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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA O PAPEL DO ESTADO FRENTE À “DELINQÜÊNCIA” DE MENORES EM PORTO ALEGRE (1927-1933) ANA PAULA ZANELLA JANEIRO, 2008 Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, como requisito para a obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, linha de pesquisa Sociedade, Ciência e Arte, sob orientação da professora Dra. Ruth Maria Chittó Gauer.

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SULFACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

O PAPEL DO ESTADO FRENTE À “DELINQÜÊNCIA” DE MENORES

EM PORTO ALEGRE (1927-1933)

ANA PAULA ZANELLA

JANEIRO, 2008

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, como requisito para a obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, linha de pesquisa Sociedade, Ciência e Arte, sob orientação da professora Dra. Ruth Maria Chittó Gauer.

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ANA PAULA ZANELLA

O PAPEL DO ESTADO FRENTE À “DELINQÜÊNCIA” DE MENORES EM PORTO ALEGRE (1927-1933)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, como requisito para a obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, linha de pesquisa Sociedade, Ciência e Arte, sob orientação da professora Dra. Ruth Maria Chittó Gauer.

Aprovada com grau 9,5, em 25 de março de 2008, pela seguinte banca

examinadora:

Profa. Dra. Ruth Maria Chittó Gauer (Orientadora – PUCRS)

Prof. Dr. Helder Gordim da Silveira (PPG-História – PUCRS)

Prof. Dr. Nereu José Giacomolli (PPGCC – PUCRS)

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Para a querida e amada prima Rita,

que nos deixou muitas histórias para contar.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais e familiares, pelo apoio e pela ajuda que me

prestaram durante a realização desse curso de pós-graduação.

Aos meus amigos Rosimeri, Maíra, Jaqueline, Dariane, Osvaldo

Arthur, Aline e Alice, que sempre estiveram por perto.

Aos colegas, e amigos, do Programa de Pós-Graduação em Ciências

Criminais, pelas discussões referentes ao Direito.

Agradeço ao Memorial do Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul,

nas pessoas de Mary Biancamano, de Fátima Castro e do Desembargador

Pedro Henrique Particheli Rodrigues (in memoriam), todos responsáveis

pelo despertar do meu interesse pela temática.

À Profa. Dra. Ruth Maria Chittó Gauer, pela orientação dedicada,

pelas recomendações de leituras e pelas aulas repletas de sabedoria.

À Secretaria do Programa de Pós-Graduação em História, por meio da

Carla e do Davi, sempre atenciosos e eficientes, bem como à Secretaria do

Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, que sempre me

atenderam com gentileza e atenção.

Sou grata à Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal

de Nível Superior (CAPES), pelo apoio financeiro à pesquisa.

Aos funcionários do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul,

pela atenção, presteza, dedicação e pelo auxílio na coleta dos dados

necessários a esta pesquisa.

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RESUMO

Os delitos praticados por menores no início do século XX suscitam interesse na medida em que tais práticas hoje geram grandes preocupações tanto por parte do Estado quanto pela sociedade em geral. Embora os crimes praticados atualmente relacionem-se a problemas não identificados no início do século XX, como é o caso das drogas, buscou-se compreender como esse problema social foi visto pelo Estado. Este trabalho analisou as sentenças dos processos-crime do Cartório de Júri, de Porto Alegre, originados entre os anos de 1927 a 1933, localizados no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS), a fim de verificar o conteúdo e identificar como era percebida, pelos magistrados, a prática de delitos por menores. Verificou-se o processo de transformação das relações entre o Estado e o indivíduo a partir da Modernidade, e como estas acabaram interferindo também sobre a organização da família e das práticas sobre a infância. Analisaram-se as mudanças ocorridas nas visões acerca da infância, principalmente aquelas surgidas na Modernidade, bem como o processo que desencadeou o reconhecimento da infância como uma etapa do desenvolvimento humano; e, por fim, as práticas adotadas pelo Estado para o controle das famílias e das crianças. É apresentado um panorama dos crimes cometidos por menores na capital do Estado do Rio Grande do Sul, o que é feito por meio da análise quantitativa e qualitativa dos processos-crime do Cartório do Júri referentes à temática. Por fim, se analisou os dados contidos nos processos referentes aos delitos mais cometidos – lesões corporais, furto e roubo e defloramento –, com base nas sentenças proferidas pelos magistrados, bem como o tratamento dispensado pelos juízes a esses delitos. Essa dissertação integra a área de concentração “Sociedade Ciência e Arte”, cuja linha de pesquisa chama-se“As fronteiras entre Tradição e Modernidade na construção do Estado Brasileiro”.

Palavras-chave: Estado. Magistrados. Criminalidade. Menores.

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ABSTRACT

The delicts practised for minors in the beggining of the twenty century excite interest in the measure where such great practices today generate preocupations in such a way on the part of the State how much for the society in general. Although the crimes practised currently become related it problems in the identified ones in the twenty century, as the case of the drugs, it searched to understand as this social problem was seen by the State. This work analyzed the decises of the crime process of the Cartório do Júri, of Porto Alegre, originated between the years of 1927 and 1933, located in the Public Archive of the State of the Rio Grande do Sul (APERS), in order to analyse the content and to identify as she was perceived, for the magistrates, the practices of delicts for minors. Process of transformation of relaes between the State and the individual from Modernity was verified, and as these had finished intervening also on organization of the family and practices them on the childhood. The occured transformations had been analyzed in aim at them concerning the childhood, mainly those appeared in Modernity, as well as the process that unchained the recognition of the childhood as a stage of the human development; and, finally, the practices adopted for the State for the control of the family and the child presented a vision of the crimes committed for minors in the capital of the State of the Rio Grande do Sul, what made by means of verify quantitative and qualitative of the crime process of the referring Cartório do Júri. Finally, if it more analyzed the data contained in the referring processes to the committed delicts - you injure corporal, robery and robbery and defloration -, on the basis of the decises pronounced for the magistrates, as well as the treatment excused for the judges to these delicts.

Key words: State. Magistrates. Delicts. Minors.

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LISTA DE GRÁFICOS

GRÁFICO 01 População de Porto Alegre (1900-1930) ............................ 89

GRÁFICO 02 Número de processos-crime julgados. ............................... 93

GRÁFICO 03 Tipos de sentenças proferidas. ......................................... 94

GRÁFICO 04 Sentenças proferidas........................................................ 94

GRÁFICO 05 Sentenças modificadas. .................................................... 95

GRÁFICO 06 Tipos de delitos................................................................ 98

GRÁFICO 07 Incidência por sexo. ......................................................... 99

GRÁFICO 08 Incidência por idade dos réus. ........................................ 101

GRÁFICO 09 Profissão dos réus. ........................................................ 103

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LISTA DE TABELAS

TABELA 01 Crimes contra a pessoa: lesões corporais. .......................... 105

TABELA 02 Crimes contra a propriedade............................................... 113

TABELA 03 Crimes contra a honra: defloramento................................... 124

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..........................................................................................9

1 MODERNIDADE: “UNIFICAÇÃO” DO ESTADO E DO INDIVÍDUO ......... 121.1 ESTADO VERSUS INDIVÍDUO........................................................... 29

2 A MODERNIDADE E A INFÂNCIA: DO RECONHECIMENTO AO CONTROLE ............................................................................................ 502.1 O TRATAMENTO PENAL APLICADO ÀS CRIANÇAS NO BRASIL........ 572.1.1 As Ordenações, o Código Criminal do Império e o Código Penal de 1890 .................................................................................................. 572.1.2. O Código de Menores de 1927 e a consolidação do termo menor ..................................................................................... 79

3 A JUSTIÇA E OS DELITOS DE MENORES ........................................... 863.1 TIPOLOGIA DOS DELITOS ................................................................ 963.2 DO DELITO À SENTENÇA ............................................................... 1033.2.1 Delito praticado contra a pessoa: lesão corporal ....................... 1043.2.2 Delitos contra a propriedade privada: roubo ou furto ................ 1123.2.3 Delito praticado contra a honra: defloramento ........................... 124

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................... 133

REFERÊNCIAS..................................................................................... 136

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INTRODUÇÃO

O interesse pela temática histórica relacionada à prática do Estado

frente aos delitos cometidos menores surgiu após uma pesquisa realizada

junto ao Memorial do Judiciário (Tribunal de Justiça do Estado do Rio

Grande do Sul). A pesquisa integrava o projeto institucional referente ao

Juizado de Menores, cuja finalidade foi reunir a documentação pertinente a

esse setor do Judiciário e, assim, descrever a sua evolução administrativa.

No entanto, o levantamento da documentação acabou se mostrando

escassa, pois não foram encontrados documentos referentes aos primeiros

anos de funcionamento do Juizado de Menores e aos processos por ele

julgados. Após um ano de pesquisa intensa envolvendo legislação e

literatura sobre infância, o projeto resultou no artigo intitulado “A

administração do Juizado de Menores do Rio Grande do Sul nos seus

primórdios (1933-1945)”, publicado pela revista da própria Instituição,

Justiça & História, em julho de 2003.

Apesar de não atuar mais junto ao Memorial do Judiciário como

contratada, mantive contato com Mary da Rocha Biancamano, que

demonstrou interesse por este projeto, pois forneceria a base histórica para

o programa “Formando Gerações”, desenvolvido pela Instituição, já que a

pesquisa se utiliza dos processos-crime, ou seja, do aparato jurídico do

Estado do Rio Grande do Sul para reconstituir o passado da infância

infratora de Porto Alegre.

A partir dessa pesquisa, o interesse se voltou para os delitos

praticados por menores no início do século XX, na medida em que tais

práticas hoje geram grandes preocupações tanto ao Estado quanto à

sociedade em geral. Embora os delitos praticados hoje tenham vínculo com

problemas não identificados no início do século XX, como é o caso das

drogas, foi objetivo compreender como esse problema social foi visto pelo

Estado.

Pretende-se, então, analisar nessa dissertação o conteúdo das

sentenças contidas nos processos-crime do Cartório do Júri, a fim de

identificar como a enunciação dos menores à criminalidade era vista pelos

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juízes, e se ela era atribuída a sua a sua origem social, sem deixar de lado

qual o pensamento jurídico sobre a criminalidade e/ou os crimes praticados

pelos menores “delinqüentes”, entre os anos de 1927 a 1933, período

marcado pela ausência de Juizado de Menores em Porto Alegre.

A base documental da pesquisa se constituiu nas sentenças dos

processos-crime do Cartório de Júri, de Porto Alegre, nas três primeiras

décadas do século XX, localizados junto ao Arquivo Público do Estado do

Rio Grande do Sul (APERS). Nessa instituição encontramos a

documentação utilizada como material empírico para essa dissertação,

desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS, na

área de concentração “Sociedade Ciência e Arte”, cuja linha de pesquisa

chama-se “As fronteiras entre Tradição e Modernidade na construção do

Estado Brasileiro”.

A documentação empírica foi analisada com o objetivo de verificar o

conteúdo e identificar como a enunciação dos menores à criminalidade foi

atribuída à origem social dos infratores.

O objeto da pesquisa busca a compreensão da visão acerca do

pensamento jurídico sobre a criminalidade e/ou o delito praticado por

menores em Porto Alegre, entre 1927 a 1933. O período pesquisado

antecedeu o ordenamento do Juizado de Menores no Rio Grande do Sul.

O recorte temporal escolhido para o desenvolvimento desta pesquisa

tem início em 1927 – quando foi instituída a primeira legislação destinada à

infância em âmbito nacional conhecida como Código de Menores – e se

encerra em 1933 quando foi criado o Juizado de Menores de Porto Alegre,

que tinha jurisdição privativa sobre os menores abandonados,

contraventores e sobre os delinqüentes, para a sua assistência, proteção,

defesa, processo e julgamento.

O material empírico que se constitui no objeto de análise possibilitou

reconstituir algumas situações conflituosas existentes em Porto Alegre, pois

não podem ser identificadas em outras fontes devido às suas

peculiaridades. Essas fontes documentais nos permitem explorar uma

variedade de possibilidades interpretativas. A partir desses preceitos, optou-

se pela divisão do trabalho em três capítulos.

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O primeiro capítulo trata do processo de transformação das relações

entre o Estado e o indivíduo a partir da Modernidade, e como estas

acabaram interferindo também sobre a organização da família e das práticas

sobre a infância.

No capítulo seguinte, são analisadas as mudanças ocorridas nas

visões acerca da infância, principalmente aquelas surgidas na Modernidade,

o processo que desencadeou o reconhecimento da infância como uma etapa

do desenvolvimento humano e, por fim, as práticas adotadas pelo Estado

para o controle das famílias e das crianças.

O terceiro capítulo é dedicado à análise dos dados empíricos

coletados nos processos criminais do Cartório do Júri, principalmente

aqueles das sentenças proferidas pelos magistrados e o tratamento

dispensado pelos juízes aos delitos praticados por menores.

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1 MODERNIDADE: “UNIFICAÇÃO” DO ESTADO E DO INDIVÍDUO

O objeto da pesquisa busca a compreensão da visão acerca do

pensamento jurídico sobre a criminalidade e/ou os delitos praticados por

menores, em Porto Alegre, entre 1927 a 1933. O período pesquisado

antecedeu o ordenamento do Juizado de Menores no Rio Grande do Sul.

A base documental da pesquisa se constitui nas sentenças dos

processos-crime do Cartório de Júri, de Porto Alegre, no período indicado. A

documentação empírica é analisada com o objetivo de verificar o conteúdo e

identificar como a enunciação dos menores à criminalidade foi atribuída à

origem social dos infratores.

O material empírico que se constitui no objeto de análise buscou a

possibilidade de reconstituir algumas situações conflituosas existentes em

Porto Alegre, pois estas não podem ser identificadas em outras fontes

devido às suas peculiaridades. Essas fontes documentais nos permitem

explorar uma variedade de possibilidades interpretativas.

De maneira ampla, pode-se afirmar, de acordo com Carneiro,1 que os

antropólogos reconhecem a existência de relações recíprocas entre o direito

e a sociedade e que,

as ações dos representantes oficiais do direito seriam condicionadas pelas estruturas e idéias dominantes na sociedade e vice-versa. O direito não apenas ‘refletiria’ as normas e valores vigentes na sociedade, mas também normatizaria e contribuiria para a formação de novos valores e representações sociais.

Diante da situação a que estão submetidas todas as pessoas

envolvidas em um processo criminal (defesa, acusação, réu, vítima, juiz,

escrivão, testemunhas, entre outros) e frente à sua utilização, percebe-se

que os autos jurídico-criminais nunca podem ser considerados isentos,

1 CARNEIRO, Deivy Ferreira. Conflitos, crimes e resistência: uma análise dos alemães e teuto-

descendentes através de processos criminais (Juiz de Fora, 1858/1921). 222 p. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004. p. 66-7.

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“neutros” ou “objetivos”. É importante que se faça uma leitura do conteúdo

latente existente nos processos, e não uma leitura superficial, pois se faz

necessário desvendar as teias que envolvem tais textos – por isso da

relevância da utilização da análise de conteúdo que, segundo Constantino,2

[...] apresenta-se como alternativa metodológica ao historiador. Desde que se considere a História distanciada das verdades demonstráveis, verificáveis, invariáveis. Desde que admita a contingência não previsível e a interferência de observadores sobre os fenômenos observados. No século XXI e sem constrangimento, a História já está concebida como resultado de um esforço criador.

A liberdade dada aos pesquisadores no trato com os seus objetos

permite o alcance de altos níveis de criatividade. A partir daí, a própria

pesquisa se apresenta como parte importante do processo criativo, que

muitas vezes pode resultar em explicações proféticas ou em descobertas

fabulosas. O ato criativo está intrinsecamente ligado ao investigador, pois

este é um indivíduo que opta por determinada linha de questionamento, ou

seja, é ele quem escolhe, cria o seu próprio objeto de pesquisa a partir de

interesses próprios e não por imposição de terceiros.3

Para Polanyi, a partir do momento em que percebemos determinado

objeto por meio da visão, por exemplo, o homem o percebe como alguma

coisa. É comum identificarmos as coisas por estarem localizadas a certa

distância, pelo tamanho, por estarem em repouso ou em movimento. Por

isso tais fatos não reduzem a atuação das sensações para a elaboração

inicial de um problema. Assim, eles mostram que, mesmo nos níveis mais

elementares da cognição, o ato interpretativo já está comprometido.

Ademais, a percepção sempre está envolta por certa liberdade de escolha e,

2 CONSTANTINO, Núncia Santoro de. Pesquisa histórica e análise de conteúdo: pertinência e

possibilidade. Estudos Ibero-Americanos, PUCRS, v. XXVIII, n. 1, p. 185, jun. 2002.3 POLANYI, Michael. A lógica da liberdade: reflexões e réplicas. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.

314 p.

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ao mesmo tempo que se escolhe uma maneira de observar as coisas, não é

possível vê-la, ao mesmo tempo, de outra forma.4

Tal liberdade para a escolha de seu objeto de pesquisa e dos

caminhos necessários à solução dos problemas surgidos com ele também

esconde outras intenções que estão além daquelas planejadas pelo

pesquisador, conforme Polanyi destaca:

O alto grau de independência de que desfruta lhe é assegurado para que desempenhe com mais eficiência suas obrigações. Sua tarefa é de descobrir, no estado vigente da ciência, as oportunidades para a mais bem-sucedida aplicação de seus talentos e devotar-se à exploração dessas oportunidades. Quantomaior sua liberdade, maior a força com que pode lançar sua convicção pessoal no ataque ao problema com que se depara.5

Além da liberdade que a envolve, a pesquisa está inegavelmente

ligada às emoções de quem a realiza, por isso é importante que se

abandone cada vez mais a dicotomização cartesiana, pois a razão e a

emoção estão imbricadas no ato criativo – em nenhum momento elas se

separam. A subjetividade dá sustentáculo ao pesquisador por meio da

coragem e do sentimento de segurança, ambos necessários na trajetória do

seu campo de estudo. Em nenhum momento as emoções impedem que a

pesquisa perca o seu caráter racional, pois o reconhecimento da situação

em que a ciência se encontra é um dos pré-requisitos para que o

pesquisador identifique o campo mais adequado à aplicação de seus dons.

Apesar do caráter libertário que envolve a pesquisa, o conhecimento

produzido nas diferentes áreas do conhecimento não se desvincula da

tradição, que nesse caso pode ser identificada nos preceitos disseminados

pela academia.

4 POLANYI, Michael. A lógica da liberdade: reflexões e réplicas. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.

314 p.5 Ibidem, p. 93.

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Polanyi destaca a complexidade do ato criativo e a impossibilidade de

se dicotomizar o indivíduo quando diz que:

Dentro de si, o cientista guarda uma chave escondida capaz de abrir um cofre também escondido. Existe apenas uma força capaz de revelar tanto a chave quanto o cofre, e de reuni-los: a ânsia criativa que é inerente às faculdades humanas e que as guia, instintivamente, para as oportunidades em que podem se manifestar. O mundo exterior pode ajudar pelo ensino, pelo estímulo e pela crítica, mas todas as decisões essenciais que conduzem à descoberta permanecem pessoais e intuitivas.6

Outro elemento necessário ao desenvolvimento desta pesquisa diz

respeito à História das Idéias, instrumento que se dedica ao estudo das

transformações do pensamento intelectual. No que se refere à temática,

Baumer7 defende que, a partir de seu “ressurgimento”, a história das idéias

teve no filósofo Wilhelm Dilthey um importante defensor, pois este

argumentava que as ciências humanas proporcionavam mecanismos de

explicação e compreensão da realidade histórico-social – leia-se natureza

do homem, muito melhores do que os oferecidos pelas ciências naturais.

O autor afirma que:

O termo ideiais, no entanto, é elástico e pode referir-se a quase tudo desde o pensamento de uma pequena elite ao de toda a gente. Por esse facto, a história das ideias tem o seu lugar entre a história da filosofia e a história cultural. Isto é, o âmbito da história das ideias é consideravelmente mais vasto do que o da história da filosofia, embora não tão vasto que inclua a cultura popular, pelo menos não fundamentalmente. A história das idéias não está limitada aos pensamentos de alguns, os talentosos, aqueles que encontramos normalmente na história da filosofia. 8

6 POLANYI, Michael. A lógica da liberdade: reflexões e réplicas. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.

p. 96.7 BAUMER, Franklin B. O pensamento europeu moderno. v. I e II. Lisboa: Edições 70, 1990.8 Ibidem, p. 21.

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Por outra perspectiva, a história das idéias se destaca por seu caráter

interdisciplinar, uma vez que vai buscar nos mais variados campos do saber

os pressupostos necessários ao estudo do seu objeto, mesmo que para isso

seja necessário adentrar departamentos da biologia, da física, da

psiquiatria, entre outros.

Em meados da década de 1970, Michel Foucault, na obra “Vigiar e

punir: o nascimento das prisões”,9 analisou o processo de transformação

histórica da legislação penal e dos métodos de execução das penas. Nesse

texto, o estudioso aborda a questão da disciplina vigente no século XVIII,

período em que se iniciaram as mudanças na maneira de pensar a punição

e as práticas de poder do Estado sobre os corpos.

Estudiosos brasileiros como Sidney Chalhoub,10 com a obra “Trabalho,

lar e botequim”, Boris Fausto,11 autor de “Crime e cotidiano: a criminalidade

em São Paulo (1880-1924), Mariza Corrêa,12 autora de “Morte em família”,

Martha Abreu Esteves,13 com “Meninas perdidas” e Marcos Luiz Bretãs,14

com “Ordem na cidade”, pesquisam desde o início da década de 1980 os

processos criminais como fontes primordiais para a compreensão das

experiências de sociabilidade de trabalhadores (rurais e urbanos), policiais,

mulheres e também para o entendimento do funcionamento do aparato

jurídico-policial.

Diversas reflexões sobre o conteúdo dos processos judiciais são

possíveis, como demonstra Sidney Chalhoub15 em “Trabalho, lar e

botequim”. Utilizando-se dos indícios e sinais contidos em processos

criminais passíveis de descrição da “cultura dos dominados” e das relações

de conflito mantidas entre esse grupo e a ordem dominante, o historiador

investiu na procura de aspectos cotidianos da vida dos trabalhadores

cariocas do início do século XX.

9 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. 262

p.10 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. São Paulo: Brasiliense, 1986.11 FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo:

Edusp, 2001. 326 p.12 CORRÊA, Mariza. Morte em família. Rio de Janeiro, Graal, 1983.13 ESTEVES, Martha Abreu. Meninas perdidas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.14 BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na cidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.15 CHALHOUB, loc. cit.

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Chalhoub buscou reconstituir, por meio dos processos judiciais, as

formas de lazer, as relações afetivas e profissionais que se estabeleciam

entre trabalhadores e patrões, entre outras relações. Além disso, analisou o

mundo do lazer popular, identificado nos botequins e nas ruas, que acabava

resultando em repressão das autoridades policiais, que muitas vezes

mediavam também pequenos conflitos cotidianos dos populares. O estudo

constatou que o botequim não funcionou apenas como espaço de distração,

mas também como mecanismo de controle, por parte da classe dominante,

sobre a sua força de trabalho.

Boris Fausto,16 no clássico “Crime e cotidiano: a criminalidade em São

Paulo (1880-1924)”, apoiou-se, por sua vez, na metodologia quantitativa

para demonstrar que os processos judiciais traduziam, à sua maneira, tanto

o crime ocorrido quanto a luta judicial travada para condenar ou absolver o

indivíduo. Iniciando pelo estudo do funcionalismo jurídico-policial e do

cotidiano dos pobres, o autor procurou identificar particularidades que

permitissem a percepção de valores, representações, comportamentos e

normas sociais vigentes na São Paulo do início do século XX.

Apesar da semelhança da metodologia empregada por Mariza

Corrêa,17 Fausto18 atribuiu a criminalidade estudada a fatores como controle

social, cor, imigração, sexo, idade, entre outros. Ele constatou que mais de

50% dos presos eram estrangeiros, sendo esse percentual superior ao

número de estrangeiros na população global, e percebeu que esse grupo de

pessoas estava mais propenso às formas de evasão como desordem e

embriaguez do que à vadiagem e à gatunagem.

No trabalho intitulado “Meninas perdidas”, Martha de Abreu Esteves19

procurou recuperar nos processos criminais de defloramento, estupro, rapto

e atentado ao pudor, ocorridos no Rio de Janeiro entre os anos de 1900 e

1913, o exercício do poder do aparelho jurídico frente à concepção dos

costumes e da criminalidade sexual. Percebeu que a ampliação da punição

dos crimes sexuais – que se configuravam em ameaças à então capital

16 FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo:

Brasiliense, 1984.17 CORRÊA, Mariza. Morte em família. Rio de Janeiro, Graal, 1983.18 CORRÊA, loc. cit.19 ESTEVES, Martha Abreu. Meninas perdidas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

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federal –, de acordo com os juristas, expandiu o poder de controle sobre os

trabalhadores, sendo o judiciário co-responsável pelo estabelecimento de

uma política sexual à sociedade, a fim de proteger os valores dominantes.

A autora também buscou retirar da documentação os discursos

populares contidos nos depoimentos das ofendidas, acusados e

testemunhas. Tais histórias propiciaram à pesquisadora a reconstituição de

parte dos valores morais, dos comportamentos sexuais, das formas de

lazer, por exemplo, o que permitiu que ela concluísse que as tentativas de

disciplinarização dos hábitos e costumes dos populares, por parte da elite

dominante, foram relativamente alcançadas.

Os historiadores mencionados identificaram nos processos criminais

um importante aliado para o estudo dos valores e das normas sociais

vigentes nas classes populares de um determinado período e também das

práticas jurídicas. Como afirma Carneiro, frente aos autores mencionados,

“este tipo de documentação seria um dos caminhos para a recuperação dos

discursos de pessoas dos estratos mais pobres da sociedade e ofereceriam

novas possibilidades para estudos históricos da cultura popular.” 20

É fundamental referir que os dois últimos autores trabalham com

visões dicotomizadas da sociedade e também com o conceito de classe

social, como se esses dois elementos fossem suficientes para explicar todas

as relações que existem na sociedade. Desconsideram o desenvolvimento

do pensamento intelectual e das instituições estatais como agentes

influenciadores e construtores das mesmas.

Em “Morte em família”, Mariza Corrêa,21 afirma que os processos

criminais se constituem em mecanismos elaborados pelos profissionais

jurídico-policiais a fim de ordenar a realidade processualmente. Ressaltou

que os discursos contidos nesses documentos contribuem mais para o

aprofundamento dos conhecimentos referentes ao aparato jurídico-policial

do que aos próprios atos a que dizem respeito. Está aí o motivo pelo qual se

torna relevante utilizar os autos criminais para a redação de uma história da

20 CARNEIRO, Deivy Ferreira. Conflitos, crimes e resistência: uma análise dos alemães e teuto-

descendentes através de processos criminais (Juiz de Fora, 1858/1921). 222 p. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004. p. 65.

21 CORRÊA, Mariza. Morte em família. Rio de Janeiro, Graal, 1983.

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justiça e das impressões de seus representantes sobre a ordem social na

qual estão inseridos.

Em que pese a crítica da autora, não podemos esquecer que a

organização do Juizado de Menores se fez por meio dos grandes códigos,

tal como o aludido por Weber.22

Carlos Antonio Costa Ribeiro,23 na obra “Cor e criminalidade: estudos

e análises da justiça no Rio de Janeiro (1900-1930)”, verificou os processos

criminais referentes a homicídios e tentativas de homicídio e constatou que

as penas auferidas aos acusados dos crimes mencionados se alteravam de

acordo com os agentes externos aos autos. De acordo com ele, as relações

entre acusado e vítima, bem como a cor do primeiro, eram elementos que

faziam a diferença no momento da sentença auferida pelo Tribunal do Júri.

Assim, a reconstituição da história das crianças no Brasil, por meio da

análise minuciosa dos dados presentes nos processos criminais, significa

dar voz à infância neles representada, bem como aos delitos por elas

praticados. Por isso, para que sejam captadas as lembranças mais

apagadas sobre a infância, recorre-se à utilização, principalmente, da fala

de médicos, professores, padres, educadores e legisladores.

Todos esses profissionais tiveram acesso importante à criança e, por

isso, conseguem captar, identificar e, muitas vezes, reproduzir os

acontecimentos que a cerceiam e localizar, mesmo que a partir de uma

visão diferenciada daquela da criança, o ambiente social e a sociedade na

qual ela está inserida. Além disso, tais profissionais também refletem o

pensamento científico em voga e buscam aplicá-lo no conjunto da realidade

social na qual estão inseridos.

Merece atenção o conjunto de informações obtidas nessa

documentação judicial, como sexo, idade, cor, profissão dos réus e das

vítimas, causas do conflito, grau da sentença, entre outros, os quais serão

analisados quantitativamente a fim aprofundar a análise latente dos dados.

22 WEBER, Max. Ciência e política. Duas vocações. 13. ed. São Paulo: Cultrix, 2005.23 RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e criminalidade: estudos e análise da justiça no Rio de

Janeiro (1900-1930). Rio de Janeiro: Edufrj, 1995.

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20

Desde o século XVII, a visão com relação à infância vem se

modificando, conforme se constata na obra de Philippe Áries24 “A criança e

a vida familiar no Antigo Regime”. Nesse texto, o autor afirma que a nossa

antiga sociedade tradicional tinha dificuldades em conceber a criança,

principalmente quando esta se encontrava na fase adolescente.

A infância era considerada como o período em que o menor

apresentava maior fragilidade, pois essa seria a fase em que a “cria

humana” ainda não se bastava a si própria e, passada essa fase, estando

ainda mal-desenvolvida fisicamente, já era misturada aos adultos,

partilhando os seus trabalhos e os seus prazeres.

Ultrapassavam-se vários estágios de desenvolvimentos, sendo que a

criança acabava sendo jogada abruptamente no mundo dos jovens, pois a

sua passagem pelo mundo da família e da sociedade era breve demais para

que ela pudesse guardar algum momento na memória ou alguma afeição.

O final do século XVI apresentou mudanças significativas na visão de

criança: muitos educadores, com concepções pedagógicas reconhecidas,

passaram a selecionar o material destinado à infância – obras suspeitas ou

de caráter duvidoso deveriam ser mantidas fora do alcance infantil. Essa

prática será adotada não só pelos católicos, mas também pelos

protestantes, como demonstração efetiva de respeito pela infância.

No século XVII, foram adotados tratados de civilidade infantil, e esse

tipo de literatura pedagógica, apreciada também no século XIX, foi

responsável pelo regramento de práticas dos pais e educadores. Esse

século também foi responsável pela transformação do sentimento de

infância. Para tanto, a religião teve papel significativo, pois transmutou a

criança em um ser digno de devoção.

A iconografia religiosa passou a representar o menino Jesus separado

de sua mãe. Uma religião voltada para as crianças, aliada à devoção,

praticamente as igualou aos anjos da guarda. Dos anjos, passou-se a

estudar e divulgar a vida dos santos quando pequenos, figuras que

serviriam de modelo à infância.

24 ARIÈS, Philippe. A criança e a vida familiar no Antigo Regime. Lisboa: Relógio D’Água, 1988.

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21

Ritos religiosos destinados à infância, antes realizados sem qualquer

preparação, transformaram-se em celebrações solenes envoltas em práticas

elaboradas, como foi o caso da primeira comunhão. Essa celebração se

tornou o símbolo maior do sentimento de infância, principalmente entre os

séculos XVII e fins do século XIX, segundo Ariès.25

Toda uma moralidade se desenvolveu a partir desse sentimento. A

criança passou a ser alvo de preocupações educativas, e a escola

disciplinada foi o seu maior símbolo.

A criação escolarizada deu um lugar em separado para a criança, e

essa sujeição que segundo Áries, impôs disciplina à infância deve ser

interpretada como “uma das facetas da grande moralização dos homens

levada a cabo pelos reformadores católicos ou protestantes, eclesiásticos,

juristas ou homens de Estado.” 26 Entretanto, essa sujeição não existiria se

não houvesse o consentimento das famílias, que atribuem à educação uma

forma de demonstração de carinho.

Para Áries,27

a família e a escola, juntas, arrancaram a criança à sociedade dos adultos. A escola encerrou uma infância outrora livre num regime disciplinar cada vez mais estrito, que culmina, nos séculos XVIII e XIX, na clausura total do internato. A solicitude da família, da Igreja, dos moralistas e da administração privou a criança da liberdade de que desfrutava entre os adultos. Infligiu-lhe o chicote, a prisão, penas reservadas aos condenados de mais baixa condição. Mas este rigor traduzia um sentimento bem diverso da antiga indiferença: um amor obcecado que dominaria a sociedade a partir do século XVIII.

Nas sociedades modernas, principalmente após o surgimento de uma

burguesia voltada para si, organizada em uma família fechada e recolhida

em espaços em separado dos pobres, acirrou-se ainda mais o sentimento

contra a diversidade e a preocupação com a uniformidade da sociedade.

25 ARIÈS, Philippe. A criança e a vida familiar no Antigo Regime. Lisboa: Relógio D’Água, 1988.26 Ibidem, p. 12.27 Ibidem, p. 322.

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O sentimento contra a diversidade e a constante busca pela

uniformização do espaço social vai originar, a partir do final do século XIX,

discussões jurídicas acerca da situação do menor no Brasil, como

demonstram os trabalhos de Bárbara Lisbôa Pinto,28 “O menor e a

menoridade nos debates de Direito Criminal brasileiro na década de 1880” e

“A lógica nos procedimentos com menores na esfera dos Tribunais do Rio

de Janeiro no final do século XIX”.29

As preocupações com a infância abandonada e delinqüente se

estendem pela década de 1920, como pode ser observado na obra de

Joaquim Cândido de Azevedo Marques,30 “Menores abandonados e

delinqüentes”, publicada em 1925. José Gabriel de Lemos Britto,31 em 1929,

reuniu de forma crítica na obra “As leis de menores no Brasil: paginas de

critica e douctrina” toda a legislação referente aos menores até o período de

publicação do texto.

Saul de Gusmão,32 juiz do Distrito Federal, organizou e publicou uma

série de relatórios referentes às atividades do Juizado de Menores da

cidade, entre os anos de 1940 e 1945, dentre os quais podemos destacar os

seguintes títulos: “A ação social do juízo de menores”, “Proteção à infância”,

“Assistência a menores”, “Menores desvalidos” e “Em defesa dos menores”.

Na década de 1980, foi publicada, como obra póstuma, a dissertação

de Leda Schneider,33 defendida na PUC-RS, “Marginalidade e delinqüência

juvenil”, que traçou o perfil da delinqüência juvenil em Porto Alegre em

1976, valendo-se somente dos processos especiais do Juizado de Menores

do mesmo ano.

28 PINTO, Bárbara Lisboa. O menor e a menoridade nos debates de Direito Criminal brasileiro na

década de 1880. Justiça & História. Memorial do Judiciário do RS, v. 4, n. 7, 2004. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do RS. Departamento de Artes Gráficas, 2002.

29 Idem. A lógica nos procedimentos com menores na esfera dos Tribunais do Rio de Janeiro no final do século XIX. Justiça & História. Memorial do Judiciário do RS, v. 4, n. 8, 2004. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do RS. Departamento de Artes Gráficas, 2002.

30 MARQUES, Joaquim Cândido de Azevedo. Menores abandonados e delinqüentes. São Paulo: Saraiva, 1925.

31 BRITTO, José Gabriel de Lemos. As leis de menores no Brasil: páginas de critica e de douctrina. Rio de Janeiro: Typographia da Escola de Preservação 15 de novembro, 1929.

32 GUSMÃO, Saul de. Em defesa dos menores. Rio de Janeiro: Impr. Nacional, 1945; Assistência a menores. Rio de Janeiro: Impr. Nacional, 1942; Menores desvalidos. Rio de Janeiro: Impr. Nacional, 1943; Proteção à infância. Rio de Janeiro: Impr. Nacional, 1941; A ação social do juízo de menores. Rio de Janeiro: Impr. Nacional, 1940.

33 SCHNEIDER, Leda. Marginalidade e delinqüência juvenil. São Paulo: Cortez, 1982.

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Nesse mesmo período, Rovílio Costa, em “Delinqüência juvenil:

antecedentes. Descrição dos antecedentes da delinqüência juvenil em Porto

Alegre”, preocupou-se em descrever os antecedentes da delinqüência

juvenil em Porto Alegre, no ano de 1974, a fim de realizar um estudo geral

da população delinqüente, debruçando-se sobre as ocorrências e

analisando os casos de sujeitos infratores.

Irene Rizzini, em “A Arte de governar crianças: a história das políticas

sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil”, faz um

apanhado do tratamento à infância na América Latina até chegar ao Brasil,

narrando o desenvolvimento das políticas relacionadas à criança no País.

“Vozes do meio-fio: etnografia sobre a singularidade dos diálogos que

envolvem meninos e adolescentes ou que tomam a adolescência e a

infância por tema e objeto nas ruas da cidade de São Sebastião do Rio de

Janeiro”, 34 de autoria de Claudia Milito e Hélio Silva, é um contribuição para

o debate acerca da realidade dos meninos de rua, bem como sobre as

ações voltadas para eles, moradores de bairros do Rio de Janeiro.

A obra traçou o perfil das crianças e adolescentes de rua do Rio de

Janeiro e como se dá o processo de demarcação dos espaços por eles

ocupados, como a Central do Brasil, a Candelária, entre outros. Chamou a

atenção para a passagem da adolescência para a vida adulta dessa

população, que vem acompanhada da perda dos “privilégios” que ela

oferece e que são repassados por alguns segmentos sociais e legais.

Destacou que, ao mesmo tempo que uma parcela da sociedade ajuda

os meninos de rua, outra parcela da população vê essas práticas como uma

forma de “alimentar bandidos”. Os autores afirmam que essa visão contribui

para a dissolução do conceito “menor”, que passa a ser associado à

delinqüência, à infração, e não à categoria correlata à criança ou ao

adolescente. E, assim, esse termo passa a ser associado pela própria

criança ou adolescente, que se percebe como “dimenor”.

34 MILITO, Claudia; SILVA, Hélio. Vozes do meio-fio: etnografia sobre a singularidade dos diálogos

que envolvem meninos e adolescentes ou que tomam a adolescência e a infância por tema e objeto nas ruas da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995. 192 p.

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A pesquisa também delineou a maneira como a sociedade se

posiciona contra tal população, sem perceber que eles vagam pelas ruas de

acordo com os limites impostos pelos grupos que se formam na cidade, o

que significa que eles não são livres, que a sua “liberdade” está circunscrita

aos espaços marcados, assim como a sua sobrevivência. Os autores

chamam a atenção para a relação complexa que se estabelece nesse

mundo da rua, onde sozinho não se sobrevive e, por isso, tornam-se

necessárias conexões com outros, inclusive adultos, que podem proteger ou

explorar. Outro fato relevante diz respeito ao papel da mídia nas questões

referentes aos meninos de rua e aos seus grupos, salientando que

normalmente as notícias divulgadas estão envoltas por um forte clima

emocional e que muitas vezes tendem a misturar as especificidades das

instituições voltadas para o atendimento da população infanto-juvenil de

rua, incorreção essa que prejudica a imagem de tais órgãos.

Os autores afirmam que todas as situações apresentadas no livro,

cujo foco de pesquisa foi a cidade do Rio de Janeiro, não se restringem

apenas a essa região, mas refletem também a realidade de outras cidades

brasileiras.

Em 1997, sob a organização de Marcos Cezar de Freitas,35 vários

artigos foram reunidos com o intuito de destacar alguns trabalhos referentes

à infância no Brasil, na obra “História social da infância no Brasil”. Desse

trabalho, para citar um exemplo, destaca-se o texto de Mariza Corrêa,36 “A

cidade dos menores: uma utopia dos anos 30”, que apresenta a visão

utópica de Leonídio Ribeiro, fundador do Laboratório de Biologia Infantil,

sobre o projeto de uma cidade a ser criada e destinada ao estudo da

infância criminosa, como forma de prevenir tal situação por meio da

detecção de tais “sintomas”.

A mentalidade da época do período positivista, no que se referia à

criança e à infância, foi avaliada por Aidê Campello Dill 37 na defesa de sua

tese de doutorado intitulada “A criança sob inspiração positivista no Rio 35 FREITAS, Marcos Cezar de. História social da infância no Brasil. 3. ed. São Paulo: Cortez,

1997.36 CORRÊA, Mariza. A cidade de menores: uma utopia dos anos 30. In: FREITAS, Marcos Cezar

de. História social da infância no Brasil. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1997.37 DILL, Aidê Campello. A criança sob inspiração positivista no Rio Grande do Sul (1898-1928).

Porto Alegre: PUC-RS, 1999. Tese de Doutorado.

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Grande do Sul (1898-1928)”. A autora avaliou a possível transformação da

criança real em criança ideal na sociedade moderna, por meio da análise

dos discursos pedagógico, médico, entre outros profissionais de distintas

áreas.

Também publicado em 1999, o trabalho de Adriana de Resende B.

Vianna38 “O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio de Janeiro,

1910-1920” tratou das questões cotidianas envolvendo determinados

indivíduos (polícia, menores) no Rio de Janeiro da primeira década do

século XX. O estudo definiu que as práticas policiais da época frente aos

menores podem ser compreendidas pelo do viés das desigualdades sociais.

Assim, a polícia criou uma classificação para indivíduos perigosos própria,

passando, a seguir, a aplicá-la nas suas atividades rotineiras como forma de

“qualificar” os seus mecanismos repressivos.

As pesquisas mais destacadas sobre a infância brasileira estão sendo

realizadas por Mary Del Priore, Maria Luiza Marcílio, Irene Rizzini e Irma

Rizzini, referências imprescindíveis para qualquer estudioso que pretenda

reconstituir a história da criança no Brasil. Maria Luiza Marcílio,39 na obra

“História social da criança abandonada”, reconstitui a trajetória da infância

abandonada no País.

Em sua publicação mais recente sobre o tema, “O Direito do menor no

século XX”, a autora resumiu em artigo toda a legislação pertinente ao

menor criada no século XX.40 Mary Del Priore se destaca com a obra

“História das crianças no Brasil”, que reúne artigos que tratam da temática

da infância desde as suas brincadeiras até as suas violações legais. 41

Em artigos publicados na revista Justiça & História em 2001 e 2002,

respectivamente, Cláudio Pereira Elmir, com os textos “Polícia, Justiça e

Imprensa: as disputas para a constituição do campo legítimo para a

38 VIANNA, Adriana de R. B. O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio de Janeiro,

1910-1920. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999.39 MARCÍLIO, Maria Luiza. O Direito do menor no século XX. In: LOURENÇO, Maria Cecília França

(org.). Direitos humanos em dissertações e teses da USP: 1934-1999. São Paulo: EDUSP, 2000.

40 Idem. História Social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998.41 PRIORE, Mary Del. (org.). História das crianças no Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2000.

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enunciação do crime” 42 e “A enunciação do limite: os menores e o caminho

para a criminalidade”,43 apresentou a construção do discurso

anticriminalidade de menores entre as décadas de 1950 e 1960, a partir da

utilização dos Anais da Assembléia Legislativa do RS e da Câmara

Municipal de Porto Alegre, Relatórios da Brigada Militar, entre outras fontes.

Em publicação mais recente na mesma revista, Elmir, 44 no artigo “A

transgressão do limite: sedução, adultério, prostituição e estupro no Rio

Grande do Sul de meados do século XX”, descreveu e analisou os discursos

oriundos de textos publicados no jornal Última Hora e discursos proferidos

na Câmara Municipal de Porto Alegre, entre 1950 e 1960, sobre a

criminalidade no Estado, em grande parte relacionados a agentes menores

de 18 anos. O texto revela de forma não-definitiva, que a maioria dos crimes

sexuais ou atentados envolvendo menores, se referiam a pessoas oriundas

de grupos sociais mais baixos, sem excluir a existência dessas mesmas

situações nos setores mais abastados, com a única diferença de que nesses

meios era possível “acobertar” os acontecimentos.

Também publicados na revista Justiça & História, os trabalhos de

Eliane D. Fleck “Infância, violência urbana e saúde pública – Porto Alegre

(1880-1920)”,45 que tratou de avaliar preliminarmente a situação do Estado

do Rio Grande do Sul na definição de políticas públicas destinadas às

crianças infratores e aquelas alvo de violência, e “O julgamento moral dos

corpos – a infância abreviada pela violência (Porto Alegre – 1890-1904)”,46

que abordou a “criminalização da sexualidade” e o julgamento dos corpos

de meninas por meio do estudo preliminar de processos-crimes, códices da

42 ELMIR, Cláudio Pereira. A enunciação do limite: os menores e o caminho para a criminalidade.

Revista Justiça & História. Memorial do Judiciário do RS. v. 2. n. 3 (2002). Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do RS. Departamento de Artes Gráficas, 2002.

43 Idem. Polícia, Justiça e Imprensa: as disputas para a constituição do campo legítimo para a enunciação do crime. Revista Justiça & História. Memorial do Judiciário do RS, v. 1, n. 1 e 2,2001. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do RS. Departamento de Artes Gráficas, 2002.

44 Idem. A transgressão do limite: sedução, adultério, prostituição e estupro no Rio Grande do Sul de meados do século XX. Justiça & História. Memorial do Judiciário do RS. v. 3, n. 6, 2001. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do RS. Departamento de Artes Gráficas, 2002.

45 FLECK, Eliane D.; KORNDÖRFER, Ana Paula. Infância, violência urbana e saúde pública. Justiça & História. Memorial do Judiciário do RS. v. 3, n. 5, 2003. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do RS. Departamento de Artes Gráficas, 2002.

46 Idem. O julgamento moral dos corpos – a infância abreviada pela violência (Porto Alegre – 1890-1904). Justiça & História. Memorial do Judiciário do RS, v. 4, n. 7, 2004. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do RS. Departamento de Artes Gráficas, 2002.

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polícia, entre outros, trataram da infância com foco na violência e nas

questões de saúde pública entre o final do século XIX e início do XX.

Em 2004, na obra “A institucionalização de crianças no Brasil:

percurso histórico e desafios do presente”, Irma Rizzini e Ireni Rizzini,47

analisaram a trajetória da institucionalização das crianças brasileiras. O

estudo mostra que desde o século XIX até hoje, com o Estatuto da Criança

e do Adolescente, os motivos que levam à institucionalização das crianças

sofreram poucas alterações.

Publicado na revista Justiça & História, o texto “Menoridade e

violência urbana em Porto Alegre: agressões, internações, políticas públicas

(1890-1920)”, de Eliane Cristina Deckmann Fleck e colegas aborda a

violência urbana contra a criança e o adolescente no Rio Grande do Sul,

destacando a assistência médico-hospitalar resultante da violência e as

políticas públicas destinadas ao atendimento e à recuperação social dos

menores infratores. 48

Já Elione Silva Guimarães,49 em “Tensões remanescentes das

senzalas: análise de tutorias de menores afrodescendentes (Juiz de Fora –

MG, final do século XIX e início do XX)”, dedicou-se à análise da trajetória

dos afrodescendentes por meio de suas táticas de sobrevivência durante os

anos de transformação e reorganização pós-abolição e se deparou com

muitas tensões oriundas dos tempos das senzalas. Por meio dos processos

de tutoria de menores afrodescendentes, observou os “caminhos” e

“descaminhos” destes, bem como as suas relações com as leis, os direitos e

as justiças, todos inseridos em um contexto urbano.

Luiz Eduardo Soares, no livro “Cabeça de porco”,50 juntamente com

MV Bill e Celso Athayde, dedicou-se ao estudo de acontecimentos ocorridos

em regiões do Brasil, como Goiás, Porto Alegre, Brasília, Joinville, Curitiba,

entre outras, dominadas pelo tráfico, principalmente aquele no qual atuam

47 RIZZINI, Ireni; RIZZINI, Irma. A institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e

desafios do presente. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2004.48 FLECK, Eliane D. et alli. Menoridade e violência urbana em Porto Alegre: agressões, internações,

políticas públicas (1890-1920). Justiça & História. Memorial do Judiciário do RS, v. 5, n. 9, 2005. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do RS. Departamento de Artes Gráficas, 2002.

49 GUIMARÃES, E. S. Tensões remanescentes das senzalas: análise de tutelas de afro-descendentes (Juiz de Fora – MG, final do século XIX e início do XX). Justiça & história, Porto Alegre- RS, v. 5, n. 9, 2005.

50 SOARES, Luiz Eduardo. Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005. 295 p.

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crianças e jovens. Soares e colegas buscaram delinear não apenas a

extensão dessa prática, mas também o “modelo” carioca de tráfico, que é

seguido nas regiões onde o tráfico de drogas aparece. Também não deixam

de lado a questão que envolve a criminalidade infanto-juvenil, bem como as

práticas despóticas dos policiais.

Ampliando a análise e objetivando uma compreensão mais ampla do

problema, no âmbito latino-americano, também detectamos preocupação

com as questões relativas à infância delinqüente em países como Argentina,

Uruguai e Paraguai, por exemplo, como demonstram as obras publicadas na

Argentina, onde o tratamento da temática também foi constante.

Como exemplo, encontramos a obra de Clara R. de Altbáum,51 em

“Delincuencia infantil”. A autora afirma que os menores seguem o caminho

da criminalidade por serem abandonados moralmente, o que prejudica o seu

desenvolvimento moral e social dentro da sociedade. Para Altbáum, a

melhor solução para o problema da delinqüência de menores seria a criação

de uma polícia feminina, pois só a mulher poderia salvar as futuras

gerações de argentinos devido ao seu “instinto” maternal.

Já Ernesto Nelson,52 na obra “La delincuencia juvenil”, após anos de

atuação no Tribunal de Menores de Buenos Aires reuniu toda a legislação

pertinente aos menores à estrutura e ao funcionamento dos órgãos judiciais

destinados à assistência, à proteção e ao julgamento de menores.

Para finalizar a revisão bibliográfica, cabe destacar o texto de

Gergelina M. T. de Barba. 53 Em “Delincuencia e Servicio Social”, a autora

tratou do envolvimento do Serviço Social como disciplina auxiliar da

Criminologia no que se refere ao tratamento dispensado aos menores

delinqüentes. Para ela, a prevenção da delinqüência de menores deve ser

feita de duas formas: 1ª) deve ser realizada mediante um amplo programa

governamental que compreenda um estudo geral de medidas sociais,

econômicas e culturais, destinadas à melhoria das condições de vida

dessas crianças, que indiretamente contribuiriam para a prevenção dos

51 ALTBAUM, Clara R. de. Delincuencia infantil. Buenos Aires: [S.N.], 1939.52 NELSON, Ernesto. La delincuencia juvenil. 3. ed. Buenos Aires: La Facultad, 1941.53 BARBA, Georgelina M. Tízio de. Delincuencia y Servicio Social. Buenos Aires: Humanitas,

1966.

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delitos; 2ª) e por meio da investigação profunda das causas do delito e o

estudo de medidas preventivas a serem aplicadas nas diferentes situações.

1.1 ESTADO VERSUS INDIVÍDUO

Por indivíduo, entende-se o modelo de homem que se originou na

modernidade. Ele refletiu valores hierarquizados que foram segregados pela

ideologia moderna individualista, e não fez parte das representações

ideológicas do medievo. A partir daí, o indivíduo passou a estabelecer

relações com as coisas não mais por meio de uma hierarquia vertical, mas

horizontal, relação essa que o diferenciou completamente do homem

medieval, que priorizava o contato entre os homens, pois foram

estabelecidos pressupostos como a liberdade, a igualdade e a propriedade

privada.54

O surgimento do indivíduo acabou originando a sociedade moderna

individualista, que se caracterizou pela valorização do homem ao ponto de

este se tornar o ser supremo da modernidade. Essa sociedade individualista

se inseriu no Estado moderno, que pode ser conceituado como a entidade

que detém o monopólio do uso legítimo do poder de coerção.55

Antes de abordar as relações entre indivíduo e Estado, é necessário

saber como ambos se originaram. Para Baumer,56 o século XVIII foi

marcado pela antropologia, tida como ciência dedicada ao estudo do

homem. Essa prática vai acabar se desdobrando em um movimento que

perpassará todo o século XIX e chegará até parte do XX, quando o lado

“obscuro” do homem, a sua subjetividade, começará a ser estudada,

principalmente por Freud.

54 DUMONT, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de

Janeiro: Rocco, 1993. 283 p.55 WEBER, Max. Ciência e política. Duas vocações. 13. ed. São Paulo: Cultrix, 2005. 124 p.56 BAUMER, Franklin B. O pensamento europeu moderno. v. I e II. Lisboa: Edições 70, 1990.

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Com a ciência voltada para o estudo do homem, aos poucos algumas

de suas características foram sendo desveladas pelos intelectuais, como se

pode perceber pela tipologia surgida no período: moral, racional, econômico

e perfectível.

O homem moral se originou da oposição entre Lord Shaftesbury e

Hobbes, que defendeu a existência de uma moralidade inata ao homem, que

lhe possibilitava discernir entre o bem e o mal. Segundo ele, o homem tinha

uma natureza boa, mas era dependente da experiência para desenvolver o

seu dom moral.

Já o homem racional foi uma criação dos deístas ingleses, pois se

opunham à revelação pregada pela religião. Não significa que abandonaram

a religião, apenas ressaltaram a importância da razão dentro da mesma

como forma de captar a sua verdadeira mensagem no que se referia à vida

moral. Por meio da razão, acreditavam ser possível eliminar da sociedade a

autoridade religiosa e a superstição.

Apontado como fundador do racionalismo moderno e da filosofia

moderna, Descartes,57 na obra “Discurso do método”, lançou as bases do

pensamento que deu origem às revoluções científicas dos séculos seguintes

à sua redação. Com esse racionalista surgiu o dualismo moderno corpo-

espírito, que reconheceu que o conhecimento está relacionado ao homem e

ao mundo, ao sujeito e ao objeto, e adotou o sujeito com ponto de partida

da solução de problemas.

Descartes justificou a satisfação em utilizar o seu método ao dizer o

que segue:

[...] tinha certeza de usar em tudo a própria razão, se não perfeitamente, pelo menos o melhor que podia; além de que, ao pô-lo em prática, sentia que o meu espírito se habituava pouco a pouco a conceber mais nítida e distintamente os seus objetos, e que, não o tendo submetido a nenhuma matéria particular, prometia a mim próprio aplicá-lo tão utilmente às dificuldades dasoutras ciências como o aplicara às da álgebra.58

57 DESCARTES, René. Discurso do método. Lisboa: Edições 70, 1993. 118 p.58 Ibidem, p. 61.

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O homem econômico, cuja origem está ligada a Adam Smith,

compreendeu a idéia de que o homem contribuía para o desenvolvimento da

sociedade, principalmente em termos econômicos. Voltou-se para a idéia de

que o homem estava mais voltado para os seus próprios interesses, e não

tanto para o bem comum. Tal fato, então, podia ser identificado na

economia – os indivíduos trabalhavam em prol do interesse público,

possibilitando, assim, o ápice da capacidade da sociedade.

O homem perfectível, conforme o século avançava, apresentava-se

como aquele homem capaz de mudar por meio das experiências, da

impressão de certos hábitos e saberes. Caso não fosse possível pelos

meios “naturais”, a educação e a legislação seriam as suas mestras.

Rousseau, 59 como veremos, com a obra Emílio, foi um dos principais

defensores da educação.

Com a perfectibilidade do homem, surge a idéia de que, da mesma

maneira como a sociedade moldava o homem, este também influenciava a

sociedade, mesmo que corrompido pela civilização. Para se transformar,

bastava criar uma nova espécie de governo ou de Estado, em que o melhor

lado do homem emergiria, substituindo-se a sua vontade pela vontade do

grupo.

Percebe-se em todas as imagens de homem que o empirismo abriu a

possibilidade de transformação do homem por meio de suas experiências,

quer em grupo, quer em particular. Dessa forma, no século XVIII, desde o

início da modernidade, o homem se percebeu pela primeira vez como um

ser mutável. Essa visão será aprofundada cada vez mais no século XIX,

denominado por Foucault60 “sociedade disciplinar”.

Para Giddens,61 em sua análise sobre as conseqüências da

modernidade no Ocidente, houve a predominância da razão sobre as

tradições, da ciência sobre os sistemas de controle social e cultural, do

universal sobre o particular e, finalmente, da produção sobre a reprodução.

A Razão permitiu ao homem a transformação e o domínio da natureza de

acordo com as suas necessidades, transformou-o no senhor de seu destino,

59 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, Da educação. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.60 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. 262

p.61 GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991. p. 11.

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como acreditavam os modernos. Por fim, a Razão permitiu que o ser fosse

suplantado pelo devir.

Segue afirmando que:

Ao invés de contemplar o mundo racional criado por um logos e ajustar-se a suas leis, o homem moderno cria um novo mundo e uma nova imagem do homem, que é definido pelo poder criativo que ele conquista quando compreende as leis da natureza e as utiliza para fortalecer seu controle sobre as forças naturais.

Todavia a Razão não se restringiu apenas às questões de domínio

sobre a natureza ou sobre a nova cosmovisão. Ela também se estendeu à

sociedade e às relações sociais que a compunham, principalmente no

tocante às estruturas políticas. A partir daí, a ciência passou a ser utilizada

para organizar o Estado de acordo com as novas concepções de mundo.

Com isso surgem os estados modernos que, conforme Weber,

[...] es una asociación de dominación con carácter institucional que ha tratado, con éxito, de monopolizar dentro de un territorio la violencia física legítima como medio de dominación y que, a este fin, ha reunido todos los medios materiales en manos de su dirigente [...]62

Claro está que a violência não se caracteriza como único mecanismo

de dominação adotado pelo Estado, mas ela tem prioridade sobre os

demais, principalmente nas sociedades atuais. Desde tempos imemoriais,

os agrupamentos políticos mais diversos – e aí se inclui primeiramente a

família – utilizaram-se da violência física como elemento inerente ao poder.

Segundo Weber,63

em nossa época, entretanto, devemos conceber o Estado contemporâneo como uma comunidade humana que, dentro dos

62 WEBER, Max. El político y el científico. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 92.63 Idem. Ciência e política. Duas vocações. 13. ed. São Paulo: Cultrix, 2005. p. 56.

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limites de determinado território – a noção de território corresponde a um dos elementos essenciais do Estado – reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física. É, com efeito, próprio de nossa época o não reconhecer, em relação a qualquer outro grupo ou aos indivíduos, o direito de fazer uso da violência, a não ser nos casos em que o Estado o tolere; o Estado se transforma, portanto, na única fonte do ‘direito’ à violência.

O Estado e, da mesma maneira como as demais formas associativas

pré-existentes, só puderam se manter devido à subserviência do grupo a um

único líder, ou seja, da “dominación de hombres sobre hombres”, em que a

forma de legitimação do poder estava calcada na violência legitimada por

todo um aparato criado para esse fim.64

Entretanto, para que a dominação interna seja justificada, três

poderes contribuem para a sua legitimação: o tradicional, o carismático e o

legal. Ao primeiro, atribui-se a prática adotada pelos patriarcas ou senhores

feudais; o segundo diz respeito ao carisma existente em determinado

indivíduo, que gera a devoção dos seus governados; e o terceiro é aquele

poder imposto por meio da legalidade, cuja base são regras racionais

previamente estabelecidas, reconhecidas e obedecidas pelo corpo de

funcionários estatais.

No entanto não basta apenas que o Estado detenha o poder legal,

pois:

Para assegurar estabilidade a uma dominação que se baseia na violência fazem-se necessários [...] certos bens materiais. Desse ponto de vista, é possível classificar as administrações em duas categorias. A primeira obedece ao seguinte princípio: o estado-maior, os funcionários ou outros magistrados, de cuja obediência depende o detentor do poder, são, eles próprios, os proprietários dos instrumentos de gestão, instrumentos esses que podem ser recursos financeiros, edifícios, material de guerra, parque de veículos, cavalos, etc. A segunda categoria obedece a princípio oposto: o estado-maior é ‘privado’ dos meios de gestão, no mesmo sentido em que, na época atual, o empregado e o proletário são ‘privados’ dos meios materiais de produção numa empresa capitalista.65

64 WEBER, Max. El político y el científico. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p. 84.65 Idem. Ciência e política. Duas vocações. 13. ed. São Paulo: Cultrix, 2005. p. 60.

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Maffesoli66 desdobra a argumentação de Weber no tocante à

burocratização do Estado. Inspirado também por Dumont, o autor ressaltou

a importância do individualismo para o sucesso alcançado do funcionamento

da burocracia como suporte principal do Estado.

Considerou o igualitarismo um dos traços mais importantes da

sociedade moderna, pois, ao mesmo tempo que o individualismo realçou o

homem dentro das sociedades, também pregou uma certa igualdade entre

os mesmos dentro do Estado.

A partir daí, distinguiu duas formas de estrutura social: uma

determinada pelo todo, e outra marcada pela pessoa, ou seja, o indivíduo.

Afirmou que nas sociedades judaico-cristãs, a ênfase ao individualismo é

bastante visível, pois este é protegido por uma organização totalitária

(abstrata) responsável pela vigilância e correção de eventuais problemas

que o indivíduo possa propiciar ao todo (conjunto social).

Entretanto, conforme a sobreposição do todo sobre a parte, e com a

justificativa de proteger a sociedade de possíveis transgressões, o Estado

vai se tornando totalitário e repressor, isso como reflexo do processo da

atomização ocorrido dentro das sociedades.

A relação que se estabelece entre o Estado e os indivíduos que o

compõem é um misto de necessidade e de dever deste para com aquele,

pois existe a substituição da liberdade natural pela liberdade substancial,

que é aquela existente no todo, ou seja, é na totalidade que a liberdade se

torna concreta.67

A partir das relações existentes entre o Estado e o indivíduo, a

história vai assumir um papel preponderante na identificação destas, pois,

como Bobbio destaca, para Hegel o indivíduo isolado não corresponde ao

povo historicamente determinado, possuidor de religião, de arte, de leis e

costumes, enfim, de um ethos.

66 MAFFESOLI, Michel. A violência totalitária: ensaio de antropologia política. Porto Alegre:

Sulina, 2001. 311 p.67 BOBBIO, Norberto. Estudos sobre Hegel: direito, sociedade e estado. 2. ed. São Paulo:

Brasiliense, 1991. 229 p.

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Ao se identificar o povo à totalidade orgânica de indivíduos

possuidora de características particulares de pensar e de viver, de condutas

regradas, é-lhe atribuída uma eticidade total. E, ao se tornar uma totalidade

ética, o Estado:

[...] não é mais um artefato, o produto artificial de indivíduos esparsos e separados que se reúnem em sociedade por vontade deliberada, mas um fato natural, um produto da história ou, se se quiser, do espírito universal, cujos obscuros e muitas vezes inconscientes executores são os indivíduos.68

Ao analisar a transformação histórica das sociedades, Hegel definiu

que o Estado de direito é a marca consagrada da modernidade, pois houve

a dissolução das antigas comunidades onde o indivíduo e o todo são

homogêneos – a partir da dissolução dessa relação, ou seja, com a

independência do indivíduo, contraposto a outros indivíduos independentes,

e não mais membro de uma comunidade, mas sim figura abstrata.69

Para Dumont, ao tratarmos do indivíduo, estamos nos referindo a dois

contextos: um objeto fora de nós e um valor. Também é necessário ter em

mente a co-existência de dois tipos de sociedade: “Quando o Indivíduo

constitui o valor supremo, falo de individualismo; no caso oposto, em que o

valor se encontra na sociedade como um todo, falo de holismo”.70 É a partir

dessa noção que surgem dois tipos de indivíduo: o fora-do-mundo e o no-

mundo.

O autor, para solucionar os problemas inerentes ao individualismo,

amparou-se na análise comparativa do sistema religioso indiano para

exemplificar o indivíduo-fora-do-mundo, principalmente por meio do retirante

indiano. Este consiste no indivíduo que renuncia ao mundo e se preocupa

apenas consigo mesmo.

68 BOBBIO, Norberto. Estudos sobre Hegel: direito, sociedade e estado. 2. ed. São Paulo:

Brasiliense, 1991. p. 71.69 Ibidem, 229 p.70 DUMONT, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de

Janeiro: Rocco, 1993. p. 39.

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De acordo com Dumont, nós somos indivíduos-no-mundo, indivíduos

mundanos, e o renunciante é um indivíduo extramundano. Esse último pode

viver como um eremita, em completa solidão, ou ainda realizar sua

libertação com outros renunciantes. Com esse exemplo, o autor formula a

seguinte hipótese: “se individualismo deve aparecer numa sociedade do tipo

tradicional, holista, será em oposição à sociedade e como uma espécie de

suplemento em relação a ela, ou seja, sob a forma de indivíduo-fora-do-

mundo.” 71

Nesse ponto, Dumont demonstra que, quaisquer que sejam as

diferenças no conteúdo das representações, o mesmo tipo sociológico que

encontramos na Índia, o indivíduo-fora-do-mundo, também pode ser

identificado no cristianismo ocidental.

Para o cristianismo, o homem é um indivíduo-em-relação-com-Deus e,

conseqüentemente, um indivíduo fora-do-mundo. Nesse sentido, os

ensinamentos de Cristo e, posteriormente, de Paulo nos remetem ao mesmo

entendimento. E, por meio desse sentimento de igualdade e de amor em

Cristo, tão vivos no cristianismo, propiciam a união de indivíduos-fora-do-

mundo em uma comunidade que caminha na terra, mas com o coração

voltado para o céu.

O movimento iluminista e a reforma liderada por Calvino foram

responsáveis pela transformação do indivíduo-fora-do-mundo em indivíduo-

no-mundo. A importância de Calvino se dá com a questão da

extramundaniedade, que está agora concentrada na vontade do indivíduo –

por isso, pode-se pensar que o artificialismo moderno pode ser entendido

como uma conseqüência histórica e longínqua do individualismo-fora-do-

mundo dos cristãos.

Quanto aquilo a que chamamos de indivíduo-no-mundo, este é

possuidor de si mesmo, está escondido sob a sua constituição interior, cujo

elemento não é percebido, mas torna-se essência da extramundaniedade.

71 DUMONT, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de

Janeiro: Rocco, 1993. p. 39.

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Ao falar em indivíduo, Durkheim72 lança questões acerca das regras

da moral individual que, segundo ele, funciona como amálgama consciência

do indivíduo e das bases fundamentais e gerais que constituem toda a

moral. São essas regras que determinam os deveres entre os homens e que

acabam se constituindo na ética.

Com efeito, os deveres dos cidadãos variam de acordo com a forma

de governo – aristocracia, democracia, monarquia – e as regras morais se

diferem segundo os grupos sociais. O autor aponta que, apesar das

diferenças existentes, todos os homens dependem do Estado, todos os

homens são cidadãos. As únicas regras que se diferenciam são as

profissionais.73

Dentro do Estado, duas realidades se apresentam: uma consiste na

sociedade que o compõe, e a outra, nos seus órgãos. Estes são definidos

por Durkheim com os seguintes termos:

[...] chamaremos mais especialmente de Estado os agentes da autoridade soberana, e de sociedade política o grupo complexo do qual o Estado é o órgão eminente. Assim postas as coisas, os principais deveres da moral cívica são, evidentemente, os dos cidadãos para com o Estado e, reciprocamente, os do Estado para com os indivíduos.74

Assim, quando o Estado pensa e se decide, não está correto afirmar

que foi a sociedade quem pensou e se decidiu por ele, mas o contrário. O

Estado não se apresenta como válvula de escape das necessidades da

sociedade, pois ele é aquele que organiza os subgrupos.

Para Durkheim, o Estado pode ser definido como:

[...] um grupo de funcionários sui generis, onde se elaboram representações e volições que envolvem a coletividade, embora não sejam obra da coletividade. [...] Podemos, pois, dizer, em resumo: o Estado é um órgão especial encarregado de elaborar

72 DURKHEIM, Émile. Lições de sociologia: a Moral, o Direito e o Estado. São Paulo: Edusp,

1983. 206 p.73 DURKHEIM, loc. cit.74 Ibidem, p. 44.

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certas representações que valem para a coletividade. Essas representações se distinguem das outras representações coletivas por grau mais alto de consciência e de reflexão.”75

Como figura abstrata, esse indivíduo independente, possuidor de sua

própria esfera privada, estabelece com outros indivíduos independentes,

também detentores de espaços privados, apenas relações formais. E é por

meio dessa ligação entre os indivíduos independentes que o direito se

estabelece, e é por meio da lei que o Estado exprime a sua vontade, e não

a dos costumes.76

Continuando a falar sobre a importância da lei, Bobbio aponta que,

para Hegel,

a lei, somente a lei, não os hábitos, não a sentença do juiz que estabelece em cada circunstância aquilo que é direitoconcretamente, é o meio através do qual se expressa a vontade racional do Estado e através do qual um povo se torna Estado.77

Ao colocar a lei – não aquela dos costumes –, como materializadora

do Estado e, conseqüentemente, como fundadora de um povo, já que

consiste na universalização da vontade e não mais como acidente oriundo

da sociedade civil, ela acaba por se tornar a substância ética do Estado.

Assim, caracteriza-se o homem como resultado do Estado, pois é só nele

que adquire a sua essência.78

Nessa mesma linha, Durkheim afirma que é necessário que se

reconheça que o homem só é homem porque vive em sociedade,

retiremos do homem tudo quanto é de origem social, e só ficará um animal, análogo aos outros animais. Foi a sociedade que o elevou, a esse ponto, acima da natureza física; e chegou a esse resultado

75 DURKHEIM, Émile. Lições de sociologia: a Moral, o Direito e o Estado. São Paulo: Edusp,

1983. p. 46.76 BOBBIO, Norberto. Estudos sobre Hegel: direito, sociedade e estado. 2. ed. São Paulo:

Brasiliense, 1991. 229 p.77 Ibidem, p. 85.78 Ibidem, 229 p.

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porque, ao agrupar as forças psíquicas individuais, a associação se intensifica e as leva a um grau de energia e produtividade infinitamente superior ao passível de ser por elas atingido se permanecessem isoladas umas das outras. Brota, assim, vida psíquica de novo gênero, infinitamente mais rica, mais variada do que aquela da qual poderia ser teatro o indivíduo solitário; e a vida assim brotada, embebendo o indivíduo dela participante, vem a transformá-lo.79

Entretanto, ao mesmo tempo que a sociedade alimenta a natureza

individual, ela também a subverte pelos mesmos motivos, pois o grupo age

como uma força moral superior à da parte, por isso esta se torna

dependente. Isto ocorre porque o grupo coage os seus membros e se dedica

a moldá-los de acordo com a sua imagem e semelhança, homogeneíza as

suas formas de pensar e agir, a fim de evitar dissidências.

É devido a tais necessidades que se justifica a atuação do Estado,

pois:

Cumpre, portanto, haja, acima de todos esses poderes locais, famílias, secundários numa palavra, um poder geral que estabeleça a lei para todos, e lembre, a cada qual, que cada qual não é o todo, mas parte do todo, e não deve reter para si aquilo que, em princípio, pertence ao todo. O meio único de evitar esse particularismo coletivo, e as conseqüências para o indivíduo, é um órgão especial encarregado de representar, junto dessas coletividades particulares, a coletividade total, seus direitos e seus interesses. E esses direitos e esses interesses se confundem com os do indivíduo. Eis como a função essencial do Estado é liberar as personalidades individuais. Pelo só fato de conter as sociedades elementares por ele compreendidas, o Estado as impede de exercer, sobre o indivíduo, a influência compressora que, não fosse ele, haveriam de exercer. Nada tem, pois, de tirânica, em si mesma, a intervenção do Estado nas várias esferas da vida coletiva; muito ao contrário, tem por objeto, e por efeito, aligeirar tiranias existentes.80

Embora os autores partam de premissas diferentes, as análises são

importantes para se pensar o Estado e a aplicação da lei, pois é este que

reúne os elementos necessários para a sua manutenção, como as

79 DURKHEIM, Émile. Lições de sociologia: a Moral, o Direito e o Estado. São Paulo: Edusp,

1983. p. 55-6.80 Ibidem, p. 57-8.

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instituições jurídicas e todas as outras que nela se amparam, como a

polícia, por exemplo.

Juntamente com o Estado, o final do século XVIII vai dar origem à

nacionalidade, cujo sentido moderno está intrinsecamente ligado a uma

sucessão de acontecimentos, situações e teorias complexas referentes à

sociedade, à economia, à política, à cultura, à ciência jurídica. 81

O conceito moderno de nacionalidade está atrelado às transformações

referentes à consolidação dos Estados modernos europeus, principalmente

como conseqüência das revoluções burguesas ocorridas na Europa e os

movimentos independentistas da América.

Para Gauer,82 no que se refere a essas transformações e às suas

conseqüências sociais,

a dinâmica desse processo levou cada país a desenvolver pactos de negociação entre os seus diferentes segmentos sociais, constituindo a sociedade civil e o direito público de cada novo Estado-nação. Esse movimento estabeleceu uma legislação que atuou sobre o controle político de um território, de uma população, de uma economia e determinou a cidadania através da origem dos indivíduos. Conceituando nacionalidade, podemos dizer que ela se sustenta por uma prática social que tende à unificação e surge imbricada a outras noções que caracterizam a modernidade; vincula-se à idéia de território, de povo, de língua e de cultura. Na modernidade ela é, antes de mais nada configurada pelo Estado moderno que, como expressão política, organiza a idéia de nação, Estado e nacionalidade, constituindo-se em dimensões dos processos histórico-sociais que se explicam mutuamente. As culturas nacionais se constituem em uma das principais fontes de identidade cultural. Sabemos que a identidade cultural, na modernidade, se constituiu em uma fonte poderosa de significados que criaram padrões unificados como meio dominante de comunicação que oportunizou uma “homogeneidade” nacional.

O aspecto da “homogeneidade nacional” levantada pela autora trouxe

consigo uma questão muito importante que é a noção do outro, do diferente,

daquele que não está adequado ao sistema vigente consentido e adotado

por todos, ou seja, aquele que está fora da ordem.

81 GAUER, Ruth Maria Chittó. (coord.) Sistema Penal e violência. Rio de Janeiro: Lúmen Júris,

2006.82 Idem. A construção do Estado-Nação no Brasil. A contribuição dos egressos de Coimbra.

Curitiba: Juruá, 2001. p. 27

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A compreensão da desordem se encontra nas premissas da ordem,

responsável pela discriminação de tudo que não se enquadra em seu

esquema. Associada à ordem está a organização, pois todas as coisas, e

até mesmo os seres humanos, devem estar em seus lugares que, por

conseqüência, devem estar organizados.83

Para tornar possível o ordenamento, pôr ordem no caos, o Estado

adotou, desde os seus primórdios, a criação de instituições responsáveis

pela imposição da ordem à sociedade, do espaço público. Aos poucos, os

tentáculos estatais vão em direção à vida privada dos indivíduos, isto é, à

família, por meio de regras jurídicas estabelecidas para que no seio familiar

não houvesse exageros (surras, espancamentos, desleixo, entre outras

práticas usuais).

Para alcançar e garantir a ordem comportamental, a modernidade foi

buscar apoio na disciplina, que pode se estender desde a maneira de se

portar à mesa até a maneira como empreender manifestações públicas,

reivindicatórias ou não, a fim de homogeneizar a sociedade, o que facilita

também a identificação dos outros (perigosos) e evitar que essa

periculosidade se espalhe.

Essa frenética busca pela limpeza, ou seja, pela organização e

disciplinamento do desordenado, do sujo, recaiu sobre a modernidade,

devido a sua ânsia por ordem, segurança e, por que não, estabilidade, já

que a Europa sofreu com várias revoluções e guerras intercaladas, que

acabaram gerando o medo não apenas na população, mas também no

Estado.

A conseqüência desse frenesi moderno é que os que não se incluíram

no sistema foram excluídos dele, conforme destaca Ruth Gauer84:

Quando os estados passaram a estabelecer políticas públicas para cuidar do corpo da população, purificando a sociedade e assim “protegendo” e ordenando a vida pública e privada, abriu-se a possibilidade para a inclusão de alguns e logicamente a exclusão de outros.

83 GAUER, Ruth Maria Chittó. Da diferença perigosa ao perigo da igualdade: reflexões em torno do

paradoxo moderno. Civitas (Porto Alegre) Revista de ciências sociais, Porto Alegre, v. 5, n. 2, p. 399-413, 2005.

84 Ibidem, p. 401.

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Diante disso, como ficam aqueles que não se encaixam no modelo

homogeneizador adotado pelo Estado? Criam um novo Estado? Não. O que

vai acontecer é que o Estado, representante da sociedade – e

conseqüentemente seu regulador, seu patriarca –, toma a si, por meio de

um aparato estatal, a missão de recuperar esses desviados e de os reinserir

na sociedade homogeneizada.

Foi a partir dessa necessidade de recuperação dos “diferentes” que

surgiram vários mecanismos destinados à reinserção desses “outros” na

sociedade moderna, como as instituições totais, cujas práticas disciplinares

e regenerativas acompanhavam o indivíduo transgressor em tempo integral.

Dessa necessidade surgiu, como apontou Foucault,85 a “sociedade

disciplinar”, que se configurou entre o final do século XVIII e início do XIX, a

partir de dois contrapontos que se referem à reforma e ao reordenamento do

aparato judicial e penal, tanto na Europa quanto nos outros países dos

demais continentes. Inclui-se aí o Brasil, cujos intelectuais dos diferentes

campos do saber sofreram a influência do pensamento europeu moderno.

Em se tratando de reforma da teoria penal, temos aí o surgimento de

teóricos como Cesare Beccaria e Jeremy Bentham, que muito influíram no

pensamento penal do Ocidente Moderno, cujas teorias foram adaptadas à

realidade aqui existente entre fins do século XIX e que se perpetuaram

pelas primeiras décadas do XX.

Cesare Beccaria (1738-1794) foi autor da obra “Dos delitos e das

penas”, em que criticou a forma como o direito de punir era utilizado na

sociedade européia, enterrando de vez os resquícios feudais que ainda

vigoravam. O seu pensamento foi marco do Direito Moderno, pois se

contrapôs não só ao direito até então utilizado, como as punições cruéis e

desumanas aplicadas aos criminosos.

Ruth Gauer86 salienta que Beccaria foi responsável pela

sistematização do pensamento de autores importantes como Thomas

Hobbes, John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Montesquieu, Vico e

85 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2003.86 GAUER, Ruth Maria Chittó. A construção do Estado-Nação no Brasil. A contribuição dos

egressos de Coimbra. Curitiba: Juruá, 2001.

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D’Alembert, sem deixar de lado portugueses como Melo Freire, D. Francisco

de Lemos, António Nunes Ribeiro Sanches, entre outros.

O pensador Jeremy Bentham (1748-1833) também se colocou contra a

crueldade praticada contra os infratores, prática ainda vigente na sociedade

inglesa. Consagrou-se por meio de duas obras: o “Panopticon”, que

estruturou arquitetonicamente a instituição ideal para controle e vigilância

de indivíduos, quer sejam estudantes, presos, reformados, quer sejam de

outros tipos; e a “Teoria das penas e das recompensas”, na qual se

posicionou como defensor da idéia de que a pena não deveria ultrapassar o

dano cometido pelo criminoso.

Esses dois autores influenciaram não apenas as sociedades

européias modernas, mas as suas idéias foram aplicadas, mesmo que com

adaptações, no Brasil republicano não só na legislação, mas também nos

sistemas prisionais, cujo exemplo maior diz respeito às Casas de

Correção.87

Seguindo o movimento de transformação do pensamento europeu

moderno, esses dois autores foram responsáveis pela dissociação do crime

(infração), no sentido penal, do pecado e da falta, aspectos ligados à moral

e à religião. Apontavam que a infração era conseqüência do rompimento

com as leis civis oriundas do aspecto legislativo do poder político, e não da

moral ou da religião.

Isso denota bem o que Weber88 defendeu a respeito da concepção de

Estado moderno, em que a sociedade estaria submetida a outros homens,

que nesse caso seriam representados pelos legisladores e,

conseqüentemente, pelo aparato jurídico, responsável pela legitimação do

poder estatal por meio de um corpo legal.

Bentham e Beccaria definiram, pela primeira vez, que não era

possível existir uma infração sem antes existir uma lei que o identificasse,

por isso as condutas ilícitas só poderiam ser repreendidas com a existência

de uma lei. Estas deveriam ser criadas para o bem da sociedade e não

deveriam retroceder a leis naturais, nem religiosas ou morais, nem estavam

87 Para aprofundar mais a influência desses dois pensadores na reforma prisional ocorrida no Brasil,

SILVA, Mozart Linhares da. Do império da lei às grades da cidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.

88 WEBER, Max. El político y el científico. Madrid: Alianza Editorial, 2005.

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mais associadas ao pecado, mas sim à perturbação da ordem social em

desenvolvimento. 89

Juntamente com o novo conceito de crime, vem a definição de

criminoso, que é “aquele que danifica, perturba a sociedade. O criminoso é

o inimigo social.”90 Essa concepção não é nova dentre os pensadores, pois

já se apresentava desde os escritos de Rousseau, que afirmava ser o

criminoso aquele que rompe com a ordem social estabelecida, com isso se

transformando em inimigo interno. O que é nova é a absorção dessa idéia

pela teoria criminal e penal.

A preocupação com esse indivíduo que se apresenta como perigo à

ordem social e, conseqüentemente, à sociedade trouxe consigo indagações

acerca de como se deve tratar esse desordeiro, já que o crime não está

mais associado à natureza do homem, nem mesmo ao pecado, e por isso

não pode ser castigado legalmente pelas práticas utilizadas pelas

sociedades pré-existentes, como a vingança, a vexação pública, entre

outros.

Dentre todos os projetos acerca do que fazer com o criminoso,

trabalho forçado, deportação, só para citar esses dois exemplos, nenhum

teve resultado, tanto na Inglaterra quanto na França, onde foram aplicados,

seguindo as teorias de Bentham e Beccaria. Entretanto, no início do século

XIX surgiu um mecanismo que pôs fim aos problemas penais, e que muito

pouco havia sido tratado pelos teóricos: a prisão.

Foucault91 analisou a utilização das prisões como destino dos

criminosos dizendo que:

Com efeito, a legislação penal, desde o início do século XIX e de forma cada vez mais rápida e acelerada durante todo o século, vai

89 Tais preceitos foram adotados no Brasil, não só no Código Penal de 1890, mas também em

outras leis que vão surgindo no início do século XX, demonstrando, assim, a atualidade dos juristas brasileiros quanto ao pensamento europeu. O primeiro código penal republicano, Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890, em seu artigo primeiro, reproduzia exatamente o pensamento penal moderno de Bentham e Beccaria: “Ninguém poderá ser punido por facto que não tenha sido anteriormente qualificado crime, e nem com penas que não estejam previamente estabelecidas”. Disponível em: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049)>.

90 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2003. p. 81.

91 Ibidem, p. 84.

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se desviar do que podemos chamar de utilidade social; ela não procurará mais visar ao que é socialmente útil, mas pelo contrário, procurará ajustar-se ao indivíduo. Podemos citar como exemplo as grandes reformas da legislação penal na França e demais países europeus entre 1825 e 1850/1860, que consistem na organização do que chamamos circunstâncias atenuantes: o fato da aplicação rigorosa da lei, tal como se acha no Código, pode ser modificada por determinação do juiz ou do júri e em função do indivíduo em julgamento.

Com isso, o autor chama a atenção para outra característica da teoria

penal que surge como conseqüência da tentativa de não deixar escapar da

lei nenhum desordeiro declarado: a circunstância atenuante. Esta vai driblar

o princípio fundamental da teoria beccariana, que consistia na inexistência

de punição sem uma lei explícita que caracterizasse o crime.

Em termos de teoria penal, o século XIX foi marcado pelo surgimento

do termo periculosidade, cuja idéia está atrelada àquilo que o indivíduo

poder vir a fazer e não mais ao fato propriamente efetuado. As infrações

não estão mais ligadas diretamente a uma lei que a defina anteriormente,

mas às suas representações comportamentais.92

Por volta de 1850, os textos jurídicos referentes ao direito penal

passaram a dar destaque à obra “O Homem Delinqüente”, de autoria de

Cesare Lombroso. Essa obra balizou a fundação da criminologia, marcando,

assim, a modernização do pensamento jurídico-penal.

A criminologia desenvolveu uma série de mecanismos destinados à

identificação do criminoso, em termos físicos – a antropometria tem a sua

origem aí – para facilitar a sua identificação antes mesmo da prática de

algum delito. Foi a partir dessa preocupação em caracterizar o criminoso

que surgiram as teorias racistas, que terão muita força na Alemanha, no

período hitleriano, por exemplo.

A partir daí, duas noções passaram a permear a criminologia:

periculosidade ou temilibilidade e a metodologia destinada à classificação

dos criminosos. Assim, duas categorias compuseram o pensamento, tanto

92 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2003.

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de Lombroso quanto de Ferri, normal e anormal, ou seja, homem honesto

versus homem criminoso.93

Entretanto, não bastava classificar o indivíduo como criminoso, era

necessário levar em conta o conceito de crime, principalmente no que se

refere ao direito penal moderno. De acordo com os juristas brasileiros, um

crime só existe quando três elementos estão caracterizados no delito: ação

típica, antijurídica e culpável. Sem a presença desses três fatores, o crime

não está caracterizado.

Cabe ressaltar que a culpabilidade e a responsabilidade se

distinguem, visto a última ser entendida como a relação entre a sanção

imposta como efeito decorrente do delito praticado. Para que se considere o

indivíduo culpado de um crime, deve-se confirmar a sua capacidade de

culpabilidade, por meio da identificação dos três elementos necessários à

sua existência: imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude do ato e,

por fim, a inexigibilidade de conduta diversa.

Brandão define a imputabilidade como “o conjunto de qualidades

pessoais que possibilitam a censura pessoal.” Entende-se, assim, que o

indivíduo imputável é aquele que possui a capacidade de compreender

exatamente a sua ação e as suas possíveis conseqüências, bem como

praticá-la com livre e espontânea vontade.94

Assim sendo, a culpabilidade está atrelada à imputabilidade, que

consiste na consciência de antijuridicidade e à exigência de conduta

diversa. Diante disso, sempre que não se identificar a imputabilidade do

agente delituoso, ele tornar-se-á inimputável.95 Quando a imputabilidade

está ausente, resta excluída a culpabilidade.

Adotando práticas políticas capazes de igualar a sociedade, a

modernidade buscou a eliminação do diferente por meio de práticas

embasadas por diretrizes controladoras dos comportamentos individuais e

coletivos. Ao planejar uma sociedade igualitária, o Estado se colocou como

93 CATALDO NETO, Alfredo et al. Inimputabilidade e doença mental. In: Sistema Penal e

Violência. Coord. Ruth Maria Chittó Gauer. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2006.94 Apud AZEVEDO, Rodrigo G. de. Visões da sociedade punitiva: elementos para uma sociologia do

controle penal. In: Sistema Penal e Violência. Coord. Ruth Maria Chittó. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2006.

95 CATALDO NETO, op. cit. Sobre as discussões acerca da temática da imputabilidade;FERRAJOLI, Luigi. Derecho e razón. 4. ed. Madri: Editorial Trotta, 2000.

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identificador inato de possíveis transgressões, e se julgou capaz de prever

com antecedência qualquer desvio.

A previsibilidade auferida ao Estado por ele mesmo acabou originando

classificações como raça, gênero, sexo, credo, entre outros, termos que, em

vez de reconhecer no outro a diferença e assim tentar assimilá-la, acabou

por excluí-la. Criou, na verdade, um rótulo discriminatório, pois agora os

“outros” podem ser classificados.

Essa prática vai tomar fôlego a partir do século XIX, principalmente

com o desenvolvimento da criminologia e das novas teorias penais voltadas

para a identificação dos potencialmente perigosos, e daí a importância em

se estudar a criança, pois esta passa a receber um tratamento diferenciado

por parte do Estado, e do Direito, a partir desse período, que se iniciou na

Europa e chegou até o Brasil por meio de seus intelectuais do Direito.

Baseado nas teorias modernas sobre crime e criminoso, tornou-se

preocupação do Estado criar espaços especializados para o atendimento

aos criminosos, lugares esses chamados de instituições totais por

Goffman,96 pois controlam e regulam o indivíduo em todas as partes do seu

dia como interno.

Para exercer esse controle acirrado sobre o sujeito institucionalizado

e o seu tempo, o modelo de instituição adotado foi aquele criado por Jeremy

Bentham, conhecido como panopticon, cuja arquitetura previa a vigilância

sem que o vigilante pudesse ser visto. Essa foi uma maneira encontrada

pelo Estado para lançar os seus tentáculos sobre os que causavam a

desordem no sistema definido.

A emergência do Estado moderno e a sua consolidação, conforme os

séculos foram se seguindo, deu ênfase à vigilância individualizada.

Podemos dividir a formação do Estado em dois grandes momentos: o

primeiro e mais extenso vai do século XVII ao XVIII, quando o Estado se

estruturou e sentou base sobre o indivíduo; e o segundo, que, apesar de

mais curto, compreende o século XIX teve as suas transformações mais

aceleradas – a velocidade do tempo e das transformações alterou esse

segundo período muito mais rapidamente do que alterou os anteriores.

96 GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001.

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Na esfera econômica, o capitalismo se constituiu por um sistema

racional dos mecanismos de produção, propriedade privada dos meios

produtivos e uma mão-de-obra contratada. Quanto ao Estado moderno, este

se organizou de maneira centralizada nas esferas jurídica e tributária;

profissionalizou-se militar e politicamente; estruturou o Legislativo,

recentemente estabelecido; deu corpo aos mecanismos legítimos de

violência; e, por fim, estruturou-se burocraticamente.97

O Estado se legitimou pelo predomínio da lei, e passou a agir, após

consolidada a sistemática jurídica, por meio de políticas previdenciárias e

intervencionistas responsáveis pela regulação do mercado nos países

capitalistas mais desenvolvidos do século XIX.98

Apesar desses mecanismos, para ter continuidade o Estado organizou

e orientou os seus súditos de maneira que estes lhe devessem obediência e

reconhecessem o seu líder, bem como os seus instrumentos de dominação.

Tal prática deu origem à burocracia.99 Representante externo das políticas

de dominação, o grupo de funcionários a serviço do Estado não se dedica

ao líder apenas pelo seu caráter legítimo, mas por motivos de ordem

pessoal que dizem respeito ao retorno material que recebe e ao prestígio

social alcançado pelo cargo ocupado, independentemente do grau

hierárquico. Assim, é estabelecida uma relação de dependência entre o

detentor do poder e o seu corpo burocrático.

Essa categoria de funcionários, ao contrário do que acontecia com

seus antecessores a partir da formação dos primeiros Estados, foi

desprovida dos meios de gestão (dinheiro, armas, prédios, entre outros),

podendo ser comparados a funcionários de uma indústria, pois apenas

vendem a sua mão-de-obra pelos motivos já referidos. É assim que o

Estado se mantém, ele retira do funcionalismo os bens produtivos e os

substitui por ganhos regulares e garantidos. Por fim, atribuiu-se à

burocracia estatal apenas a responsabilidade de administrar de forma não-

97 AZEVEDO, Rodrigo G. de. Visões da sociedade punitiva: elementos para uma sociologia do

controle penal. In: Sistema Penal e Violência. Coord. Ruth Maria Chittó. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2006.

98 AZEVEDO, loc. cit.99 WEBER, Max. Ciência e política. Duas vocações. 13. ed. São Paulo: Cultrix, 2005. p. 59.

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partidária o Estado, e não mais a responsabilidade em se posicionar como

representante de um ou outro partido político.

Já no âmbito sociocultural, o processo de modernização substituiu e

racionalizou antigas visões do mundo. Logo, as ações humanas surgidas

com bases racionais acabaram promovendo sentenças autônomas. Em seu

dia-a-dia, o mundo moderno se caracterizou por uma série de

transformações nos padrões sociais, em que a intimidade das sociedades

do medievo foi substituída por uma esfera pública individualista, pela

retração da moral e pela regulação do novo sistema de trabalho.

As transformações também se direcionaram cada vez mais para a

criação de dispositivos sociais e de limitação dos impulsos humanos, a fim

de assegurar a ordem social. Nos casos necessários, buscou-se a

reinserção do indivíduo por meio de mecanismos de controle punitivo, a

serem estabelecidos pelo direito.100

De acordo com Gauer,101

as tradições políticas modernas, desde seu início, assumiram explicitamente não apenas a necessidade de um sentimentocomum racionalizado e homogeneizado, mas também o culto das instituições jurídicas, sem as quais esse sentimento se fragmentaria.

A autora reforça, baseada em Max Weber, que foi a presença do

jurista na sociedade moderna que permitiu que as suas instituições laicas se

organizassem. Ressaltou que muitos pensadores corroboram a idéia de que

foi graças ao direito moderno que se tornou possível a aplicabilidade da

Razão e da organização de uma burocracia institucionalizada.

100 AZEVEDO, Rodrigo G. de. Visões da sociedade punitiva: elementos para uma sociologia do

controle penal. In: Sistema Penal e Violência. Coord. Ruth Maria Chittó. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2006.

101 GAUER, Ruth Maria Chittó. A ilusão totalizadora e a violência da fragmentação. In: Sistema Penal e Violência. Coord. Ruth Maria Chittó Gauer. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2006. p. 10.

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2 A MODERNIDADE E A INFÂNCIA: DO RECONHECIMENTO AO

CONTROLE

O século XVIII, segundo Carlota Boto,102 principalmente a partir da

segunda metade, foi marcado pela fomentação do pensamento pedagógico

e da preocupação com a educação na formação do indivíduo. Segundo

filósofos franceses desse período, como D’Alembert, Rousseau e Diderot, o

homem contribuía para o processo educativo em que estava envolvido.

O investimento na educação como mecanismo de formação de um

novo homem, adequado aos preceitos de liberdade, igualdade, nação, entre

outros, tornou-se um dos ideais da Revolução Francesa, principalmente

alguns anos após a queda da Bastilha, pois era necessário adequar o

indivíduo ao novo tipo de sociedade que se configurava, e objetivando

eliminar qualquer vestígio do Antigo Regime.

Rousseau103 foi o principal inspirador desse movimento pedagógico

que se desenvolveu na França no século XVIII, com Emílio ele balizou não

apenas o reconhecimento das especificidades existentes na criança, como

também incutiu a idéia de que a criança era o projetor da sociedade do

amanhã, por isso da sua importância. Essa idéia fica bastante clara quando

se analisa a passagem da novela rousseauniana, em que afirmou:

Pela ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua vocação comum é o estado de homem; e quem quer que seja bem educado para esse, não pode desempenhar-se mal nos que com esse se relacionam. Que se destine meu aluno à carreira militar, à Igreja ou à advocacia, pouco me importa. Viver é o ofício que lhe quero ensinar. Saindo de minhas mãos, ele não será, concordo, nem magistrado nem soldado, nem padre; ele será primeiramente um homem.104

102 BOTO, Carlota. A escola do homem novo: entre o Iluminismo e a Revolução Francesa. São

Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1996.103 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, Da educação. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.104 Ibidem, p. 23.

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Essa percepção da importância do homem para a existência do

Estado, sem dúvida nenhuma influenciou os revolucionários franceses, pois,

a partir desse pensamento, várias questões acerca da educação se fizeram

presentes nas discussões da Assembléia francesa, a fim de se determinar

qual o melhor caminho a se seguir para possibilitar a existência do homem

novo.

Muitos foram os pontos discutidos sobre a temática educativa dentro

da Assembléia pós-revolução, entre pensadores como Lepeletier, Helvetius,

entre outros. Todavia, um ponto que perpassou foi a importância de se

investir na educação pública, pelo menos enquanto esta fosse importante

para os ideais da revolução, e de forma gratuita apenas no primeiros anos

(de 5 a 12 anos de idade).105

Deve-se ressaltar que, desde a metade do século XVIII, a ênfase na

pedagogia estava voltada para a idéia do Estado, cuja busca da valorização

da infância estava impregnada de valores referentes à perfectibilidade do

homem. Por isso o tema adquiriu importância em todos os meios intelectuais

e foi visto como partícipe do controle estatal sobre os indivíduos, que

buscava cada vez mais se fortalecer. E, para isso, nada melhor do que

moldar o indivíduo desde a mais tenra idade, com os princípios proclamados

pelo ideal de Estado.

Também se percebe no verbete sobre a Educação, inserido na

Enciclopédia, toda uma preocupação, não apenas com o bem-estar do

indivíduo ou do Estado, mas um destaque para a família. A família se torna

importante porque, segundo os intelectuais, principalmente entre os

iluministas, ela deveria ser a responsável pela educação nos seus primeiros

anos, visto ninguém nascer sabendo.106

Sem minimizar a importância da família, em um segundo momento,

por volta dos 5 anos de idade, a educação da criança deveria passar aos

cuidados do Estado, a uma educação pública e gratuita, para que pudesse

105 Não é objetivo desse trabalho apresentar as discussões realizadas entre os pensadores

revolucionários sobre educação, mas apenas ressaltar a importância que estava se dando à educação e, conseqüentemente, à infância para a formação de um novo homem. Para aprofundar mais esse tema BOTO, Carlota. A escola do homem novo: entre o Iluminismo e a Revolução Francesa. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1996.

106 BOTO, Carlota. A escola do homem novo: entre o Iluminismo e a Revolução Francesa. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1996.

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receber os ensinamentos adequados a um cidadão, defensor de sua pátria e

de seu governo.

Quando se fala em criança e educação, não se está pensando apenas

nas classes mais abastadas da sociedade francesa, mas também na

universalização do ensino, como demonstra o próprio verbete que diz:

Que felicidade para um Estado onde os magistrados tenham aprendido a tempo os seus deveres...; onde cada cidadão sabe que, vindo ao mundo, ele recebeu um talento que deve prevalecer; que ele é membro de um corpo político; e que nesta qualidade, ele deve concorrer para o bem comum, buscar tudo o que pode proporcionar vantagens reais à sociedade e evitar o que pode desconcertar a harmonia e perturbar a ordem e a tranqüilidade. É evidente que não existe nenhum tipo de cidadão no Estado para o qual não possa haver um tipo de educação que lhe seja própria; educação para os filhos de soberanos, educação para os filhos dos grandes, para os dos magistrados; educação para as crianças do campo ou, assim como existem escolas para aprender as verdades da religião, deverá haver também aquelas onde serão ensinados os exercícios, as práticas, os deveres e as virtudes do Estado, a fim de que se possa nele agir com maior conhecimento.107

A proposta de uma educação pública, isto é, gerida pelo Estado, tinha

como fundamento o engrandecimento do Estado e, por conseguinte, a

aceitação de seus ditames pela população circunscrita ao seu território.

Com essa prática o Estado estaria resguardado, em caso de ataque externo.

Internamente, a educação poderia evitar que a população se manifestasse

contra o próprio Estado, pois estaria incutida nela a idéia de que ele era o

seu bem-feitor, o protetor dos seus direitos de cidadão.

Além disso, a educação era vista como um bem intrínseco ao

indivíduo, pois, independentemente da situação em que se encontrasse, ou

viesse a se encontrar, o indivíduo não a perderia, já que não era possível

arrancar dele algo que estivesse incutido em sua alma. O mesmo já não

ocorria com os bens materiais, que, dependendo da situação, poderia ser

retirado de sua posse.

107 Encyclopedie apud BOTO, Carlota. A escola do homem novo: entre o Iluminismo e a Revolução

Francesa. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1996. p. 54.

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Existia toda uma preocupação dos ilustrados em torno dos primeiros

anos de vida da criança, por isso se chamava a atenção para uma educação

que a desvencilhasse de imagens que poderiam marcá-la e enchê-la de

superstições, por isso deveriam ser mantidas afastadas de histórias de

fadas, de feitiçarias, horóscopos e tudo o mais que representasse perigo a

seu desenvolvimento racional.

O ideal pedagógico pretendeu romper com todo e qualquer resquício

da Idade Média ou do Antigo Regime, recém derrubado pela Revolução

Francesa, com a finalidade de imprimir uma nova tradição, por meio de

novos hábitos e costumes baseados na razão. Esse era o objetivo do

incentivo à instrução infantil, destruir todo e qualquer resquício dos velhos

hábitos e costumes e incutir os novos nesse novo homem a ser moldado a

partir da Revolução.

Para efetivar a criação desse novo homem, uma série de discussões

ocorreu em torno da forma como a escola deveria ser estruturada, quais os

conteúdos a ser ministrados, por quem e de que maneira, para poder dar

suporte à moldagem do ideal de homem almejado pelos revolucionários

como forma de criar o cidadão francês.108

Para a autora,

liberdade, igualdade e fraternidade eram os novos emblemas de uma pedagogia que deslocara o lugar de seu objeto para erigir o engenho de fabricação do natural. A nova civilidade republicana recorria a novos códigos para recriar a trilha de um futuro, que se supunha inscrito já nesse catecismo cívico da infância.109

Os três elementos defendidos, liberdade, igualdade e fraternidade,

nortearam o sistema pedagógico republicano devido à sua importância para

a formação de espíritos republicanos, ou seja, para a formação de homens

politicamente conscientes da importância da coletividade, da moralidade e

108 BOTO, Carlota. A escola do homem novo: entre o Iluminismo e a Revolução Francesa. São

Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1996.109 Ibidem, p. 102.

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do civismo, elementos necessários ao estabelecimento definitivo da

República.110

A partir do movimento francês, a educação adquiriu uma perspectiva

totalizadora e profética, pois era por meio de sua realização e aplicação que

as mudanças necessárias à sociedade poderiam ocorrer. Mais tarde, o foco

da educação irá se voltar para a infância, pois, como diz Rousseau,111 na

obra base do pensamento francês moderno, o “Emílio, ou, Da Educação” ,

no estado em que agora as coisas estão, um homem abandonado a si mesmo desde o nascimento entre os outros seria o mais desfigurado de todos. Os preconceitos, a autoridade, a necessidade de exemplo, todas as instituições sociais em que estamos submersos abafariam nele a natureza, e nada poriam em seu lugar. Seria como um arbusto que o acaso faz nascer no meio de um caminho, e que os passantes logo fazem morrer, atingindo-o em todas as partes e dobrando-o em todas as direções.

Com todas as transformações ocorridas na modernidade,

principalmente no tocante à visão sobre o homem e o meio no qual está

inserido, a infância passou a ser destacada como ponto fundamental na

construção de uma sociedade idealizada pelos cientistas modernos. Assim,

a ciência também influiu no desenvolvimento e acompanhamento da criança,

primeiro na Europa e depois nos demais continentes, guardadas as devidas

especificidades de cada região.

O historiador Philippe Áries,112 em sua obra sobre a família e a

criança no antigo regime, demonstrou que a gênese do modelo de infância

ocorrida entre os séculos XVII e XVIII ressaltou a fragilidade da criança, a

precisão de discipliná-la. Definindo, assim, o tipo ideal de família para

circundá-las, dentre outras representações das mesmas (família e criança).

Comparando as sociedades medieval e moderna, Ariès constatou que

a duração da infância era circunscrita apenas ao período em que ela se

encontrava em maior estado de fragilidade e, assim que ela se desenvolvia

110 BOTO, Carlota. A escola do homem novo: entre o Iluminismo e a Revolução Francesa. São

Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1996.111 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, Da educação. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

p. 7.112 ARIÈS, Philippe. A criança e a vida familiar no Antigo Regime. Lisboa: Relógio D’Água, 1988.

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fisicamente, já era inserida no mundo dos adultos. De criança muito

pequena, já se tornava um jovem, praticamente um adulto, passando a viver

circunscrito ao meio deles. Não reconhecia a existência de fases no

desenvolvimento humano, como mais tarde vão se identificar.

Conseqüentemente, a educação das crianças e dos jovens ocorria por

meio do contato entre eles e entre eles e os adultos, até mesmo porque

desde muito cedo eles se afastavam de seus pais, distância essa que

assegurava o aprendizado. Era na convivência diária que a sabedoria se

estabelecia, assim como os vícios, as crenças, entre outros, pois estes

eram repassados pelos adultos nos contatos diários promovidos pela

realização das tarefas.

Devido ao pouco tempo de permanência da criança junto aos pais,

bem como o alto índice de mortalidade infantil, as relações afetivas podiam

se tornar muito fracas, quase inexistentes. O pequeno sentimento existente

entre adultos e crianças se dava apenas nos seus primeiros anos, pois eram

vistas como divertimentos pelos adultos. Como diria Ariès, eram “crianças-

brinquedo”, como se fossem qualquer outro tipo de bicho de estimação.113

Após a garantia de sobrevivência da criança, esta era afastada da sua

família por questões de necessidade, pois a função da família não era a

afetividade, não que não existisse afetividade dentro delas, mas sim a:

[...] conservação dos bens, a prática comum de um ofício, a entreajuda quotidiana num mundo em que um homem e, mais ainda, uma mulher não podiam sobreviver isolados; e também, em momentos de crise, a protecção da honra e das vidas.114

As relações afetivas existiam, mas não estavam circunscritas à

família, mas ao grupo, à comunidade onde todas as afetividades e

intercâmbios ocorriam com todos que a compunham, como vizinhos, amigos,

amos, servidores, velhos, jovens e crianças, entre outros, por meio de

113 ARIÈS, Philippe. A criança e a vida familiar no Antigo Regime. Lisboa: Relógio D’Água, 1988.

p. 10.114 Ibidem, p. 11.

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festas, encontros e demais tipos de convivências – por isso da dissolução

das famílias conjugais.

Tais relações sofreram mudanças profundas no final do século XVII,

principalmente por causa de dois fatores, sendo um deles a substituição do

aprendizado pela escola, como forma de educação, que separou a criança

do adulto e promoveu o seu isolamento antes de iniciar a sua caminhada na

vida.

O segundo fator está ligado ao primeiro: a partir do momento em que

se instalou a criança em um espaço próprio, tornou-se necessário impor a

ela disciplina. A disciplina foi responsável pela moralização da criança,

exigida pelos religiosos protestantes e católicos, pelos legisladores, juristas

e homens de Estado, apoiados, logicamente, pela aprovação das famílias,

que viam essa prática como uma benesse para o filho e uma prova de amor

por parte de seus pais.

Nota-se aí que a família mudou a sua configuração quando

comparada à antiga família medieval, pois se tornou um núcleo afetivo e

protetor de seus membros, já que não interessa apenas a honra e a moral,

mas também a educação. Essa prática aumentará ainda mais nos séculos

XIX e XX. A partir daí, a família passa a se organizar em torno dos filhos.115

A criança passou, nesse período, a ser retratada pela iconografia, que

a associava, sobretudo, a anjos e ao menino Jesus, por exemplo, ou aos

demônios. As suas roupas terão características próprias que poderiam

identificar a sua fase de desenvolvimento, que iam desde fitas para facilitar

o seu andar inicial até o uso de calções, para mostrar uma fase mais

“adolescente”.

As grandes mudanças ocorridas nos séculos XIX e XX contribuíram

para a inserção da infância na sociedade moderna. No século XIX,

mudanças mais profundas colocaram a infância no centro das preocupações

sociais. O Estado tomou para si a responsabilidade de salvaguardar a

infância dos males da sociedade. Para realizar essa tarefa, teve como

aliado o Direito e, mais especificamente, as ciências criminais.

115 Para aprofundar mais as questões referentes ao desenvolvimento das relações entre a família e a

crianças, ARIÈS, Philippe. A criança e a vida familiar no Antigo Regime. Lisboa: Relógio D’Água, 1988.

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No Brasil, as questões referentes à “infância em perigo” originaram

tipos de intervenção social, bem como diversos conflitos sobre como

legitimar a sistemática intervencionista, e até como delimitar o agente mais

capaz de realizar tais práticas, principalmente no que se refere à infância

“delinqüente”. Essa foi uma preocupação dos estados no mundo Ocidental.

No caso brasileiro, isso começou no final do século XIX e de certa maneira

esse pensamento se consagrou em 1927, com o Código de Menores.

2.1 O TRATAMENTO PENAL APLICADO ÀS CRIANÇAS NO BRASIL

2.1.1 As Ordenações, o Código Criminal do Império e o Código Penal de 1890

No Brasil colonial a normatização da sociedade era realizada com base

nas ordenações que vigoravam em todo o reino português. Eram aplicadas em

todo o território sem alterações.116 As Ordenações Manuelinas (1521) foram

revisadas a mando do rei Felipe I por estarem desatualizadas, passando a ser

conhecidas como Filipinas (1603). Essas ordenações vigoraram no Brasil até a

sua substituição pelo Código Criminal do Império, promulgado por D. Pedro I

em 1830. Devido à ineficácia das Ordenações, coube às “Leis Extravagantes” a

resolução dos vácuos não-preenchidos pelas mesmas. Versavam, sobretudo,

sobre questões de ordens legais comercias. A uniformização da aplicação e

interpretação das leis só se tornou efetiva com as Reformas Pombalinas.117

Tais regras foram chamadas de “Lei da Boa Razão” (1769).118

116 Não é objetivo desse trabalho reconstituir a chegada e a instalação dos portugueses em terras

brasileiras, muito menos explicitar todas as práticas administrativas tentadas pelo menos durante a ocupação, mas direcionar a temática para a questão do direito penal aqui implantado. Para maiores esclarecimentos sobre o período colonial brasileiro. FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo: Edusp, 2001.

117 No tocante ao ensino do Direito, as Reformas Pombalinas se dedicaram à implementação de um direito estruturado na razão humana, característica que dá forma à igualdade entre os indivíduos. Baseada nessa idéia racionalista, a Comissão responsável pela implantação da nova sistemática em Coimbra substitui o velho direito do corpus juris civilis pelo jusnaturalismo. Pode-se considerar a “Lei da Boa Razão” como o primeiro passo para a modernização do Direito português e a certeza de que as leis não seriam suplantadas pelos costumes. GAUER, Ruth Maria Chittó. A modernidade portuguesa e a reforma pombalina de 1772. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. 129 p.

118 WOLKMER, Antônio Carlos. História do direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 170 p.

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Ao se tratar das Ordenações, principalmente no tocante aos crimes,

era,

[...] conhecida a sagacidade com que as Ordenações tratavam as questões criminais. A violência das penas e a obsessividade com questões sexuais e extravagantes119 eram outras de suas características marcantes, o que indica a insuficiente separação das questões religiosas e morais.

As Ordenações, assim como as demais legislações penais européias,

traziam em seu texto o peso dos suplícios e das penas desmesuradas

contra o apenado, demonstrando praticamente a falta de equilíbrio ente o

delito e a pena, questão que será levada em conta na elaboração do Código

Criminal de 1830.120

Dentre todos os crimes e penas apontados nas Ordenações, e que

consiste no foco deste trabalho, diz respeito ao tratamento destinado aos

“menores”, que estavam assim classificados, segundo o título CXXXV,

“Quando os menores serão punidos por os delitctos que fizeram”:

a) acima dos 20 anos de idade – pena total, como se tivesse mais

de vinte e cinco anos;

b) entre 17 e 20 anos de idade – a pena do delito ficaria a cargo dos

Julgadores, que poderiam dar a pena total ou diminuí-la;

c) abaixo de 17 anos de idade – caso o delito merecesse “morte

natural”, esta não seria aplicada, ficando a pena do delinqüente a

critério dos julgadores e abaixo do indicado. Caso não fosse

necessária aplicação da pena de morte natural, a mesma estaria

inserida no Direito Comum.121

119 As leis extravagantes eram aquelas que não apareciam nas Ordenações ou em outros Códigos

portugueses. SILVA, Mozart Linhares da. Do império da lei às grades da cidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. 243 p.

120 Sobre a transformação das penas de suplício. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 28. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. 262 p.

121 Ordenações filipinas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985. v. 3. (Livros IV e V). p. 1311.

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Percebe-se que o pouco de que tratou a legislação sobre os crimes

praticados por menores encerrou todos abaixo dos 17 anos de idade, sem

reconhecer a existência das fases da infância. Isso fica mais claro se

cruzarmos estas informações com o que apontou Áries,122 quando afirmou

que a visão da existência da infância foi um processo que sofreu

transformações na Europa e no mundo Ocidental com o passar dos séculos,

como já comentado no capítulo anterior.

Dentre os vários acontecimentos que marcaram o território brasileiro

no século XIX, a Independência foi o primeiro passo para um rompimento

definitivo com Portugal. Com a independência, o direito penal continuou

sendo guiado pelas Ordenações Filipinas, mas já se estava elaborando o

projeto de uma legislação mais moderna e em sintonia com as

transformações científicas, culturais, políticas e econômicas que estavam

em voga na Europa, e chegavam ao Brasil por meio, principalmente, dos

egressos de Coimbra.123

Esse processo de “reeuropeização” influenciou as instâncias políticas,

sociais econômicas do recém-nascido Estado-nação e de Direito124

brasileiros. Entretanto, deve-se ressaltar que a formação do Estado-nação e

do Estado de Direito no Brasil são anteriores à sua independência, ambas

as situações foram fortemente influenciadas pelos egressos da Universidade

de Coimbra, que para cá trouxeram os conhecimentos adquiridos.125

Para Silva,

não podemos considerar, no entanto, a legislação pós independência como um simples continuísmo ou acúmulo de experiências da legislação portuguesa colonial. O Brasil, quando

122 ARIÈS, Philippe. A criança e a vida familiar no Antigo Regime. Lisboa: Relógio D’Água, 1988.123 Para saber mais sobre a importância que os egressos de Coimbra tiveram para o Brasil, GAUER,

Ruth Maria Chittó. A construção do Estado-Nação no Brasil. A contribuição dos egressos de Coimbra. Curitiba: Juruá, 2001.

124 O Estado de Direito consiste no “[...] Estado no qual todo poder é exercido no âmbito de regras jurídicas que delimitam sua competência e orientam (ainda que freqüentemente com certa margem de discricionaridade) suas decisões. Ele corresponde àquele processo de transformação do poder tradicional, fundado em relações pessoais e patrimoniais, num poder legal e racional, essencialmente impessoal [...]”. BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 148.

125 Para saber mais sobre a importância dos egressos de Coimbra paro Brasil. GAUER, Ruth Maria Chittó. A construção do Estado-Nação no Brasil. A contribuição dos egressos de Coimbra. Curitiba: Juruá, 2001.

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de sua organização legislativa, mesmo aproveitando a experiência lusitana no que se refere ao aparelho jurídico, adquiriu características peculiares a sua nova situação política, assim como aproveitou o que de melhor existia no direito da época. Acima das nuanças políticas e sociais, o direito brasileiro foi ‘poroso’ às idéias do direito moderno.126

Enquanto ainda vigoravam as Ordenações Filipinas, as mudanças da

época acabaram influenciando intelectuais portugueses, como Pascoal José

de Melo Freire, professor na Universidade de Coimbra. Este elaborou um

projeto de direito criminal visivelmente influenciado pelo italiano Beccaria.

Mesmo não se tornando lei, essa proposta se destacou porque lançou as

bases do espírito reformador dos portugueses quanto às questões penais,

que acabou chegando até as terras brasileiras.127

Essa influência tornou o Brasil, segundo Siqueira,128 pioneiro na

codificação das leis penais, se comparado,

[...] a Portugal, a Hespanha e a diversas repúblicas americanas, e ainda salientemente, porque, attendendo á época e ao estado da sciencia, o código se destacava como um monumento legislativo, onde até originalmente se crystallisáram principios ora patrocinados pela escola criminal italiana, ou por ella apontados como fundamento da theoria positiva de repressão, taes como a satisfação do damno ex delicto como materia do proprio juízo criminal [...], a co-delinquencia considerada em si mesma como agravante [...].

Além do advento do humanismo, as idéias liberais que varreram a

Europa e a América pós-revoluções contribuíram para a supressão das

Ordenações. Estas foram se tornando obsoletas porque não compreendiam

mais as situações políticas e jurídicas existentes no Brasil independente.

Elas representavam os desejos do rei (Executivo), não reconheciam a

126 SILVA, Mozart Linhares da. Do império da lei às grades da cidade. Porto Alegre: EDIPUCRS,

1997. 243 p.127 WOLKMER, Antônio Carlos. História do direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 170 p.128 SIQUEIRA, 1921 apud SILVA, Mozart Linhares da. Do império da lei às grades da cidade.

Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 85.

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divisão dos poderes, as exigências impostas pelo liberalismo, e muito

menos a existência de uma separação entre o público e o privado.129

Passado o movimento de 1822, que tornou o Brasil independente em

relação à metrópole lusitana, tornou-se necessária a reestruturação do

aparato jurídico em substituição ao dos portugueses. Assim, após

controvérsias, e de inspiração liberal, outorgou-se, em 1824, a Carta

Constitucional do império brasileiro.130 Entretanto, mudanças não pararam

por aí.

Diante da necessidade de se abrasileirar as leis do Brasil, foi

consentida, por meio de uma proposta elaborada em 1826, a criação de

faculdades de Direito. Daí resultou a fundação de dois centros de ensino,

um em Olinda – mais tarde transferido para o Recife (1856) –, e outro em

São Paulo, ambos com a intenção de contemplar a região Norte-Nordeste e

Sul, respectivamente.131 A trajetória de ambas as faculdades foi marcada

por divergências teóricas, pois, enquanto a de São Paulo era influenciada

pelas idéias liberais, a de Recife estava mais voltada às questões de

raça.132

Dando seqüência ao processo de elaboração de códices, em 1827

começaram a ser redigidos projetos destinados à criação de um código

penal brasileiro, estes sofreram as influências das idéias modernas com

base no liberalismo do século XIX. Em 1830 foi promulgado o primeiro

Código Criminal do Império do Brasil.

O Código de 1830 refletia o processo de transformação ligado às leis

penais e criminais que estavam em vigor na Europa, que tinham no

humanismo a sua principal influência.133 Após o seu decreto, tornou-se

necessária a organização do rito processual, que foi estabelecida em 1832

129 SILVA, Mozart Linhares da. Do império da lei às grades da cidade. Porto Alegre: EDIPUCRS,

1997. 243 p.130 Não cabe neste trabalho tratar de questões que envolveram a elaboração da Constituição de

1824. Para mais detalhes: GAUER, Ruth Maria Chittó. A construção do Estado-Nação no Brasil. A contribuição dos egressos de Coimbra. Curitiba: Juruá, 2001. 338 p.

131 Fundada em 1828, a Faculdade de Olinda reproduziu os mesmo moldes adotados na Faculdade de Direito de Coimbra, inclusive no modelo dos trajes utilizados pelos alunos, mesmo com o calor nordestino. Todavia o que diferenciava uma da outro era a postura dos alunos e dos professores de Olinda, famosos pelo seu descaso com as aulas.

132 SILVA, Mozart Linhares da. Do império da lei às grades da cidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. 243 p.

133 Para saber mais sobre o surgimento e estabelecimento do humanismo: BAUMER, Franklin B. O pensamento europeu moderno. v. I e II. Lisboa: Edições 70, 1990.

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por meio do Código de Processo Criminal. No que se refere a esse fato,

Gauer diz que:

[...] a modernização que o Código de 1830 trouxe foi fundamental para o Brasil. Após a sua promulgação, se fez necessário disciplinar o processo criminal. O projeto do Código de Processo Criminal foi redigido em 1831 por uma comissão mista do senado e da câmara, sendo redator Alves Branco, formado em Leis por Coimbra, em 1823. A modernização na estrutura das instituições brasileiras possibilitou reformas administrativas que desenharam um novo perfil em nossa sociedade.134

O Código estava dividido em duas partes: a primeira referente aos

crimes e às penas; e a outra, aos crimes públicos. Cada parte estava

subdividida em títulos, que se compunham de capítulos com artigos.

Apresenta um total de 165 artigos, distribuídos da seguinte forma: 67 na

parte um; e 98 na parte dois. O que nos interessa nesta pesquisa são

aqueles artigos que compõem a primeira parte do códice, mais

especificamente os referentes à definição de crime e aqueles destinados

aos crimes praticados por crianças.

Quanto à definição de crime, o código dizia que:

Art.2.º - Julgar-se-há crime ou delicto:1.º Toda a acção, ou omissão voluntária contraria ás Leis penaes.2.º A tentativa do crime, quando for manifestada por actos exteriores, e principio de execução, que não teve effeito por circunstancias independente da vontade do delinquente.Não será punida a tentativa de crime ao qual não esteja imposta maior pena, que a de dous mezes de prisão simples, ou de desterro para fora da Comarca.3.º O abuso de poder, que consiste no uso de poder (conferido por Lei) contra os interesses públicos, ou em prejuízo de particulares, sem que a utilidade publica o exija.135

134 GAUER, Ruth Maria Chittó. A construção do Estado-Nação no Brasil. A contribuição dos

egressos de Coimbra. Curitiba: Juruá, 2001. p. 307.135 BRASIL. Codigo Criminal do Imperio do Brazil. Disponível em:

<http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=81882>.

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Quanto aos menores, no artigo 10, o Código previa que os menores

de 14 anos não seriam julgados criminosos. Entretanto, no artigo 13, um

novo elemento é levado em consideração quanto à prática de delito pelos

menores de 14 anos, que consiste no discernimento.136 Nesse caso, os

delinqüentes deveriam ser encaminhados às Casas de Correções, pelo

tempo que o juiz julgasse necessário, com a ressalva de que o tempo da

pena deveria respeitar o limite de 17 anos de idade do apenado.

Outra característica da modernidade do Código é a questão do

atenuante dos crimes, medida inscrita no artigo 18. Com referência aos

menores, o parágrafo 10 do mesmo artigo previa que era circunstância

atenuante do delito o réu ter menos de 21 anos de idade. Além disso,

mencionava que, caso o delinqüente fosse menor de 17 e maior de 14 anos,

caberia ao juiz lhe impor a pena de cumplicidade.

Finalizando, no artigo 45, o Código, no que se refere à pena das

galés,137 previa que esta nunca deveria ser aplicada aos menores de 21

anos, deveria ser substituída por uma pena de prisão com trabalho pelo

mesmo tempo determinado pela pena das galés.

Como foi demonstrado, não somente as penas mencionadas e

destinadas aos delinqüentes menores de 21 anos, mas todas as previstas

no Código Criminal de 1830 estiveram amparadas no ideário iluminista do

direito de punir. Estas variaram de condenação à morte, à prisão simples ou

com trabalho, às galés, ao degredo, ao banimento, ao desterro, a multas e,

por fim, à suspensão ou à perda de emprego público.138

Pode-se dizer, assim, que os anos iniciais do Império foram marcados

pela capacidade demonstrada pelos brasileiros de organizar juridicamente o

Estado, sem deixar de se mencionar o papel fundamental dos egressos de

Coimbra, que trouxeram em suas bagagens uma moderna visão do Direito

natural e a da tradição jusnaturalista. Coube a eles não apenas a

organização jurídica do País, também a sua condução administrativa e

136 A questão do discernimento será aprofundada mais adiante, juntamente com a da imputabilidade.137 Consistia em trabalhos forçados a serem realizados em locais públicos, com os condenados

presos a ferros, individualmente ou em grupo. KOERNER, Andrei. Punição, disciplina e pensamento penal no Brasil do século XIX. Lua Nova. São Paulo, n. 68, p. 205-42, 2006.

138 KOERNER, Andrei. Punição, disciplina e pensamento penal no Brasil do século XIX. Lua Nova.São Paulo, n. 68, p. 205-42, 2006.

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política, mas inclusive o papel de construtores do Estado-nação.139 Pode-se

dizer que o art. 55, do Código de 1830, representou a maior evolução da

legislação penal, inovação que persiste ainda nos dias atuais. Influenciado

pelos egressos de Coimbra, o referido artigo permitia a imposição de uma

pena por meio de pagamento de multa, cujo valor era estipulado de acordo

com as condições dos réus. Deveria ser aplicada sempre que a lei não

determinasse outro modo de penalização do réu.

Foi a partir de 1870, já na Escola de Recife – devido à sua influência

no direito brasileiro –, que temas sobre o direito penal passaram a ser

discutidos e aprofundados acerca da criminalidade e do papel do Estado

como centro irradiador de punição e controle dos delitos. Nela foi muito

influente o pensamento criminológico oriundo da escola italiana difundido

por meio de seus ícones (Lombroso, Ferri, Garofalo).140

A geração de 1870, nascida dos bancos escolares de Recife, foi

importante porque se constituiu no intelecto do direito brasileiro. Eles

abriram caminho para a ciência e a política do século XX. A mescla das

influências da geração de 1820, formada em Coimbra com as da geração de

1870, saída de Recife, marcou consideravelmente a reestruturação do

sistema penal e prisional do Brasil.141

Proclamada a República em 1889, o Brasil passava por um período de

intensas transformações políticas, econômicas, culturais e sociais, que

vinham se configurando desde a formação do Estado brasileiro pós-

independência, pois era necessário se adequar a nova forma de governo à

sociedade industrial.

Ao se estudar a vida pública e se buscar identificar a história das

idéias políticas que deram origem às instituições políticas no Brasil, nota-se

que os projetos que fizeram parte da criação delas foram traçados visando à

criação de uma nação. As discussões acerca das instituições estavam

envoltas em problemas que abrangiam a visão do homem universal e do

139 GAUER, Ruth Maria Chittó. A construção do Estado-Nação no Brasil. A contribuição dos

egressos de Coimbra. Curitiba: Juruá, 2001.140 SILVA, Mozart Linhares da. Do império da lei às grades da cidade. Porto Alegre: EDIPUCRS,

1997. 243 p.141 Para aprofundar a temática prisional do Brasil, SILVA, Mozart Linhares da. Do império da lei às

grades da cidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. 243 p.

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Brasil, e não apenas as questões de ordem conflituais, ou seja, “oligarquias”

cafeeiras versus militares, ou “coronéis” versus idealistas políticos.142

Para Cancelli, os pensadores brasileiros representavam uma mescla

de pensamentos, pois uma diversidade de visões sobre o mundo era

identificável neles, e muitos dos seus ideais vão se refletir na sociedade

brasileira, principalmente entre o fim do século XIX e início do XX,

transformando-se, então, em uma chamada cultura do crime e lei,

demonstrando, dessa forma, a complexidade existente na formatação da

sociedade brasileira.143

Enquanto se instalava, a República se estruturava e criava novos

símbolos para um novo país sob o desígnio da “ordem” e do “progresso” –

princípios que se encontram até hoje em nossa bandeira –, apoiada em um

nacionalismo vindouro de 1880, engajado na industrialização interna, que

deu origem à dicotomia trabalho-vadiagem. Contrapõem-se, nesse dualismo,

o imigrante e o homem nacional, caracterizado pelo ex-escravo.144

Questões sobre a superioridade da raça branca sobre a negra

vigoravam não apenas entre os teóricos – tanto brasileiros quanto

estrangeiros –, mas também fazia parte do discurso e das práticas

profiláticas das autoridades em seu dia-a-dia. Foi nesse palco que as crises

internas se agravaram, com o aumento da criminalidade em todas as

regiões do País.

Fato é que existiram divergências e semelhanças entre as idéias

acerca da construção de uma identidade nacional. Estas tampouco se

restringiram apenas às questões de meio e raça, tão em voga no século

XIX. Pelo contrário, fizeram parte de um movimento intelectual repleto de

contraposições e diferenças. Foi um tempo inovador que se deu em terreno

brasileiro não apenas no que se refere à intelectualidade, mas também no

campo cultural, jurídico e político.145

Vários positivismos e liberalismos concorreram ativamente, tanto que

deixaram suas marcas indeléveis na “cultura do crime e da lei” existente no 142 CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei: 1889-1930. Brasília: Universidade de Brasília,

2001. 268 p.143 CANCELLI, loc. cit.144 SANTOS, Marco Antônio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In: PRIORE,

Mary Del (org.). História das crianças no Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006. 145 CANCELLI, loc. cit.

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Brasil, bem como na visão de mundo elaborado por aqueles que se diziam

cientistas e donos da verdade, como afirma Cancelli.146

O início da república brasileira, como não poderia deixar de

acontecer, trouxe consigo um largo conhecimento sobre a assistência à

infância desvalida, principalmente quanto à educação e à instrução

populares, devido à herança dos tempos do Império.

Entretanto, motivado pelas influências das revoluções francesa e

norte-americana, dos ideais de progresso e de civilização que nortearam os

sistemas educacionais de todo o mundo ocidental, a recém-instalada

república brasileira, herdeira de um largo conhecimento sobre a assistência

à infância desvalida, cujas origens remontam à Colônia e ao Império,

continuou se dedicando aos interesses da infância.

O foco central do período republicano foi a identificação e o estudo

dos grupos sociais que necessitavam de proteção e correção, pois, para

alcançar o progresso, era necessária a disciplina, principalmente. A partir

daí, os abrigos para menores, até então sob a responsabilidade dos

organismos religiosos, vão se tornando instituições educacionais

secularizadas, e muitas vezes estatais.

Várias discussões em torno da assistência à infância ocorreram

apoiadas no ideal de construção de uma nação verdadeiramente

republicana. Palco desses embates foram os congressos internacionais

realizados pelos intelectuais brasileiros (juristas, médicos, políticos, entre

outros), cujas temáticas se referiam à assistência social, à medicina

higienista e ao ordenamento jurídico dos menores.147

Os especialistas passaram a cobrar do Estado uma atuação

centralizada para o processo de assistência, pois a existente se parecia

mais com beneficência estatal, já que não seguia os moldes científicos em

voga. Entretanto, não bastava apenas a adaptação dos mecanismos

assistenciais oficiais aos modelos científicos, tornava-se necessário a

legalização dos mesmos frente à sociedade.

146 CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei: 1889-1930. Brasília: Universidade de Brasília,

2001. p. 17.147 RIZZINI, Irene. A institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e desafios do

presente. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO; São Paulo: Loyola, 2004. 94 p.

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Em São Paulo, por exemplo, desde o século XIX, segundo Santos,148

quando se iniciaram os levantamentos estatísticos dos crimes, os menores

sempre fulguravam entre eles como praticantes de desordens, gatunagem,

defloramentos, vadiagem, entre outros delitos, sendo os adultos

predominantemente os agentes dessas práticas.

Os menores, para o autor, por meio de malícia e desenvoltura,

punham as suas estratégias em prática, então, como forma de

sobrevivência. Entretanto, tal realidade não era apenas privilégio de São

Paulo, outros estados como o Rio Grande do Sul também estavam sofrendo

com a “delinqüência” de menores e com outras situações ligadas à infância.

Tal situação era vista principalmente nas cidades devido ao seu

desenvolvimento acelerado, que acentuou ainda mais as diferenças sociais

existentes, e demonstrou a incapacidade e ineficiência das autoridades em

resolver tais questões, quer no plano nacional, quer no plano estadual, no

que se referia à infância.

Instaurada a República, juristas e legisladores se dedicaram à criação

de uma legislação penal mais adequada aos novos tempos e à nova

realidade brasileiros, em substituição aos velhos códigos imperiais,

principalmente o Código Penal de 1831, e isso se deu em 1890, pelo

Decreto nº 847, de 11 de outubro.

A influência da Escola Positiva no Brasil pode ser observada no

Código Penal de 1890, que dividia espaço, ainda, com os resquícios da

Escola Clássica de Direito.149 Mesmo com essa mistura de idéias, nota-se

em ambas um olhar sobre a criminalização do indivíduo. Mistura

148 SANTOS, Marco Antônio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In: PRIORE,

Mary Del (org.). História das crianças no Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006. 149 Os membros da Escola Clássica de Direito “[...] postulavam, em primeiro lugar, que as condições

socialmente determinadas conduziam ao comportamento desviado, razão pela qual todo indivíduo podia apresentar um comportamento desviado. O objeto da reflexão teórica não seria o autor, o criminoso, mas o ato criminal em si. Assim, os olhos deveriam estar voltados para a relação da sociedade com o indivíduo por meio da ação, ou seja, procura-se o tratamento do crime (daí o surgimento da penologia). A saída da comunidade social para livrar-se do problema criminal seria, por isso, reativa, já que a ação se converteria em um delito ao romper o contrato social. Para efeitos de diagnóstico, os males que levariam ao ato criminal seriam sociais. A pena convertia-se em castigo pelo crime.” CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei: 1889-1930. Brasília: Universidade de Brasília, 2001. p. 32.

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incompatível que transformou o Código Penal alvo de severas críticas por

suas “imperfeições jurídicas, falhas técnicas, omissões”.150

A inserção da Escola Positiva no Brasil, além de simbolizar o

rompimento com a Escola Clássica, correspondeu às transformações sociais

que estavam ocorrendo na virada do século XIX para o século XX. A nova

tipologia de crimes e contravenções se ajustava perfeitamente à nova

sociedade brasileira do período, pois seu terreno estava fértil para o

alojamento dos mesmos.151

Juntamente com os vários crimes que surgiram, novos sujeitos

também floresceram no mundo dos delitos: o cáften profissional, o menor

infrator e o menor abandonado.152 Desses rótulos, o termo menor aos

poucos passou de identificador a estigmatizador, e se mantém em uso boa

parte do século XX, como veremos mais adiante.

Cancelli, no que se refere ao estudo da criminalidade, diz que:

Cumpre enfatizar que, do ponto de vista analítico, é impossível estudar o contexto criminal sem entender que a partir do final do século XIX todo o processo dos rituais, da simbologia, do pensar e da atuação dos atores e do inventário ético encontra-se assentado no indivíduo, no seu comportamento e em preceitos de uma narrativa mítica que institui um mundo constituído, fundamentalmente, de criminosos e não criminosos. As chamadas ‘classes perigosas’, que tão facilmente foram incorporadas ao jargão de nossa historiografia, repousam também no saber da Medicina Legal, que, próxima da Polícia e do Judiciário, se torna a grande coqueluche intelectual dos médicos na virada do século XIX para o XX. Daí os estudos sobre o criminoso, o alcoolismo, e epilepsia, a prostituição, a embriaguez e a alienação. Higienizar e moralizar as cidades, antes de tudo, significará combater a degenerescência do indivíduo para a coletividade, em nome da ciência e não do indivíduo.153

No início da República, o Direito era composto por um grupo de

normas que tinha em sua base a preocupação com a criminalidade das ruas.

Em outras palavras, o texto jurídico e os efeitos de suas regras eram, e

150 CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei: 1889-1930. Brasília: Universidade de Brasília,

2001. p. 32.151 Ibidem, 268 p.152 CANCELLI, loc. cit.153 Ibidem, p. 51.

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continuam sendo até hoje, práticos e destinados à sociedade. Assim, os

seus agentes (aparatos judiciário e policial), já investido da competência

técnica, também assumiram a responsabilidade social. Possuidores de

ambas as competências, tornaram as suas práticas legítimas frente ao

mundo social vigente. Com isso, tornava-se cada vez mais uma cultura

jurídica voltada à proteção dos bens e dos indivíduos. 154

A criminalidade, como refere Cancelli, tornou-se uma excelente

fornecedora de cobaias para todos os tipos de instituição (prisionais,

psiquiátricos, entre outros). Com base nos diagnósticos, tentava-se aliar o

Direito à Ciência a fim de responder às questões suscitadas em torno dos

“segredos” contidos nos criminosos durante o rito processual: instrução,

julgamento, execução. Ou até mesmo encontrar o ponto de origem e de

desenvolvimento da delinqüência nos indivíduos, como hereditariedade e

biologia, por exemplo.155

Além da ciência, o método quantitativo, principalmente a estatística,

tornou-se importante porque, por meio dos dados, estariam certificadas as

tendências relacionadas à criminalidade, e por aí seria justifiicada a

intervenção preventiva pelos órgãos policiais; e do Estado, como defensor

da sociedade em detrimento do indivíduo.156

Uma forte corrente de pensadores acreditava piamente no potencial

da ciência e na preponderância da razão humana para o encaminhamento

do homem ao progresso, pois dentro da ordem a civilização suplantaria a

barbárie. E, para isso, era necessário que o destino das novas gerações

fosse acompanhado e bem cuidado, tanto física quanto mentalmente.157

O destino da civilização, então, foi deixado em mãos pequeninas.

Dessa forma, as crianças das classes ditas “perigosas” – leia-se os pobres

–, passaram a receber atenção redobrada, com direito à educação básica e

profissional, ao cuidado com o corpo, à higienização dos hábitos e, por fim,

à disciplina dura. Tudo isso era necessário porque era preciso que esses

154 CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei: 1889-1930. Brasília: Universidade de Brasília,

2001. 268 p.155 CANCELLI, loc. cit.156 CANCELLI, loc. cit.157 MARCÍLIO, Maria Luiza. O menor infrator e os direitos da criança no século XX. In: LOURENÇO,

Maria Cecília França (org.). Direitos humanos em dissertações e teses da USP: 1934-1999. São Paulo: Ediusp, 2000. p. 39-49.

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pequenos se tornassem bons cidadãos, afeitos ao trabalho e submissos às

regras impostas pela sociedade na qual estavam inseridos.

Mesmo que de forma simplificada, essas práticas podem ser vistas

como as bases de uma filosofia “filantrópica-liberal-científica”, que deram

esteio ao que seria considerado o primeiro projeto nacional brasileiro

dedicado à política pública, principalmente voltada para a infância pobre: o

Código Penal da República, de 1890. Para Marcílio, o Código:

[...] marca a primeira grande fase de atuação do Estado frente ao menor infrator. O ministro da Justiça e Negócios Internos, o médico e jurista Campos Sales, atacou a questão social da infância em cinco pontos fundamentais: a imputabilidade absoluta; o tratamento diferenciado para os menores infratores; os lugares especiais para o recolhimento dessas crianças; a vadiagem infantil, e o comportamento sexual das meninas.158

Foi com o aceno do Código de 1890 que começaram a aparecer nas

cidades as primeiras grandes instituições de privação de liberdade

destinadas aos menores, que tinham como características as práticas

profiláticas e correcionais. Depois de criados, estes espaços começaram a

receber os seus hóspedes, as crianças pobres que, segundo os

especialistas sociais, necessitavam de fiscalização terapêutica e/ou

preventiva. Seus rótulos variavam: “sem família”, “com família patológica”,

“com degenerescência hereditária”, “sem condições financeiras ideais”,

“filhos de pais despreparados”, “habituais no vício”, e outras nomenclaturas

que seguiam essa mesma lógica.159

Com relação ao Direito Penal no Brasil, podem ser delimitados três

momentos específicos. O primeiro diz respeito a 1822, cujas Ordenações

Filipinas, herança dos tempos coloniais, continuaram em vigor. O segundo

momento se refere a 1831, quando começou a vigorar o primeiro Código

Criminal Brasileiro, aprovado por D. Pedro I, que substituiu as ordenações

do tempo dos portugueses. E, por fim, o Código Penal dos Estados Unidos

158 MARCÍLIO, Maria Luiza. O menor infrator e os direitos da criança no século XX. In: LOURENÇO,

Maria Cecília França (org.). Direitos humanos em dissertações e teses da USP: 1934-1999. São Paulo: EDIUSP, 2000. p. 40.

159 Ibidem, p. 41.

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do Brasil, promulgado em 1890 pelo Governo Provisório instalado com a

instauração da República em 1889.

Esse conjunto de leis penais era dividido em quatro livros,

subdivididos em títulos, contendo um total de 412 artigos. Seis títulos

compunham o primeiro livro, e discorriam sobre: aplicação e efeitos da lei

penal; crimes e criminosos; responsabilidade criminal, causas que dirimem a

criminalidade e justificam os crimes; circunstâncias agravantes e

atenuantes; penas, seus efeitos, sua aplicação e tipos de execução; e

extinção e suspensão da ação penal e condenação. O livro segundo era

composto de dezessete títulos, apresentando vários tipos de crime, que

compreendiam aqueles contra a República, contra os indivíduos (menores,

pessoa, famílias, entre outros) e todo o tipo de propriedade (particular,

pública). Os livros três e quatro tratam, respectivamente, de contravenções

e das disposições gerais.160

Em seu artigo 7º, definiu o crime como “[...] violação imputável da lei

penal.” Uma mudança de postura, se o comparamos com o código anterior

(Art. 2º). Também se alterou a visão acerca dos períodos da infância, como

pode ser observado no artigo 27, que determinou que os menores de 9 anos

completos, e os maiores de 9 anos e menores de 14 anos, que tivessem

praticado o delito sem discernimento, não deveriam ser considerados

criminosos. No antecessor, ressaltava-se o discernimento, mas não se

reconheciam as etapas da infância. E, por fim, aos maiores de 9 anos e

menores de 14 que tivessem praticado delito com discernimento, caberia

encaminhamento dos mesmos a instituições industriais por tempo

determinado a critério do juiz, com a ressalva de não exceder à idade de 17

anos do delinqüente. Essa prática era semelhante à proferida pelo Código

de 1830. No que se refere às questões atenuantes de crime, o Código de

1890 não inovou se comparado ao seu antecessor, pois continuava a ser

fator atenuante o fato de o praticante do crime ter menos de 21 anos de

idade.

160 Ressalta-se que o interesse deste trabalho se circunscreve apenas aos livros I e II, pois nestes se

encontram os artigos referentes aos menores, principalmente aos delinqüentes.

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Outra inovação do código penal republicano com relação ao imperial

residiu na questão referente às penas e aos seus efeitos, bem como à sua

aplicabilidade e à forma de execução, conforme apontam os artigos 49 e 65,

do primeiro. O primeiro artigo prevê pena disciplinar a ser cumprida em

estabelecimento industrial específico, com permanência do menor até

completar os seus 21 anos de idade. No Código anterior, a idade máxima

era de 17 anos, nas galés. Quanto ao artigo 65, ao delinqüente maior de 14

anos e menor de 17 deveria ser aplicada pelo juiz a pena de cumplicidade,

prática que se manteve desde o código anterior.

A legislação penal republicana atribuiu 4 fases à vida infantil, como

aponta Siqueira,161 demonstrando que aos poucos as legislações penais vão

reconhecendo a existência de uma fase especial do ser humano,

representada pela infância, assim apresentada:

FASE IDADE SITUAÇÃO JURÍDICA

InfânciaTérmino aos 9 anos de idade completos

Presumpção absoluta de irresponsabilidade.

Impuberdade162 Dos 9 anos aos 14 anos incompletos

Presumpção relativa ou juris tantum de irresponsabilidade, pois os impúberes não são considerados criminosos se obrarem sem discernimento.

Menoridade163 Dos 14 anos aos 21anos incompletos

São considerados responsáveis pelos seus atos, no caso de delinqüência, salvo de apresentarem alguma causa que os tornem irresponsáveis.

Maioridade A partir dos 21 anos completos

Responsabilidade sobre os atos praticados, com atenuantes de acordo com as ressalvas contidas no Código Penal.

161 SIQUEIRA, Galdino. Direito Penal Brazileiro: (segundo o Código Penal mandado executar pelo

Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890, e leis que o modificaram ou completaram, elucidados pela doutrina e jurisprudência). Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. 2 v.

162 Pelo Código Civil de 1916, eram considerados absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de dezesseis anos (Art. 5º). No artigo seguinte, o referido Código considerava incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer, os maiores de dezesseis anos e os menores de vinte e um anos de idade. Após completar vinte e um anos, o indivíduo estava habilitado para exercer todos os atos civis. Com o Código Civil de 1916, a impuberdade foi ampliada para 16 anos de idade. BRASIL. Código civil: lei n. 3.071, de 1-01-1916, atualizada e acompanhada de legislação complementar, índices sistemático e alfabético-remissivo do código civil, cronológicos da legislação e alfabético da legislação complementar, e da lei de introdução. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. 904 p.

163 Os delitos cometidos entre os 18 anos completos e os 21 anos são penalizados com circunstâncias atenuantes; no caso de menores com idade inferior a 17 anos, aplica-se a pena de cumplicidade. SIQUEIRA, loc. cit.

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O Código de 1890 definiu o crime como as violações imputáveis e

culposas perante a lei penal, sendo que os menores de 9 anos incompletos

e os maiores de 9 anos e menores de 14 que obrassem com discernimento

não poderiam ser considerados criminosos.

No caso daqueles menores que fossem maiores de 9 anos e menores

de 14 anos e que tivessem praticado o delito com discernimento, deveriam

ser encaminhados a instituições disciplinares industriais pelo tempo que o

juiz determinasse – essa foi a única inovação frente ao Código de 1831.

Essa penalidade não poderia ultrapassar os 17 anos de idade do infrator.

O encaminhamento dos condenados menores a instituições industriais

e não mais a casas de correção demonstra a aplicabilidade da “pedagogia”

do trabalho como princípio regenerativo daqueles que não se enquadravam

no sistema produtivo vigente, como aponta Santos.164

A existência de crimes e de criminosos na humanidade é algo que não

se discute; que foram alvo de repressão, punição e controle também não é

novidade, principalmente após o surgimento da Criminologia.165 Entretanto,

a partir do século XIX, os pensadores da Escola Positiva e da Antropologia

Criminal vão se inscrever na história da ciência, pois determinaram, por

meio de especulações científicas, a existência de predisposições ao crime

nos indivíduos, ou o que os tornaria criminosos natos.

Essa corrente de pensamento fincou totalmente as suas bases no

Brasil por meio dos intelectuais que, em contato com o conhecimento que

estava sendo produzido além-mar, passaram a se dedicar ao estudo dos

mesmos temas em terras brasileiras. E foi por volta de 1850 que os textos

jurídicos referentes ao direito penal passaram a dar destaque à obra O

Homem Delinqüente, do criminalista Cesare Lombroso. Esta balizou a

fundação da criminologia, marcando, assim, a modernização do pensamento

jurídico-penal. A partir daí, duas noções passaram a permear a criminologia:

periculosidade ou temibilidade e a metodologia destinada à classificação

dos criminosos.

164 SANTOS, Marco Antônio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In: PRIORE,

Mary Del (org.). História das crianças no Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006. p.165 CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei: 1889-1930. Brasília: Universidade de Brasília,

2001. 268 p.

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Assim, duas categorias passaram a compor o pensamento tanto de

Lombroso quanto de Ferri: normal e anormal, ou seja, homem honesto

versus homem criminoso.166 Entretanto, não bastava rotular o indivíduo

como criminoso, era necessário levar em conta o conceito de crime,

principalmente no que se refere ao direito penal brasileiro.

Por meio dessa corrente de pensamento, o mundo passou a ser

dicotomizado: de um lado estavam os criminosos, e de outro, os não-

criminosos. Para Cancelli,

deve-se refletir sobre a função simbólica e ideológica da justiça criminal, dos parâmetros morais por ela delimitados à sociedade, da singularidade dos costumes rituais, da linguagem e das maneiras, das linhas de separação entre o proibido e o permitido, a partir de uma realidade que não se circunscreve ao estritamente criminal, mas que, neste momento, inicia a dividir o mundo em constituído de sujeitos criminosos e não criminosos, como forma de organização cultural.167

Tal fala vai ao encontro das dicotomias legal/ilegal, limpo/sujo,

pureza/impureza, apresentadas por Mary Douglas para tratar das questões

sobre as formas adotadas pelas culturas antigas no tratamento dos temas

que lhe são tão caros, como rituais, tolerância ao diferente, e assim por

diante.168 Mas o que nos chama a atenção reside no fato de que, ao se

dividir o mundo em que se vive apenas de duas maneiras (puro/impuro, ou

ordem/desordem, sujeira/limpeza, por exemplo), em que uma tende a excluir

a outra, se cria o diferente, o outro, que passa a ser adjetivado, rotulado,

etiquetado, classificado, para que haja uma rápida identificação e

eliminação do “problema”.

166 CATALDO NETO, Alfredo et al. Inimputabilidade e doença mental. In: Sistema Penal e

Violência. Coord. Ruth Maria Chittó Gauer. Rio de Janeiro, Lúmen Júris, 2006. p. 167 CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei: 1889-1930. Brasília: Universidade de Brasília,

2001. p. 31.168 Para aprofundar o assunto: DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva S.A.,

1976. 229 p.

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Para a autora,

[...] a sujeira é, essencialmente, desordem. Não há sujeira absoluta: ela existe aos olhos de quem a vê. Se evitamos a sujeira não é por covardia, medo, nem receio ou terror divino. Tampouco nossas idéias sobre doença explicam a gama de nosso comportamento no limpar ou evitar a sujeira. A sujeira ofende a ordem. Eliminá-lo não é um movimento negativo, mas um esforço positivo para organizar o ambiente.169

Daí a importância de se ressaltar que, antes de preocupação com

questões de ordem econômica ou puramente raciais, os pensadores

brasileiros se dedicaram à identificação do diferente, independentemente de

raça, cor, credo ou situação social. E, por que não dizer, de emplacar meios

de retirar a sujeira da sociedade e manter a sua limpeza de acordo com os

preceitos profiláticos e científicos do qual estavam embebidos.

Por meio da dicotomia criminoso/não-criminoso, que também pode ser

representada pelo dueto ordem/desordem, buscou-se cada vez mais

práticas e instituições que se dedicassem à identificação e ao tratamento

desses distúrbios. Para isso são importantes as casas de correção, locais

destinados aos criminosos e à sua recuperação, ou outros tipos de sistemas

privativos de liberdade.170

Todavia, o que se percebe juntamente com o avanço da ciência e da

identificação de possíveis criminosos é o surgimento de outro elemento que,

além da pena, vai marcar os eleitos dos sistemas privativos de liberdade: o

estigma. Surgiu devagar, e se consolidou no início do século XX, referindo-

se não apenas aos delinqüentes adultos, mas se dirigiu especialmente às

crianças, cujo termo menor é a maior representação disso, pois,

oficialmente, o termo se manteve em voga até a proclamação da

Constituição de 1988, que determinou a elaboração do Estatuto da Criança

e do Adolescente, que passou a se referir ao antigo menor como criança e

adolescente.

169 DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva S.A., 1976. p. 12.170 Sobre instituições privativas de liberdade: GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e

conventos. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. 312 p.

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Embora a questão do estigma acabe aparecendo no que se refere ao

menor envolvido com o crime, para os juristas um delito só existe quando

três elementos estão caracterizados: ação típica, antijurídica e culpável.

Sem a presença desses três fatores, o crime não está caracterizado

(BRANDÃO, 2002 apud AZEVEDO, 2006).171

Dessa perspectiva, dois elementos novos, que se perpetuaram no

Direito Penal, consistiram na imputabilidade e no discernimento, termos que

merecem atenção por possibilitarem, ou não, o peso da pena a ser aplicada

aos criminosos, principalmente daqueles que interessem a este trabalho: os

menores delinqüentes.

Para que se considere o indivíduo culpado de um crime, deve-se

confirmar a sua capacidade de culpabilidade, isto é, de imputabilidade,

conceito esse atrelado à capacidade mental do indivíduo de discernir entre

o “certo” e o “errado”, pois dessa forma estaria consciente da ilicitude do ato

praticado e praticá-lo-á de livre e espontânea vontade.

De maneira simples, sem grandes discussões, para Ferrajoli a

questão da responsabilidade penal se apresenta por meio de três elementos

subjetivos que integram o modelo penal garantista:

[...] a) a personalidade [...], que designa a susceptibilidade de adscrição material do delito à pessoa do seu autor, isto é, a relação de causalidade que vincula reciprocamente decisão do réu, ação e resultado do delito; b) a imputabilidade ou capacidade penal, que designa uma condição psicofísica do réu, consistente em sua capacidade, em abstrato, de entender e de querer; c) a intencionalidade ou culpabilidade em sentido estrito, que designa a consciência e a vontade do delito concreto e que, por sua vez, pode assumir a forma de dolo ou de culpa, segundo a intenção esteja referida à ação e ao resultado ou somente à ação e não ao resultado, não querido nem previsto, embora previsível.172

Cabe ressaltar que responsabilidade e imputabilidade não são

sinônimos, esta apenas é um dos elementos que compõem a primeira, e

nem mesmo é pressuposto da culpa. De acordo Bitencourt, a doutrina

171 AZEVEDO, Rodrigo G. de. Visões da sociedade punitiva: elementos para uma sociologia do

controle penal. In: Sistema Penal e Violência. Coord. Ruth Maria Chittó. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.

172 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 450.

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apresenta três fatores que definem e fixam a inimputabilidade, isto é, a

diminuição da culpa: biológico, psicológico e biopsicológico.173

Perante o Direito Penal brasileiro, via de regra, a imputabilidade se

apresenta sempre que o agente reunir as condições necessárias para tal, e

que estão representadas pela normalidade e maturidade psíquicas. A

inexistência de sanidade e maturidade mentais, melhor ilustrada pela

menoridade penal, possibilita o reconhecimento da inimputabilidade por

meio da incapacidade de imposição da culpa. A respeito das questões

mentais, Bitencourt diz que:

Embora a imaturidade mental, isoladamente, esgote o conceito de inimputabilidade, porque, por presunção legal, o menor de dezoito anos é mentalmente imaturo e, conseqüentemente, incapaz de culpabilidade, ou, na velha terminologia, irresponsável penalmente. Nessa hipótese, é suficiente que se faça a comprovação da idade do menor, isto é, do aspecto puramente biológico.No entanto, em se tratando de sanidade mental, a questão é mais complexa, porque, além de não ser mentalmente são ou não possuir desenvolvimento mental completo, por doença ou perturbação mental, é necessária a conseqüência desse distúrbio. Na verdade, exige-se, em outros termos, que tal distúrbio – doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado – produza uma conseqüência determinada, qual seja, a falta de capacidade de discernir, de avaliar os próprios atos, de compará-los com a ordem normativa. O agente é incapaz de avaliar o que faz, no momento do fato, ou então, em razão dessas anormalidades psíquicas, é incapaz de autodeterminar-se no momento do fato. Devem reunir-se, portanto, no caso da anormalidade psíquica, dois aspectos indispensáveis: um aspecto biológico, que é o da doença em si, da anormalidade propriamente, e um aspecto psicológico, que é o referente à capacidade de entender ou de autodeterminar-se de acordo com esse entendimento.174

Apesar de o autor se basear no Código Penal de 1940 e em suas

alterações, a temática da imputabilidade permeia os assuntos referentes ao

Direito Penal, principalmente no tocante à infância. Afirma que, no Brasil, o

legislador traçou a maioridade penal pelo viés biológico, deixando de lado o

desenvolvimento mental do indivíduo abaixo dos dezoito anos,

classificando-o como inimputável mesmo quando dotado da capacidade de

173 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 10. ed. rev. e ampl. São Paulo:

Saraiva, 2006. v. 1.174 Ibidem, p. 305-06.

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compreender a ilicitude do delito ou de se guiar a partir da sua

capacidade.175

Tais questões foram consideradas no Código Penal de 1890. Nele,

caso o menor condenado (delinqüente)176 tivesse mais de 14 anos e menos

de 17 anos, o juiz deveria aplicar-lhe a mesma pena que era destinada aos

que eram julgados e sentenciados como cúmplices de delitos. Em caso de

condenação, e depois de cumprida a sua pena, o menor que praticasse um

crime de natureza semelhante aquele que originou a sentença condenatória

anterior, e como tal fosse entendido, este era considerado reincidente, visto

consistir na violação do mesmo artigo.

Assim, o Código Penal de 1890 delineou quatro tipos de

responsabilidade penal destinada aos menores:

Os que têm até nove anos completos, que são sempre irresponsáveis; os que têm de nove a 14, que podem obrar, ou não, com discernimento; os que têm mais de 14 e menos de 17, cujo discernimento é sempre presumido; e os de idade superior a 17 e inferior a 21 anos, para os quais a penalidade é sempre atenuada (VIEIRA apud SANTOS, 2006).177

Apesar das tentativas e pressões por parte dos intelectuais acerca da

problemática da infância brasileira, o Código Penal de 1890 não foi profícuo

em relação a essa parte da população. O fim do século XIX e os primeiros

decênios do XX se apresentaram como o cenário de discussões acerca da

problemática da menoridade, no que se refere à definição de um campo

específico de saberes destinados a essa parte da população.

Entretanto, é importante ressaltar que, entre os anos de 1822 a 1920,

de forma aproximada, o direito brasileiro se manteve em constante contato

175 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 10. ed. rev. e ampl. São Paulo:

Saraiva, 2006. v. 1.176 A expressão delinqüente – que atualmente se refere à criança infratora, ou adolescente infrator –

será adotada neste texto porque faz parte do vocabulário legal, jurídico e social do período a que este trabalho se destina a estudar (1927-1933).

177 SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006. p. 216.

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com as idéias jurídicas que vigoraram no Ocidente, sem, ao que parece,

mostrar-se contraditória devido às diferenças nacionais.178

2.1.2 O Código de Menores de 1927 e a consolidação do termo menor

O início do século XX foi marcado pela criação de uma série de

medidas destinadas à infância, mas a que se destaca mais é o Decreto

17.943-A, de 12 de outubro de 1927, promulgado pelo então presidente da

República Washington Luis. De caráter higienista e disciplinar, o referido

Código179 trouxe mudanças significativas no trato aos menores (desvalidos,

delinqüentes, vadios, entre outros tipos). Com ele, abriu-se a perspectiva

profilática de proteção do indivíduo e do seu hábitat; da mesma forma, a

visão jurídica sobre a temática se apresentava como repressiva e

moralista.180

Idealizado pelo primeiro juiz de menores do País, Dr. Mello Matos, o

Código de Menores foi responsável pela consolidação legal do destino a ser

dado àquelas crianças que se encontrassem em uma das situações

caracterizadas pelo mesmo. De acordo com Rizzini,

[...] as duas primeiras décadas do século XX constituem o período mais profícuo da história da legislação brasileira para a infância. É grande o número de leis produzidas na tentativa de regulamentar a situação da infância, que passa a ser alvo de inúmeros discursos inflamados nas Assembléias das Câmaras Estaduais e do Congresso Federal.181

Os discursos se mesclavam, ora defendiam a criança, vista então

como símbolo do futuro da nação, ora justificavam suas propostas de

178 SILVA, Mozart Linhares da. Do império da lei às grades da cidade. Porto Alegre: EDIPUCRS,

1997. 243 p.179 BRASIL. Código de menores: decreto n. 17.943 - A, de 12 de outubro de 1927. Porto

Alegre: Globo, 1928. 85 p.180 PILOTTI, Francisco; RIZZINI, Irene (orgs.). A arte de governar as crianças: a história das políticas

sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Interamericano Del Nino, Editora Universitária Santa Úrsula, Amais Livraria e Editora, 1995. 384 p.

181 RIZZINI, Irene. Crianças e menores do pátrio poder ao pátrio dever. In: PILOTTI, Francisco; RIZZINI, Irene (orgs.). A Arte de governar as crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Interamericano Del Nino, Universitária Santa Úrsula, Amais Livraria e Editora, 1995. p. 99-168.

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gerenciamento dos mesmos em benefício e defesa da sociedade contra

essa infância ameaçadora da ordem social. Esses discursos não eram

freqüentes apenas no Brasil, mas debates sobre esse tema tinham espaço

também no cenário internacional. E, segundo Rizzini, embora as discussões

superassem o campo de conhecimento do Direito, eram os juristas que

lideravam os embates com os outros campos do saber. A autora salientou

que os:

Juristas associaram-se às forças policiais, aos setores políticos, às cruzadas médicas, às associações caritativas e filantrópicas. Promoviam debates, publicavam e estabeleciam alianças em várias arenas: no Congresso Federal, nas Câmaras dos Deputados, nos jornais, nas sedes da ‘Liga de Beneficência Pública’ e associações filantrópicas, nas Universidades e nos congressos acadêmicos, de âmbito internacional.182

O campo jurídico brasileiro elaborou, desde o início do século XX,

uma jurisprudência moderna e em consonância com as necessidades dos

grupos infantis em situação de risco, pois compartilhavam da idéia de que

era o futuro da nação que estava em perigo. E, para protegê-la, era

imprescindível civilizá-la por meio da profilaxia e da educação do seu povo.

Essa nova arma jurídica não se restringiu apenas ao seu próprio

âmbito, mas deu origem a um sistema de assistência social e legal à

infância pobre, que se estendeu a todos os estados em substituição,

principalmente, às casas de correção. Ao encaminhar essa população

infantil, tida como anormal, pois não se enquadrava no modelo ideal de

infância e de família, o Estado buscava cada vez mais se adequar ao

sistema produtivo da época.

182 RIZZINI, Irene. Crianças e menores do pátrio poder ao pátrio dever. In: PILOTTI, Francisco;

RIZZINI, Irene (orgs.). A Arte de governar as crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Interamericano Del Nino, Universitária Santa Úrsula, Amais Livraria e Editora, 1995. p. 114.

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O Estado brasileiro, imbuído de uma nova visão sobre a cidade, bem

como o sentimento de ordem e progresso, investia cada vez mais na:

[...] propagação da higiene, controle e reformulação do espaço urbano, a necessidade de repressão à criminalidade e de criação de novas formas de compulsão do trabalho, as ‘crianças desvalidadas’ eram foco de intervenção de diferentes profissionais, ao mesmo tempo que objeto de novas regulamentações legais.183

Dentre as várias medidas vislumbradas no Código de 1927, está a

criação de um órgão especialmente voltado para o julgamento dos casos

envolvendo menores, o Juizado de Menores. Primeiramente instalado no

Distrito Federal, em seu artigo 146 definiu a sua função, bem como a de

outros profissionais que a ele deveriam se vincular, e determinou a sua

criação nos demais estados brasileiros.

Apesar da obrigatoriedade da instalação de um Juizado de Menores

em cada Estado, não era claro quanto tempo cada um tinha para instalá-lo,

tanto que o Rio Grande do Sul só cria o seu em 1933, enquanto outros

estados já estão com o seu há muito instalado, como é o caso de Minas

Gerais, por exemplo.184

Contrariando o século XIX, quando os poderes públicos se silenciaram

sobre as questões de ordem familiar, de educação e de infância, o século

XX se consagrou como um período dedicado à assistência oficial da família

e dos menores (delinqüentes, abandonados, etc.) até a década de 1950.

De acordo com Rizzini185:

Desde o início do século XX, autoridades públicas questionavam a falta de método científico no atendimento ao menor no país. Com a instalação da justiça de menores, foi incorporado na assistência o

183 VIANNA, Adriana de R. B. O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio de Janeiro,

1910-1920. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999. p. 42.184 ZANELLA, Ana Paula. A administração do Juizado de Menores do Rio Grande do Sul nos seus

primórdios (1933 a 1945). Justiça & História. Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul. – v. 3, n. 5. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Departamento de Artes Gráficas, 2003. p.

185 RIZZINI, Irene. A institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e desafios do presente. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO; São Paulo: Loyola, 2004. p. 31.

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espírito científico da época, transcrito para a prática jurídica pelo minucioso inquérito médico-psicológico e social do menor. O modelo do inquérito transpôs-se da ação policial, porém o Juízo de Menores incorporou conceitos e técnicas provenientes dos campos profissionais ainda em definição no Brasil, relativos à psiquiatria, à psicologia, às ciências sociais, à medicina higienista e seus desdobramentos.

Tradicionalmente, o Brasil se caracterizou pela prática da

institucionalização de crianças e jovens, em asilos ou assemelhados. Tanto

os filhos dos ricos quanto dos pobres passaram pela experiência de serem

educados longe de suas famílias. Desde a Colônia, colégios internos,

seminários, asilos, escolas de aprendizes, educandários, reformatórios,

entre outros, nasceram baseados nas tendências educacionais da época.

A tradição de institucionalização da criança, adquirida com o passar

dos anos, apesar de seus altos e baixos, foi mantida de acordo com

especificações sobre gênero e raça. Filhos de índios e descendentes de

escravos e libertos passaram por asilos, casas educacionais, entre outras

instituições, mas o principal alvo de intervenção das políticas públicas foram

os meninos pobres e livres das cidades, dentre elas se destaca Porto

Alegre.186

Encaminhar as crianças às instituições de reclusão consistiu no

principal mecanismo de assistência à infância no País, modelo que só caiu

em desuso para os abastados após a metade do século XX, quase

chegando à extinção. Entretanto, esse tipo de educação é aplicado até hoje

às crianças pobres, cabendo aos infratores a reclusão, pois são categorias

que ameaçam a sociedade por meio de infrações penais.187

Seguindo o mesmo modelo das legislações tratadas anteriormente, o

Código de 1927 se dividia em duas partes: geral e especial. À primeira parte

estavam destinados os artigos dirigidos à classificação dos menores

(desvalidos, vadios, delinqüentes, entre outros), às penalidades a serem

aplicadas em caso de envolvimento dos mesmos em crimes ou a qualquer

ato praticado contra eles, a todo o processo de assistência e proteção aos

186 RIZZINI, Irene. A institucionalização de crianças no Brasil: percurso histórico e desafios do

presente. Rio de Janeiro: Ed. PUC-RIO; São Paulo: Loyola, 2004. 94 p.187 RIZZINI, loc. cit.

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mesmos. Já a segunda parte, ou parte especial, referia-se às disposições

concernentes ao Distrito Federal.188

O Código procurou organizar uma gama de classificações a fim de

identificar, entender e torná-la o mais maleável possível na hora de se

legislar sobre os menores em qualquer situação, visando também à maior

eficácia do seu poder de atuação. A classificação diz respeito à relação dos

menores com os seus representantes legais, que eram responsáveis pelos

atos e condições de vida da criança. Diante dessa relação, o Judiciário

assumiu o poder de regulador da mesma.

Segundo análise de Vianna, no que tange às justificativas

apresentadas para a intervenção sobre os menores em sua totalidade, pois

tendiam a interferir nas suas relações familiares e na sua liberdade, por

exemplo, e que acabaram transpostas para o Código,

[...] teriam por efeito naturalizar determinadas formas de intervenção sobre eles. A desautorização da família, que os retira do domínio a que estão ligados os indivíduos legal e simbolicamente representados como crianças, é parte do processo de sua inscrição em um determinado âmbito de poderes. O poder –policial, estatal – que passa a ser exercido sobre eles não encontra, para além de limites muito estreitos, a mediação familiar.189

Além de visivelmente socializada na época, a infância – desvalida,

vadia, delinqüente, entre outros tipos –, também fez consolidar uma nova

categoria social: o menor. Termo amplamente utilizado não apenas nos

meios jurídicos, este se foi incorporando ao vocabulário do brasileiro e,

mesmo com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990),

ainda é utilizado pela população.

No Brasil, as primeiras décadas do século XX marcaram a

naturalização e cristalização inseridas no termo menor, principalmente no

âmbito jurídico. Tal situação se concretizou por meio da criação do Juízo de

188 BRASIL. Código de menores: decreto n. 17.943 - A, de 12 de outubro de 1927. Porto

Alegre: Globo, 1928. 85 p.189 VIANNA, Adriana de R. B. O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio de Janeiro,

1910-1920. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999. p. 168.

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Menores do Distrito Federal, que data de 1923, e, conseqüentemente, da

promulgação do Decreto nº 17.943A, de outubro de 1927, comumente

conhecido como Código de Menores.

Para Vianna,

a generalização do termo menor desempenha um papel simbólico relevante, no sentido de desentranhar determinados indivíduos do domínio de uma representação genérica de infância, à qual atrelam-se expectativas de um certo comportamento social (de proteção, de reconhecimento de um estado de inocência etc.).190

Ao se utilizar a noção de representação social, enfatiza-se que os

significados enraizados na acepção menor,191 bem como àqueles indivíduos

a que se refere, são dependentes da existência de situações sociais

específicas de um lado, e do partilhamento comum das representações

sociais mais gerais. Isso diz respeito principalmente à infância ou à

elaboração do Código de Menores.192

A fala da autora pode ser facilmente identificada no próprio Código de

Menores, pois apresenta a classificação de menor e as suas variações:

abandonados, vadios, mendigos, libertinos, delinqüentes, etc, sendo

destacado deste trabalho esse último tipo, bem como a atuação do estado

sul-rio-grandense frente a essa problemática.

Com a promulgação do Código de Menores, retirou-se do Código

Penal a responsabilidade sobre os casos de natureza ligados à criança, mas

este continuou, de certa maneira, definindo os crimes praticados pelos

criminosos em geral, e aí se incluem os menores de 21 anos.

190 VIANNA, Adriana de R. B. O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio de Janeiro,

1910-1920. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999. p. 22.191 De acordo com o Decreto nº 17.943A, de 12/10/1927, este era destinado “[...] aquele menor, de

um ou outro sexo, abandonado ou delinquente, que tiver menos de 18 annos de idade [...]” (Art. 1º).

192 VIANNA, op. cit., 168 p.

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De acordo com Vianna,

a promulgação do Código de Menores, em 1927, pode ser vista como o momento em que, juridicamente, a menoridade deixa de figurar como uma condição a ser levada em conta nos diversos tipos de códigos legais para se tornar um objeto específico de normatização. Ao regular os procedimentos a serem adotados em casos de infração ou trabalho envolvendo menores, ele invertia o objeto principal de regulamentação: não se tratava mais de considerar a menoridade do trabalhador ou do infrator, mas sim de avaliar em que condições poderia se dar a relação do menor com o trabalho ou com a infração. Segundo essa lógica, o crime, o abandono ou o trabalho tornavam-se condições explicativas ou circunstanciais de uma identificação primeira, a de menor.193

Os aspectos levantados pela autora podem ser identificados no rito

processual seguido nos processos-crime, pois neles cada um dos sujeitos

envolvidos – polícia, juiz, testemunhas, promotor, defensor, e outros –, é

responsável pela inserção de uma peça na montagem do quebra-cabeça

que vai determinar se o menor será absolvido ou condenado.

Em 1927, com a promulgação do Código de Menores a cultura da lei

passa a classificar e julgar os delitos praticados pelos menores, bem como

regular e normatizar o tratamento destinado aos delinqüentes. A partir daí é

que o Estado vai passar a atuar cada vez mais sobre as práticas sociais,

principalmente por meio dos operadores do direito, que atuarão diretamente

nos comportamentos delitos dos menores.

193 VIANNA, Adriana de R. B. O mal que se adivinha: polícia e menoridade no Rio de Janeiro,

1910-1920. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999. p. 169.

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3 A JUSTIÇA E OS DELITOS DE MENORES

O material empírico pesquisado revela uma série de conflitos

envolvendo menores. Os processos-crime se constitui em fonte documental

que permite verificar a ação dos aparelhos de Estado (Polícia, Ministério

Público, Magistrados) frente ao comportamento considerado “ilegal” pelo

Código Penal de 1890. Foram analisadas as sentenças de 34 processos

criminais que tramitaram pelo Cartório do Júri da comarca de Porto Alegre,

entre os anos de 1927 a 1933.

Essas sentenças compõem o material empírico que serviu de base à

análise descrita nesta dissertação. Desde o Império a instituição do Júri era

responsável pelo julgamento de quase todos os delitos previstos no Código

Criminal da época. Os crimes de roubo, homicídio, lesões corporais contra

homens e mulheres, entre outros, eram da responsabilidade do Júri, todavia

esta jurisdição durou até 1938, período em que a prática do Júri194 ficou

restrita aos crimes dolosos, de envenenamento, infanticídio, morte

decorrente de duelo, indução ao suicídio, latrocínio e aqueles tentados ou

consumados.195

Dos processos criminais pesquisados no Arquivo Público do Estado

do Rio Grande do Sul (APERS), grande parte dos delitos foram julgados

pela Vara do Júri, mas isso não significa que todos tenham sido levados ao

Júri. No caso da documentação analisada, nenhum dos casos foi julgado por

um corpo de jurados, pois foram decididos pelo juiz, que absolvia os réus

julgando improcedente a denúncia, e isso por falta de provas, ou os

condenava mediante as provas reunidas.

A escolha do recorte temporal se deu porque, além de demarcar a

promulgação do Código de Menores, em 1927, e a criação do Juizado de

Menores em Porto Alegre, ocorrido em 1933, a partir da década de 1920, o

Ocidente foi marcado por uma série de transformações que promoveram o

194 Sobre a instituição do Júri, STRECK, Lênio Luiz. Tribunal do Júri: símbolos & rituais. 4.

ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. 183 p.195 SLEIMON, Viviane Moura. Histórias de crime e sedução no Rio Grande do Sul de 1890 a

1930. 2001. 366 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Faculdade de Direito, PUCRS, Porto Alegre, 2001.

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abandono do antigo ideal iluminista, dando lugar a uma nova “modernidade”,

na qual o homem, em meio à velocidade dos novos tempos, distanciava-se

dos seus referenciais alicerçados no “ser”.196 Essas mudanças também

afetaram a sociedade brasileira em geral, sobretudo as cidades. Por esse

motivo, segundo Maroneze,

focar a década de 20 e 30 implica buscar as informações históricas que dão conta de um período maior, tendo como objetivo compreender a dinâmica da cidade dentro de um quadro mais amplo. As mudanças econômicas mundiais associadas às novas formas políticas do final do século XIX, bem como a integração do Brasil aquele universo através da economia cafeeira, interferem de forma sensível na dinâmica de algumas cidades do país. É o caso de Porto Alegre que de forma específica se associa àquele contexto internacional.197

Essas transformações são verificadas em Porto Alegre desde o final

século XIX. e acabaram mudando o perfil da cidade. Tais mudanças

(econômica, social, política, entre outras) tornaram a capital gaúcha, no

início do século XX, o principal centro ferroviário da região sul-rio-

grandense, seguida de Rio Grande e Pelotas – mais ao sul, tornando Porto

Alegre ponto central de recebimento de distribuição de mercadorias intra e

inter-regional. 198

Além de importante centro de transporte terrestre, o escoamento de

mercadorias para outras regiões brasileiras e para o exterior por meio do

novo porto contribui ainda mais para o desenvolvimento da economia e da

sociedade porto-alegrenses, pois muitos estabelecimentos comerciais,

cinemas, bares, entre outros, foram ocupando os seus espaços centrais.

Era a modernidade, com todos os seus ideais de “cidade-progresso”

refletidos nos projetos de urbanização, chegando ao Sul do Brasil. E

chegando para ficar.

196 BAUMER, Franklin B. O pensamento europeu moderno. v. II. Lisboa: Edições 70, 1990.197 MARONEZE, Luiz Antônio Gloger. Porto Alegre em dois cenários: a nostalgia da modernidade

no olhar dos cronistas. 2007. 285 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, PUCRS, Porto Alegre, 2007. p. 65.

198 BAKOS, Margareth Marchiori. Porto Alegre e seus eternos intendentes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. 218 p.

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A mescla de múltiplos saberes foi incorporada aos planos de

urbanização de todas as cidades brasileiras, e inclusive à capital gaúcha.

Os projetos foram reflexo de um pensamento vigente aliado a outros

elementos supostamente necessários à implantação dos mesmos. Nesse

contexto, as reformas das cidades retrataram uma nova concepção. Nesse

sentido Maroneze destaca:

O higienismo em voga no período, o imperativo de um sistema viário que desse conta dos novos veículos, a necessidade de uma infra-estrutura e o modelo paradigmático estabelecido pelas reformas parisienses são idéias e questões que tencionam com o modelo adotado até aquele momento.199

Em meio às modificações intentadas na cidade, os serviços que ela

oferecia foram sendo aperfeiçoados e estendidos aos seus arredores, como

é o caso do bonde elétrico, que, a partir de 1908, passou a encurtar as

distâncias devido à sua velocidade e possibilidade de urbanizar as áreas até

então pouco ocupadas. O carro apareceu anos antes e foi se tornando cada

vez mais comum nas ruas citadinas, sendo que no final da década de 1920

começam a surgir na imprensa os primeiros relatos sobre engarrafamentos

na região central.200

O crescimento da cidade pode ser observado pelo aumento da sua

população, conforme refletem os dados (Gráfico 01): 201

199 MARONEZE, Luiz Antônio Gloger. Porto Alegre em dois cenários: a nostalgia da modernidade

no olhar dos cronistas. 2007. 285 f. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, PUCRS, Porto Alegre, 2007. p. 67.

200 MARONEZE, loc. cit.201 BAKOS, Margareth Marchiori. Porto Alegre e seus eternos intendentes. Porto Alegre:

EDIPUCRS, 1996. p. 19-20.

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POPULAÇÃO DE PORTO ALEGRE

73.674

115.791

181.985

256.550

ANO 1900 ANO 1910 ANO 1920 ANO 1930

Gráfico 01: População de Porto Alegre (1900-1930)Fonte: BAKOS, Margareth Marchiori. Porto Alegre e seus eternos intendentes.

Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. 218 p.

O aumento da população demonstra uma conquista da cidade, pois

passou a se igualar em tamanho com outras capitais brasileiras, a exemplo

de Salvador, Recife e Belém, mas ainda com menor população que São

Paulo e Rio de Janeiro. Esse crescimento ocorreu porque Porto Alegre se

tornou atrativa para as populações rural e de outras cidades menores

devido à implantação de novas fábricas e ao aumento do setor terciário, que

se multiplicava desde a virada do século XIX para o XX, promovendo, então,

um intenso fluxo migratório rumo à capital do Estado.202

Entretanto, assim como a cidade cresceu em termos de

desenvolvimento econômico e populacional, o mesmo foi acompanhado por

uma série de problemas sociais, como o surgimento do desemprego, de

mendigos, tão mencionados pelos jornais da época. Outros problemas se

fizeram visíveis, não que eles já não ocorressem em outras épocas, mas no

contexto estão no foco das autoridades: a “delinqüência” de menores. Os

delitos praticados por menores deveriam ser controlados, isto é,

penalizados. Os menores passaram a ser vistos como perigo. Nesse

sentido, o menor que praticou o delito deve ser vigiado, controlado, com o

objetivo de proteger a sociedade. Como afirma Lopes Jr., “[...] o Estado,

como ente jurídico e político, evoca para si o direito (e o dever) de proteger

202 BAKOS, Margareth Marchiori. Porto Alegre e seus eternos intendentes. Porto Alegre:

EDIPUCRS, 1996. 218 p. Os dados fornecidos pela autora foram organizados no gráfico nº 1 para dar maior visibilidade aos números.

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a comunidade e também o próprio réu.”203 A criação do Código de Menores

está vinculada a uma “função de presunção geral e também de proteção

(não só de bens jurídicos, mas também do particular em relação aos atos

abusivos do Estado), sua verdadeira essência está na pena e a pena não

pode prescindir do processo”. 204

A criação do Código de Menores de 1927205 praticamente não teve

repercussão na imprensa gaúcha, apesar de a década de 1920, e as

seguintes voltarem sua atenção para os menores (abandonados, infratores,

entre outros). Tal constatação ocorreu por meio da análise das edições

diárias dos periódicos mais populares de Porto Alegre, como o “Correio do

Povo” e o “Diário de Notícias”. Por meio do levantamento das edições

diárias dos jornais a partir do mês de outubro de 1927 até fevereiro de

1928, constatou-se a menção ao Código de 1927, que somente foi feita em

uma única notícia de capa datada de 20 de dezembro de 1927, no jornal

“Diário de Notícias”. Após isso, não foram encontradas outras notícias que

fizessem referência ao assunto. 206

203 LOPES Júnior, Aury Celso Lima. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da

instrumentalidade garantista. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2004. p. 2.204 Ibidem, p. 3.205 Brasil. Código de menores: decreto n. 17.943 - A, de 12 de outubro de 1927. Porto

Alegre: Globo, 1928. 85 p.206 Dentre jornais que mais marcaram a imprensa gaúcha, destaca-se o “Diário de Notícias”. Criado

em 1º de março de 1925 por Francisco de Leonardo Truda, tendo J. Pedro de Moura como gerente e a atuação de mais dois jornalistas, era impresso na S. A. Graphica Porto Alegrense, que ficava na Rua dos Andradas, o periódico trouxe em seu primeiro número uma série de anúncios publicitários (Casa Masson, Fábrica Berta, Casa Coates, entre outros.). Esse jornal foi ganhando o público gaúcho e se propunha ser “moderno” e “dinâmico”, como demonstrou Ernesto Corrêa, Diretor do jornal, que se posicionou contra o destaque, na primeira página, das notícias internacionais, pois julgava mais importantes as informações nacionais. Com essa ousadia, bem como a numeração das páginas em ordem decrescente, que mais tarde foi amenizada, Corrêa acabou sofrendo algumas ameaças por parte de Assis Chateaubriand. O primeiro editorial, publicado em 1925, dizia que: “Fugiremos, deliberadamente, ao sensacionalismo com que, mais de uma vez, nestes últimos tempos, se tem confundido a noção de jornalismo moderno [...] Estabelecer uma comunhão íntima e perfeita de idéias e sentimentos entre o ‘Diário de Notícias’ e seus leitores, ir buscar nessa interpenetração recíproca e profunda, a razão de ser dos nossos pronunciamentos e das nossas análises – tais serão os elementos em que fundaremos os nossos direitos o título de órgão legítimo da opinião pública.” (apud DILLENBURG, 1996, p. 47). Essa consistiu na missão do novo órgão da imprensa gaúcha, que permaneceu ativo por 54 anos, mas muitas vezes a própria missão foi deixada de lado, e muitas manifestações, até mesmo de cunho sensacionalista, foram por ele veiculadas. DILLENBURG, Sérgio Roberto. Quatro publicações marcantes do jornalismo rio-grandense. Nova Petrópolis: Amstad, 1996. p. 47

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Tal fato chama a atenção, pois o Brasil presenciou a instituição de

uma lei responsável pela vigilância e assistência aos menores, surgida após

anos de discussões entre juristas, médicos, políticos, entre outros

profissionais e intelectuais, mas que em Porto Alegre foi recebida com

silêncio. Entretanto, a notícia se destaca pelo fato de apresentar uma visão

sobre o que acontecia na sociedade porto-alegrense da Primeira República.

Quanto à posição dos periódicos frente aos crimes, o autor afirma

que:

No senso comum, a história da criminalidade – difícil de ser pensada como um tema “digno” – não poderia ocupar-se de outra coisa senão do acontecimento excepcional ou dos grandes personagens, convertendo-se em uma história dos crimes.207

Podemos considerar que o texto representou apenas a opinião do seu

redator, que ao mesmo tempo era representativa de outros que partilhavam

da mesma, mas no campo oficial, isto é, frente ao Estado, como eram vistos

e tratados os menores que ultrapassavam os limites da legalidade e que se

tornavam “delinqüentes”?

Na opinião de Weber, o Estado só era possível devido à existência da

ciência do Direito, personificado na pessoa do jurista, o qual se constituía

no cientista do Estado. É por meio dele que o Estado se manifesta, legitima

a sua violência controladora sobre aqueles que fogem do processo de

homogeneização por ele imposto e que acabam promovendo a “desordem”

da “ordem” social. 208

Quanto ao juiz e o que ele representa no sistema do Estado do Rio

Grande do Sul em termos de Justiça, pode ser lido em Foucault quando este

afirma que:

207 FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo:

Brasiliense, 1984. p. 16-7.208 WEBER, Max. Ciência e política. Duas vocações. 13. ed. São Paulo: Cultrix, 2005. 124 p.

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Pode-se supor que o intelectual “universal”, tal como funcionam no século XIX e no começo do século XX, derivou de fato de uma figura histórica bem particular: o homem da justiça, o homem da lei, aquele que opõe a universidade da justiça e da eqüidade de uma lei ideal ao poder, ao despotismo, ao abuso, à arrogância da riqueza. [...] o que hoje se chama “o intelectual” (quero dizer no sentido político, e não sociológico ou profissional da palavra, ou seja, aquele que faz uso do seu saber, de sua competência, de sua relação com a verdade nas lutas políticas), nasceu, creio, do jurista; [...]209

Ao identificar a origem do jurista e ao associá-lo à intelectualidade, o

autor chama a atenção para o fato de que esse operador da justiça acabou

conciliando os poderes, o conhecimento intelectual e o legal, que moldaram

o mesmo a ponto de transformá-lo não apenas no representante do Estado,

mas em um criador e disseminador de idéias e pensamentos científicos.

A partir dessa prática científica e das suas percepções de sociedade e

cultura, é que o jurista vai influenciar na redação de códigos legais

baseados nos pressupostos da época, principalmente no tocante à infância,

que vão resultar na criação do Código de 1927,210 o qual determinou a

criação, em cada Estado, de um Juizado de Menores, com juiz destinado

especificamente para atender aos menores infratores. Entretanto, este

apenas foi instituído em Porto Alegre no ano de 1933. Isso ocorreu porque a

própria legislação não determinava o prazo em que este deveria ser criado.

Assim, coube ao Cartório do Júri abrigar as questões envolvendo crimes,

inclusive aqueles referentes aos menores “delinqüentes”.

Pelo Código de Organização Judiciária do Estado, o julgamento dos

processos-crime referentes aos menores era da responsabilidade dos juízes

distritais, que além dessa atribuição reuniam outras relacionadas a questões

cíveis.

O material empírico que segue revela um fluxo diferenciado de

processos julgados entre 1927 a 1933, como podemos observar no gráfico

que segue:

209 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 22. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006. p. 10.210 Brasil. Código de menores: decreto n. 17.943 - A, de 12 de outubro de 1927. Porto

Alegre: Globo, 1928. 85 p.

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Nº PROCESSOS JULGADOS POR ANO

68

5

8

42 1

02468

10

ANO1927

ANO1928

ANO1929

ANO1930

ANO1931

ANO1932

ANO1933

Gráfico 02: Número de processos-crime julgados.211

Fonte: APERS, Processos Criminais, 1927-1933.

Dos trinta e quatro processos-crimes encontrados, o Gráfico 02

aponta o maior índice de julgamentos entre os anos de 1928 e 1930, tendo

uma redução a partir do ano de 1932. Torna-se difícil identificar o motivo

pelo alto índice de julgamentos entre os anos de 1928 e de 1930. Quanto ao

ano de 1930, é possível que a Revolução de 30 tenha alguma influência

sobre estes números, pois todos os órgãos estatais estavam voltados para

possíveis desordens.

Entretanto, tais observações não são conclusivas, pois nem todos os

menores que foram presos eram processados, como aponta o Livro de

Sentenciados da Casa de Correção, da mesma forma como nem todos os

menores processados foram encaminhados à Casa de Correção. Todavia,

constatou-se que muitos dos menores que foram absolvidos dos crimes que

lhes foi imputado permaneceram presos durante o percurso processual.

Quanto à redução do número de processos no ano de 1933, acredita-

se que a criação do Juizado de Menores substituiu o destino dos mesmos,

mas isso não significa que os juízes lotados no Cartório do Júri deixaram de

ser responsáveis por eles, pois foram encontrados processos-crime de

menores no mesmo Cartório até o ano de 1950. Mesmo que em número

reduzido, os juízes distritais continuaram julgando os processos que,

teoricamente, seriam da competência dos juízes de menores, fato que

211 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. O número de menores indiciados é maior do

que o número de processos, pois alguns dos delitos foram cometidos por mais de um menor de 18 anos, a exemplo dos processos de número 2636 e 2293.

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demonstra certa confusão entre as competências judiciais desses dois

setores do Judiciário no Estado do Rio Grande do Sul.

TIPOS DE SENTENÇAS PROFERIDAS

26

7

105

1015

202530

Absolvição Condenação Arquivamento

Gráfico 03: Tipos de sentenças proferidas.Fonte: APERS, Processos Criminais, 1927-1933.

Dentre os trinta e quatro processos, em vinte e seis deles os réus

foram absolvidos, sete condenados e apenas um foi arquivado (Gráfico 03).

Chama a atenção que, das sentenças condenatórias, seis se referem ao

delito de furto e ou roubo,212 e a que resta diz respeito a atentado ao pudor.

O único arquivamento se deu devido à expiração do prazo legal para a

abertura de processo. Quanto às sentenças abolutórias, os delitos estavam

distribuídos em: 11 lesões corporais;213 4 roubos/furtos; 3 defloramentos; 3

homicídios; 2 acidentes; 1 estupro; 1 rapto; e 1 atentado ao pudor.

SENTENÇAS PROFERIDAS

31

3

0

10

20

30

40

Sem apelação Com apelação

Gráfico 04: Sentenças proferidas.Fonte: APERS, Processos Criminais, 1927-1933.

212 Optou-se pela reunião desses dois tipos de delitos em um só, pois em ambas as categorias há

apropriação indébita de algum tipo de bem.213 Optou-se por agrupar as lesões corporais leves e graves em uma mesma categoria.

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Um aspecto se destaca conforme se pode verificar no Gráfico 04:

apenas três pessoas apelaram da decisão judicial, dos 34 processos

julgados.

SENTENÇAS MODIFICADAS

1

2

01

12

23

Reformadas (de abs. p/cond.)

Não reformadas

Gráfico 05: Sentenças modificadas.Fonte: APERS, Processos Criminais, 1927-1933.

Das sentenças proferidas foram modificadas duas das três (Gráficos

04 e 05), apenas três sofreram apelação, sendo duas condenatórias e uma

abolutória. Apenas essa última sofreu alteração, e dizia respeito ao rapto da

menor Nair Castilho, que, segundo a apelação,

vistos e relatados os autos, accordam em segunda camara dar provimento á appelação do Promotor Publico porque o crime de rapto imputado ao réo acha-se plenamente verificado em todos os seus elementos integrantes. O accusado tirou a victima da casa de seu tutor, onde ela residia, e levou-a para uma casa de tolerancia, circumnstância que patenteia o fim libidinoso intentado, cuja consumação só foi obstada pela sua prisão, efetuada logo da chegada ao alcouce. O exame a que foi submettida a raptada comprovou a virgindade da mesma, e por certidão competente ficou também provada a sua edade de quinze annos incompletos, resultando assim juridicamente caracterizados os requisitos da honestidade e da violencia. O fato de contar o réo dezessete annos na data do crime não o isenta da responsabilidade penal, em facedo que dispõe o Codigo de Menores no § 2º do art. 69 do citado Codigo, visto como o réo não é abandonado nem pervertido, tendo pelo contrario feito prova de bons antecedentes, e nem o crime em si se pode considerar grave, attentas as circumnstâncias de que se revestiu. Nestas condições, reformando a sentença absolvitoria, por injusta, condenam o apellado Dante Margentti, a um anno de reclusão na Casa de Correcção, em falta de escóla de reforma, de conformidade com o disposto nos artigos 69 § 2º e 87 do Codigo de Menores.214

214 APERS, processo-crime nº 2554.

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Nessa situação, houve a condenação do réu apenas porque o delito

de rapto fora praticado contra uma menina com idade inferior a 15 anos

completos, o que, segundo o Código Penal vigente, era considerado crime

passível de pena, e porque foi o Ministério Público quem solicitou a reforma

da decisão final, já que os pais da menor não se manifestaram. Se não

fosse pela idade da suposta vítima, provavelmente o réu não teria tido a

sentença abolutória revertida para condenação. Como já referido

anteriormente, o Código de Menores apenas determinava o tratamento

destinado aos menores quando envolvidos em práticas criminais definidas

pelo Código Penal, pois deveriam receber atenção diferenciada devido à

sua condição de criança.

3.1 TIPOLOGIA DOS DELITOS

A criação do Código de Menores não invalidou a atuação do Código

Penal de 1890 frente aos crimes cometidos por menores, pois cabia a este

definir os crimes e as penas a serem aplicadas, enquanto o primeiro

determinava como as penas deveriam ser aplicadas quando os processos

criminais se referiam a menores. Por isso os menores infratores eram

acusados mediante a citação, por parte do Ministério Público, do artigo do

Código Penal que se referisse ao delito pelo qual estavam sendo acusados

perante a Justiça. A partir da citação do crime conforme menção no Código

Penal, o menor era processado.

Entendia-se que o crime consistia na violação imputável e culposa da

lei penal, segundo o artigo 7º do Código Penal Brasileiro de 1890. De

acordo com o texto legal comentado, o conceito de crime pode ser definido

em seus aspectos legal, jurídico ou sociológico. Galdino Siqueira,

entretanto, ressalta que essa definição não está corretamente definida

quando se diz que ela consiste na “violação da lei penal”, e que o mais

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adequado seria definir o delito como a “violação do preceito consagrado

pela sanção penal”.215

Não cabe aqui discussões acerca desse tema, mas cabe ressaltar que

a definição de um conceito único de crime é palco de discussões entre os

juristas, assim como a definição dos tipos de delitos, o que causava muita

discussão entre os doutrinadores da época. Há, no entanto, uma questão

muito clara: com a criação do Código de Menores, passou-se a tratar o

delito como passível de punição. Como refere Salo de Carvalho, “a pedra

angular dos sistemas jurídicos penais da modernidade é a pena privativa de

liberdade”. Muito embora o Código de Menores previa que os infratores

menores devessem ser recolhidos a casas especiais para serem

(re)educados, a privação de liberdade ocorria nos casos de condenação.216

Dentre os delitos apresentados nos processos envolvendo menores,

predominam aqueles referentes às lesões corporais; em segundo lugar

aparecem os roubos ou furtos; em seguida vêm os defloramentos; em quarto

lugar estão os crimes de homicídio e acidentes; e, por fim, estão estupro,

rapto, atentado ao pudor e um não identificado.

Destes delitos, os réus foram condenados pelo crime de furto/roubo

(6), e atentado ao pudor (1), sendo que destas sete condenações (Gráfico

03), apenas uma diz respeito ao sexo feminino (roubo), e os demais se

referiram à prática masculina (furto e atentado ao pudor). Todos os outros

delitos tiveram sentença abolutória, como demonstrado no Gráfico 3.

215 SIQUEIRA, Galdino. Direito Penal Brazileiro: (segundo o Código Penal mandado executar pelo

Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890, e leis que o modificaram ou completaram, elucidados pela doutrina e jurisprudência). Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. v. I. p. 147.

216 CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de Carvalho. Aplicação de pena e garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2004. p. 35.

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TIPOS DE DELITOS

1310

31 2 1 1 1 2

0

5

10

15

Lesõ

esco

rpor

ais

Fur

to/r

oubo

Def

lora

men

to

Est

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Hom

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pudo

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Acu

saçã

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tif.

Aci

dent

es

Gráfico 06: Tipos de delitos.Fonte: APERS, Processos Criminais, 1927-1933.

O Gráfico 06 permite visualizar a predominância de delitos praticados

por menores – lesões corporais, furto e roubo e defloramento.

A título de ilustração, ao analisar os dados contidos nos relatórios da

Secretaria de Justiça e Segurança Pública de 1909, da cidade de São

Paulo, Cancelli constatou que a maioria desses delitos referia-se a crimes

comuns como pequenos furtos, arrombamentos, entre outros. Apesar de a

autora não especificar a faixa etária em que os delitos eram praticados,

verifica-se que os tipos apresentados na Gráfico 06, e que dizem respeito à

delinqüência de menores em Porto Alegre entre 1927 a 1933, há muito já

faziam parte da realidade das cidades brasileiras.217

De acordo com Santos, na primeira década do século XX os delitos

cometidos por menores, em São Paulo, eram: desordens, vadiagem,

gatunagem, furtos e roubos, defloramentos e ferimentos. Para o autor,

“esses dados indicam a menor agressividade nos delitos envolvendo

menores, que tinham na malícia e na esperteza suas principais ferramentas

de ação”.218

A realidade apresentada pelos autos sobre os delitos praticados pelos

menores na cidade de São Paulo não se diferem da realidade de Porto

Alegre, mas se diferem, no entanto, quanto à tipificação do delito.

217 CANCELLI, Elizabeth. A cultura do crime e da lei: 1889-1930. Brasília: Universidade de Brasília,

2001. 268 p.218 SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In: PRIORE,

Mary Del (org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006. p. 214.

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Comparativamente, enquanto em São Paulo predominam os delitos de

furtos e roubos, como ressalta não só Santos219 mas também Fausto,220

deve-se ter cuidado, entretanto, ao se fazer qualquer inferência à realidade

de Porto Alegre, onde, segundo os dados apresentados no Gráfico 06, há

predomínio das lesões corporais, logo seguido por furtos/roubos,

demonstração do caráter mais “agressivo” das práticas delituosas em Porto

Alegre.221

Predominantemente campo de atuação masculino, a prática criminal

tendeu a reforçar os esteriótipos atribuídos à mulher e à sua “inabilidade”

delituosa, tal como pensavam muitos dos criminologistas e juristas. Uma

das hipóteses para a baixa incidência de mulheres como figurantes

principais nos processos-crime (Gráfico 07), diz respeito ao aparato policial,

que se apresentava como mecanismo de pouca importância no controle

social feminino. Esse controle estaria a cargo da família e da escola, ambas

responsáveis pela reprodução e incorporação dos valores masculinos.

INCIDÊNCIA POR SEXO

31

3

0

10

20

30

40

Masculino Feminino

Gráfico 07: Incidência por sexo.Fonte: APERS, Processos Criminais, 1927-1933.

219 SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In: PRIORE,

Mary Del (org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006. p. 210-30.220 FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo:

Brasiliense, 1984. 293 p.221 Apesar de os dois autores analisarem os dados levando em consideração a idade máxima de 21

anos, e este trabalho dedicar-se ao estudo dos menores de até 18 anos, tal comparação é importante, pois destaca as semelhanças e diferenças da criminalidade nas cidades brasileiras nas três primeiras décadas do século XX.

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Rousseau, no século XVIII, já diferenciava a mulher do homem,

apesar de reconhecer algumas semelhanças entre ambos. Entretanto, ao

descrever a mulher ideal, afirmou que as diferenças entre homens e

mulheres apareciam na união dos sexos, em que cada um tinha um papel

diferenciado com relação ao outro, dando origem, assim, às diferenças

morais entre eles. Enquanto um deveria ser ativo e forte, ao outro caberia a

passividade e a fraqueza. Para o autor,

a razão que leva o homem ao conhecimento de seus deveres não é muito complexa; a razão que leva a mulher ao conhecimento dos seus é ainda mais simples. A obediência e a fidelidade que deve ao marido, a ternura e as atenções que deve aos filhos são conseqüências tão naturais e tão visíveis de sua condição, que ela não pode, sem má-fé, recusar sua aprovação ao sentimento interior que a guia, nem desconhecer o dever na inclinação que ainda não se alterou.222

Essa é apenas uma entre tantas outras passagens que se encontram

na obra rousseaniana e que tratam da situação da mulher frente ao homem.

Cabe ressaltar que essa permanente subjugação do sexo feminino ao

masculino não se dá apenas pela relação marido-mulher, mas se reproduz,

principalmente, por meio das relações entre pais e filhos, pois é na família

patriarcal que se instaura e mantém o os ideais machistas.

Ao analisar os dados oriundos dos processos judiciais referente aos

delitos femininos, Fausto ressaltou que, apesar de sua limitação, eles

acabam sendo importantes porque ampliam o período estudado. Salientou

que, como as mulheres não sofreram acusações por práticas de crimes

sexuais, as informações contidas nos autos tendem a se referir a

homicídios, furtos e roubos, a exemplo de São Paulo, entre os anos de

1880-1924.223

222 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio, ou, Da educação. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

p. 533.223 FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo:

Brasiliense, 1984. p. 22.

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Mesmo que o autor generalize a prática feminina sem especificar a

idade, tais constatações são importantes para ilustrar os delitos praticados

por menores do sexo feminino em Porto Alegre. Dos três processos

envolvendo crimes femininos (Gráfico 07), dois se referem a roubo ou furtos

e um a lesões corporais, sendo que do total apenas um teve sentença

condenatória e se referia a roubo/furto. Nenhum delito envolvendo homicídio

apareceu. Isso não significa que as menores não estavam sujeitas a esse

tipo de delito, mas nenhum processo-crime dessa natureza foi encontrado.

Constatou-se que o predomínio dos crimes que resultaram em

processos criminais dizem respeito à faixa etária entre os 15 e 17 anos da

idade (Gráfico 08). Uma questão importante que se apresenta se refere à

proteção dada pelo próprio Código de Menores aos menores de 14 anos,

pois o mesmo previa no Art. nº 68 que:

O menor de 14 annos, indigitado autor ou cumplice de facto qualificado crime ou contravenção, não será submettido a processo penal de especie alguma; a autoridade competente tomará sómente as informações precisas, registrando-as, sobre o facto punivel e seus agentes, o estado physico, mental e moral do menor, e a situação social, moral e economica dos paes ou tutor oupessoa em cujo guarda viva.224

INCIDÊNCIA POR IDADE DOS RÉUS

1 1

6

10

16

0

5

10

15

20

13 anos 14 anos 15 anos 16 anos 17 anos

Gráfico 08: Incidência por idade dos réus.225

Fonte: APERS, Processos Criminais, 1927-1933.

224 BRASIL. Código de menores: decreto n. 17.943 - A, de 12 de outubro de 1927. Porto

Alegre: Globo, 1928. p. 22.225 A idade se refere ao número de menores de até 18 anos envolvidos nos delitos e não ao número

de processos-crime, como demonstram os processos de nº 2636 e 2293.

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Como a pesquisa ora apresentada ora se dedica ao estudo dos

menores de até 18 anos incompletos, visto o Código de Menores considerar

a idade dos crimes cometidos compreendidos entre 18 anos e 21 anos fator

atenuante para a pena, deve-se considerar que esse fato também poderia

ser uma das hipóteses para maior incidência de crimes, pois segundo o

Código de Menores, Artigos 76 e seguintes:

A idade de 18 a 21 annos constitui circumstancia attenuante. (Cód. Penal, art. 42, § 11)Art. 77. Si, ao perpetrar o crime ou contravenção, o menor tinha mais de 18 annos e menos de 21, o cumprimento da pena será, durante a menoridade do condenado, completamente separado dos presos maiores.Art. 78. Os vadios, mendigos, capoeiras, que tiverem mais de 18 annos e menos de 21, serão recolhidos á Colonia Correccional, pelo prazo de um a cinco annos.226

Além disso, aos menores de 18 anos eram destinadas prisões

especiais, mesmo que estas não existissem, mas estavam previstas no

Código. No caso dos maiores de 18 e menores de 21 anos, poderiam

cumprir penas nos mesmo locais que os adultos, mas em separado, ou até

mesmo enviados às Colônias Correcionais, como o próprio artigo 78

preconizou.227

A análise dos dados inseridos no Gráfico 09 demonstrou que, dentre

as profissões dos réus, se destaca as ligadas ao comércio, ou terceiro

setor; operário; domésticas e estudantes; choferes, militares/soldados,

sapateiros; e outros, respectivamente. Verificou-se que em apenas um caso

não é informada a profissão do réu.

Entretanto, sabe-se que fazia parte do questionário jurídico indagar ao

réu quanto à sua profissão e que ela, independentemente de qual fosse,

conferia certa posição social ao mesmo, pois não poderia ser visto como

226 BRASIL. Código de menores: decreto n. 17.943 - A, de 12 de outubro de 1927. Porto

Alegre: Globo, 1928. p. 24-5.227 Constatou-se pelas sentenças dos processos-crime que em muitos dos casos, o réu permaneceu

na Casa de Correção durante e depois do final da mesma, devido à falta de instituições correcionais adequadas. Tal situação demonstrou que as cadeias comuns não eram privilégios apenas dos adultos. E isso se estende às menores também.

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vadio, o que serviria também como prova de “bons antecedentes”, elemento

que era considerado pelo juiz na hora de proferir a sentença.

PROFISSÃO DOS RÉUS

32

1

3

9

1

5

21 1 1 1

21 1

Colegia

l/Estu

dant

e

Chofe

r

Agricu

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Domés

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Comér

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eiro

Pintor

Não m

encio

nada

Gráfico 09: Profissão dos réus.Fonte: APERS, Processos Criminais, 1927-1933.

Podemos observar no Gráfico 09 a predominância de três profissões:

comércio/caixeiro, operário e doméstica. Dos delitos cometidos por

menores, apenas em um caso a profissão não foi mencionada – nos demais

casos, todos os envolvidos tinham alguma ocupação profissional.

3.2 DO DELITO À SENTENÇA

Os dados empíricos demonstraram que, dos tipos de delitos

cometidos, os maiores índices registrados se encontram em: lesão corporal,

roubo ou furto e contra a honra, especificamente defloramento. As

absolvições predominaram nos casos sobre lesões corporais e

defloramento, mas não nos de furto ou roubo. A partir dessas informações,

optou-se pela análise das sentenças proferidas nos três delitos mais

praticados, como forma de identificar a postura dos magistrados frente aos

delitos.

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Assim, optou-se pela categorização dos delitos, a fim de melhor

analisar o conteúdo das sentenças criminais, obedecendo-se à ordem

quantitativa dos mesmos, ou seja, seguindo pelos que apresentam maior

número. Tais categorias são: crime contra a pessoa (lesão corporal), crime

contra a propriedade privada (furto ou roubo) e crime contra a honra

(defloramento).

As sentenças dos autos aqui analisados são os que têm dados que

permitem uma análise da postura dos magistrados do Rio Grande do Sul,

pois existem processos em que eles não se posicionaram, apenas se

restringiram a proferir a sentença em algumas linhas pouco informativas.

3.2.1 Delito praticado contra a pessoa: lesão corporal

Todas as legislações penais existentes no Ocidente no século XIX

previam, dentre as diversas infrações, delitos que eram organizados

segundo categorias específicas, e uma delas previa a proteção à

integridade física do corpo, de seus órgãos internos e das suas funções

físicas e psíquicas.228

No Código Penal brasileiro, considera-se lesão corporal (art. 303) a

ofensa física a alguém com produção de dor ou com algum tipo de

ferimento, mas sem derramamento de sangue. Esse tipo de delito previa

penas que poderiam variar entre três meses a um ano de prisão celular.

Estavam classificadas em três tipos de lesões corporais: transitória leve (de

caráter doloso), grave (de caráter doloso) e permanente (de caráter

culposo).

As lesões corporais leves (Art. 304) consistiam na não causalidade de

distúrbios graves na pessoa que sofreu a lesão, podendo ser identificadas a

partir da existência do próprio ferimento, do dolo ou de outros elementos

que não estejam incluídos em outros dispositivos que não estejam

228 SIQUEIRA, Galdino. Direito Penal Brazileiro: (segundo o Código Penal mandado executar pelo

Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890, e leis que o modificaram ou completaram, elucidados pela doutrina e jurisprudência). Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. v. II.

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compreendidos na mesma norma criminal. Esse artigo previa como

resultados do delito a amputação, mutilação, deformidade ou privação

permanente de qualquer órgão ou membro, ou até mesmo uma enfermidade

que inutilize a prática da atividade profissional exercida pela vítima. A pena

prevista nesses casos variava entre dois e seis anos de prisão celular. Se o

delito prejudicasse a saúde do paciente por mais de trinta dias, estava

prevista uma pena de um a quatro anos de prisão celular. Conforme referido

anteriormente, a criação do Código de Menores não invalidou a atuação do

Código Penal de 1890 frente aos crimes cometidos por menores, pois cabia

a este definir os crimes e as penas a serem aplicadas, enquanto o primeiro

determinava como as penas deveriam ser aplicadas quando os processos

criminais se referiam a menores.

As lesões corporais leves se tornam graves (Art. 305), quando

ocorressem contra terceiro por meio de instrumento aviltante, com a

intenção de causar dor física ou injúrias. Para esse delito, a pena prevista

era de um a três anos de prisão celular.

Por fim, as lesões de caráter permanente (Art. 306) eram aquelas

resultantes da imperícia, imprudência ou negligência na prática do ofício,

que resultasse no dano de terceiros, ou que fosse realizada sem intenção,

direta ou indireta. A pena prevista era de quinze dias a seis meses de prisão

celular.

A partir dos dados pesquisados, constatou-se que praticamente todos

os processos que passaram pela Vara do Júri e que trataram de lesões

corporais, tiveram sentença favorável ao réu, como mostra a Tabela 01.

Tabela 01: Crimes contra a pessoa: lesões corporais.

LESÃO CORPORALTIPO DE SENTENÇA Nº PROCESSOS PERCENTUAL

Absolvição 12 92%Arquivamento 01 8%Condenação 00 0%

TOTAL 13 100%Fonte: APERS, Processos Criminais, 1927-1933.

As brigas e desavenças sempre foram comuns e mais visíveis em

qualquer grupo social de qualquer período da História, principalmente entre

os homens, pois era necessário preservar a honra e a moral masculinas,

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mesmo que para isso fosse preciso o emprego da força. Dependendo da

circunstância em que fora causada, essa prática não era motivo de

condenação, pois os juízes também compartilhavam dos mesmos preceitos

morais e deixavam as suas posições pessoais nas sentenças, como

demonstra a fala do juiz distrital que diz:

Aceitando-se o historico do accusado, repelir ele e pelo meio ao seu alcance – e todos são permissiveis quando necessario, na lição dos tratadistas – uma agressão efectiva e eminente, mas sempre atual, injusta e inevitavel, senão a sua vida e sua incolumidade, ao seu pundonar, aos seus brios de homem e de militar. Ora, a lei não se limita a tutelar a integridade physica, mas também a moral na larga esfera traçada ao exercicio da legitima defesa (Lemos Junior – Legítima Defesa – p. 155-56). 229

Nos casos de lesões corporais envolvendo ataques à honra

masculina, à sua masculinidade, nota-se a mescla dos preceitos morais do

juiz, do texto legal e dos antecedentes do réu, justificou-se a agressão, pois

foi considerada legítima defesa. Com relação à questão do

homossexualismo, não houve menção. Percebe-se que a defesa da honra

masculina, muito valorizada pela sociedade da época, não só justificava a

prática de atos agressivos como também era o meio empregado para a

defesa dos brios masculinos.

Em outra sentença, outro juiz exibiu a mesma decisão do juiz anterior;

embora se utilizando de vocabulário diferenciado, defendeu sobretudo o

ataque porque:

Considerando que as escoriações, constantes do auto de exame a fls. 5 são pelo accusado atribuidas ao emprego que fez da sua cinta, dando alguns golpes em Fernando, por ter este convidado á practica de actos de libidinagem.230

229 APERS, Cartório do Júri, processo nº 3303. Trecho da sentença proferida em 08 de agosto de

1931.230 APERS, Cartório do Júri, processo nº 2555. Trecho da sentença proferida em 19 de janeiro de

1931.

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Mais uma vez eram a honra masculina e a masculinidade que estavam

sendo atacadas, demonstrando que isso não representava um pensamento

isolado, mas corriqueiro entre os magistrados. Não foi apenas nos casos

envolvendo ataque aos brios masculinos que os juízes não foram imparciais;

na maioria dos casos, as suas decisões não foram baseadas apenas na lei,

mas esta foi adaptada aos preceitos morais por eles adotados:

Se o menor incide na sanção penal, ao juiz, diante dos dados que lhe oferece o processo relativamente a gravidade da infracção e á indole do delinquente, incumbe não a função de julgar a acção do menor, mas a de desvia-lo do caminho do mal, por meio de medidas adequadas ao aproveitamento social do individuo. Em certos casos, quando a infracção não reveste caracter grave e tendo em vista a indole do menor, o juiz não julga: corrige, educa, previne. E essa finalidade não á de ser atingida com a aplicação de uma pena que, em vez de reprimir o máo, poderá, ao contrario, agrava-lo [...]; 231

A partir da mescla desses dois elementos é que a sentença absolveu

o réu; e do poder de julgar os conflitos legal e socialmente, o réu foi

absolvido com a recomendação aos pais de cuidar do filho, bem como o

encaminhá-lo mesmo à instituição de ensino, não-prisional,

considerando que a infracção atribuida ao dennunciado não reveste caracter de gravidade, devendo, também, ser levadas em linha de conta as circumnstancias em que a mesma se verificou, num momento de exacerbação a que deu causa a atitude imprudente da victima;Considerando que as informações do processo demonstram que não se trata de um menor de má índole [...];232

Como uma outra fala do juiz que se utilizou de termos semelhantes

para mostrar a sua onipotência frente não só a ré e a seus responsáveis,

mas aos demais operadores do direito e a todos aqueles que estivessem

arrolados no processo, no qual o juiz diz que:

231 APERS, loc. cit.232 APERS, loc. cit.

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As circumnstancias que cercaram a infracção penal e o os motivos que a determinaram não são de molde a concluir-se se a ré de má indole. Pelo contrario, ela é uma menina honesta e timida que vive em companhia de seus pais, agricultores e pescadores, de condição humilde, e que se viu arrastada pelo delito pelas razões de que dão notícia os autos.Nenhum interesse tem sociedade na punição da ré. A boa politica criminal aconselha mesmo á renuncia de toda a medida correctiva em casos de natureza deste. E a lei o autoriza (Codigo de menores, decreto nº 17.943ª, de 12/10/1927, art. 82 e 83).233

Em vez de apenas avaliar as provas coligidas contra o réu, o juiz

ressaltou que o ato fora cometido em um momento em que os ânimos

estavam exacerbados, e por isso deveria ser considerado tal fato como

atenuante para a lesão provocada. Além disso, nota-se que a constatação

dos “bons antecedentes” beneficiou o réu e fez com que fosse absolvido da

acusação intentada contra ele, e entregue aos pais para cuidado. No mesmo

tempo em que o juiz demonstrou a sua benevolência para com os infratores,

também repreendeu os pais, pois disse a eles o que fazer (encaminhar o réu

à instituição de ensino), ampliando ainda mais a sua rede de poder, pois

além, de demonstrar quem é digno ou não de absolvição, estendeu o seu

controle à família. Isso mostrou a sua potencialidade em interferir sobre o

tipo de atenção a ser dispensada aos menores infratores após serem

liberados pela justiça.

Mais uma vez, a prática de identificar e conseguir visualizar o perfil

dos réus demonstra o caráter de cientista que os juízes incorporavam à sua

prática de julgar, principalmente porque muitos dos juristas se filiaram como

adeptos da escola criminológica moderna. Assim, ao mesmo tempo, eles

mesclavam os conhecimentos adquiridos por meio da ciência criminal aos

pressupostos defendidos pela escola positiva de direito penal. Conforme

ressaltou Caulfield acerca do posicionamento dos juízes nas sentenças,

mesmo os juristas conservadores como Nelson Hungria, que se considerava um oponente da doutrina do direito positivo,

233 APERS, Cartório do Júri, processo nº 3937. Trecho da sentença proferida em 26 de novembro de

1932.

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proclamavam que os juízes tinham uma obrigação moral e profissional de moldar a lei às situações específicas por meio de interpretações.234

Praticamente nenhum desvio passa sem que o juiz esboce algum tipo

de comentário que reflita mais a opinião pessoal do que a regra legal

vigente. Verifica-se que são apontados possíveis desfechos para os

conflitos que originaram o processo, e buscaram nesses argumentos a

justificativa para a absolvição dos infratores, como mostra a sentença que

acerca de uma briga entre menores:

Ainda que essa atitude se pudesse considerar uma aggressão diante da qual corresse perigo a integridade física do réo, nem por isso se poderá concluir o gesto deste, fazendo uso de um canivete, segundo umas testemunhas, ou de navalha, segundo outros, e desferindo com essa arma um golpe perigoso em seu desafeto, respondesse a uma necessidade de sua propria defesa. Grande era o número de menores que alí se encontravam e facil seria ao réo recorrer ao auxilio destes companheiros, que poderiam, sem esforço, dominar a victima e evitar que esta prosseguisse na aggressão iniciada ou iminente. A aggressão era, pois, perfeitamente evitavel e, além disso, bem pouco perigosa, dada a natureza da arma de que se achava munida a victima.Trata-se, assim, de uma aggressão que era possível evitar e de uma reacção onde o pretenso agredido empregou meios não adequados para evitar o máo, - isto é, faltam, na especie, para a integração da figura de legitima defesa propria, os requisitos da inevitabilidade e da proporcionalidade dos meios.235

Ao analisar a situação descrita a partir de uma perspectiva própria,

como se a forma mais adequada e racional de tratamento da desavença

entre os menores devesse ser aquela mencionada na decisão, mais uma

vez está posto que imparcialidade não é algo que pertence ao operador do

direito. Não que seja possível ser parcial, pois, no momento em que se opta

por determinada norma ou posicionamento, já se está tomando algum tipo

de posição. Todavia, quanto à argumentação, na verdade a lei está servindo

234 CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro

(1918-1940). São Paulo: Unicamp, 2000. p. 255.235 APERS, Cartório do Júri, processo nº 4760. Trecho da sentença proferida em 17 de julho de

1933.

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de justificativa aos pressupostos pessoais do juiz frente à questão, como

demonstra o final da sentença.

Outra decisão demonstra a semelhança entre os argumentos

utilizados na redação das sentenças e como os juízes acabam reproduzindo

as suas concepções de “certo” e “errado”, “normal” e “anormal”, “moral” e

“imoral” antes de explicar com as normas vigentes, como mostra o processo

de Francisco, cuja explicação demonstra a posição do juiz, como se pode

ler:

Absolvo o accusado Francisco Samarini da accusação que lhe foi intentada pelo crime a que se reporta a denuncia de fs. 2, porquanto em face da prova feita, conteste e unanime dos autos, ficou evidenciado plena e cabalmente, que foi em repulsa a uma injusta, violenta e perigosa aggressão da victima – de quem procurava fugir – que se viu o mesmo accusado na contingencia de produzir-lhe a lesão corporal descripta em auto de corpo de delicto de fs. 8, militando assim em seu favor, e á vista das demais circumstâncias em que occorreu o facto, a justificativa da legitima defesa propria do art. 32 § 2º do Codigo Penal, combinado com o artigo 34 do dito Codigo.236

Normalmente a defesa alegava a legítima defesa como justificativa

para a agressão. Se o réu tivesse a seu favor testemunhas, escritas e

presenciais, que atestassem a sua boa índole e os seus bons antecedentes,

tudo isso reunido e temperado com motivos que o juiz considerasse

relevantes (honra, legítima defesa, entre outros) era praticamente certa a

absolvição do menor, como mostra a sentença proferida em dezembro de

1928, que diz:

Considerando que o dennunciado menor Cyrillo da Fontoura, insultado, provocado, perseguido e, finalmente, aggredido, á faca ou punhal, por Clementino Gonçalves da Silveira contra este jogou uma pedra, que o prostrou por terra e o feriu levemente (auto de corpo de delito de fls. 9);[...]Considerando que, agindo nas condições em que agiu, o dennunciado Cyrillo exerceu um direito que a lei lhe assegura – o

236 APERS, Cartório do Júri, processo nº 2160. Trecho da sentença proferida em 29 de outubro de

1928.

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de legitima defesa propria; pois foi insultado, provocado, perseguido e, afinal, aggredido por Clementino.237

A prova de legítima defesa parece ser muito mais importante do que o

delito em si, pois a sentença praticamente deixa em segundo plano a

confirmação da prática do delito segundo o Código Penal, priorizando-se o

motivo pelo qual o mesmo ocorreu. Conclui-se que a causa é mais

importante do que a conseqüência do ato, principalmente quando ele está

revestido de práticas que contrariam os pressupostos morais dos

magistrados, como demonstra a sentença:

O dito menor allega que agiu em defesa propria e de sua irmã quando aggredida por seu padrasto, homem de máus instintos, máu chefe de familia.Que habituado a insultar a todos de casa, inclusive a sua mãe, no dia do conflicto, investiu ele contra sua irmã Ursulina e, depois de proferir palavras obscenas dera-lhe um sôco.Que intervindo em defesa de sua irmã, seu dito padrasto investiu contra sí, armado de navalha, ocasião em que, naturalmente por instinto de conservação, arremessou-lhe um prato que encontrou sobre uma mesa, unica arma, então, disponivel.As testemunhas ouvidas, em número de trez, inclusive a mãe do denunciado e esposa de Selbach, confirmam integralmente a allegação da defesa.Isto posto, absolvo o denunciado nos termos do art. 32 § 2º do Codigo Penal – pagas as custas pelo Estado, na forma da lei.238

Ao ressaltar que a legítima defesa utilizada pelo réu justificava a

agressão e ao reunir provas testemunhais de que o menor agiu em favor de

membro da família contra um chefe de família inadequado, pois não se

comportava de acordo com os ideais de chefe de família, já que dizia

palavras obscenas, era agressivo, entre outras características negativas, a

defesa acabou ganhando a simpatia do julgador, talvez nem tanto pela sua

atuação, mas pelos pressupostos morais e sociais incorporados pelo juiz,

que acabou proferindo uma sentença que terminou prejudicando a “vítima” e

beneficiando o réu. Para Wolkmer, é impossível pensar que a ordem jurídica

237 APERS, Cartório do Júri, processo nº 2121. Trecho da sentença proferida em 28 de agosto de

1929.238 Idem. Cartório do Júri, processo nº 2235. Trecho da sentença proferida em 22 de outubro de

1928.

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e política estão baseadas apenas na força material do poder, pois de todo e

qualquer poder, jurídico ou político, existem valores comumente aceitos e

revestidos de interesses, desejos e anseios de determinado grupo social.

Por isso a adequação do poder é marcada por práticas históricas do

cotidiano que refletem os mecanismos de dominação social, aceitação e

obediência da sociedade em geral, ao mesmo tempo que servem de

justificativa para os aparatos normativos e trazem à tona a discussão acerca

dos problemas que envolvem legitimidade e legalidade.239

3.2.2 Delitos contra a propriedade privada: roubo ou furto

O direito reconheceu a importância da preservação da propriedade

privada, uma vez que ela faz parte do direito de liberdade do homem. Para o

direito, a ofensa à propriedade deve ser punida por se tratar de uma

violação contra a liberdade humana. Caso se negasse o direito de

propriedade, negar-se-ia o direito à liberdade, e isso demonstraria o quão

absurda mostrar-se-ia a doutrina jurídica.240

239 WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, estado e direito. 3. ed. rev. ampl. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2000. 229 p. Por legalidade, entende-se o acato à ordem normativa existente, vigente e positiva. Diz respeito à existência de leis, formal e tecnicamente impostas, que são obedecidas por regras sociais existentes em determinada situação institucional. Entende-se como legitimidade a prática que atua no senso comum dos ideais, dos fundamentos, das crenças, dos valores e dos pressupostos ideológicos, bem como as acepções de justiça partilhadas pela coletividade.

240 SIQUEIRA, Galdino. Direito Penal Brazileiro: (segundo o Código Penal mandado executar pelo Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890, e leis que o modificaram ou completaram, elucidados pela doutrina e jurisprudência). Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. v.2.

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Nos processos-crime envolvendo delitos infringidos à propriedade

privada, constatou-se que as sentenças abolutórias e condenatórias

apresentaram percentuais aproximados, nos quais preponderaram as

segundas sobre as primeiras, como mostra a Tabela 02.

Tabela 02: Crimes contra a propriedade. privada: roubo ou furto.

ROUBO OU FURTOTIPO DE SENTENÇA Nº PROCESSOS PERCENTUAL

Absolvição 05 45%Condenação 06 55%

TOTAL 11 100%Fonte: APERS, Processos Criminais, 1927-1933.

Os dados refletem um quadro diferente do revelado sobre os delitos

de lesão corporal; pode-se verificar uma inversão das condenações em

relação às absolvições.

O predomínio das condenações nos delitos contra a propriedade

salienta a importância em se proteger bens privados. Acerca da atuação da

instituição judiciária, Silva destaca:

No caso dos crimes contra a propriedade, a intenção da instituição judiciária era, provavelmente, reforçar o caráter criminal da apropriação indébita dos bens alheios, contribuindo, dessa forma, com a disciplinarização daqueles que não se adequavam ao estilo de vida que então se impunha, qual seja o de que somente o fruto do trabalho tido como honesto poderia ser utilizado como forma de garantia material da subsistência.241

No direito penal brasileiro, os legisladores seguiram os preceitos de

defesa do direito de propriedade e inseriram no Código Penal de 1890 os

tipos de crimes contra a propriedade pública e particular, especificamente

os de furto em seus Artigos: 330, 331, 332, 333, 334 e 335, e os de roubo,

nos Artigos 356 a 361, a fim de penalizar as práticas ilícitas efetuadas

contra o patrimônio privado. Segundo Siqueira, o furto consiste na prática

mais corriqueira dos delitos praticados contra os bens particulares, por isso 241 SILVA, Marcelo de Souza. Criminalidade no triângulo mineiro: crimes e criminosos na comarca de

Uberlândia/MG (1880-1920). Justiça & História, Porto Alegre, v. 4, n. 7, p. 157, 2004.

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acabou assumindo uma definição caracterizada por uma ação que tende à

apropriação ilícita do bem alheio por meio de posse, subtração, ou ato

semelhante. 242

No caso do Artigo 330, furto consiste na subtração, para si ou para

terceiro, de algum bem móvel ou coisa alheia sem o consentimento do seu

dono. A penalidade para esse delito varia conforme o valor do bem furtado,

por isso oscila entre um mês a três anos de prisão celular ou multa de 5% a

20% sobre o valor do bem.

Foi amparado no artigo mencionado que o juiz proferiu sentença

condenatória à menor Maria Alice, afirmando o que segue:

Isto posto, não dispondo este juizo de mais elementos a investigar no tocante a menor Maria Alice, uma decaida como a outra sua co-ré em virtude do ambiente em que vivia, é, não ficando, outrossim, provada a completa perturbação dos sentidos e da inteligencia das accusadas, que apenas se achavam alcoolizadas no ato de cometerem o crime, não existindo, finalmente, circumnstancias aggravantes contra as mesmas, julgo procedente a denuncia para condenar a ambas ao gráo minimo do art. 330 § 4 do Codigo Penal da Republica, ou seja, a seiz mezes de prisão celular e multa de 5% (cinco por cento) sobre o valor do furto.243

O juiz não se restringiu apenas a aplicar a lei ao julgar o pleito da

menor, ele fez questão de classificar a ré e a sua co-ré como decaídas, não

só por estarem alcoolizadas, mas também por residirem em ambiente

242 SIQUEIRA, Galdino. Direito Penal Brazileiro: (segundo o Código Penal mandado executar pelo

Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890, e leis que o modificaram ou completaram, elucidados pela doutrina e jurisprudência). Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. v. II. A caracterização do delito de furto iniciada no artigo 330 segue no artigo 331, em que foi ampliada para as situações envolvendo a apropriação do bem: por meio de erro, engano ou equívoco; que tivesse sido entregue ou consignada sob a obrigatoriedade de ressarcimento ou para uso específico; que fosse encontrado e não restituído ao dono após reclame ou manifestação deste; de animais de outrem. No caso desse artigo, a penalidade para a infração se mantinha na mesma multa determinada pelo anterior, porém com penal corporal aumentada em sua sexta parte.Os demais artigos se referem à prática dos delitos intentados contra o bem em posse devido à determinação judicial (Art. 332); a subtração de qualquer material ou documento com fins jurídicos como folhas, peças de processos, testamentos ou outros tipos de documentos (Art. 333); e bens arrolados em herança ou comunhão indivisas (Art. 334). Nestes casos, as penas variavam entre seis meses a três anos de prisão celular ou multa sobre o valor do bem subtraído. Nas situações em que marido e mulher estavam envolvidos e não separados, ascendentes ou descendentes, o crime de furto não estaria qualificado.

243 APERS, Cartório do Júri, processo nº 2079. Trecho da sentença proferida em 18 de maio de 1927.

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inadequado para moças virtuosas. Pode-se inferir que a penalidade imposta

tem uma tripla finalidade: aplicação da lei; penalização dos hábitos e

costumes da menor infratora e ratificação do poder do operador do direito

sobre a coletividade.

Essa postura, a penalidade infligida aos réus, é melhor compreendida

pelo que segue:

[...] tem por função não ser uma resposta a uma infração, mas corrigir os indivíduos ao nível de seus comportamentos, de suas atitudes, de suas disposições, do perigo que apresentam, das virtualidades possíveis. Essa forma de penalidade aplicada às virtualidades dos indivíduos, de penalidade que procura corrigi-los pela reclusão e pelo internamento não pertence, na verdade, ao universo do Direito, não nasce da teoria jurídica do crime, não é derivada dos grandes reformadores como Beccaria. Essa idéia de uma penalidade que procura corrigir aprisionando é uma idéia policial, nascida paralelamente à justiça, fora da justiça, em uma prática dos controles sociais ou em um sistema de trocas entre a demanda do grupo e o exercício do poder.244

Foucault chama a atenção para o estabelecimento das relações de

poder, que surgem muito antes do estabelecimento do poder por parte dos

operadores do direito. Um poder policialesco, que prima pelo controle e pela

punição daqueles que desrespeitam as regras acordadas pela sociedade,

em prol da ordem e do progresso, e que os juízes acabavam incorporando à

sua lide burocrática.

Essa prática policialesca e punitiva sobre os infratores tendia a ser

amenizada quando o réu comprovava os seus bons precedentes,

principalmente se complementada pela capacidade lógico-dedutiva do

julgador, como atesta a sentença referente ao delito de furto (Art. 330)

cometido pelo menor Ivo:

[...] Ao contrário; em seus depoimentos dizem nada saber em desabono da conducta de Ivo.[...] e esta versão encontra também apoio no facto do dennunciado ter ido empenhar os brincos num estabelecimento oficial, que é a

244 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2003.

p. 99.

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Caixa Economica, procedimento que não devia o autor de uma subtração criminosa.245

A partir da sentença, nota-se mais uma vez a importância de serem

comprovados, por meio escrito ou testemunhal, os bons antecedentes do

réu, mesmo quando as provas o envolvam, mesmo que indiretamente, na

cumplicidade do ato delito, como mostra a sentença, na qual o juiz diz que:

Trata-se antes de actos de reprovavel fraqueza do que intencionalmente delictuosos, e, assim interpretando os queixosos, readmittiram o denunciado na sua casa commercial.Ahi occupa o mesmo o seu antigo emprego, percebendo o ordenado que anteriormente lhe era pago.Essa conduta dos queixosos representa a rehabilitação do accusado.Examinando o seu passado, verifica-se ser bom e honesto, pelo que conclue-se não se tratar de menor pervertido, sem precisar de tratamento especial; ao contrário, é affeito ao trabalho e á noite procura, inclusive, frequentar aulas.246

A decisão referida, além de reunir todos os elementos já citados,

como bons antecedentes, ela reúne novos elementos que consistem na

readmissão do infrator pelos queixosos, na dispensa de tratamento especial,

pois é trabalhador, e por fim a freqüência do mesmo na instituição noturna

de ensino. Em vista disso, não era aceitável que se condenasse um

indivíduo de hábitos corretos e que apenas cometera um deslize devido à

coação sofrida. Como fica o ressarcimento do valor recebido pelo seu

silêncio? Isso não há como saber, mas o certo é que todas as culpas foram

voltadas para quem praticou o delito e não para quem se beneficiou dele,

mesmo sem o ter praticado.

245 APERS, Cartório do Júri, processo nº 2378. Trecho da sentença proferida em 09 de maio de

1930.246 Idem. Cartório do Júri, processo nº 3208. Trecho da sentença proferida em 06 de junho de 1931.

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Tal atitude vai ao encontro do que fala e defende Edgard de Moura

Bittencourt, quando afirma:

Na maioria das vezes, é a formação moral, mais do que as palavras da lei, que define a decisão judicial. São, muito freqüentemente, mais os princípios morais que inspiram o julgamento, e menos as regras técnicas. O ato de julgar é resultado de um convencimento íntimo, inspirado pela formação do magistrado, por suas ideologias e idiossincrasias, suas crenças, suas experiências e os valores que cultiva.247

A partir da afirmação do autor, confirma-se mais uma vez que a

interferência dos operadores do direito nas decisões judiciais – demonstrava

que estas eram freqüentemente alicerçadas em pressupostos morais pré-

concebidos a partir da vivência dos magistrados, mais do que sobre os

arcabouços legais. Outro de exemplo disso é a sentença abaixo:

Tratando-se, portanto, d’uma infracção de natureza leve, dadas as circumnstâncias apontadas, e considerando que o passado do denunciado é exemplar, revelado de excelente indole, deixo de condemna-lo de accordo com o disposto no art. 62 do Código de Menores, entregando-o à guarda de seu pai que vigiara seus actos e sua educação até que attinja á maioridade.248

Acreditava-se que – além de cumprir a lei, as normas sociais e

preservar a propriedade privada cabia ao jurista, mesmo que não se

provasse a culpa pela prática do delito, demonstrar que o sistema existia e

vigiava os que se “desviassem”, pois era preciso proteger a sociedade e os

que nela estavam integrados. A passagem abaixo é um exemplo, pois não

houve condenação, mas a Justiça se fez presente; o juiz se mostrou atuante

ao proferir, em uma passagem de sua sentença, o que segue:

247 BITTENCOURT, Edgard, de Moura. O juiz: estudos e notas sobre a carreira, função e

personalidade do magistrado contemporâneo. Rio de Janeiro: Ed. Jurídica e Universitária, 1966. p. 31.

248 APERS, Cartório do Júri, processo nº 3208. Trecho da sentença proferida em 06 de junho de 1931.

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Não existindo nos autos outros elementos esclarecedores da ação e criminalidade dos indiciados e não estando cabal e plenamente comprovada esta, absolvo os mesmos da accusação intentada, pela denuncia de fs. 2, e mando que se passe alvara a fim de porem eles soltos incontinenti se por ja não estiverem presos e entregues aos respectivos pais.249

Para além desses aspectos, a questão dos antecedentes, aliada às

provas, poderia definir prejudicar ainda mais a situação do réu, como

demonstra a seguinte passagem,

que promiscuos são os antecedentes do accusado, que por vezes tem sido preso como indiciado em crimes de furto, como demonstra o incluso boletim de identidade, sendo, pois, um individuo perigoso em razão de seu estado de perversão moral.250

Não é apenas a questão dos “maus antecedentes” do réu que chama

a atenção, que nem poderia ser considerado reincidente, visto o Código de

Menores, em seu artigo 85, dizer que o menor de 18 anos incompletos não

poderia ser considerado reincidente, mas a prática do mesmo delito por

várias vezes, ou de mesma natureza, ou de outro tipo, “contribuirá para o

equiparar a menor moralmente pervertido ou com persistente tendência ao

delito”.251

Segundo Caulfield,

os juízes deveriam levar em consideração tanto as mudanças das normas e os progressos científicos como as características dos envolvidos nos processos. O direito criminal, insistia, não era simplesmente punitivo, mas normativo; dependia dos juízes a aplicação da lei de forma que preenchesse sua “função tutelar da disciplina social”.252

249 APERS, Cartório do Júri, processo nº 2636. Trecho da sentença proferida em 09 de junho de

1930.250 Idem. Cartório do Júri, processo nº 2157. Trecho da sentença proferida em 30 de junho de 1930.251 BRASIL. Código de menores: decreto n. 17.943 - A, de 12 de outubro de 1927. Porto

Alegre: Globo, 1928. p. 26.252 CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro

(1918-1940). São Paulo: Unicamp, 2000. p. 255.

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Outro ponto também visível na passagem da sentença anterior e em

outras sentenças diz respeito ao encaminhamento do réu à instituição

destinada ao cumprimento da pena. Apesar de o Código de Menores, no

artigo 86, salientar que “nenhum menor de 18 anos, preso por qualquer

motivo ou apreendido, será recolhido à prisão comum,” na prática isso não

acontecia, pois os réus, quando condenados, eram direcionados à Casa de

Correção de Porto Alegre, com recomendação de serem separados dos

criminosos adultos.

Apesar de essa prática ser comum entre os juízes, eles reconheciam

que o Estado estava despreparado para o recebimento dos menores

delinqüentes, como demonstra o trecho da sentença proferida:

Deixo, ainda, de sentencial-o á internação em uma escóla de reforma, por não existir no Estado estabelecimento desta natureza e faltar a Casa de Correcção da Capital o apparelhamento necessario ao regime disciplinar e educativo exigido no caso.253

Mesmo com as dificuldades apresentadas pelo Estado, e com a falta

de estrutura adequada à “reforma” dos menores, era primordial que a lei

fosse aplicada, principalmente quando os elementos necessários à

condenação estavam reunidos.

Quanto ao crime de roubo (Art. 356), o Código Penal o classificava

com base no Artigo 330 (furto), mas acrescentava a ele a prática de

violência na realização do ato. Assim, quando a subtração de bem, para si

ou para outrem, era efetuado com violência contra a pessoa ou forçando a

coisa, as penas deveriam ser computadas entre prisão celular de dois a oito

anos.254 Como já referido, quem definia o delito do menor era o Código

Penal, e não o Código de Menores.

253 APERS, Cartório do Júri, processo nº 4869. Trecho da sentença proferida em 14 de março de

1931.254 SIQUEIRA, Galdino. Direito Penal Brazileiro: (segundo o Código Penal mandado executar pelo

Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890, e leis que o modificaram ou completaram, elucidados pela doutrina e jurisprudência). Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. v. II.

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Por violência (Art. 357), o texto legal definia a ação praticada contra a

pessoa sempre que, por meio de agressão física, ameaças ou qualquer

outro tipo de ato, incapacitasse a vítima de defender os seus bens ou os de

terceiros sob à sua responsabilidade. O artigo considerava violência contra

o indivíduo a invasão, à noite, da casa ou estabelecimento, empregando

escalada, arrombamento ou a utilização de ferramentas para abrir os locais

invadidos, com o apoio de serviçal do recinto ou se apresentando como

autoridade pública oficial. Os roubos que se utilizassem de violência contra

o bem móvel também eram passíveis de pena, pois empregavam

arrombamentos externos e internos, bem como a destruição de alguma

parte da construção para adentrar no recinto (Art. 258). Quando a vítima do

roubo morresse em decorrência dos ferimentos causados na ação, as penas

poderiam variar entre doze e trinta anos de prisão celular. Nos artigos 259 e

260, as atenções estavam voltadas para a penalização do crime quando

estes envolvessem as lesões corporais mencionadas no artigo 304, mesmo

que a subtração do bem não se concretizasse. O fabrico de ferramentas

destinadas à prática do delito era penalizado com a prisão celular por tempo

que variava entre seis meses a três anos. Em resumo, para Galdino

Siqueira, o roubo nada mais era do que um furto ocorrido com a utilização

da força. 255

A partir da análise dos processos criminais envolvendo menores

infratores, constatou-se que apenas três denúncias envolvendo menores

foram tipificadas e caracterizadas como roubo, segundo a orientação do

legal. Nestes, em dois casos houve a condenação dos réus, pois, segundo o

entendimento do juiz:

Ora, dos autos consta tão o réo, em dias do mez de agosto do anno findo – 1931 – prostrado no predio da Rua dos Andradas, nesta cidade, onde está estabelecida a Confeitaria Loffmann, por meio da violencia á soma, e, alí, arrombado uma gaveta, subtraido, para si, a importancia de cem mil réis e mais umas vintemoedinhas de duzentos réis.Por outro lado – é, ele, menor de 18 annos e maior de 16, fato que lhe aproveita a disposição do art. 65 do Cod. Penal, por força do

255 SIQUEIRA, Galdino. Direito Penal Brazileiro: (segundo o Código Penal mandado executar pelo

Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890, e leis que o modificaram ou completaram, elucidados pela doutrina e jurisprudência). Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. v. II.

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composto no art. 71 do Cod. de Menores – Dec. 17.943A, de 12 de out. de 1927.Por isso julgo procedente a denuncia de fls. 2 para condenar, como condeno o réo Pedro Dias a um anno e quatro mezes de prisão, metade trez e um terço por cento (3 1/3) do valor do damno gravissimo do art. 356 comb. com 65 do Cod. Penal e 71 do Dec. 17.943A, de 1927 e outras.256

Caracterizada a prática do crime de roubo por meio do arrombamento

da gaveta do estabelecimento onde dinheiro era guardado, e confirmado

pelo exame de delito, o juiz apenas aplicou a lei sem delongas, mas

ressaltou que, por ser o réu menor de 18 anos de maior de 16 anos de

idade, teve a sua pena reduzida por influência do Código de Menores,

conforme o Artigo 71:

Si fôr imputado crime, considerado grave pelas circumstancias do facto e condições pessoaes do agente, a um menor que contar mais de 16 e menos de 18 annos de idade ao tempo da perpetração, e ficar provado que se trata de individuo perigoso pelo seu estado de perversão moral o juiz Ihe applicar o art. 65 do Codigo Penal, e o remetterá a um estabelecimento para condemnados de menor idade, ou, em falta deste, a uma prisão commum com separação dos condemnados adultos, onde permanecerá até que se verifique sua regeneração, sem que, todavia, a duração da pena possa exceder o seu maximo legal.257

Quanto à segunda condenação por roubo, também houve a aplicação

do artigo 71 do Código de Menores, combinado com os do Código Penal

destinados ao delito de roubo. Segundo a sentença, o juiz entendeu que:

O menor Fredolino da Conceição, solteiro, jornaleiro, de côr preta (ou Laudelino e ainda Adelino, nomes que usa, conforme se ve do “Boletim de Informações” fornecido pelo Gabinete de Identificação) é dennunciado, pela Justiça Publica, pelo crime de tentativa de roubo em um predio sito á “Avenida Júlio de Castilhos” nº 1087, desta cidade.

256 APERS, Cartório do Júri, processo nº 2655. Trecho da sentença proferida em 10 de fevereiro de

1932.257 BRASIL. Código de menores: decreto n. 17.943 - A, de 12 de outubro de 1927. Porto

Alegre: Globo, 1928. p. 23.

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Surpreendido com um seu companheiro, no momento da perpetuação do crime, foi preso em flagrante, como tudo consta dos autos.[...]

Attendendo que robusta é a prova colligida no tocante á auctoria, sendo as testemunhas presenciais do facto, inclusive os praças que effetivaram o flagrante;Que o auto de fl. 10 constata o arrombamento da porta dos fundos do predio acima referido;Que promiscuos são os antecedentes do accusado, que por vezes tem sido preso como indiciado em crimes de furto, como demonstra o incluso boletim de identidade, sendo, pois, um individuo perigoso em razão de seu estado de perversão moral.Isto posto, julgo procedente a denuncia para condenar o dito réo a pena de (10) mezes e (20) vinte dias de prisão, gráu minimo dos artigos 356, 63, 64 e 65 do Codigo Penal combinado com o art. 71 do Codigo de Menores, isto é, por lhe ser applicada a pena minima da cumplicidade de tentativa de roubo, em razão de sua edade.258

Nessa situação específica, aos elementos legais (flagrante,

arrombamento e testemunho dos praças) reunidos para a condenação do

réu e de seu companheiro, são reunidos outros: antecedentes junto à polícia

pelo mesmo delito, falsidade ideológica e o fato de estar em estado de

perversão moral.259 A reunião de todos esses dados foi decisiva para a

condenação do réu, pois era necessário proteger a sociedade de indivíduo

de natureza perversa e perigosa, por isso prejudicial à coletividade.

Para Foucault, a utilização de adjetivos negativos para rotular os

desordeiros se tornou necessário devido à impossibilidade de se sustentar o

argumento de que a pobreza era fator determinante para a enunciação dos

criminosos ao crime. Para o autor:

Ele rouba porque é pobre, mas você sabe muito bem que nem todos os pobres roubam. Assim, para que ele roube é preciso que haja nele algo que não ande muito bem. Este algo é seu caráter, seu psiquismo, sua educação, seu inconsciente, seu desejo. Assim, o delinqüente é submetido a uma tecnologia penal, a da prisão, e a uma tecnologia médica, que se não é a do asilo, é ao menos o da assistência pelas pessoas responsáveis.260

258 APERS, Cartório do Júri, processo nº 2157. Trecho da sentença proferida em 30 de junho de

1930.259 Não se analisou a questão da cor do réu porque não foi possível traçar o perfil racial dos menores

infratores, já que tais informações não constam em todos os processos.260 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 22. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006. p. 135.

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Como o autor destaca, o surgimento de saberes específicos se tornou

necessário para o tratamento, regulação e controle dos “anormais”, pois a

situação social do indivíduo já não servia mais como justificativa para a sua

dominação, principalmente se fosse pobre. A partir dessa necessidade é

que a psiquiatria, a criminologia, os reformatórios e outros espaços

controlados foram destinados aos que os operadores do direito julgassem

inaptos para o convívio social e à reprodução dos hábitos idealizados pelos

higienistas.

Por fim, no terceiro processo envolvendo os dois menores acusados

de roubo, a sentença determinou a liberação de ambos, pois, segundo os

autos do processo, lê-se:

Nenhum valor decisivo tem no caso o auto de flagrante de fs., pois que, segundo dele comnsta, não foram os indiciados presos no ato de cometerem o delicto que se lhes atribui ou durante a respectiva fuga, perseguidos pela victima ou pelo clamor publico mas sim apenas “no ato de transportarem pela rua da Conceição, quase entre S. Rafael e Caminho Novo, uma caixa de charuto contendo dinheiro de niquel e papel”... E isto precisamente é o que em seu depoimento em juizo diz a unica testemunha que pôde ser ouvida sobre o facto – o policial que efetuou a prisão dos indiciados – o qual declara todavia não ter inquerido os mesmos sobre a origem ou procedência da caixa e dinheiro aludidos, nem nada saber a respeito, havendo se limitado na ocasião a dete-los e leva-los á chefatura, onde os deixou, e acrescentando ainda que nunca ouviu dizer que fossem eles dados ao vicio da gatunagem.261

Os acusados foram absolvidos não apenas pela falta de provas

contundentes sobre a materialidade do fato, mas também por contar a favor

deles a inexistência de maus antecedentes, “prova” sempre considerada

pelos juízes na hora de redigir as sentenças.

261 APERS, Cartório do Júri, processo nº 2636. Trecho da sentença proferida em 09 de junho de

1930.

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3.2.3 Delito praticado contra a honra: defloramento

Promulgado em 1890, o Código Penal vigorou por aproximadamente

quarenta anos no ordenamento jurídico brasileiro. Sofreu várias

modificações devido às suas falhas e omissões, mas permaneceu inalterado

quanto aos crimes sexuais; apenas o crime de atentado ao pudor foi

modificado em 1915. 262

Quanto ao delito de defloramento, o Código o conceituou como sendo

a cópula carnal ocorrida com mulheres virgens e menores de 21 anos,

somente se o consentimento tivesse sido dado pela vítima pelo emprego de

sedução, engano ou fraude. A pena para o delito variava entre um e quatro

anos de prisão celular. Apesar de ter sido definido pelo Código, o conceito

de defloramento não encontrava consenso entre os doutrinadores da época,

que o analisavam a partir de vários ângulos: rompimento do hímen, cópula

carnal, entre outros.263

Os crimes processados pela Vara do Júri de Porto Alegre entre 1927 a

1933 apresentaram apenas um tipo de finalização: a absolvição dos réus,

como mostra a Tabela 03.

Tabela 03: Crimes contra a honra: defloramento.

DEFLORAMENTOTIPO DE SENTENÇA Nº PROCESSOS PERCENTUAL

Absolvição 03 100%Condenação 00 0%

TOTAL 03 100%Fonte: APERS, Processos Criminais, 1927-1933.

A absolvição dos réus se deu por meio de sentenças que julgaram

improcedentes as queixas ou as denúncias. Nesses casos, os processos

eram finalizados antes mesmo de chegar ao seu destino final, o Júri. Para

Sleimon, essa prática demonstrou que os réus não foram devidamente

punidos e que: 262 SLEIMON, Viviane Moura. Histórias de crime e sedução no Rio Grande do Sul de 1890 a

1930. 2001. 366 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Faculdade de Direito, PUCRS, Porto Alegre, 2001.

263 SLEIMON, loc. cit.

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Os crimes não receberam a atenção merecida ante a gravidade dos fatos, sendo os processos resolvidos pelo “jeitinho brasileiro”. O resultado a que chegamos nos causa estranheza, posto que na época havia uma política de higienização que visava manter a ordem social e propiciar o progresso da nação. Podemos concluir, portanto, afirmando que o controle da moralidade popular era essencialmente exercido sobre os menores, e não sobre os criminosos, posto que as vítimas ficavam marginalizadas, estigmatizadas pela desonra, enquanto os sedutores ficavam livres.264

A autora não atribuiu responsabilidade a ninguém pela impunidade

dos sedutores, mas os processos-crime nos fazem crer que eram os

próprios juízes os responsáveis pela não condenação daqueles que

seduziam as menores, pois a eles se atribuíam o poder de decisão sobre a

honra das jovens defloradas. No caso do processo iniciado pela doméstica

Marfiza Cabral, mãe da vítima de defloramento Theodolina Cabral, com

dezesseis anos de idade, o juiz assim entendeu:

Não é justo que haja pressa de um casamento com uma rapariga prostituida, nem mesmo filha de familia conceituada. Ao que se presume a honra até o intento de ser negociado a (ilegível), por parte da mãe da victima, do processo, mediante determinado pagamento.Dos depoimentos prestados pelas testemunhas comnstatam que a victima não tinha uma vida regular e que tinha varios namorados, entre as suas testemunhas neste processo. 265

A afirmativa lida na sentença se reproduz nos outros processos

analisados, mostra que os juízes personificavam a própria justiça e

determinavam aqueles que eram dignos de absolvição ou condenação, não

apenas amparados na lei, mas principalmente tomavam as decisões

segundo os seus preceitos morais, que, no caso das sentenças analisadas,

suplantavam o código legal vigente. Os juízes não seguiam os rituais legais

264 SLEIMON, Viviane Moura. Histórias de crime e sedução no Rio Grande do Sul de 1890 a

1930. 2001. 366 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Faculdade de Direito, PUCRS, Porto Alegre, 2001. p. 79-80.

265 APERS, Cartório do Júri, processo-crime nº 5332. Sentença proferida em 24 de dezembro de 1930.

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com imparcialidade, pelo contrário, penalizavam as vítimas pelo seu

comportamento inadequado.

A classificação da vítima como prostituída, por parte do juiz, expressa

como o operador do direito estava imbuído de dupla função: o de civilizador

e de marginalizador social. Ao rotular a vítima, e ao ratificar seu

posicionamento por escrito, estava atribuindo seus valores morais sem levar

em consideração que a vítima estava procurando na Justiça a reparação do

mal que lhe fora causado e que a marcaria pelo resto da vida.

Por fim, a sentença seguiu os mesmos trâmites exigidos: exame de

corpo de delito, que constatou defloramento antigo. Apesar disso, as

testemunhas arroladas comprovaram que a vítima não tinha vida regrada e

que possuía muitos namorados. A partir das testemunhas de defesa, o juiz

se reportou à acusada como “rapariga prostituída” e absolveu o réu. Não

satisfeita, a mãe da vítima apelou da sentença, mas esta foi mantida devido

à falta de credibilidade da mãe e da filha, e manteve o mesmo discurso

daquele concedido pela primeira instância:

Accordam em primeira Camara do Superior Tribunal negar provimento á apellação, para confirmar a absolvição de apellado, Viterbo Jardim de Menezes, vistos que são destituidas de credibilidade, por suas flagrantes contradições, as declarações da offendida, unica prova em que se firma a accusação.266

Na sentença, pode-se perceber que houve um duplo castigo, para a

filha e para a mãe, pois ambas não seguiram a conduta adequada às

mulheres da época: recato e preservação da família, entre outras. Isso

demonstra, mais uma vez, que não cabia apenas ao direito educar a mulher

e a sociedade, mas também era da responsabilidade da família educar a

mulher para ser uma boa esposa e mãe. Cabia à família reproduzir os ideais

higienistas e moralizantes principalmente no tocante à sexualidade

feminina. Qualquer desvio cometido pela mulher era atribuído à família. E,

quando isso não acontecia, nada mais justo do que punir as culpadas, para

266 APERS, Cartório do Júri, processo-crime nº 5332. Sentença da apelação proferida em 12 de

setembro de 1931.

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que servissem, inclusive, de exemplo aos demais pares, pois o sexo

puramente por prazer deveria ser reprimido, já que ao sexo feminino era

permitido apenas obedecer ao marido, ao pai, aos irmãos, e servir aos

filhos.

Pensando apenas na reprodução e na manutenção desses preceitos

sociais, o operador do direito desconsiderava que os hábitos e costumes

dos grupos sociais desfavorecidos que a ele recorriam eram diferentes

daqueles proferidos e defendidos por ele, pois as mulheres precisavam

buscar seu sustento e para isso era necessário que estivessem presentes

nos ambientes públicos. Enquanto o mesmo não ocorria com as mulheres

dos grupos sociais abastados, as quais se mantinham reclusas e que tinham

demarcados e delimitados os espaços por onde poderiam circular.

Como aponta Sleimon acerca da atitude do aparato jurídico frente ao

comportamento dos grupos populares:

[...] nada mais propício ao controle da moralidade popular e à observação dos costumes do que o sistema jurídico. Quando a educação não era suficientemente forte para inibir os instintos sexuais, em se tratando do sexo feminino, e coibir a realização de determinadas condutas indesejadas, os higienistas da época apostavam numa alternativa, levando o fato ao conhecimento dos operadores do direito. No curso dos processos judiciais, a menor era dolorosamente civilizada, sendo simultaneamente castigada, marginalizada e educada.267

O posicionamento dos juízes também demonstrou como a

preocupação com a moralidade e os bons costumes estavam presentes em

todas as esferas sociais, principalmente quanto à virtude feminina, como

aconteceu no caso do defloramento de Maria José da Silva, com vinte anos

de idade, ocorrido sob a promessa de casamento,

Alem disto, os depoimentos das testemunhas indicam que a presente victima teve varios namorados antes e depois de Manoel

267 SLEIMON, Viviane Moura. Histórias de crime e sedução no Rio Grande do Sul de 1890 a

1930. 2001. 366 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Faculdade de Direito, PUCRS, Porto Alegre, 2001. p. 159.

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Silva. Mas, acima de qualquer suspeita fica o depoimento da propria ofendida que diz (fl.56): “o dennunciado era seu namorado; foi por ele deflorada, tendo consentido em ser por ele deflorada porque gostava dele. 268

Chama atenção, e isso não se refere apenas à realidade porto-

alegrense, mas também às outras cidades brasileiras, como Rio de Janeiro

e São Paulo, o tipo de “tratamento” dispensado às defloradas, que refletia o

ideal de moral e “bons costumes” da época reproduzido pelos juízes. Isso se

deve ao fato de que esses operadores do direito, como representantes do

Estado e da civilização, deveriam defender a ordem social e os ideais de

família por eles proclamados, mesmo que para isso precisassem

desconsiderar o futuro das mulheres defloradas, porém desvirtuadas,

dizendo que:

Não se pode dizer que o réo fosse noivo da victima – pois ela,quase maior de edade não deveria acreditar que um rapaz fosse casar com ela. É o caso de se resignar até que se houve seducção – ela, a mulher, por ser maior de edade foi quem seduziu a Manoel da Silva. 269

Acima, o juiz se posicionou da seguinte forma: destacou o fato de a

vítima estar quase na maioridade; levantou a possibilidade de que tenha

sido a vítima quem seduzira o réu, e não o contrário; questionou o

comportamento da vítima; e por fim, chamou a atenção para o

consentimento da vítima em ser deflorada. Seria possível discutir outros

aspectos, mas esses quatro são suficientes para questionar a atitude dos

juízes frente a tais questões.

A inversão de papéis também poderia ser justificativa para a

absolvição do réu, principalmente quando a vítima tinha idade superior a do

seu sedutor. Nessa situação, o réu assumia o lugar da vítima, enquanto a

vítima se tornava a praticante do delito, como ocorreu com a menor

268 APERS, Cartório do Júri, processo-crime nº 2465. Sentença proferida em 04 de dezembro de

1930.269 APERS, loc. cit.

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deflorada de nome Jocelicia da Costa, cuja sentença foi proferida nos

seguintes termos:

Compulsados os autos, apura-se que só existem contra o dennunciado as declarações da offendida, que devem ser tomadas em consideração, com caracter de credibilidade, em casos da natureza do que se trata, quando apoiadas em outros elementos do processo, o que aqui não acontece, encontrando formal contradicta no depoimento da testemunha Licia de Oliveira. Demais, o auto corpo de delicto de fls 9 e v. só favorece o accusado, pois, entendem os mais acatados professores de Medicina Legal, entre eles Lutand e Tadieu, que a constactação de defloramento recente vai até dez dias atraz ou mais, - o referido exame afirma um defloramento antigo, tendo sido feito naquele limite de tempo.270

Entretanto, Jocelicia não apresentou testemunhas a seu favor, apenas

o réu as teve. Além das testemunhas, o mesmo apresentou inexistência de

qualquer problema físico ou mental, nem mesmo em seu passado, e ainda

se mostrou capaz de se sustentar, visto estar longe de seus pais. Assim,

mostrou-se plenamente adequado às normas que regem um bom cidadão.

Diante da situação, o juiz distrital providenciou outros elementos

necessários ao processo devido à falta de testemunhas: exame de corpo de

delito. E, apesar de constatado o defloramento, o réu foi absolvido.271

Nota-se, nas situações relatadas, que as absolvições ocorreram

porque as vítimas não conseguiram “provar” o seu bom comportamento, ou

melhor dizendo, “bons antecedentes”. É corriqueiro, não só nessas

sentenças, mas em todos os estudos referentes a casos de defloramento de

outras regiões brasileiras, como Rio de Janeiro e São Paulo, a inversão dos

papéis sociais, em que mais uma vez o réu se torna a “vítima” e a vítima, o

réu.

As três situações apresentam nítidas representações acerca de como

as mulheres pobres eram tratadas pela Justiça caso não provassem seus

bons antecedentes. Como apresenta Esteves quando fala sobre a

preocupação dos juristas brasileiros do final do século XIX e início do XX

270 APERS, Cartório do Júri, processo-crime nº 3285. Sentença proferida em 29 de maior de 1931.271 Para aprofundar as questões referentes à prática e aos procedimentos legais de crimes sexuais:

ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Epoque. São Paulo: Paz e Terra, 1989. 212 p.

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com os crimes sexuais, exemplificou com Viveiros de Castro, famoso jurista,

dizendo que para:

Viveiros, em seus escritos, demonstra de uma forma muito clara as intenções jurídicas de melhor punir, e facilmente se percebe que era o momento de pensar a Justiça. Em geral, preocupava-se com o aumento da criminalidade e com os problemas que afetavam as famílias e os interesses sociais; reclamava das inseguranças e incertezas que sofriam os juízes, promotores e advogados, pois faltavam princípios claros, uniformes, seguros e simplificados para a aplicação das leis. Na sua visão, e também nas dos outros juristas do período, os caminhos para a civilização do país estariam numa eficiente legislação que garantisse o “respeito pela honra da mulher”.272

Parece comum a prática dos juízes de transportarem para as suas

decisões os seus discursos morais, as quais refletiam a visão de mundo e

da sociedade que possuíam. Em pelo menos três regiões do Brasil – Rio

Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro – esse fato aparece. Por meio

das regras morais defendidas, os juízes acabavam absolvendo o réu como

forma de “punir” as menores que não estavam dentro dos padrões de

honestidade feminina, como demonstram as três sentenças mencionadas.

Nota-se nas passagens proferidas que a honestidade estava

indissociada do comportamento e da conduta da vítima, e não se referiam

apenas à castidade. Pode-se verificar esse fato pelo que diz a autora

Martha Esteves:

A preocupação com a conduta situava-se num contexto político e social mais amplo. Não se resumia simplesmente num elemento legal para completar os pré-requisitos de um crime sexual; não se ligava apenas à repressão de um ato criminoso (estabelecendo a verdade e determinando o autor) ou à retribuição pertinente ao caso. Pela influência da escola jurídica positivista, o julgamento de um crime levava em conta a defesa social, pois o crime atingia toda a sociedade, e a conduta total do réu, no sentido de se determinar seu grau de periculosidade. Os juristas estavam, como os médicos, imbuídos da missão de formar cientificamente o cidadão completo, cumpridor de papéis interdependentes: trabalhador, membro de uma família e indivíduo higienizado

272 ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de

Janeiro da Belle Epoque. São Paulo: Paz e Terra, 1989. p. 35.

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(moradia, lazer e corpo saudáveis, por exemplo). O aprofundamento das correlações entre honestidade, moral e bom trabalhador, no meio jurídico, formavam o triângulo referencial riquíssimo na sociedade que se desejava formar.273

Outra situação que se depreende das passagens está no papel

pedagógico da fala jurídica, pois, ao se incutir na mulher a responsabilidade

sexual, acreditava-se que ela reproduziria a mesma não apenas nas suas

relações sexuais como também na escolha do parceiro. Assim, a mulher

teria uma “prole saudável” e manter-se-ia honrada, garantindo, dessa forma,

um bom futuro à sociedade. Para tudo isso era importante o casamento,

local livre do amor.

Tornando-se “irresponsáveis”, e mais, apresentando-se dessa maneira

quando vítimas de crimes sexuais, as ofendidas encontrariam sérias

dificuldades para provar a sua honestidade e boa conduta frente aos

padrões do aparato jurídico.274

Tais situações são mais visíveis nas camadas menos abastadas da

sociedade, não que o mesmo não ocorresse entre os grupos sociais mais

afortunados, mas é que estes “abafavam” a situação com casamentos

arranjados ou outros subterfúgios, enquanto o populacho recorria ao que

estava mais próximo, as delegacias e os tribunais, mesmo que o fato se

tornasse público. Para Esteves,

como todas as moças que procuravam a polícia e, indiretamente, a Justiça, eram oriundas das camadas populares, a associação entre essas camadas e comportamentos tidos como desordeiros era direta e clara. Eram as camadas populares vistas então como doentes e, conseqüentemente, como alvos da polícia sexual. Em nenhum momento vozes de juristas se levantaram para atribuir esses comportamentos, pelo menos, às precárias condições de vida. Seria demais exigir deles uma visão de que nossa sociedade possuía culturas diferentes e opostas. Pelo contrário, seu objetivo era evitar essas distinções e conflitos. A doença estava nas camadas populares e nos seus comportamentos.275

273 ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de

Janeiro da Belle Epoque. São Paulo: Paz e Terra, 1989. p. 41.274 Ibidem, 212 p.275 Ibidem, p. 67.

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Ao mesmo tempo que se sentiam representantes do Estado e

civilizadores da sociedade, os juízes e os higienistas ignoravam a existência

das diferenças. Professavam argumentos para uma sociedade idealizada,

sem imperfeições. Ignoravam a existência de diferentes valores, atitudes e

comportamentos os quais muitas vezes eram determinados pelas condições

sociais dos diferentes grupos inseridos na sociedade. Por isso promoviam a

estigmatização, a exclusão e a penalização, principalmente daquelas

mulheres que não seguiam os preceitos morais da época e que, com as

suas atitudes, maculavam o progresso do País e a honra masculina.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo da pesquisa, constatou-se que desde a consolidação do

Estado moderno as suas práticas se voltaram para o controle da sociedade,

principalmente por meio da violência oficial do Estado, como forma de

legitimação de seu poder. Para a efetivação de seu poder, ele se rodeou de

um aparato burocrático como forma de estender o seu alcance a todos os

espaços. Dentre os burocratas mais importantes do Estado, destaca-se o

jurista, responsável pela reprodução e imposição das normas e práticas

necessárias ao controle dos indivíduos.

Para tornar possível o ordenamento da sociedade, o Estado adotou,

desde os seus primórdios, a criação de instituições responsáveis pela

imposição da ordem ao espaço público. Aos poucos, as ramificações do

Estado foram em direção à vida privada dos indivíduos, bem como à família,

por meio de regras jurídicas estabelecidas para que nos núcleos familiares

não ocorressem exageros (lesões corporais, crimes sexuais, entre outros).

Para alcançar e garantir a ordem comportamental, a modernidade –

leia-se o Estado – foi buscar apoio na disciplina, que se estendeu desde a

maneira de se portar à mesa até a maneira como empreender

manifestações públicas, reivindicatórias ou não, a fim de homogeneizar a

sociedade, o que facilitou também a identificação dos outros (perigosos), a

fim de evitar que essa periculosidade se espalhasse.

No Brasil, as questões referentes à “infância em perigo” originaram

tipos de intervenção social, diversos conflitos sobre como legitimar a

sistemática intervencionista e até como delimitar o agente mais capaz de

realizar tais práticas, principalmente no que se referia à infância

“delinqüente”. Essa foi uma preocupação dos estados no mundo ocidental.

No caso brasileiro, desde finais do século XIX, várias leis destinadas à

infância foram aplicadas e acabaram sendo substituídas, em 1927, pelo

Código de Menores.

O destino da civilização ocidental, então, foi entregue à infância.

Dessa forma, as crianças dos grupos sociais pobres receberam atenção

redobrada, com direito à educação básica e profissional, ao cuidado com o

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corpo, à higienização dos hábitos e, por fim, à disciplina dura. Tudo isso foi

necessário porque esses pequenos deveriam se tornar bons cidadãos,

afeitos ao trabalho e submissos às regras vigentes na sociedade na qual

estavam inseridos.

A imposição das regras sociais e morais foi efetivada pelos

magistrados, que se julgavam, além de representantes do Estado,

defensores da moral, dos bons costumes e da ordem pública. Como

intelectuais, os magistrados se amparavam nas teorias criminológicas em

voga para impor à sociedade o seu ideal de civilização.

Os magistrados, em meio às suas práticas – que por vezes se

desviavam da lei, pois as decisões judiciais estavam envoltas em preceitos

morais –, determinavam quem era digno de absolvição ou punição somente

levando-se em consideração os hábitos e costumes dos réus. Essas

práticas foram facilmente identificadas nos processos criminais envolvendo

menores, cuja análise não deixou dúvidas quanto às atitudes dos juízes

frente aos delitos praticados, principalmente aqueles envolvendo

defloramento.

A partir da análise da documentação empírica, principalmente das

sentenças oriundas daqueles delitos que ocorreram em maior quantidade –

lesões corporais, furto e/ou roubo e defloramento –, os preceitos e

preconceitos morais dos juízes apareceram com maior intensidade nos

casos de defloramento de menores. Nas sentenças proferidas nesses

processos, os magistrados questionavam sempre o comportamento das

moças vitimadas. Para que elas fossem dignas da proteção da lei, o seu

comportamento e as suas atitudes deveriam estar de acordo com a conduta

que os juízes julgavam ser adequada às mulheres da época: recato,

preservação da família, discrição, pureza (virgindade). Caso a moça não

preenchesse todos esses requisitos, seu destino era traçado pelo juiz sem

levar em consideração as necessidades financeiras e sociais da vítima.

Todavia, essa ação dos juízes não consistiu apenas em uma

preocupação social e moral com a imagem da mulher e do seu futuro, mas

em uma preocupação em se preservar a honra masculina – do pai, do irmão,

do marido, do filho. Como líder e protetor da família, o homem foi

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responsável pela regulamentação e controle da vida sexual e social da

mulher, pois uma prole sadia era aquela originada de uma mulher “sadia”.

A preservação e a defesa da honra masculina também foram

preocupações que figuraram nas sentenças proferidas nos casos

envolvendo os delitos de lesões corporais. Nesses casos, o ataque à vítima,

por parte do réu, foi justificado pelo próprio juiz como justo e fundamentado,

visto que serviu para defender a honra – ataque físico injustificado ou aos

brios masculinos.

Por fim, as sentenças que estavam pouco impregnadas dos valores

morais dos magistrados foram aquelas envolvendo o delito de furto/roubo.

Ao contrário das decisões anteriores, nas quais os juízes deixavam em

segundo plano a lei, nesse tipo de delito eles aplicavam a lei sem muito

divagar.

No tocante aos delitos referidos, a análise da documentação

demonstrou que todas as situações envolveram membros das camadas

menos abastadas da sociedade. Todavia, isso não significa dizer que esses

comportamentos e atitudes não ocorriam entre os grupos sociais mais

favorecidos, a explicação para isso está no fato de que todo e qualquer

“delito” praticado era resolvido “internamente”, não era necessário auxílio da

Justiça.

O que também chamou a atenção na análise das sentenças foi a

incapacidade demonstrada pelos magistrados de analisar cada caso a partir

da realidade social das partes. Não que a prática de delitos seja defendida

nesse trabalho, mas se critica a forma personalizada com que os juízes

julgavam os processos, pois na maioria das sentenças proferidas eles não

consideraram os direitos das vítimas, apenas aplicavam seus preceitos

morais, e muitas vezes transformavam as vítimas em rés, e os réus em

vítimas.

A partir dessa inversão de papéis, percebeu-se que os poderes dos

magistrados ultrapassaram as leis, pois essas, na maioria das vezes, eram

suplantadas pelas suas opiniões pessoais independentemente do destino da

vítima e de seus direitos.

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