, o realismo se arrefece.

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Outro ponto está relacionado à Crise do Petróleo, suscitada pela OPEP:

(...) a inflação global da década de 1970 e do início dos anos 1980, causada por um aumento súbito e dramático nos preços do petróleo pelo cartel da Opep (...), relembrou quanto as interconexões da economia global podem ameaçar o bem-estar na-cional e pessoal em qualquer lugar do mundo. No caso do choque do petróleo de 1970, ficou nítido para inúmeros motoristas norte-americanos, eu-ropeus e japoneses - entre outros - que as polí-ticas econômicas do Oriente Médio e de outros importantes produtores de petróleo têm o poder de aumentar o preço da gasolina ou petróleo, re-duzindo seus padrões de vida. ( JACKSON e SO-RENSEN, 2007, p. 27).

Em outras palavras, o argumento de um SI com um único e forte país, como o defendera Aron, se mostrou, ao menos parcialmente, falacioso. Neste momento foram organizações ou países “mais fracos” que ditaram regras comerciais aos países dependentes de petróleo.

Some-se à Crise o fim do Bretton Woods e teremos, no cam-po econômico, questionamento no que concerne quem é o verdadeiro promotor do bem-estar social: os EUA e a Europa já não são Estados tão fortes.

O fim de Bretton Woods apresentou um variado espectro de fatos: em primeiro lugar, o fim do alinhamento da França aos Esta-dos Unidos, expressado pelas declarações de Charles de Gaule, repre-sentava também o fim da hegemonia norte-americana. Segundo, a Guerra do Vietnã e a crise da libra inglesa (1967) fizeram com que os países se voltassem aos seus problemas internos. Em terceiro lugar, o próprio regime de convertibilidade sofre crise.

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Essas questões expressam a fraqueza do Estado – em especial os EUA – como ente forte no SI. A robustez da economia estaduni-dense dá passagem à ascensão de novos países: surgem os Novos In-dustrializados (New Industrialized Countries – NICs) como o Brasil e o México, e os Tigres Asiáticos (Hong Kong, Cingapura, Coréia do Sul e Taiwan). Novamente aqui os debates estão relacionados a países que antes não eram destaque nas relações de poder, como Cuba e Leste Europeu.

Também surgem novos debates, “alternativos” ao mainstream realista. A CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e Caribe) foi uma iniciativa latino-americana de pensar o desenvolvi-mento latino-americano. Há, aqui, quebra com a visão estadunidense ou européia de como deveria funcionar o SI.

Aponta Theotônio dos Santos, utilizando-se inclusive de jar-guões neoliberais:

Uma relação de interdependência (...) torna-se uma relação dependente quando alguns países são capazes de se expandir através do auto-impulso, enquanto outros (...) só podem expandir-se como reflexo da expansão dos países dominantes. (SAN-TOS apud. MERQUIOR, 1996, pp. 187-189).

Hein ainda argumenta que “o modelo realista e o desenvolvi-mentismo nacionalista serão permanentemente referidos nos debates sobre as relações Norte-Sul”. (2000, p.5)

Por fim, o TNP induziu a necessidade de novas categorias de análise: leste-oeste, norte-sul, congelamento do poder mundial. O Tratado também passa a ser contestado pelos países que não podiam

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adquirir arsenais nucleares, em claro questionamento ao equilíbrio de poder mundial. Em 1968 o então embaixador brasileiro João Augusto de Araújo Castro contesta o privilégio de apenas alguns países, nota-damente potências nucleares, em manter tal aparato:

Em fevereiro de 1968, durante a sessão da Comis-são de Desarmamento realizada em Genebra para tratar do projeto de Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, o chefe da delegação brasi-leira, embaixador João Augusto de Araújo Castro, criticou duramente o instrumento por “perpetuar situação em que as potências nucleares poderiam manter seus arsenais e os demais deveriam assu-mir compromissos e controles externos”. (BAR-RETO FILHO, 2006, p. 100).

De acordo com Oswaldo Reis, sequer o neo-realismo é capaz de entender a problemática no Cone Sul. O autor argumenta que “a abordagem teórica a ser utilizada [para entender a América Latina] é o realismo neoclássico, que busca articular a variável doméstica para refinar a variável sistêmica, para explicar a gênese do terror nuclear”. (REIS, 2009, p.7).

Portanto, na década de 1970, a idéia é que mesmo sob a GF haja espaço para uma literatura que trata de cooperação, fomentada não apenas pelo Estado. Como apontam Baylis, Smith e Owens so-bre a fragilidade do Realismo Clássico:

The peaceful conclusion of the cold war caught many realists off guard. Given that many realists claim a scientific basis to their casual account of the world, it is not surprising that their inability to foresee the dynamics that led to the end of the bipolar cold war system sparked the publication of several poweful critiques of realist theory. Critics

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also maintained that realism was unable to pro-vide a persuasive account of new developments such as regional integration, humanitarian inter-vetion, the emergence of a security community in Western Europe, and the growing incidende of intra-state war wracking the global South. In addtition, proponents of globalization argued that Realism’s privileged actor, the state, was in decline relative to non-state actors such as transnational corporations and powerful regional institutions (...). (BAYLIS, SMITH e OWENS, 2008, p. 94)

Os autores ainda destacam do Neo-liberalismo, atores e ní-veis de análise intrínsecos ao objeto deste artigo, a transnacionaliza-ção sindical:

[The] argument about the positive benefits from transnational cooperations is one which informed a new generation of scholars (particularly in the USA) in the 1960s and 1970s. Their argument was not simply about the mutual gains from trade, but that other transnational actors were begining to challenge the dominance of sovereign states. (...). In one of the central texts of this genre, Rob-ert Keohane and Joseph Nye (1972) argued that the centrality os other actors, such as interested groups, transnational corporations, and inter-national non-governmental organizations (IN-GOs) had to be taken into consideration (...). (BAYLIS, SMITH e OWENS, 2008, p. 114-115).

Podemos concluir preliminarmente que o sindicalismo trans-nacional, se antes órfão de literatura que abrangesse todas as suas necessidades explicativas, seja pela rigidez estadocêntrica da visão realista clássica, seja pela visão idealista do liberalismo, encontra par-cialmente na literatura neo-liberal, algum espaço para desenvolver argumentos que se aproximem de sua própria realidade.

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Outras escolas das Relações Internacionais, como Grams-ciana, Teoria Crítica, Sistema-mundo, Construtivismo, Copenhague, Inglesa, Sociologia Histórica, Feminismo, Pós-modernimo e Pós--colonialismo, dentre outras, certamente contribuiram para o enri-quecimento do debate acadêmico, sendo mais ou menos adequadas ao estudo de novas formas de sindicalismo.

Não é escopo deste artigo, contudo, pincelar todas as Teorias de Relações Internacionais existentes na Academia, mas fazer um pa-ralelo entre coincidências históricas, isto é, os eventos ocorridos na década de 70 – inclusive os sindicais -, o arrefecimento do Realismo Clássico e a ascensão do Neo-liberalismo como paradigmas teóricos.

Feitas essas considerações e destacando os marcos do Neo--liberalismo pretendemos, no próximo item, demonstrar exames aná-logos ao transnacionalismo sindical na década em questão.

Contribuições teóricas de autores sobre a transnacionalização sindical

nos marcos do neo-liberalismo inaugurado na década de 70.

Conforme dissemos anteriormente, a transnacionalização de práticas como economia, relações de trabalho, Organizações Não--Governamentais, multinacionais, a Igreja, finanças e ciência, refleti-ram na Academia “novos debates”, trazendo ao liberalismo renovado destaque.

Nosso marco teórico é quando da multiplicação de empresas multinacionais e, conseqüentemente, dos investimentos diretos exter-nos (IED) e do nascimento de práticas transnacionais de sindicalis-mo. De acordo com o relatório do Ministério do Desenvolvimento,

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Indústria e Comércio Exterior – MDIC:

A integração produtiva e comercial no mundo vem ocorrendo de maneira significativa. Enquan-to o PIB mundial cresceu 15 vezes em termos no-minais, de 1970 a 2007, as exportações mundiais aumentaram 42 vezes, evidenciando como as ca-deias de mercadorias vêm se internacionalizando. Os fluxos de IDE, por sua vez, embora tenham apresentado considerável volatilidade ao longo do tempo e demonstrado forte queda e recuperação após o ano 2000, elevaram-se 150 vezes no mesmo período (...). (MDIC, 2009, p.10).

No começo desta mesma década, em 1971, Robert Keoha-ne e Joseph Nye publicaram um livro, “Transnational Relations and World Politics”, no qual, com muita parcimônia, começavam a cha-mar atenção para as novas características do Sistema Internacional.

No que concerne ao movimento sindical, se antes as cadeias produtivas se localizavam em territórios nacionais e, portanto, tinham as bases sindicais localizadas nestes, no começo dos 70 esta organi-zação também passou a repensar e, mais importante, reformular sua ação frente às novas táticas e estratégias das empresas multinacionais.

Cox, em seu artigo “Labor and Transnational Relations”4 apon-tou justamente nesta direção. O autor destacou que, na maior parte do século XIX, as relações de trabalho eram pensadas dentro dos limites territoriais do Estado. Este, por sua vez, era visto como um instrumento para atingir as metas dos trabalhadores. A Grande Depressão de 1929

4 Cox, ainda que tenha sido um dos precurssores da Teoria Crítica, escreve este artigo no mencionado livro de Keohane e Nye, inaugurando o Neo-liberalismo. Por este motivo o consideramos como um autor que escreveu sob o marco desta escola.

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parecia ser o fato comprobatório dessa assertiva: Keynes corroborava, com sua teoria, o papel desenvolvimentista do Estado. A OIT, segundo o autor, não seria uma organização para fomentar a solidariedade de classe, mas um instrumento de alguns países sobre outros para praticar o enforcement de suas práticas laborais internas. O principal objeto de análise para as relações trabalhistas, segundo a perspectiva de Cox, por-tanto, ainda se baseava no papel do Estado.

Note-se que este tipo de análise se aproxima, em grande medi-da, do viés estadocêntrico da teoria Realista das Relações Internacionais.

A mudança no modo de agir dos sindicatos foi apontada pelo autor a partir de manobras da Federação Internacional dos Trabalha-dores Químicos (International Chemical Federation - ICF, em inglês), uma Global Union Federation (GUF) que, em 1969 coordenou uma confrontação à empresa Saint Gobain5 da Alemanha, França, Itália e Estados Unidos. Para o autor, essa era uma nova política do sindicato, que não envolvia diretamente qualquer governo ou política nacional.

A estratégia desta Global Union baseou-se na internacionali-zação do PLR (Participação nos Lucros e Resultados) para os cálcu-los de recebimento dos trabalhadores estadunidenses: os trabalhado-res da Saint Gobain nos EUA foram notificados que não receberiam seus PLRs, pois a subsidiária da empresa não havia lucrado com as suas operações em território nacional6, apesar possuir tais lucros no

5 Empresa francesa de fabricação de vidros, abrasivos, cerâmicas e plásticos, dentre outros.6 A falta de lucro ou até mesmo o saldo negativo nos resultados de uma empresa são eventos corriqueiros: muitas vezes uma única empresa possui diversos C.N.P.J.s (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica) e um pode lucrar em detrimento do outro, ain-

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Balanço Consolidado. O sindicato estadunidense obteve tais infor-mações com os sindicalistas de outros países. A saída encontrada foi reivindicar Participação nos Lucros e Resultados tendo como base os resultados Companhia em âmbito global, ou seja, envolvendo todos os países no qual a empresa operava e refazendo o cálculo de PLR sobre outra base, desta vez superavitária.

Note-se que esta análise, diferentemente da anterior, destaca qualidades como cooperação e comunicação (entre dois atores novos, os sinsicalistas), distanciando-se do estudo Realista das Relações In-ternacionais e aproximando-se do paradigma Neo-liberal.

A literatura que trata da transnacionalização de práticas sin-dicais é ampla e envolve diversos temas de natureza Neo-liberal, como cláusula social, governança global, relação entre política doméstica e internacional, redes sociais e sociedade civil internacional.

Abordaremos, neste artigo, três discussões fundamentais da corrente Neo-liberal que problematizam sua análise, quais sejam: (i) universalidade/ relatividade; (ii) spillover/ exclusão e (iii) soberania/ intervencionismo.

primeira discussão problematizadora do paradigma neo-liberal relacio-

nada à transnacionalização sindical: universalidade vs. relatividade

O embate entre universalidade e relatividade não é novo; bas-ta lembrar a crítica contundente ao idealismo normativo kantiano,

da que o Balanço Consolidado seja positivo. Uma empresa Saint Gobain com C.N.P.J prestadora de serviços fabris certamente não trará o mesmo lucro do C.N.P.J. pres-tador de serviços financeios.

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onde a moral e a ética universais, substituem problematizações e par-ticularidades dentro dos Estados-nação.

No caso da transnacionalização sindical, o que seu proponen-tes sugerem não é a universalização de standards trabalhistas, para todos os ramos, categorias, países e cultura. Trata-se, neste caso, de um conjunto de sindicatos unidos que, a partir de objetivos comuns, procuram atingir metas, que beneficiarão algumas centenas ou mi-lhares de pessoas, mas não a população mundial. A especificação de interesses em um grupo específico que partilha dos mesmos princí-pios e práticas parece, portanto, findar tal discussão. Como argumenta Gerda van Roozendaal:

Although it may be tempting to conclude from sources that there is na international consensus that these labour rights are applicable under all circumstances, this is far from true. Three objec-tions to such a conclusion can be raised: (a) the notion of universality does not mean uniformity; (b) universality is not always recognized in prac-tice or in principle; and (c) even if they are univer-sal, there exists no agreement on the best way to enforce these labour standards. (2002, p. 44).

segunda discussão problematizadora do paradigma neo-liberal relacio-

nada à transnacionalização sindical: soberania vs. intervencionismo

O debate soberania/ intervencionismo diz, por um lado, que o princípio de não-intervenção no Estado é consagrado e costume nas relações internacionais e, assim sendo, deve ser respeitado. Assim, é prerrogativa do Estado não incorporar em sua legislação algumas re-gras de respeito ao trabalhador. Por outro lado, as vozes a favor do in-

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tervencionismo são grupos, como os próprios sindicatos, que não vêem suas demandas atendidas pelo Estado (por exemplo, os Estados Unidos e o Brasil nunca ratificaram a Convenção 87 da OIT, sobre liberdade sindical). Neste embate, a relação se dá entre Davi e Golias: de um lado, muitos grupos de interesse não assistem as suas reinvindicações atendi-das pelo próprio Estado onde habitam. De outro, o Estado quer manter sua plena soberania e legislar sem interferências no âmbito interno.

Este debate tem como fundo um ator fundamental e extrema-mente forte: o Estado. Este, a priori, deve atender todos interesses dos grupos reinvindicadores, isto é, os interesses tanto de empresários, quan-to de sindicalistas. As demandas destes dois atores, contudo, se con-centram em pontos extremos da balança e parecem não ter pontos em comum. Caimos, aqui, na discussão do próprio conceito de democracia.

Em termos práticos, as empresas de países onde o diálogo so-cial é mais avançado procuram ter cartilhas de Responsabilidade So-cial Corporativa (RSC) que são aplicadas dentro das empresas, sem a necessidade de aprovação dos Congressos nacionais onde as empresas têm plantas produtivas.

terceira discussão problematizadora do paradigma neo-liberal relacio-

nada à transnacionalização sindical: spillover vs. exclusão

Quanto ao spillover7 vs. exclusão, utilizaremos com relação ao primeiro o conceito de Zacher, ainda que demasiado otimista: a idéia

7 Spillover, ou transbordamento, pode ser entendido como o “contágio” de práticas, usos e costumes de uma comunidade política para outra.

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de transbordamento da cooperação, gerando efeitos automáticos, multiplicadores e sistemáticos.

Os estudiosos da transnacionalização sindical já se depararam algumas vezes com casos nos quais os sindicatos locais, notadamente nos países em desenvolvimento, eram contra a inclusão de algumas cláusulas sociais em seu mercado de trabalho. O argumento utilizado pelos sindicalistas dos países em desenvolvimento é que sua população precisa antes de empregos, para depois reinvindicar direitos, ou seja, o Estado de bem-estar social não poderia existir antes da existência de inúmeros e variados empregos. O spillover e a cláusula social, neste caso, estariam mais próximos do enforcement que do transbordamento.

Dentre os argumentos a favor do spillover, destaca-se o racio-cínio de que as diferenças trabalhistas, principalmente aquelas rela-cionadas aos salários, criam uma “vantagem comparativa” que traria ao comércio internacional desigualdade de condições: basta observar o dumping social.

Este tipo de argumento é, em especial, aquele dos trabalhado-res de países desenvolvidos que, portadores de altos salários, temem perdê-los para trabalhadores de outros países onde não existam encar-gos trabalhistas ou diálogo social de alto nível, como na China. Outro argumento defende que devem existir regras gerais de regulação do trabalho, assim como o é a regulamentação do comércio. A fraqueza deste segundo argumento está na própria vontade dos trabalhadores: se a assertiva de que todos os países desejam participar do comércio internacional é correta, a mesma não o é para os trabalhadores: há sindicatos, como já abordamos, que não desejam participar da cláu-sula social que regulamentaria o trabalho, mas desejam os empregos

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provenientes do desenvolvimento econômico/ comercial. O debate spillover vs. exclusão parece não chegar a consenso.

O que se observa, na prática, é a inclusão de cláusulas sociais em con-tratos comerciais entre países específicos, como é o caso dos Estados Unidos e a maioria dos países da Europa Ocidental.

estudo de caso: a BasF (Badische anilin und soda-Fabrik)

O caso da internacionalização sindical dos trabalhadores da empresa BASF e sua atuação na região do Grande ABC têm início justamente em nosso marco histórico e se desenvolve até os dias atuais.

Nos idos da década de 1970 começou a desenvolver-se na região um grande pólo petroquímico. Como já existiam empresas do ramo automobilístico, principalmente em São Bernardo e Santo An-dré, deve-se a estas empresas o aparecimento de outras, como as do ramo químico e plástico, como a BASF, para atender as demandas de grandes montadoras. Nota-se, também, o desenvolvimento de peque-nas empresas de prestação de serviço e de autopeças, respectivamente para o atendimento de terceirização dessas empresas e fornecimento das pessas intermediárias do processo produtivo.

Os estudos acadêmicos que abordaram os movimentos sindi-cais de 1978 e 1979, em plena ditadura militar, são abundantes e não é nosso objetivo repeti-los aqui. Apontamos, apenas, que tais movi-mentos foram importantes também para o desenvolvimento de redes sindicais na BASF. De acordo com Drummond, foi no ano de:

1970/1980 que os sindicalistas brasileiros, notada-mente os do ABC, como os do Sindicato dos Me-

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talúrgicos de São Bernardo, Químicos de Santo André, enviaram pedidos de solidariedade aos seus colegas sindicalistas europeus e recebessem a visita solidária de ativistas políticos de esquerda, padres e pastores de igrejas, principalmente da Alemanha e Bélgica. (2008, p. 15-16)

Segundo informações da “Rede de Trabalhadores (as) na BASFl”, “na América do Sul, a multinacional alemã ignorava as nor-mas e diretrizes internacionais da Organização Internacional do Tra-balho (OIT)” (p. 8). Note que aqui temos convergência de opiniões entre a cultura sindical local e os standards de trabalho da OIT, isto é, os sindicatos brasileiros não só desejavam o spillover de práticas trabalhistas européias, como pediam ajuda de seus companheiros com mais experiência para tanto.

No começo da década de 1980, estes mesmos padres e pasto-res eram agentes de intercâmbio entre a experiência européia o inci-piente movimento brasileiro. A formação da comissão de fábrica da BASF:

(...) se originou após a conquista da Comissão de Fábrica na unidade BASF Glasurit e Isopor em São Bernardo, durante a década de 1990. Os contatos internacionais do sindicato dos quí-micos de Santo André, visando buscar apoio para a Comissão de Fábrica da BASF, em suas lutas, coincidiram com um lockout, decretado pela dire-ção da BASF, em sua unidade localizada em Geis-mar, Louisiana, EUA, no ano de 1989, rompendo negociações com o sindicato local. Esse fato, acontecido nos Estados Unidos com uma multinacional alemã, levou os norte-americanos a buscarem solidariedade em diversos locais, in-cluindo o Brasil, que recebeu a visita de um dos

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dirigentes locais, Richard Leonard. O sindicato dos químicos de Santo André, junto com a Comissão de Fábrica da BASF, realizou uma assembléia com os trabalhadores, na unidade Glasurit em São Ber-nardo, em solidariedade aos companheiros norte--americanos, vitimas da intransigência da empresa em continuar as negociações em Geismar. As lutas em Geismar e São Bernardo levaram o sindicato alemão a se posicionar mais fortemente em apoio e solidariedade internacional ao Brasil e aos EUA e, em seguida, a realizar diversos encon-tros na Alemanha e no Brasil. (DRUMMOND, 2008, p. 18-19).

Outro acontecimento que reflete a transnacionalização das relações de trabalho, permitida apenas após o pontapé incial na em-presa, na década de 1970, foi a formação de uma rede regional de sindicatos, desta vez sul-americana:

(...) a ICEM [International Federation of Chemical, Energy, Mine and General Workers’ Unions], promo-ve o I Encontro Internacional dos Trabalhadores da BASF [em 1999]. A iniciativa de impulsionar a or-ganização de trabalhadores de uma mesma empresa multinacional para a criação de Redes partiu de uma decisão do Congresso da entidade. O Encontro resultou na criação da Rede de Traba-lhadores sul-americana, com o objetivo de garantir um intercâmbio permanente entre os trabalhadores das plantas da BASF em todo o continente e abrir um novo canal de negociação com a direção da em-presa, já então a maior corporação química do mun-do. Em 1999, a BASF possuía 20 plantas na Améri-ca do Sul. (REDE DE TRABALHADORES NA BASF AMÉRICA DO SUL, 2009, p. 13)

Foi, contudo, apenas em 2002 que a direção da BASF reco-nheceu a Rede Sul Americana de Sindicatos da BASF. Atualmente,

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os sindicatos dos trabalhadores da BASF estão no âmbito da ICEM e procuram assinar um Acordo Marco Global (International Fra-mework Agreement, em inglês) com a empresa.

ConsiDerações Finais

O debate sobre o transnacionalismo passa a ter espaço a partir da década de 1970, dentro do arcabouço teórico oferecido pelo neo--liberalismo em contraponto ao realismo clássico; outros debates, não focados apenas no poder e na racionalidade dos Estados passam a ganhar projeção e o velho debate realista clássico já não abarca todas as grandes questões das RI, como vimos em Morgenthau e Aron. Esse novo liberalismo, entretanto, não é mais o idealismo normativo kantiano, mas um debate que, com novo fôlego, se aproxima melhor da realidade.

Portanto, há uma mudança fundamental no pensamento acadêmico das Relações Internacionais: com a projeção da literatura neoliberal e do neorealismo (o debate racionalista), passam a entrar em cena abordagens mais ricas e complexas. Longe de entrarem em consenso, o embate “neo x neo” trouxe maior riqueza intelectual para a Academia.

De fato, o objeto de estudo abordado neste trabalho, o trans-nacionalismo, jamais caberia em um debate puramente “realista”, uma vez que a relação direta entre trabalhadores e empresas traz ao campo de estudo novos atores e níveis de análise. Como aponta Cox, essa forma de fazer sindicalismo estava, na década de 70, caminhando para a descentralização e a visão não estatal, possível pelo fato de que,

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com a deténte, os sindicatos puderam deixar de se preocupar primor-dialmente com a Guerra Fria e o futuro do capitalismo.

Inúmeros autores foram influenciados pelos fundadores da escola neoliberal (Robert Keohane e Joseph Nye), como Stephen Krasner, Robert Axelrod, James Rosenau, Oran Young e Andrew Moravcsik, e outros tantos pela escola neorrealista (que, como vimos, tem Kenneth Waltz como fundador): Barry Buzan, Richard Little, John Mearsheimer e Stepehn Walt, para citar os principais. Natu-ralmente esses debates refletem o mainstream das RI e não abarcam correntes como o pós-colonialismo, pós-modernismo e a teoria verde, dentre outros.

De qualquer forma, o debate “neo x neo” inaugurou novas ca-tegorias de análise nas RI, como o realismo ofensivo de Mearsheimer, os regimes de Krasner, a governança de Young e Rosenau e a valoriza-ção das instituições pelos neoliberais, dentre outros, bem como inau-gurou uma nova agenda de pesquisa para temas como os movimentos sociais, como vimos ser o caso sindical apresentado neste artigo.

Se na década de 70 a abordagem de temas transnacionais re-queria precauções especiais, no final da primeira década do século XXI, tal debate nos pareceu essencial para fundamentar temas à épo-ca inéditos e entender historicamente debates posteriores aos men-cionados, como o construtivismo e a teoria crítica.

reFerÊnCias

BARRETO FILHO, Fernando P. de Mello. Os Sucessores do Barão: Relações Exteriores do Brasil. 1964 a 1985. São Paulo: Paz e Terra, 2006

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a eFiCÁCia Das DeCisões JUrisDiCionais LiMinares estranGeiras no orDenaMento

JUrÍDiCo BrasiLeiro

Andrês Uliana Posser1

Lucas Gonçalves Conceição2

Orientador: Prof. Msc. Valdenir Cardoso Aragão3

resumo

O fenômeno globalizacional cada vez mais intensificado e o complexo procedimento de nacionalização de sentenças estrangeiras, aliados à indiscutível importância das tutelas antecipadas para a sa-tisfação eficaz dos ideais de justiça, trouxeram a necessidade de se problematizar a forma como as decisões liminares estrangeiras pas-sam a ter eficácia em face do aparelho jurisdicional brasileiro, já que a fonte legal e a jurisprudencial caminham em sentidos contrários. A primeira mostra-se rígida na exigência do trânsito em julgado, en-quanto a segunda, com um viés mais flexibilizado e justo, revela-se no sentido de possibilitar a eficácia das decisões meramente liminares.

1 Acadêmico do 5º Ano do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Estagiário do Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul, na Comarca de Rio Grande/RS. Contato: [email protected] Acadêmico do 5º Ano do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Estagiário de Direito do Escritório de Advocacia: EMT Advogados Associados. Contato: [email protected] Professor da Faculdade de Direito – FADIR – da Universidade Federal do Rio Grande – FURG.

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O presente trabalho visa, portanto, por meio de uma revisão biblio-gráfica, entender como essas decisões interlocutórias estrangeiras que concedem medidas antecipatórias passam a produzir efeitos dentro do ordenamento jurídico brasileiro.

Palavras-chave: Decisões Liminares estrangeiras. Tutela Antecipa-da. Aparelho jurisdicional brasileiro.

abstract

The much intensified globalization phenomenon and the complex procedure for nationalization of foreign sentences, allied to the undoubtful importance of the summary judgments in order to satisfy the ideals of justice, brought into light the necessity of proble-matizing how the foreign preliminary injunctions become effective when facing the Brazilian judicial apparatus, since the legal and the case law sources go on opposite directions. The former appears as strict in its demand of the claim preclusion, while the latter, with a more flexible and just bias, reveals itself in a sense of allowing the effi-cacy of the merely preliminary orders. This work aims, thus, through literature review, to understand how these foreign interlocutory de-crees which concede summary adjudications start to produce effects in the Brazilian judicial system.

Keywords: Foreign Preliminary Injunctions. Summary Judgments. Brazilian Judicial Apparatus.

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introDUção

A atual aceleração do fenômeno globalizacional e a conse-qüente aproximação das divisas, aliados às já conhecidas facilitações nos procedimentos de concessão de créditos trouxeram consigo uma série de demandas para o seio da já complexa sociedade contempo-rânea, dentre as quais, e com um dos maiores destaques midiáticos, aparecem as demandas jurídicas.

A mídia internacional atualmente aponta para complexos casos onde o direito, para poder ser devidamente aplicado, precisa ir além das barreiras alfandegárias. Isso inclusive ocorreu no conhe-cido caso do menino Sean Goldman, onde o pai americano, depois da morte da mãe brasileira, brigou intensamente na justiça contra o padrasto, também brasileiro, para conseguir a guarda do garoto. O que se percebe é que a cada dia nos deparamos com mais casos onde grandes Estados veem-se diante de situações que demandam uma certa “relativização” de suas soberanias, de modo a, inclusive, executar provimentos jurisdicionais de ordenamentos jurídicos alienígenas.

Diante disso, o Direito brasileiro, em especial o Direito Pro-cessual Civil, precisou se resguardar com mecanismos procedimentais que consigam transmitir os reais anseios de justiça. O atual Código de Processo Civil (CPC), principalmente em seus arts. 210, 211, 483 e 484, juntamente com a Lei de Introdução às Normas do Direito Bra-sileiro (LINDB) - antiga Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), especialmente em seu art. 15 e a Resolução n. 9, de 4 de Maio de 2005 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) regulam esse procedimento de nacionalização da decisão estrangeira, estabelecendo, inclusive, uma

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série de requisitos.Dentre estes, conforme alínea c do art. 15 da (LINDB), apa-

rece a exigência de ter a decisão estrangeira transitado em julgado, ou seja, ser uma decisão estável, impassível de qualquer recurso. Compre-ensível a intenção do legislador, de forma que se assim não fosse, o ato estatal estrangeiro poderia ainda vir a ser reformado ou invalidado a qualquer momento.

Acontece, contudo, e aí está a grande questão a ser trabalhada, que existem demandas em que, por exemplo, o tempo de tramitação torna-se tão longo que o próprio litígio perde sua razão de existir, ou, casos em que há um fundando receio de existência de um dano irre-parável ou de difícil reparação. Nesses casos, objetivando a proteção ou manutenção de seus direitos as partes acabam valendo-se das cha-madas tutelas antecipatórias e começam, desde logo, a verem supridas suas pretensões.

Dessa forma é preciso pensar: seria razoável que as partes fos-sem obrigadas a aguardar toda a longa marcha processual para que pudessem iniciar o processo de homologação da sentença estrangeira (que por sua vez é um outro processo em relação àquele que trami-ta no exterior)? Não seria razoável que essas decisões liminares, ou seja, as que ainda não tenham passado em julgado, já começassem a surtir efeitos dentro do ordenamento jurídico brasileiro? Se assim fosse, como ganhariam eficácia essas liminares estrangeiras? Como o aparelho jurisdicional pátrio se comportaria diante de demandas dessa espécie?

Partindo destas inquietações e por meio de uma atenta re-visão bibliográfica, com enfoque doutrinário, legal e jurisprudencial,

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o presente trabalho tem por mote, portanto, analisar a forma como estas decisões liminares ganham eficácia em face do ordenamento ju-rídico brasileiro, tendo em vista, mormente, o art. 15 da (LINDB) e a recente jurisprudência dos Tribunais Superiores Brasileiros.

Contudo, para evitarmos desentendimentos, é necessário an-teriormente se ter em mente algumas noções antes de se aprofundar a temática proposta, como os conceitos de tutela antecipada4, de sobe-rania e jurisdição, conforme se verá a seguir.

Breve traçado sobre estado e soberania

No estudo de Ciência Política, se percebe que uma noção de Estado, desde a sua origem e formação, vai muito além do clássico status (estar firme, do latim). Ramificam-se, então uma série posicio-namentos teóricos ora convergentes, ora divergentes.

Conveniente é a ideia de que o homem reunido em socieda-de - ambiente mais amplo- vê a necessidade de organização em um círculo restrito, dotado de poder, com melhor capacidade de gerência. Entretanto, o Estado, visto como a ordem política da sociedade, nem sempre teve essa denominação uniforme, muito embora houvesse pontos em comum entre a polis helênica, os ares da Idade Média, e a definição trazida por Maquiavel, em O Príncipe.

4 É importante se ter clara a diferenciação entre tutela antecipada e tutela cautelar. A primeira refere-se à satisfação provisória e antecipada dos efeitos da sentença, enquanto a segunda refere-se à segurança do êxito do processo cognitivo e do exe-cutivo, isto é, é um provimento acautelatório que tem por objetivo a garantia dos efeitos contidos em uma futura sentença.

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Neste sentido, afirma (BONAVIDES, 2011), que o surgi-mento do Estado pode ser tratado pelas acepções filosófica, jurídica ou sociológica, com suas respectivas peculiaridades. Não obstante, sem esgotar o os paradigmas do tema, é necessário que se estabeleça um traço simplificado, para que não se destoe o foco da pesquisa.

Transcendendo a dissensões sobre a época do aparecimento do Estado, (DALLARI, 2003) aponta três posicionamentos essen-ciais, sendo: os defensores da ideia de que o Estado sempre existiu desde a existência humana e do momento que se passou a conviver de modo integrado numa espécie de organização social. Para outro posicionamento, no entanto, seria mais adequado crer que o homem convivendo em sociedade, não dispunha do Estado desde o início desta convivência, vindo a constituí-lo a fim de suprir as necessidades dos próprios grupos sociais, sem que houvesse concomitância entre estas coletividades, dependendo das peculiaridades de cada lugar. Por derradeiro, advém o posicionamento dos que admitem como Estado apenas a sociedade política com características próprias, bem defi-nidas. Nesta última corrente teórica, (DALLARI, 2003) anuncia as ideias de Karl Schmidt, explicando que o conceito de Estado não é algo geral e válido para todos os tempos, senão um conceito históri-co concreto, oriundo da ideia e a pratica da soberania, o que veio a ocorrer no século XVII. Nas palavras de Jellinek, trazidas por (BO-NAVIDES 2011, p. 71), o Estado seria então a “corporação de um povo, assentada num determinado território e dotada de um poder originário de mando”.

Transpondo a temática para o âmbito internacionalista, cum-pre ressaltar que Estado é o sujeito de Direito Internacional Público

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por excelência. Não quer dizer que seja o único. Nesta seara, sur-gem definições próprias sobre a classificação dos Estados em relação à “grande comunidade”. Neste sentido, (SILVA e ACCIOLY, 2002) chegam a afirmar que não é conveniente ao Direito Internacional se ocupar com todas as instituições genericamente denominadas Esta-dos, senão com aquelas cujo poder governamental se reflete nas rela-ções externas. Por fim, convém expor respeitável conceito, segundo o qual, seria o Estado:

O ente jurídico, dotado de personalidade interna-cional, formado por uma reunião de indivíduos es-tabelecidos de maneira permanente em um terri-tório determinado, sob autoridade de um governo independente e com finalidade de zelar pelo bem comum daqueles que o habitam (MAZZUOLI, 2007, p.353)

Pode-se dizer que a Soberania, caracterizada por (DALLA-RI, 2003) como una, indivisível, inalienável e imprescritível, é uma decorrência natural do poder Estatal, pode concebida como sinônimo de independência do Estado, e, outrossim, como expressão do poder jurídico mais alto.

Não deixando de considerar aspectos históricos relevantes, e até mesmo as ideias do Contrato Social, trazidas por Rousseau, se-gundo o qual há grande relativização do poder em relação ao povo, restringimo-nos a uma análise mais técnica do termo Soberania.

Sob uma perspectiva do direito interno, fixa-se a noção de predomínio do ordenamento estatal, que se sobrepõe aos demais po-deres sociais, os quais lhe são subordinados. É o Estado, assim, porta-dor de uma vontade suprema e soberana, conforme (BONAVIDES,

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2011), decorrente do papel privilegiado de ordenamento político mo-nopolizador da coação incondicionada na sociedade. No tocante ao ponto de vista do direito externo, a Soberania passa a ser uma quali-dade do poder que o Estado poderá ou não ostentar.

Não raro, se encontram em doutrina ensinamentos de que a Soberania do Estado vem sendo atacada pelos fatores diversos da convivência global. Na verdade, não há que se falar em acometimen-to, mas em relativização. A necessidade de manutenção equânime da ordem internacional exige uma abertura de conceitos, e esta permeia a noção clássica de soberania. Isso não significa abrir mão ou enfra-quecer o poder Estatal, senão aprimorá-lo face às tendências globais.

Permeando o objeto do estudo, através dos reflexos internos e externos da atuação do Estado, dentre as prerrogativas a ele inerentes, no que se refere às suas atividades soberanas, destaca-se a jurisdi-ção. Trata-se da perspectiva de “dizer o direito” (juris dictio, do latim). Atualmente com enfoque constitucional, este poder demonstra suma relevância no que diz respeito à força das decisões proferidas pela autoridade estatal competente, mostrando sua grandeza precípua em relação à manutenção da estabilidade e da paz social.

Jurisdição e provimento jurisdicional

Quando da sua origem, o Estado, nos seus rudimentos, era desprovido de força e poder, tais quais se constatam facilmente na atualidade. Surgia então um sério problema no que diz respeito à re-solução de conflitos maculados por uma pretensão resistida.

Com um Estado insuficientemente preparado para sobrepu-

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jar a vontade individual e fazer valer o direito, as partes utilizavam-se das próprias “forças” para a resolução de conflitos. Nota-se, então, que além do Estado não garantir o cumprimento do direito, sequer exis-tiam leis ou um ordenamento jurídico tipificado, senão, meramente consuetudinário.

Acertadamente (CINTRA, GRINOVER e DINAMAR-CO, 2010) enfatizam que, historicamente, o juiz surge antes do legis-lador. Para os autores, o Estado, inicialmente se valeu da autotutela ou autodefesa, mediante seus próprios critérios e decisões, para dirimir conflitos. Basicamente, não era uma garantia à justiça, senão à vitória do mais forte.

Ainda no que tange aos pressupostos históricos, sem aden-trar na temática com o devido e merecido enfoque, incontroversa é a grande contribuição do Direito Romano referente à evolução do conceito de “fazer justiça”. Demais pressupostos relevantes podem ser extraídos a partir de uma análise cronológica da evolução destes conceitos.

Com o advento do Estado Moderno, já suficientemente for-talecido, opera-se uma evolução primordial: a justiça, antes de caráter privado, ganha ares públicos. O Estado assume então para si o encar-go e o monopólio de definir o direito aplicável nos casos concretos, bem como de garantir o cumprimento ou a realização desse direito, nos casos de resistência.

Relevante conceito de Jurisdição é preceituado por processu-alista pátrio, amparado na doutrina de Liebman, segundo o qual,

estabeleceu-se a jurisdição, como poder que toca ao Estado, entre as suas atividades soberanas, de

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formular e fazer atuar praticamente a regra ju-rídica concreta que, por força do direito vigente, disciplina determinada situação jurídica. (THE-ODORO JUNIOR, 2010, p. 42)

Autores qualificam-na como o poder de o Estado dizer aque-le que tem razão em face do caso conflitivo concreto, ou o poder de dizer o direito, conhecido como iuris dictio. (MARINONI e ARE-NHART, 2010). Todavia, em determinadas circunstâncias, seria pre-ferível conceituar a jurisdição como função estatal do que meramente como um poder.

Muito além da expressão do poder estatal, traduzida por esta função caracterizada pela capacidade inerente de decidir de modo imperativo e impor decisões, notável é o cunho pacificador da juris-dição, visando o bem comum. O Estado exerce essa função legitima-mente através do processo, devidamente estruturado. Dentre esses e outros aspectos, é conveniente a ideia de que a jurisdição alcançou no Estado Democrático de Direito, relevância até então não apreciada, em termos sociais e políticos.

Em relação ao provimento jurisdicional propriamente dito, quando o Estado garante o acesso à justiça e a eficácia dos direitos tutelados, por meio de um processo adequado e justo, diz-se que está garantindo o provimento, ou então, entregando ao cidadão a presta-ção da jurisdição. O cidadão sai da inércia, socorre ao poder estatal e vê assistida sua pretensão. A partir daí, serão traçados alguns pontos fundamentais:

Do juiz natural

Em se tratando de Jurisdição e Soberania, necessário que se

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faça breve abordagem acerca do Princípio do Juízo Natural, haja vista a correlação existente.

Apregoa preceito, com ênfase Constitucional, que devem ser estabelecidas regras sobre a competência jurisdicional (evitando, por exemplo, os tribunais de exceção), de modo com que se mantenham garantidas a independência e a imparcialidade do julgador.

Em síntese, pode-se dizer que para recepção, processamento e julgamento de litígios deve existir um Juiz previamente constituído, dotado de competência para o julgamento das causas as quais lhe forem submetidas. Em termos de direito interno, trata-se de previsão Constitucional, arraigada nos incisos XXXVII e LIII do art. 5º da Constituição Federal de 1988.

A garantia do Juiz Natural significa, de modo sumário, dizer que não haverá juízo ou tribunal ad hoc, (tribunal de exceção), todos têm o direito de submeter-se a julgamento (civil ou penal) por juiz competente, pré constituído na forma da lei, e que o juiz competente para apreciar a matéria deve ser imparcial (LENZA, 2009).

Do trânsito em Julgado

Vale lembrar que durante a marcha processual, dependendo das circunstâncias do caso concreto, bem como da iniciativa das par-tes, o desfecho da demanda pode ganhar rumos diversos. Evidente-mente, conforme for o pleito trazido para apreciação do poder judici-ário será a carga eficacial da sentença.

A sentença, por sua vez, pode ser considerada o expoente má-ximo da prestação jurisdicional por parte do Estado, tendo o condão de gerar a coisa julgada formal ou material. Pode-se dizer então que

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a coisa julgada formal é endoprocessual, vinculando-se à impossibi-lidade de rediscutir a decisão dentro da relação jurídica processual a que se ateve. Por outro lado, a coisa julgada material é extraprocessual, fazendo com que seus efeitos tenham repercussão fora do processo (MARINONI E ARENHART, 2010, p. 645).

É preciso lembrar, entretanto, que no decorrer do processo, pelo primado do duplo grau de jurisdição, existem recursos (com seus respectivos prazos) a serem manejados em casos de inconformida-des com as decisões. Uma vez exauridos todos os prazos recursais, de acordo com os preceitos processuais e doutrinários, opera-se o trânsi-to em julgado. Assim, “os efeitos próprios da sentença só ocorrerão, de forma plena e definitiva, no momento em que não mais seja suscetível de reforma por meio de recursos” (THEODORO JUNIOR, 2010 p. 533). Advém, portanto, o trânsito em julgado, cuja característica essencial é tornar imutável e indiscutível a solução dada ao litígio.

Importante situação se observa quando é formulado e deferi-do o pleito de antecipação dos efeitos da tutela. Ocorre, nestes casos, a satisfação provisória e antecipada dos efeitos da sentença, que ao final julgamento, devem ser ratificados ou não, a fim de que se opere o trânsito em julgado.

Considerações sobre a tutela antecipada

Em determinados casos, a espera pelo provimento jurisdicio-nal por parte do Estado, pode acarretar prejuízos à parte que socorre à esta tutela. Para (MARINONI E ARENHART, 2010), a morosi-dade da prestação jurisdicional, proveniente das mais diversas causas,

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dentre outros aspectos, também está ligada à ineficiência do velho procedimento ordinário, cuja estrutura encontrava-se superada antes da introdução da tutela antecipatória no Código de Processo Civil. Vale lembrar, entretanto, que existem medidas eficazes na tentativa de se evitarem detrimentos. Dentre estas, se destaca a tutela antecipada.

Na terminologia Constitucional, temos no art. 5º, inc. XXXV: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Além da previsão enraizada na Lei Maior, destacamos o que dispõe o Código de Processo Civil, em relação à temática:

Art. 273. O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tu-tela pretendida no pedido inicial, desde que, exis-tindo prova inequívoca, se convença da verossimi-lhança da alegação e: I - haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ouII - fique caracterizado o abuso de direito de de-fesa ou o manifesto propósito protelatório do réu. § 1º  Na decisão que antecipar a tutela, o juiz in-dicará, de modo claro e preciso, as razões do seu convencimento. §  2º  Não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do pro-vimento antecipado.§ 3º A efetivação da tutela antecipada observará, no que couber e conforme sua natureza, as normas previstas nos arts. 588, 461, §§ 4º e 5º, e 461-A. § 4º A tutela antecipada poderá ser revogada ou modificada a qualquer tempo, em decisão funda-mentada. §  5º  Concedida ou não a antecipação da tutela, prosseguirá o processo até final julgamento. § 6º A tutela antecipada também poderá ser con-cedida quando um ou mais dos pedidos cumula-dos, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso. § 7º Se o autor, a título de antecipação de tutela,

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requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupos-tos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado.

Com particularidade, (THEODORO JUNIOR, 2009) en-fatiza a importância da inovação instituída pela lei nº 8.952/94, em relação à antecipação de tutela, visto o texto legal ter ampliado a re-dação do art. 273 do Diploma Processual Civil, tutelando situações que antes incorriam no risco da mora na apreciação ou julgamento. Se percebe, então, que além da tutela cautelar, própria (procedimento próprio) para assegurar a efetividade do resultado final do processo principal, em situações peculiares o Juiz pode antecipar, provisoria-mente a tutela definitiva aguardada no processo principal.

A partir daí, é latente que se faça uma prudente análise do dispositivo legal supra transcrito. Para que a decisão requerida in li-mine seja concedida, sem observância do rito cautelar, devem estar preenchidos os requisitos legais, a fim de que se obtenha, por exemplo, prova inequívoca dos fatos pautados, convencimento do Magistrado acerca da verossimilhança das alegações, receio de dano, abuso de di-reito do réu e a possibilidade de reversão da medida a ser concedida, a fim de que o provimento jurisdicional se mantenha numa posição de vanguarda, evitando causar prejuízos às partes.

Muito embora o conteúdo e a natureza do decisum, é funda-mental que se mantenha o ordenamento jurídico coeso. Nota-se uma preocupação do legislador neste sentido, em relação à preservação do contraditório. Para tanto, exige-se prova inequívoca das alegações, e também a possibilidade de reversão da decisão a ser tomada.

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Destaca-se, por fim, que a antecipação de tutela pode ser requerida tanto no início, quanto no curso do processo, e também, deferida no todo ou em parte, evidentemente, dependendo das parti-cularidades do episódio em estudo.

a homologação de sentença estrangeira, o exequatur de carta rogatória e

o procedimento de resolução n° 9/2005 do stJ

A internacionalização de um provimento jurisdicional es-trangeiro pode se dar em face do ordenamento jurídico brasileiro, ba-sicamente, de três formas: pela mera cooperação diplomática admi-nistrativa, por meio das cartas rogatórias ou através da homologação de sentença estrangeira.

A cooperação administrativa é, segundo (DIPP, 2007), como já diz o próprio nome, um simples pedido de cooperação jurídica de natureza administrativa, não se exigindo, portanto e por óbvio, qual-quer juízo de delibação como condição de seu atendimento. Serve, por exemplo, para aqueles casos em que a investigação ou o processo judicial estrangeiro carecem, para seu deslinde, de informações dispo-níveis ao público no Brasil, como processos judiciais não protegidos por segredo de justiça.

Contudo, muito embora na práxis das relações internacionais este tipo de cooperação por vezes receba a rotulagem de uma Carta Rogatória, temos que ter bem claro que tratam-se de mecanismos de naturezas distintas, ou até mesmo complementares, de forma que a cooperação diplomática não pode ultrapassar simples pedidos de colaboração administrativa, enquanto as Rogatórias contemplam a

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execução de atos jurídicos relativamente mais complexos, tais como citações, intimações e produção de provas.

As Cartas Rogatórias stricto sensu, que são aquelas com sede constitucional, na visão de (DIPP, 2007) embutem em sua origem uma decisão estrangeira, geralmente destinada ao impulso processual, que necessita de eficácia fora da jurisdição de onde foi emanada, ou seja, eficácia extraterritorial. São, destarte, mecanismos pelos quais se podem extravasar os limites da soberania de determinado país para dar eficácia a um provimento jurisdicional. Também podem ser defi-nidas como meios de cooperação judicial entre Nações, com funda-mento no Direito Internacional, representando um instrumento de intercâmbio para o cumprimento extraterritorial de medidas proces-suais provenientes de outras Nações, conforme assegura (BRASIL, 2005 em voto na Carta Rogatória n. 438 – BE).

Precisam, contudo, para poder satisfazer os anseios do juízo rogante, do exequatur do (STJ). Isso impõe um sistema de contencio-sidade limitado, também conhecido como juízo de delibação, onde o interessado não poderá impugnar, à luz do direito brasileiro, o fundo da controvérsia jurídica que originou a instauração do processo, ou seja, o mérito da decisão, com exceção, evidentemente, dos casos que vão de encontro aos bons costumes ou ofendem a ordem pública e a soberania brasileira, conforme art. 17 da (LINDB).

Em outras palavras, o exequatur do (STJ) nada mais é do que um juízo de valor realizado pelo (STJ) onde são analisadas, princi-palmente, as questões concernentes às condições formais da Carta Rogatória, estabelecidos pelo art. 202 do (CPC), juntamente com os requisitos do art. 17 da (LINDB). Fundamental, portanto, esse juízo

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de delibação para a preservação da soberania nacional, um dos indis-pensáveis e constitucionais fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro.

De modo semelhante é tratada a denominada homologação de sentença estrangeira, que é “o instrumento destinado a reconhecer a sentença proveniente de Estado estrangeiro, permitindo que a mes-ma passe a produzir efeitos no Brasil” (CAMARA, 2006, P.34), uma vez que, a sentença proferida por Tribunal estrangeiro não tem eficá-cia em território brasileiro senão depois de homologada pelo (STJ). A ideia deste instituto é essencialmente similar ao da carta rogatória, quer seja, internalizar um provimento jurisdicional estrangeiro, en-tretanto, enquanto esta nacionaliza mormente atos de impulso pro-cessual, a homologação, como já diz o próprio nome, internaliza o provimento jurisdicional final, ou seja, a sentença.

A ação de homologação de sentença é, conforme assegura (CAMARA, 2006), a ação de conhecimento, de jurisdição conten-ciosa, com contraditório entre o que pede a atribuição de eficácia à sentença estrangeira e a parte contrária que pretende negá-la, que visa justamente a obtenção de uma sentença constitutiva, ou seja, a tal homologação. Essa homologação pelo (STJ), destarte, modifica a situação jurídica existente, possibilitando a produção da eficácia do ato jurisdicional alienígena em nosso país.

A homologação, de forma análoga com o que ocorre com o exequatur da carta rogatória, se dá por meio do juízo de delibação, onde:

Verifica-se, por meio desse crivo por que passa o julgado, se está ele regular quanto à forma, à au-

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tenticidade, à competência do órgão prolator, bem como se penetra na substância da sentença para apurar se, frente ao direito nacional, não hou-ve ofensa à ordem pública e aos bons costumes (THEODORO JUNIOR, 2010, P. 699).

Ou seja, o (STJ) não julgará novamente a lide, não indagará a justiça ou injustiça da decisão estrangeira, apenas apreciará a presença os requisitos formais necessários para a sua nacionalização e eficácia, bem como a adequação à ordem pública e aos bons costumes.

Requisitos estes que são elencados pela (LINDB), em seu art. 15: a) haver sido proferida por juiz competente, de forma que não seja um dos casos de competência exclusiva da justiça brasileira; b) terem sido as partes citadas ou haver-se legalmente verificada a revelia, ou seja, tenha sido garantido o direito constitucional ao contraditório; c) ter passado em julgado e estar revestida das formalidades necessárias para a execução no lugar em que foi proferida, a fim de que se evitem efeitos a atos com alto grau de instabilidade; d) estar traduzida por intérprete autorizado, já que os membros do (STJ) não são obrigados a conhecer todos os idiomas; e) ter sido homologada pelo (STJ).

Além disso, é fundamental se destacar que a sentença estran-geira, uma vez homologada tem a mesma força e eficácia de uma de-cisão nacional, gerando um título executivo judicial e, por isso, estan-do apta a ser executada segundo as regras para a execução de sentença nacional da mesma natureza, conforme sustenta (THEODORO JUNIOR, 2010). Na mesma linha, uma vez homologada a sentença alienígena, surtirão todos os efeitos da coisa julgada, não sendo lícito às partes discutir novamente a lide em demanda promovida junto a Justiça nacional.

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Por fim, no que tange ao procedimento, ou seja, na forma como se dá processualmente essa homologação, é importante frisar que é regulado pela Resolução nº 9/2005 da Presidência do (STJ). Segundo esta, uma vez proposta a ação de homologação de sentença estrangeira deverá ser o réu citado para, em quinze dias, apresentar a defesa, estando limitada a autenticidade dos documentos, inteligência da sentença ou (in)observância dos requisitos exigidos pelo sistema jurídico positivo para homologação.

Diz a Resolução também que o Presidente do (STJ) atuará nestes casos como órgão monocrático e que nos casos em que per-manecer revel o réu ser-lhe-á nominado um curador especial, além de ainda sujeitar a ação à manifestação do Procurador-Geral da Re-pública.

Havendo, todavia, qualquer impugnação a pretensão de ho-mologar a sentença estrangeira, seja por parte do réu, pelo Procura-dor-Geral ou pelo curador especial, segundo (CAMARA, 2006), o Presidente do (STJ) não julgará de imediato o feito, mas o remeterá à Corte Especial do (STJ), onde caberá ao relator a prática de todos os atos ordinatórios e instrutórios, de modo a resguardar o constitu-cional direito ao contraditório e a ampla defesa, conforme art. 9º, §1º da referida Resolução.

Enaltecidos, destarte, os principais pontos procedimentais dos sistemas de nacionalização de decisões jurisdicionais estrangeiras, ficou evidente a sua inadequação em face das decisões liminares es-trangeiras, uma vez que o procedimento de homologação de sentença estrangeira prescinde do trânsito em julgado da decisão e as cartas rogatórias não têm o condão executivo.

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eficácia dos efeitos decisão liminar estrangeira

Entendida a importância das tutelas de urgência para o real alcance da justiça e as complexas formas de processamento que as decisões estrangeiras precisam ser submetidas para que possam pro-duzir efeitos dentro do ordenamento jurídico pátrio, já se pode passar ao ponto nevrálgico da questão, ou seja: como poderiam as decisões estrangeiras que concedem medidas antecipatórias surtir efeitos no Brasil, uma vez que ainda não passaram em julgado, conforme estipu-la o art. 15 da (LINDB).

A leitura do texto legal é clara, não deixando qualquer dúvi-da a respeito da indispensabilidade de todos os requisitos do art. 15 da (LINDB), já o entendimento jurisprudencial vem acertadamente passando por algumas alterações nos últimos anos, especialmente de-pois da Emenda Constitucional n. 45 de 2004, que retirou o proces-samento de nacionalização de sentenças estrangeiras da competência Supremo Tribunal Federal (STF) e o conferiu ao (STJ) – Corte reco-nhecidamente menos conservadora.

Todavia, foi a Suprema Corte Brasileira que, em 1997, come-çou a dar novos ares a essa tão polêmica temática do pouco conhecido Direito Processual Civil Internacional. Na ementa do acórdão pro-ferido no Agravo Regimental na Carta Precatória n. 7.613, o então Relator Ministro Sepúlveda Pertence, ao analisar o Protocolo de Las Leñas, que regulamenta a cooperação jurídica no âmbito do Merco-sul, reconheceu que a Carta Rogatória também pode ser um instru-mento para homologação de sentenças estrangeiras, sendo incluídas no conceito destas as decisões interlocutórias.

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Com isso o (STF) ampliou entendimento sobre o conceito de sentença, compreendendo também as decisões interlocutórias, e, ao mesmo tempo, passou a aceitar outras formas de nacionalização de sentenças estrangeiras que não a própria homologação.

Até então as decisões interlocutórias estrangeiras se encon-travam em uma área bastante nebulosa, já que não poderiam ser aqui executadas através da homologação de sentença porque, obviamente, não se enquadravam no próprio conceito de sentença, além é claro, de não terem passado em julgado, requisito básico do art. 15 da (LIN-DB). Também não poderiam se valer da Carta Rogatória, porque esta era considerada um mero mecanismo de intercâmbio internacional, podendo ser utilizada tão somente por autoridades judiciárias.

Esse novo entendimento, que consolidou a ideia de uma cer-ta equivalência entre estes dois institutos, propiciou que as decisões ditas instáveis, mas por vezes cruciais na consolidação de um direito, pudessem começar a ter eficácia dentro do ordenamento jurídico bra-sileiro. Materializou também o conceito de que além de se analisar as formalidades legais e processuais é fundamental se pensar a lide de forma racional e humana, trazendo o fundo da questão – que não se confunde com o mérito, mas com a temática que envolve o litígio – para o centro da análise.

Esse novo entendimento de se poder nacionalizar decisões judiciais por meio da Carta Rogatória é fundamental justamente para esses casos de decisões interlocutórias que deferem tutelas antecipa-das, já que até então não havia um mecanismo processual que conse-guisse atender a esse tipo de demanda. Felizmente a jurisprudência brasileira, como já tem sido a grande tendência do direito contem-

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porâneo, conseguiu suprir a lacuna deixada pela legislação e analisar essa problemática questão, tão importante na busca ou consolidação de um direito.

Todavia, é muito importante, segundo (DIPP, 2007), atentar para o fato de que nas Cartas Rogatórias o Presidente do (STJ) po-derá deixar de intimar os interessados quando tal comunicação puder frustrar o cumprimento das diligências requeridas. É o que está pre-visto no Parágrafo Único do art. 8º da Resolução 09/05- (STJ): “A medida solicitada poderá ser realizada sem ouvir a parte interessada quando sua intimação prévia puder resultar na ineficácia da coope-ração internacional”. Nos casos das tutelas de urgência isso pode ser ainda mais perigoso, já que o processo estrangeiro pode sequer ter chegado na fase de instrução e a tutela já ter sido deferida, simples-mente pela verossimilhança das alegações ou pelo fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.

É fundamental, portanto, a análise criteriosa do caso concreto para que as injustiças não imperem e esse grande passo da justiça bra-sileira não se transforme em um retrocesso ainda maior.

ConsiDerações Finais

Diante de todo o exposto, foi possível se constatar que o Di-reito Processual Civil Internacional está entre os mais complexos e menos conhecidos ramos do direito, até por ser regulado pelas mais diversas legislações e, principalmente, por jurisprudências. Isso se dá, mormente, pelo fato de que o direito internacional precisa responder de forma rápida e eficaz a essas novas demandas geradas pelo avanço

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avassalador do fenômeno globalizacional, que vem intensificando e dinamizando por completo as relações sociais pós-modernas.

A nacionalização de decisões estrangeiras, por sua vez, é mui-to importante para aqueles casos em que nos valemos da competência internacional concorrente, onde o litígio pode ser processado e jul-gado no local do ocorrido e depois internalizado, garantindo todos os benefícios da ambientalização do julgador com a localidade e seus costumes, além é claro com todos os instrumentos probatórios. O instituto da tutela antecipada também não é diferente, sendo muito utilizado nestes tempos de superlotação e morosidade do judiciário, onde a longa marcha processual por vezes liquida com toda a razão de existir da demanda.

Esse novo entendimento adotado pela Suprema Corte Bra-sileira e disseminado pelo (STJ), veio, portanto, a facilitar essa nacio-nalização, dando uma atenção toda especial para os casos em que as decisões alienígenas ainda não passaram em julgado. Muito embora os críticos dessa nova inteligência digam que esse tipo de nacionali-zação atentaria contra a segurança jurídica, é preciso se pensar que os verdadeiros ideais de justiça, em certos casos, se encontram para além das formalidades procedimentais.

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o CarÁter GLoBaL Da QUestão aMBientaL

Leandro Carvalho Sanson1

resumo

Em um mundo onde as fronteiras se tornaram mais flexíveis, e a velocidade de informações aumenta exponencialmente, novas ques-tões e novos atores assumem protagonismo no cenário internacional. Nesse contexto, os Estados passaram a responder a novos desafios cujos impactos não podem mais ser deixados para segundo plano, tanto no âmbito local quanto no global, como, por exemplo, a degradação am-biental. Neste sentido, buscou-se no presente estudo analisar estes pro-cessos de transformações e impactos nas relações sociais e políticas no ambiente do mundo globalizado, considerando aspectos referentes ao papel do Estado e sua relação com a sociedade civil, partindo de ele-mentos como democracia e meio ambiente, bem como, a constituição e dinâmica de uma esfera pública da questão ambiental.

Palavras-chave: Esfera Pública. Meio Ambiente. Globalização. Te-oria Social.

abstract

In a world where borders have become more flexible, and

1 Mestre em Ciências Sociais pela UFSM / [email protected]

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speed of information increases exponentially, new issues and new ac-tors assume leadership in the international arena. In this context, the states began to respond to new challenges whose impact can no lon-ger be left to the background, both locally and globally, for example, environmental degradation. In this sense, we sought in this study to analyze these processes and impacts of changes in social and political environment in the globalized world, considering aspects related to the role of the state and its relationship with civil society, from ele-ments such as democracy and the environment as well as the forma-tion and dynamics of a public sphere of environmental issues.

Keywords: Public Sphere. Environment. Globalization. Social Theory.

introDUção

A controvérsia encontrada no meio acadêmico acerca das mudanças ocorridas nas ultimas décadas e seus diversos efeitos nas mais variadas relações sociais tais como economia, política, produção e meio ambiente, têm ganho destaque em todo o globo. A relação do ser humano com o ambiente biofísico em que vive tem gerado, prin-cipalmente após a década de 60, uma série de produções científicas na teoria social contemporânea, especialmente sobre o estudo da origem e efeitos do processo de degradação do meio ambiente e sua relação com as instituições modernas.

O processo de análise da questão ambiental pela Teoria Social gerou inicialmente grandes controvérsias no meio acadêmico, com um conseqüente lento caminho da abordagem analítica da questão

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ambiental pela sociologia. A incorporação da problemática ambiental na Teoria Social

contemporânea acompanhou o fluxo de mudanças ocorrida na socie-dade moderna que ocasionou o surgimento de uma nova dinâmica de atuação social, principalmente no que diz respeito à relação Estado, iniciativa privada e sociedade civil, que gerou uma nova racionalida-de de ação desses atores. Neste contexto, o Estado passou a ocupar um papel estratégico dentro da Esfera Pública ambiental, pois passou a atuar não só como ator desta esfera, mas também como princi-pal receptor das demandas encaminhadas por ela, na qual exigem do mesmo respostas na forma de uma ação política (de acordo com os interesses dos atores).

O surgimento de um campo sociológico específico sobre a questão ambiental (sociologia ambiental) veio contribuir consideravel-mente para o entendimento desta interação entre homem e o ambiente natural em que vive, inserido dentro desta nova dinâmica social.

teoria social e a Degradação ambiental

A questão ambiental, nas últimas décadas do século XX, al-

cançou o status de problema global e tem mobilizado não apenas os movimentos da sociedade civil organizada e os meios de comunica-ção, mas também os governos de todas as regiões do globo terrestre. No entanto, apesar da forte organização de práticas e movimentos visando à proteção ambiental, por parte de ONGs e organizações científicas ligadas à perspectiva ambientalista, existe uma divergência no meio científico sobre o efetivo resultado dessa mobilização social

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para solução dos problemas ambientais.Frederick Buttel (2000) argumenta que a ampla disseminação

da preocupação dos setores da sociedade civil e governos com os pro-blemas ambientais, mesmo com a intensa agenda em fóruns interna-cionais, não geraram um consenso em torno de soluções, ao contrário, à medida que se ampliou o debate em relação à temática, aguçaram os conflitos, e as soluções tornaram-se mais problemáticas do que se poderia imaginar trinta anos atrás.

O Dia da Terra2 representa de alguma forma, o início do mo-vimento ambientalista moderno e inaugurou a Década Ambiental nos anos de 1970, onde os sociólogos não encontraram nenhum cor-po teórico anteriormente constituído, ou pesquisa, para orientá-los em direção a uma compreensão no relacionamento entre sociedade e meio ambiente (HANNIGAN, 2009). Nesse sentido, as atuais for-mas de degradação do meio ambiente representam um dos mais, se não o mais, complexo dilema da modernidade. Assim, a emergência desses dilemas passaram a exigir da Teoria Social contemporânea sua inserção analítica a respeito da problemática, buscando meios de con-tribuir para a explicação dos elementos que compõem esse processo de degradação do ambiente (GOLDBLATT, 1996).

Afastando-se do entendimento do senso comum, a evolução

2 Segundo Hannigan (2009, p.15), o dia da Terra iniciou-se como uma proposta modesta por educação nacional sobre o meio ambiente e cresceu para um evento multifacetado com milhares de participantes. O que mais distinguiu o Dia da Terra, entretanto, foi a declaração simbólica de ser o Dia do novo ambientalismo, uma in-terpretação que foi amplamente aceita pela mídia de massa americana, permitindo, dessa forma, o imediato reconhecimento da causa ambiental por toda parte.

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dos estudos acadêmicos demonstra claramente que inexiste uma ex-plicação simples sobre a origem e os efeitos da degradação ambiental, tornando-se um grande desafio para a Teoria Social contemporânea devido à complexidade que a temática exige. Algumas formulações a respeito têm sido constantemente debatidas no meio científico (ora afirmadas e ora refutadas). Nesse sentido, uma das explicações mais influentes dentro da Sociologia Ambiental para a degradação do am-biente natural é a da relação existente entre o capitalismo, o Estado e o meio ambiente (explicação da economia política)3.

Segundo Alan Schnaiberg (1980) apud Hannigan (2009), a economia política dos problemas ambientais e políticas públicas or-ganizadas dentro de uma estrutura da sociedade moderna industrial, gera uma cadeia de produção que se refere à necessidade “inerente de um sistema econômico de continuamente produzir lucro ao criar de-manda de consumo para novos produtos mesmo quando isto significa expandir o ecossistema ao ponto no qual excede seus limites físicos de crescimento” (HANNIGAN, 2009. p. 40).

Segundo Hannigan (2009),

Schnaiberg descreve a cadeia de produção como um mecanismo complexo que se autorreforça enquanto os políticos respondem ao estrago am-biental criado pelo crescimento econômico de ca-pital intensivo legislando políticas que encorajam expansão maior ainda. Por exemplo, se lida com a redução de recursos não pela redução do consumo

3 Segundo Hannigan (2009), esta explicação pode ser encontrada no livro de Alan Schnaiberg (1980), onde o autor descreve a natureza e gênesis de relações contradi-tórias entre a expansão econômica e a degradação ambiental.

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ou adoção de um estilo de vida mais moderno, mas sim pela abertura de novas áreas de exploração (HANNIGAN, 2009. p. 40).

Percebe-se, nessa análise detectada pelo autor (Schnaiberg), uma tensão dialética existente entre a cadeia de produção e a necessi-dade do exercício da proteção ambiental, que, em caráter institucional é obrigatoriedade dos Estados, entre os diversos entes sociais, e, como ela está em voga nas pautas políticas dos governos de todo o globo, o Estado tem se deparado com um grande dilema4, pois deve equi-librar gradualmente o seu duplo papel, de facilitador do crescimento econômico e acumulação de capital, bem como, também de protetor e regulador ambiental (HANNIGAN, 2009).

Correntes marxistas, enquadradas dentro da explicação eco-nômica da degradação ambiental, são mais radicais na crítica à di-nâmica do desenvolvimento capitalista como propulsor do aumento da destruição ambiental. “David Harvey (1974), o geógrafo marxista, acusa os capitalistas de criar deliberadamente escassez de recursos para que os preços possam ser mantidos altos” (HANNIGAN, 2009. p. 41).

Essa relação dialética existente na relação entre economia, Estado e meio ambiente tem gerado inúmeras divergências analíti-cas referentes aos verdadeiros causadores e efeitos da degradação am-

4 Conforme argumentado por Redclif, os Estados encontram-se presos em uma posição contraditória, pois se encontram imbuídos de serem os promotores do de-senvolvimento econômico e reguladores ambientais, devendo os governos estarem engajados em um processo de gestão ambiental, no qual eles buscam legislar um limitado grau de proteção suficiente para evitar a crítica, mas não o suficiente para evitar o avanço descontrolado do crescimento econômico (Hannigan, 2009).

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biental pelas relações econômicas e produção. Nesse sentido, a própria explicação da cadeia de produção, conforme entendido por Hannigan (2009), teve a vantagem de localizar a presença de problemas am-bientais nas desigualdades dos sistemas políticos e economicamente produzidos pelos humanos, ao invés do abstrato conflito de funções preferido pelos ecologistas humanos.

Anthony Giddens, em sua obra “As Conseqüências da Mo-dernidade (1991)”, associou as mudanças ambientais a dois eixos ins-titucionais da modernidade: industrialismo e capitalismo. Ele consi-dera a modernidade multidimensional no âmbito das instituições, e cada um dos elementos especificados por essas várias tradições repre-sentam algum papel (Giddens, 1991. p. 21).

Giddens atribuiu ao industrialismo a imputação das causas dos danos ambientais, sendo que, em seu entendimento, a industria-lização libertou o crescimento urbano capitalista da economia orgâ-nica avançada dos seus limites ecológicos. Dessa forma, é a dinâmica institucional da economia capitalista que criou as conseqüências da degradação ambiental do industrialismo dentro dos espaços urbanos, ocasionando o aumento de problemas ambientais antigos e o sur-gimento de novos. Para o autor, a combinação do capitalismo e do industrialismo tornou os problemas ecológicos mais intensos (GOL-DBLATT, 1996)5.

5 David Goldblatt (1996), ao analisar a obra de Giddens, critica as explicações causais da degradação ambiental apontada pelo autor, pois a considera frágil e ausente de uma abordagem analítica mais minuciosa. Para o autor, o papel das forças políticas e culturais na degradação ambiental são fundamentais para o entendimento real de suas causas e efeitos e não foram alvo da abordagem analítica de Giddens.

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No entanto, nenhum desses eixos institucionais (industria-lismo e capitalismo) pode ser visto como envolvido unilateralmente nas mudanças ambientais no contexto da modernidade. Na verdade, ambos fariam parte de um processo geral de interação que teria no urbanismo o seu principal mediador.

Para o sociólogo Ulrich Beck (1992), o que se distingue ver-dadeiramente sua obra de todos os teóricos sociais contemporâneos, é o fato de o potencial catastrófico da degradação do ambiente, no nível global, ocupar a cena principal.

O autor afirma que a modernidade descrita nas obras dos te-óricos sociais clássicos está sendo transformada num tipo de socie-dade fundamentalmente diferente, ou seja, uma sociedade de risco. Essa transformação é, em parte, movida pela emergência de níveis profundos e historicamente incompatíveis com perigos e riscos para o ambiente que atingem uma dimensão e forma tais que os modelos convencionais da sociedade moderna não conseguem apreender as suas origens e conseqüências (BECK, 1992).

O uso do conceito de “sociedade de risco” por Beck (1992) refere-se justamente a essa fase de radicalização dos princípios da modernidade, pois, segundo ele, o progresso gerado pelo desenvolvi-mento científico e tecnológico torna-se uma fonte potencial de riscos no sentido da possibilidade de autodestruição da sociedade industrial. Os riscos daí resultantes são, em geral, de alta gravidade, ao mesmo tempo em que possuem uma magnitude global, pois tendem a afetar todo o planeta, os riscos são globais.

Tanto para Beck quanto para Giddens, as sociedades alta-mente industrializadas, próprias do início da modernidade, enfren-

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tam riscos ambientais e tecnológicos que não são meros efeitos co-laterais do progresso, mas centrais e constitutivos dessas sociedades, ameaçando todas as formas de vidas no planeta e, por isso, estrutu-ralmente diferentes no que diz respeito as suas fontes e abrangência” (GUIVANT, 1998, p.19).

Os argumentos de Beck relativamente à transformação da modernidade clássica numa sociedade de risco são rigorosamen-te confrontados com o modelo de Giddens de modernidade tardia radicalizada, no qual os movimentos sociais ambientalistas reagem a riscos e perigos para o ambiente recentemente observados. Beck investiga também os meios pelos quais as relações do poder político e cultural contemporâneo servem para ocultar as origens da degrada-ção do ambiente e proteger os perpetradores dessa degradação. Fi-nalmente, Beck, defende que a democracia e a democratização tanto do processo político convencional como dos centros de decisões eco-nômicas, previamente despolitizados, constitui elemento essencial de uma política de ambiente sustentada.

Nesse sentido, Beck e Giddens conduzem o tema dos riscos para o centro da teoria social contemporânea, ou seja, tais autores (principalmente Beck) propõem não apenas construir um novo con-ceito dentro da teoria social, mas uma teoria da sociedade global de risco, que estabeleça um novo paradigma teórico dentro da sociologia.

Sendo assim, podemos perceber que o processo de constitui-ção de um campo sociológico que trate da problemática ambiental, bem como a complexidade desse processo, no remete ao entendimen-to de que a Sociologia Ambiental não trata meramente das dimen-sões sociais do meio ambiente, mas sim, e isto pode ser afirmado sem

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contradição com a pluralidade de correntes existentes, remete à aná-lise de todo o processo de incorporação do meio ambiente dentro da discussão sociológica.

esfera pública ambiental

As rápidas mudanças sociais, acarretadas principalmente pe-los processos de Globalização, e a ocorrência de graves catástrofes naturais dos últimos anos, com a crescente degradação ambiental, di-retamente percebidas pelas mudanças climáticas por todo o globo, vêm sendo interpretadas por muitos como as conseqüências mais evi-dentes da ação do homem sobre o meio em que vive, demonstrando assim a necessidade de observância da temática nas pautas política e social dos países do globo.

O caráter transnacional das questões ambientais significa também que nenhum país está imune às suas conseqüências. O para-digma atual do desenvolvimento sustentável traz à tona a necessidade de mudanças em muitas esferas de atuação do Estado e da sociedade. Assim, é justamente nesse cenário global de insegurança e incertezas que acordos internacionais são negociados.

A notória discussão em relação às questões ambientais, con-forme já argumentado, tem sido pauta de discussão dos mais diversos atores políticos sociais (ONGs, Movimentos Sociais, Seguimento Ar-tístico, Meio Científico, Iniciativa Privada, Poder Público), gerando uma intensa agenda de debate sobre a questão e a busca de soluções para os iminentes riscos ambientais. Nesse sentido, é possível iden-tificar um novo espaço público de discussão que resulte em formas

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de ação política nesse contexto contemporâneo. É justamente nessa fronteira entre as esferas pública e privada, compreendida não como demarcação de campos antagônicos, mas como faixa de permanente negociação6, que reside a nossa questão.

A questão ambiental, devido principalmente ao envolvimento de uma grande multiplicidade de atores sociais, pode ser caracteriza-da como uma demanda social de grande complexidade, sendo que a preservação ambiental não envolve aspectos apenas naturais, mas sim culturais, econômicos, políticos, morais, ou seja, de caráter subjetivo e pertencentes ao mundo das relações sociais e humanas.

Assim, é importante entender que a problemática ambiental, inserida na esfera pública contemporânea, é composta por uma série de processos em busca de legitimação enquanto problema global.

Nesse sentido, é importante verificar, dentro desse processo, o papel da mídia como propulsora, ou não, da questão ambiental. Segun-do Hannigan (2009), “sem a cobertura da mídia, as possibilidades que um problema prévio possa entrar numa arena do discurso público ou se tornar parte do processo político, são bastante reduzidas” (p.121). De uma forma estratégica, para os problemas ambientais passarem da condição de questão para uma política pública, o papel da mídia é fun-damental, no entanto, deve-se ter cautela quanto à teia de significados que ela pode produzir na construção de realidades aparentes7.

6 Importante entender aqui a palavra “negociação” como disputa de interesse dos atores envolvidos neste processo, podendo esses interesses serem positivos e/ou negativos à preservação ambiental. 7 Hannigan também destaca que a mídia, ao mesmo tempo em que possui um papel estratégico como difusora dos problemas ambientais e de dar respaldo a estas ques-

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A ciência também ocupa um importante espaço dentro desse processo de legitimação dos problemas ambientais. “É realmente raro encontrar um problema ambiental que não tenha suas origens num corpo de pesquisa científica8” (Hannigan, 2009. p. 141). A estrutura de apoio científico e seu respaldo sobre determinados problemas am-bientais, sustentam, acima de outros problemas sociais, as mais de-pendentes de bases morais. O avanço dos estudos científicos com a adoção de novas técnicas tem sido fundamental para a descoberta de novos problemas ambientais, que antes era impossível de se descobrir, tornando assim também a ciência um importante colaborador para o processo de formulação de políticas públicas ambientais (HANNI-GAN, 2009). Ressalta-se que o próprio debate público em relação aos problemas ambientais, direta ou indiretamente, usa os argumen-tos científicos para suas formulações, tanto positiva (quando usam como legitimadores de formulações), como negativamente (quando questionados).

Entende-se, assim que, tanto a mídia como a ciência (dentre outros) são agentes importantes dentro deste processo da legitimação e fomento da arena pública sobre a questão ambiental. Nesse contex-to, podemos perceber que a entrada da natureza ou meio ambiente no campo da política pode ser vista como uma ampliação da esfera

tões, também é conflitante e complexa, pois, dependendo dos limites organizacionais e rotinas de comunicação dos meios de comunicação, ela pode ter um papel de “construção” de uma realidade aparente sobre a problemática.8 “A chuva ácida, a perda da biodiversidade, o aquecimento global, a redução da camada de ozônio, a desertificação, o dióxido de carbono, são todos exemplos de problemas que começaram com uma série de observações científicas” (HANNIGAN, 2009, p. 141).

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pública, na medida em que os destinos da vida, como preocupação social, conquistam um espaço crescente como objeto de discussão po-lítica na sociedade. Da mesma forma, devido principalmente a aspec-tos político/econômicos, é perceptível uma tensão entre ampliação e/ou redução dessa esfera pública, evidenciando questões sobre as pos-sibilidades emancipatórias ou desagregadoras de uma fazer político orientado por um ideário ambiental.

É importante ter o entendimento de que a esfera pública am-biental resulta da interlocução entre diversos segmentos da sociedade preocupados com a problemática ambiental. Nesse contexto, a esfera pública constitui a arena viva e dinâmica na qual se envolvem os diver-sos grupos de interesses em um permanente processo de construção, desconstrução e reconstrução discursiva e simbólica sobre a questão.

Dessa forma, a ação política envolvendo os diversos atores sociais (políticos, empresas e sociedade civil), deve envolver-se nessa nova dinâmica de ação na resolução dos problemas ambientais. Devi-do ao fato da problemática ambiental não se tratar de um fato isolado, mas sim originário da ação direta do homem na vida social moder-na (ex. tecnológicos, culturais, econômico), o Estado deve ser ativo na constituição de mecanismos na busca da resolução dos problemas ambientais, propiciando novas formas de abordar o meio ambiente como tema político, conectando-o a outras questões e proporcionan-do as condições necessárias para a participação da sociedade civil nes-se processo.

Perceber-se que a dinâmica dessa esfera pública ambiental pos-sui uma certa racionalidade de ação, na qual grupos disputam (nego-ciam) dentro de uma arena pública seus interesses (políticos, econômi-

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cos, ecológicos, etc.). O que se deve observar é que, dentre esses atores sociais, o Estado possui um papel chave na manutenção dessa esfera pública, podendo o mesmo ser um cerceador ou fomentador de políti-cas públicas que venham ao de encontro de certos grupos de interesse.

Nesse sentido, verificando a complexidade de atores envolvi-dos nesse processo e sendo a questão ambiental um problema global, mas que, acima de tudo, afeta o local, deve-se observar como os atores sociais locais estão atuando em relação a essa problemática.

Em um mundo onde as fronteiras se tornaram mais flexíveis, e a velocidade de informações aumenta exponencialmente, novas ques-tões e novos atores assumem protagonismo no cenário internacional. Essa realidade global desafia ao questionamento antigos conceitos, que voltam à tona, tais como soberania, cidadania, autonomia, poder.

Nesse contexto, conforme mencionado, os Estados passaram a responder a novos desafios cujos impactos não podem mais ser dei-xados para segundo plano, tanto no âmbito local como no global, como, por exemplo, a degradação ambiental.

A sociedade, nas últimas cinco décadas, passou por mudan-ças significativas. Processos como a globalização e a expansão da re-flexividade social9 alteraram o contexto da vida política, levando ao questionamento os paradigmas políticos até então existentes (GID-DENS, 1996).

Tendo em vista a complexidade da nova ordem mundial, cabe

9 Para Giddens, a sociedade moderna, devido a sua complexidade, exige dos indiví-duos uma reflexividade social, onde os indivíduos devem se acostumar a filtrar todos os tipos de informações relevantes para as situações de suas vidas e atuar rotineira-mente com base nesse processo de filtragem.

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salientar que a globalização não está comandada por forças inexorá-veis e nem marcada exclusivamente por relações e processos de natu-reza econômica. Está, entre outros fatores, sujeita a uma lógica políti-ca, que por sua vez, tem a ver com relações assimétricas de poder, que se estabelecem entre as potências em escala mundial. Configuram-se, assim, as redes transnacionais de conexões, através das quais se ar-ticulam alianças estratégicas, envolvendo atores externos e internos (DINIZ, 2000a, cap.1).

Certamente estamos em uma fase de transformações sociais, políticas, econômicas, etc. a qual gera grandes incertezas, necessitan-do, cada vez mais, de novos componentes para lidar com esse novo ambiente social contemporâneo.

O estudo, cada vez mais frequente, de formas de participação política direta e seus efeitos sobre a economia, revelam que a demo-cracia (sob a ótica liberal – representativa) atualmente enfrenta um paradoxo: há um enfraquecimento do processo político democrático ao mesmo tempo em que aumentam as demandas sobre o Estado. No entanto, tal enfraquecimento não se deve à perda dos valores de-mocráticos, mas ao sentimento de frustração que decorre da incapa-cidade do sistema político tradicional e seus governos democráticos de enfrentar os problemas da desigualdade social, acarretando numa perda de confiança na própria democracia. Surge assim a necessida-de de identificar os efeitos e as formas de participação política, dos diversos atores sociais, e seus processos democráticos (tradicionais ou novos), na busca de soluções desses problemas sociais, como a proble-mática ambiental.

É na obra de Robert Dahl (1997), que encontramos uma

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concepção mais próxima a uma racionalidade de ação de uma esfera pública a partir de processos democráticos modernos. Para o autor, as democracias existentes são efetivamente pobres aproximações do ide-ário democrático. Dessa forma, ele sugere que estas sejam chamadas de poliarquias10. Nesse sentido, a democratização é um processo de progressiva ampliação da competição e da participação política. As-sim, são estabelecidos pelo autor dois eixos analíticos fundamentais para a identificação da democratização nos Estados, ou seja, a com-petição política e a participação (DAHL, 1997).

Fernando Limongi, no prefácio da obra de Robert Dahl expõe:

A democracia, afirma Dahl, é fruto de um calculo de custos e benefícios feitos por atores políticos em conflito. O ponto de partida dessa formulação é a premissa de que todo e qualquer grupo políti-co prefere reprimir a tolerar seus adversários (LI-MONGI apud DAHL, 1997. p. 21).

Conforme visto, a democracia é, sobretudo, fruto de um cál-culo de atores políticos inseridos em uma relação estratégica e sus-tentados por um equilíbrio de forças. Nessa arena pública de disputa de interesses insere-se também a questão ambiental, pois, conforme já argumentada neste estudo, envolve uma série de grupos de interes-ses conflitantes (movimento ambientalista, ONGs, iniciativa privada,

10 Para Dahl, não existe de fato um regime plenamente democrático, mas sim regi-mes que apresentam graus de democratização. Assim, as poliarquias são pensadas como regimes relativamente (mas incompletamente) democratizados, ou, em outros termos, as poliarquias são regimes que foram substancialmente popularizados e libe-ralizados, isto é, fortemente inclusivos e amplamente abertos à contestação pública.

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políticos, etc.) cabendo ao Estado o papel de ator mediador e respon-sivo11 pela busca do equilíbrio dessas forças em disputa. Mais ainda, percebe-se claramente, dentro do processo democrático, uma racio-nalidade dos agentes na sua ação, através de um cálculo estratégico de custos e benefícios.

Conforme demonstrado na presente pesquisa, os problemas ambientais são as fontes primordiais de riscos no mundo moderno, e os impactos ambientais estão intimamente ligados aos processos da sociedade moderna, agindo em diferentes dimensões.

Dessa forma, a ação política, envolvendo os diversos atores so-ciais (políticos, empresas e sociedade civil), compromete-se nesta nova dinâmica de ação com a resolução dos problemas ambientais. Devido ao fato da problemática ambiental não se tratar de um fato isolado, mas sim originário da ação direta do homem na vida social moderna (ex. tecnológicos, culturais, econômico), o Estado deve ser ativo na consti-tuição de mecanismos na busca da resolução dos problemas ambien-tais, propiciando novas formas de abordar o meio ambiente como tema político, conectando a outras questões, e proporcionando as condições necessárias para a participação da sociedade civil nesse processo.

ConsiDerações Finais

Conforme demonstrado no presente estudo, o novo contexto social, originário dos processos de globalização, exige uma nova es-

11 Que faça parte de um sistema que responda as preferências de seus cidadãos, considerados politicamente iguais, e garantindo oportunidades plenas.

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truturação das relações sociais, nos mais diversos níveis (economia, política, costumes, tradição, etc.), inferindo ao cidadão um novo agir sociológico e político, com uma atuação do Estado diferenciada das que tradicionalmente (concepção ortodoxa) lhe era atribuída, voltada agora mais para a promoção da sociedade em graus de liberdade e oportunidades.

A análise até aqui realizada, possibilitou vislumbrar a cons-tituição e efeitos de um novo ambiente social (entendido por alguns como novo paradigma), proporcionado pelo avanço das rápidas mu-danças sociais, que auferiram às relações sociais (na sua completude geral) a necessidade de um novo “agir”, com base em uma sociedade de relações complexas dotadas de ”incertezas artificiais” e “riscos”.

Importante se observar, que o campo ambiental é também portador dos dilemas contemporâneos que afetam a esfera política, particularmente no que diz respeito as escolhas e ações presentes que vão incidir sobre o futuro, como projeto de vida comum.

A política aqui é percebida, como esfera pública, espaço por excelência da ação humana como convivência com os outros huma-nos e partilha nas decisões sobre os destinos dos bens comuns.

Nesse sentido, é sabido que os bens ambientais vêm se ins-tituindo na esfera pública com o status de Bem comum de grande relevância para a sociedade. Como tal, a questão ambiental tem al-cançado um lugar destacado nos embates sobre a construção social do futuro da comunidade humana, vinculando as atuais e as novas gerações numa esfera de negociação de projetos de sociedade e modos de engajamento político.

Ao se ligar as teorias sociais contemporâneas ao objeto do

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presente estudo remete-se a idéia da constituição de uma nova esfe-ra pública ambiental, englobando a diversidade dos participantes no ambiente do diálogo, e na disputa de interesses.

Neste contexto, a constante preocupação social e política das questões vinculadas ao meio ambiente, principalmente referente à imagem de uma contínua deteriorização da vida humana, e sistemas ecológicos, gerou uma grande sensibilização social acerca da temática, que proporcionou o surgimento de idéias e posturas na opinião públi-ca sobre os problemas ambientais.

Neste sentido a exposição pública dos problemas que dizem respeito ao meio ambiente passou a ser abordada por um conjunto de conceitos, valores, problematizações, dimensões e ações construídas em torno da percepção da relação da sociedade com seu ecossistema. Conforme destaca Jollivet, “a questão do meio ambiente é uma inter-rogação institucionalizada que mobiliza e organiza as representações coletivas” (1994, p. 184), e assim emergindo publicamente.

Dessa forma, observamos que ao publicizar um tema con-siderado socialmente relevante, através de discussões ou ações sobre o agir humano para com o meio ambiente, gera ideologias e concei-tos, acabando também por exercer uma pressão social sobre as deci-sões políticas. Esse processo de inter-relação social entre Estado e Sociedade Civil sobre os problemas ambientais se da em um espaço intermediário considerado público (Esfera Pública), onde envolve a participação de diversos interesses.

A Esfera Pública é compreendida em razão dos discursos e ações dos atores que fazem dela um contexto para a manifestação de diversos interesses, problematizações e opiniões em torno a assun-

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tos considerados relevantes (COSTA, 1995). Assim, a esfera pública compreende um processo dinâmico de relações sociais, fundamenta-das em argumentos, discursos e ações, onde se limitam valores éticos e ideologias, na busca de propostas de ações. É o espaço que se da a emergência de temas que saem do privado para o público, com o envolvimento de diversos segmentos sociais.

Conforme já argumentado, a questão ambiental, juntamente com outros problemas sociais, tornou-se uma temática pública, com o reconhecimento de diversos atores (individuais e coletivos), forman-do uma esfera pública com a devida exposição de interesses, conflitos, alianças, etc. Esta arena pública (conforme retratada por Dahl, 1997), é um espaço de interação democrática que envolve diversos atores que por sua vez aplicam, conforme seus interesses (calculo de custos e benefícios) uma estratégia de ação, devendo o Estado assumir um papel de mediador deste processo.

Portanto, na esfera pública ambiental estão expostos interes-ses e conflitos, garantindo as condições para o acesso de grupos de interesses, e a possível omissão de outros, mas com a inevitável re-percussão na esfera política. Assim, as políticas públicas ambientais adquirem um caráter estatal ao inserirem-se nas relações entre Estado e Sociedade, sendo que as ações (ou omissões) sobre certas demandas vinculam ambos na construção deste processo.

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paraDipLoMaCia e poDer LeGisLatiVo no rio GranDe Do sUL: UM reLato soBre a CoMissão Mista perManente Do MerCosUL e assUntos

internaCionais (1996-2002) 1

Marcos Pascotto Palermo2

resumo

Este artigo analisa as atividades da Comissão Permanente do Mercosul e Assuntos Internacionais na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul no período de 1996 a 2002. O objetivo deste estudo é diagnosticar quais são os ganhos políticos na atuação do parlamentar desta Comissão e até que ponto realmente está sendo discutida a integração latino-americana em suas tarefas. Atenta para

1 O presente trabalho é um resumo de aspectos abordados no trabalho monográfico de conclusão de curso intitulado “A Comissão do Mercosul na Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul (1996-2002)”, apresentado pelo autor como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Nesta versão, tenta-se estabelecer diálogo com a questão da paradiplomacia, dada a pertinência do relato estudado. Os limites pos-síveis de serem encontrados neste artigo são o da adaptação do estudo de caso ao espaço permitido para a apresentação na forma de paper e às exigências da temática do evento em que foi apresentado, o III Fórum Regional de Relações Internacionais  - “A Emergência da Paradiplomacia na Política Internacional”. A monografia original faz parte do acervo da Biblioteca Central da UFSM.2 Professor Auxiliar do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Especialista em Direito Internacional Público e Privado e Direito da Integração pela Universidade Fe-deral do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestrando em Ciências Sociais pela UFSM e em Direito pela UFRGS.

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a alteração da forma e conteúdo das mesmas, dando importância às atividades que podem ser consideradas ligadas à paradiplomacia nesse Estado.

Palavras-chave: Poder Legislativo. Mercosul. Paradiplomacia.

abstract

This paper analyses the activities of the Mercosur Permanent Commission and International Affairs of the Legislative Assembly of the State of Rio Grande do Sul from 1996 to 2002. This study aims to diagnose the political advantages on the parliamentarian’s perfor-mance of this Commission and the extent that is being discussed Latin – American integration in its tasks. Furthermore, it focuses on the alteration of the form and content of these assignments, taking in account activities which can be considerate linked to paradiplomacy in this State.

Key words: Legislative Power. Mercosul. Paradiplomacy.

introDUção

A proposta de integração latino-americana trazida pelo Tra-tado de Assunção, em 1991, estabelece um modelo integrativo regio-nal, de caráter intergovernamental, o Mercosul, composto, então, por Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. A criação do bloco trouxe a possibilidade de se trabalhar com o tema mercosulino na Assembleia

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Legislativa do Rio Grande do Sul. Em 1995, ocorre a criação de uma comissão parlamentar especial e temporária, que deu origem a uma comissão permanente, em 1996. O incentivo para a existência desse projeto foi dado pela Constituição Federal de 1988, na qual se vê que a questão da integração latino-americana é recepcionada em seu art. 4º, onde se trata dos princípios que regem as relações internacionais do Brasil. No parágrafo único desse artigo diz-se que a República Federativa do Brasil tem por escopo buscar a integração econômica, política social e cultural dos povos da América Latina, visando à for-mação de uma comunidade latino-americana de nações.

Tal previsão constitucional fornece arcabouço institucional para que se possa pensar na formação de iniciativas legislativas para se concretizar essa integração. Não se olvida, contudo, que existem limitações institucionais dadas ao poder de legislar sobre temas per-tinentes à política externa, mesmo de integração regional, no âmbito das unidades federadas brasileiras, como os estados e os municípios. Na opinião de Seitenfus (2004), os Estados federais encontram-se no dilema de conceder atribuições indispensáveis na esfera internacional às suas unidades autônomas, correndo o risco de dispersão, contradi-ções e enfraquecimento.

A atuação destas unidades, na dita ordem internacional glo-balizada visando à consecução de seus interesses, recebe, em sentido lato, o nome de paradiplomacia. Este fato tem sido o alvo de pes-quisas dos estudiosos das Relações Internacionais contemporâneas. Concorda-se com o autor citado, quanto ao fato de que não há uma teoria solidificada quanto ao tema.

Mesmo sabendo que os parlamentares gaúchos estão sujeitos

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a uma barreira constitucional quanto a atividades relativas às relações internacionais, viu-se a criação de um espaço de discussão destes as-suntos exteriores. Estes, também passam pelo filtro daquilo que pode se considerar como funções de uma legislatura. La Palombara (1982), ao estudar estas funções, classificava-as em cinco: I- Elaboração de regras; II – Representação; III - Articulação e Agregação de Interes-ses; IV- Socialização e educação política, V- Supervisão, Observação e Fiscalização. Vê-se que uma comissão, por ser o microcosmo do plenário, tende a expressar as características da atuação de uma legis-latura sobre determinado tema. Ainda, a perspectiva dos modelos do novo institucionalismo acerca da atuação dos parlamentares, trazidos por Limogi (1994), é pertinente para explicar posturas políticas guia-das por um viés de racionalidade3.

O objetivo deste artigo é o de diagnosticar quais são os ga-nhos políticos na atuação do parlamentar nesta Comissão e até que ponto, realmente, se discute integração internacional nos seus traba-lhos. Atentar-se-á para a alteração da forma e conteúdo dos afazeres em duas legislaturas: a 49ª Legislatura, que acompanhou o Governo de Antonio Britto (1994-1998) e a 50ª Legislatura, correspondente ao governo de Olívio Dutra (1998-2002)4. Da mesma forma, pensa-

3 Tanto as funções de uma legislatura aqui citadas, quanto os modelos neoinstitu-cionalistas existentes (distributivista, informacional e partidário), demandariam um estudo que foge ao escopo e espaço deste trabalho. Recomenda-se, todavia, a leitura das obras dos autores citados nas referências existentes.4 O recorte temporal deu-se em virtude de que, à época de feitura do trabalho original (2005), haviam transcorrido por completo apenas duas legislaturas desde a criação da referida Comissão.

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-se que a atuação em questão reflete um modo de se aplicar a paradi-plomacia, realizada, neste caso, não pelos Poderes Executivos locais, mas por um órgão legislativo.

o desenvolvimento das atividades: a representação das bases eleitorais,

interiorização das reuniões e a posterior polarização entre governo e

oposição

Os políticos que se elegem para o Poder Legislativo possuem os seus redutos eleitorais e tendem a ser identificados por outros de-putados como representantes dos mesmos, quando não se identifi-cam a si próprios com os referidos redutos. Pode-se ver, ao analisar as reuniões transcritas, que a posição das bases eleitorais é bastante salientada. Como outro exemplo, há a transcrição que segue, oriunda da participação do então presidente da Comissão, Deputado Marco Peixoto:

O Município de Itaqui nos enviou convite, soli-citando um importante encontro, uma vez que é cidade fronteiriça e que tem problemas em sua fronteira com a Argentina. O Deputado Caio Re-piso Riela poderá nos auxiliar no agendamento deste encontro. O Município de Imbé, que per-tence à região de onde é oriundo o Deputado Ciro Simoni, já marcou uma reunião na qual o referido parlamentar representará esta comissão. O Muni-cípio de Pelotas, cujo representante é o Deputado Bernardo de Souza, Presidente da Comissão de Constituição de Justiça, abriu uma oportunidade ímpar - já que esta Assembleia Legislativa deve-ria realizar a sua segunda reunião do processo de descentralização naquele município - para que a Comissão do Mercosul promova, lá, um encontro

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importante com a presença, inclusive, das univer-sidades daquele município.5

A isto se associa, ainda que no universo simbólico, uma dose de ufanismo pelo lugar de origem em determinados casos. Os parla-mentares reivindicam a proximidade sua ou de outro deputado como próxima de sua base eleitoral. Estas expressões foram constatadas ao se analisar as transcrições e atas das reuniões realizadas pela Comis-são. Dentro deste universo simbólico, o deputado ou auxiliar da co-missão tende a ser parte legítima da comunidade que diz representar, no caso a sua “paróquia” eleitoral. Vê-se a manifestação do deputado Caio Repiso Riela, em 15 de maio de 1996:

Temos assessoria qualificada para agendar essas reuniões, na pessoa do ex-deputado Júlio Cezar Caspani, uruguaianense, nosso conterrâneo, que emprestamos a Cachoeira do Sul, cuja presença e atuação nesta comissão muito nos orgulha.6

Esta citação do assessor ou membro parlamentar como con-terrâneo, companheiro da cidade que se defende, aparece, por exem-plo, no discurso do Deputado Bernardo de Souza na reunião de 21 de agosto de 1997, durante a entrega de reivindicações de entidades da Zona Sul do estado, à Comissão7:

5 Extraído de sua participação na reunião do dia 15 de maio de 1996, cuja transcrição da reunião gravada se encontra disponível on line no site da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul: http://www.alrs.gov.br/anais. Acesso em 10 de setembro de 2004.6 Cuja transcrição da reunião gravada se encontra disponível on line no site da As-sembleia Legislativa do Rio Grande do Sul: http://www.alrs.gov.br/anais. Acesso em 10 de setembro de 2004.7 Cuja transcrição da reunião gravada se encontra disponível on line no site da As-sembleia Legislativa do Rio Grande do Sul: http://www.alrs.gov.br/anais. Acesso em 11 de setembro de 2004.

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O Deputado Marco Peixoto tem uma disposição para que esta comissão seja uma efetiva agente na elaboração de estratégias para as questões da inte-gração - atitude ímpar no Brasil, em nível de As-sembleia Legislativa. Trata-se de um homem que possui uma relação afetiva e que faz questão de re-gistrar - e por isso vou torná-la pública -, com Pelo-tas. Da mesma forma que o Deputado Quintiliano Vieira, S.Exa. também frequentou os bancos acadê-micos desta cidade. S. Exa. é um pouco pelotense e por isso tem dado atenção à nossa terra.

A questão da representação se estabelece como semelhança nas duas legislaturas estudadas. Salienta-se a saudação de abertura da 50ª Legislatura feita pelo então presidente Marco Peixoto, ao se referir ao deputado Luis Augusto Lara:

Saudamos os colegas deputados, em particular o vice-presidente desta comissão, Luis Augusto Lara, jovem deputado chegando para seu primeiro mandato, a quem desejamos uma gestão profícua, em que possa desenvolver o seu trabalho, especial-mente na sua região, a de Bagé.8

Ver-se-á em seguida que, do ponto de vista prático, esta re-presentação simbólica ao lugar de origem esconde a necessidade de se preservar e dar uma satisfação ao ponto de maior expressão eleitoral de determinados políticos. Toma-se o deputado como um ser racional que visa a sua reeleição e traça a melhor estratégia para tanto. No caso

8 Extraído da participação do deputado Marco Peixoto na reunião do dia 24 de março de 1999, cuja transcrição da reunião gravada se encontra disponível on line, no site da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul: http://www.alrs.gov.br/anais. Acesso em 12 de setembro de 2004.

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da bibliografia estudada por Limongi (1994), vê-se formalmente uma instituição erigida, o voto distrital, que obrigaria um deputado racio-nalmente comprometido com sua reeleição a trabalhar em prol de seu distrito. Não existe tal instituição no caso brasileiro.

Contudo, se analisarmos a característica da votação dos depu-tados envolvidos, tem-se muitas vezes que suas bases eleitorais repre-sentam percentualmente mais da metade das votações dos mesmos. Isto se dá principalmente com os deputados mais diretamente envol-vidos nos trabalhos efetivos da Comissão. Chega-se próximo de um desempenho eleitoral de quase cem por cento. Com isto, se verifica que apesar de o Brasil usar o voto proporcional, as bases eleitorais funcionariam como uma espécie de distrito simbólico. Isto será de-monstrado na análise quantitativa exposta adiante.

Os então deputados, Caio Riela e Quintiliano Vieira, por exemplo, com relação à Zona do Pampa9 e Bernardo de Souza, na região de Pelotas, são casos de votação concentrada na primeira legis-latura estudada, assim como Frederico Antunes e Luis Augusto Lara, na segunda legislatura. Tendo-se como exemplo dois deputados de cada legislatura, vê-se que mesmo o voto proporcional tomado por instituição, não desobriga um deputado a trabalhar por seu reduto, como se este fosse quase um distrito, dada a deferência e a magni-

9 Tomamos como Zona do Pampa, uma região que por critérios geográficos do estado do Rio Grande do Sul engloba a Fronteira Oeste, cujos principais municípios são os de Uruguaiana, Alegrete, Quaraí, Barra do Quaraí, Maçambará, Manoel Viana, Rosário do Sul, Santana do Livramento, São Gabriel e São Borja e a chamada região da Campa-nha, cujos principais municípios são Bagé, Caçapava do Sul, Candiota, Dom Pedrito, Lavras do Sul e Hulha Negra.

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tude da votação que nestes municípios recebem. Isto também tende a explicar a representação que emerge num universo, o simbólico do reduto eleitoral, do qual o deputado representa.

Outro aspecto é o da interiorização das atividades da Comis-são. Considerando-se a perspectiva do modelo distributivista, tam-bém deve ser analisada a divisão dos recursos pelos redutos eleitorais dos deputados. Uma vez realizada reunião ou projeto em determinada localidade ou região, os recursos alocados tendem a ter seus custos distribuídos pelo todo, como já foi explanado na revisão da literatura sobre o tema. Enquanto os ganhos políticos se dão em específico para o deputado que os alocou, e que, com certeza, será a localidade cuja votação é mais expressiva. Esta questão deve ser analisada com cui-dado, pois a Comissão do Mercosul não tratou, em suas reuniões, de destino de repasse de verbas para determinadas regiões, por exemplo. Contudo, a prática da interiorização das reuniões tende, por óbvio, a acarretar gastos e a se tornar importante quando há interesse de se ex-pressar as reivindicações e resoluções de problemas de determinadas regiões. O mesmo ocorre quando se faz um projeto com a aprovação da comissão. Há uma tendência de se tentar deslocar os trabalhos e a atenção da Comissão para estes redutos de origem, que é de certa for-ma alimentada pela perspectiva de interiorização, dada pela direção da mesma num primeiro período.

As questões fronteiriças, por exemplo, abrem a possibilidade de se realizar esta interiorização de forma a se dar atenção às cidades com condição de fronteira. Vê-se a questão da mediação entre a co-munidade destas regiões e o Ministério das Relações Exteriores, bem como com a Comissão Parlamentar do Mercosul na Câmara Federal.

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Esta mediação se torna atividade realizada pelos deputados em virtu-de da própria limitação institucional existente quanto a legislar sobre os assuntos do Mercosul e de manter capacidade de negociar a inte-gração de forma mais direta. Um exemplo disso é dado por questões como o caso de problema de aduanas, relativos às exportações e ao de roubo de cargas.

Como procedimento de trabalho da Comissão, esta perspec-tiva de interiorização foi incluída no início das suas atividades, em maio de 1996. A incidência dessa atividade já nos primeiros meses de atividade foi bastante grande. Em 07 de agosto de 1996, o deputado Marco Peixoto salientava que esse era o segundo objetivo da Comis-são, após a divulgação do que seria Mercosul:

Em segundo lugar, decidimos ir ao interior do Estado e ouvir aqueles que praticam o Mercosul no dia-a-dia, especialmente na Região da Fron-teira Oeste. Já estivemos em São Borja, Santiago, Uruguaiana, Itaqui, Porto Mauá. Ainda iremos a Pelotas e a outras cidades.

No entanto, há uma diminuição deste procedimento nos anos seguintes, sem, contudo, deixar de ser adotado em quase todos os anos estudados; especialmente, em anos que não antecediam às eleições.

As regiões da Fronteira Oeste e Campanha, Região Sul e Li-toral (Norte e Sul) foram as mais citadas nos trabalhos, bem como houve, ao longo do tempo, uma boa visitação por parte da Comissão em seus municípios. Daí se extrai a análise que segue de cada uma das regiões mais representadas.

As próprias comunidades se organizavam como diretamente interessadas em fazer da Comissão um palco para as suas reivindica-

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ções, enquanto cidades fronteiriças e com as peculiaridades que lhes são características, tais como a questão de comércio entre as cidades brasileiras e estrangeiras, e a questão do tráfego para cidades de di-visa, bem como relativas ao turismo, para as de litoral. As reuniões da comissão se tornam alvo de visita das entidades municipais. Um exemplo disso é a presença de membros das Câmaras Municipais nas mesmas. É o caso de São Borja, por ocasião da primeira reunião, que já se fazia representar salientando sua posição de cidade de fronteira e como parte da Metade Sul do estado10.

Quanto às reuniões estudadas, vê-se que a região da Zona do Pampa, 11 que engloba a Região da Campanha e Fronteira Oeste do estado do Rio Grande do Sul, aparece bastante representada. Trans-crevendo-se os discursos dos deputados veem-se estas expressões. No discurso do deputado Caio Repiso Riela, de 15 de maio de 1996, tem-se a seguinte colocação:

Gostaríamos que a Comissão do Mercosul pro-movesse - afora essas reuniões que estão sendo

10 Atente-se para a participação do vereador João Manoel Bicca, de São Borja, 15 de maio de 1996: “Nós, da fronteira, também pertencemos à metade sul e queremos participar das benesses capitaneadas pelo presidente FHC”. Informação disponível no site da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul: http://www.alrs.gov.br/anais. Acesso em 10 de setembro de 2004.11 Não é levada em consideração, nos discursos dos deputados estaduais, a subdi-visão geográfica, o que coloca Região da Campanha mesclada à Fronteira Oeste, e muitas vezes vinculando o deputado à mesma região. Isto levou à opção de englobar as subdivisões num mesmo espaço na análise destas reuniões. Ocorre, também, que a votação dos deputados desta região é expressiva nas duas divisões, como é o caso de Quintiliano Vieira, que contou com as maiores votações em Dom Pedrito (Região da Campanha) e Santana do Livramento (Fronteira Oeste). Informação disponível em: www.nupegs.ufrgs.ifch.br. Acesso em 03 de setembro de 2005.

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solicitadas e que o membro titular pode represen-tá-la como disse o presidente com todos os pode-res - a interiorização dos trabalhos desta comis-são, isto é, em vez de realizarmos as reuniões às quartas-feiras, às 11 horas, poderíamos realizá-las nas segundas ou nas sextas-feiras nas cidades da fronteiras e também em outras regiões...” Uma coisa é ir a Comissão do Mercosul com diversos deputados titulares, e outra, é ir apenas um par-lamentar. O efeito é bem diferente. A sua atuação ficará esvaziada, se enviar apenas um parlamentar para representá-la. As comunidades vão pergun-tar: que prestígio tem essa comissão? Apenas um parlamentar a representa? Será muito mais eficaz fazermos dois encontros mensais da Comissão do Mercosul no interior, e dois nesta Assembléia Le-gislativa.

Percebe-se que a base eleitoral tende a funcionar com pro-ximidade a um distrito no caso de muitos deputados que atuam na comissão, pelo fato de apresentarem votação concentrada, como se disse. O interesse pela região que tem por base eleitoral, às vezes, aparece expresso para futuros pleitos, como é o caso de Caio Riela, no trecho transcrito a seguir:

Entusiasmei-me tanto com essa questão que esta-rei renunciando meu mandato dia 31 de dezembro deste ano com o objetivo de assumir a Prefeitura de Uruguaiana e preparar aquela cidade para essa verdadeira integração que começa pela base, com esse incentivo. Muito obrigado.12

Vale analisar a atuação de um último deputado que atua de

12 Extraído de sua participação na reunião do dia 22 de maio de 1996, cuja transcri-ção da reunião gravada se encontra disponível on line no site da Assembleia Legisla-tiva do Rio Grande do Sul: http://www.alrs.gov.br/anais. Acesso em 10 de setembro de 2004.

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forma bastante presente na comissão, o deputado Manoel Maria. Este possuía a sua segunda maior base eleitoral no município de Uruguaia-na, apesar de ter sua votação bastante pulverizada. Atuava, contudo, em instâncias de representação parlamentar em nível nacional como a UNALE, União dos Legislativos Estaduais, sendo que a sua parti-cipação em atividades internacionais também ocorre.

Os deputados estaduais da Zona do Pampa revelaram maior interesse em servir como mediadores para as atividades da Comissão se realizadas em determinados municípios. Quanto ao agendamento de reuniões, ainda se salienta outra face que é a da divisão do esta-do do Rio Grande do Sul em Metade Norte e Metade Sul, no que se refere ao desenvolvimento econômico. Segundo a transcrição das reuniões, os representantes da região da Fronteira Oeste e Campanha se vinculam também a esta perspectiva. Esta posição, enquanto Me-tade Sul do estado é a outra expressão regional que aparece vinculada à imagem da fronteira. Os deputados comentam que os municípios que representam são ligados à Metade Sul do Estado do Rio Grande do Sul e que têm se caracterizado pelas dificuldades econômicas e de desenvolvimento. Assim, se forma na comissão mais uma instância de reivindicação.

Tal fato também se repete com a fronteira sul, em específico, e com cidades de maior potencial da Região Sul13, que adiante será

13 Toma-se como Região Sul do Rio Grande do Sul, a região que corresponde aos municípios de Pelotas, Jaguarão, Arroio do Padre, Arroio Grande, Canguçu, Capão do Leão, Amaral Ferrador, Santa Vitória do Palmar, Chuí, Turuçu, Pinheiro Machado, São José do Norte, São Lourenço do Sul, Cerrito, Rio Grande,Piratini, Santana da Boa Vista, Cristal, Herval, Pedras Altas e Pedro Osório.

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analisada. A Região Sul do estado do Rio Grande do Sul, quando enfocada nos trabalhos de interiorização da Comissão do Mercosul, aparece ligada ora a questões de desenvolvimento, enquanto Metade Sul do estado, ora a questões de fronteira.

Na 49ª Legislatura, o deputado estadual Bernardo de Souza contava com base eleitoral no município de Pelotas e imediações. A Comissão chega mesmo a dedicar uma reunião específica para tra-tar do desenvolvimento das potencialidades da Região Sul do estado, sendo a sua presença destacada como a de um dos principais orga-nizadores. No caso das questões de fronteira, exemplificam-se as di-ficuldades de comércio e aduana levadas pelo município de Jaguarão com a cidade vizinha de Rio Branco, sendo o tema tratado por duas reuniões na cidade nos anos de 2001 e 2002. Em comum, vê-se a mesma perspectiva de encaminhamento de propostas de resolução de problemas por parte da Comissão aos órgãos competentes, como consulados e o Ministério das Relações Exteriores.

Em relação à questão do turismo, também há exemplos de atuação parlamentar, como a manifestação de Bernardo de Souza, um dos poucos parlamentares presentes na reunião, indicando o seu interesse no turismo de água doce, o que beneficiaria a sua região, correspondente ao município de Pelotas e imediações: 14

14 Opta-se por transcrever a manifestação deste deputado que possui sua base eleitoral fora da região litorânea neste item, e não quando se faz referência à Região Sul do estado, em virtude de contextualizar sua participação no lançamento de um projeto que, em princípio, não beneficiaria especificamente a sua região, mas que devido ao turismo em água doce poderia trazer-lhe vantagens.

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Temos o litoral marítimo e o litoral de água doce, o da lagoa, do mar doce. Pelotas, a nossa cidade santa, está bem situada. Há todo um conjunto de municípios.15

Já a região litorânea do estado aparece ligada ao turismo ma-rítimo, uma vez que há grande trânsito de uruguaios e argentinos nas praias gaúchas. Seu representante, o Deputado Ciro Simoni, chega a chamar atenção para o fato de que as atenções da Comissão não se voltem para a questão das fronteiras apenas, tal como se percebe pela sua manifestação ainda na primeira reunião:

É óbvio que temos a preocupação em discutir as questões fronteiriças, mas precisamos também nos aproximar daqueles setores com potencial de de-senvolvimento, como é o caso do turismo.16

A atuação do deputado será voltada na comissão para este trabalho com o turismo que beneficiaria a sua região, constituinte também da sua base eleitoral. De sua autoria, é implantado, com o auxílio da Assembleia Legislativa, o Projeto Mercotur, lançado ainda no ano de 1996. Este tinha por objetivo promover maior integração entre os órgãos governamentais, em todos os níveis, entre entidades públicas e privadas que atuam na área de turismo, promovendo a dis-

15 Extraído de sua participação na reunião do dia 30 de outubro de 1996, cuja trans-crição da reunião gravada se encontra disponível on line no site da Assembleia Legis-lativa do Rio Grande do Sul: http://www.alrs.gov.br/anais. Acesso em 10 de setembro de 2004.16 Extraído de sua participação na reunião do dia 15 de maio de 1996, cuja transcri-ção da reunião gravada se encontra disponível on line no site da Assembleia Legisla-tiva do Rio Grande do Sul: http://www.alrs.gov.br/anais. Acesso em 10 de setembro de 2004.

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cussão e estabelecendo estratégias que possibilitassem ações recípro-cas de intercâmbio turístico para o verão de 1996/1997.

Já a situação de polarização entre a oposição e o governo, den-tro dos trabalhos da comissão, se faz perceptível na 50ª Legislatura. A maioria dos deputados estaduais fazia oposição ao governador Olívio Dutra (PT). Da mesma forma, se salientava uma oposição dos de-putados apoiadores do governo estadual com relação à política do governo federal de Fernando Henrique Cardoso. Discutem-se temas sensíveis, como a implantação da Área de Livre Comércio das Amé-ricas (ALCA), o combate à febre aftosa e o desenvolvimento regional, através do apoio à iniciativa privada, por exemplo. Esta questão fez com que houvesse uma nova maneira de se organizar os discursos, havendo a necessidade de se colocar ora na defesa ora no ataque aos governos de interesse, bem como frisar que o objetivo da Comissão era maior do que as nuances partidárias, quando envolveria o Rio Grande do Sul como um todo.

Os deputados estabelecem, contudo, uma relação com um dos polos em questão e firmam-se nesta posição, como representantes dos eleitores apoiadores ou contrários ao governo estadual ou federal. Um caso peculiar é o da indústria automotiva Ford. A implantação de sua fábrica de automóveis teve os subsídios contestados pelo governo de Olívio Dutra (PT), que aparecia com um projeto de governo que diferia economicamente do Governo Britto (PMDB). Para a discus-são deste tema, a Comissão do Mercosul promoveu um debate em parceria com a Comissão de Economia e Desenvolvimento que era presidida, à época, pelo deputado Manoel Maria, membro das duas comissões.

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Neste evento, manifestações de apoio ou desaprovação às ati-tudes do governo pautaram as discussões, quer os deputados fossem membros da Comissão do Mercosul ou não. A reunião foi aberta pelo Presidente, Paulo Odone, que manifestou expectativa de que a Assembleia possa contribuir para superar o impasse com a Ford:

O Parlamento gaúcho é integrado por vários par-tidos políticos. Temos a certeza de que há, no ho-rizonte de todos eles, a extrema preocupação de que possamos superar o atual impasse gerado em torno dos contratos da Ford e ver a montadora instalada em nosso Estado, juntamente com as suas sistemistas, suas fornecedoras e todas as re-sultantes do complexo automotivo.17

As discussões a respeito do turismo no estado passaram a abordar não apenas os projetos para a melhoria de infraestrutura e intercâmbio turístico, como na legislatura que acompanhou o gover-no de Antonio Britto. Diferentemente da 49ª Legislatura, desta vez, as discussões da Comissão foram relacionadas à questão da seguran-ça ao turista. Com isso, os deputados da oposição tentavam revelar a incapacidade do estado do Rio Grande do Sul de promover uma imagem de eficiência em segurança pública. Ocorre que, nesta época, a segurança pública era um dos pontos de polêmica entre governo e oposição, envolvendo assuntos que fugiriam do tema turismo, pro-priamente dito, e mesmo de temas de integração regional.

17 Extraído de sua participação reunião do dia 07 de abril de 1999, cuja transcrição da reunião gravada se encontra disponível on line no site da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul: http://www.alrs.gov.br/anais. Acesso em 11 de setembro de 2004.

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Percebe-se que as questões ideológicas e partidárias são tam-bém levadas para esta discussão, ocorrendo uma tomada de posições que envolviam aspectos nacionais e internacionais como críticas ao governo federal e a assuntos internacionais.

Em outro debate, em que também se chocavam os interesses entre o governo e a oposição, aparece o surto de aftosa que atingiu o estado e que foi ligado aos debates da Comissão. Observa-se a mes-ma tensão entre a oposição e governo na participação de deputados e membros do governo Olívio Dutra. Para tanto, a Comissão do Mer-cosul chega a fazer reunião conjunta com a Comissão de Agricultura da Assembleia Legislativa presidida pelo Deputado Frederico Antu-nes. Vale salientar que, nestes momentos, a posição partidária aparece de forma mais clara, havendo a participação de deputados que não tinham vinculação expressiva na Comissão do Mercosul, um exemplo disto é transcrito da fala do deputado do PT, Elvino Bohn Gass:

... a posição da Bancada do PT e a do próprio Go-verno é de que há muito tempo atrás já deveria ter sido feita a vacinação, mas não que não houve disposição de alguns setores do Estado, nem do Governo Federal, tardando assim o procedimen-to e trazendo prejuízo, deixando claro o equívoco ocorrido.18

Comparada à 49ª legislatura, o interesse na participação dos trabalhos da Comissão aumentou consideravelmente para os depu-

18 Extraído de sua participação reunião do dia 23 de maio de 2001, cuja transcrição da reunião gravada se encontra disponível on line no site da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul: http://www.alrs.gov.br/anais. Acesso em 12 de setembro de 2004.

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tados com uma política dita de esquerda. Na legislatura citada, em especial no caso dos deputados Bernardo de Souza e Ciro Simoni, vê-se que apesar de estarem vinculados a partidos que dentro de um espectro partidário também seriam de esquerda, não apresentaram diferença em sua atuação em relação à dos demais deputados, aten-dendo a interesses paroquiais.

Na 50ª Legislatura, ocorre um diferencial nos conteúdos dos trabalhos por atuação dos deputados do maior partido de esquerda, o PT. Luis Fernando Schmidt e Maria do Rosário são os expoentes deste polo político, sendo os que mais se destacaram. Sua atuação e interesse se pautam não em questões regionais, mas em discussões a respeito de temas gerais, diluídos em assuntos internacionais e de integração regional.

Retira-se, por exemplo, um trecho da participação do deputa-do Luis Fernando Schmidt:

Temos [...] a tendência de - até por influência da discussão que há na grande mídia - tratarmos o Mercosul apenas na questão econômica, esque-cendo-nos das questões culturais, educacionais e outras.19

Ainda é importante frisar que tanto este deputado, quanto a deputada Maria do Rosário, se dedicam à promoção de debates sobre a participação do Brasil na ALCA, o que se tornou objeto de

19 Extraído de sua participação reunião do dia 10 de março de 1999, cuja transcrição da reunião gravada se encontra disponível on line no site da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul: http://www.alrs.gov.br/anais. Acesso em 11 de setembro de 2004.

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uma reunião específica da Comissão por sugestão desta deputada. Da mesma forma, a mesma Maria do Rosário Nunes20 procurou dedicar seu trabalho na comissão para o debate num tom que também fugisse à temática meramente regional ou ligada ao comércio em específico. Em sua atividade, procurou promover fóruns de debate sobre direitos humanos, como a questão da mulher no Mercosul, e para um proces-so de globalização diferente do seguido atualmente, como se vê na transcrição reproduzida a seguir:

Portanto, desejo fazer esta consideração e dizer que não participo daqueles segmentos que com-preendem a globalização como algo que é deter-minado primeiro pela economia e pelo interesse do mercado. Penso que a globalização, em verdade, a ALCA, está sujeita, antes de tudo, a uma lógi-ca política que vive a pressão da economia e do mercado, mas os Estados e os Parlamentos devem exercer um certo poder já durante a discussão do próprio processo, como a Comissão do Mercosul faz neste momento.21

A partir da análise das transcrições, procura-se demonstrar que houve uma mudança no conteúdo das reuniões analisadas de uma legislatura para outra, uma vez que se apresentou um deslocamento do interesse da comissão de temas regionais e paroquiais para assun-tos de ordem geral, nacional e internacional. A causa é não apenas

20 Para fins de registro bibliográfico, a deputada em questão não costuma usar o seu sobrenome na vida pública.21 Extraído de sua participação reunião do dia 09 de maio de 2001, cuja transcrição da reunião gravada se encontra disponível on line no site da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul: http://www.alrs.gov.br/anais. Acesso em 12 de setembro de 2004.

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a polarização entre governo e oposição. Ocorre, também, o apareci-mento de membros atuantes na comissão, que não se vinculavam a redutos eleitorais solicitantes de demandas, de certa forma, urgentes no que tange à integração com os países do Mercosul, como as ques-tões fronteiriças e de turismo elencadas primeiramente.

ConsiDerações Finais

Percebe-se, com a análise das reuniões da Comissão do Mer-cosul, que a mesma, apesar de lidar com um tema que se remeteria para âmbito internacional, prende-se, no período estudado, às ques-tões locais ou de cunho ideológico.

Impedida institucionalmente de legislar ou negociar direta-mente uma política de integração, a Comissão adota como forma de trabalho procedimentos como a interiorização. Esta aproxima o de-putado estadual de sua base eleitoral, o que se torna interessante na medida em que o deputado consegue identificar o seu trabalho com a atuação perto daquilo que a sua comunidade reivindica. No bojo de uma perspectiva integracionista, se salienta através da realização de reuniões em suas bases eleitorais ou na própria Assembleia, a discus-são de desenvolvimento regional, seja através do turismo no caso das cidades litorâneas, seja através de resolução de questões fronteiriças. Assim, considerando-se um modelo distributivista, se consegue ex-plicar a atuação dos deputados que fomentam estas discussões como parte de sua estratégia para a eleição, pois trabalham com os temas paroquiais inseridos ou diluídos na questão da integração latino-ame-ricana. Ganham, com isso, visibilidade nas suas bases eleitorais, sendo

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que estas funcionariam como uma espécie de distritos eleitorais não institucionalizados. Aparecem, então, como os articuladores da reso-lução de demandas destas bases aos fóruns competentes.

Por outro lado, a Comissão pode se tornar palco de discussões que envolvem ideologia e, portanto, interessam aos partidos e depu-tados como representantes de um pensamento político. Tais discus-sões entram na agenda destes partidos. Ficam, assim, próximos aos eleitores que compartilham a sua cor partidária, tentando garantir a sua identificação com estes. Conseguem ser os incentivadores da construção de um pensamento sobre como deve ser feita a integração latino-americana ou como se deve agir quanto aos problemas que dela surgem. Aí estão os seus ganhos políticos.

No que se refere às funções que as legislaturas assumem com relação à temática do Mercosul, o estudo da Comissão mostra que as mesmas possuem características de representação e articulação e de agregação de interesses. Na medida em que os deputados identi-ficam-se com as regiões de seus redutos eleitorais, de forma a parecer como igual, entre seus eleitores, primam pela função de representação. A possibilidade de articulação e agregação de interesses, através do trabalho dos mesmos, dá-se quando são colocados como mediadores entre a população e órgãos competentes, como dito anteriormente. De forma mais particular, a 50ª Legislatura teve na Comissão um local para exercer a função de supervisão, fiscalização e observação do Poder Executivo, pela própria polarização ideológica existente no parlamento gaúcho.

Quanto à paradiplomacia, vê-se que a mesma se dá em senti-do estrito, de forma disciplinada ao poder central da federação. Exis-

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te a atuação parlamentar para a mediação de problemas localizados frente aos órgãos competentes de esfera federal, ou através de projetos que visam auxiliar a integração regional em setores específicos. Não há aqui uma radicalização política, como a de reivindicar a celebração de tratados ou convênios que feririam a Constituição Federal. A au-sência desta radicalização, bem como a existência disciplinar citada, podem ser dadas pela maneira como a própria Comissão se coloca: como divulgadora do processo de integração e como espaço para de-bates e interiorização das atividades do Parlamento gaúcho.

Conclui-se, assim, que os deputados estaduais apresentam ganhos políticos, ao garantir uma forma de se apresentar como seres capazes de espelhar o que as suas bases eleitorais pensam ou neces-sitam, visando, assim, à sua perpetuação como representantes ou go-vernantes das mesmas no Poder Legislativo do Rio Grande do Sul e mesmo em outras esferas políticas.

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CoaLizões Horizontais no MarCo sUL-sUL:reFLexões soBre espaços estratÉGiCos De

Cooperação

Cristine Koehler Zanella1

Eduardo Ernesto Filippi2

resumo

Considerando a configuração das relações horizontais do tipo Sul-Sul implementadas a partir da década passada, o presen-te artigo procura contribuir para delimitar questões terminológi-cas e conceituais bem como para refletir sobre a possibilidade de instrumentalização da cooperação para o alcance de diversos fins.

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacio-nais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Integração Latino-Americana (área de concentração: Direito da Integração) pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e graduada em Direito e em Ciências Econômicas pela mesma instituição. Professora do Centro Universitário Ritter dos Reis, em Porto Alegre, e da Faculdade de Direito de Santa Maria, em Santa Maria. Membro do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais de Santa Maria (PRISMA), no eixo Integra-ção Regional e Globalização. E-mail: [email protected] Doutor em Economia Política (Université de Versailles - Saint-Quentin-en-Yvelines, França), Mestre em Economia Rural (UFRGS) e Bacharel em Ciências Econômicas (UFRGS). Professor Adjunto do Departamento de Ciências Econômicas da UFRGS, no qual ministra disciplinas para os cursos de Economia e de Relações Internacionais. Professor e pesquisador nos Programas de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI) e em Desenvolvimento Rural (PGDR). Professor colaborador no Doutorado em Ciências Sociais da UNI-CV (Cabo Verde) e nos Programas de Pós--Graduação em Economia da UFRR (Boa Vista, RR) e da UEMS (Dourados, MS). E-mail: [email protected]

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Passa-se, então a considerar aspectos necessários à implementação da Cooperação Sul-Sul relativos a atores, setores e instrumentos e, por fim, procura-se desenhar um quadro de oportunidades e desa-fios que os países do Sul precisam considerar ao lançarem-se nas iniciativas desta natureza.

Palavras- chave: Cooperação Sul-Sul. Coalizões horizontais. Mul-tilateralismo. Parcerias estratégicas internacionais.

abstract

Considering the configuration of the South-South horizon-tal relations implemented over the past decade, this article aims to contribute to define the terminology and conceptual issues and to reflect on the possibility of the cooperation’s instrumentalization. It addresses elements regarding actors, sectors and instruments neces-sary to implement the South-South Cooperation and finally, seeks to draw a picture of opportunities and challenges that South countries need to consider if they intend to embark on such initiatives .

Keywords: South-South Cooperation. Horizontal coalitions. Mul-tilateralism. International strategic partnerships.

introDUção

Grande parte dos países reunidos no movimento do Terceiro Mundo, que emergiu e floresceu entre as décadas de 60 e 70, passou

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pela última década do século passado lutando contra crises econômi-cas e sociais que afloraram na década de 80. Após o intenso percurso do século anterior, esses países entraram no século XXI procurando resolver problemas estruturais de desenvolvimento interno ao mesmo tempo em que buscavam novas alternativas ao unilateralismo global da potência estadunidense que emergiu do pós-Guerra Fria.

Esses países, agregados em sua maioria na categoria do Sul econômico – em uma associação em grande medida correspondente com suas localizações geográficas -, há alguns anos vem experimen-tando novos concertos entre si, em uma cooperação horizontal a que se convencionou chamar de Cooperação Sul-Sul (CSS).

Apesar das iniciativas se darem em várias frentes, em forma-tos mais ou menos institucionalizados, e de existir farto material in-dicando atividades dentro do marco Sul-Sul de cooperação, há pouca elaboração teórica que subsidie uma reflexão mais sistematizada so-bre essas relações.

Nesse contexto, o presente artigo procurará contribuir para enfrentar esse déficit a partir da abordagem de alguns questionamen-tos atuais relativos à CSS no que se refere à pertinência de sua ter-minologia à possibilidade de instrumentalização da cooperação para o alcance de diversos fins. Tendo em vista a reflexão das seções ante-riores, propõe-se uma conceituação para esta forma específica de co-operação horizontal. Passa-se, então a considerar aspectos necessários à implementação da CSS relativos a atores, setores e instrumentos e, por fim, procura-se desenhar um quadro de oportunidades e desafios que os países do Sul precisam considerar ao lançarem-se nas iniciati-vas dessa natureza.

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Questões terminológicas

Dois questionamentos são frequentemente levantados em re-lação à CSS no que se refere à sua terminologia.

O primeiro diz respeito à divisão Norte-Sul da qual o termo parte. A clássica separação a partir de uma linha sinuosa em que os países desenvolvidos se localizam ao norte (mais a Austrália ao sul) e os subdesenvolvidos ao sul do mapa mundial (conforme Figura 1) pro-voca contestações a respeito dessa classificação que enquadra os segun-dos em uma condição de dependência em relação aos primeiros. Tais contestações são propugnadas especialmente com relação à dificuldade de classificação de países que atualmente apresentam padrões de cres-cimento econômico consideráveis, tais como a China, o Brasil e a Índia.

Figura 1: Mapa da divisão Norte-Sul.Fonte: Elaboração própria a partir de mapa de WPHR (2010).

Sobrepondo-se o mapa da divisão Norte-Sul com o dos pa-íses cujo saldo líquido da ajuda internacional é positivo (figura 2) percebe-se uma correspondência quase perfeita entre esses e os deno-minados países do Sul.

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Figura 2: Mapa dos países cujo saldo líquido da ajuda internacional é positivo segun-do dados sobre o desenvolvimento mundial do Banco Mundial para o ano de 2007 (cores conforme valores per capita percebidos).Fonte: Tamara Saltzman (2011).

Em que pese a pertinência das contestações devida às dife-renças que existem entre países reunidos em uma mesma categoria, no momento há ainda validade na classificação Norte-Sul uma vez que ela permite reunir sob um mesmo signo países com um grau de desenvolvimento semelhante que tem em comum o fato de grandes parcelas de suas populações não terem atingido níveis satisfatórios de bem-estar. Os países do Sul são, na melhor hipótese, emergentes, e por mais que se pretenda contestar a partir de argumentos relativos a avanços da última década a classificação de Brasil, China ou outros Estados em condições semelhantes, não haveria razões suficientes o bastante para classificá-los como desenvolvidos.

O Índice de Desenvolvimento Humano de 2010 permi-te aferir de forma clara que a esmagadora maioria dos países do Sul está bastante afastada dos índices dos países do Norte. Mes-mo quando se analisa os supostamente mais débeis países do Nor-

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te em comparação a emergentes robustos do Sul, essa diferença se manifesta. Compare-se, por exemplo, os índices e posições de: Grécia (0,855 e 22ª posição) e Brasil (0,699 e 73ª posição); Portu-gal (0,795 e 40ª posição) e China (0,633 e 86ª posição) ou Lituâ-nia (0,783 e 44ª posição) e Índia (0,519 e 119ª posição) (PNUD, 2011). Por mais que os primeiros países de cada par pudessem ter sua classificação contestada enquanto desenvolvidos, quando com-parados com os países do Sul – mesmo com aqueles que estão entre os mais dinâmicos – uns e outros permanecem substancialmente distanciados.

Percebe-se, assim, que, por ora, ainda faz sentido a distinção Norte-Sul que dá nome à espécie de cooperação em análise. Tal cons-tatação não permite concluir, contudo, que haja homogeneidade de desenvolvimento entre os países do Sul. Tal como aqueles do Norte, estes apresentam diferenças entre si que se perdem na categoria como de praxe acontece com toda categoria definida a partir de um esforço taxonômico. O preciosismo das minúcias do qual se abre mão para que as classificações sejam possíveis é geralmente compensado por uma possibilidade de sistematização e compreensão de fenômenos dentro de um marco mais abrangente.

O segundo questionamento conceitual se refere ao que se compreende por cooperação. Observações são feitas no sentido de que a amplitude temática das agendas de cooperação anunciadas (ex.: energia, comércio, pobreza, saúde, etc.) somada à pluralidade de di-mensões (ex.: política, econômica, cultural, estratégica, etc.) que os países pretendem atingir dificultaria a definição do que configura a cooperação entre países do Sul.

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De acordo com tradicional dicionário da língua vernácula a palavra cooperação, em seu primeiro sentido, é o ato ou efeito de “operar ou obrar simultaneamente; trabalhar em comum; colaborar” (HOLANDA FERREIRA, 1986, p.407). Muito embora o segundo sentido apresentado seja o de auxílio, esse termo carrega uma carga semântica distinta no que diz respeito aos fluxos que se estabele-cem entre os polos da relação. Com efeito, “auxílio” significa “ajuda; assistência” e, caso se recorra a mais significados “amparo, proteção, socorro, benefício” (p.204). Dessa forma, enquanto a cooperação parte da ideia de que os sujeitos da relação dialogam e constro-em iniciativas em uma linha horizontal, vendo-se simultaneamente como contribuintes e beneficiários da relação, o auxílio pressupõe a hipossuficiência de uma das partes e a consequente superioridade da outra. Os fluxos de trocas e contribuições aparecem no sentido bilateral no primeiro caso e no sentido unilateral no segundo. Daí o traço da horizontalidade presente na CSS que a distingue do Au-xílio ao Desenvolvimento aportado tradicionalmente por meio das relações Norte-Sul. Assim, menos importante do que a agenda es-pecífica da cooperação ou as dimensões pontuais que os países tem em mente quando a colocam em marcha, importa a situação rela-cional entre os agentes no que pertine a como eles se veem um em relação ao outro e o que esperam de suas relações. Nessa perspectiva a divisão por critérios objetivos entre países do Norte e do Sul passa a servir como referencial inicial para a análise das relações S-S, mas não se esgota nelas.

Esclarecidos alguns detalhes terminológicos, passa-se à refle-xão sobre possíveis novidades desta articulação.

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Uma relação com vários resultados

Grande parte dos países - senão todos – que fazem parte desse Sul em movimento na CSS hodierna participaram, especialmente entre as décadas de 60 e 80, de uma concertação alternativa ao alinhamento a uma ou outra das potências da Guerra Fria. Chamado Movimento dos Não Alinhados, as ações desses países articulavam-se em torno da defesa da democratização das relações internacionais e da reivindicação de mudanças no sistema econômico mundial que se mantinha colo-nialista e imperialista (SEITENFUS, 2004). Nesse período, no âmbito da Assembleia Geral das Nações Unidas, os países que se tornavam independentes e assumiam um assento na organização passavam a de-mandar mudanças no sistema econômico mundial com vistas a que uma Nova Ordem Econômica Internacional prevalecesse.

Segundo análise de Lechini, foi nos anos setenta que “los pa-íses del Sur acuñaron la idea de la cooperación Sur-Sur para reforzar su capacidad de negociación con el Norte”. Entretanto essa coopera-ção teria fracassado por pressupor que todos os países subdesenvol-vidos teriam mais coisas em comum do que realmente tinham (2007, p.271). A política monolítica, nesse contexto, apesar de unir os países sob um mesmo guarda-chuva para atuarem no cenário internacional, pouco correspondia, enquanto conjunto, às aspirações de cada um dos países individualmente. Daqui se extrai que o fato de as agendas de CSS atuais serem multisetoriais e tão variadas quanto variados são os estados cooperantes – como se referiu na seção anterior - poderia ser visto como um fator positivo. Isso porque, sendo uma cooperação mais fluída, com os agentes percebendo-se como parceiros e identificando

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pela medida do consenso setores e projetos específicos, aumenta-se o leque de possibilidades de parcerias, podendo essas ser articuladas à medida que houver interesse mútuo na relação e nos setores em que os interesses e capacidades mútuos forem identificados.

Outra questão interessante é que a CSS atual dá sinais de se articular não somente enquanto ação reativa a uma necessidade exter-na aos cooperantes como parecia fazer a cooperação Sul-Sul articu-lada segundo a análise de Lechini. De acordo com Rodrigues (2010, p.56), a concertação Sul-Sul oferece tanto a possibilidade de aumento de parceiros comerciais quanto uma possibilidade de maior interfe-rência no contexto decisório do ambiente internacional. Essa visão do duplo potencial da cooperação, com um dos aspectos voltados para a cooperação em si (que pode não ser somente comercial, mas também técnica ou mesmo cultural), passível de ser proveitosa mesmo sem apresentar-se prima facie como mecanismo de inserção para obten-ção de resultados frente a terceiros países, é um traço marcante na CSS da última década.

Neste sentido é ilustrativo o exemplo envolvendo grandes atores da CSS recente:

“Tanto o comércio entre a Índia, o Brasil e a Áfri-ca do Sul quanto com seus respectivos blocos de integração econômica aumentaram significativa-mente (e especialmente após a institucionalização do Fórum IBAS). O intercâmbio entre Índia e Mercosul mais do que duplicou entre 2001 e 2005, passando de menos de US$ 1 bilhão para US$ 2,3 bilhões. Além disso, o fluxo comercial entre a Ín-dia e a África do Sul aumentou 133% no mesmo período, subindo de US$ 1,3 bilhão para US$ 3,1 bilhões. (RODRIGUES, 2010, p.63).

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Esta atuação no marco Sul-Sul recente apresenta marcados traços de pró-atividade por parte dos envolvidos. O caráter das ma-nifestações, agora, deixa de ser apenas reivindicativo e passa também a ser propositivo, o que se reflete em ações e processos que não se exaurem nas declarações de intenções.

À medida em que protagonizam e propõem novos modelos e padrões de relações internacionais, a relação que se estabelece, além de produzir efeitos “para dentro” dos próprios países cooperantes (efei-tos intra-relação), também redimensiona a capacidade de influência destes países nos fóruns e organismos internacionais, possibilitando a obtenção de resultados frente a terceiros países. Apesar desses resul-tados não serem necessariamente consequência direta da cooperação, é notável que algumas articulações foram bem-sucedidas.

O concerto que se alcançou com o G22 (hoje G20+) em tor-no das negociações da Rodada de Doha com relação aos produtos agrícolas bem exemplifica isso.

Avaliando a questão em relação ao grupo IBAS, Rodrigues (2010, p.62) pondera que, se as relações entre estes membros são de baixa complementaridade bilateral com relação a políticas setoriais conjuntas tomadas em uma longa trajetória, quando se trata de sua articulação tripartite, a baixa complementaridade bilateral é ameniza-da pela alta complementaridade multilateral que pode ser alcançada nas ações no sistema ONU e OMC, por exemplo.

Daí a pertinência da constatação de Cristina Soreanu Pece-quilo quando pondera que convivem dois eixos dinâmicos na políti-ca externa brasileira no século XXI: o eixo horizontal (representado pela dimensão Sul-Sul) e o eixo vertical (representado pela dimensão

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Norte-Sul). Antes de excluírem-se mutuamente, parece que as arti-culações no eixo horizontal, além dos resultados per se obtidos, con-tribuem para a dinamização das ações e resultados que o país pode obter no eixo vertical. Nesse contexto a CSS pode figurar como fa-cilitadora da geração de sinergias que levam à coordenação de forças multilaterais.

Percebe-se, assim, que, buscando uma alternativa às vias tra-dicionais de auxílio internacional construído no eixo Norte-Sul e aproveitando os vácuos de atuação não ocupados nessa frente, a CSS colocou em movimento experiências novas. Nisso há senso de opor-tunidade e os resultados que podem ser obtidos tem a potencialidade de serem maiores que os vazios de coordenação ocupados pelos países do Sul nessa forma de cooperação. As articulações entre estes países, vistas historicamente como periféricas e marginais, podem ter nesta nova formatação um potencial de sucesso. Estas experiências parecem revelar a emergência de um novo modelo de cooperação: partindo de um país marginal no sistema internacional para outro, também mar-ginal, desconstroem a ideia de que as relações entre os países são jo-gos de soma zero, articulados sempre dentro de padrões dicotômicos doadores/receptores, contribuintes/beneficiários, e assim por diante.

propondo-se um conceito

Passada praticamente uma década da nova dinâmica empre-endida pela cooperação Sul-Sul (considerando-se como ponto decisi-vo deste cenário o seu incremento a partir das ações engendradas nos primeiros cinco anos da década passada), cabe propor uma diretriz

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geral que vá além das agendas individuais dos cooperantes, a partir da qual a cooperação possa ser pensada.

A partir das premissas que os próprios termos definem, a pro-posta deve necessariamente contemplar o caminho de mão dupla que se espera dos processos cooperativos, de modo que se possa conside-rar contribuições e benefícios para todos os envolvidos. Assim, parece interessante visualizar a cooperação Sul-Sul como uma articulação –via de regra- entre países emergentes que seja capaz de promover a ampliação das suas possibilidades, tanto individual – para cada um dos cooperantes – quanto coletivamente3. Em Diego Rodrigues já se poderia visualizar uma proposta neste sentido quando o autor refletia que “o multilate-ralismo Sul-Sul seria uma “saída viável” num momento de acentuado unilateralismo por parte da superpotência, os Estados Unidos pós-11 de setembro, ampliando os leques de possibilidades de cooperação e parcerias, tanto nas relações diretas entre os países quanto no fortale-cimento das instituições internacionais” (2010, p.48).

Vale dizer, uma ação de CSS seria uma iniciativa engendrada entre países com características semelhantes de desenvolvimento que encerra em si a potencialidade de aumentar o leque de parcerias com outros países nos mais diferentes setores, além de oferecer a possibili-dade de um aumento do poder desses países interferirem no desenho da agenda em foros internacionais. A questão-chave, portanto, é o aumento das alternativas à disposição de todos os polos envolvidos no

3 Este conceito traz grande inspiração da concepção de desenvolvimento tal qual concebida por Amartya Sen: desenvolvimento enquanto ampliação das possibilidades de escolha.

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processo cooperativo. Esse aumento de possibilidades pode gerar fru-tos que envolvam desde o aprendizado a partir de experiências com-partilhadas e historicamente marginalizadas, abrindo alternativas ao determinismo decorrente de situações de debilidade que deixam pou-co lugar para a eleição entre diferentes destinos futuros, até a abertura de margens de manobra e forças de pressão em foros internacionais.

Tal forma de visualizar a CSS – como instrumento para o in-cremento das alternativas nas mãos dos Estados – escapa da armadi-lha das visões lineares que reduzem tudo ao aspecto econômico e não permitem visualizar os benefícios de ordem técnica, política, cultural, etc. que em determinados casos estão mais de acordo com a multidi-mensionalidade das necessidades e recursos dos parceiros do Sul.

Em suma, propõe-se partir da compreensão da CSS não como um substituto para a articulação Norte-Sul e suas respectivas iniciativas, mas como um caminho possível para que os países do Sul aumentem suas alternativas de ação. É nesse sentido e dentro des-se quadro que a CSS pode fazer alguma diferença. Ter isso presente afasta a antecipação de uma desilusão segura que viria caso se devo-tasse à CSS, por si só, a capacidade de resolução de uma situação de estrutural dependência.

Definido setores, atores e instrumentos

Conforme proposto, a CSS se define a partir dos termos da relação que é estabelecida. Assim, ela se encontra não nas doações de um doador a um receptor, mas na relação de países que são capazes de perceberem-se como sócios em um trabalho que se propõe a gerar

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benefícios mútuos. Assim, é fundamental que este estabelecimento se dê a partir do que uma e outra parte esperam e do que estes mesmos sujeitos tem condições e intenções de realizar.

Nesse sentido, parece importante estabelecer em cada ini-ciativa de CSS (a) as necessidades locais a partir de setores e atores definidos e (b) apresentar os instrumentos disponíveis por parte dos atores dispostos a cooperar.

Com relação às necessidades locais há que se considerar que as relações SS se dão em um marco com grande déficit de informação. Seria até despiciendo lembrar o quanto se desconhece, por exemplo, da história passada e recente de diversos países com os quais o Bra-sil tem estabelecido relações de cooperação. Sem uma compreensão das dinâmicas locais, muitas vezes estabelecidas ao longo de séculos de história, ações podem facilmente malograr em função, por exem-plo, da desconsideração de atores fundamentais a um processo que ficaram excluídos do projeto de cooperação. Um bom exemplo disso poderia ser um trabalho para o reforço do sistema institucional judi-ciário haitiano ignorando as formas de solução de litígios institucio-nalizadas por líderes de comunidades locais no país. E, ainda, no pro-cesso de cooperação as iniciativas devem sempre trabalhar no sentido do empoderamento dos atores nos países nos quais se realizam. Este cuidado é fundamental para que essa forma de cooperação não incor-ra na mesma dinâmica verticalizada e dicotomizada (doador/receptor, etc.) estabelecida nas iniciativas Norte-Sul que retroalimentou, tantas vezes, a situação de dependência.

Ainda em relação à primeira necessidade é fundamental dia-logar para definir os setores da possível cooperação sob pena de serem

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construídos projetos que se propõem a enfrentar situações que não representam espaços de interesse mútuo. Os setores de interesse por parte dos vários países do Sul são muitos (agricultura, infraestrutura, saúde, educação, justiça, segurança, etc.), mas nem todos podem ser promovidos a partir de qualquer articulação Sul-Sul. O importante aqui será o compartilhamento de ações que contemplem as melhores práticas. Na América Latina, por exemplo, há diversas experiências de sucesso, como a cubana na área da saúde; a brasileira no setor agrícola com agências como a EMBRAPA e suas pesquisas para o cultivo de legumes e verduras em regiões secas; a equatoriana que, no setor da educação conseguiu uma redução significativa do analfabetismo, entre outras.

Há que se considerar, portanto, a realidade e mesmo as poten-cialidades não exploradas na própria região.

Com relação aos instrumentos disponíveis por parte dos pa-íses dispostos a cooperar é importante que haja clareza quanto às possibilidades das partes envolvidas. Parece claro que a CSS não en-volve - e não se propõe que envolva - ações com transferências de grande monta de recursos financeiros. A sua potencialidade está mais no compartilhamento de boas práticas e na capacitação de recursos humanos por meio de transferências de tecnologias e metodologias.

Das necessidades apontadas para construir-se a CSS resulta que o grande desafio para o estabelecimento de necessidades e defini-ção de instrumentos é o diálogo. Neste sentido a CSS ainda é muito carente de espaços institucionalizados e de orçamento e projetos de-finidos para empreender ações de médio e longo prazos. Quanto me-nos os países individualmente investirem na institucionalização des-

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ses órgãos, mais vulnerável às políticas circunstanciais a CSS ficará, podendo, no limite, ser reflexo tão somente das inclinações pessoais dos governantes É forçoso reconhecer, todavia, que, por mais que não sejam as iniciativas Sul-Sul ancoradas em transferências de grandes montas de recursos financeiros, esses são absolutamente necessários em todas as etapas da cooperação, desde as designações dos órgãos in-ternos aos países responsáveis pelo estabelecimento das relações ho-rizontais até as negociações e implementações dos planos acordados.

Um cenário de oportunidades e desafios

Na CSS, entendida como a articulação entre países emergentes que seja capaz de promover a ampliação das suas possibilidades, a hori-zontalidade é traço distintivo. Nela o espírito da relação é cooperativo e pautado em um marco menos impositivo e discricionário do que as formulações anteriores. Nesse desenho, o perceber-se como parceiros facilita a promoção de ações que sejam mais condizentes com as ne-cessidades dos cooperantes e cria melhores condições de adequação, mesmo durante seu curso, uma vez que o diálogo que as gera torna a dinâmica mais sensível aos contextos locais.

A horizontalidade também abre espaço para que sejam explo-rados setores frequentemente negligenciados em relações Norte-Sul. O compartilhamento de problemas semelhantes – isto é, a familiari-dade com os problemas uns dos outros - pode ser, assim, uma porta para que sejam vislumbrados espaços de troca de melhores práticas pelos diversos países do Sul.

A CSS, além de espaço para encontrar alternativas capazes

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de melhorar a condição de vida das populações dos países do Sul, pode contribuir para melhor inserção internacional desses mesmos países. Diversos Estados lançam-se nessas parcerias para conquistar condições de participar mais ativamente da construção da agenda in-ternacional. O caso brasileiro é exemplar nesse sentido, entretanto o desafio aqui é pensar mais estruturadamente a CSS, com fixação de objetivos mais consistentes a médio e longo prazos.

Nessa linha de raciocínio, é importante ressaltar também as dificuldades que a CSS enfrenta. De fato seria leviano pretender que a CSS fosse o espaço ideal de cooperação, pleno de oportunidades e sem limitações. Ao contrário, os limites que aparecem em relação à CSS são diversos e podem aproximadamente ser reunidos nos se-guintes aspectos :

a) Desconhecimento entre os parceiros no que diz respeito à sua história, cultura, tradições, etc., dificultando a abertura de diálogos;b) Maior vulnerabilidade aos movimentos globais, que po-dem levar a uma rápida desarticulação da cooperação externa caso haja a percepção da necessidade de tratar de alguns pro-blemas como assuntos unicamente domésticos (ex.: violência e migrações);c) Necessidade de articulação entre Estados com diversas de-ficiências de recursos humanos qualificados para a formulação, coordenação, gestão e execução dos projetos de cooperação.d) Risco de sobreposição de agendas por parte da potencia mundial de forma a securitizar temas que poderiam ser abor-dados no âmbito da CSS;

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e) Dificuldade na criação e manutenção de sistemas de in-formação sobre setores e atores potenciais para a cooperação;f ) Ausência de mensuração de impactos e avaliação dos resul-tados das iniciativas em curso.Alguns desses desafios precisam ser resolvidos para que a pró-

pria CSS seja possível, como é o caso do provimento de recursos hu-manos aptos a sistematizar e implementar os processos cooperativos. Outros, como o conhecimento da história, cultura e tradições entre os parceiros podem ser enfrentados paulatina e continuamente e se re-forçarão à medida em que a própria CSS tiver curso (ex.: cooperação entre centros universitários que podem construir pesquisas em torno de objetos específicos - ao mesmo tempo que unem-se esforços para a construção científica, geram-se motivação e possibilidades para a aproximação das práticas e culturas de ambos).

ConsiDerações Finais

A partir da análise do processo em curso podem-se ler al-guns contornos que vem assumindo essa dinâmica cooperativa entre países do Sul e, considerando-os, pode-se elaborar um quadro mais sistemático do fenômeno e das oportunidades e desafios que a sua implementação enfrenta. Os parágrafos que seguem sintetizam as conclusões a que se chegou com este trabalho.

Com relação à consistência do termo “cooperação Sul-Sul” sustentou-se que, pelas características aproximadamente similares que reúnem, por enquanto e para este contexto ainda é válida a divi-são entre países do Norte e países do Sul. Ainda, no que se refere à

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questão terminológica, percebeu-se que a palavra cooperação (em de-trimento do uso de outras como auxílio ou ajuda) adequa-se melhor ao processo em curso por servir para definir uma relação em que todas as partes envolvidas percebem-se como contribuintes e beneficiárias dos projetos.

Essa duplicidade não está presente somente em relação aos papéis dos atores mas, também, nos resultados que vislumbram possí-veis por meio da CSS. Assim, além de se apresentar como mecanismo de inserção para obtenção de resultados frente a terceiros países, os cooperantes percebem-na como uma relação capaz de ser intrinseca-mente proveitosa em função dos ganhos comerciais, culturais, técni-cos e de melhores práticas que ela pode gerar.

Propôs-se, a partir desse desenho inicial de atores, expectati-vas e instrumentos, uma definição para a CSS como uma articulação entre países emergentes que seja capaz de promover a ampliação das suas possibilidades. Tal definição reforça dois aspectos que devem estar no hard core da Cooperação Sul-Sul: a horizontalidade e a ampliação de alternativas à disposição dos cooperantes (tanto para desafios inter-nos dos cooperantes quanto para desafios das relações mantidas com terceiros países).

Proposta uma definição conceitual, para que seja capaz de sustentar-se como uma relação horizontal, como um verdadeiro ca-minho de mão dupla, é necessário que as partes sistematizem a sua construção, desenvolvimento e avaliação, envolvendo e empoderan-do atores, definindo de maneira consciente os setores-alvo e visando aproveitar os melhores recursos à disposição de cada um dos coo-perantes. Quanto mais clareza em relação a atores, setores e instru-

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mentos houver, melhores resultados poderão ser conseguidos e menos expectativas desproporcionais serão construídas.

A CSS, sem querer substituir a cooperação articulada na ma-triz Norte-Sul, tem diversos campos inexplorados de cooperação para desbravar. A preocupação com problemas peculiares aos países do Sul – e, portanto, já fora da gramática de soluções dos países desenvolvi-dos – e a familiaridade com os gargalos semelhantes que enfrentam, abrem um grande leque de oportunidades a serem exploradas na via horizontal. Essas oportunidades não aparecem em um contexto des-provido de limitações que, em relação à CSS, são significativas. Algu-mas delas, se não forem superadas, impedem o próprio processo de se desenvolver; já outras podem, no próprio curso dos projetos de CSS, contribuir para a sua superação.

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