População e Sociedade in Historia Do Brasil Nação Vol 3 - Lilia Schwarcz

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    NUMA BABEL DE POVOS, CULTURAS E CORES

    Quando o sculo xxcomeou a despontar, mudanas profundas ocorreramno perfil da populao brasileira. Com o final derradeiro da escravido, em1888, a desorganizao do sistema e a urgente substituio da mo de obrapor conta da demanda cafeeira, uma srie de esforos foram feitos para

    animar a vinda de imigrantes, sobretudo europeus, ao Brasil. Contandocom a concorrncia de pases como Argentina, Cuba, Mxico e, sobretudo,Estados Unidos, o governo brasileiro teve de se esmerar e assegurar a ter-ra da promisso quando, na verdade, pretendia-se a criao de modelosalternativos ao cativeiro africano que, nesse momento, via (e com atraso)seus dias chegarem ao fim. O modelo preconizado pela Repblica, quese iniciou em novembro de 1889, pautou-se pela excluso de largos seto-res sociais, sempre em nome de uma poltica que priorizasse uma novamodernidade e racionalidade. Nesse sentido, se no h como negar que a

    Primeira Repblica promoveu processo acelerado de institucionalizao,largas faixas da populao viram-se, ainda que com acesso liberdade e igualdade jurdica, excludas do jogo social que ento se montava.

    Num primeiro momento voltado para o campo, um grande contingentede imigrantes estrangeiros acabaria absorvido pela dinmica das cidades,imantado pela fora dos novos centros urbanos que se organizavam, gerandoempregos e servios. Ficou famosa e disseminou-se, tanto no pas quantono exterior, a frase do mestre-escola Thomas Davatz, que, depois de viverpouco tempo no Brasil, teria exclamado: Dessa vez estou perdido. O suo

    apenas expressava o sentimento daqueles que, em vez da fortuna dofamoso fazer a Amrica , encontraram a penria ou experimentaram

    PARTE 1

    LILIA MORITZ SCHWARCZ

    POPULAO E SOCIEDADE

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    uma espcie de escravido por dvida. Com o tempo, a poltica de imigraoacabaria por se normalizar, consolidando uma prtica mais regular de subs-

    dios; mas o fato que revoltas e fugas de colonos caracterizaram o perodo,assim como a sensao de insegurana, que aos poucos se generalizou. Aolado da convico de que a Repblica de 1889 no havia cumprido comos sonhos e utopias de liberdade, igualdade e cidadania, vinha a certezade que a violncia se disseminara e que a culpa era das novas populaesimigrantes, da liberdade dada aos africanos e negros ou do descontrole ur-bano. Segundo interpretaes corriqueiras, vivia-se ao largo da autoridadecurativa e normativa dos senhores de engenho ou dos fazendeiros de caf(Freyre, 1957). Prises por gatunagem, ladroagem, desordem ou anarquis-mo revelam no s a vigncia de termos at ento pouco conhecidos comosinalizam a entrada de novas prticas de sociabilidade. No por acaso, aconcepo predominante era que a mistura de novas culturas, valores ecostumes trazia o desequilbrio, o desamparo e o descontrole.

    Diante disso, investiu-se em novas prticas policiais, amplamente am-paradas nas teorias do darwinismo racial e do higienismo que, no porcoincidncia, denunciavam as desvantagens da mistura e da miscigenao.Mdicos, advogados, antroplogos apostaram nas noes do determinismo

    racial e viram com profundo descrdito o futuro dessas populaes emprocesso acelerado de amlgama. Segundo tais modelos cientficos, divul-gados nas escolas de medicina (do Rio de Janeiro e da Bahia), mas tambmnas faculdades de direito (de So Paulo e Recife), nos museus de etnografia(de Belm, So Paulo, Rio de Janeiro) ou nos institutos histricos que seespalhavam pelo pas, a situao nacional gerava receio em funo dastransformaes geradas pela entrada de trabalhadores estrangeiros (eu-ropeus e orientais) e da convivncia, agora em liberdade, dos ex-escravos.

    Visto sob esse ngulo, o ambiente estava tomado por vises pessimistas,

    as quais, paradoxalmente, conviviam com representaes das mais oti-mistas. Havia o entusiasmo pelo futuro e o progresso, que efetivamente jestavam em curso com a transformao das cidades. Alm disso, a imagemdo imigrante associava-se ideia do melhoramento, seja pelo branquea-mento da populao, seja a partir da divulgao ampliada de um thos detrabalho. Essa poca tambm ficou conhecida pelo nome de regenerao,quando se alterou o perfil das grandes urbes brasileiras, privilegiando umanova conformao arquitetnica e urbanstica moda francesa do baro deHaussmann, e se tratou de expulsar a pobreza dos centros urbanos. Pares

    opostos, mas complementares, regenerao combinava com degenerao,no primeiro caso acenando para os novos rumos que a nao deveria tomar.

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    Domingos MancusoImigrantes italianos. Residncia da famlia Boff, interior de Caxias do Sul

    fotografia, rio grande do sul, 1904

    secretaria municipal da cultura de caxia s do sul,

    arquivo histrico municipal joo spadari adami

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    Primo PostaliImigrantes italianos. Joana Marenzi Postali com os filhos;

    da esquerda para a direita, Adelino, Silvino e Ldia

    fotografia, caxias do sul, rs, 1904

    secretaria municipal da cultura de ca xias do sul ,

    arquivo histrico municipal joo spadari adami

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    Em uma economia ainda aferrada aos servios e negcios de expor-tao agrria e a uma industrializao incipiente, o resultado foi uma

    vida urbana marcada pela instabilidade, com crises cclicas de carestia eaumentos constantes nos preos dos gneros alimentcios ou nos custos demoradia, transporte e aluguel. E os efeitos, rapidamente sentidos diante docrescente processo inflacionrio, foram a multiplicao da pobreza e umgrande rebaixamento social e das condies de vida. A entrada irregularde populaes vindas do campo expulsas pela seca, pela crise agrriaou fisgadas pelas novas oportunidades da cidade e de um contingenteelevado de imigrantes europeus e asiticos ajudou a conferir aos novosaglomerados urbanos uma imagem de desarranjo e desordem ou, nas pa-lavras de Mrio de Andrade, tornou os mocambos to numerosos comoos coqueiros (Andrade, 1943). O crescimento acelerado gerava moradiasirregulares e figuras populares inusitadas transitavam pela cidade: a preta--mina cozinheira, os engraxates mestios, os carregadores, as doceiras, oscapoeiras, os vendedores de leite em domiclio, o baleiro ou o cura a ofe-recer proteo. Todos conviviam com uma nova burguesia que aos poucosse separava do campo e tinha agora nas cidades seu quartel-general.

    Mas, se havia muita dvida no ar, a atmosfera geral era de euforia,

    assim como pairava a certeza, por parte das novas elites que ascenderamcom a Repblica, de que o Brasil andava a braos com os novos ditamesdo capitalismo, do progresso e da civilizao. No por acaso, o novo regimeinscreveu na bandeira da nao os dsticos ordem e progresso, refletindono s sua filiao ao positivismo como a noo de que o progresso eracerto, nico, derradeiro, evolutivo e ordeiro; grande utopia desse momento,dado a mquinas voadoras (como o 14 Bisde Santos Dumont) e a projetosamplos e abrangentes de higienizao. Civilizao e controle eram as pa-lavras de ordem do perodo, que vivenciou a globalizao mundial e um

    dinamismo jamais experimentados.Por um lado, estavam os novos cenrios urbanos, com seus senhores

    e senhoras vestidos ltima moda de Paris, automveis, edifcios, restau-rantes, teatros, lojas variadas e todo tipo de traquitana adequada a essesnovos tempos que pareciam ter pressa. Por outro, encontrava-se o sertolongnquo, espcie de parte esquecida do pas, o qual, ao lado do passadoescravocrata, afigurava-se alijado da memria da poca. L viviam indge-nas, libertos, mulatos uns deserdados, uns desterrados em sua terra.

    A marginalizao das populaes do interior diante das transformaes

    impostas em nome do progresso no foi ignorada. No por acaso, emOs sertes (1902), possivelmente o livro mais emblemtico dessa gerao da

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    Capa da primeira edio de Os sertes,de Euclides da Cunha

    Os sertesfoi o primeiro best-seller da nossa literatura,

    com sua primeira edio esgotando-se rapidamente.

    Livro de grande influncia em sua gerao, mostrou um Brasil

    diferente da modernidade reluzente da capital.

    documento original

    biblioteca brasiliana guita e jos mindlin

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    virada do sculo xixpara o xx , Euclides da Cunha desabafou: Estamoscondenados ao progresso. O progresso parecia inevitvel, mas certamente

    no se aplicava a todos. Se ele era mesmo obrigatrio e dele no se escapava,para pases como o Brasil mais parecia uma danao.

    O que se encontrar neste texto, portanto, no s o dinamismo realda urbanizao e dessa verdadeira era dos engenheiros ou mesmo asinovaes causadas pelas levas de imigrantes recm-chegados , mas odifcil dilogo entre diferentes Brasis que eram, na verdade, um s: o cho-que entre populaes com costumes diversos e, sobremaneira, as novasiluses do progresso e da modernidade. Modernizao e tradio eramconceitos fortes nesse momento que previa mudanas, mas experimentavacontinuidades de toda ordem.

    O BRASIL CIVILIZA-SE: URBANIZAO E CRESCIMENTO

    possvel dizer que a sociedade brasileira dinamizou-se enormementeno perodo que vai da dcada de 1880 aos anos 1930, talvez o primeirocontexto quantificado pelos censos nacionais, que comeavam a ganhar em

    regularidade e confiabilidade de dados. Tal configurao social representavao resultado do crescimento geral da populao combinado com uma polticaagressiva de incentivo imigrao estrangeira. Na verdade, num mesmoperodo, coincidiam elementos dspares, que alteravam a face mais tradi-cional do pas. Se a desmontagem do sistema escravocrata, nos idos de 1880,modificara a situao da mo de obra, j na dcada de 1910 um aceleradoprocesso de substituio de importaes implementado durante e ao finalda Primeira Guerra , unido crise da agricultura, levou a que cidades eindstrias se impusessem no cenrio nacional, no s como novos fen-

    menos econmicos e sociais, mas como possibilidades reais e dominantes.Considerando os dados numricos elaborados pelo socilogo Juarez

    Brando Lopes, pode-se dizer que a populao brasileira cresceu a uma taxamdia de 2,5% ao ano no perodo, enquanto a populao das cidades de 50mil ou mais habitantes cresceu a 3,7% e as de mais de 100 mil a 3,1%. Almdisso, se no primeiro decnio da Repblica a populao geral decresceu em2,2%, j os aglomerados urbanos cresceram 6,8%. Como se v, a urbanizaoera uma realidade que vinha para ficar e alterava rapidamente a feio tra-dicional do pas. No por acaso, o jornal republicanoProvncia de So Paulo

    (futuro O Estado de S. Paulo) elegeu a frase O Brasil civiliza-se como motede sua linha editorial e criou uma seo especialmente dedicada ao tema.

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    A frase havia sido escrita pelo colunista social Figueiredo Pimentel, na seoBinculo, publicada na Gazeta de Notcias, e valia, em princpio, s para o

    Rio de Janeiro. Mas a frase pegou e se disseminou pelo territrio nacional.Entretanto, o incremento urbano se deu apenas em algumas grandes

    cidades, diferentemente do fenmeno que ocorreu nos Estados Unidos, ondeo desenvolvimento mostrou-se mais disseminado pelo conjunto do territriodo pas (Cardoso, 1977:20). Cidades como Rio de Janeiro, So Paulo e depoisBelo Horizonte concentrariam esforos e recursos nesse sentido, mostrandocomo o eixo econmico estava agora voltado para a regio Sudeste. exem-plar o caso da cidade de So Paulo, convertida numa espcie de metrpoledo caf e que, na dcada de 1880, mais particularmente aps 1888, ano da

    Abolio da escravatura, receberia o nmero extraordinrio de 184 mil imi-grantes. Ou seja, se o volume de populao imigrante no foi to relevantequando comparado ao crescimento populacional geral, j no caso de SoPaulo dos mais significativos, vinculando a sorte dos novos aglomeradosurbanos feio, agora mais estrangeirada, que o pas, ou ao menos deter-minadas regies dele, ia ganhando. No por acaso, a fala dos paulistas seriaamplamente alterada e influenciada, assim como seus costumes e cores.

    POPULAO TOTAL E POPUL AO ESTR ANGEIRA (18721920)

    censopopulao total

    (em mil habitantes)

    populao estrangeira

    (em mil habitantes)

    1872 10.112 383

    1890 14.334 714

    1900 17.436 1.296

    1920 30.636 1.651

    Fonte: Santos, 1973:263.

    IMIGRAO TOTAL E EM SO PAULO (18841920)

    perodo brasil so paulo

    18841887 145.880 53.023

    18881890 304.054 157.781

    18911900 1.129.315 733.335

    19011920 1.469.095 857.149

    Fonte: Santos, 1973.

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    certo que a populao estrangeira foi contratada, originariamente,para engrossar o trabalho na lavoura rural; no entanto, com a crise da

    agricultura, boa parte desse contingente deslocou-se para as cidades,atrado no s pelas novas oportunidades, como pelas especializaesprofissionais que traziam de seus pases de origem. Isto , mais do quecamponeses, entraram no pas, sobretudo nessa primeira leva, profissionaisliberais alemes, espanhis e italianos, mais acostumados aos servios ur-banos que aos rurais. Tambm chegaram pedreiros, padeiros, sapateiros epequenos comerciantes, habituados lida cotidiana nas cidades e vilarejosde sua terra natal.

    Da mesma forma, no se desconhecem os intensos movimentos demigrao interna, resultantes da desmontagem do sistema escravocrataem vrias partes do pas. No perodo que vai de 1872 a 1900, a regio Nor-deste foi a que apresentou maior perda populacional, consequncia docomrcio interno de escravos que despovoou a economia do acar e doalgodo e reforou a feio dos estados cafeeiros. Castigados pelas secasde 1870 e 1880, tais grupos migrantes provenientes do Nordeste brasileirodirigiram-se para vrias localidades: para a Amaznia, por conta da febreda borracha que assolou o pas no final desse sculo; para o Rio de Janeiro,

    que como capital do Brasil funcionava como chamariz cultural, alm deapresentar-se como provedor de empregos em geral e mais especificamentepara o funcionalismo pblico e estatal; e, anos mais tarde, para os estadosdo Sul Paran, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que expandiam seusservios internos e encontravam-se em acelerado processo de urbanizao.

    Porm, no se deve exagerar a importncia do desenvolvimento urbanodo perodo. Das ltimas dcadas do sculo xixat 1930, o Brasil continuoua ser eminentemente agrcola. Segundo o censo de 1920, dos 9,1 milhesde pessoas em atividade, 6,3 milhes (69,7%) se dedicavam agricultura;

    1,2 milho (13,8%) indstria; e 1,5 milho (16,5%) aos servios de umamaneira geral. Mesmo assim, os dois fenmenos que mais caracterizaramo contexto foram a entrada da imigrao estrangeira em larga escala subvencionada ou no e a acelerao do crescimento e da modernizaodas cidades, que se transformaram nos novos cartes-postais do pas. E aurbanizao traria consigo suas prprias novidades e necessidades. For-mas alternativas de habitao, lazer e trabalho, mas tambm problemasde transporte, moradia e educao fariam parte dessa nova agenda veloz.

    A imagem geral era que tudo mudava, e aceleradamente. Em primeiro

    lugar, as cidades passariam por amplos processos de embelezamento,visando a alcanar as novas funes para as quais se preparavam. Era preciso

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    cuidar dos edifcios pblicos, afastar a pobreza para os subrbios da cidade,atentar para o transporte coletivo, construir instituies representativas

    e lidar com as novas sociabilidades urbanas. Foi nesse momento, tambm,que cidades como Rio de Janeiro, So Paulo e mesmo a recm-criada BeloHorizonte, a nova capital dos mineiros todas concentradas na regioSudeste , aparelharam-se para exercer suas recentes disposies admi-nistrativas e sociais.

    No se pode olvidar, ainda, que em finais do xix, aps um perodo dedepresso, equilibraram-se as economias dos pases centrais, e que Estados

    Unidos e Europa Central experimentaram certo desafogo e expanso nosnegcios. O resultado foi o surgimento de um clima de otimismo e con-fiana absoluta, que partindo da economia ganhou a cultura, os costumese a moral, alcanando assim os pases considerados mais perifricos. Na

    verdade, difcil determinar o que causa e o que efeito nesse processo(e pouco importa), at porque nesse perodo mais particularmente de1890 at a Primeira Grande Guerra a certeza da prosperidade deu lugara uma sociedade de sonhos ilimitados, mais conhecida como belle poque.Esse o momento dos grandes inventos (do automvel, do elevador, daanestesia, da Coca-Cola, e tambm da fotografia, do raio X, da pasta de

    dente); de imensas conquistas imperiais por parte dos britnicos, belgas efranceses; de saltos nas cincias, na filosofia e nas artes. De Freud a OscarWilde; de Gaudi a Verdi; de Munch, com seu grito, a Czanne, com a pai-sagem como impresso, o mundo parecia mesmo novo, assim como seuslimites e possibilidades. No Brasil, por sua vez, a atmosfera que no Riode Janeiro ficou conhecida como regenerao parecia corresponder aosurto que ocorria em outras partes do mundo, trazendo a sensao de queo Brasil, finalmente, estava em harmonia com o progresso e a civilizao.

    O suposto era que a jovem Repblica representava a modernidade que

    se instalava no pas, tirando-o da letargia da monarquia ou da barbrieda escravido. Uma verdadeira batalha simblica foi travada, quando no-mes, smbolos, hinos, bandeira, heris nacionais foram substitudos, com ointuito de impor novas verses mais coadunadas com os tempos modernos.Smbolo maior dessa era, Santos Dumont elevou aos ares as expectativasbrasileiras de alcanar as alturas das naes modernas. cone dos novostempos foi tambm a nova avenida Central atual avenida Rio Branco,na cidade do Rio de Janeiro , exemplo maior do projeto urbanstico quetransformou a capital federal em verdadeiro carto-postal, com fachadasart nouveaufeitas de mrmore e cristal, modernos lampies luz eltrica,lojas de produtos importados e transeuntes francesa. Marco paralelo e

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    administrao preparou a cidade para a entrada dos capitalistas do interior

    ou, nas palavras de Joo Theodoro: A capital, engrandecida e circundada deatrativos e gozos, chamar a si os proprietrios e capitalistas da provncia,que nela formaro seus domiclios ou temporrias e peridicas residncias(Relatrio apresentado Assembleia Legislativa Provincial, 14 fev. 1875). De fato,o desenvolvimento paulistano ficou condicionado a trs fatores principais.Em primeiro lugar, expanso cafeeira, que em sua marcha saa do vale doParaba e chegava ao Oeste Paulista, em finais dos anos 1850. Em segundo, entrada da estrada de ferro que viabilizaria o transporte interno, entofeito em lombo de burros, at o porto de Santos. Por fim, no h como deixar

    de mencionar o papel da imigrao, que mudaria, como veremos, as feies,os dialetos, a culinria e os servios pblicos paulistanos.

    Guilherme GaenslyA avenida Paulista no incio da dcada de 1900 o novo palco da poderosa elite do caf

    gelatina/prata, so paulo, 19051906

    acervo iconogrfico/casa da imagem de so paulo

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    Todas essas alteraes sociais, culturais, tecnolgicas e econmicas levaram, por sua vez, a mudanas aceleradas no comportamento da

    populao local, que passou a transitar pelas ruas da cidade, deixando oambiente exclusivo da casa patriarcal. Tambm em So Paulo (e em ritmoparalelo ao que ocorria no Rio de Janeiro) a boa sociedade descobriu novoshbitos sociais: os bailes, o turfe, o trottoire as noitadas no teatro. No entan-to, e mesmo com tantas novidades, at o final do sculo xixdestacava-se,sobremaneira, uma sociedade rural que desempenhava, por circunstnciaspeculiares, a funo de centro comercial, bancrio, intelectual e burocrticode uma provncia estritamente agrcola (Fernandes, 1972:68). Na verdade,

    velhos padres de sociabilidade, prprios do mundo rural escravocrata epatriarcal brasileiro, continuavam presentes nessa So Paulo em expanso.

    Ao lado das novas tecnologias, das atividades econmicas e ocupaes so-ciais mais recentes e propriamente urbanas permaneciam os rastrosde um passado revigorado, em que as hierarquias sociais eram dadas porpadres rgidos de nascimento e insero.

    por isso mesmo que a urbanizao paulistana implicou embeleza-mento da cidade, mas, de maneira simtrica, empreendeu nova expulsoda pobreza e das atividades ligadas ao mundo do trabalho, consideradas

    incompatveis com a modernidade. Essa a poca da aprovao de umasrie de regulamentaes oficiais (as chamadas posturas), que previammultas e impostos para atividades que, at ento, caracterizavam o dia adia da cidade: venda de galinhas, vassouras, frutas e legumes etc. Almdisso, a especulao imobiliria e a interveno urbanstica levaram aganhos e perdas. Por um lado, a infraestrutura da cidade foi alterada, coma abertura de novos bairros e ruas elegantes, que revolucionaram o atento pacato cotidiano paulistano. Essa , tambm, a poca da avenidaPaulista, com seus casares imponentes e sua populao que se portava

    francesa. Por outro lado, foram demolidos muitos casebres e favelas, tudoem nome do prolongamento das ruas e da ampliao de largos e praas.O mesmo processo que levou ao inchao da pobreza acabou, finalmente,por expuls-la dos bairros centrais da cidade, onde agora ficavam as casasde pera e as lojas comerciais.

    Outras cidades brasileiras passaram por processos assemelhados. Umcaso paradoxal o de Belo Horizonte, criada e arquitetada como capitaldo estado de Minas Gerais. A especificidade de sua formao nos permite

    visualizar, ainda melhor, as demandas do contexto. Promulgada pelo Con-

    gresso Mineiro, reunido em Barbacena a 17 de dezembro de 1893, umanova lei estabelecia a mudana da capital, com o prazo improrrogvel de

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    quatro anos para o trmino de sua construo. Excludos os habitantes deOuro Preto e outros partidrios da permanncia da capital nessa cidade

    histrica, a opinio geral era favorvel nova urbe/monumento, o quegerou a corrida de uma srie de aventureiros e investidores que, em bus-ca de fortuna, passaram a apostar na demolio do arraial e na construode uma cidade moderna. Em 14 de fevereiro de 1894, o governo do estado deMinas Gerais promulgava regulamento, por meio do qual era criada aComisso Construtora e estabelecidos os seus servios. Por outro decreto,da mesma data, nomeava para chefe dessa comisso o engenheiro doutor

    Aaro Reis. Era a primeira vez, no Brasil, que se planejava a construo deuma cidade em moldes modernos e civilizados.

    A primeira providncia foi ligar a nova capital ao plano geral de viaodo estado, o que implicou a construo de uma estrada de ferro, impres-cindvel para o transporte de materiais. Alm disso, e mais uma vez, umprocesso de desapropriao de bens da populao residente na regio seiniciou, a fim de abrir espao para a nova metrpole que surgia apressada.Os planos originais previam o incremento do transporte, mas apostavamtambm nas edificaes que garantiriam, mesmo simbolicamente, queBelo Horizonte fosse, definitivamente, a vistosa e moderna capital de

    Minas Gerais. E logo foram desenhadas a matriz, a capela e como nopoderia deixar de ser o palcio presidencial, grandioso e decorado commotivos art nouveau, chamado, emblematicamente, na capital e na terrade Tiradentes, de palcio da Liberdade.

    Mas nem tudo era cenrio na projetada Belo Horizonte. Ao correr anotcia das obras custosas que se encetavam, com prognsticos de ganhosfceis e abundantes, crescia, na mesma proporo, a chegada de operriose imigrantes, em boa parte italianos que improvisavam barraces e cafuascomo moradias. Dizia-se maravilhas da cidade em construo, definida

    como novo Eldorado, a recordar os tempos gloriosos das Minas Gerais.Logo foi contratado um subdelegado de polcia, o capito Lopes, oficial daBrigada Policial, que deveria montar a segurana local. Jornais tambmno existiam at ento e, como no se faz uma metrpole sem que se faledela, foram fundados os primeiros peridicos, junto com a prpria cidade.Esse o caso deBello Horizonte, publicao encabeada pelo padre FranciscoMartins Dias em agosto de 1895. Em pouco tempo apareceriam outros,comoA Capital (1896) eA Aurora (1897).

    Os trabalhos seguiram em frente, assim como as novas instalaes: o

    Correio foi fundado, o telgrafo inaugurado, casas comerciais abertas eresidncias de melhor padro edificadas. E logo chegaram ao local gua,

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    iluminao e fora eltrica (1895), smbolo maior da entrada na moderni-dade. No trabalho de embelezamento no faltaram os parques com seusrestaurantes, cassinos e observatrios e a prpria arborizao da novaurbe; tudo muito caprichado para receber tanta civilizao. Com as novi-dades prontas para a inaugurao, s faltava limpar a cidade. Legalizou-se,ento, a represso que, mais uma vez, empreendeu a demolio de casas

    velhas e a organizao de um cdigo de posturas, que passou a determinar ocomportamento adequado para a populao de uma nova e moderna capital.

    Enfim, tomadas todas as medidas consideradas necessrias, aproximava-

    -se o dia 17 de dezembro de 1897, termo final do prazo estabelecido paraefetuar a transferncia do governo do estado para Belo Horizonte. Aps o 14

    Fotgrafo no identificadoVista parcial da rua da Bahia, em Belo HorizonteInaugurada bem na virada do sculo, Belo Horizonte, a capital dos mineiros, seguia os mesmos padres

    das demais urbes brasileiras que se preparavam para a modernidade

    fotografia, 15 x 21 cm, 12 out. 1927

    arquivo pblico mineiro

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    de maio de 1888 (quando se aboliu a escravido no Brasil) e o 15 de novembrode 1889 (que ps fim monarquia), Minas Gerais aguardava a transferncia

    da nova capital como um marco dos novos tempos. Para celebrar a data, aoanoitecer, como que por um desses encantos modernos, a cidade ficou todailuminada com as centenas de lmpadas eltricas que a pontilhavam. Osedifcios (ainda inacabados), as praas e avenidas, tudo ganhava forma e corem funo da iluminao que, simbolicamente, marcava o nascimento dacidade. Era 12 de dezembro de 1897, a capital embrionria amanheceu todaembandeirada e em clima de festa. No faltaram discursos e foguetes; afinal,essa era a primeira cidade republicana brasileira planejada que ganhava

    vida e mostrava que o futuro estava por a, bem na frente.Trs casos, trs destinos distintos: a capital carioca que se rearranjou em

    funo da Repblica; a cidade paulistana que se aparelhou para encenar onovo potencial econmico advindo da cafeicultura; e um centro afastadodo litoral, Belo Horizonte, especialmente projetado para cumprir o papel decapital. Em todos se reconhece a mudana, mas tambm a permanncia decertos elementos estruturais. De um lado, uma sociedade recm-egressa daescravido, adepta de um modelo basicamente agrrio-exportador. De outro,um novo projeto poltico republicano, que tenta se impor a partir da difuso

    de uma imagem de modernidade e de civilidade, criada em contraposio aoImprio. O que se nota, porm, , em vez da dicotomia fcil que encontravaduas faces cartesianamente opostas Monarquia ou Repblica, barbrie ouprogresso, atraso ou civilizao , a convivncia inesperada de temporali-dades distintas e a expresso de um movimento ambguo que comportavaincluso e excluso, avano tecnolgico com represso poltica e social.

    Uma populao cada vez mais complexa e diferenciada era o term-metro evidente da insatisfao geral que pairou no pas, logo na virada dosculo. Se uma clara ampliao das oportunidades de trabalho era facil-

    mente verificada, j os setores que mais cresciam eram os dos ambulantes,dos pequenos negociantes, dos vendedores de produtos alimentcios, doscarpinteiros, dos sapateiros, dos carroceiros. Ao lado do trabalho patronale do emprego estvel, resistiam as atividades autnomas e precrias que,embora carregassem certa tradio, foram condenadas pelas posturasmunicipais. Segmentos tnicos e sociais muito distintos passaram a dividirbairros e a coabitar em moradias coletivas, misturando crenas religiosas etambm tradies culturais. Ao lado das peras, teatros, lojas e restauranteselegantes que corresponderiam ao ticketde entrada para a modernidade

    proliferavam antigas prticas religiosas rezadores, feiticeiros, benzedo-ras e curandeiros de toda sorte. Conviviam assim mundos diferentes, mas

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    inesperadamente aproximados. Alm do mais, cortios, penses, casaresocupados por vrias famlias e de alta densidade populacional marcaram a

    paisagem urbana. Casinhas enfileiradas, concentrao em espaos exguos,avenidas com novo trfego, tudo gerava muita solidariedade e troca, mastambm tenses, conflitos e mal-entendidos.

    Na verdade, no tardariam a surgir movimentos que revelariam ou-tras faces, mais reclusas, de tanta modernidade. Colocadas margem, aspopulaes expulsas dos centros urbanos elegantes ou deixadas ao largoda civilizao nos sombrios sertes ou nas longnquas florestas comeavam a ganhar as manchetes dos jornais. Sua reao s poderia serconsiderada, por princpio, brbara e estranha. No entanto, os primeirossinais de revolta partiram de dentro das cidades.

    Consequncia direta dessa nova cenografia foi a Revolta da Vacina,ocorrida no Rio de Janeiro, em 1904, que expunha a poltica autoritriae higienista empreendida com xito nesse momento em que o combates doenas se misturava com o controle das populaes, agora divididasentre nacionais, africanos e imigrantes estrangeiros. O importante quea revoluo popular contra medidas que visavam a erradicar a febre ama-rela era antes sinaleiro da temperatura nervosa e de como a mistura entre

    diferentes levas populacionais com histrias, costumes e aprendizadosdistintos produzia resultados explosivos. E se a questo era objetiva eracional (ou assim parecia), era hora de priorizar o campo da sade. Afinal,desde o ltimo quartel do sculo xix, o tema da sade vinha frequentandoa agenda intelectual e poltica brasileira por meio de sua faceta mais pre-ocupante: a doena. Viajantes, jornalistas, literatos, mdicos e cientistassociais registraram e refletiram sobre molstias tropicais, enfermidades dosescravos africanos e de imigrantes, doenas da cidade e do meio rural, e,cada vez mais, acerca das patologias da modernidade, presentes nas novas

    cidades. Dizia o mdico Miguel Pereira, em outubro de 1916, numa frase logotransformada em metfora do pas uma espcie de epitfio nacional: OBrasil ainda um imenso hospital (apud Hochman, 2011). Grandes cidadesatraam multides e elas traziam molstias pouco conhecidas.

    A lista de doenas que entravam nas estatsticas mdicas era, portanto,das mais variadas e encontravam-se divididas por local, origem e nacio-nalidade. Algumas epidemias eram consideradas de fora como ocaso da clera, uma das grandes responsveis pelos bitos poca. Outras,entendidas como de dentro, como a febre amarela, a varola e a peste

    bubnica. E no era para menos: as casas de boa parte da populao rural choas feitas de barro eram moradas habituais do inseto conhecido

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    J. Carlos (Jos Carlos de Brito e Cunha (1884 1950))Caricatura de Oswaldo Cruz na capa da Tagarela

    O sanitarista logo se converteria num dos grandes heris da Repblica com sua

    poltica de combate s epidemias da poca. No entanto, seria tambm alvo dileto

    dos caricaturistas que ironizavam a poltica intervencionista do mdico

    revista tagarelan. 62, 30 abr. 1903

    biblioteca/fundao casa de rui barbosa, rio de janeiro

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    como barbeiro, o transmissor da recm-descoberta doena de Chagas, almde permitirem a vigncia do impaludismo e de inmeras infeces intes-

    tinais. Com os imigrantes, que chegavam amontoados na terceira classedos navios vindos da Europa, aportava o tracoma, uma infeco ocularperigosa e transmissvel. O importante a assinalar que, de maneira geral,as epidemias maculavam a frgil reputao do pas, que jogava todos osseus trunfos na esperana de fazer parte do clube dos civilizados. E por isso que as reformas urbanas respondiam, e muitas vezes de maneirabem-sucedida, s vrias epidemias que grassaram at a primeira dcadado sculo xx. Figura das mais emblemticas foi Oswaldo Cruz, responsvelpela erradicao da febre amarela em territrio nacional. Os relatos e asexperincias das viagens cientficas do Instituto Oswaldo Cruz ao interiordo Brasil fizeram com que a sade do litoral fosse ao encontro dos sertesbrasileiros, considerados uma incgnita nacional, uma barbrie local(Hochman, 2011). Entre os anos de 1907 e 1913, regies do interior pau-lista, de Minas Gerais, da Bahia e os vales do So Francisco e do Tocantins,at a Amaznia, fizeram parte da rota dessas expedies, que carregavamobjetivos higienistas. Ao lado de Santos Dumont, Oswaldo Cruz seria con-

    vertido em outro heri nacional, pelas lutas que empreendeu contra um dos

    maiores males do Brasil a doena , e por seu papel na erradicaodo analfabetismo dos habitantes do interior. Os trs grandes conceitos domomento cincia, progresso e civilizao eram transformados, assim,em emblemas de Estado, para o bem e para o mal. Figuras de proa, comoOswaldo Cruz, padeciam do mesmo mal: para alguns um grande heri,para outros, supremo vilo.

    Porm, o que mais interessa reter como, por meio desse movimentonacionalizante, as patologias da ptria (as pestilncias ou epidemias)seriam consideradas emergenciais. A estavam as doenas dos sertes ou a

    conhecida maldita trindade: a malria, a doena de Chagas e a ancilosto-mase, mal contrado por meio de germes provenientes de guas paradas.Isso sem falar da lepra, da sfilis e da tuberculose, as enfermidades que maismatavam no pas. As patologias do Brasil pareciam atingir a todos, masos grandes alvos alm dos sertanejos, caipiras e populaes do interior,

    vtimas das endemias rurais eram os ex-escravos, os habitantes pobresdas cidades, os moradores dos cortios e favelas, os imigrantes, as mulherese as crianas, os trabalhadores informais e os camponeses. Eugenia, higie-nismo e certa excluso social pareciam alicerados, no intuito de combater

    a subcidadania do homem brasileiro, provocada, segundo tais teorias, pelafalta de sade reinante, sobretudo entre as populaes rurais e pobres.

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    MOVIMENTOS SOCIAIS: SERTANEJOS, INDGENAS E OPERRIOS ENTRE

    A INCLUSO E A EXCLUSO

    Se at aqui nos concentramos no lado urbano, hora de olharmos para ooutro lado dessa moeda, que ora inclua e ora exclua as populaes maisdestitudas e mesmo os novos imigrantes que continuavam a chegar. Foramos movimentos sociais, os levantes messinicos e milenaristas comoContestado, Juazeiro e Canudos , que estouraram em distintas regies dopas, que parecem expressar esse lado mais sombreado da lua. Resultadosde um processo de modernizao a qualquer custo e da desateno diantede populaes deixadas mngua diante de tantas novidades, podem sertraduzidos no desabafo do jornalista Euclides da Cunha, bem no final deOs sertes, livro publicado em 1902 e que se transformou rapidamente numclssico nacional definidor dos grandes abismos populacionais existentesno Brasil. Conclui ele:

    Fechemos esse livro. Canudos no se rendeu. Exemplo nico em toda a histria

    resistiu at o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na preciso

    integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caram seus ltimos

    defensores, que todos morreram. Eram apenas quatro: um velho, dois homens--feitos e uma criana, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.

    Forremo-nos tarefa de descrever os seus ltimos momentos. Nem poderamos

    faz-lo. Esta pgina imaginamo-la sempre profundamente emocionante e tr-

    gica; mas cerremo-la vacilante e sem brilhos. Vimos como quem vinga uma

    montanha altssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a vertigem

    (Cunha, 1973:392).

    Foi no final de 1896 que se iniciou o conflito armado de maior visibili-

    dade do incio da Repblica, prontamente transformado em bode expiatrionacional. A rebelio ops, de um lado, a populao de Canudos, arraialque cresceu no interior da Bahia, e, de outro, o recm-criado governo daRepblica. Enviado como reprter pelo jornal O Estado de S.Paulo regio emlitgio, o engenheiro militar Euclides da Cunha l permaneceu durante astrs semanas finais do conflito, tendo presenciado o dramtico desfecho daguerra, quando os sertanejos foram literalmente massacrados. Se o jornalistapartiu certo dos progressos ilimitados da civilizao, voltou assolado pordvidas, incertezas e muitos silncios. Tanto que, cinco anos mais tarde,

    publicou Os sertes, livro que obteve repercusses to amplas quanto o eventohistrico l narrado. Ali se descrevia, nas palavras do autor, um massacre,

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    uma grande incompreenso. Afinal, mais do que milhares de quilmetros,o que afastava a capital dos sertes era um abismo cultural/temporal.

    Embora Euclides discutisse longamente fatores como meio, raa e suaimportncia para a compreenso das motivaes e costumes dos moradoresde Canudos, o principal argumento apresentado no livro concentrava-seno isolamento dos sertanejos, o que traria consequncias tanto negativas

    quanto positivas. De um lado, naquele laboratrio social estava reunido,e em pequenas drgeas, o atraso dos grupos do serto, e o que poca

    Flvio de BarrosGuerra de Canudos

    Canudos significou a entrada de um Brasil diferente no seio da capital carioca

    que se entendia moderna e cosmopolita. O massacre dos sertanejos foi recebido com

    muita ambivalncia: quem era selvagem nesse contexto era difcil de determinar

    albmen, 1897

    coleo canudos, arquivo histrico do museu da repblica, rio de janeiro

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    se chamava fanatismo religioso. De outro, a distncia geogrfica e cultu-ral e o relativo isolamento teriam protegido tais segmentos sociais dos

    modismos e degeneraes das cidades litorneas. Mas, se a crtica dapoca impressionou-se com o referencial terico do livro dividido empartes bastante distintas, como a terra, o homem e a luta , o que maischamou ateno do pblico foi seu carter de denncia. Para Euclides daCunha, existiria um abismo entre as diferentes regies do pas e tornava-sepremente que as elites intelectuais e polticas voltassem as costas Europae olhassem, finalmente, para seu interior. E mais: o conflito de Canudosno era contingencial, ele correspondia a uma longa histria, que teriaprimado por deixar margem importantes grupos sociais.

    As previses de Euclides foram certeiras e novas rebelies popularesno tardaram a aparecer. Outro movimento de largas propores ocorreuem momento paralelo e envolveu o padre Ccero Romo Batista entre1872 e 1924. O centro irradiador foi a cidade de Juazeiro, onde o religiosocomeou a reunir fiis desconsolados com o resultado da seca que atingirao Nordeste brasileiro. A fama de milagreiro de Ccero logo se chocou comas autoridades da Igreja catlica oficial, uma vez que por l se difundiramcrenas do tipo milenarista e messinico uma espcie de mitologia de Ju-

    azeiro, em que Ccero era investido na condio de profeta. Seu longo poderlocal, seus laos com o cangao e outros arranjos polticos fizeram deleuma personalidade paralela e concorrente com os novos representantesda Repblica, ao mesmo tempo que demonstravam a fora do catolicismopopular e de seus santos milagreiros.

    Um terceiro movimento social rural ficou conhecido como Revoltado Contestado e ocorreu entre 1912 e 1916. O Contestado era uma regiolimtrofe entre o Paran e Santa Catarina e sua posse foi questionada porambos os estados. Por l, em vez de um, havia trs monges para animar o

    movimento, destacando-se a ausncia de um lder a ele diretamente identi-ficado. Mas esse foi o nico levante a apresentar caractersticas claramentemilenaristas. Adversrios da Repblica, os revoltosos diziam-se monarquis-tas e pregavam um reino escatolgico e longnquo da modernidade.

    No o caso de desenvolver ainda mais os destinos de cada um dessesmovimentos. O importante destacar a forte influncia do catolicismo

    rstico no interior do Brasil, que vivenciava um modelo religioso umtanto alargado e reinterpretado pela experincia de vida do sertanejo. Apeculiaridade de suas organizaes mostrava a vigncia e o recrudesci-

    mento de outras estruturas de poder, baseadas nas polaridades padres/fiis, coronis/dependentes, padrinhos/afilhados, beatos/seguidores, santos/

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    devotos (Monteiro, 1978). Tudo muito distante dos modelos de cidadania,da igualdade jurdica ou das relaes pautadas em pactos racionais entre

    cidados livres e autnomos. A estava outra feio desses sertes bravios,personagem inesperado, mas essencial, da jovem Repblica brasileira, quese aparelhava com o objetivo de neutralizar as diferenas em nome doprogresso nico e inexorvel.

    Os movimentos sociais contestatrios no se limitaram, porm, aocampo. Nas cidades, operrios comearam a reagir s pssimas condies detrabalho que no previam idade mnima ou tempo mximo de jornadadiria. Lutavam tambm por melhores salrios e pela criao de rgos derepresentao, como sindicatos e partidos de classe. No perodo aqui com-preendido, teve especial importncia a presena da mo de obra imigranteeuropeia, vinda ao Brasil por causa das plantaes de caf, mas que a essasalturas invadia o espao das cidades. Os italianos representavam o nmeromais significativo de imigrantes, seguidos pelos espanhis e portugueses.Em 1900, por exemplo, 92% dos operrios industriais de So Paulo eramestrangeiros e, desse total, 81% eram italianos (Pinheiro, 1978:139). Elestrabalhavam nas indstrias txteis, mas eram tambm ferreiros, pedreiros,atuavam na rea de transporte e nas pequenas manufaturas dedicadas ao

    fabrico de calados, em marcenaria, com alimentos e demais atividades ar-tesanais. A situao se repetia no Rio de Janeiro e em cidades como Belo Ho-rizonte e Recife, que tambm comeavam a organizar seu parque industrial.

    No por acaso, os grandes movimentos grevistas, como os de 1917 e1919, estiveram ligados a essas populaes, que reclamavam, entre outrascoisas, da venda de gneros alimentcios bsicos para os pases aliados e oconsequente aumento dos preos no mercado nacional. Por sinal, nessesanos em que tudo parecia bastante provisrio, as condies de trabalho se-riam as mais abusivas. Crianas trabalhavam a partir dos 5 anos nas fbricas

    de So Paulo, e menores chegavam a constituir metade do nmero total deoperrios empregados. O Censo de 1919 tambm assinalou a existncia delargo contingente feminino, maior em So Paulo do que nos estados do Sule no Rio de Janeiro. A presena elevada de crianas e mulheres nas fbricas,principalmente de tecidos, colaborava para a diminuio do nvel mdiodos salrios, e tudo pioraria, ainda mais, com a carestia experimentadanos anos de guerra.

    Aos baixos nveis de remunerao deve ser acrescida a ausncia de umalegislao a regulamentar o mercado de trabalho. Dentro de cada indstria

    reinava, absoluto, o regulamento interno e, muitas vezes, arbitrrio do pa-tro. A disciplina era rigorosa, os castigos corporais frequentes e horrio fixo,

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    apenas o de entrada. comum encontrar relatos que mencionam trabalhosprolongados, chegando a 11 horas consecutivas, abusando do horrio noturno.

    Pelas mos dos imigrantes, mas no somente, surgiram novos movimen-tos grevistas de reivindicao salarial, parte deles de ideologia anarquista.No Brasil existiram ncleos anarquistas desde os anos 1890, compostos emsua maioria de imigrantes e seus descendentes. Espanhis e portuguesesaderiram ao movimento que, diferentemente da Europa (onde o anarquismose isolou dos demais movimentos de trabalhadores), constituiu a corren-te mais importante de reivindicao operria e por mais de trinta anos.Sob a designao de anarquismo conviveram vrias correntes, sendo oanarcossindicalismo a mais importante delas. Em comum, reinava a concep-o de que os imigrantes no deveriam batalhar pela obteno da cidadaniabrasileira, uma vez que, ao contrrio, seria melhor defender a manutenodos direitos como estrangeiros, esses sim considerados inalienveis.

    Se at o sculo xx no Brasil se desconheciam as greves modernas, apartir de 1902 ocorreu a primeira manifestao desse tipo. Ela teria acon-tecido no Rio de Janeiro, envolvendo uma fbrica de sapatos. Mas foi sem 1903, tambm no Rio de Janeiro, que estourou a primeira greve geralmultiprofissional, que se estendeu aos pintores, grficos, chapeleiros e ou-

    tros e foi gravemente reprimida pela polcia. Em 1904, eclodiu nova greve,coordenada pelos trabalhadores da Cia. Docas de Santos, com grande adesode operrios da cidade. Ela foi apoiada pelos grficos de So Paulo, assimcomo pelos martimos do Rio de Janeiro. Essa foi a primeira vez que umagreve teve como palco um porto atribulado como o de Santos, envolvendocentenas de industririos.

    Uma das greves ferrovirias de maior vulto ocorreu logo em 1906, emSo Paulo. O motivo imediato foram os abusos e arbitrariedades que ha-

    viam sofrido os operrios locais, assim como a reduo de salrios. No ano

    seguinte, anunciou-se a primeira greve geral, em So Paulo, pela defesa dasoito horas de trabalho. O movimento se espalhou, alcanando outras cidadesdo estado como Santos, Ribeiro Preto e Campinas. A agitao tomou asindstrias de alimentao e metalurgia, chegando a atingir 2 mil operrios.Na sequncia, aderiram sapateiros, grficos e alguns setores da limpeza.

    Apesar do contnuo aumento da importncia do movimento, num pas detradio clientelstica e pouco afeito esfera pblica de representao, asadeses sindicalizao eram ainda pequenas e a represso passou a assustare enfraquecer a mobilizao operria. Vrios estrangeiros foram expulsos,

    sob a alegao de serem anarquistas e baderneiros, e muitos trabalhadoresnacionais, alm de espancados, acabaram presos e sem emprego.

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    No entanto, com o crescimento da carestia entre os anos 1910 e 1913,cresceriam tambm as associaes operrias e os protestos sociais. Mesmo

    assim, se pensarmos no conjunto do pas, as greves at 1916 seriam raras.Foi em 1917 que as associaes operrias conheceram, de fato, uma grandeampliao em seus quadros. A crise, o desemprego, a reduo da demandapor mo de obra e o prolongamento da jornada explicam em parte a forado movimento. Nesse ano, a greve atingiu de 50 a 70 mil operrios noRio de Janeiro e em So Paulo foi considerada total. Se os resultados noforam imediatos e pragmticos, a sublevao bem como sua repercussoajudaram, com certeza, a organizar os trabalhadores e iniciaram a formaodos futuros sindicatos.

    O clima andava quente e, entre 1919 e 1920, s na capital de So Pauloocorrem 64 greves, e mais 14 no interior. O 1ode maio de 1919 congregoude 50 a 60 mil participantes na Praa xi , no Rio de Janeiro, entre trabalha-dores industriais, lderes anarquistas e simpatizantes do comunismo. EmSo Paulo, calcula-se a presena de nmero semelhante, estando includostxteis, sapateiros, grficos, padeiros, metalrgicos e operrios. Os nmeroseram muito expressivos, sobretudo se levarmos em conta o histrico do pas.

    No entanto, com a chegada dos anos 1920, esse tipo de movimento e

    de reivindicao vai esvaziando-se, assim como os anarquistas seriam aospoucos suplantados numericamente pelos comunistas e, nos anos 1930 j na era Vargas , pelos sindicatos oficiais. Por outro lado, com o fracassodas duas greves que abriram os anos 1920 a dos txteis em So Pauloe a dos ferrovirios no Rio, ambas ocorridas em maro daquele ano amobilizao decresceu. No h espao para lidarmos, com maior riquezade detalhes, com os movimentos que estouraram tambm na rea rural. Oimportante que passaram a ocorrer insurgncias no campo e nas cidades,revelando as fragilidades do novo projeto republicano. O progresso e a

    civilizao pareciam ser para poucos, e as falcias do processo iam ficandocada vez mais claras. Longe de pensar em dois Brasis um do campo eoutro da cidade, dos nativos e dos imigrantes, ou da burguesia e do novoproletrio industrial , tais movimentos revelavam diferentes realidades,expectativas e formaes sociais (Lima, 2011).

    Um bom exemplo pode ser encontrado na relao entre Canudos e adesignao favela, empregada para nomear as ocupaes que se desen-

    volviam de forma crescente nos arredores das cidades. Cronistas dizem quefoi no morro da Providncia que se localizaram as primeiras favelas do Rio

    de Janeiro, e que as primeiras habitaes seriam o resultado imediato dadisperso de ex-combatentes de Canudos, os quais, com suas mulheres as

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    chamadas viandeiras, que abasteciam de gneros todo o regimento ,pousaram perto do Ministrio da Guerra, na esperana de conseguirem

    resolver suas demandas. Eram centenas de mulheres, homens e crianasempurrados para a capital federal e durante algum tempo imobilizadosdiante da falta de resoluo. E, assim, o que era um abrigo transformou--se em moradia definitiva, bem como a ocupao dos morros. A palavrafavela tem origem em planta do mesmo nome que, por sua abundncia,designava um dos morros de Canudos e, paradoxalmente, passou a nome-ar o prprio morro do Rio de Janeiro. A generalizao do termo para osaglomerados urbanos de caractersticas semelhantes, no incio do sculoxx, lembra esse encontro ainda hoje tenso e polmico entre Canudos e a

    civilizao urbana, mas tambm entre campo, serto e cidade, ou, ainda,entre imigrantes e nacionais.

    Fotgrafo no identificadoGreve de 1917 manifestao no largo do Palcio

    A Repblica conheceu um novo espetculo: aquele das multidesque agora se manifestavam nos espaos pblicos

    fotografia, so paulo, 1917

    acervo iconographia, so paulo

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    DEPOIS DE 1888: POPULAES NEGRAS APS A ABOLIO

    Voltemos um pouco mais nossa ateno para o Sudeste do pas, regioque desde o incio do sculo xix, com a transferncia da corte de d. Joo,ditava os destinos da nao. Por l no haveria, supostamente, barbrie.Longe dos sertes bravios reinava soberana a cidade moderna, local doexerccio da igualdade e da cidadania. Mas a cidadania seria, como vimos,para poucos e logo estariam isoladas largas faixas da populao, herdeirasda escravido. A Lei urea de 1888 no s deixou de prever ressarcimentosaos proprietrios (como esses tanto esperavam), como no priorizou umapoltica social de amparo a esses grupos sociais que, sem o aprendizadonecessrio ou a experincia nas cidades, no dispunham das ferramentasprimeiras para competir em igualdade de condies com os trabalhadoresnacionais livres, ou mesmo com as populaes imigrantes que traziamconsigo suas especializaes e hbitos urbanos.

    Ademais, com a voga das teorias raciais, influentes at os anos 1930,caa sobre esses grupos um fardo pesado, condicionado pelos modelos de-terministas de interpretao social, que no s estabeleciam hierarquiasentre as raas como condenavam a mestiagem existente no pas. Segundo

    tais modelos, a explicao para a falta de sucesso profissional ou socialde negros e ex-escravos estaria na cincia, ou melhor, na raa, e no nascondies de vida ou no passado imediato. Na verdade, a entrada conjuntae macia dessas teorias fez com que o debate ps-Abolio se afastasse daquesto da cidadania e da igualdade em nome das razes e argumentosda biologia. A cincia naturalizava a histria e transformava hierarquiassociais em dados imutveis.

    E o movimento era duplo: de um lado, destacava-se a inferioridadepresente no componente negro e mestio de nossa populao; de outro,

    tentava-se escamotear o passado escravocrata e sua influncia na conjun-tura do pas. Bom exemplo o hino da proclamao da Repblica. Criadoem 1890, portanto, um ano e meio aps a abolio oficial da escravido,conclamava: Ns nem cremos que escravos outrora tenha havido emto nobre pas. Ora, a libertao mal ocorrera e j se silenciava (oficial-mente) sobre ela ou a transformavam em passado remoto. No entanto,longe do passado, impunha-se uma espcie de subcidadania, que visavaa realidade dos sertes, mas tambm dos cortios, to bem descritospor Alusio de Azevedo, que em 1890 publicou romance homnimo, em

    que caracterizava tais aglomerados urbanos como verdadeiros barris deplvora, no s por reunirem populaes to distintas portugueses,

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    espanhis, ex-escravos, negros e mulatos livres , mas por carregarem asmazelas dessa urbanizao feita s pressas e custa da expulso de largos

    contingentes populacionais.E a parte mais prejudicada nessa partitura foram os negros, sobretudo

    ex-escravos, que conviviam com o preconceito da escravido (mesmo queextinta) e o preconceito diante de sua raa. No por acaso, Lima Barreto,escritor que representa uma voz aguda nesse contexto, afirmou em seusdirios que no Brasil a capacidade mental dos negros discutida a priori,e a dos brancos, a posteriori, e finalizou, desabafando: duro no serbranco no Brasil (Barreto, 2010:83). O fato que, aps a Abolio, aspopulaes de origem africana, espalhadas por todo o territrio nacional e marcadas por um preconceito silencioso que se expressava a partirde uma leitura detida, hierarquizada e criteriosa das cores , vivencia-ram situaes das mais variadas. Por mais que a Lei urea tivesse dadofim ao cativeiro, no se pode dizer que tenha terminado com o medo dareescravizao, por exemplo, que fez com que muitos negros aderissem monarquia, posicionando-se contra a Repblica. Por outro lado, imagenscomo a do cio e da preguia associaram-se rapidamente aos ex-escravose libertos, definindo-os como desorganizados social e moralmente. Tudo

    isso parecia responder ao modelo empregado, que privilegiou uma so-ciabilidade europeia, distanciada de nossa histria colonial e mesmoimperial. Distanciada, ainda mais, dos diferentes modelos, memrias eaprendizados sociais trazidos da frica por essa populao. Por fim, noh como esquecer que a Abolio igualou populaes que experimentavamsituaes diferentes de incluso social. Ou seja, se algumas famlias de ne-gros, durante o Imprio, conheceram certa ascenso cultural e econmica,com a Lei urea viram-se todos na mesma vala comum que os assemelhavacomo libertos, ex-escravos, africanos.

    Vale a pena, assim, olhar mais de perto a situao desses segmentossociais e tnicos, que se apegaram logo de incio posse de certos objetos,cuja proibio de uso simbolizava a prpria ausncia de liberdade. Segun-do o viajante L. Gaffre, logo aps a Abolio, negros e negras, contandocom suas pequenas economias, dirigiram-se s lojas de calados, acessriosque lhes eram at ento interditados. Convertidos em smbolo maior daliberdade civil recm-conquistada e que ainda no parecia segura dian-te dos avanos e recuos da Repblica , sapatos eram orgulhosamenteexibidos por seus proprietrios. Mas se foi grande a procura pela aquisi-

    o desses novos cones de liberdade, o resultado imediato mostrou-sedecepcionante. Desacostumados ao uso de calados, geralmente apertados

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    e pouco adaptados aos ps grossos calejados do trabalho e do contato como cho, os novos fregueses rapidamente retiravam seus sapatos para dar

    a eles um uso, no mnimo, original: carregavam seus pares de sapatoscomo trofus, no nos ps, mas apoiados nos ombros, tal qual bolsas atiracolo. Liberdade significava, porm, o arbtrio de se poder comprar oque se quisesse.

    Nas reas rurais, os ex-escravos misturaram-se populao pobre,constituindo a imagem de pas mestiado, to comentada quanto criti-cada pelas teorias raciais do incio do sculo xx, mas transformada emsmbolo do Estado Novo, j nos anos 1930. Muito se escreveu sobre onomadismo dessas populaes, que evitavam se fixar em algum lugarrestrito. Dizem os relatos que aps a Abolio era possvel observar ex--escravos isolados ou comunidades inteiras vagando pelos campos, ouestabelecendo-se por curto tempo, para voltar a perambular. A explicaopara tanta mobilidade pode ser encontrada na experincia prolongadada escravido, que jamais conheceu o sentido de propriedade. Por outrolado, uma vasta populao de caipiras, sertanejos, caboclos, paulistasou mineiros habituara-se a formar roas volantes e deslocar-se sazo-nalmente, atuando como vaqueiros, tangedores, domadores de cavalos,

    trabalhadores por jornada nas plancies do Sul ou na frgil pecurianordestina. Da vem um hbito que foi se fixando na memria do grupo,que tem a ver com a parcimnia dos bens e a recusa s criaes animais(Wiessenbach, 2001).

    Trabalhadores negros de alguma maneira se misturaram populaocamponesa e aderiram ao modo de vida caipira e caboclo do interior de SoPaulo. E, ainda mais, imiscuram-se na produo agrcola das fazendas deMinas Gerais, assim como atuaram na economia aucareira do Nordeste ena cultura do algodo de uma maneira geral. Evitavam a fixidez e tambm

    viviam em torno dos mnimos vitais, expresso cunhada por AntonioCandido (2010) para definir uma cultura voltada para a produo de peque-nos excedentes, tanto comerciais quanto alimentares; uma sociabilidadeque se utilizava das relaes de vizinhana e dos grupos que se reuniamem arraiais, vilas e bairros rurais. Nem to isolados eram nossos sertes,uma vez que essas pequenas roas, ou at mesmo locais como Canudos,supriam as cidades prximas de bens alimentcios.

    Assim, uma srie de representaes acerca do elemento nacional con-vivia muitas vezes de forma tensa. Se algumas teorias destacavam a apatia

    e a degenerao dos mestios, relatos de viajantes e cronistas enalteciam oque designavam como modo de vida puro e caipira imagem que, por sua

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    vez, se contrapunha dos sanitaristas que, como vimos antes, reconheciamneles um Brasil doente e decado.

    dessa poca a contraposio entre a ideia do mestio corrompido exemplo dos modelos de darwinismo racial e a representao do JecaTatu, personagem criado por Monteiro Lobato, originalmente um caipirado vale do Paraba que se tornaria uma das mais conhecidas caricaturasdos pobres rurais na literatura brasileira. Para Lobato, diante dos problemasque vivenciara como agregado, das grandes transformaes na vida polticanacional como a Abolio ou a proclamao da Repblica , das secasintermitentes e da carestia constante, o caboclo continuava de ccoras eparecia alheio a qualquer mudana. Nessa mesma poca, Rui Barbosa pro-feriu palestra intitulada A questo social no Brasil e partiu justamente dacaricatura do Jeca para perguntar-se sobre uma concepo mais ampla dasociedade brasileira. Questionava ele, quem afinal seria o povo brasileiro:aquele caboclo sempre agachado e cujo voto podia ser comprado por umtrago no bar ou um rolo de fumo, ou o senhor da elite, que lia em francs,fumava cigarros e ia aos teatros e peras italianas? (Lima, 2011)

    Perguntas desse tipo ocuparam os debates polticos que antecederama Revoluo de 1930 e permaneceram em pauta nos anos iniciais do go-

    verno Vargas, ao lado dos projetos de industrializao e de modernizaodo pas. Porm, no havia dois pases, mas um s: o dos edifcios altos elargas avenidas, e o das casas de pau a pique, na verso mineira, das cafuasna Chapada Diamantina, do mocambo nordestino ou das palhoas dosribeirinhos. Era nesses locais que se praticava uma sociabilidade cabocla,contempornea nova e reluzente convivncia nas cidades. Caracterizadapela hospitalidade por trs da rusticidade, pela cortesia e pelos ritos derespeito, mas tambm pela violncia e pelas leis muitas vezes privadas,a se construa todo um novo modo de vida. Na falta de mdicos e boti-

    cas, escassos em grande parte do pas, principalmente nas localidadesmais ermas, a sada foi o uso alargado de receitas caseiras, ervas e poespopulares, algumas delas depurativas, outras sudorficas e outras aindabasicamente mgicas (Wiessenbach, 2001:70). Afinal, como bem mostrao etnlogo Claude Lvi-Strauss, a eficcia est mais ligada crena e

    vontade do milagre do que sua realizao (Lvi-Strauss, 1968). E assim sedisseminaram os saberes curativos da terra: contra dor de veador, dorde passarinha, morrinha do corpo, fraqueza de sangue nada comoch de carqueja, carobinha e marcelinha.

    Tambm a dieta dos habitantes dos sertes estava muito distante doscardpios elegantes e afrancesados da corte carioca. Por l, ao lado de

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    uma agricultura itinerante, produzia-se uma alimentao caipira, base demuita mandioca, milho e feijo. Em dias especiais, galinha ou carne-seca,

    tudo misturado com farinha de mandioca, piro, angu e paoca. Duranteuma poca em que o modelo de nacionalidade no se baseava em produtosda terra, mas investia pesado na entrada de bens estrangeiros, esse tipo decozinha permanecia to isolado quanto sua populao, smbolo de umaalimentao chamada de pobre e considerada muitas vezes brbaraou pouco civilizada.

    Outro aspecto particular a essa sociabilidade caipira e do interior erao respeito e observncia religiosidade popular, que misturava em doses ge-nerosas um catolicismo rstico com prticas retiradas de diversas tradiesnacionais e tambm estrangeiras. O Brasil, j nesse contexto, apresentava-secomo campeo da cristandade. Mas, como mostrou bem Gilberto Freyre,por aqui se introduziu um catolicismo adocicado, moldado por costumesmisturados, ainda mais nos cantos ermos do pas. A proximidade com osagrado fazia parte do cotidiano caboclo, que misturava feitios, quebran-tos, preces e toda sorte de oraes dedicadas a santos igualmente variados.Missas, procisses, rezas coletivas faziam parte do dia a dia e mostravammodos diferentes de lidar com o tempo e a temporalidade. No apenas a

    roa era itinerante, as festas interrompiam o trabalho, ao mesmo tempoque o constituam. Em vez do ritmo apressado das cidades agora tomadaspor bondes, relgios de bolso e de parede, carros, jornais, telgrafos , nocampo, o calendrio era marcado por outras referncias, mais vinculadas experincia pessoal.

    A estava, pois, no outro Brasil, mas sua mesma face, quem sabe refleti-da no lado oposto do espelho. Uma forte barreira foi, assim, interposta porcronistas, sanitaristas e viajantes, os quais sistematicamente procuraramobscurecer ou at negar no s sociabilidades dessas populaes mestias

    (consideradas evolutivamente atrasadas e condenadas ao desaparecimento),como seus costumes, religiosidades e saberes. Nas vizinhanas do projetomodernista republicano sobrevivia e se recriava outro tipo de experinciacomunitria. Se a urbanizao crescente implicava a excluso de largossetores da sociedade que pareciam inadequados diante do novo projeto, foi a partir de contestaes de cunho popular que se manifestou esseoutro lado da nao, igualmente verdadeiro.

    Como dizia Euclides, no final de seu livro, quando lamentou a derro-cada de Canudos: Vimos como quem vinga uma montanha altssima. No

    alto, a par de uma perspectiva maior, a vertigem (Cunha, 1973:392). Eradessa vertigem que se tratava

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    UM BRASIL IMIGRANTE: SABERES, ODORES, COMIDAS E HBITOS CRUZADOS

    No perodo que vai de 1830 a 1930, europeus, africanos e asiticos entraramno Brasil e passaram a conviver e a se sujeitar a costumes, hbitos e regrasmuitas vezes distintos de seus pases de origem. No entanto, foi a partirdo final do sculo xixque os movimentos migratrios recrudesceram. Atmesmo no continente europeu registrou-se intenso deslocamento entreo campo e a cidade. Antigos espaos vazios tornaram-se reas de gran-de concentrao humana, aglomerados urbanos onde a industrializaocumpria papel destacado. As imigraes transocenicas com destino

    Amrica ganharam novo incentivo com a expanso das redes ferrovirias,dos sistemas de navegao a vapor, do telgrafo, do telefone e do rdio.

    Prticas de moradia, de alimentao, tradies religiosas, costumessanitrios e educacionais seriam revolucionados, assim como os costumes,que opunham senhores a escravos, se veriam convulsionados. Iludidos poruma propaganda que garantia novas terras prometidas, uma verdadeirafebre imigratria arrebatou poloneses, alemes, espanhis, italianos, por-tugueses e, mais tarde (a partir dos ltimos anos da dcada de 1910 e nosanos 20), japoneses (cujo prprio governo incentivaria a imigrao). O mito

    da abundncia dos trpicos, de um mundo gentil e afvel, combinava comuma Europa que expelia sua populao pobre, seus pequenos proprietrioscrescentemente endividados, diante de sistemas capitalistas eficientes eque geravam preos cada vez mais competitivos. Tal processo fez com queessas populaes se tornassem mo de obra excedente para a industria-lizao, uma vez que seus pases de origem, como Itlia e Espanha, notinham como absorv-las. Por outro lado, o considervel aumento popu-lacional, coadunado com a melhoria dos transportes, resultou em hordasde camponeses desempregados (Alvim, 2001:220). Mais de 50 milhes de

    europeus abandonaram seu continente de origem em busca da to desejadaliberdade. Liberdade era palavra forte e de grande repercusso; no entanto,por aqui, na terra do trabalho forado, ganharia ainda outras conotaes.Escravos haviam recm-conquistado a liberdade, mas ainda lutavam paraefetiv-la, nesse pas onde marcas de cor se transformavam em traos danatureza. Ao mesmo tempo, a entrada dos imigrantes era vista como asoluo para os impasses locais, apesar de se assemelhar a uma escravidopor dvida, em funo dos altos custos da viagem, do transporte, da terra edas sementes, que eram repassados para o novo recm-chegado trabalhador.

    A maior parte dos imigrantes transatlnticos dirigiu-se para a Amricado Norte, mas 22% do total algo em torno de 11 milhes foram para a

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    Amrica Latina. Desses, 38% eram italianos, 28% espanhis, 11% portuguesese 3% franceses e alemes. Vale a pena destacar que, desse contingente, 46%

    seguiram para a Argentina, 33% para o Brasil, 14% para Cuba e o restantedividiu-se entre Uruguai, Mxico e Chile (Alvim, 2001:221).

    IMIGRANTES EUROPEUS E ASITICOS QUE ENTRARA M NO BRASIL

    NO PEROD O DE 1819 A 1940

    nacionalidade 18191883 18841940 totais

    Alemes 62.327 170.645 232.972

    Austracos 8.404 85.790

    Franceses 8.008 32.373

    Espanhis 15.337 581.718 597.055

    Ingleses 6.678 23.745 40.381

    Italianos 96.018 1.412.263 1.508.281

    Iugoslavos 22.838 22.838

    Japoneses 185.799 185.799

    Poloneses 47.765 47.765

    Portugueses 223.626 1.204.394 1.428.020

    Russos 8.835 108.121 116.956

    Srios 20.507 20.507

    Suos 7.289 10.270 17.559

    Turcos 78.455

    Subtotal 436.522 3.984.683 4.418.133

    Outras nacionalidades 110.128 174.034 284.162

    Total geral 546.650 4.158.717 4.705.367

    Fonte: ibge, 1986; Witter et al. (apud Sevcenko, 1998).

    O clima de insegurana gerado por diferentes rearranjos polticos levou expulso desses que passaram a ser considerados excedente populacional:muitos eram camponeses, mas havia tambm populaes acostumadas aoritmo veloz das cidades. Imigrantes procedentes da Itlia, da Alemanha, daPolnia, da Espanha, de Portugal, do Japo desembarcavam a todo momentoem pases do Novo Mundo. Aqui chegando, era preciso no s encarar uma

    reverso de expectativas como uma convivncia inesperada com vizinhosde costumes e histrias diferentes, e ainda lidar com o novo dia a dia dos

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    trpicos, onde tudo parecia (e era) diferente: o clima, os alimentos, as pr-ticas habitacionais, os cdigos sociais, as religies, o cotidiano.

    Era importante, porm, e como dizia a expresso, fazer a Amrica, e,desde o princpio, o objetivo dos imigrantes era uma mudana transitria.Por parte do governo brasileiro, desde os tempos de d. Joo, empreenderam--se diferentes polticas de incentivo imigrao. Naquela poca, vriasfamlias de portugueses fugidos de Napoleo, mas tambm de ingleses,instalaram-se no pas e, mais particularmente, no Rio de Janeiro. Muitasdelas voltaram quando a famlia real retornou metrpole, em 1821, masalgumas acabaram por se instalar e deixaram razes. Foi, entretanto, apartir da segunda metade do xixe aps a abolio do trfico escravo, em1850, que uma poltica mais efetiva passou a ser implementada, visandoa minorar os efeitos da medida na diminuio da mo de obra necessriapara o plantio do caf.

    Desde o incio, o processo de imigrao existente no Brasil apresentouduas caractersticas distintas. Em primeiro lugar, e por conta da existn-cia de grandes reas no ocupadas no Sul, onde as condies climticaseram semelhantes s temperadas, instalou-se um modelo de imigraoeuropeia baseado em pequenas propriedades policultoras. Tanto nos n-

    cleos oficiais quanto nos particulares a terra era, na maioria das vezes,vendida a prazo, em lotes de vinte a 25 hectares, geralmente distribudosao longo dos cursos de gua. J no caso dos cafezais e, em especial, emSo Paulo, que praticamente no contava mais com mo de obra escrava,o modelo vencedor foi aquele da imigrao estrangeira dirigida ao campo,subvencionada pelo estado paulista ou pelos prprios proprietrios, parao trabalho direto nas fazendas. No obstante, se existiram teoricamentedois modelos, a maior parte dos imigrantes seguiu, efetivamente, para asfazendas de caf. Foram poucos os ncleos de imigrantes estabelecidos

    nos estados do Esprito Santo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paran,j que o grande mote era mesmo a cafeicultura, a qual, nesse contexto,mantinha a economia brasileira.

    Foi fundamental a ao do governo estadual no formato e volumeque ganhou a imigrao estrangeira, muito especialmente aquela que sedirigiu para So Paulo. Enquanto num primeiro momento as iniciativasparticulares prevaleceram, a partir da dcada de 1890 o subsdio da Unio,respondendo presso dos fazendeiros, cumpriu o papel de estabilizaro fluxo s necessidades crescentes da economia. At 1900, a Federao

    subsidiou de 63% a 80% dos custos da entrada de imigrantes, e s a partirda virada do sculo, quando se destacaram as presenas de espanhis e

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    portugueses em So Paulo, que uma imigrao dependente de recursospblicos se firmou. Nesse caso, o movimento populacional no derivavamais da expanso cafeeira, mas expressava a intensificao das atividadesurbano-industriais naquela regio.

    Se os fazendeiros pareciam no se incomodar com a mobilidade dostrabalhadores nacionais, no que se refere aos imigrantes as regras erambem mais estritas. Era necessrio amortizar o investimento e, para tanto,fazia-se todo tipo de presso. Alm do mais, os novos camponeses, rapi-damente transformados em semiescravos por dvida, logo viam ruir seus

    sonhos de prosperidade. Afinal, enquanto o fluxo imigratrio foi direta-mente financiado pelos empreendedores, esses se achavam no direito de

    Fotgrafo no identificado

    Piquenique na Serra do MarA imigrao e os novos costumes considerados cosmopolitas mudariam

    o cenrio de vrias capitais do pas. Nesse caso, vemos uma refeio ao ar livre

    que poderia ter ocorrido em qualquer pas da Europa. Na foto, um noruegus,

    um sueco e um alemo, com suas respectivas famlias

    fotografia, ca. 1905

    acervo museu alfredo andersen, curitiba

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    cobrar por tudo. Para os imigrantes que se dirigiram ao Sul poloneses

    e alemes, na maior parte das vezes , a situao, apesar de distinta, noera mais alentadora. Instalados em regies isoladas entre os estados deSanta Catarina e do Rio Grande do Sul, tentavam recriar seus costumestendo ao redor de si uma vizinhana difcil.

    Comuns a todos eram as dificuldades que comeavam j na viagem.Vtimas de exploradores, pagavam sobretaxas ou preos excessivos porum translado dos mais rudimentares. Amontoados em navios de poucacategoria, conheciam as diferenas culturais e de origem logo na travessiaocenica. No s eram originrios de diferentes regies de um mesmo

    pas, como a convivncia inesperada com colegas de pases rivais (comoAlemanha e Polnia) incorria em brigas inevitveis. As lnguas eram

    Fotgrafo no identificado

    Construes rurais de colonos polonesesA entrada alargada de imigrantes, de diversas procedncias,

    tingiria a cor do pas e alteraria hbitos arraigados

    fotografia, 1912

    fundo ruy wachowicz, arquivo pblico do paran, curitiba

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    diferentes, assim como os dialetos, e, uma vez chegados, todos estranhavama dieta base de farinha, arroz e feijo, ou a morada em casas enfileiradas,

    construdas de barro e com tetos de palha.Para aqueles que se dirigiam a So Paulo, antigas senzalas foram adap-

    tadas com o objetivo de acomodar os novos trabalhadores. Nesse caso, emvez de rupturas havia antes continuidades com os modelos dessas elitesbrasileiras, acostumadas ao trabalho compulsrio, ao mandonismo e aocompadrio. Alm disso, habituadas ao regime de servido, tais elites acre-ditavam que essas populaes deveriam se mostrar agradecidas e leais,estabelecendo vnculos pessoais com seus novos patres. Por isso, as fugase revoltas eram recebidas, em princpio, com grandes doses de incompre-enso. Modelo dos mais ambivalentes, o sistema de imigrao subsidiadacriava, sua maneira, subcidados, inicialmente pouco vinculados aoEstado e imediatamente dependentes dos fazendeiros que garantiram asua chegada e sustentao nos trpicos.

    No se quer com isso dizer que se tratava de uma populao s vitimiza-da e passiva diante de sua nova condio. Ao contrrio, diante dessas novasredes e fluxos que a economia capitalista e globalizada trazia marcada pornovas fronteiras e populaes nmades , tambm no Brasil se produziu

    uma sociedade heterognea, mas igualmente delineada pela reordenaocultural e manifestaes de toda ordem: messinicas, milenaristas ou evi-dentemente polticas e sociais. Tanto que o tema da segurana sanitriaou mesmo policial passou a fazer parte das novas agendas governamen-tais. A sada mais recorrente foi a reao, ora passiva, ora violenta, estandoos registros policiais repletos de referncias a crimes de vagabundagem,

    gatunagem, mas tambm assassinatos ou outros atos violentos.Abismos sociais podem ser observados no s nos hbitos sanitrios

    e alimentares dos caipiras e sertanejos, mas tambm na diversidade de

    imigrantes. Longe de constiturem grupo homogneo, os imigrantes per-tenciam a segmentos e origens distintos. Alguns, vindos de regies maisao norte da Itlia, estavam habituados vida nas cidades. Outros, como agrande maioria originria de Veneto, ao contrrio, readequavam costumeseminentemente rurais. Esses italianos substituram a polenta pelo arroz,conheceram novos legumes e frutas, e tiveram de esperar para poderpendurar as linguias e toucinhos secos nos tetos das casas. Catlicosfervorosos e tradicionais, poloneses e italianos estranhavam o catolicismorstico existente no pas e reafirmavam sua f decorando as casas com

    santos de devoo e demais smbolos ptrios. Hbitos de higiene tambmdividiam as populaes. Os italianos normalmente tomavam banho uma

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    vez na semana em geral, aos sbados ou domingos , contentando-seem banhar as mos e as partes mais suadas do corpo: o famoso banho de

    gato. Reagiam, pois, fartura de gua dos brasileiros, que diariamentetomavam banho de tina ou pulavam nos rios, ou ao fur dos japoneses,sempre dispostos a uma imerso coletiva. O maior estranhamento, de par-te a parte, se manifestaria em relao aos japoneses. Segundo relatos denacionais, os japoneses s ficavam satisfeitos quando viam o arroz crescerem suas plantaes, j que quando recebiam carne-seca ou bacalhau nosabiam que deveriam deix-los de molho para que a carne amolecesse e obacalhau perdesse um pouco do sal. Feijo no entrava na dieta, assim comoa farinha. Diferentemente dos europeus, pouco investiam na melhoria desuas casas. No as decoravam ou davam um toque mais pessoal, at porquetodo dinheiro economizado deveria ser destinado aos parentes, ou viravapeclio para um futuro e desejado retorno (Alvim, 2001).

    O fato que a Babel de lnguas e dialetos que ento se projetou levava atodo tipo de problemas. Vizinhos se estranhavam, diferentes interpretaesda lngua geravam incompreenses e conflitos estouravam diariamente. Ale-mes do Norte brigavam com os do Sul; japoneses tinham atritos constantescom italianos; poloneses com alemes, e todos com os locais. Se, por um

    lado, os brasileiros, sobretudo negros e caboclos, eram considerados paupara toda obra ensinavam tcnicas locais de agricultura, de construo, detransporte, de cozimento dos alimentos , por outro, todos os imigrantes os

    viam como inferiores. Entretanto, era necessrio dominar padres nativos, atpara melhor manipul-los ou conseguir adaptar com sucesso velhos costumes.

    Se alguns imigrantes retornaram a suas terras de origem (e entre italia-nos e portugueses se estima um total de 37% a 40%), os que permaneceramtenderam a reler hbitos locais, adaptando costumes trazidos junto com abagagem. Olhando o outro lado da moeda, alguns repatriados portugueses,

    por exemplo, passaram a usar ternos brancos e chapus de palha, vestimentanada condizente com o clima temperado europeu (Alvim, 2001:285); e ex--escravos reconduzidos frica, mais especialmente Nigria, eram comfrequncia por l chamados de brasileiros. Convertiam-se, portanto, emestrangeiros por aqui e por l, e reafirmavam uma identidade feita de pedaose de maneira contingencial (Cunha, 1978).

    Mas a maioria, apesar dos percalos, acabou se adaptando s terras brasi-leiras. A cada povo o seu credo, e tambm nesse campo a f tendeu a se afir-mar e misturar. Curandeiros, benzedeiras e ervanrios percorriam fazendas

    de norte a sul, levando conhecimentos mistos e cada vez mais partilhados. Nafalta de mdicos e remdios, esses profissionais ocuparam espaos legtimos

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    e as oraes tomaram o lugar da cincia. Dizem que trs remdios davamconta de uma coleo de males: leo de fgado de bacalhau purificava, sal

    amargo liberava o estmago e as constipaes, e leo de rcino atuava comopurgante. Do Rio Grande do Sul s fazendas paulistas apelava-se para essesremdios milagrosos e, quando nada dava certo, a sada era abusar das oraese dos prprios curandeiros. Por sinal, na Bahia, havia muitos xams e ifs(adivinhos) que traziam conhecimentos da frica e misturavam ervas e muitaf. O mesmo ocorria ao Norte, onde imperavam um conhecimento amerndioe o uso alargado das plantas locais. Enfim, nesse mundo de universos cruza-dos, a religio parecia atravessar barreiras e produzir dilogos possveis. Sea lngua e os costumes higinicos afastavam, a f aproximava. Como diria o

    cantor Gilberto Gil, quase um sculo depois: And com f eu vou, que a fno costuma fai!

    Fotgrafo no identificadoApreenso do jornal anarquista Spartacusfotografia, rio de janeiro, setembro de 1919

    acervo iconographia, so paulo

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    Por volta de 1930, essa tendncia imigrao transocenica diminuiriade maneira sensvel. Em 1927, por exemplo, o destino de imigrantes queprocuravam terras europeias superava em muito o daqueles que preferiamexperimentar a sorte em outros continentes. Por outro lado, vrios pasesinstituram polticas restritivas, a comear pelos Estados Unidos, logo segui-dos por naes como o Brasil. De 1917 a 1924 os Estados Unidos limitarama entrada de estrangeiros e, em dezembro de 1930, o presidente Getlio

    Vargas, alegando a necessria disciplina diante da afluncia desordenada

    de imigrantes responsvel pelo desemprego das populaes locais, adotouo mesmo tipo de poltica (Petrone, 1978:97).

    Imigrantes portugueses foto de passaporte

    documento original, 1922

    acervo iconographia, so paulo

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    Mas a paisagem humana local j estava, a essas alturas, definitivamentealterada. At hoje, em So Paulo, se come uma boa pizza aos domingos

    noite, uma macarronada no almoo de sbado, com direito a quibe e tabuleao anoitecer. Quem preferir uma refeio mais leve poder apelar para umsushi, ou pode se sair bem com um arroz chop-suey moda chinesa. Cafda manh se completa com uma passada no portugus da padaria e comazeite espanhol. Isso sem esquecer as padroeiras de vrias procedncias e osotaque para sempre misturado. Talvez tenha sido Ju Bananre (na verdade,

    Alexandre Marcondes de Machado, um paulista que nada tinha de ascendn-cia italiana) quem melhor expressou essa mistura acelerada. Escreveu suaobra utilizando opatoisfalado pela colnia italiana de So Paulo e editouLadivina increnca, em 1915, intitulando-se Gandidato Agademia Baolista diLetteras (Candidato Academia Paulista de Letras). Ficou famoso por suapardia ao poema Cano do exlio, de Gonalves Dias, que no sculo xixtransformara-se numa espcie de hino romntico e nacional.

    Migna terra t parmeras,

    Che ganta inzima o sabi.

    As aves chest aqui,

    Tamb tuttos sabi gorge.A abobora celestia tamb,

    Che t l na mia terra,

    Tm oltos milli distrella

    Che non t na Ingraterra.

    Os rios l s mais egrandi

    Dus rios di tuttas na;

    I os matto si perde di vista,

    Nu meio da imensid.

    Na migna terra t parmerasDove ganta a galigna dangola;

    Na migna terra t o Vapelli,

    Chi s anda di gartolla.

    INDGENAS E AMERNDIOS: OS BRBAROS (AINDA) ENTRE NS

    Entre os muitos excludos que a Repblica criou, um grupo esteve sistema-

    ticamente distante das polticas e propsitos dos governantes republicanos:os amerndios e indgenas de uma maneira geral. Se mesmo no Imprio o

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    Fotgrafo no identificadoMarechal Rondon com ndios da regio Centro-Oeste

    O progresso, transformado em bandeira do novo regime republicano, no

    dava conta de esconder as diferentes realidades populacionais do pas

    fotografia, s.d.

    acervo iconographia, so paulo

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    interesse por eles foi muitas vezes mais retrico do que pragmtico, se osnativos figuraram antes no romanceiro romntico e na pintura histrica do

    que em polticas de ampla aplicao, com a Repblica o apagamento seriaainda mais evidente. Caso exemplar, nesse sentido, foi o massacre do grupocaingangue, para que a estrada de ferro Noroeste do Brasil pudesse passar.

    poca, Hermann von Ihering, conhecido diretor do Museu Paulista (ouMuseu do Ypiranga), foi aos jornais defender o extermnio desses grupos.Os trilhos da civilizao, dizia ele, precisavam passar e os indgenas, quenunca foram entendidos como proprietrios ou bons vizinhos, foram en-carados como impedimento e obstculo. A resistncia indgena teve incioem 1840 e s em 1912 foi derrubada a muralha caingangue, como eraento conhecida a sublevao nativa.

    No Oeste paulista tal processo se iniciou de maneira mais efetiva em1880, com a demarcao de terras das tribos guaranis, xavantes e cain-gangues. Entretanto, se as duas primeiras naes foram de certa maneira

    integradas, apesar de culturalmente dizimadas, a ltima lutou at o final,resistindo invaso de suas terras. O auge dos confrontos se deu no inciodo sculo xx , mais especificamente em 1905, com a efetiva construo daestrada de ferro Noroeste do Brasil. A paz s foi alcanada em 1911, depois

    de o grupo ter sido praticamente exterminado e graas interveno doServio de Proteo ao Indgena (spi). Por sinal, de 1913 a 1914, esteve naconduo dessa instituio Cndido Mariano Rondon, outro grande nomedo perodo. Militar e sertanista, ele desenvolveu linhas telegrficas na regioCentro-Oeste, integrando desde a regio central at a Amaznia, alm deestabelecer contato frequente com vrios grupos indgenas.

    Se o sculo xixe o incio do xxforam marcados pela heterogeneidadedemogrfica e socioeconmica, tambm com relao poltica de terrasa prtica mostrou-se das mais diversificadas: reas de colonizao antiga

    contrastavam com novas frentes de expanso. Esse no s o caso do Su-deste, como da Amaznia, redescoberta, entre outros motivos, por contada expanso da borracha. Numa poca em que os transportes possibilita-ram uma oferta acelerada do produto, o ltex proveniente da seringueirapassou por um surto to curto quanto efetivo, que ocorreu entre o fin