“POR DEUS, PELO REI, E PELA TERRA-MÉDIA - ELEMENTOS ... · RELIGIOSOS EM O SENHOR DOS ANÉIS DE...

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Web-Revista SOCIODIALETO www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 Volume 4 Número 10 julho 2013 102 “POR DEUS, PELO REI, E PELA TERRA-MÉDIA- ELEMENTOS RELIGIOSOS EM O SENHOR DOS ANÉIS DE J. R. R. TOLKIEN Silas Daniel dos Santos (PROASE EERP/USP) 1 [email protected] RESUMO: O presente artigo visa mostrar, à guisa de estudo de caso, alguns elementos religiosos presentes na obra O Senhor dos Anéis, e sua importância para a compreensão da referida obra, do autor J. R. R. Tolkien . A escolha se deve à inegável densidade do texto, provavelmente parabólico, metafórico e alegórico, em cuja tessitura indubitavelmente elementos religiosos tem grande peso. Palavras chaves: elementos religiosos, O Senhor dos Anéis, Tolkien. ABSTRACT: This article aims to show by way of case study, some religious elements present in the book The Lord of the Rings, and its importance for the understanding of that work, the author J. R. R. Tolkien. The choice is due to the undeniable text density, probably parabolic, metaphorical and allegorical, in which religious elements fabric undoubtedly has great weight. Keywords: religious elements, The Lord of the Rings, Tolkien. INTRODUÇÃO Em nosso país já há um sugestivo corpus de pesquisas na interface religião e literatura, tanto produção nacional como também traduções, em livros e artigos em periódicos 2 . A (re) descoberta da potencialidade epistemológica das artes e da literatura para o estudo da religião é, paradoxalmente, renovadora (dado ao virtual e incrível desprezo que essa fértil fonte de pesquisa tem recebido) óbvia, vez que há milênio as 1 É Membro do Núcleo de Estudos, Ensino e Pesquisa do Programa de Assistência Primária de Saúde escolar PROASE da EERP/USP/Ribeirão Preto/SP; Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo; Especialista em Didática e Planejamento do Ensino Superior pela Universidade do Estado de Minas Gerais; Licenciado em Letras pela Universidade do Estado de Minas Gerais; Bacharel em Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo. 2 Inter alia, Zilles (1984, p.337-349); Manzano (1994); Araújo (1996); VVAA (1997); Soethe (1997, p. 205-223); Barcellos (2001); Gross (2002); Caldas (2003. P. 135-156).

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“POR DEUS, PELO REI, E PELA TERRA-MÉDIA” - ELEMENTOS

RELIGIOSOS EM O SENHOR DOS ANÉIS DE J. R. R. TOLKIEN

Silas Daniel dos Santos (PROASE – EERP/USP)1

[email protected]

RESUMO: O presente artigo visa mostrar, à guisa de estudo de caso, alguns elementos religiosos

presentes na obra O Senhor dos Anéis, e sua importância para a compreensão da referida obra, do autor J.

R. R. Tolkien . A escolha se deve à inegável densidade do texto, provavelmente parabólico, metafórico e

alegórico, em cuja tessitura indubitavelmente elementos religiosos tem grande peso.

Palavras chaves: elementos religiosos, O Senhor dos Anéis, Tolkien.

ABSTRACT: This article aims to show by way of case study, some religious elements present in the

book The Lord of the Rings, and its importance for the understanding of that work, the author J. R. R.

Tolkien. The choice is due to the undeniable text density, probably parabolic, metaphorical and

allegorical, in which religious elements fabric undoubtedly has great weight.

Keywords: religious elements, The Lord of the Rings, Tolkien.

INTRODUÇÃO

Em nosso país já há um sugestivo corpus de pesquisas na interface religião e

literatura, tanto produção nacional como também traduções, em livros e artigos em

periódicos2. A (re) descoberta da potencialidade epistemológica das artes e da literatura

para o estudo da religião é, paradoxalmente, renovadora (dado ao virtual – e incrível –

desprezo que essa fértil fonte de pesquisa tem recebido) óbvia, vez que há milênio as

1 É Membro do Núcleo de Estudos, Ensino e Pesquisa do Programa de Assistência Primária de Saúde

escolar – PROASE da EERP/USP/Ribeirão Preto/SP; Mestre em Ciências da Religião pela Universidade

Presbiteriana Mackenzie de São Paulo; Especialista em Didática e Planejamento do Ensino Superior pela

Universidade do Estado de Minas Gerais; Licenciado em Letras pela Universidade do Estado de Minas

Gerais; Bacharel em Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo. 2 Inter alia, Zilles (1984, p.337-349); Manzano (1994); Araújo (1996); VVAA (1997); Soethe (1997, p.

205-223); Barcellos (2001); Gross (2002); Caldas (2003. P. 135-156).

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artes e a religião estão visceralmente unidas, a um ponto tal que desconectá-las é como

separar xifópagas.

No que tange à interface religião e literatura, observe-se:

Não é difícil seguir na história a relação entre religião e literatura. Bem cedo

a escrita foi utilizada para transmitir adiante mensagens sagradas. Não que

isso sempre tenha sido feito através de uma sacralização formal dos próprios

textos, como nas tradições religiosas que canonizaram algum conjunto de

obras particulares. Mesmo sem uma tal consagração, os legados espirituais da

humanidade foram sendo registrados por escrito, seja com objetivo de

compartilhar tais conhecimentos, seja com objetivo de preservá-los de um

desaparecimento futuro. (GROSS, 2002, p.8).

Essa citação pode dar entender que somente textos considerados sagrados

podem ser utilizados para o estudo da religião. Na verdade, não é o caso.

Por outro lado, a relação entre literatura e religião de forma alguma é

monopólio de textos a que se atribui algum tipo de sacralidade. Também

desde sempre os textos considerados “profanos” espelharam a religiosidade

que os envolvia. (GROSS, 2002, p. 8-9).

Por oportuno, ressalte-se que a pesquisa na interface literatura-religião/teologia

está em construção. Há diferentes possibilidades teóricas neste vasto campo3. Mas, em

síntese, pode-se afirmar que, independentemente do modelo teórico que se adote, quem

trabalha com essa interface há de prestar atenção a algumas questões bem apresentadas

por (Gross, 2002, p. 10-11), quais sejam:

Como a literatura em geral retrata ou deixa retratar os elementos religiosos da

cultura? Quais os pressupostos religiosos, conscientes ou não, assumidos no

momento da escrita? Que mensagens de cunho espiritual são veiculadas,

voluntária ou involuntariamente? Como os elementos religiosos na cultura

afetam o processo de recepção de uma obra literária? Pode-se considerar a

literatura a-religiosa e a anti-religiosa como apresentando tipos de

sacralizações alternativas às das tradições religiosas atuantes na cultura em

geral? (Gross 2002, p. 10-11).

3 Quanto a diferentes possibilidades de articulação teórico-metodológica da interface literatura-teologia .

Barcellos (2001, p. 55-77).

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O Senhor dos Anéis é uma trilogia do escritor inglês J. R. R. Tolkien4, escrita

no período das duas grandes Guerras Mundiais, ocorridas no século XX. As partes são

chamadas respectivamente de “A Sociedade do Anel”, “As Duas Torres” e “O Retorno

do Rei”, a obra ganhou a sua versão cinematográfica pelas mãos do excelente diretor

neozelandês Peter Jackson, em três filmes separados.

A nossa questão de pesquisa é: que obra é essa que alcançou sucesso, tanto

como livro como filme?

O Romance O Senhor dos Anéis

O livro O Senhor dos Anéis é uma obra de ficção fantástica, escrita em 1936 e

1949 e publicado em 1954. É uma obra de um professor universitário de literatura

medieval da Inglaterra, que viveu as duas grandes guerras do século XX, uma como

soldado e outra como correspondente de guerra.

A narrativa de O Senhor dos Anéis é uma guerra travada entre duas frentes, que

reivindicam o direito de organizar o mundo segundo os seus próprios valores e virtudes.

È uma temática de crise, um momento de decisões em um universo próprio que possui

história, línguas, geografia, povos, mitologia e culturas. Toda a criação de Tolkien está

expressa no livro, e seu drama é, centralmente o conflito entre o Bem e o Mal.

Quando foi publicada, a trilogia de O Senhor dos Anéis provocou uma grande

sensação na literatura inglesa, porque seu autor, J. R. R. Tolkien, teve a audácia e a

ousadia de criar um mundo que, em seus detalhes culturais e sociais, é uma recriação da

civilização europeia e de suas lendas.

Tolkien conseguiu mostrar de uma forma bastante clara e convincente o seu

mundo aos leitores, porque a terra que ele criou é inegavelmente parecida com o mundo

em que vivemos e, ao mesmo tempo, diferente.

4 John Ronald Reuel Tolkien (1892-1973) foi o criador do Livro O Habbit e sua sequência O Senhor dos

Anéis. Tolkien foi professor de anglo-saxão, ou inglês antigo, (e considerado um dos maiores

especialistas do assunto) na Universidade de Oxford de 1925-1945, e literatura de 1945-1959.

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O impacto dessa obra foi tal que fez com que se formasse um novo gênero na

literatura Moderna: o dos romances de Fantasia Medieval. Assim, Tolkien tornou-se

muito influente, inclusive, na História da Literatura.

Como a obra O Senhor dos Anéis contém temas vastos e variados, não nos será

possível neste artigo tratar de todos os temas. Dessa forma, abordaremos alguns

assuntos que nos parecem de fundamental importância neste romance: o tema principal

e o fundo filosófico/religioso da trilogia. Bem como as visões sobre o mundo, a vida, o

homem, e a mulheres.

Os Temas e a Religiosidade Presentes em O Senhor dos Anéis

O Senhor dos Anéis está baseado na filosofia cristã. Isso já explica o tema

principal dessa obra, que é:

“existe alguma possibilidade para o ser humano, corrompido por

natureza, ser salvo e realizar a liberdade da vontade?”

(TOLKIEN, 2001).

O que nos faz denotar esse tema é a fala que mais aparece, tanto no livro

quanto no filme: “...Mas o coração do homem é facilmente corrompido.” E é este o

primeiro de todos o pontos da “doutrina sobre o homem” do cristianismo: a

pecaminosidade do homem. É o que se chama de “pecado original”que a Bíblia traz,

desde o seu início no livro de Gênesis, no capítulo três.

Mas, na obra de Tolkien, o que seduz o coração do homem a se corromper

constantemente? É o Um Anel5. Esta conclusão vem de uma simples constatação: de

acordo com a Bíblia, o que guia o homem para a sua própria ruína, neste mundo, é o

pecado, desde o pecado original no Éden até hoje: “Neste caso, quem faz isto já não sou

5 O Um Anel é o ponto fundamental na narrativa de O Senhor dos Anéis. Forjado em segredo pelo Maiar,

uma raça de status angelical, Sauron, que havia se corrompido, tinha o poder de controlar os outros anéis

de poder, também forjado por Sauron e oferecidos aos povos livres da Terra-Média: elfos, anões e

homens. Com esta armadilha, Sauron pretendia dominar todos os seres, terras e conhecimentos existentes.

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eu, mas o pecado que habita em mim” (Carta do Apóstolo Paulo aos Romanos 7:17); e

nesta obra , é o Um Anel, que seduz o homem de forma muito semelhante no mundo da

Terra-Média, onde se passa O Senhor dos Anéis.

Mas, então, o que é esse “pecado”? De acordo com a filosofia cristã, o pecado

é “a tendência natural: “Eu nasci na iniquidade, e em pecado me concebeu a minha

mãe.” (Salmos 51:5) e habitual do homem fazer o que é errado’. “Arastes a malícia,

colhestes a perversidade; comestes o fruto da mentira, porque confiastes nos vossos

carros e na multidão dos vossos valentes” (Oséias 10: 13). É por isso que o homem, por

cometê-lo, mesmo sem vontade de fazê-lo, o odeia e, ao mesmo tempo, o ama. É a

natureza do homem que está dita na Bíblia: fazer algo que o próprio ser não gosta de

fazer: “Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o

que prefiro, e sim o que detesto”. “Mas, se faço o que não quero, já não sou eu quem o

faz, e sim o pecado que habita em mim”. (Carta do Apóstolo Paulo aos Romanos 7: 15 e

20). No livro, Tolkien fala disso por meio do mago Gandalf, o Cinzento, quando este se

refere a Gollum “(…) Ele ama o anel tão quanto o odeia.” (TOLKIEN, 2001).

Há críticos que interpretam o significado do Um Anel de forma diferente,

dizendo que o Um Anel, sendo o Anel Absoluto, é o símbolo do “poder absoluto”. Mas

essa visão é incorreta, tendo em vista o prefácio do autor na primeira edição da trilogia:

[...] Mas, mesmo que este romance tenha sido escrito durante as Grandes

Guerras mundiais, a sua mentalização é bem anterior, e, portanto, não contém

qualquer retrato delas, [...] nem alguma analogia sobre o poder absoluto que

tentaram formar (a Alemanha ou o Japão, ou mesmo a União soviética). Se o

Mal retratado fosse isso, então este teria sobrevivido. (TOLKIEN, 2001).

A Visão de Mundo em O Senhor dos Anéis

Conforme as palavras de Tolkien acima, não se pode dizer simplesmente que a “trilogia

é o fruto da mitologia e da história da Europa”. Muito pelo contrário, o autor projeta e

recria a visão cristã no seu mundo, Terra-Média, valendo-se dela como seu instrumento

de narração.

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Numa outra obra de Tolkien, chamada O Silmarillion, que é “o princípio” de O Senhor

dos Anéis, aparece a lenda da Criação do Mundo. Diferente do que acontece com os

demais romances de fantasia medieval hoje, o autor conserva a visão monoteísta da

Criação. Assim se inicia a primeira canção de O Silmarillion, a “Ainulindalë”:

No princípio, havia Eru, o Único, que em Arda é chamado de Ilúvatar. Ele

criou primeiro os Ainur, os Sagrados, gerados Poe seu pensamento, [...] os

grandes, entre esses espíritos, são denominados Valar, [...] mas os de grau

inferior são os Maiar [...]. (TOLKIEN, 2001).

Percorrendo outras canções épicas que se seguem, tais como a “Valaquenta” e

a “Quenta Simarillion”, aparece-nos claramente que os Valar são os arcanjos e os

Maiar, os anjos. Voltando à “Ainulindalë”, narra-se um pequeno episódio de uma

rebelião , liderada por um vala, Melkor, que desobedece à vontade de Eru por três

vezes. Eru, furioso, condena o líder e os adeptos desta rebelião. Melkor, guardando

rancor pela condenação, desce à Terra-Média, que estava a se formar, com seus próprios

criados e súditos.

Assim que Eru terminou de formar o Mundo, criou seres racionais, que são

chamados por ele mesmo de “Seus filhos”. Essas raças, dotadas de razão e vigor, são os

elfos e os homens. E começa a Primeira Era.

A fim de eliminar do Mundo o perigo de Melkor, cujo apelido é Morgoth, Eru

envia à Terra-Média uma legião dos Valar e dos Maiar. Morgoth, o arcanjo rebelde, por

sua vez, reúne os seus criados e súditos para enfrentar a legião. Assim inicia-se a guerra

entre os exércitos celestiais, que termina com a vitória dos Valar e dos Maiar, fiéis a

Eru.

Os relatos da Primeira Era coincidem, quase que integralmente, à narrativa

bíblica. De acordo com os livros de Gênesis, Isaías, Ezequiel, o Evangelho de São

Lucas e Apocalipse, Deus, o Único, criou o Mundo e tudo que nele há (Gênesis

capítulos 1 e 2), e ocorreu uma batalha entre os anjos fiéis a Ele e os rebeldes,

seguidores do arcanjo – outrora belíssimo e fiel servo d’Ele (Ezequiel 28: 13-15) –

agora decaído (Isaías 14: 13-14), nos Céus (Apocalipse 12: 7-8). Após essa batalha na

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abóboda etérea, os rebeldes, derrotados (Ezequiel 28:16), vem à Terra (Lucas 10:18;

Apocalipse 12: 9-10).

A Segunda Era, que se inicia após esses acontecimentos, foi um período

governado com os “Três anéis de Poder” dos reis élficos. E junto a eles, os reis dos

homens e os senhores anões. Tudo era governado com a liberdade e a ordem, e a Terra-

Média se achava em paz e prosperidade, sem Morgoth.

Mas o servo mais fiel de Morgoth, Sauron, disfarçou-se num anjo reluzente e

grande mago, e enganou o coração dos reis dos homens ao presenteá-los com os “Nove

Anéis”, tornando-os seus servos. Os reis de Angmar tornaram-se os “Espectros do

Anel”, os “nasgûl”, porque não discerniram que os seus Anéis eram parte de um plano

malévolo.

Sabendo disso, Eru, através dos seus fiéis Valar, enviou os “Istari”, que os

povos da Terra-Média chamaram de “magos”. Eles eram da categoria de Maiar, e

tomaram a forma humana. Como existiam desde o princípio, suas formas eram de idade

avançada, e tinham a missão de deter o mal de Sauron.

Então chamaram todos os elfos e homens que não forma seduzidos nem

corrompidos pelo poder do Um Anel de Sauron, e formaram a “Última Aliança” para

resistir à expansão de Sauron. Na última batalha, Sauron perdeu seu dedo e o Um Anel,

perdendo a sua forma; o Um Anel passou a Isildur, o Rei de Gondor e de Anor, como

espólio de guerra. Assim terminou a Segunda era.

Os relatos da Segunda Era também são baseados na Bíblia. No livro de

Gênesis, Satanás, após ser expulso dos Céus, seduz os homens, os filhos de Deus, a

pecarem (Gênesis 3:1-7). Estes, não discernindo a gravidade das consequências de seus

atos, pecam, e a partir desse momento, o pecado os governa, e o mundo é amaldiçoado

(Gênesis 3:17).

Inicia-se a Terceira Era. Os elfos perdem gradativamente os seus poderes, e os

homens encontram-se em queda, pois os seus nobres, chamados númenorianos, foram

quase extintos. É um período instável e imprevisível, um tanto sombrio. O espírito de

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Sauron, que fora derrotado no final da Segunda Era, aproveita-se desta situação e

retorna, querendo recuperar a sua forma e império através de seu perdido Um Anel. Os

magos iniciam a busca também, porque são cientes do plano do inimigo. E é a partir

desse ponto que a linha narrativa sai de O Silmarillion e entra em O Senhor dos Anéis.

O Um Anel foi achado por Sméagol, que vivia às margens do Grande Rio, o

Anduin. Sauron, sabendo da descoberta, levanta um exército formidável para recuperar

o seu império na Terra-Média. Nesta iminência, Saruman, o chefe dos magos, trai Eru e

se alia a Sauron. Para impedir que este crescente e avolumado mal conquiste o mundo,

foi formada a Sociedade do Anel pelos representantes de todos os povos livres – os

homens, os elfos, os anões e os hobbits – para destruir o Um Anel. A tensão aumenta e

explode a chamada “Guerra do Anel”.

Pelo cumprimento da profecia, o Rei retorna e vence o exército de Sauron, e o

Um Anel é destruído por um hobbit: Frodo. A Terra-Média se liberta do mal e volta à

paz. Após a Guerra do anel, os magos e os elfos vão além do Grande Mar, rumo a

Valinor, a Terra da Imortalidade. Os demais membros da Sociedade do Anel navegam

posteriormente à Terra do Oeste, terminando, assim, a Terceira Era.

Não há relatos mais firmados na Bíblia que os da Terceira Era. O terceiro

volume do épico O Senhor dos Anéis, intitulado “O Retorno do Rei”, está baseado

inteiramente no Novo Testamento, em especial no Livro de Apocalipse, por se tratar do

cumprimento da profecia de que “O Rei retorna ao Mundo, poderoso e triunfante, e

acaba para sempre com o Mal” (Apocalipse 19: 11-21).

As Raças e Suas Visões de Vida em O Senhor dos Anéis

Em O Senhor dos Anéis aparecem muitas raças diferentes. Podemos encontrar

principalmente magos, elfos, homens, anões e hobbits. Mas qual será a intenção do

autor ao apresentar essas raças diversas em sua obra? E quais são os seus papéis nesse

mundo da Terra-Média?

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Neste romance, todas as raças foram usadas como “instrumentos” que

enfatizam um determinado aspecto do ser humano.

Magos e elfos. Por serem mais racionais e puros espiritualmente, através de

seus olhos vemos com riqueza de detalhes o lado irracional e pecaminoso dos humanos.

Diante deles, providos da exata consciência do pecado e de seu poder, os homens não

passam de seres que facilmente caem no pecado. Diz o mestre Elrond: “Os homens são

fracos. E por causa deles o Mal ainda sobrevive.” (TOLKIEN, 2001).

Os elfos, além de racionais, são ideais e conseguem se equilibrar no

cruzamento de duas emoções diferentes: a tristeza e a alegria, ambas provocadas pelo

término da Era deles.

Os homens, no entanto, são mais emotivos que racionais. Ma existem duas

espécies diferentes de homens: os primeiros, grandes reis e nobres, chamados

“númenorianos”, mais belos, racionais e possuidores de dom da longevidade, porque

são mais próximos aos elfos; tem muito pouco. Os homens comuns são muito mais

passionais e mais vulneráveis ao pecado. Foi um grupo deles, Angmar, que recebeu de

bom grado os Nove Anéis de Sauron.

Há ainda anões. Eles são corajosos, porém egocêntricos. São também

pragmáticos e realistas. Não são racionais, embora ainda o sejam mais que os homens.

De início, mostram-se muito rudes com estranhos, mas quando se tornam amigo, são

leais até o fim. São sinceros e guardam bastante carinho dentro do coração, sem porém,

demonstrarem. Como lenda europeia sobre os anões é muito difundida entre os povos

germânicos, talvez Tolkien tenha espelhado neles a tendência desses povos.

Por último, temos os hobbits, seres que consideram que o sumo bem seja

comer e viver bem. São muito pequenos, em média 1,10m. Não é à toa que são

chamados de “meio-homens”, ou periannas, que em élfico significa “os pequenos”.

Os habbits mostram bem a fragilidade, a timidez e a humanidade dos homens.

Eles reconhecem que sozinhos não conseguem cumprir a tarefa que lhes é dada. Esse

reconhecimento faz com que consigam resistir a todas as tentações e perigos presentes

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em praticamente todos os trechos de O Senhor dos Anéis. Especialmente Frodo, que

carrega o seu fardo, pequeno, porém pesado, muito sabiamente até o fim.

Nos hobbits, o autor refletiu a típica personalidade britânica, principalmente

dele mesmo. Dizia Tolkien frequentemente nas entrevistas: “Eu sou um hobbit.”

(TOLKIEN, 2001).

A Visão sobre as Mulheres em O Senhor dos Anéis

Na obra de Tolkien aparecem três mulheres, Galadriel, a elfa nobre; Arwen, a

semi-elfa e Ëowyn, a princesa humana de Rohan. Através da especificidade de cada

uma delas, o autor descreve e divide a personalidade da mulher em três tipos.

Primeiramente vem Galadriel, a Elfa. Ela possui uma beleza racional e perfeita,

e por isso é a mais impassível. Ela analisa todas as circunstâncias e acontecimentos da

Terra-Média, mostrando a cada raça que caminho tomar. Por ter este tipo de

personalidade, vem a ela uma grande tentação. Mas ela consegue vencê-la, e vai para

Valinor, a terra dos Valar e da imortalidade.

Depois vem Arwen, a Semi-elfa. Ela, por ser meio elfa e meio humana, tem

uma beleza racional e ao mesmo tempo passional. É por essa razão que a sua beleza é

elogiada tanto por humanos quanto por elfos. A sua racionalidade faz com que ela saiba

aguardar o devido tempo para os acontecimentos, e a sua paixão faz com que lute por

seu grande amor, abrindo mão da sua imortalidade élfica. Tolkien a descreve-a como

sendo a mulher ideal.

Por fim, está Ëowyn, a princesa humana do Reino de Rohan. Ela aparece em O

Senhor dos Anéis como sendo a mulher mais passional, e por assim, a mais dramática e

a mais sofredora. Ela corre de um extremo ao outro, e isso revela que ela possui uma

personalidade forte. Ela está sempre lutando para conquistar ou defender a quem ama,

empenhando todo o seu ser. Por meio dela, o autor mostra que o amor humano é ardente

e passional.

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A Visão Messiânica em O Senhor dos Anéis

O Senhor dos Anéis apresenta uma estrutura cristã. Além do tema principal,

aparece como tema secundário “a profecia e o seu cumprimento”. O autor apresenta,

assim como a Bíblia igualmente apresenta, um messias, e essa figura se baseia

principalmente na concepção do Velho Testamento.

O Velho Testamento mostra duas características para um mesmo messias. Uma

é profética, a outra guerreira. A diferença entre a Bíblia e O Senhor dos Anéis está aqui:

no primeiro, estes dois são apenas uma e mesma pessoa; no segundo, são duas pessoas

deferentes.

Os dois messias são Gandalf, o Mago, e Aragorn, o Rei. Gandalf vai a todas as

terras para unir as forças contra o Mal. Aragorn vai à frente da guerra, conduzindo o

exército reunido. Os dois hobbits, Frado e Sam, que não conseguem cumprir a sua tarefa

pelas próprias forças, avançam, apoiados pelas façanhas destes dois “salvadores”,

podendo se livrar do pecado e assim ganhando a liberdade.

O nome do lugar onde Gandalf se sacrifica é Moria. Moriá é o nome de uma

montanha que aparece no livro de Gênesis (22:1-19), é o lugar onde Abraão ofereceu

Isaque, o seu único filho, a Deus, e é também o lugar onde teve seu filho de volta.

Neste local que apresenta o sacrifício e a ressurreição do messias, Gandalf luta

e vence Balrog um dos anjos decaídos -, morre, e finalmente ressurge. Após este

acontecimento, ele recebe um grande poder, deixando de ser o Mago Cinzento para se

tornar o poderoso Mago Branco.

No Novo Testamento, Jesus, o Salvador, morreu na Cruz e ressurgiu,

recebendo assim todo o poder dos céus e da terra (Mateus 28:18), sacrificando o Seu

próprio ser, para salvar a muitos (João 10:11-18). Em O Senhor dos Anéis, Gandalf se

sacrifica para salvar o restante da Sociedade do Anel.

Aragorn. Desde o início desta obra aparece a profecia do “retorno do rei”, e

isso aponta diretamente a ele. Nos dias normais, ele é um mero guardião, mas, no

terceiro livro de O Senhor dos Anéis, O Retorno do Rei, ele se transforma num grande

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Rei, demonstrando todo o seu poder, glória e majestade como o Senhor de toda a Terra-

Média, cumprindo, assim, a profecia.

Ele surge na obra quando a esperança e a liberdade parecem ter desaparecido

totalmente. Mas ele retorna como o Rei e, com seu grande poder, vence o inimigo. Essa

cena remete diretamente à Bíblia (Apocalipse 19:11-21), em que o Messias, o Rei,

retorna à Terra com um grande exército, vencendo o inimigo, o Príncipe do Mal.

Conclusão

Tolkien em O Senhor dos Anéis, ao apresentar os personagens, utilizou um

recurso visual usando cores. Entre alguns exemplos, estão os dois magos: Saruman, o

Branco, e Gandalf, o Cinzento. Interessante é a variação de cores das vestes deles à

medida que a obra se desenrola. Saruman, que começou com a cor branca, vai

adquirindo várias cores; Gandalf, que era cinzento, e por sê-lo, provocava a

instabilidade nas pessoas, passa a ter uma cor branca após a sua ressurreição.

A contraposição de vozes destes dois personagens é interessante também. A

obra descreve que a voz de Saruman é muito suave e agradável de se ouvir, mas por trás

disso estão todos os seus planos malévolos; Gandalf, pelo contrário, tem uma voz forte

e agressiva num primeiro instante, mas sempre fala a verdade.

Tolkien não utilizou somente estes recursos para descrever os personagens.

Também se valeu de elementos da personalidade humana. Boromir, o filho do Regente

de Gondor, é descrito como um homem de forte personalidade. O seu coração é cheio

de ambições e aspirações, a ponto de desejar o Um Anel, mas, quando toma consciência

do seu mal e se arrepende, passa a defender os companheiros e chega a morrer pela

Sociedade atacada, no esforço de tentar corrigir o seu grande erro. É, assim, um

personagem dramático, que aparece no primeiro filme no momento mais comovente.

No outro lado está Frodo, pintado pela fragilidade e sem fortes marcas de

personalidade. É o Portador do Anel e, embora não seja mais que um pequeno e

humilde hobbit, e por isso mesmo estranho, cumpre sua missão com responsabilidade.

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Por ele visualizar precisamente qual é a sua tarefa, esforça-se de todas as maneiras para

cumpri-la. Este tipo de personagem já aparece na literatura do século XVII, na obra O

Peregrino, de John Bunyan.

Sam. Ele é um servo fiel, atendendo a seu senhor. Por onde quer que vá o seu

senhor, ele o segue como uma sombra, dividindo as alegrias e as tristezas. Não

compreende exatamente qual é a tarefa do seu senhor, tampouco quer saber a fundo,

mas faz de tudo para que Frodo possa realizá-la. Sacrifica-se em todos os momentos da

jornada do portador do Anel, e é por isso que nos encanta. O próprio Tolkien dizia que o

seu personagem predileto é Sam.

Por fim está Gollum. Ele mostra, em todos os aspectos da sua personalidade e

caráter, um pecador, viciado no seu pecado. Aliás, o ponto interessante neste

personagem, segundo Gandalf, é que: “Ele ama o Um anel tão quanto ele o odeia.”

Trata-se de uma criatura que precisa preencher o vazio da sua existência, e no Um Anel

ele vê a solução, pois lhe proporciona segurança e bem-estar, muito embora isso torture

e amaldiçoe. Esse desejo, quase que como uma obsessão, leva-o até o seu próprio fim,

no Monte Destino. A Bíblia nos mostra um ser humano justamente assim: é pecador,

mais odeia o seu próprio pecado, e quer se tornar bom, mas falta-lhe a capacidade e a

coragem (Romanos 7: 15-24).

Estas são as influências dos princípios da filosofia cristã nesta grande obra, que

há muito a se explorar. Estes apontamentos, resalvamos, são confirmados pelo próprio

autor, que disse numa certa entrevista: “As minhas fantasias partiram da minha fé; esta

obra é basicamente um romance cristão.”

REFERÊNCIAS

Bíblia Sagrada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

CALDAS, Carlos. Religião e Literatura: reflexões sobre O Silmarillion. Ciências da

Religião: História e Sociedade, São Paulo, ano 1, n. 1, 2003. Universidade Presbiteriana

Mackenzie.

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GROSS, Eduardo (Org.). Manifestações literárias do sagrado. Juiz de Fora: Editora

da UFJF, 2002.

TOLKIEN, J. R. R. O Senhor dos Anéis. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

______. Mestre Gil de Ham. São Paul: Martins Fontes, 2003.

______. O Salmarillion. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

______. Sobre História de Fadas. São Paulo: Conrad, 2006.

______. O Habbit. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Recebido Para Publicação em 02 de maio de 2013.

Aprovado Para Publicação em 26 de julho de 2013.