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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Lucas Alves de Camargo A luta pelos Direitos Humanos - O Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco (1977-1983) Programa de Pós-Graduação em História São Paulo 2017

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Lucas Alves de Camargo

A luta pelos Direitos Humanos - O Centro de Defesa dos Direitos

Humanos de Osasco (1977-1983)

Programa de Pós-Graduação em História

São Paulo

2017

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Programa de Pós-graduação stricto sensu em História

Lucas Alves de Camargo

A luta pelos Direitos Humanos - O Centro de Defesa dos Direitos Humanos de

Osasco (1977-1983)

Mestrado em História

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em História Social, sob a orientação da professora Mariza Romero.

São Paulo

2017

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BANCA EXAMINADORA

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Para minha mãe, Maria do Rosário Alves

de Camargo, que me fez acreditar no

poder transformador do conhecimento.

Para Claudinei de Camargo, pai herói que

se fez enquanto espelho da minha vida.

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Aluno bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior (CAPES) durante o primeiro e segundo semestre de 2015.

Bolsista do programa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e

Tecnológico (CNPQ) no decorrer do primeiro e segundo semestre de 2016.

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Agradecimentos

Aos meus pais, Claudinei e Maria do Rosário, que me orientaram para que eu

valorizasse meus objetivos com honestidade e empenho. Estiveram sempre ao meu

lado, com a capacidade excepcional que possuem de transformar momentos difíceis

em aprendizados. Obrigado pela confiança em mim depositada.

À minha esposa, Renata, companheira fiel que sempre me auxiliou em todas

as etapas acadêmicas que vivenciei. Através de sua paciência, amor e perseverança

pudemos superar juntos todos os desafios encontrados.

À minhas irmãs, Camila e Julia, que estiveram ao meu lado em todos os

momentos importantes. Foram em muitas vezes o sorriso e a virtude que me

motivaram para esse trabalho.

Aos demais familiares e amigos, que dividiram comigo sua amizade e

companheirismo.

À minha orientadora, Mariza Romero, grande incentivadora dessa pesquisa,

acompanhou o projeto desde a graduação, com importantes recomendações e

ensinamentos que possibilitaram a construção dos entendimentos presentes nessa

dissertação. Sem a sua dedicação essa pesquisa não seria possível.

Aos colegas do programa de pós-graduação em história da PUC-SP, que

compartilharam momentos acadêmicos importantes para a construção de nosso

percurso de pesquisa.

Aos professores do departamento de História da PUC-SP, em especial aos

professores Amailton Magno Azevedo, Antônio Rago Filho, Carla Reis Longhi,

Estefânia Knotz Canguçu Fraga, Ettore Quaranta, Luiz Antônio Dias, Maria do

Rosário da Cunha Peixoto, Olga Brites, pelas aulas inspiradoras que me

apresentaram a complexidade da História. Foram fundamentais para o meu

processo de formação desde a graduação.

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Às professoras Brenda Maribel Carranza Dávila e Maria José Fontelas

Rosado Nunes, que realizaram uma leitura cuidadosa do presente trabalho e

apresentaram recomendações importantes durante o exame de qualificação.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e

ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), que

ofereceram o suporte financeiro necessário para custear as etapas dessa pesquisa.

Aos membros do movimento de direitos humanos de Osasco, em especial

aos que me ofereceram seu relato e à Maria Isabel de Oliveira Panaro, que me

auxiliou nas etapas da pesquisa em história oral com entusiasmo e dedicação.

À equipe de funcionário do Centro de Documentação e Informação Cientifica

Professor Casemiro dos Reis Filho (CEDIC), com sua prontidão e empenho

tornaram possível à pesquisa da documentação existente no acervo da entidade.

A todos, muito obrigado!

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CAMARGO, Lucas Alves de. A luta pelos Direitos Humanos - O Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco (1977-1983). Dissertação (Mestrado em História Social), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017.

RESUMO

Essa dissertação tem como objetivo compreender o processo de formação do movimento pelos direitos humanos em Osasco. O estudo busca elucidar a atuação do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco (CDDHO) e das comunidades que participaram da luta pelos direitos na região, nos anos 1977-1983. Nesse período membros da população de Osasco vinculados às comunidades eclesiais de base e aos movimentos organizados nos bairros compuseram uma rede de atuação que possibilitou a formação do Centro de Defesa e a sua estruturação em diversas comunidades da cidade. Uma intensa rede de colaboração partia das comunidades de base e chegava aos movimentos coletivos organizados na área de influencia da igreja católica. Nesse contexto, o CDDHO construiu práticas de luta pelos direitos humanos, desenvolvendo atuações jurídicas e comunitárias. Esperamos compreender estas práticas e a experiência do Centro através de suas reivindicações e das suas relações com o Estado.

Palavras-chave: Direitos humanos, movimentos populares, Cidade de Osasco, movimentos comunitários, Igreja Católica.

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CAMARGO, Lucas Alves de. The struggle for Human Rights - The Center for the Defense of Human Rights of Osasco (1977-1983). Dissertation (Master Degree in Social History), Pontifical University Catholic of São Paulo, São Paulo, 2017.

ABSTRACT

The context of this master thesis aims to understand the creation process of formation of human rights movement in Osasco’s city. This study also try to elucidate the actuation of The Center for the Defense of Human Rights of Osasco (CDDHO) and the communities whom participated in the fight for human rights in the present area, between the years 1977-1983. In this period, members of Osasco’s city population associated to ecclesial communities and organized movements in the neighborhoods set up a network of human rights activities that made possible the creation of The Center for the Defense and its structuring in several communities of the city. An intense network of collaboration from the base communities would reach the Movements organized in the influence area of the Catholic Church. In this context, the CDDHO built human rights practices for deal with possible transgressions existing, in their project, they developed legal and community actuations. We expect to visualize the construction of the practices through their claims and through their relations with the State institutions.

Keywords: Human rights, popular movement, city of Osasco, community movements, Catholic church.

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Lista de Siglas

Sigla Significado

ACNUR Alto Comissariado das Nações Unidas para refugiados

ACO Ação Católica Operária

ACD

Associação para o Desenvolvimento do Cidadão

CADDH

Comissão Arquidiocesana de Direitos Humanos

CDDHO Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco

CELAM Conselho Episcopal Latino-Americano

CEBs Comunidades Eclesiais de Base

CLAMOR Comitê de Defesa dos Direitos Humanos nos Países do Cone Sul

CNBB Confederação de Bispos do Brasil

COHAB Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo

DRT Delegacia Regional do Trabalho

FASIC Fundação de ajuda social das igrejas cristãs

FEBEM

Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor

FEPASA

Ferrovia Paulista S.A

FNT Frente Nacional do Trabalho

JAC Juventude Agrária Católica

JEC Juventude Estudantil Católica

JIC Juventude Independente Católica

JOC Juventude Operária Católica

JUC Juventude Universitária Católica

MDB

Movimento Democrático Brasileiro

MNDDH

Movimento Nacional de Direitos Humanos

MOPP Missão Operária São Pedro e São Paulo

PDH Pastoral dos Direitos Humanos

PO Pastoral Operária

PPM Pão Para o Mundo

PT

Partido dos Trabalhadores

ROTA

Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar

UNICOR Unidos em um só coração

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 12

CAPÍTULO 1 - ASPECTOS FORMATIVOS DO MOVIMENTO POPULAR PELOS

DIREITOS HUMANOS EM OSASCO ............................................................................... 24

1.1 Considerações iniciais ............................................................................................. 24

1.2 A luta pelos direitos humanos na Igreja Católica de São Paulo ............................ 41

1.3 Trabalhadores na luta pelos direitos: a atuação da Frente Nacional do

Trabalho ......................................................................................................................... 51

1.4 As pastorais sociais de Osasco e a construção da luta popular pelos direitos

humanos ........................................................................................................................ 60

CAPÍTULO 2 - O CENTRO DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS DE OSASCO .. 72

2.1 A construção do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco ........... 72

2.2 Ações do Centro de Direitos Humanos – Plantão ........................................... 82

2.3 Denúncia da violência policial ....................................................................... 113

CAPITULO 3 - A FORMAÇÃO DO MOVIMENTO NOS BAIRROS ......................... 128

3.1 O projeto de ação comunitária do CDDHO ................................................... 128

3.2 Ações da comunidade de Vila Yolanda ......................................................... 145

3.3 Projetos de formação comunitária ................................................................. 158

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 168

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INTRODUÇÃO

Nossa pesquisa procura analisar a experiência de luta pelos direitos humanos

a partir da atuação do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco, entre os

anos de 1977-1983. Visamos compreender a formação das experiências, práticas e

as diversas estratégias de ação coletiva, que foram articuladas através de uma

extensa ação social que concretizou movimentos de luta pela efetividade dos direitos

civis e humanos de comunidades pobres da região.

A documentação analisada é composta majoritariamente por documentos

escritos provenientes da experiência de ação do CDDHO entre os anos de 1977-

1983: boletins informativos, documentos paroquiais, fichas de descrição dos casos

atendidos, documentos jurídicos, documentos oficiais, cartas, jornal Passo a Passo1,

anuários, relatórios de reuniões, projetos da entidade, dentre outros.

Esta documentação compõe-se também de fragmentos do trabalho cotidiano

desenvolvido pelo CDDHO, apresentando dados diversos sobre as características

das ações jurídicas e comunitárias experimentadas pela entidade. Assim, constam

materiais jurídicos relacionados ao trabalho de plantão e documentos oriundos da

relação do CDDHO com as comunidades da região.

A documentação acessada para a realização da pesquisa compõe o fundo do

CDDHO, que está depositado no Centro de Documentação e Informação Cientifica

Professor Casemiro dos Reis Filho (CEDIC), da Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo.

No decorrer da pesquisa consolidamos a coleta de depoimentos com

membros que foram atuantes no Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco

e de pessoas engajadas na experiência de luta comunitária, com relação aos

movimentos de bairros e a coletivos que atuavam articulados em tono da luta pelos

direitos humanos. Assim, foram realizadas entrevistas com dois membros do

CDDHO, três militantes de comunidades de base e dois padres. Conforme tabela

que segue:

1 O jornal “Passo a Passo” foi uma publicação produzida pelo Centro de Direitos Humanos de Osasco entre os

anos de 1983 e 1984. Era utilizado com o objetivo de formar e conscientizar os leitores sobre as transgressões

aos Direitos Humanos que ocorriam na cidade. Constituía um importante instrumento de divulgação das ações

do CDDHO e de compartilhamento da experiência de outros grupos sociais ativos.

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Tabela 1 – Listagem de entrevistados.

Nome

Experiência no movimento de Direitos Humanos

Padre Claudio Padre, auxiliou nos trabalhos desenvolvidos pelo CDDHO e

demais movimentos populares.

Padre Tião

Padre, atuante no CDDHO e em movimentos de luta por

moradia, sobretudo nos bairros de jardim Novo Osasco e

Jardim Conceição.

Maura Militante de comunidade de base, organizou projetos

fomentados pelo CDDHO na cidade de Jandira.

Carlos Alberto Militante da comunidade de base do bairro do Km 18, atuou

no CDDHO e exerceu atividades na diretoria da entidade.

Maria Aparecida

Militante da Comunidade do KM 18, foi plantonista do

CDDHO. Participou de inúmeras atividades fomentadas pela

entidade.

Maria Isabel Militante de comunidade de Base, atuou em movimentos de

direitos humanos em Osasco.

Maria Ione

Militante da comunidade de base de Vila Yolanda. Atuou na

formação do CDDHO, em coletivos populares e grupos de

mulheres organizados a partir da paróquia do bairro de Vila

Yolanda.

Os sujeitos foram escolhidos de acordo com a relevância para o entendimento

do tema. A lista inicial foi feita com base na leitura da documentação da entidade,

todavia, no decorrer das entrevistas outros nomes foram identificados.

Enfatizamos que não temos a pretensão de apresentar a totalidade das

memórias individuais dos sujeitos relacionados à luta pelos direitos humanos em

Osasco. Existe um extenso conjunto de memórias e documentos a serem

analisados, assim, buscamos consolidar os dados de acordo com os objetivos de

análise pretendidos, não esgotando a elucidação sobre a memória social edificada

pelos sujeitos participantes do movimento.

As questões foram erigidas no decorrer dos diálogos, não sendo

apresentadas perguntas prévias ou estipulados assuntos. A memória dos

entrevistados foi apresentada de modo aberto, com a proposta de compreender as

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informações que nos parecessem relevantes. As entrevistas foram gravadas em

áudio e depois digitalizadas.

Buscamos compreender através da pesquisa com História Oral as relações

entre a memória individual e a experiência coletiva. Nesse sentido, as entrevistas

foram preponderantes para a compreensão das experiências formativas do

movimento de direitos humanos em Osasco.

Os depoimentos trazem uma reconstrução do real vivido, plena de valores e

significados que oferecem traços e caminhos importantes para a elucidação da

experiência vivida e posteriormente relatada, como a questão da violência policial,

do papel dos agentes do Estado e da polícia, do local onde viviam, das comunidades

da qual faziam parte, das conexões entre fé e ação social, das suas relações com as

estruturas burocráticas do Estado ditatorial, os significados atribuídos para sua luta

coletiva, da busca e reconhecimento dos direitos, do modo como entendiam suas

carências e necessidades. Estes aspectos apresentam características múltiplas que

trazem a perspectiva dos sujeitos para a análise que buscamos realizar, conforme

enfatizado por Alessandro Portelli (1997).

A primeira coisa que torna a história oral diferente, portanto, é aquela que nos conta menos sobre eventos que sobre significados. Isso não implica que a história oral não tenha validade factual. Entrevistas sempre revelam eventos desconhecidos ou aspectos desconhecidos de eventos conhecidos: elas sempre lançam nova luz sobre áreas inexploradas da vida diária das classes não hegemônicas. 2

A partir desses documentos buscamos compreender as práticas, as

estratégias e táticas de ação e subversão, assim como os direitos humanos no

interior de suas demandas reivindicativas.

Para atingir esses objetivos, buscamos a referência metodológica de Eduard

Palmer Thompson, com relação ao uso da sua noção de “experiência”, entendida

enquanto a percepção da história através das relações estabelecidas pelos

constituidores do processo, capazes de promover seus interesses e objetivos em

relação às estruturas. Sua referência possibilita que pensemos a respeito das

perspectivas populares para a compreensão da experiência constitutiva das classes,

do cotidiano de luta e das resistências que compõem a cultura social do período

2 PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Alessandro. In: Projeto história, SP, 1997, página

31.

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estudado. Assim como Thompson, buscamos compreender as resistências culturais

que impactam os mecanismos de controle e poder3.

Procuramos perceber a Cultura como processo e dimensão da experiência

histórica, onde são produzidos os significados e valores que refletem os diversos

elementos que compõem a sociedade. Como proposto por Raymond Willians,

visualizamos a cultura como indissociavelmente imbricada à política, economia e

aos demais elementos que compõem a experiência humana. Deste modo, as

relações culturais são aqui percebidas enquanto relações de poder, onde são

consolidados os processos de dominação, mas também os de resistência. Esse

entendimento possibilita que pensemos as apropriações e reelaborações culturais

das classes populares em sua relação com a cultura dominante4.

Com estas perspectivas, procuramos compreender a cultura, os valores,

ideais, intenções e interpretações da experiência vivida pelos membros que

compunham o Centro de Direitos Humanos de Osasco, seus apoiadores e as

comunidades.

Formado em 1977, o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco

(CDDHO) foi uma instituição civil vinculada a grupos operários atuantes e

comunidades católicas de base. Buscava a defesa dos direitos civis e humanos das

comunidades pobres da região através da formação comunitária, da denúncia das

violações identificadas e da atuação jurídica. Construiu reivindicações relacionadas

às condições de vida, às demandas do bairro e à violência policial.

Os fundadores do centro encontraram nos direitos humanos uma saída de

luta compatível com seus interesses e viável com relação à restritiva atuação política

em um cenário de repressão às oposições.

A entidade foi fundada em Osasco, cidade localizada na região oeste da área

metropolitana de São Paulo, que se constituía enquanto um subúrbio industrial da

capital até 1962, quando conquistou sua emancipação política.

A região passou por diferentes períodos de industrialização e urbanização,

responsáveis pela intensificação da ocupação do espaço. A vila de Osasco foi

inicialmente formada nas proximidades do rio Tietê, em um trecho da estrada de

3 Cf. THOMPSON, E.P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Uma crítica ao pensamento de

Althusser. Trad. Rio de Janeiro, Zahar editores, 1981, p 180 a 201. 4 Cf. WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. RJ, Editora Zahar, 1979.

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ferro Sorocabana, onde se consolidou seu primeiro parque industrial, composto por

fábricas de cerâmica, papel, vidro e tecidos.

Nas décadas iniciais do século XX a instalação de fábricas em Osasco

constituía a formação de núcleos de povoamento que consolidaram os primeiros

bairros do município, localizados nas redondezas da área de fundação da vila. De

acordo com Maria Inês Z. Coelho (2001), o primeiro surto industrial ocorreu após a

primeira guerra mundial (1914-1918) até a década de 1940, processo responsável

pela dinamização da economia local e pela instalação de uma população fixa,

constituída por trabalhadores oriundos do interior do estado de São Paulo e de

imigrantes, sobretudo italianos e armênios.

Em meados da década de 1950 a região viveu uma intensificação da

instalação de indústrias de bens de produção. Maiores e mais complexas do que as

primeiras fábricas instaladas, que eram baseadas em bens de consumo. Esse novo

ciclo industrial demandava um número elevado de trabalhadores.

Neste período duas zonas industriais se consolidaram, a primeira a sudeste

do centro e a segunda ao norte do centro. Estes novos parques industriais se

formaram a partir do ano de 1950 quando se instalaram a Indústria Têxtil Santista

1950, a Lonaflex Lonas e Freios 1951, a Benzenex 1952, a Osram de Lâmpadas

Elétricas em 1955, a Brawn Boveri de material elétrico e a Cimento Santa Rita em

1957, a Ford e a Masul em 1958, a Braseixos em 1959 e a White Martins em 19605.

De acordo Sueli Ribeiro Martini6 a especificidade dessa industrialização atraiu uma

enorme massa de operários, que se deslocavam para sanar as necessidades de

mão de obra da indústria em expansão.

A industrialização representava 48% dos novos empregos criados7. Atraiu

uma grande quantidade de trabalhadores, expandiu os setores de serviços e trouxe

investimentos ao setor imobiliário. O processo continuou nos anos posteriores,

quando a cidade se emancipou e ampliou as políticas de desenvolvimento das

indústrias.

Localizada a 18 quilômetros da Praça da Sé, Osasco possuía uma

concentração populacional menos densa com relação aos bairros próximos do

5 Cf. MARTINI, Sueli Ribeiro, in “Ian – Sufixo de identidade: Presença da comunidade armênia no processo de

Urbanização de Osasco”. PUC-SP, São Paulo, 2004. 6 Idem.

7 COELHO, Maria Inês Zampolim. Osasco: geografia, violência e segurança pública. Osasco, SP: FITO, 2001,

Página 78.

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centro de São Paulo. Era atrativa para os migrantes devido às possibilidades de

preços mais baixos com relação ao aluguel e à compra de terrenos. O poder público

havia expandido os loteamentos em áreas mais afastadas do centro e existia a

possibilidade de trabalho nas zonas industriais de toda a área Oeste da região

metropolitana. Assim, recebeu parte do contingente migratório que se direcionava

para a capital, que foi responsável pelo forte aumento populacional das décadas de

1950, 1960 e 1970, quando a população de Osasco se multiplicou mais de sete

vezes8.

No início da década de 1970 a experiência migratória já havia se estruturado,

trazendo desdobramentos no contexto social de toda região9. Foram os anos em que

a população da cidade se expandiu de forma mais veemente, saltando de 283 mil no

início da década para 474 mil ao término desta. Neste período foram formados

dezenas de bairros periféricos, onde se desenvolveram grupos e associações

comunitárias10.

Segundo o estudo desenvolvido por Maria Inês Z. Coelho (2001), em 1970

mais de 60% da população estava estabelecida a menos de 10 anos no município.

Em sua análise sobre os dados do IBGE de 1980, percebeu que dos migrantes

nacionais que haviam se deslocado, cerca de 59,1% eram oriundos da região

sudeste, 23,8% da região nordeste e 14,5% da região sul.

Neste período grande parte do perímetro de Osasco era atravessado por

antigas fazendas e áreas de produção agrícola. Os bairros existentes eram

incapazes de absorver a enorme demanda por habitação. Nas áreas que

margeavam as zonas industriais e as rodovias se formavam novas ocupações, que

nasciam em locais cada vez mais distantes da região central da cidade.

Em Osasco se consolidaram três áreas de ocupação históricas, que

apresentam características próprias. A área central configura o primeiro ponto de

ocupação do município, formada a partir da estação ferroviária em vértice com a Av.

Maria Campos e a Rua João Batista. Essa área se consolidou enquanto um centro

de serviços, onde se situavam as primeiras fábricas instaladas na região. A área

8 MARTINI, página 101, 2004.

9 Segundo Odair Paiva (2004) neste período, as políticas de Estado fomentavam a migração com o objetivo de

que os trabalhadores nacionais deixassem suas regiões menos urbanizadas para o centro-sul do país. Cf. PAIVA,

Odair da Cruz. Caminhos cruzados: migração e construção do Brasil moderno (1930-1950). Bauru, SP:

EDUSC, 2004. 10

A cidade possuía muitos parques industriais com ampla oferta de emprego, que atraia uma população operária

para a cidade. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Administração Municipal, durante a década de 1970, a

população crescia a um ritmo de quase 10% ao ano.

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central estaria margeada por um anel intermediário formado por bairros de ocupação

mais antiga, que apresentavam certa homogeneidade no padrão urbanístico,

formados a partir de iniciativas do poder público e de empresas de loteamentos de

médio padrão. Seriam bairros residenciais que surgiram próximos dos parques

industriais centrais até meados da década de 1960. A área residencial restante do

município estaria composta pela periferia, formada por um conjunto heterogêneo de

vilas que apresentavam urbanização irregular e que se constituíram como

ocupações desordenadas, onde houve pouca interferência do poder público e de

agentes privados do setor imobiliário11. A periferia estaria mais distante dos bairros

centrais, instalada em topografia irregular na medida em que se distancia do vale

central do Rio Tietê, onde a vila de Osasco foi fundada12.

Ao longo da década de 1970 ocorreu um crescimento da área periférica. A

mancha urbana se expandiu e diminuiu a descontinuidade entre os bairros. O

aumento da densidade demográfica13 trouxe problemas estruturais diversos, que

impactaram na constituição dos bairros que se formavam.

Nestes locais as residências chegaram muito antes da infraestrutura mínima

para a garantia de qualidade de vida da população. Quase sempre construídos com

parcos recursos e através do improviso, da falta de habilidade do poder público e do

modo predatório como operavam as empresas de loteamento, esses novos bairros

nasciam com problemas de infraestrutura, que não acompanhava o ritmo acelerado

do aumento populacional. Isso levou ao quadro de dificuldades que os moradores

enfrentaram durante os anos seguintes, como a falta de energia elétrica, de água

encanada e asfalto; a poluição e sujeira dos córregos; a ausência de saneamento

básico, de postos de saúde e escolas.

O crescimento populacional colaborou ainda para a formação e crescimento

de áreas de ocupação irregular. Nestes espaços a população convivia com disputas

pela posse dos terrenos e com a constante ameaça de despejo. Existiam situações

de extrema pobreza, sobretudo dos migrantes que chegavam com suas famílias à

procura de trabalho. Os bairros periféricos vivenciavam ondas constantes de

violência urbana que eram combatidas com rigorosa atividade policial. Eram

11

COELHO, Inês, página 74. 12

COELHO, Inês, página 85. 13

De acordo com COLEHO (2001), a densidade na década de 1970 chegava a 3.500 habitantes/há no município

e a 5.500 habitantes/há no centro. Cf. COELHO, 206, op. cit.

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elevados os números de violência e criminalidade e constantes os casos de abusos

praticados por agentes das polícias, que operavam com brutalidade e truculência14.

Formava-se um cotidiano conflituoso e incerto, onde o sonho de construir uma

nova vida coexistia com a precariedade e a violência.

Este contexto levou à união dos moradores de alguns bairros em torno de

coletivos que nasciam nos locais mais pobres da cidade. Entre os mecanismos de

ação desenvolvidos se destacavam as comissões de bairro e os grupos

comunitários que se organizavam no interior das igrejas.

Nosso recorte temporal apresenta um contexto de transição política

vivenciado pelas instituições do país. Durante esses anos, as estruturas do Estado

ditatorial foram alteradas com a aproximação de um novo regime democrático.

Todavia, a ruptura com o regime autocrático15 significou uma abertura “lenta, gradual

e segura”, intermediada pelas classes no poder, que controlavam e vigiavam a

participação popular.

Essas características do momento histórico, contudo, não impossibilitaram a

existência de uma atuação politica intensa das classes populares durante todo o

período de transição. No decorrer desses anos, setores ativos da sociedade civil

promoveram processos reivindicativos e formas diversas de organização coletiva,

que culminaram em profundas críticas ao sistema de governo e seus projetos

políticos e econômicos. Assim, surgiam coletividades que se organizavam contra o

aumento dos preços, o arrocho salarial, o desemprego e a realidade material das

populações pobres das cidades brasileiras.

14

A documentação analisada evidencia uma intensa atuação de oficiais do Estado que não operava com base na

legislação. Realizavam ataques armados, prendiam inocentes sem provas, encarceravam menores de idade em

prisões comuns, agrediam fisicamente indivíduos com objetivo de intimidar ações coletivas, assassinavam

jovens sem comprovação de dolo, sequestravam suspeitos, realizavam torturas físicas e psicológicas para extrair

confissões e relatos forçados. Os documentos apresentam ainda, denuncias de tortura e violência policial sobre

indivíduos pobres no período de abertura política do regime, com uso de técnicas como geladeira, choques

elétricos e Pau-de-arara após 1985. 15

Dialogamos com a perspectiva de Antônio Rago Filho (2001) com relação ao conceito de “autocracia”. De

acordo com o autor, o golpe de 1964 representou mais do que uma ruptura com o processo democrático. O

modelo de controle político, econômico e social implantado com o golpe de Estado consolidou uma intervenção

de natureza bonapartista na sociedade brasileira. Esta intervenção tinha como objetivo imediato defender o

capital atrófico do país dos ensejos populares, que acenavam para a consolidação de novos projetos para a

sociedade brasileira. Para isso, setores hegemônicos construíram uma alternativa autoritária que tinha como

objetivo imediato o controle social e a garantia da dominação das classes hegemônicas através do uso

imponderado da força. Deste modo, o modelo político imposto tratava-se de uma autocracia burguesa

estabelecida para a manutenção do projeto de poder das classes hegemônicas. Conforme o autor enfatiza no

trecho: “O golpismo dos conservadores, esta arte de fustigar as autenticas aspirações populares, faz parte, pois

da própria natureza histórica da dominação autocrática dos proprietários em nosso país”. Cf. RAGO, Antônio

Filho. Sob este signo vencerás! A estrutura ideológica da autocracia burguesa bonapartista. In: Tempo de

Ditadura - do golpe de 1964 aos anos 1970. Cad. AEL, v.8, n.14/15, SP: Campinas, 2001.

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De acordo com Eder Sader16 (1988), nos anos finais da década de 1970

emergiram novos sujeitos coletivos no interior dos movimentos sociais urbanos.

Estes sujeitos se formaram a partir de instituições em crise, como os sindicatos e os

partidos políticos. Edificaram novos espaços de atuação, construídos a partir das

suas experiências organizativas cotidianas, assim, passavam a utilizar os espaços

do bairro e as paróquias da igreja, locais que foram ressignificados a partir da sua

ação coletiva, criadora de formas de reivindicação decentralizadas que faziam

avançar a luta social de acordo com os interesses das classes populares. Suas

pautas e demandas estavam alinhadas às necessidades cotidianas dos grupos em

luta. Deste modo, a consolidação de novos sujeitos sociais coletivos alterou os

locais tradicionais de ação política e transformou o cotidiano dos bairros e das

paróquias da Igreja Católica em espaços de diálogo sobre o direito de reivindicar os

direitos.

A cidade de Osasco apresentou diversas manifestações populares

reivindicativas durante o período de transição. O aumento da população

trabalhadora nas periferias do município colaborou para a intensificação das pautas

de luta. Desenvolveu-se um intenso movimento operário que se voltou para a

formação de coletivos organizados nos bairros e nas paróquias. Esses grupos

comunitários formaram uma experiência de luta que ampliou a participação popular

na cena pública no início na década de 1980 e foram basilares para a luta pelos

direitos humanos fomentada pelo CDDHO.

Nesse período, a atuação de setores progressistas da igreja católica17

representou uma importante novidade no campo político do período de transição do

regime autocrático.

Nos anos de formação do CDDHO alguns padres e bispos incentivavam a luta

pelos direitos humanos. Nas igrejas eram organizadas as tarefas, fomentadas

discussões, promovidos encontros, assembleias e aulas públicas. Das igrejas saiam

os militantes que formaram a base do movimento e nela se estruturaram as

comunidades de base, que ampliaram a luta pelos direitos na região.

16

Cf. SADER, Eder, Quando Novos personagens entram em cena Experiências e lutas dos trabalhadores da

grande São Paulo (1970-80). Rio de janeiro, Paz e Terra, 1988. 17

Entendemos o aparecimento de setores progressistas na relação desenvolvida por setores do clero brasileiro

que buscou o fortalecimento de iniciativas populares em conjunto com as classes trabalhadoras em sua luta por

justiça e direitos. Para mais informações sobre a relação entre democracia e igreja popular indicamos a leitura de

WANDERLEY. Luiz Eduardo W. in: Democracia e Igreja Popular. Educ. São Paulo, 2007.

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Através da construção de projetos pastorais e da consolidação de entidades

em defesa dos perseguidos, a igreja católica em São Paulo, sob o arcebispado de

Dom Paulo Evaristo Arns, consolidou práticas organizativas que buscavam defender

por via da justiça os que tinham seus direitos humanos violados. Nesse contexto vai

ser formado em São Paulo um núcleo da Comissão de Justiça e Paz, que estruturou

um modelo de atuação na defesa dos direitos civis e humanos que a igreja buscou

expandir para outras práticas que estabeleceu.

Em conjunto aos esforços de setores do clero em São Paulo se destacava a

Frente Nacional do Trabalho, uma entidade parasindical fundada a partir da atuação

do advogado católico Mario Carvalho de Jesus, que desenvolvia uma proposta de

organização dos trabalhadores a partir da formação das bases e da defesa dos

direitos previstos na constituição.

A FNT colaborou para a atuação dos coletivos de base e suas práticas foram

preponderantes para a defesa dos direitos humanos em Osasco.

O cenário de fortalecimento das ações de base que ocorriam nos bairros

foram intensificados com a formação de movimentos pastorais e através da

proliferação das Comunidades Eclesiais de Base. Em Osasco a Pastoral Operária

(PO) esteve atrelada a grupos provenientes da experiência sindical. Dela

participavam militantes que haviam atuado no movimento sindical e outros que

passavam a compor as novas fileiras da classe operária na cidade, o que

transformava a PO em um mecanismo de relacionamento entre os setores atuantes

no movimento operário com as comunidades católicas. Do mesmo modo, nos anos

finais da década de 1970 se consolidava em Osasco a Pastoral dos Direitos

Humanos, que articulava uma nova geração de militantes em torno da luta pelos

direitos humanos. O contexto formado pelos movimentos sociais que buscavam a

proposta de ação comunitária consolidou uma matriz formativa para o

desenvolvimento do movimento de direitos humanos em Osasco, criado a partir da

ação desenvolvida entre o CDDHO e as comunidades atuantes da região. Assim, no

capítulo 1 buscamos elucidar o conjunto das principais experiências que resultaram

na formação do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco e que

colaboraram para o desenvolvimento de seu projeto de ação.

A entidade criou um trabalho de apoio que recebia diariamente pessoas e

comunidades que necessitavam dos trabalhos jurídicos e das recomendações do

centro. Para o desenvolvimento dessas ações foi construído um plantão de

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denúncias, onde os casos eram listados e encaminhados para os advogados e

demais membros que participavam da entidade. O Centro era procurado por

pessoas pobres que não possuíam dinheiro suficiente para a contratação de

advogados. Com essa ação, tornava-se uma das poucas possibilidades existentes

para a reivindicação dos subalternos em demandas frente ao Estado.

Eram denúncias que englobavam ordens judiciais de desapropriação,

conflitos com proprietários de imóveis, problemas no contrato com empresas, casos

onde as companhias desejavam tomar judicialmente a residência de um morador,

queixas referentes à posse dos imóveis, divergências familiares, abusos de

autoridade de agentes do Estado, além dos diversos casos de violência cotidiana e

policial.

Assim, no capítulo 2 buscamos apresentar os aspectos da criação e da

estrutura de funcionamento do CDDHO através da experiência organizativa da

entidade e das formas de luta que estabeleceu. As análises que seguem objetivam

compreender as especificidades do trabalho de plantão a partir dos relatos de

indivíduos que buscavam a entidade, das quais embasamos o esclarecimento de

uma das principais manifestações do movimento de direitos humanos de Osasco,

relacionadas à denúncia das violações e à defesa jurídica daqueles que tinham seus

direitos violados.

O CDDHO construiu um trabalho comunitário que expandiu os serviços

jurídicos de seu plantão. Dada as dificuldades na resolução das transgressões, a

entidade buscou direcionar o seu trabalho para a formação comunitária e o auxílio

no desenvolvimento e organização de movimentos populares reivindicativos. Nesse

processo, buscava formar as bases sobre os seus direitos.

Fazia parte do projeto de atuação da entidade à organização de quadros

ativos no interior das CEBs. Buscava-se o treinamento de plantonistas de bairro, que

estabeleceriam um local de defesa dos direitos humanos no interior das

comunidades. O resultado desse contexto de luta foi o aparecimento de novas

iniciativas comunitárias no âmbito dos direitos civis e humanos.

Através da aproximação com as comunidades a entidade se relacionou com

grupos de saúde, que lutavam por melhorias no sistema público de saúde e para o

acesso dos moradores; clubes de mães, que se organizavam para lutar pelas mães

e mulheres, reivindicar melhorias para os bairros e para a qualidade de vida das

famílias; e coletivos de moradia, que reivindicavam a posse de um terreno, a defesa

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de famílias que ocupavam uma área e de moradores ameaçados de despejo. Nestas

reuniões, os coletivos se articulavam e esboçavam estratégias em comum que

buscavam atender os interesses das comunidades e das entidades. Nasciam assim,

mecanismos de ação unificados que acabavam por fortalecer a organização

comunitária.

O conjunto das relações entre o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de

Osasco e as comunidades pobres da cidade de Osasco é objeto de análise do

capítulo 3. Procuramos compreender as práticas desenvolvidas pelo CDDHO sobre

os direitos humanos, sobretudo a partir de sua experiência de ação junto dos grupos

comunitários de Osasco. Entendemos que essa articulação resultou em um

redimensionamento da luta pelos direitos humanos, que foi ressignificada para

comportar a experiência de organização popular, posicionada de modo contrário às

violações vividas pelas classes subalternas nos bairros pobres da cidade.

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CAPÍTULO 1

ASPECTOS FORMATIVOS DO MOVIMENTO POPULAR PELOS DIREITOS

HUMANOS EM OSASCO

1.1 - Considerações iniciais

O Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco foi fundado a partir do

desdobramento de algumas matrizes de ação social, entre elas se sobressaíram: o

movimento pelos Direitos Humanos fomentado pela Cúria Paulistana e resultante da

experiência da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo e da Comissão

Arquidiocesana de Direitos Humanos; a atuação de militantes da Frente Nacional do

Trabalho; a formação da Pastoral de Direitos Humanos e da Pastoral Operária, com

seu conjunto de padres e ativistas de comunidades de base. Esses movimentos

tinham em comum uma estrutura que partia dos espaços da igreja católica e uma

formação que se compunha de uma rede de militantes católicos que expandiam a

atuação para as paróquias localizadas nos bairros periféricos da região

metropolitana de São Paulo, sobretudo na cidade de Osasco.

Estes movimentos surgiram devido à nova postura de setores do clero

brasileiro, que passaram a incentivar o posicionamento da igreja contra as injustiças

e contradições sociais.

Neste período, a realidade política existente coexistiu com um intenso

processo de luta pela renovação das estruturas da igreja, através da atuação de um

setor minoritário de clérigos progressistas18 que também se posicionavam contra o

regime autocrático imposto a partir de 196419.

18

Os padres progressistas começaram a elaborar uma nova ideologia na década de 1950. Possuíam linhas

diferentes de compreensão a respeito dos dogmas, do evangelho e da ação social da igreja, mas de um modo

geral, comungavam com um projeto humanístico voltado para a construção de iniciativas que levassem à justiça

e à paz social através da construção de comunidades solidárias. Eram contrários à estrutura repressiva

consolidada pelo Estado ditatorial e favoráveis ao projeto de atuação social da igreja, que objetivava a

participação dos leigos em trabalhos eclesiais para a expansão de sua influencia. Cf. LIMA, Luiz Gonzaga de

Souza. Evolução Política dos Católicos e da Igreja no Brasil. Hipóteses Para Uma Interpretação. RJ,

Petrópolis, Ed. Vozes, 1979. 19

Para informações sobre a consolidação da aliança entre setores civis e militares que consolidaram o golpe de

Estado no governo do presidente João Goulart, sobretudo com relação ao funcionamento do complexo

IPES/IBAD, que representou a atuação orgânica de setores da burguesia nacional em orquestração ao golpe,

indicamos a leitura de DREIFUSS, René Armand. 1964, a conquista do Estado – Ação política, poder e golpe de

classe. RJ, Petrópolis, Editora Vozes, 2006.

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Devido ao modo como o projeto de defesa dos direitos humanos do CDDHO

se articulou com a experiência de ação social da arquidiocese de São Paulo,

interessa-nos compreender os processos de transformação que ocorreram no

interior da igreja católica, que possibilitaram a articulação de movimentos sociais

reivindicativos em sua área de influencia.

A postura de setores do clero brasileiro em defesa dos direitos humanos

representou uma mudança sensível na atuação da igreja com relação ao regime

ditatorial. A ruptura democrática resultou em uma profunda crise entre setores do

clero e o Estado, quando se destacaram posições ambíguas entre os membros da

igreja sobre a realidade política existente20.

Após um breve silêncio, a igreja católica demonstrou apoio ao regime

ditatorial. Ainda em 1964 a CNBB21 defendeu a tomada do poder pelos militares e

saudou o novo regime enquanto restaurador da paz, que em sua visão estava

ameaçada pela “marcha acelerada do comunismo” 22.

Apesar das denúncias feitas pelo Papa sobre as violações dos direitos

humanos que ocorriam no Brasil23, setores da igreja24 mantinham uma postura

colaboracionista com o regime, enquanto uma grande ala mantinha-se alheia aos

problemas políticos que o país enfrentava, como o caso do cardeal e arcebispo de

São Paulo Dom Agnelo Rossi, nome de maior prestígio do Clero nacional, que

20

SERBIN, Kenneth P. Diálogos na Sombra. Bispos e Militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo;

Companhia das letras, 2001. 21

A CNBB foi fundada em outubro de 1952 por Monsenhor Helder Câmara e aprovada pelo secretário de Estado

do Vaticano, Monsenhor Giovanni Montini. O Concilio Vaticano II ampliou sua jurisdição e o órgão passou a

reunir os bispos com o objetivo de homogeneizar as ações do clero nacional. Em seu primeiro período a entidade

se voltou para os problemas sociais e erigiu uma perspectiva mais aberta com relação à atuação social para a

retomada da influencia católica. A partir do golpe de 1964 a CNBB foi desmobilizada e perdeu força junto aos

setores ativos do clero, sendo retomada a partir de 1968 com um novo projeto de ação social. Cf. BREUNEAU,

T. O catolicismo brasileiro em época de transição. São Paulo, Loyola, 1974. 22

Declaração da Conferencia dos Bispos do Brasil, Junho de 1964. APUD LOWY, Michael. A guerra dos

deuses: religião e politica na América Latina. RJ, Petrópolis, Vozes, trad. Vera Lucia Mello Joscelyne, pág. 140,

2000. 23

O Papa Paulo VI tomou conhecimento da tortura praticada no Brasil através de um dossiê entregue pelo

cardeal canadense Maurice Roy, presidente da Comissão Pontifica de Justiça e Paz. Paulo VI condenou

publicamente as torturas cometidas pelos órgãos de segurança do Regime Militar brasileiro. Esta ação acendeu

novas perspectivas para lideranças progressistas do clero nacional e trouxe desconfortos para o governo militar.

Cf. CANCIAN, Renato. Comissão Justiça e Paz de São Paulo. SP: São Carlos, EDUFSCAR, 2005. 24

Não pretendemos aqui esgotar a análise de toda a experiência de atuação dos diferentes setores do clero

durante o período de transição política. Objetivamos apresentar a Igreja católica como uma instituição que possuí

diversos grupos e divisões internas, onde se situam sujeitos de diferentes concepções sobre fé e atuação social.

Entendemos que a igreja católica tende a enfatizar uma perspectiva tradicional que mantém o status quo social,

todavia, seus aspectos formativos lhe oferecem um potencial contestatório, que pode ser ampliado pelas

contradições sociais que atravessam a igreja através do vínculo estabelecido com as camadas subalternas, que

disseminam seus ensejos para dentro da estrutura.

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26

evitava falar a respeito das barbaridades impetradas pelo governo de Emílio

Garrastazu Médici em São Paulo.

Segundo Kenneth Serbin (2001) no Rio de Janeiro, membros da alta

hierarquia da igreja formaram a Comissão Bipartite, que reuniu durante quatro anos

membros privilegiados do clero, integrantes das Forças Armadas, do Sistema

Nacional de Informações (SNI) e do Centro de Informações do Exército (CIE). Atuou

entre os anos de 1970 até 1974, da qual costumavam participar treze militares e

onze bispos. Sua existência evidencia a aproximação e comunicação de grupos

conservadores do clero brasileiro na tentativa de diálogo com o regime.

O aumento da repressão política, sobretudo após o Ato institucional n° 525,

significou um momento de insatisfação de membros do clero com o Estado26. Essa

insatisfação também atingia setores médios e grupos sociais que antes eram

favoráveis ao regime. De acordo com Ralph Della Cava (1986) as eleições de 1974

e 1978, ganhas pelos grupos oposicionistas alinhados ao Movimento Democrático

Brasileiro (MDB), forçaram o regime a alterar as regras eleitorais de modo a

assegurar a continuidade de seu poder, causando indignação em setores favoráveis

ao governo, sobretudo em São Paulo. Os grupos sociais hegemônicos, que

buscavam representar a sociedade civil, passavam agora, e cada vez mais, do

desencanto para um posicionamento crítico ao regime, fator que contribuiu para

fomentar a atuação de setores conservadores da igreja em defesa da sociedade civil

e de seus direitos inalienáveis27.

25

O Ato institucional de nº 5, promulgado no dia 13 de dezembro de 1968 pelo Presidente Gal. Artur Costa e

Silva, impedia a participação democrática, coibia o livre posicionamento, impunha a censura aos meios de

comunicação e diminuía as possibilidades de atuação da sociedade civil. O ato fortaleceu ainda mais o poder

executivo e unificou camadas decisórias no interior do conselho de segurança nacional. 26

Entre os eventos que marcaram a posição de antagonismo da igreja com o Estado citamos a prisão e tortura de

frades dominicanos acusados de apoiar a subversão armada através do grupo de Carlos Marighela (Aliança de

Libertação Nacional) em 1969. A prisão de Yara Spadini e Padre Giulio na região episcopal Sul, onde

realizavam trabalho de pastoral junto às mulheres, operários e jovens em 30 de janeiro de 1971, a censura do

jornal “O São Paulo” da arquidiocese de São Paulo em 6 de maio de 1972, o assassinato do estudante Alexandre

Vanucchi em março de1973, a censura e o fechamento da rádio “nove de julho” da arquidiocese de São Paulo

em novembro de 1973, o assassinato do jornalista Wladimir Herzog em 1975 e do operário Manoel Fiel Filho em

janeiro de 1976. Enfatizamos que neste período houve a prisão de dezenas de párocos e bispos e a expulsão de

clérigos estrangeiros. 27

A perda de poder da linha dura e o início de uma abertura gradual e lenta do sistema político, que visava

assegurar o controle militar em longo prazo, causou reações e atos de terrorismo por parte de radicais militares

contra a igreja, a OAB, as associações de jornalistas, e a lugares públicos (como o caso do Rio Centro). Em

meados da década de 1970, a proliferação destes atos e as constantes denúncias de arbitrariedades, somadas com

o já aparente fiasco do “milagre econômico”, constituíram elementos que dissolveram lentamente a aliança das

classes altas e médias com o regime ditatorial. Cf. CAVA, Ralph Della. A igreja e a Abertura, 1974-1985. In

KRISCHKE, P e MAINWARING, S (organizadores). A igreja nas bases em tempo de transição (1974-1985).

São Paulo: LEPM, 1986. P. 13-46.

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27

Assim, ela [a igreja] se identificava agora com a causa das classes privilegiadas e finalmente desencantadas, para fazer o país retornar ao Estado de Direito. 28

Membros do clero também ficaram sensíveis às violações dos direitos-

humanos praticadas pela burocracia do Estado ditatorial, sobretudo após as

mudanças na estrutura de atuação social que a Igreja Católica vivenciou a partir de

meados da década de 1960.

Entre os anos de 1962-1965 ocorreu o Concilio Ecumênico Vaticano II,

iniciado com o papa João XXIII e encerrado já no papado de Paulo VI. Contou em

sua inauguração com 2540 padres conciliares (173 brasileiros) de diversas partes do

globo. O Concílio representou o inicio de um processo de renovação das práticas

pastorais, uma renovação (aggiornamento), que buscava modernizar alguns setores

da igreja. A hierarquia católica apresentou ações efetivas para adequar-se à

realidade social de seu tempo e diminuir a perda de influencia sobre os mais pobres,

sobretudo na América Latina e na África, que estariam próximas de perspectivas

revolucionárias que questionavam o papel da igreja.

Os documentos conciliares pregavam a igualdade entre leigos e clérigos,

estimulando a base laical da igreja frente à antiga estrutura centrada no clericalismo

e no triunfalismo. Resultaram deste processo profundas alterações quanto à forma

institucional de lidar com a política e a realidade social. A hierarquia da Igreja passou

a defender a justiça como meio para alcançar, através do uso do evangelho, a

superação das graves condições sociais existentes.

A partir do Concílio a estrutura da igreja foi orientada para se distanciar da

tradição consolidada pelo modelo teológico ultramontano29, que centralizava as

decisões da igreja em Roma. Essa corrente teológica buscava homogeneizar as

práticas e hábitos de modo que as condições culturais e sociais das diversas

localidades não influenciassem na composição uníssona da Igreja. Defendia ainda,

uma posição de distanciamento da igreja para as causas mundanas, de modo que a

prioridade do clero passasse a ser o plano extraterreno e a salvação das almas.

28

DELLA CAVA, Pág. 20, 1986, grifo nosso. 29

O utramontanismo era defendido por uma parcela mais tradicional da igreja, ligada a setores hegemônicos.

Surgiu na França e Alemanha no inicio do século XIX com o objetivo de enfatizar a orientação de referência e

fidelidade sobre os desígnios do Vaticano e a autoridade papal. Passou a ser termo de referência em muitos

países para enfatizar a fidelidade aos princípios da Santa Sé, em contraposição aos desdobramentos sociais e

políticos das nações. RODRIGUES. Cátia Regina. A arquidiocese de São Paulo na gestão de D. Paulo Evaristo

Arns (1970-1990). Dissertação (Mestrado em História Social), Programa de Pós Graduação em História Social

da FFLCH/USP, São Paulo. 2008.

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Mesmo que amplos setores do clero brasileiro ainda continuassem

defendendo a composição espiritual das práticas clericais, distanciando-se das

contradições materiais dos Estados e sistemas políticos e desencorajando diferentes

iniciativas de atuação social30, este período abriu novas possibilidades para um

pequeno setor de clérigos e leigos que atuavam em projetos comunitários, nas

periferias das grandes cidades brasileiras.

A igreja latino-americana buscou construir ações que viabilizassem a

interpretação dos textos conciliares para a utilização no continente. A principal

iniciativa nesse sentido ocorreu com a Segunda Conferência do Episcopado Latino

Americano, na cidade de Medellín em 196831, onde membros do clero se reuniram

para discutir os projetos que seriam aplicados pela igreja latina. O tema escolhido

para a assembleia foi: A igreja na atual transformação da América Latina. Os textos

do Concílio Vaticano II surgiram como ponto de partida, mas as conclusões finais do

debate colocaram a igreja de modo ainda mais próximo à atuação junto aos pobres

do continente, que teriam a partir de então, prioridade nos projetos pastorais.

Em Medelín foram aprovados dezesseis documentos gerais, que dariam

embasamento para a ação da Igreja em toda a América Latina. As principais

novidades estavam na proposta de agir sobre as injustiças sociais, através da

construção de ações que garantissem o equilíbrio social para a superação da

extrema pobreza. As conclusões32 incentivavam a proposta de participação popular

coletiva para a construção de uma nova sociedade, que deveria ser edificada pela

livre atuação dos sujeitos na luta por justiça, sobretudo com relação aos mais

pobres, que até então haviam sido excluídos dos processos de administração do

Estado. Para que surgisse a verdadeira liberdade as elites deveriam cumprir um

papel solidário de participação popular, que traria a paz social. A conferência

30

RODRIGUES, pág. 17, 2008. 31

A Primeira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano foi realizada no Rio de Janeiro entre os dias

25 de julho a 4 de agosto de 1955. A Conferência buscou discutir a escassez de sacerdotes no continente e a

necessidade de reestruturação das dioceses para a disseminação da influencia da igreja em regiões onde ela

estaria ausente. Nas reuniões foi abordado o tema do analfabetismo e da precariedade material dos povos latinos,

sobretudo com relação à desigualdade. Em decorrência desses trabalhos foi fundado o CELAM em novembro de

1955 e incentivada à proposta de Conferências Episcopais dos países latinos. Idem, 2008. 32

Buscava-se, com os posicionamentos finais da conferência a defesa de uma representação de igreja enquanto

instituição servidora e humilde. Para isso, em Medellín foram propostas e articuladas estruturas pastorais

baseadas na igreja, aptas para enfrentar a situação de pobreza na América Latina. Neste quadro teriam destaque

as Comunidades Eclesiais de Base, já difundidas em diversos países, que começavam a proliferar sua experiência

de ação em locais pobres do continente. As comunidades foram reconhecidas enquanto núcleo irradiador da fé e

da ação social, baseadas nos ensinamentos cristãos.

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29

terminava por enfatizar a centralidade da igreja no apoio à superação e libertação de

toda a servidão e injustiça.

Os textos de Medelín incentivaram a formação das Comunidades Eclesiais de

Base (CEBs) e o fomento de suas ações através de mecanismos mediadores. A

hierarquia latina tinha como objetivo atuar dentro da estrutura formal da igreja (e de

suas doutrinas). Tal proposta vinha de encontro com o anseio de expandir a atuação

eclesial para próximo das comunidades pobres, ampliando a capacidade de ação e

evangelização da Igreja através da promoção de um apostolado dos leigos. Assim, a

conferência de Medellín atribuiu lugar às CEBs no interior da estrutura,

possibilitando a sua disseminação enquanto núcleo comunitário irradiador de

projetos pastorais.

O cenário de renovação trazido pelo Concilio Vaticano II e pela Conferência

de Medellín favoreceu a formação de novas atuações para as bases leigas33, ao

orientar as paróquias para uma aproximação mais intensa com os bairros pobres.

Através do trabalho pastoral a igreja passou a fomentar a participação de grupos

comunitários com diversas temáticas no interior de sua estrutura. Esse contexto

trouxe novas possibilidades para setores progressistas do clero brasileiro, que

passavam a promover suas ideias no interior de algumas dioceses.

Na América latina, continente cuja formação histórica está imbricada de uma

forte influencia católica, as correntes sociológicas e as perspectivas revolucionárias

formaram um contexto de questionamento por parte de setores do clero a respeito

dos males da dependência econômica, das violentas formas de autocracia e a

consequente divisão material, que resultava na constituição de enormes massas de

trabalhadores miseráveis. Após a experiência revolucionária cubana, a perspectiva

da revolução social era disseminada enquanto caminho para a superação da

desigualdade e da precariedade material. Essa inclinação do período alcançava

muitos grupos do continente e atingiu setores do clero latino, sobretudo padres

33

Em São Paulo foram criadas formações para leigos através de projetos que foram chamados de “missões

conciliares”. Assim, pessoas destacadas das paróquias eram convidadas para receberem instruções sobre formas

de atuar em suas comunidades, junto aos preceitos pastorais da igreja. Na zona norte de São Paulo, sobre a

responsabilidade de D. Paulo Evaristo Arns, foi firmada uma equipe de 28 pessoas, com a presença de 22 leigos,

que seriam responsáveis pelo treinamento das lideranças comunitárias. A paróquia visava disseminar os

conteúdos conciliares, apresentar sugestões de planos pastorais contidas no relatório da CNBB e incentivar os

leigos para se reunirem em comunidades de base. Os membros da comissão ensinavam práticas cristãs, mas

também orientavam as comunidades sobre formas de atuação coletiva. Ensinava-se a fazer uma votação, colher

depoimentos, escolher as lideranças e saber efetivar um revezamento das lideranças. RODRIGUES, 2008. Op.

cit..

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30

jovens e leigos cujos trabalhos estabeleciam maior proximidade com as contradições

sociais. Este setor da igreja pôde se valer da abertura proposta pela hierarquia para

lutar pela disseminação de suas práticas e ideias, como elucida Michael Lewy

(2000).

Ao abrir-se para o mundo moderno, a Igreja sobretudo na América Latina, não poderia escapar dos conflitos sociais que estavam abalando o mundo, nem da influência das várias correntes filosóficas e políticas – especialmente o marxismo que à época (década de 1960) era a tendência cultural predominante entre os membros da intelligentsia continental. 34

Foi nesse momento que se formou uma nova corrente teológica: a Teologia

da Libertação. Esse grupo heterogêneo defendia a utilização de projetos pastorais

para auxiliar as causas populares e a auto-emancipação dos subalternos. Possuía

enquanto aspecto em comum uma base de interpretação que partia do diálogo com

o marxismo, uma nova leitura do evangelho e a atuação que partia das áreas

periféricas da igreja, sobretudo das novas dioceses que se formavam em bairros

pobres.

Segundo Michael Lowy (2000) a teologia da libertação se constituiu a partir de

um conjunto de textos35 produzidos por teólogos latino-americanos, que buscavam

uma nova proposta de ação social e teológica para a Igreja, embasada na reflexão

sobre a práxis eclesial e a percepção da realidade política e econômica existente.

Para o autor a TL se constituiu enquanto um movimento ecumênico, formado

a partir da atuação de padres e teólogos, além de inúmeros coletivos oriundos da

área de influencia da igreja católica (Ação Católica, Juventude Universitária Católica,

Juventude Operária Católica, etc.), pastorais sociais, membros de outras igrejas

cristãs e grupos comunitários, que viriam a ser conhecidos enquanto Comunidades

Eclesiais de Base. Desse modo, buscou abranger a TL pela denominação de

Cristianismo da Libertação, por se tratar de um amplo segmento que influenciou

movimentos provenientes do clero e da sociedade civil. A Teologia da Libertação

significaria um produto espiritual de movimentos sociais, oferecendo uma doutrina

que servia tanto à reflexão religiosa e espiritual, quanto à atuação política.

34

LOWY, página 77, 2000. 35

Entre os teólogos que contribuíram com a propagação dessas ideias estão: Gustavo Gutierrez (Peru), Rubem

Alves, Hugo Assman, Carlos Mesters, Leonardo e Clodovis Boff, Frei Betto (Brasil), Jon Sobrino, Ignacio

Ellacuría (El Salvador), Segundo Galilea, Ronaldo Muñoz (Chile), Pablo Richard (Chile-Costa Rica), José

Miguez Bonino, Juan Carlos Scannone, Ruben Dri (Argentina), Enrique Dusssel (Argentina-México), Juan-Luis

Segundo (Uruguai), Samuel Silva Gotay (Porto Rico). Ibid, página 56.

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31

O cristianismo da libertação se desenvolveu no Brasil através da experiência

de setores do clero brasileiro que criaram projetos de ação social, sobretudo a partir

da década de 1950. Esse setor da igreja era composto majoritariamente por

membros dos coletivos oriundos da Ação Católica com ramificações entre os

dominicanos, jesuítas e intelectuais católicos, formadores de coletivos diversos,

como o Movimento pela Educação Básica (MEB)36. Devido ao seu projeto de

engajamento social e às críticas erigidas sobre o conservadorismo da hierarquia,

essa ala da igreja passou a ser denominada de “Esquerda Católica”. Esse setor

minoritário da igreja brasileira inspirava-se nas novas ideias de ação social oriundas

da teologia francesa, com relação à utilização das ciências sociais como método de

análise da realidade e da organização de comunidades solidárias, segundo a teoria

do Padre Lebret37.

De acordo com Thomas C. Bruneau (1974) a Ação Católica foi organizada no

Brasil no inicio da década de 1950, inspirada no modelo francês de atuação social.

No início de sua formação comungava com as ideias de renovação da igreja, de

acordo com o Concílio Vaticano II, mas desenvolveu um conjunto de opiniões

próprias sobre sua atuação e a realidade material do país. Dividia-se em grupos de

militantes setorizados, compostos por adultos e jovens das escolas secundarias

(JEC), das universidades (JUC), das zonas rurais (JAC), da classe operária (JOC) e

de outros setores da sociedade (JIC)38.

36

O movimento pela educação básica consistiu na união de esforços entre diferentes segmentos da igreja católica

que buscavam a alfabetização dos pobres com a perspectiva de que eles se transformassem em interlocutores de

seu processo de conscientização e libertação. O movimento se nutria das práticas da Ação Católica em

consonância com a base pedagógica desenvolvida por Paulo Freire. O movimento era dividido em equipes locais

que planejavam, executavam e coordenavam o programa de acordo com cada localidade. A Equipe selecionava e

treinava membros das comunidades que participavam do programa. A ação do MEB era centralizada na emissão

radiofônica de programas educativos para redes escolares. Cf. KREUTZ, Lúcio. Os movimentos de educação

popular no Brasil: 1961-64. Dissertação (Mestrado em Educação). Departamento de Filosofia da Educação.

Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1979. 37

Louis-Josheph Lebret era um padre dominicano francês cujas ideias ganharam destaque entre setores do clero

nacional. Era um defensor da construção de comunidades solidárias, que poderiam desenvolver uma alternativa

para a organização econômica capitalista baseada na exploração e no lucro. Valia-se de análises leigas e

interpretava a realidade vivenciada através de conceitos do marxismo, que dialogava com princípios morais

católicos. Acreditava que as bases deveriam ser organizadas para a construção de uma sociedade mais justa e

igualitária, que se valeria da mediação do Estado para a desarticulação das formas estruturais injustas e

opressivas. Cf: BOSI, Alfredo. Lugares de Encontro: Contra ideologia e Utopia na História da esquerda cristã.

Lebret e “Economia e Humanismo”, in: Ideologia e Contra ideologia, São Paulo: Companhia das letras, 2010. 38

Estes setores mostravam-se preocupados com a formação dos trabalhadores e com a construção de uma

atuação cristã, buscando VER, em vista de analisar os problemas sociais e a realidade vivida pela população

pobre; JULGAR, através de estudos que pudessem fazer compreender a realidade percebida por meio de uma

leitura teológica das ciências politicas e sociais; e AGIR, em vista de estruturar mecanismos de ação para que

pudessem obrar contra a opressão imposta ao povo.

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32

A experiência desses coletivos trouxe alguns desdobramentos para o papel

social que a igreja viria desempenhar a partir da década de 1970. Auxiliaram na

formação de padres e leigos a respeito da atuação coletiva. Formaram projetos de

engajamento em movimentos sociais e trabalharam nos programas do MEB, dos

sindicatos rurais e de outros movimentos que passavam a se organizar a partir da

igreja39.

A organização desses coletivos fez nascer uma geração de militantes leigos

que passavam a compreender a igreja enquanto um espaço de atuação social:

Os imperativos de ação que, anteriormente, eram em grande parte de natureza catequética ou espiritual, tais como retiros, procissões, etc, que visavam o aprofundamento da fé, passaram a ser, depois de 1960, políticos. 40

Através de uma perspectiva renovada, a esquerda católica articulou textos

consagrados da doutrina católica com conceitos marxistas. Criticava o capitalismo e

a sociedade de consumo, atuava contra a desigualdade social e as contradições

sistêmicas.

Apesar de sua preponderância, ela foi amplamente desarticulada pela

hierarquia católica, dado seu posicionamento contrário à perspectiva tradicional e ao

regime ditatorial imposto a partir de 1964. A aproximação de seus quadros militantes

com movimentos da esquerda revolucionária favoreceu a perseguição de suas

lideranças e a sua vinculação com os grupos considerados “subversivos”, sobretudo

com a Ação Popular41.

Contudo, após sua desarticulação os militantes da esquerda católica

passaram a se integrar em alguns coletivos de bairros e movimentos sociais, onde

disseminaram sua experiência organizativa. Essas ideias passaram a fazer parte de

círculos comunitários, contribuindo para a formação de núcleos militantes cujo

engajamento ampliava sua perspectiva reivindicativa.

Ao cristianismo da libertação transmitiram a utilização do método “ver, julgar e

agir”, oriundo da experiência da Ação Católica, percebido enquanto uma forma

39

BRUNEAU, página 188, 1974. 40

Ibid. página 184. 41

Criada em 1962, era um desdobramento da experiência de coletivos da Ação Católica, sobretudo da JUC. A

Ação popular foi erigida para assegurar a participação dos militantes católicos na política institucional após a sua

desarticulação pela hierarquia católica. Após o golpe de 1964, passou para a ilegalidade e fomentou uma

oposição ao regime autocrático, constituindo-se enquanto um núcleo de resistência que objetivava a revolução

social através do trabalho com as bases via formação de quadros, antes de sua completa destituição setores do

movimento erigiram atentados contra o regime. Cf. LIMA, 1979.

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33

possível de articulação entre a fé e a atuação social, elemento presente em grande

parte da ação construída através do setor progressista do clero.

Com a proposta do método “ver, julgar e agir”, a igreja não estaria acima da

humanidade, mas inserida nas suas dificuldades. Propunha a construção de

estruturas missionárias, com a participação de um laicado que trabalhasse em

conjunto com a hierarquia da igreja, a fim de ampliar o potencial de ação e

evangelização. Com essa perspectiva, ser cristão significaria o esforço para

reconhecer as dificuldades pelas quais passava a humanidade, buscando agir para

eliminá-las.

A partir da década de 1970 prevaleceu um novo grupo progressista42, que se

nutria com o legado da antiga esquerda católica. Nesse processo, setores

minoritários do clero passaram a incentivar a formação e a conscientização de

seminaristas sobre os problemas sociais, enquanto outros grupos realizavam críticas

à estrutura e ao comportamento de setores tradicionais da igreja. A partir das

mudanças trazidas pelo contexto que formou a teologia da libertação, esse conjunto

de padres se preocupava em fomentar a atuação dos leigos através da organização

de comunidades de base, conforme demonstrado por Bruneau (1974):

Teoricamente a Igreja mantém contato com a sociedade através do laicato. Se esse laicato não existe, é provável então que a mudança que possa ocorrer nos outros níveis da Igreja não seja a mais apropriada, dadas as transformações da sociedade maior. Diversos padres e bispos estavam conscientes desse problema e comentaram-no comigo. Sentiam eles mesmo com uma mudança eclesiástica, a Igreja poderia ficar alienada dos setores dinâmicos da sociedade. Em suma, sem o contato direto com o meio através de um laicado efetivo, a Igreja em transformação poderá estar se transformando de maneira errada. 43

A teologia da libertação também se nutria com a práxis de cristãos

organizados em núcleos comunitários estruturados a

partir dos bairros e paróquias. Esses coletivos se disseminavam a partir das igrejas e

possuíam uma atuação que era tanto religiosa quanto social. Essa forma de

organização difundiu-se através do conceito de Comunidades Eclesiais de Base

(CEBs), que designava grupos de diferentes posições, interesses, atuações,

experiências e formações, que partilhariam a sua ligação com a igreja católica,

42

Segundo Pesquisa de Thomás C. Bruneau (1974) os clérigos que formavam esse setor oscilavam entre o

número de 200 a 300 padres, ou 2% a 4% do total. 43

BRUNEAU, 290, 1974.

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34

assim como a sua atuação no interior dos bairros, a partir da estrutura clerical

existente, e que receberiam através desse relacionamento a influencia de setores da

hierarquia. Na utilização deste conceito, esses poucos pontos em comum seriam

suficientes para classificar coletividades diversas, que poderiam atuar como grupos

de benfeitores, comunidades de leitura da bíblia e pregação do evangelho, de

manutenção e limpeza da paróquia, associações de bairro, escolas de base,

coletivos operários, grupos de diversos tipos trabalho, coletivos de mães e mulheres,

entidades de direitos humanos, de trabalhos ligados à questão da terra, de grupos

contra a carestia dos alimentos, contra a violência policial, em favor da saúde e de

outras formas múltiplas que caracterizavam a sua existência em relação aos

trabalhos eclesiais e à resistência política, para citar algumas formações existentes.

Através das propostas da teologia da libertação as CEBs foram organizadas

com o objetivo de promover iniciativas que partiam de baixo para cima. Nesses

coletivos a organização comunitária se transformava em movimentos de crítica moral

e religiosa contra as formas de injustiça percebidas. Apesar do fomento do trabalho

dos leigos pela hierarquia, as ações reivindicativas das CEBs foram alicerçadas

através de diversos embates em diferentes níveis. A ação política das bases era

combatida por grande parte do clero nacional e encontrou dificuldades em locais

onde não havia a proeminência de padres e bispos progressistas.

De acordo com Mariângela de Sousa Marquês (2012) a teologia da libertação

se relacionou com o materialismo histórico e com métodos sócio analíticos das

ciências sociais. Esse diálogo permitia a formação de mecanismos pastorais que

disseminavam a opção pelos mais pobres, pela atuação social da igreja e dos

cristãos, pela luta pacífica para a construção da igualdade, justiça e superação da

miséria humana. Estas ideias encontraram divulgação no interior das camadas do

clero a partir do pensamento do dominicano peruano Gustavo Gutierrez.

O que havia de comum na pobreza do continente fez do sacerdote Peruano uma referência teológica, explicado quando o mesmo é aproximado à sua própria realidade, limitado ao país que nasceu e se criou, um país que na sua história, esclareceu que as contradições se mantinham porque o principal fator material não era superado: a relação social entre o oprimido e opressor, o que Gutierrez explica ao aproximar a práxis libertadora ao marxismo é a proposta de emancipação humana através da própria atividade do homem. 44

44

MARQUES, Mariângela de Souza. Gustavo Gutierrez: A igreja católica da teologia da libertação (1963-

1971). Dissertação (mestrado em História), Programa de Pós Graduação em História da UERJ, Rio de Janeiro,

2012, página 113.

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35

Para o desenvolvimento de suas concepções o marxismo foi uma ferramenta

essencial, utilizada para a compreensão da realidade material, muitas vezes despido

de aspectos de sua perspectiva revolucionária. Era utilizado, sobretudo com relação

ao estudo do funcionamento das estruturas que sustentam o sistema capitalista, que

recebia criticas constantes dos lideres pastorais alinhados à TL.

Com o uso das correntes de análise da sociologia a TL conciliava valores

tradicionais com modernos, religião com mundo secular.

Outro tema característico da teologia da libertação é seu ataque ao capitalismo como falsa religião, uma nova forma de idolatria: a idolatria do dinheiro. [...] Combinando a análise marxista (moderna) do fetichismo da mercadoria com a denúncia profética de deuses falsos do velho testamento (tradicional), os teólogos latino-americanos insistem a respeito da natureza maligna desses ídolos cruéis que exigem os sacrifícios humanos: os ídolos capitalistas ou fetiches [...]. 45

Para Michael de Lewy (2000) Gutierrez contribuiu para o cristianismo da

libertação através de sua crítica ao dualismo cristão, herdado do pensamento grego,

na qual a igreja enfatizava a existência de dois planos hierárquicos, um espiritual e

outro temporal. Em sua perspectiva haveria apenas uma história humana, que era

tanto espiritual quanto material. Desse entendimento enfatizaria a necessidade de

atuação para a superação das mazelas na vida concreta, perspectiva que era

desconsiderada pelo clero tradicional, preocupado com a salvação das almas

através de uma ação que se direcionava ao plano espiritual. Conforme veremos

mais adiante, essa concepção materialista será essencial para a formação do

movimento de direitos humanos em Osasco.

A teologia da libertação ocorria em diálogo com a experiência dos sacerdotes

nas atividades pastorais e era trazida para as comunidades como uma alternativa de

leitura da ação social e da fé. A atuação social em defesa do oprimido passaria a

significar um desígnio cristão, assim, os signos católicos seriam revistos dentro de

um projeto libertador universal que teria suas origens nos ensinamentos bíblicos

sobre humildade, igualdade e justiça.

A reflexão levava à crença de que o trabalho pastoral deveria transformar

toda a igreja. Isso deveria ocorrer junto ao preparo das comunidades, como base

para a realização de intervenções que possibilitassem as transformações no mundo

exterior. O trabalhador era colocado de modo ativo no interior da comunidade. Seria

45

LOWY, página 95. 2000.

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36

ele quem edificaria as ações coletivas, participando das decisões e transmitindo

suas necessidades e interesses.

Os pobres vencem sua situação oprimida quando elaboram uma estratégia mais adequada à transformação das relações sociais; é aquela da libertação. Na libertação os oprimidos se unem, entram num processo de conscientização, descobrem as causas de sua opressão, organizam seus movimentos e agem de forma articulada. Inicialmente reivindicam tudo o que o sistema operante pode dar; em seguida, agem visando uma transformação da sociedade atual na direção de uma sociedade nova marcada pela participação ampla, por relações sociais mais equilibradas e justas e por formas de vida mais dignas. 46

As atuações que se embasavam na teologia da libertação exigiram maior

envolvimento dos membros da igreja com a realidade social, sobretudo com relação

às contradições enfrentadas pelas populações subalternas.

Nesse processo, os padres progressistas assumiam publicamente seu

compromisso com o despertar do povo a partir da leitura do evangelho, com os

ensinamentos de um Jesus percebido enquanto salvador dos pobres e oprimidos.

Aqui se exige mais que contemplação uma ação eficaz que liberta. O crucificado quer ressuscitar. Estamos a favor dos pobres somente quando, junto com eles, lutamos contra a pobreza injustamente criada e imposta por eles. O serviço solitário ao oprimido significa então um ato de amor ao Cristo sofredor, uma liturgia que agrada Deus. 47

A teologia da libertação aparecia para as bases como ferramenta de reflexão

e preparação para a ação. Suas propostas ampliaram o potencial de atuação dos

sujeitos. Assim, a TL esteve vinculada a princípios vivenciados pelas comunidades

de base: a articulação entre a fé e luta social, a crença de que a atuação cristã

deveria pôr fim à extrema pobreza e a todas as formas de injustiça.

Na prática a Teologia da Libertação era uma ferramenta utilizada por

movimentos sociais diversos que se consolidavam no nível de bairro. Esse

movimento partia de uma ressignificação dos signos católicos e de uma nova leitura

do evangelho, que era voltada para a realidade vivida pelos subalternos. Desta

forma, pode-se afirmar que o cristianismo da libertação partia mais da ação prática

coletiva comunitária do que das prerrogativas oriundas das esferas eclesiais.

46

BOFF, Leonardo. O caminhar da igreja com os oprimidos, Rio de Janeiro, Codecri, 2ª ed. 1991. página 18. 47

Idem, página 16.

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37

A Igreja Católica consolidou inúmeras tentativas para podar as nuances

críticas da Teologia da Libertação. O CELAM48 (Conselho de Bispos Latino-

Americanos), que era dirigido por uma ala conservadora da igreja latino-americana,

se esforçou em desmobilizar a atuação de padres ligados à TL. Por sua vez, a

hierarquia de Roma reagiu às proposições do cristianismo de libertação, publicando

em 1984 uma instrução sobre seus pressupostos, por via da Sagrada Consagração

para a Doutrina da Fé. O texto acusava a TL de heresia marxista. Em 1985 foi

publicada uma nova instrução que buscava abranger os temas da teologia da

libertação de forma espiritualizada, arrancando suas premissas materiais e seu

conteúdo de ação social. 49

A conferência de bispos latino-americanos realizada em Puebla, em 1979, foi palco de uma verdadeira tentativa de retomar o controle: o CELAM, órgão organizador da conferencia, proibiu os teólogos da libertação de participar da conferência. [...] A solução conciliatória resultante foi resumida na agora famosa formula da “opção preferencial da Igreja Pelos pobres”, uma frase ampla o bastante para permitir que cada corrente a interprete de acordo com suas próprias tendências. 50

Apesar desse contexto, crescia no interior do clero brasileiro um grupo

progressista, que atuava com um número cada vez maior de iniciativas contra o

regime ditatorial. A partir de tal posicionamento, as comunidades e os movimentos

de resistência teriam nas paróquias um espaço de organização e construção de

suas ações frente ao Estado e às estruturas de poder.

De acordo com Eder Sader (1987), nesse período se formaram três matrizes

discursivas determinantes para a construção dos movimentos sociais reivindicativos:

a teologia da libertação, oriunda de setores progressistas da Igreja Católica; as

ideias marxistas dos grupos de esquerda em crise, que buscavam maior integração

com os trabalhadores através das associações comunitárias e dos espaços da

igreja, e o novo sindicalismo, surgido a partir de uma estrutura sindical esvaziada

pela intervenção militar. Em comum para essas matrizes discursivas estava a

centralidade de organização nos espaços da igreja e sua articulação com as CEBs,

que ampliaram as suas possibilidades de ação frente às estruturas.

48

O CELAM era controlado por grupos conservadores desde 1972. Tratava-se de uma ala tradicionalista

associada às classes dominantes do continente e a Cúria Romana. 49

A igreja também partiu para formas de perseguição episcopal. Em 1981 Leonardo Boff lançou um livro com

profundas críticas às estruturas da igreja católica, tratadas enquanto responsáveis pela tradição de intolerância e

dogmatismo. Após a publicação foi condenado a um ano de silêncio obsequioso por Roma. CF. LOWY, pág. 89,

2000. 50

LOWY, Página 81, 2000.

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Na área de influencia da igreja surgiram movimentos que contestavam

práticas do regime ditatorial a partir de novas estratégias, formas de ação e

organização. De modo distinto à resistência armada e às instituições clandestinas,

construíram práticas de organização coletiva que se consolidavam pelo trabalho de

formação de sujeitos organizados em seus bairros. Clérigos progressistas assumiam

um papel mediador para a formação de novos movimentos sociais, que surgiam a

partir de seus projetos pastorais e de sua influencia em setores combativos da

sociedade. Assim, a organização das bases passou a ser a principal característica

da atuação social de setores da igreja contra as violações do Estado, como aponta

Robert Grandmaison (1992):

Vários movimentos sociais nascidos na década de 1970 influenciaram decisivamente na participação do povo e constituem um salto qualitativo no enfrentamento ao Estado autoritário e violador dos direitos humanos. A luta, que, até então, se polarizava nas vanguardas armadas, passou a ter como preocupação principal a organização do povo pela base. 51

De acordo com Souza Lima (1979), esse processo foi intensificado em 1971,

quando uma chapa progressista, alinhada ao cristianismo de libertação, tomou

posse das comissões e do secretariado da CNBB, que passou a ser presidida por

Dom Aloísio Lorsheider, favorecendo a circulação de pautas democráticas

vinculadas à atuação de membros ligados aos trabalhos com as bases.

Constitui realmente um elemento importante e significativo o fato de, no momento em que começava a participação desses setores de classe no amplo processo de mobilização popular no Brasil, encontrasse na direção da CNBB um grupo de bispos progressistas, que concordava com e até estimulava a participação dos católicos que se achavam plenamente envolvidos nos conflitos sociais e nas mobilizações que aconteciam, organizados como tais, ou seja, como católicos. Os católicos não participaram porque foram autorizados ou estimulados. Os católicos são cidadãos e se acham inseridos na estrutura social. Faziam parte de classes sociais que se encontravam em uma fase de intensas lutas e agudos conflitos. É necessário destacar a feliz coincidência histórica constituída pelo fato de que esta participação acontecia em um momento em que a direção da CNBB estava aberta para aceitá-la. 52

51

GRANDMAISON. Robert. Direitos Humanos: Direitos dos Pobres. Contribuição da Comissão de pastoral

da Arquidiocese de São Paulo para uma linha de Direitos Humanos e de Pastoral a partir dos Empobrecidos.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião). Departamento de Ciências da Religião da PUC-SP, São Paulo:

1992, página 48. 52

LIMA, página 16, 1979.

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39

Nesse processo, o corpo formal da Igreja foi alargado pela atuação de leigos

organizados, que passavam a atuar no interior da estrutura. A aproximação de

esferas populares combativas com a estrutura clerical impulsionou a atuação de

padres que voltaram suas ações para a coordenação de trabalhos que agiam sobre

as contradições sociais existentes. Essa aproximação ampliava o embate de

membros das estruturas baixas do clero com a repressão do Estado autocrático.

Como em uma espiral ascendente, a participação de militantes cristãos nas ações consideradas subversivas foi acompanhada por uma repressão que se tornou cada vez mais brutal (prisões, estupros, torturas, assassinatos), contra pessoas relacionadas com a igreja, e até contra membros do clero. 53

A articulação destes setores da igreja esteve relacionada com as

arbitrariedades cometidas pelo regime. Como demonstra Carvalhal (2009).

O firme posicionamento de setores da Igreja em defesa dos direitos humanos e da justiça social foi justamente a causa dos conflitos entre a hierarquia católica e o grupo militar no poder [...]. Quanto mais a Igreja se comprometia com estes princípios, maiores também eram os ataques contra o clero, religiosos e leigos. Por outro lado, a intensificação da repressão contra os setores da Igreja envolvidos com as camadas populares e com a causa dos direitos humanos, fazia crescer a percepção da hierarquia sobre o papel da Igreja na sociedade brasileira e contra o regime de arbitrariedades. 54

Assim, em meados da década de 1970 a violência do regime havia alcançado

setores ativos da igreja, que passava a lidar com as práticas coercitivas e as

transgressões aos direitos fundamentais no interior de sua estrutura.

Em decorrência desse processo, diversos clérigos progressistas assumiam

posição contrária à doutrina de segurança nacional, que se fortalecia com o

aparelhamento do Serviço Nacional de Informação (SNI), órgão criado pelo General

Golbery Couto e Silva para intervir e controlar a sociedade civil e as instituições do

Estado através da fiscalização e da ação sobre supostos casos de subversão, com a

perseguição e repressão aos movimentos sociais.

A intensificação das perseguições políticas55 a membros do clero, sobretudo

de agentes pastorais, despertou em algumas lideranças católicas a necessidade de

53

Ibid., Página 142. 54

CARVALHAL, Juliana Pinto. A serviço da vida: A influencia da igreja católica na formação do Movimento

Nacional de Direitos Humanos (1982-1986). Dissertação (mestrado em história). Programa de Pós-Graduação

em História, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora: 2009, página 32. 55

Entre os casos de membros do clero e leigos atuantes perseguidos pelas instituições repressivas do regime

ditatorial enfatizamos os casos de Henrique Pereira Neto, Madre Maurina Borges, Frei Tito de Alencar Lima,

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40

defender o corpo institucional da igreja e sua unidade visível. Por sua vez, o

aumento da violência do regime impelia membros progressistas, que passaram a

defender a criação de mecanismos de luta pela justiça, contra a violência e a tortura.

A CNBB, que havia estado um tanto polarizada em relação ao regime ditatorial,

passava a se posicionar de forma nítida, em defesa da ação dos clérigos

perseguidos pelo regime, reclamando a defesa das liberdades civis e dos direitos

humanos56. Segundo Cancián (2005):

Á medida que os agentes pastorais de base reforçavam vínculos de engajamento com os setores populares, situados em áreas e zonas de conflitos sociais, eram vítimas de violenta repressão política que, quando dirigida aos quadros eclesiásticos, foi um fator decisivo de transformação da igreja. 57

Com esse cenário a composição do episcopado brasileiro foi profundamente

alterada no decorrer da década de 1970, quando bispos e arcebispos, incentivados

pelas propostas da Teologia da Libertação, passaram a defender os projetos

pastorais junto às comunidades e apoiar um posicionamento contrário ao regime

ditatorial no interior dos mecanismos de decisão da igreja. Isso significou a

proeminência de quadros progressistas que defendiam projetos eclesiais engajados

na transformação social, contrários aos grupos conservadores que priorizavam a

defesa do status histórico consolidado pela Igreja através da manutenção dos

dogmas e do afastamento em relação às contradições existentes. Assim, a estrutura

eclesial, a partir de seu compromisso evangélico, incorporou em seus projetos a

formação de entidades que apoiassem a luta em defesa dos direitos civis e

humanos. 58

A igreja católica era uma entidade suficientemente capaz de liderar e divulgar

a discussão sobre a defesa dos direitos humanos no Brasil. Apesar da grande

Frei Carlos Alberto Libânio Christo, Ives do Amaral, Fernando de Brito, Giorgio Callegari, Giulio Vicini e Yara

Spadini. 56 DELLA CAVA, 16. 57

CANCIAN, pág. 39, 2005. 58

Entre os documentos produzidos pela igreja católica em favor dos direitos humanos e contra a repressão do

Estado ditatorial destacamos: “Eu ouvi os clamores do povo”, produzido por bispos do nordeste em seis de maio

de 1973. Este documento fazia uma escolha pelo povo, denunciava a miséria nordestina, a concentração de

renda, a opressão, a injustiça e a desigualdade. “Marginalização de um Povo - Grito das igrejas”, documento de

bispos do centro-oeste de seis de maio de 1973. Analisava as condição de vida do povo e das formas existentes

de produção no meio rural e suas consequências desastrosas para o homem do campo. “Testemunho de Paz –

declaração do episcopado paulista”, assinado em Brodósqui - SP, em 1972, realizava a primeira denúncia formal

da tortura que era realizada contra perseguidos políticos do regime. “19 Proposições sobre Direitos Humanos” de

1972 que manifestava os pontos defendidos pela igreja com relação aos direitos humanos. Cf. CANCIAN, 2005;

CARVALHAL, 2009; GRANDMAISON, 1992; MARQUÊS, 2012.

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variedade de posicionamentos, sua estrutura eclesial alcançava todas as regiões do

país; possuía um eficiente sistema de comunicação interno, com o capital e a

técnica necessários para a manutenção de uma imprensa que funcionava bem em

tempos de censura. Havia ainda uma grandiosa estrutura em escala global que

funcionava de modo linear, apesar da sua grande heterogeneidade, nela muitos

padres e bispos buscaram apoio em momentos de conflito, não apenas para

ampliação de denúncias, mas também para a solicitação de aporte material e

financeiro.

Assim, a partir da década de 1970 setores da igreja católica brasileira

passaram a utilizar essa estrutura para a promoção de sua atuação social, momento

em que foram criados mecanismos para a defesa dos direitos humanos. Entre as

primeiras experiências consolidadas destacaram-se os trabalhos da arquidiocese de

São Paulo, que a partir de 1971 tomou uma série de iniciativas para denunciar e

enfrentar as violações praticadas pelos órgãos de repressão.

A igreja passava a ser uma alternativa de luta e resistência após a esquerda

clandestina ter sido eliminada e a oposição desarticulada. Ela aparecia como o

principal meio de enfrentamento ao Estado Autocrático, onde se estruturaram

movimentos sociais diversos. Esse processo possibilitou a formação de um novo

canal de oposição ao regime, onde os movimentos populares mobilizaram as suas

pautas e necessidades com as propostas do clero progressista. Esse eixo de ação

consolidou lutas para converter a estrutura católica em um reduto de organização e

mobilização popular.

1.2 - A luta pelos Direitos Humanos na Igreja Católica de São Paulo

No ano de 1970, assumiu o comando da Arquidiocese de São Paulo o

Arcebispo Paulo Evaristo Arns59, que incentivou a formação de pastorais e grupos

59

Dom Frei Paulo Evaristo Arns nasceu em Forquilhinha, 14 de setembro de 1921. Seus pais eram descendentes

de imigrantes provenientes da Alemanha. Após realizar estudos iniciais em sua cidade natal foi enviado para o

seminário Seráfico São Luís de Tolosa, em Rio Negro Paraná. Aos 19 anos iniciou o noviciado em Rodeio, Santa

Catarina, tendo cursado filosofia e teologia e estudado as novas correntes teológicas que se desenvolviam no

período. Em 1945 foi ordenado presbítero em Niterói. Exerceu seu ministério em Petrópolis e atuou junto à

população pobre da região, desenvolvendo projetos sociais que seriam retomados em seu arcebispado em São

Paulo. Doutorou-se na Sorbonne, França, em 1952. Foi professor nas faculdades de Filosofia, Ciências e Letras

de Agudos e Bauru. Foi bispo-auxiliar da arquidiocese de São Paulo, trabalhou na Zona Norte paulistana, no

bairro de Santana, onde desenvolveu o cerne de seu projeto de atuação social. Recebeu a ordenação episcopal em

3 de julho de 1966 em Forquilhinha. No dia 22 de outubro de 1970, o Papa Paulo VI o nomeou arcebispo

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comunitários e promoveu uma intensa discussão no interior da igreja paulistana

sobre a transgressão dos direitos humanos, com atenção aos constantes casos de

violações perpetradas por agentes do Estado60. Devido à intensa repressão

reconhecida, a arquidiocese de São Paulo utilizou seus recursos para a construção

de coletivos de atuação sobre os direitos humanos.

Através do engajamento de D. Paulo61, a igreja paulistana pôs em ação

práticas de atuação coletivas para a defesa dos perseguidos pelo regime, esta

atuação ocorria através do trabalho interligado de uma rede de militantes que

atuavam no interior da igreja.

A primeira experiência efetiva de membros e recursos do clero paulista para a

promoção de uma entidade que defendesse os direitos humanos foi alcançada pela

Comissão de Justiça e Paz de São Paulo. A CJP-SP deu inicio a formas

institucionais de organização que contavam com o apoio de setores do bispado

brasileiro, que passaram a defender a atuação mediadora da igreja em casos onde

fosse constatada a violação dos direitos humanos fundamentais.

A origem da Comissão de Justiça e Paz está relacionada ao decreto Mutu

Próprio Justiniam et Pacem, sancionado pelo papa João Paulo VI em janeiro de

1967, que estabeleceu os critérios de formação e a estrutura da comissão. A

entidade teria sede em Roma, contando mais tarde com subdivisões que atuariam

com certa independência, mas que eram orientadas pelas diretrizes definidas em

1967. Teria por finalidade a cooperação com o desenvolvimento dos países pobres e

subdesenvolvidos com o objetivo de atuar no âmbito da justiça e da paz

metropolitano de São Paulo, exercendo o cargo até 15 de abril de 1998. Destacou-se dentre os clérigos de seu

período por sua ação junto às comunidades pobres e pelo desenvolvimento de projetos pastorais que visavam à

atuação social da igreja. Defendia a criação de mecanismos que defendessem os direitos humanos e a denúncia

sobre os casos de injustiça identificados. Foi articulador de coletivos contrários à ditadura e se constituiu

enquanto uma das principais lideranças do clero progressista, tendo enfrentado contínua oposição de setores

tradicionais do clero, inclusive por parte da hierarquia romana. Cf. RODRÍGUES, 2008, op. cit.. 60

No momento em que Dom Paulo Evaristo Arns assumia a arquidiocese haviam sido presos no Rio de Janeiro

quatro sacerdotes e sete dirigentes jocistas. Outras prisões e intimidações ocorriam sobre membros dos projetos

pastorais em diversas cidades. A igreja passava a lidar com uma crise contra o Estado, que evoluía para uma

perseguição sistemática dos projetos e ações do clero junto às populações mais pobres. Cf. GRANDMAISON.

Robert. Direitos Humanos: Direitos dos Pobres. Contribuição da Comissão de pastoral da Arquidiocese de São

Paulo para uma linha de Direitos Humanos e de Pastoral a partir dos Empobrecidos. Dissertação (Mestrado em

Ciências da Religião). Departamento de Ciências da Religião da PUC-SP, São Paulo:1992. 61

Dom Paulo fez gestos significativos durante o começo de seu arcebispado. Ele visitou frades dominicanos

presos e pode perceber as torturas que receberam nas dependências do DOPS. Em 1971 verificou as práticas de

violência e as torturas cometidas contra Padre Júlio Vicini e a assistente social Yara Spadini, que desenvolviam

trabalhos pastorais. Ele denunciou as práticas que percebeu contra os agentes pastorais, confrontou o governador

Abreu Sodré que negava a existência de tortura em São Paulo, propôs que médicos averiguassem os presos, para

comprovar as práticas de tortura, o atendimento foi negado pelas autoridades do DEOPS. Cf. RODRIGUES,

2008, op. cit.

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internacional. A comissão foi um dos resultados das propostas do Concilio

Ecumênico Vaticano II (1962-1965), que enfatizou a formação de mecanismos de

mediação que possibilitassem a edificação de uma igreja universal, capaz de

promover a justiça e a paz em regiões violentas. Assim, a comissão foi criada

enquanto um mecanismo católico de mediação social, que tinha a proposta de

denunciar as injustiças praticadas pelos Estados nacionais e suas instituições. Ela

seria um suporte para os trabalhos pastorais, promovendo estudos auxiliares para

os projetos da hierarquia.

Em outro sentido, a formação da Comissão de Justiça e Paz apresentava

uma alternativa para as contradições sociais, que impossibilitavam a paz nas

sociedades, frente a outros projetos de mudança nas estruturas, como a via

socialista e a guerra de guerrilha.

Segundo Cancián (2005), as comissões nacionais da CJP foram criadas na

América Latina a partir dos desdobramentos da Conferência de Medellín, que62

ratificou a opção da igreja latina contra as injustiças e violações do continente. As

conferências episcopais definiram um estatuto para as comissões, que se

reportariam ao órgão romano com uma atuação integrada, mas que passariam a

desempenhar ações próprias63.

A difusão das comissões permitiu que a igreja estivesse mais próxima das

demandas de cada local, criando ações especificas que estivessem relacionadas ao

trabalho pastoral desenvolvido pelas dioceses e arquidioceses.

A Comissão Brasileira de Justiça e Paz foi criada em outubro de 1968, no Rio

de Janeiro64. No período de exceção, foi crucial para sua sobrevivência, a

associação com a cúria romana que dificultava sua desarticulação pelo regime.

Como apontado, no decorrer das décadas de 1960 e 1970 consolidou-se uma

estrutura burocrática de controle e vigilância da população. De acordo com Nilo Dias

de Oliveira (2008) os aparelhos de repressão valeram-se da experiência de atuação

62

Nos documentos finais de Medellín o conselho optou pela formação de comissões nacionais, que poderiam ter

desdobramentos regionais. 63

Uma das principais premissas oriundas do Concilio Vaticano II foi a atribuição de funções decisórias menos

centralizadas na cúria romana. Com isso, os bispos e arcebispos puderam trazer a camada de decisão de projetos

e entidades católicas para próximo de suas paróquias. Após o concilio as conferências episcopais tiveram maior

liberdade para a construção de seus objetivos e práticas de ação, deste modo a comissão de justiça e paz pôde

apresentar características diferentes de acordo com a arquidiocese que esteve vinculada. CANCIAN, 2005, op.

cit. 64

Como demonstrado, nesse período a CNBB passava a se posicionar a favor das pautas progressistas. Isso

possibilitou que a Comissão de Justiça e Paz fosse incentivada enquanto mecanismo para enfrentar as violações

praticadas pelo regime.

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de instituições de meados dos anos 1930, cujas práticas baseavam-se na doutrina

de segurança nacional e articulavam-se através do Serviço Nacional de Informação,

que contava com a atuação de um serviço secreto que operava no interior do

Departamento de Ordem Política e Social (Dops) a partir da direção do

Destacamento de Operações de Informações (DOI), responsável pela busca,

apreensão e interrogatório de suspeitos e do Centro de Operações de Defesa

Interna (CODI), órgão que analisava as informações investigativas, realizava o

planejamento das ações de repressão à subversão e coordenava diversos órgãos

militares que atuavam sob a égide da repressão social e política.

Em conjunto com o aparelhamento da burocracia de controle e repressão

foram instituídas novas normas jurídicas que invalidaram a justiça que prevalecia no

Estado de Direito. Assim, os julgamentos de presos políticos não se fundamentavam

na legislação democrática, suprimida por Atos Institucionais65 que legitimavam

perante a justiça as ações autoritárias da repressão política.

Com a nulidade do habeas corpus os inquéritos existentes contavam com a

possibilidade de culpabilização presumida, sobretudo para crimes que fossem

considerados de natureza política. Assim, todo o escopo da repressão foi

institucionalizado em normas jurídicas que tinham o propósito de legitimar o trabalho

da repressão e dar respaldo normativo para a violência imposta sobre setores ativos

da população. Configurava-se um simulacro de legalidade que abarcava o conjunto

das ações autocráticas do regime.

Por mais que a pauta dos direitos humanos fosse incentivada pela doutrina

social da igreja, sobretudo após 1963, quando a encíclica Pacem in Terris

promulgada pelo Papa João XXIII vinculou a Declaração Universal dos Direitos

Humanos das Nações Unidas, de 1948, como parte do ensinamento oficial da Igreja,

os mecanismos de direitos humanos desenvolvidos no Brasil apresentavam

características próprias, relacionadas às contradições vivenciados nos pais, às

propostas da teologia da libertação e a experiência de atuação de membros

65

Entre os anos de 1964 a 1969 foram decretados 17 atos institucionais regulamentados por 104 atos

complementares. Entre os atos que regulamentaram a repressão social e política destacamos o Ato Institucional

nº 1, de 9 de abril de 1964 que conferiu aos Comandantes-em-chefe das Forças Armadas o poder de suspender

direitos políticos e cassar mandatos legislativos, ao Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968 que

suspendeu a garantia do habeas corpus para determinados crimes; suspensão de direitos políticos e restrição ao

exercício de qualquer direito público ou privado; Ato Institucional nº 13, de 5 de setembro de 1969 que dispôs

sobre o banimento do território nacional de brasileiros inconvenientes, nocivos ou perigosos à segurança

nacional, mediante proposta dos Ministros de Estado da Justiça, da Marinha de Guerra, do Exército ou da

Aeronáutica Militar.

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progressistas do clero. Assim, a defesa dos direitos humanos assumia as pautas do

cristianismo de libertação, que passava a consolidar proeminência frente aos

mecanismos de decisão do clero brasileiro.

Com esse contexto, os membros do grupo fundador da Comissão de Justiça e

Paz brasileira adequaram o carácter proposto para a entidade. A versão brasileira foi

construída para se transformar em um mecanismo de investigação, denúncia e

defesa dos casos de tortura, repressão, assassinatos e desaparecimentos. No início

da década de 1970 a comissão nacional assumiu a responsabilidade de defender os

direitos humanos violados, voltando sua atuação para a ação jurídica em defesa dos

perseguidos políticos, em resposta à configuração do aparelhamento da autocracia e

da institucionalização das práticas de controle e repressão.

Com o objetivo de atender as necessidades mais imediatas de cada

localidade, foram articuladas pela comissão brasileira, comissões diocesanas e

arquidiocesanas de justiça e paz, que atuariam de modo mais próximo da realidade

de cada localidade.

As Comissões de Justiça e Paz do Brasil foram equipadas com recursos e

orientadas para a atuação jurídica. Para isso, foram contratados advogados e

juristas que passaram a defender com os meios disponíveis os casos de violações

dos direitos humanos. As entidades se concentravam no diálogo com as instituições

do Estado e buscavam, através de ações pacíficas e com base no sistema jurídico

existente, auxiliar as vitimas da repressão. Essa atuação foi criada na experiência

organizativa da CJP-SP e passou a ser reproduzida em instituições de defesa dos

direitos humanos que surgiram anos depois.

Em São Paulo o arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns buscou consolidar a

entidade para atuação na defesa dos direitos humanos na região metropolitana. A

comissão paulistana era dirigida por um comitê de gestão denominado conselho

curador, composto por diferentes segmentos sociais que buscavam integrar a

entidade com outros coletivos atuantes na luta pelos direitos.

Diante da justiça de exceção consolidada, a comissão buscava trazer

advogados com experiência jurídica em defesa criminal66. Assim foram convidados

para a instituição os advogados Mario Simas, Dalmo Dallari, Hélio Bicudo, Fábio

Comparato, José Carlos Dias e José Gregori. Segundo Cancián (2004), a escolha

66

A entidade contava também com vínculos estabelecidos com a Pastoral Operária. No conselho havia a

presença do líder operário Waldemar Rossi, que atuava junto da pastoral.

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da atuação jurídica possibilitou a eficácia dos trabalhos da entidade, que unificou

setores da sociedade civil, sobretudo da área jurídica, com as propostas de atuação

pastoral da igreja.

A linha de ação adotada pela CJP-SP, de carácter profundamente legalista, foi um dos fatores-chave que contribui para a eficácia dos trabalhos de assistência às vitimas da repressão e de denúncias de violações dos direitos humanos, pois permitiu à entidade contar com o apoio e a solidariedade do clero católico e de inúmeros segmentos da sociedade civil, unindo esforços no sentido de deslegitimar o regime militar. 67

A ação legalista dificultava a associação com movimentos considerados

subversivos68. Entretanto, com a ampliação de suas ações passaram a perseguidos

por setores do Estado (como o II Exército). Para defender-se das acusações a CJP-

SP buscou criar uma identidade jurídica, consolidando uma existência legal69,

valendo-se da tentativa do regime em manter a ditadura dentro de um sistema

jurídico e operando dentro dessas brechas70. O estatuto da entidade definia

publicamente o objetivo da comissão, que era o de ajudar as pessoas necessitadas,

com finalidades assistencialistas não políticas. Assim, a entidade compartilhava uma

nova estratégia de comunicação dos movimentos sociais com o Estado71.

As reuniões da CJP-SP ocorriam na casa de D. Paulo Evaristo Arns, onde se

compartilhava o conhecimento sobre os crimes praticados pelo Estado. Através da

comissão os casos eram encaminhados para os advogados que davam inicio a

medidas jurídicas. A secretária Margarida Benevides tomava o depoimento das

pessoas e depois encaminhava ao setor jurídico os dados iniciais coletados72. Os

67

CANCIAN, pág. 69, 2005. 68

Após o AI-5 de 1968 o poder executivo tornou-se o centro da vida política. Era assessorado pelo conselho de

segurança nacional, que inferia diretamente nos assuntos relacionados ao Estado e à sociedade civil. A estes

estava subordinado o Serviço Nacional de Informação (SNI) criado pelo general Golbery Couto e Silva,

instituição que supervisionava e atuava em todas as esferas da vida pública, vigilante sobre sujeitos situados em

posição contrária ao regime. Sobre esta estrutura estava embasada a repressão política vivenciada pelo Brasil

após 1968. 69

Recomendamos a visualização do documentário: COMISSÃO de Justiça e Paz e a Ditadura Militar no Brasil.

Direção de Mario Dallari Bucci. Brasil, 46 minutos. Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) do curso de

Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Disponível em: < http://agemt.org/?p=2937 >.

Acesso em: 12 de julho de 2016. 70

Os governos militares buscavam alterar as disposições jurídicas existentes na Constituição brasileira para

garantir a governabilidade de seus atos a fim de manter as “aparências de um regime democrático”. Assim

buscou institucionalizar suas ações consolidando uma fachada de legalidade. Cf. FICO, Carlos. Como eles

agiam: Os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política. Rio de Janeiro, Record, 2001. 71

Cf. SADER, Eder, Quando Novos personagens entram em cena Experiências e lutas dos trabalhadores da

grande São Paulo (1970-80). Rio de janeiro, Paz e Terra, 1988. 72

Segundo dados levantados por Cancián (2005) em 1976 foram registrados 108 casos, em 1977 foram 101, em

1978 um total de 115.

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perseguidos políticos eram representados pelos advogados da entidade, que

buscavam abrandar suas penas ou conseguir sua libertação. Muitas detenções

ocorriam sem identificação, assemelhando-se a sequestros, com isso as famílias

recorriam às paróquias que as recomendavam a CPJ-SP. A entidade realizava um

trabalho de localização do paradeiro dos prisioneiros e identificação da instituição

que havia efetivado as ações. Realizava visitas para avaliar o estado dos presos e a

forma como eram tratados73. Médicos e psicólogos próximos de membros da

entidade atendiam as vítimas, assim, formava-se a partir da CJP-SP uma rede de

atuação em auxílio às pessoas perseguidas.

Segundo Maria Benevides (2009) a comissão havia se transformado nos

ouvidos do arcebispo. Era uma forma de a igreja analisar e conhecer a violência

praticada pelas instituições do Estado e os crimes políticos perpetrados por estas.

Os membros da comissão iam ao exterior e denunciavam as violações que ocorriam

no Brasil. A entidade enviava relatórios de denúncias das torturas para o CELAM,

para o Vaticano e para a Anistia Internacional.

A CJP-SP empenhou-se na acolhida a refugiados e perseguidos políticos de

outros países latinos, que também experimentavam governos de exceção, sobretudo

o Uruguai, a Argentina e o Chile. A comissão desenvolveu um trabalho próximo da

ONU através do Alto Comissariado das Nações Unidas para refugiados (ACNUR).

Participou ainda, da criação do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos nos Países

do Cone Sul (CLAMOR)74, entidade que criou uma rede de informação sobre os

casos de perseguidos políticos no continente e auxiliou refugiados através de um

trabalho solidário entre as igrejas.

A partir de 1975 a CJP-SP passou a abranger os abusos cometidos pelas

instituições policiais contra presos comuns e marginalizados. Com a diminuição de

arbitrariedades cometidas contra presos políticos em São Paulo a partir de 197675

73

Em uma dessas visitas D. Paulo se vestiu de cardeal para ter acesso aos presos políticos, que estavam sendo

torturados nas dependências do DOPS-SP. Cf. RODRIGUES, 2008. 74

Para mais recomendamos o projeto da professora Heloísa de Faria Cruz. Cf . CRUZ, Heloísa de Faria.

CLAMOR: Documentação e Memória de um Comitê pelos Direitos Humanos no Cone Sul (1978-1990). In

XXVII Simpósio nacional de História – Conhecimento Histórico e diálogo social. Natal – RN: 2013. Anais

eletrônicos. Disponível em: <

http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1370550684_ARQUIVO_CLAMORANPUHCOMPLETO.p

df >. Acesso em 28 de julho de 2016. 75

No ano de 1976 assume o comando do segundo exército o general Eduardo D’Avilla Mello que deu

continuidade ao projeto e as diretrizes de segurança nacional, todavia a publicidade de casos de morte de presos

políticos no interior das prisões dos órgãos de repressão forçaram a mudanças na forma como os presos eram

tratados. Não se pode afirmar, todavia, que houve um abrandamento das ações de repressão, que continuavam a

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(sobretudo após as mortes de Vladmir Herzog e Manoel Fiel Filho), a igreja passaria

a dar mais atenção às denúncias de violência policial, sobretudo nas periferias.

Segundo Katia Rodrigues (2008) a preocupação de D. Paulo Evaristo Arns

com os presos comuns começou em junho de 1966, quando assumiu o bispado

auxiliar da arquidiocese de São Paulo. D. Paulo atuou na região onde se localizava o

Carandiru, até então a maior casa penitenciária do país. Ele presenciava o trabalho

do capelão Ismael Simões junto aos presos. Conheceu as características da

detenção, celebrava missas no presídio, ajudava as missões de caridade junto aos

detentos. Nesse período participou de julgamentos e acompanhou casos. Pôde

perceber a enorme espera dos presos comuns para serem atendidos pela justiça, e

as diversas formas de negação dos seus direitos. As tentativas de diálogo com

setores do Estado, como o Ministério da Justiça, lhe mostrariam a desatenção das

instituições com a situação da parcela mais pobre da população, que sofria com os

constantes equívocos do sistema e com a negação dos seus direitos fundamentais.

Nestes anos Dom Paulo traçaria uma das atividades fundamentais da Igreja Católica

de São Paulo junto aos pobres: a luta pelos seus direitos civis e humanos.

Quanto ao trabalho na área dos presos comuns, a comissão atuava de modo

parecido aos casos de perseguição política76. Advogados cuidavam do assunto e

adquiriam as provas e testemunhas necessárias, buscavam colher depoimentos e

enviavam ofícios para instâncias do poder público e do Judiciário, com o objetivo de

pressionar o executivo para que tomassem decisão favorável às vítimas e para coibir

os abusos praticados pelas instituições policiais. Essas características de ação

foram consolidadas pela experiência da comissão e partilhadas com as entidades de

defesa dos direitos humanos que surgiram nos anos posteriores77.

Após as mudanças no curso político do país, sobretudo após a lei da anistia,

a CJP-SP mudou seu foco de ação centrado na defesa jurídica. A entidade

direcionou-se para a produção de trabalhos voltados para a realização de pesquisas,

publicações, eventos e campanhas de promoção dos direitos humanos, da justiça e

ocorrer em outras esferas, sobretudo pela ação das instituições de policiamento nas regiões mais pobres das

periferias da grande São Paulo. 76

Segundo CANCIÁN (2005) entre 1977 e 1978 cerca de 78 casos atendidos pela CJP-SP estavam direcionados

para o problema da violência policial. 77

A CJP-SP se destacou pela produção de pesquisas e pelo incentivo a trabalhos de denúncia, como a publicação

de “Meu depoimento sobre o esquadrão da morte”, de 1976, produzido pelo jurista Hélio Bicudo. Cf. BICUDO,

Hélio P. Meu depoimento sobre o esquadrão da morte. São Paulo, Martins Fontes, 2002.

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da paz social. Engajou-se em movimentos a favor da redemocratização, como a

revogação da lei de segurança nacional e em defesa da emenda Dante de Oliveira78.

No final da década de 1970 a Arquidiocese de São Paulo incentivou a

formação de entidades autônomas de direitos humanos que desenvolvessem uma

atuação conjunta com as comunidades pobres, sobretudo nas regiões periféricas.

Deste modo, as atividades de defesa das vitimas da repressão passaram a ser a

prioridade de outras entidades que se desenvolveram no final da década, sobretudo

os Centros de Defesa dos Direitos Humanos. A CJP-SP foi parte ativa no processo

de criação dessas entidades. Compartilhava sua experiência organizativa, auxiliava

na integração com a igreja, repassava casos e desenvolvia formas conjuntas de

ação para apoiar os CDDHs quando estes necessitavam.

Membros da CJP-SP auxiliaram outras entidades e compartilharam práticas

de luta e de formação de entidades jurídicas de auxilio aos casos de violação aos

direitos humanos. Essa discussão foi ampliada no interior da igreja, sobretudo pelo

trabalho da pastoral de direitos humanos, fundada em 1975 como o nome de

Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados

(CADH).

A CADH realizava trabalhos e pesquisas de reconhecimento da realidade e

das transgressões aos direitos humanos vividas pela população mais pobre da

região metropolitana, sobretudo nas periferias. Essa comissão fomentava o apoio ao

trabalho de agentes pastorais, que desenvolviam projetos relacionados aos

problemas vivenciados pelas populações subalternas.

Em 1976 a Arquidiocese de São Paulo formou o Secretariado de Justiça e

Não-Violência, com o objetivo de organizar e divulgar ações e experiências na luta

pelos direitos humanos.

Uma das iniciativas da hierarquia neste sentido foi a criação do Grupo Não Violência, inspirado por D. Helder Câmara, com intuito de articular contatos que fortalecessem a posição da Igreja. As primeiras reuniões aconteceram já em 1971, quando o grupo tinha como objetivo ampliar conhecimentos sobre a filosofia da “não-violência”

78

A Proposta de emenda Constitucional nº05/1983 recebeu o nome de seu autor, o deputado do PMDB-MT

Dante de Oliveira Pereira de Carvalho. O texto tinha o objetivo de legitimar as eleições diretas para a presidência

da República alterando os artigos 74 e 148 da Constituição Federal de 1967 (Emenda Constitucional nº 1, de

1969), que havia abolido o voto direto. A votação da emenda recebeu o apoio de diversos movimentos sociais,

que defendiam o texto e se organizavam em manifestações contra o regime autocrático. Apesar da grande

repercussão nacional o texto foi reprovado pela câmara dos Deputados no dia 25 de abril de 1984. O voto

indireto teve continuidade na eleição de 1985, caracterizando uma transição favorável para os setores que

estavam no poder.

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expressa em Mahatma Gandhi, Martin Luther King, entre outros. E, logo tornou-se a opção da maioria do Episcopado nos anos que se seguiram. Em 1973, a Igreja liderou uma campanha nacional contra a violação dos Direitos Humanos, juntamente com outras instituições, como a Ordem dos Advogados do Brasil e o Movimento Democrático Brasileiro, partido oposicionista. A campanha promovida pela CNBB pretendia, sobretudo, o desenvolvimento de atividades de pesquisa e documentação em diversas regiões do país. 79

A campanha de setores progressistas do clero em defesa dos direitos

humanos ampliou o debate sobre a luta por direitos na sociedade civil80. Neste

processo foram consolidadas novas instituições que visavam denunciar as

transgressões e defender os direitos humanos, como o Centro de Defesa dos

Direitos Humanos de Osasco em 1977 e o Centro Santos Dias de Direitos

Humanos81 em 1980. Até 1983 seriam formados 13 centros de direitos humanos

ligados à igreja católica de São Paulo.

Estes novos núcleos de ação em defesa dos direitos humanos guardaram

aspectos da experiência de atuação da CJP-SP, como a luta jurídica pelo

reconhecimento dos direitos humanos; o combate às instituições do Estado através

de atuações que operavam no interior da legalidade estabelecida pelo regime; via

recolhimento de depoimentos; visitas aos órgãos de repressão, buscas por presos

levados sem identificação; construção de trabalhos de divulgação das informações e

treinamento na área dos direitos humanos; ação em rede e construção de

informações compartilhadas pelas comissões da igreja.

Estas entidades passavam a direcionar-se para a precariedade das condições

de vida das populações mais pobres e para a violação dos seus direitos. Voltavam-

se ainda para os constantes casos de violência policial contra cidadãos comuns e

presos comuns, realizando um trabalho mais próximo das comunidades de base da

igreja, que se consolidavam no período.

Os Centros de Direitos Humanos criaram uma rede de comunicação e

compartilhamento de ferramentas metodológicas e práticas de ação que ampliaram

a discussão sobre os direitos humanos na cena pública.

79

CARVALHAL, página 201, 2009. 80

Este setor progressista se valia das renovações trazidas pelos documentos conciliares, como Gaudium et Epes

e Populurum Progressio, que proclamavam novos preceitos pastorais, para aproximar a defesa dos direitos

humanos dos projetos de ação social da igreja. Assim, mantinham a sua ação no interior do escopo definido pela

hierarquia, ainda que criticassem e questionassem aspectos da doutrina social da igreja. 81

Sediado na cúria da arquidiocese de São Paulo, o Centro Santo Dias de Direitos Humanos foi batizado em

homenagem ao metalúrgico Santo Dias da Silva Morto em 1979 pela polícia militar durante uma greve da

categoria.

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51

Os primeiros Centros de Defesa dos Direitos Humanos e Comissões de Direitos Humanos surgiram em decorrência dos trabalhos desenvolvidos pela Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CJP/BR) – órgão da Igreja Católica – e tinham por objetivo denunciar as arbitrariedades recorrentes naqueles anos finais da ditadura militar. Portanto, ainda que em alguns casos específicos a influência das CEBs tenha adquirido grande relevância, como veremos, de modo geral a inspiração primeira para a formação destes grupos veio da CJP/BR. 82

Assim, a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo inaugurou formas de

organização coletiva que partiam de uma imanência eclesial e passavam a atuar na

defesa jurídica dos que necessitavam de apoio contra as formas de repressão

praticadas pelo regime. Transformou-se na primeira iniciativa da Igreja Católica

brasileira no sentido de atuação na esfera dos direitos humanos, fator que amplificou

o sentido de defesa contra as arbitrariedades do regime no interior da igreja,

combatidas através do campo jurídico.

Essas características foram compartilhadas com organismos e entidades

cujos quadros militantes se relacionaram com a experiência de atuação

desenvolvida pela CJP-SP.

1.3 - Trabalhadores na luta pelos direitos: A atuação da Frente Nacional do

Trabalho

No final da década de 1970 foram consolidadas entidades específicas que

atuavam na esfera dos direitos humanos e que nasciam a partir de movimentos

construídos na área de influencia da igreja. Esses coletivos se valeram de

experiências construídas por grupos relacionados a setores progressistas do clero,

que se estabeleceram no decorrer da década de 1960. Foram responsáveis por

constituir o cerne de coletivos posteriores, cujas características se direcionavam ao

trabalho com a base presente nos bairros e à dinâmica de ação comunitária que

utilizava a estrutura da igreja católica. Neste entendimento insere-se a experiência

de atuação da Frente Nacional do Trabalho, responsável por criar práticas de

organização e atuação utilizadas na luta pelos direitos humanos em Osasco.

A criação dos Centros de Defesa dos Direitos Humanos espalhados pelas

cidades do país foi uma proposta de Mário Carvalho de Jesus, líder da Frente

82

CARVALHAL, página 5, 2009.

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Nacional do Trabalho, durante o primeiro encontro nacional de Não Violência-ativa,

realizado na Freguesia do Ó, em São Paulo, no ano de 1975. A reunião contou com

a participação de mais de cem pessoas oriundas de diversas partes do Brasil. Na

semana de seu acontecimento foi assassinado o jornalista Wladimir Herzog e preso

o líder camponês Manuel da Conceição, que foi sequestrado por agentes da

repressão após a participação no encontro, na manhã de 28 de outubro de 1975,

quando se hospedava na casa do Padre Domingos Barbé83 em Osasco.

Mário Carvalho de Jesus era um advogado católico. Na década de 1950

esteve ligado à Juventude Universitária Católica, quando se deslocou para a

comunidade francesa de Boimendeau, onde atuou como operário por oito meses84.

Nesta experiência pôde aproximar-se da realidade vivenciada pelas famílias

operárias e estabelecer projetos comunitários junto aos moradores. Retornou ao

Brasil e em 1955 atuou no sindicato dos trabalhadores do cimento de Perus, quando

ajudou a liderar uma greve da categoria na fábrica J.J Abdala (Companhia de

Cimento de Portland). Os grevistas desse movimento realizaram práticas de

resistência passiva, como greves de fome.

Anos depois foi presidente e fundador da Frente Nacional do Trabalho, uma

entidade formada em 1960 que defendia trabalhadores através de ações na justiça

do trabalho. A entidade foi fechada após o golpe de 1964, mas reaberta com a

movimentação de setores do clero.

Nesse período, Mario Carvalho de Jesus realizava palestras em Osasco

sobre a organização operária e a legislação trabalhista. Entendia que a incorporação

da legislação deveria ser uma pauta da luta operária e destacava a importância da

compreensão dos direitos previstos na constituição. Mario havia se consolidado

como uma das lideranças do movimento sindical. Destacava-se pela sua proposta

de não enfrentamento, que buscava uma atuação jurídica na luta por melhores

condições de trabalho no interior das fábricas.

Em meados da década de 1960 existia na cidade de Osasco uma intensa

atuação operária, relacionada à luta sindical e à mobilização das bases através das

83

Padre D. Barbé se tornava uma importante liderança comunitária em Osasco. Animava uma série de iniciativas

e possuía uma grande interlocução com a comunidade do bairro de Vila Yolanda, onde estava localizada sua

paróquia. 84

A Frente Nacional do Trabalho surgiu em decorrência da luta dos trabalhadores da companhia de cimento

Portland Perus e do sindicato dos trabalhadores nas indústrias de cimento, cal e gesso de São Paulo, que em 1958

promoveu uma greve da categoria e conquistou um reajuste de 40% do salário. Cf. COUTO, Ari Marcelo. Greve

na Cobrasma: Uma História de Luta e resistência. São Paulo: Annablume, 2003. Originalmente apresentado

como Dissertação de Mestrado PUC- SP- Historia, 2001.

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comissões de fábrica85, enquanto se fortalecia o processo de autonomia do sindicato

dos metalúrgicos de São Paulo. O relacionamento de Mário com a militância

operária, como João Batista Candido86 e Albertino Souza Oliva87, aproximou a FNT

do movimento operário que se estruturava na cidade.

A FNT criou um escritório próximo da fábrica Cobrasma88 em 1962,

atendendo trabalhadores que buscavam apoio jurídico. Com o crescimento de sua

influencia junto aos operários, membros da entidade foram eleitos para a comissão

de fábrica e ampliaram a influencia das ideias frentistas no interior do movimento

operário.

Nos primeiros anos de sua atuação na cidade, a FNT auxiliava operários

insatisfeitos com o sindicato dos metalúrgicos de São Paulo, propondo-se a

trabalhar de modo mais próximo às bases e buscando defender juridicamente as

pautas e reivindicações provenientes da relação de trabalho.

Podia ser entendida como uma entidade parasindical, pela sua proposta de

incluir trabalhadores de diversos setores. Buscava um sindicalismo independente do

Estado, participativo e solidário com os interesses dos trabalhadores.

No interior das greves metalúrgicas da década de 1960, a Frente atuou em

conjunto com setores combativos do movimento operário, próximos de uma

tendência favorável à luta armada contra o regime ditatorial e de grupos que

atuavam através da orientação do Partido Comunista Brasileiro, que estava na

ilegalidade. Os militantes frentistas geralmente discordaram desses grupos quanto o

uso da violência no interior do movimento trabalhista.

Nessas relações a entidade consolidou um projeto de atuação autônomo,

distinto das práticas e objetivos existentes no interior dos demais grupos presentes

no sindicato e nas comissões de fábrica. A entidade propunha defender causas

85

As comissões de fábrica foram edificadas em muitas indústrias da região. Os empresários buscaram direcioná-

las para a colaboração dos trabalhadores com a gestão. Na experiência operária em Osasco esta forma de atuação

significou a organização das bases operárias, que elegeram seus representantes em assembleias participativas, e

consolidaram pautas que foram negociadas junto às empresas. Assim, as comissões se consolidaram enquanto

tentativa de correlação de forças dos operários, que criavam uma matriz de ação politica mais horizontal e

participativa do que a estrutura sindical. Cf. COUTO, 2003, op. cit. 86

João Batista Candido era operário da Cobrasma, militou na Juventude Operária católica (JOC). Tornou-se uma

das lideranças do movimento metalúrgico nos anos que sucederam a greve de 1968. 87

Albertino Souza Oliva foi funcionário da Cobrasma, quando ingressou nos movimentos de base que se

articulavam no final da década de 1960. Foi demitido da companhia e passou a atuar na FNT. Formou-se em

direito e atuou junto do CDDHO nos primeiros anos de sua fundação. 88

A Companhia Brasileira de Materiais Ferroviários (COBRASMA) foi uma empresa responsável pela

fabricação de material ferroviário. Foi criada em Osasco no ano de 1944 para substituir a importação de

materiais estrangeiros. Contava com até três mil operários, quando chegou a ser o maior fabricante de material

ferroviário da América Latina.

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especificas, como o arrocho salarial e a melhoria das condições de trabalho dos

operários. Lutava pela criação de canais de diálogo entre patrões e trabalhadores.

Buscava fomentar entre os operários uma atuação que ocorresse nos limites

estabelecidos pela constituição. Conforme aponta Jesus (2007):

Em Osasco, percebe-se que a FNT iniciou seu trabalho entendendo que o movimento sindical deveria combater principalmente o arrocho salarial e conquistar melhores condições de trabalho dentro das fábricas. 89

A FNT exerceu forte influencia no interior do sindicato dos metalúrgicos de

Osasco, quando chegou a eleger candidatos para postos na diretoria. Aliou-se com

setores atuantes no interior da luta sindical, como o Grupo de Osasco90, e participou

da diretoria durante o movimento grevista de 196891.

A partir da atuação de Mário junto a setores da igreja católica e da proposta

da FNT, que priorizava a defesa dos direitos e da ação operária através das normas

jurídicas, militantes católicos, sobretudo de coletivos da Ação Católica92, se

aproximaram das suas fileiras.

Nesse processo a JOC e a ACO tiveram participação relevante. Seus

militantes eram ativos no movimento operário, frequentavam as reuniões,

participavam das comissões de fábrica e estabeleciam práticas conjuntas, o que foi

possível graças ao fortalecimento de sua organização em Osasco.

89

JESUS, página 52, 2007. 90

O grupo de Osasco foi um coletivo formado no interior do movimento sindical, com ideias e posicionamento

ligados à perspectiva da esquerda comunista. Possuía quadros atuantes no Partido Comunista e dialogava com,

movimentos de resistência. Parte de suas lideranças integraram a Vanguarda Popular revolucionária (VPR). O

coletivo comandava o sindicato dos metalúrgicos de Osasco durante as greves de 1968, possuía influencia em

grêmios de colégios e nas sociedades de amigos dos bairros. No decorrer da greve da Cobrasma o grupo de

Osasco esperava espalhar o movimento grevista para outras fábricas da região metropolitana e da cidade de São

Paulo. Buscava criar um fato para o inicio da luta operária revolucionária. Essa postura contrastava com os

objetivos da FNT, que buscava atuar sobre o problema especifico da questão salarial dos trabalhadores. 91

A greve da Cobrasma (também aderiram ao movimento operários da Lonaflex, Barreto-Keller, Fósforo

Granada e Braseixos) foi um movimento grevista que eclodiu na cidade de Osasco em 1968 contra as políticas

do ministro do trabalho Jarbas Passarinho, durante o governo de Costa e Silva. A greve surgiu em um contexto

de intensas manifestações e lutas das classes trabalhadores durante o ano de 1968. Os trabalhadores

reivindicavam o fim da política de achatamento dos salários, que não acompanhavam a inflação do período.

Entre as lutas se destacaram as comissões de fábrica, a formação do Movimento Intersindical Antiarrocho

(MIA). O movimento grevista reivindicava 35% de aumento salarial e reajustes salariais a cada três meses, com

o objetivo de equiparar os salários com a inflação real. Segundo Ari Couto o DIESE afirmava que o salário

mínimo de Ncr$ 105,00 deveria ser de Ncr$ 462.63, para a garantia da alimentação básica das famílias, uma vez

que entre os anos de 1964 a 1967 a cesta básica de alimentos aumentou em 250% enquanto o salário mínimo

havia subido apenas 150% no mesmo período. Cf. COUTO (2003), op. cit. 92

Fundada pelo Papa Pio XI em 1929 a Ação Católica constituía em um conjunto de movimentos criados pela

Igreja Católica, que tinham o objetivo de alargar a influência na sociedade através do fomento de ações do

laicado sobre projetos fomentadas pela Igreja através de sua doutrina social.

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Através desse relacionamento a FNT foi nutrida com elementos provenientes

da experiência da militância católica, sobretudo com relação à educação das bases;

à sua não filiação com pautas violentas, como movimento armado; e à utilização do

método ver, julgar e agir93.

Assim, nos espaços de construção da luta sindical a entidade defendeu a

consolidação de práticas não violentas, que não trouxessem prejuízos aos

trabalhadores no âmbito da legislação. Buscou consolidar negociações favoráveis

aos operários através de ações organizadas por comissões de fábrica, constituídas

por assembleias que envolvessem diretamente as bases. Como aponta Ari Couto

(2003).

A FNT defendia a mobilização dos trabalhadores e a constituição de comissões de fábrica nas diversas empresas da cidade, não apenas na Cobrasma. Também acreditava que os patrões cederiam diante da operação tartaruga, boicotes na fabricação das peças, paralisações diárias dos setores, afirmando que os prejuízos seriam grandes, e as empresas fatalmente, negociariam com os empregados. 94

Com a intensificação da importância dos católicos no interior do movimento

operário acentuava-se a ruptura entre a FNT e os demais grupos da esquerda que

propunham a sublevação dos trabalhadores para a derrubada do regime95. A

atuação dos católicos buscava organizar coletivos desvinculados do sindicato da

categoria. Assim, surgiram lideranças preocupadas com a organização de pautas

estratégicas para os operários através da consolidação de bases participativas.

De acordo com Couto (2003), a FNT buscava mobilizar os operários em

busca de melhores condições de trabalho no interior de uma matriz de ação que

93

A FNT recebeu influencia dos textos resultantes do Concílio Vaticano II (1962-1965). Comungava com a

defesa da justiça para alcançar a paz social. Buscava consolidar um principio de justiça através da atuação

jurídica que tinha como respaldo o evangelho. Oferecia apoio para movimentos da igreja e possuía influencia

junto a padres e membros do clero, sobretudo de progressistas que projetavam suas propostas de atuação social

através da formação das bases. 94

COUTO, página 46, 2003. 95

Para grupos operários de tendência revolucionária, que buscavam a organização dos trabalhadores e a

participação dos sindicatos no processo de derrubada do regime, as propostas da FNT e dos operários católicos

eram de teor doutrinário e reacionárias com relação à luta do operariado. Estes sujeitos discordavam das

propostas de diálogo com a classe patronal e o Estado. Não apoiavam a organização de entidades independentes

aos sindicatos, pois entendiam que a luta se fragmentaria. Com a desarticulação da greve de 1968 muitos

militantes do movimento operário se filiaram à resistência armada, sobretudo a Vanguarda Popular

Revolucionária (VPR). A FNT e os operários católicos seguiram atuantes junto às bases de movimentos da

cidade e auxiliaram na formação de outros movimentos, como o Centro de Defesa dos Direitos Humanos. Cf.

JESUS, Paulo Sergio de. Osasco: JOC, ACO e PO no movimento operário (1960-1970). Dissertação (mestrado

em História), Programa de Pós Graduação em História da PUC-SP, São Paulo: 2007.

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vinculava a experiência combativa de setores progressistas do clero com a

perspectiva de ação social extraída de documentos oficiais da igreja.

O grupo responsável pela FNT fundamentava-se nas ideias transmitidas pela doutrina cristã, baseadas nas encíclicas Rerum Novarum e da Mater el magistral. Além disso, outro documento foi fundamental para o grupo: princípios para Ação, do padre Lebret. Nos primeiros anos de trabalho da FNT, cursos de doutrina social cristã eram ministrados pelo frei franciscano Luiz Sartori. De cursos desse tipo saíram militantes da FNT e do movimento operário em geral. 96

Com esse processo a FNT buscou formar as bases para a reivindicação

sobre seus direitos. A entidade defendia a formação de comissões de trabalhadores

que se organizavam no chão de fábrica. A partir desses pressupostos, os militantes

da FNT consolidavam um dialogo mais direto com as lideranças das empresas.

Assim, quebravam a burocracia sindical e consolidavam uma entidade

representativa mais próxima da realidade vivenciada em cada fábrica.

A comissão de fábrica era uma forma organizacional com todos os trabalhadores tratados de forma igualitária. Ela criava ainda relações participativas e de solidariedade, em que todos lutavam contra as desigualdades dentro e fora da fábrica.97

A entidade defendia uma doutrina de ação embasada na não-violência nos

movimentos sociais, interpretada como uma prática de embate permanente contra

as formas de injustiça praticadas pelo Estado através de ações pacíficas, que

deveriam se afastar do enfrentamento e da agressão.

Essa prática de ação incentivava métodos de ação como a diminuição do

ritmo de trabalho (operação tartaruga e boicote à produção), a defesa jurídica dos

operários, a formação dos militantes sobre os direitos trabalhistas, a coleta de

assinaturas em abaixo-assinados, entre outras.

Para Mário Carvalho de Jesus a não-violência era uma prática de firmeza

permanente que deveria ser conciliada com formas de resistência ativa. Segundo

Roberto Zwetsch (2010).

Mário Carvalho de Jesus é um dos principais intelectuais da época que adotou na prática da luta social a não-violência ativa. Acredito que seja dele a releitura que se fez no Brasil dessa ferramenta de

96

COUTO, página 43, 2003. 97

IBRAHIM, página 12 1986: Apud COUTO, página 45, 2003.

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luta e que aqui foi rebatizada então com a expressão “firmeza-permanente”. 98

A noção de não-violência-ativa, rebatizada como firmeza-permanente, foi uma

das necessidades dos movimentos sociais do Brasil, dada a conjuntura existente e à

releituras de movimentos internacionais. Eram tomadas como exemplo as práticas

de ação formuladas por Gandhi, que visavam a construção de movimentos não

violentos para a transformação das estruturas coloniais na Índia. Também foi

importante a experiência do movimento de luta pelos direitos civis dos negros nos

Estados Unidos, a partir da liderança do Pastor Martin Luther King, reconhecido pela

defesa da luta pacífica em prol da igualdade de direitos entre os cidadãos

estadunidenses, através dos princípios do evangelho.

Em sua recordação sobre o período, Carlos Alberto ressalva a centralidade da

noção de não-violência para o movimento de direitos humanos que se formou em

Osasco, noção que fundava um projeto de luta distinto das práticas que buscavam

enfrentar o regime ditatorial. Ele era oriundo do grupo de jovens da paróquia de

Imaculada Conceição, no bairro do Km 18, posteriormente ingressou nas fileiras do

movimento pelos direitos humanos onde atuou em relação às propostas da FNT:

A gente não tinha esse papel de fomentar uma luta armada porque esse período da luta armada já tinha sido superado a partir de 68, mas a gente tinha esse princípio dos direitos humanos, junto com principio da não violência; era uma resistência pacifica, era uma resistência crítica, uma resistência que era lançada, era uma resistência passiva como ocorria em muitos movimentos que começaram na Índia, onde se apanhava e virava o rosto. Era uma resistência crítica, reflexiva, mas não era violenta contra o agressor. 99

Alguns teólogos e líderes religiosos se aproximaram da proposta de firmeza

permanente e fundaram um movimento de não-violência-ativa, como Dom Antônio

Fragoso e Alfredinho Kunz, bispo e padre de Crateús-CE; o teólogo Hubert

Lepargneur, dos Camilianos de São Paulo; o pastor Ricardo Wangen, da Igreja

Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e o padre Domingos Barbé, liderança da

Pastoral Operária de Osasco e um dos primeiros líderes das Comunidades Eclesiais

de Base no Brasil.

98

ZWETSCH, Roberto. Da Não-Violência Ativa ou Firmeza-Permanente à Educação para a Paz.

Protestantismo em Revista, São Leopoldo, RS, v. 22, maio-ago, 2010, página 5. 99

Depoimento concedido por Carlos Alberto ao pesquisador Lucas Alves de Camargo no dia 15 de julho de

2015.

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A arquidiocese de São Paulo incentivou a proposta e fundou junto a outros

coletivos um movimento ecumênico para promoção do projeto de não-violência junto

à Comissão Arquidiocesana de Direitos Humanos e seus movimentos pastorais. A

partir do vínculo com o movimento operário e com a perspectiva de atuação da

igreja de São Paulo, a não-violência foi interpretada como desobediência justa, que

buscava a transformação das estruturas repressivas para alcançar a justiça através

da defesa dos direitos humanos.

Essa proposta de não-violência não é apatia, comodismo, indiferença ou concordância, nem é o oposto da violência física. Dom Paulo fala então da não-violência ativa, que é exercitada há longos anos por um grupo de cristãos engajados na luta por justiça, paz e direitos humanos. 100

Assim, o desenvolvimento de práticas relacionadas a não-violência ativa foi

um resultado da junção da novidade eclesial, onde se inserem a experiência do clero

progressista e a teologia da libertação, com as necessidades e interesses dos

trabalhadores, das quais a FNT era um destacado interlocutor.

Em Osasco o padre Domingos Barbé se aproximou da FNT e embasou sua

proposta de organização pastoral nas premissas da firmeza-permanente. A partir

dessa interlocução esse conteúdo foi trazido para a realidade dos movimentos

pastorais de Osasco, fator que favoreceu para que os movimentos da igreja se

transformassem em experimentos para essa forma de atuação.

A não-violência ativa é um processo para se atingir a consciência do outro, através do incomodo e da sensação de responsabilidade pelos desdobramentos daquele ato de resistência passiva, tornando assim uma posição ou medida para aquela situação. 101

Em Osasco, a FNT foi a instituição pioneira na defesa de reivindicações na

área do direito civil e trabalhista. A proposta de luta pelos direitos que difundiu

colaborou para a manifestação da luta pelos direitos em outras instâncias de ação

social, como o bairro e as igrejas, auxiliou na organização das Sociedades de

Amigos de Bairro e na criação da Federação das Sociedades de Amigos de bairro

na cidade. Objetivava promover tarefas que os sindicatos não eram capazes de

fazer, devido a sua burocracia e estrutura hierarquizada. Além da defesa jurídica

100

ZWETSCH, op. cit. página 5. 101

CEDHRO, História do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco. Revista do Centro de Defesa dos

Direitos Humanos da Região de Osasco. Edição única. São Paulo, Osasco: 2010. Página 10.

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incentivava a formação na área do direito, através de palestras e cursos que

priorizavam o conhecimento da estrutura jurídica do Estado.

Para os processos de formação comungava com as propostas do

arcebispado de Dom Paulo Evaristo Arns, assim, suas lideranças apoiavam a

construção de práticas de luta jurídica com relação aos problemas cotidianos

vivenciados pelos trabalhadores em seus bairros.

A FNT queria antes de mais nada conscientizar os companheiros de forma que eles mesmos pudessem lutar pelos seus direitos. A frente surgiu como uma bandeira de conscientizar, de alertar todos o trabalhadores no sentido de dar a eles uma visão, uma consciência daquilo que o trabalhadores é, daquilo que ele representa. 102

Em um momento de desarticulação das matrizes tradicionais de ação política,

a FNT prosseguiu ativa na defesa dos trabalhadores. Durante a década de 1970 o

sindicato dos metalúrgicos de Osasco esteve nas mãos de interventores, que

coibiam a aproximação de grupos contestatórios. Assim, os operários contrários à

repressão encontraram dificuldades para manter a luta ativa no interior das fábricas.

Neste contexto a FNT prosseguiu como uma perspectiva de luta no campo jurídico.

Sua influência como entidade parassindical, essencialmente católica, colaborou para

que sua atuação junto aos trabalhadores da cidade se mantivesse frequente durante

os anos de repressão sindical.

As análises que buscaram compreender as greves metalúrgicas de 1968

evidenciaram que o movimento operário foi desmobilizado pelas forças do Estado,

sobretudo após a intervenção da Delegacia Regional do Trabalho (DRT) no sindicato

dos metalúrgicos de Osasco, com a perseguição e demissão das lideranças103.

Assim, os trabalhadores foram desarticulados e perderam uma importante matriz de

organização coletiva e ação política, que passaria a ser promovida por sujeitos

alinhados à politica salarial do governo, com um posicionamento amistoso com

relação à classe patronal. Nossa pesquisa evidencia que o controle dos sindicatos e

a vigilância dos órgãos de repressão sobre os trabalhadores incentivou sua

organização em outras esferas de experiência. Assim, a repressão ao movimento

sindical não significou a saída dos trabalhadores da cena política, mas favoreceu a

102 Frente Nacional do trabalho, 1980, APUD Couto, 2003: página 42. 103

Aqui citamos as pesquisas: JESUS (2007), COUTO (2003) e RIZEK, Cibele Saliba. Osasco - 1968: A

experiência de um movimento. Dissertação (mestrado em História), Programa de Pós Graduação em História da

PUC-SP, São Paulo: 1988.

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criação e a ocupação de outros canais de organização e atuação, que receberam

parte das estratégias, práticas e formas de atuação que haviam sido construídas

pelos operários em sua experiência grevista e sindical. Os frutos políticos dessas

novas formas de atuação são percebidos nos coletivos que eclodiram nos bairros

em toda a década de 1970.

Deste modo, enquanto o movimento sindical tradicional sofria uma intensa

repressão, surgiam novos projetos oriundos de setores da igreja que não aceitavam

a violência do regime e que defendiam a construção de mecanismos de influencia

que estivessem direcionados para o auxílio aos subalternos na luta contra as formas

existências de injustiça. Esse contexto possibilitou a unificação das pautas de

membros do clero com os interesses dos trabalhadores.

Entre as entidades formadas no interior desse processo situa-se o Centro de

Defesa dos Direitos Humanos de Osasco (CDDHO), primeiro do gênero no Estado

de São Paulo, oficialmente lançado em setembro de 1977, em uma reunião que

contava com a presença de padres, grupos operários e membros das comunidades

de base da região. Em conjunto com a FNT participaram da construção do projeto a

Pastoral dos Direitos Humanos e a Pastoral do Mundo do Trabalho, movimentos

eclesiais que nasciam a partir da atuação social que a igreja de São Paulo

estabelecia com o apoio de trabalhadores católicos.

1.4 - As Pastorais Sociais de Osasco e a construção da luta popular pelos

direitos humanos

Como demonstrado, em meados da década de 1950 a hierarquia romana

incentivou a criação de mecanismos para a defesa dos direitos humanos, com o

objetivo de alargar a sua influencia através da promoção da justiça e da paz. No

Brasil, o setor progressista utilizava as orientações papais de acordo com suas

prerrogativas, incentivando ações populares que defendiam os direitos humanos de

acordo com as pautas extraídas dos movimentos pastorais.

Em Osasco, na condução das pastorais sociais estavam padres que se

transformaram em lideranças nas paróquias mais atuantes. Eles foram essenciais

para a formação das primeiras ações organizadas através dos leigos, que se

expandiram por alguns bairros da cidade.

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Muitas transformações ocorriam na Igreja Católica em Osasco104 no início dos

anos de 1970. Padres missionários se uniam a setores progressistas da região e

passavam a exercitar junto aos sacerdotes locais, práticas de formação comunitária

para a atuação dos leigos. As Igrejas de Santo Antônio e Imaculada Conceição

haviam disponibilizado espaços para a formação de núcleos de discussão sobre o

trabalho e a questão sindical.

Grupos engajados na atuação social se organizavam nas igrejas, formando

coletividades integradas por padres progressistas, militantes e operários que

desenvolveram uma experiência combativa que solidificou a ação de novos sujeitos

coletivos a partir do trabalho pastoral com os leigos.

A gestão de d. Paulo Evaristo Arns105 a frente da arquidiocese de São Paulo

solidificou a construção do projeto de pastorais sociais. Em Osasco duas ações

pastorais se destacaram em sua atuação junto às comunidades: a Pastoral dos

Direitos Humanos e a Pastoral Operária. As pastorais sociais do período eram ações

e serviços fornecidos pelas dioceses, fomentadas em locais com necessidades

especificas, que visavam transformar, resolver ou amenizar problemas sociais

graves. Na década de 1970 eram formadas por um número expressivo de

voluntários, sobretudo de católicos, que geralmente atuavam sobre a liderança de

um padre. As pastorais tinham o objetivo de promover a influencia da igreja no nível

de bairro, ao consolidar ações dirigidas com relação às comunidades eclesiais de

base.

Dom Paulo promoveu uma consulta na Arquidiocese para a escolha de

prioridades pastorais106 da Igreja entre os anos de 1976-1977. As prioridades

deveriam ser os temas de ação das pastorais sociais, das comunidades de base e

das regiões episcopais. Foram oito meses de consulta e estudos pela igreja. A cúria

104

Até 1989 a Igreja Católica em Osasco era uma região episcopal da Arquidiocese de São Paulo que se

estruturava a partir dos encaminhamentos da Sé de São Paulo. Possuía um vigário episcopal que organizava o

plano de ação das paróquias e estava dividida em quatro setores de ação pastoral: Santo Antônio, Bonfim,

Barueri e São Roque. 105

Segundo entendimento de Cátia Regina Rodrigues (2008) D. Paulo possuía a intenção de tomar para si a

atribuição de fortalecer o cristianismo em São Paulo, através da participação de leigos, da articulação de CEBs.

Buscou fazer com que a igreja interagisse com os problemas vivenciados pela população, sobretudo dos pobres.

A biografia de D. Paulo evidencia como ele passou a se aproximar das problemáticas vividas pelos pobres, e de

como a igreja através das missões poderia oferecer apoio para os males sociais. Em 1973 vendeu o palácio Pio

XII por cinco milhões de dólares para morar em casa simples em Sumaré. Com o dinheiro subsidiou a

construção de 1200 centros comunitários na periferia da cidade. 106

Para a implantação dos campos de ação pastoral foi criada uma comissão executiva representando a

arquidiocese. Para alcançar todas as regiões ela foi dividida em sete regiões episcopais: centro, sul, norte, leste 1

e 2, oeste 1 e 2. Cf. CARVALHAL, (2006), op. cit.

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recebia sugestões e fomentava o debate entre os padres e leigos. Por fim, em

assembleia, foram definidos os novos campos de atuação da igreja que

compreendia a Pastoral do Mundo do Trabalho; a Pastoral dos Direitos Humanos e

Marginalizados; a Pastoral da Periferia e a Pastoral das Comunidades Eclesiais de

Base. Assim, foi definido o Primeiro plano Bienal de serviços à comunidade, um

documento oficial que deveria ser utilizado pelas paróquias para a promoção das

atividades sociais da igreja e para o planejamento pastoral. O plano previa a atuação

nos campos de ação social com ênfase na organização, participação e contribuição

das comunidades para a solução de seus problemas e das dificuldades de seus

bairros.

A arquidiocese de São Paulo adotou, respectivamente em 1976 e 1978, seu Primeiro e Segundo “plano Bienal”, nos quais teriam prioridade as “pastorais” (planos de ação religiosa e social) para promover as CEBs junto aos desempregados e trabalhadores de baixa renda da periferia. 107

O plano pastoral fomentou a participação em grupos organizados a partir da

igreja. O projeto buscava atuar na periferia, no mundo do trabalho, nas questões

operárias e nos direitos humanos. As frentes de ação possuíam seus próprios

objetivos e estratégias, mas articulavam seu trabalho e possuíam ampla

comunicação entre si. Recebiam, através dos padres, orientações das comissões

pastorais arquidiocesanas, que eram produzidas pela cúria paulistana com o objetivo

de articular a ação das pastorais em um projeto que seria vivido por toda a

arquidiocese de São Paulo. Em Osasco as pastorais sociais se orientavam pelos

documentos publicados pela cúria, mas formavam suas próprias estratégias e

práticas para fazer avançar a luta social.

A igreja de Osasco possuía a experiência de militantes católicos que

desenvolveram ações junto a setores operários e às camadas trabalhadoras, através

de missões e da atuação de padres militantes em diversos movimentos, mesmo

antes do golpe civil-militar de 1964. Em Osasco a JOC108, ACO109, JUC110, padres

passionistas e outros grupos progressistas receberam condenações no decorrer da

107

DELLA CAVA, página 2, 1986. 108

Juventude Operária Católica. A JOC foi fundada em 1923, estava ligada a Ação católica brasileira. Formada

por jovens solteiros, estava fortemente ligada às paróquias, realizavam atividades nos bairros e fábricas. 109

Ação Católica Operária. A ACO foi criada em 1962 por ex-jocistas. Visava levar a igreja ao movimento

operário e representar o interesse dos trabalhadores na igreja. 110

Juventude Universitária Católica, JUC, compunha um setor da Ação Católica, atuava no interior do ambiente

universitário através de uma militância formada majoritariamente por jovens.

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década de 1960, sendo desencorajados em suas ações e sofrendo pesada oposição

de setores conservadores111. Integraram-se no projeto pastoral da arquidiocese e

passaram a militar junto aos moradores desenvolvendo ações a partir da igreja e dos

bairros. Como aponta Jesus (2007):

Analisadas as fontes, elas revelam uma postura dinâmica dos militantes da JOC, ACO e PO, sendo operários cristãos e também residentes nos bairros, participavam das organizações de trabalhadores e moradores, procurando contribuir na formulação de estratégias de luta visando a melhores condições de vida. 112

Em Osasco, cidade com um histórico de luta de clérigos que encabeçavam

movimentos sociais, como o caso dos missionários Franceses da missão operária

São Pedro e São Paulo (MOPP), e um cenário de lutas operárias, como as greves

metalúrgicas de 1968, somado ao fato de que parte dos padres era oriunda das

classes populares da cidade, fortaleceu-se a aproximação de setores da igreja da

cidade com as propostas da teologia da libertação113.

Com o desenvolvimento das ações pastorais, os movimentos foram nutridos

pelas ideias provenientes da TL. Os párocos conciliavam a renovação teológica com

as suas referências cotidianas. Assim desenvolveram uma visão própria do que era

a libertação, entendida como um processo de ação cristã que deveria libertar toda a

sociedade a partir do evangelho, como nos demonstra a fala de Padre Tião, padre

que participou de movimentos reivindicativos que atuavam de forma conjunta com o

CDDHO: “E a libertação é isso, é libertar a família por inteiro, é libertar o filho, a esposa, é

tirar a mulher, e saber que ela é capaz.” 114

Na experiência das pastorais sociais de Osasco os textos teológicos eram

utilizados pelos párocos na edificação das pastorais sociais. A teologia fluía das

instâncias superiores do trabalho pastoral, para a base. Os coletivos discutiam e se

inteiravam das propostas vindas da igreja, alimentavam suas formas de organização

com os materiais que eram oferecidos (como cartilhas, livros, textos, trechos da

bíblia) e com as recomendações recebidas por meio de cartas e documentos da

igreja.

111

Cf. JESUS, página 18, 2007. 112

JESUS, página 19, 2007. 113

A ação desempenhada por padres da MOPP será analisada no capítulo 3. 114

Depoimento concedido por padre Tião ao pesquisador Lucas Alves de Camargo no dia 15 de julho de 2015.

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As pastorais de Osasco, em especial, a Pastoral Operária115, passavam a

propagar um projeto libertador universal, no sentido de formar os oprimidos para

uma atuação mais reflexiva, combativa, na luta pelos direitos e em busca da justiça

social. Elaboravam discursos sobre a necessidade de lutar pela igualdade humana

em cristo, pela paz e pela criação de uma comunidade fraterna em defesa dos

pobres.

Segundo Cátia Regina (2008), no decorrer da década de 1970 a pastoral

operária se transformou em um novo método de aproximação das populações

trabalhadoras. Criada na arquidiocese de São Paulo em 1970, sob a liderança do

Frei Luís Maria Alves Satori, este plano pastoral buscava exercer um trabalho de

base junto aos grupos operários, de modo a trazer suas demandas à estrutura da

igreja. No inicio não havia uma definição da ação a ser desempenhada pela pastoral

devido aos desentendimentos entre grupos integrantes, sobretudo militantes da

JOC, ACO, UNICOR, FNT, dos círculos dos trabalhadores cristãos, empresários

cristãos, representantes do Instituto Morumbi, da Missão Pedro e Paulo e das

CEBs116. Apenas em 1982 ficou decidido que a PO teria uma atuação com base no

reconhecimento da estrutura de classes e dos prejuízos causados pelo capitalismo.

Ela passaria a buscar a formação de militantes operários, com a participação de

sindicatos e coletivos trabalhistas. O primeiro plano pastoral da Arquidiocese com

vigência de 1976 até 1978 adotou o tema “mundo do Trabalho” de modo a não

excluir o “dialogo” com empresários e com outros trabalhadores.

Parte dos grupos de fábrica e coletivos de trabalhadores organizados entre os anos de 1974 e 1975 estavam relacionados com a pastoral operária, que foi um dos organismos responsáveis pelo fortalecimento da oposição sindical. A PO recebeu muitos militantes oriundos de grupos de esquerda que foram perseguidos pelo regime. 117

115

Caso ilustrativo desta característica das pastorais católicas de Osasco pode ser verificado na Pastoral

Operária, conduzida pelo padre operário Domingos Barbé. A pastoral operária atuou junto às necessidades dos

trabalhadores, auxiliando na organização de suas demandas e em defesa de seus direitos frente ao Estado e ao

empresariado. 116

Os militantes católicos ligados a Ação Católica buscavam enfatizar no projeto pastoral a opção pelos

operários, cujas atividades seriam direcionadas para a criação de mecanismos que auxiliassem os trabalhadores

em suas dificuldades materiais. Os grupos de empresários e a UNICOR, cujos militantes defendiam a harmonia

entre trabalhadores e empresários, discordavam do enfoque classista, que percebiam enquanto uma disfunção do

catolicismo pelo marxismo. Defendiam a noção de “mundo do trabalho”, que abrangia tanto trabalhadores

quanto operários e descaracterizava o projeto orientado para agir sobre a divisão de classes. RODRIGUES, op.

cit., PÁGINA 115, 2008. 117

GRANDMAISON, página 64, 1992.

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A Pastoral Operária de Osasco era liderada pelo padre francês Domingos

Barbé, missionário que buscava estabelecer uma ação comunitária junto aos

trabalhadores do Bairro de Vila Yolanda, onde se formaram militantes na luta

comunitária pelos direitos humanos. Nos encontros da Pastoral Operária ocorriam

diálogos e ensinamentos sobre as condições de trabalho, as formas de acumulação

do capital, os aspectos do sistema capitalista, os significados da mais-valia, o modo

como ocorriam as diversas formas de exploração dos trabalhadores e sobre a

necessidade de luta por melhores condições de vida e trabalho. Esses

ensinamentos ocorriam com o uso da própria experiência dos trabalhadores, em um

diálogo com o evangelho e com métodos de análise oriundos do marxismo.

Buscava-se uma aproximação com a linguagem dos trabalhadores, para isso eram

utilizados exemplos cotidianos, frases simples, explicações com desenhos e

aproximações com o conteúdo presente no evangelho. Eram distribuídos textos e

panfletos que traziam elementos conhecidos do cotidiano dos trabalhadores, como

as máquinas, as tarefas, as funções dos chefes e subordinados e a rotina de

trabalho118.

Domingos Barbé era uma padre francês que veio para Osasco em 1968

através da missão operária São Pedro e São Paulo (MOPP). Foi morar junto a

outros padres missionários no bairro de Vila Yolanda. Neste local desenvolveu

projetos junto a moradores do bairro, constituído em grande parte por operários que

trabalhavam nos parques industriais da cidade. Barbé era antes de tudo um teórico.

Possuía conhecimento das práticas de organização popular, dialogava com textos

do marxismo, buscava embasar sua experiência de organização das comunidades

através da teorização e de uma leitura atenta das novidades teológicas. Publicou

livros e dialogou com lideranças de outros movimentos que atuavam na cidade. Era

figura ativa, conhecia setores progressistas influentes da igreja brasileira e

participava de encontros e reuniões estratégicas desses campos do clero. Foi

escolhido para liderar a pastoral operária em Osasco devido a seu engajamento com

os moradores. Aproximou-se das ideias da Frente Nacional do Trabalho, foi grande

incentivador da proposta de não-violência-ativa para a construção de movimentos de

base. Acreditava que o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco deveria

encorpar as propostas de todos os segmentos das classes populares de Osasco,

118

Cf. BARBÉ, Domingos. Teologia da Pastoral Operária. RJ, Petrópolis, Vozes: 1983.

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para isso articulou um projeto inovador que partia da atuação de membros das

comunidades de base para a denúncia e organização na luta pelos direitos

humanos, conforme veremos no capítulo 3.

A PO foi aparelhada com militantes católicos que trabalhavam nas indústrias

da região. Buscou organizar em torno da pastoral, os setores descontentes com os

sindicatos alinhados ao governo. Esse projeto possibilitou a formação de blocos que

vieram a se constituir como membros ativos das oposições sindicais no início da

década de 1980. A PO buscava levar o evangelho para a classe operária e

representá-la no interior da igreja. Trazia uma série de críticas ao sistema de

produção capitalista e ao poder econômico burguês. Buscava traçar o histórico de

acumulação do capital e explicar para os trabalhadores as engrenagens de

funcionamento do capital com a elucidação do conceito marxista de mais-valia119.

A PO denunciava as violações sofridas pelos operários da cidade,

posicionava-se a favor das oposições sindicais e da retomada do movimento sindical

para a formação de sindicatos autênticos, que não estivessem sob o controle da

politica trabalhista da Delegacia Regional do Trabalho.

O movimento pastoral pelos direitos humanos teve origem com a Comissão

Arquidiocesana de Direitos Humanos (CADH), criada com o objetivo de proclamar,

promover e defender os direitos humanos, sobretudo dos mais pobres. Os projetos

desenvolvidos pela comissão, como a pastoral dos direitos humanos e

marginalizados, nasciam com o objetivo de promover os direitos humanos,

denunciar as arbitrariedades e promover a solidariedade com os oprimidos. Sua

estratégia se embasava na integração social e comunitária, com a promoção de

ações no interior das paróquias. Assim, a igreja consolidava em seu projeto a

integração de frentes de ação que se consolidavam na defesa dos direitos humanos.

O padre Olívio Bedin, morador da região episcopal Norte, foi encarregado por

Dom Paulo Evaristo Arns para encontrar sujeitos dispostos a atuar na comissão dos

DH. Indicou padres engajados que já atuavam em projetos sociais pela igreja.

119

As análises de Karl Marx sobre a exploração da força de trabalho pelo sistema capitalista de produção, assim

como outros conceitos da tradição marxista, eram reelaboradas para que servissem de elucidação sobre as formas

de apropriação do trabalho vivo, transformado em propriedade do capitalista, em produto, com valor de mercado

que trazia o lucro para a burguesia e a miséria para os trabalhadores. De acordo com os textos da pastoral, este

sistema deveria ser transformado para atingir a justiça de Cristo, em uma relação de transformação que

beneficiaria não apenas o trabalhador, mas também o capitalista, que teria sua dignidade cristã reafirmada.

Assim, não se buscava a revolução do sistema de produção, mas a construção da luta por justiça através da ação

das bases, que deveriam se organizar para a luta pelo reconhecimento dos seus direitos.

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A comissão atribuiu a luta pelos direitos humanos a uma perspectiva

evangelizadora, próxima de sua teologia e do evangelho. Assim, buscou-se um

Jesus evangelizador dos pobres e oprimidos, que construiu um projeto junto ao seu

povo: a justiça do reino de Deus para os pobres. A defesa dos direitos humanos foi

buscada pela entidade enquanto uma defesa dos direitos inalienáveis dos pobres e

oprimidos. Estes pobres eram percebidos como aqueles que possuíam defasagem

entre seu salário e o custo de vida, os menores abandonados, doentes, mendigos,

famintos, aqueles que foram jogados na criminalidade pela pobreza, as vitimas de

exploração, o analfabeto, o oprimido fisicamente, o perseguido sem direito à justiça,

aqueles que não possuíam segurança no trabalho e os desprovidos de um teto para

morar. A estes a comissão priorizava a elaboração de projetos para a construção de

um novo caminho, de paz e justiça.

A comissão fundou uma nova ideologia para os Direitos Humanos. Criticava

os entendimentos tradicionais hegemônicos que em sua perspectiva consolidaram

uma abordagem individualista no interior dos governos liberais reformistas. A

comissão buscou defender os pobres em suas liturgias e sermões, denunciando

aquilo que entendia enquanto equívocos da compreensão hegemônica. Segundo

Grandmaison (1992), a comissão entendia que os direitos proclamados pelos

setores hegemônicos: 120

[...] não são os direitos dos pobres. São o desejo de perpetuidade e de progresso das multinacionais. Percebemos também que essa bandeira ideológica já ganhou entre nós seus pseudos-líderes naqueles que postulam a volta do Estado de direito do tipo liberal, e pregam reformas político-economicas paliativas que outra finalidade não tem senão a de manter o controle sobre o povo que procura abrir o caminho à participação. Assim, segundo a comissão Direitos Humanos como liberalização relativa visando a integração das camadas mais baixas na trama do produzir-consumir, constituem-se em novo engodo destinado a perpetuar indefinidamente a dominação. 121

Para a Comissão a perspectiva cristã de direitos humanos significava a

solidariedade com os movimentos populares que lutavam pelos direitos dos mais

pobres. Assim, a igreja deveria abrir suas portas para o povo e comungar com os

fracassos e sucessos de suas lutas. Mas essa relação deveria ser construída com

observação, vigilância e criticidade. Os padres deveriam orientar os leigos e

120

A CADH foi responsável pela criação de uma perspectiva de direitos humanos distinta do pressuposto liberal,

uma vez que seu entendimento partia de uma ressignificação comunitária e coletiva. Essa perspectiva foi

utilizada pelo CDDHO, conforme discutiremos no capítulo 3. 121

GRANDMAISON, página 142, 1992.

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conduzir suas ações através do evangelho, sobretudo para evitar o imobilismo e a

intolerância. A CADH desenvolveu algumas atividades centrais no interior da

arquidiocese que se propagaram para entidades que lutavam pelos direitos

humanos. Enfatizamos o processo de formação das bases a partir de eventos que

atraiam um grande número de pessoas, como a semana de direitos humanos. A

primeira ocorreu entre os dias 5 e 9 de dezembro de 1978 com o tema “América

Latina: evangelho e libertação”. Previa a realização da reunião do Arcebispado em

Puebla no México. A segunda semana ocorreu entre os dias 17 e 25 de novembro

de 1979, quando 108 grupos de base buscaram os temas e a preparação da

semana em toda a diocese. Os assuntos escolhidos foram: Custo de vida e baixos

salários, terra, loteamentos clandestinos, favelas, habitação, participação e

organização popular. Estes temas refletiam a realidade vivenciada pelos leigos nas

periferias da metrópole, transformando-se em elemento para sua organização122. Em

decorrência dos trabalhos desenvolvidos pela CADH foi consolidada a Pastoral dos

Direitos Humanos e Marginalizados. Buscava divulgar estudos que demonstrassem

as práticas de violência institucionalizadas para orientar as paróquias a combatê-las.

A comissão arquidiocesana intermediava sua articulação com as diversas entidades

que promoviam os direitos humanos. Em Osasco a pastoral dos Direitos humanos,

sob a liderança do Padre Agostinho, fomentou a organização de grupos de trabalho

para articulação de ações na luta pelos direitos. A pastoral buscava promover o

ensinamento e a formação, visava orientar as comunidades sobre as transgressões

aos direitos humanos e as práticas de violência presentes na sociedade. Organizava

encontros, distribuía livros e cartilhas, instruía sobre direitos civis e humanos e

buscava responder, através do evangelho, às demandas levantadas por grupos de

trabalho.

Em Osasco a liderança dessa pastoral ficou a cargo de Agostinho Duarte de

Oliveira, um monge beneditino e advogado. Atuava junto aos presos comuns e

crianças marginalizadas, em trabalhos de assistência social e educação. Buscava

desenvolver projetos junto ás comunidades como uma forma de promover ações

descentralizadas que garantissem a pacificação da sociedade através da prevenção

e da educação. Sob a sua liderança a Pastoral de Direitos Humanos em Osasco

assumiu um caráter de conscientização e educação das bases.

122

Ibid., página 146.

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Exemplo do trabalho de evangelização promovido pela pastoral foi à

apresentação de peças teatrais. O grupo que atuava na pastoral desenvolvia textos

que seriam apresentados nas missas e em outras celebrações religiosas. Em maio

de 1979 algumas cidades da região foram visitadas para a apresentação da peça

“Alma seca”. A obra enfatizava a centralidade da fé cristã para a superação das

dificuldades materiais existentes e o auxilio que o trabalho pastoral oferecia aos

mais pobres123. Após a apresentação das peças eram promovidos debates com a

comunidade com o intuito de trazer o texto para a realidade vivida.

Essas pastorais possuíam características de atuação diferentes, mas

comungavam um mesmo projeto de transformação que partia do trabalho dos leigos

presentes nas comunidades da cidade. Enquanto a pastoral operária foi construída

com o apoio de militantes do bairro de Vila Yolanda, que acumulavam a experiência

de outros movimentos sociais, a pastoral de direitos humanos foi consolidada com a

atuação de jovens que começavam sua atuação nos movimentos da igreja,

sobretudo na comunidade do KM 18, onde se organizava uma nova geração de

militantes a partir da comunidade da Paróquia de Imaculada Conceição.

A principal característica que diferencia um agrupamento do outro, quando se constitui a Pastoral Operária e a Pastoral dos Direitos Humanos, é que a primeira foi formada a partir de militantes da oposição sindical, da ACO, da JOC, e que atuavam também na FNT. Isto significa que era um pessoal com mais experiência, vindo de outras organizações, que já estavam na luta social. 124

Católicos atuantes nas pastorais sociais de Osasco participavam de

organizações de trabalhadores e de moradores, articulavam iniciativas conjuntas e

formulavam estratégias de luta para dar força aos movimentos comunitários que

defendiam. O conjunto da experiência destas duas pastorais evidencia a atuação de

setores da Igreja Católica de Osasco junto a grupos de moradores, que a partir da

igreja organizaram movimentos coletivos em alguns bairros da cidade.

Ativistas oriundos das pastorais sociais foram atuantes no interior do Centro

de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco. A importância da experiência

construída pelo trabalho pastoral para a formação da entidade pode ser percebida

123

Em 1979 alguns membros do CDDHO criticavam a visão assistencialista que a pastoral de direitos humanos

fomentava, entendiam se tratar de um grupo formado por membros da classe média que não entendiam a luta

popular que se formava nos bairros periféricos. Essa perspectiva de membros do CDDHO evidencia o

distanciamento de posição que o Centro passou a ter anos depois de sua fundação, com relação ao trabalho desta

pastoral social. 124

CEDHRO, página 12, 2010.

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pela forte liderança exercida por seus principais articuladores, o Padre Agostinho da

PDH e o padre Domingos Barbé da PO, que dirigiram a integração dos dois

movimentos no interior de um organismo de luta pelos direitos civis e humanos.

Estes dois párocos foram os principais interlocutores para a construção do projeto

de fundação da entidade. Apesar da divergência que se evidenciou a partir de 1979,

as estratégias herdadas dos movimentos pastorais que lideravam podem ser

percebidas na atuação do CDDHO. Constituía uma prática do Centro se comunicar

com os trabalhadores através de folhetos e cartilhas, onde eram tecidas críticas ao

sistema político, econômico e às instituições, com uma linguagem muito próxima à

utilizada pela PO. Promovia-se uma luta pacífica e cristã em torno dos Direitos

Humanos, conceito proposto dentro de um projeto libertador maior, tal qual

demostrado pela PDH. O CDDHO se aplicava no ensinamento e condução das

comunidades para a luta com uma perspectiva cristã. Buscava se unir a diversos

movimentos da cidade, na criação de espaços que permitissem a articulação dos

coletivos. Estas características são percebidas em ambas as pastorais e seguiram

importantes na atuação do centro de direitos humanos, tal como no debate sobre a

redução da maioridade penal que ganhou força em 1979, com posições contrárias à

redução como ocorreu nas reuniões do Jardim Padroeira, Cipava, Santo Antônio,

Helena Maria, Munhoz, Km 18, Vila Yolanda, Piratininga, Bel Jardim, Cotia,

Arpoador, Baronesa e Mutinga, conforme veremos mais adiante.

A integração das práticas e estratégias pastorais no interior do movimento de

luta pelos direitos humanos demonstra a importância do posicionamentos de alguns

padres, favoráveis a construção de coletivos reivindicativos. Neste ponto torna-se

fundamental a memória de Cida Lopes. Militante da pastoral dos direitos humanos

de Osasco que foi convidada a fazer parte do projeto de formação do Centro de

Direitos Humanos, onde passou a atuar como plantonista. Recorda-se da

centralidade da ação dos padres na organização do Centro, da importância dos

espaços das paróquias e dos militantes organizados a partir da igreja para a

consolidação da luta em torno dos direitos humanos na cidade de Osasco.

A igreja foi a grande articuladora do CDDHO. Os grandes articuladores foram dois padres, o padre Domingos Barbé e o Padre Agostinho. Domingos Barbé da pastoral do mundo do trabalho e Padre Agostinho da Pastoral dos Direitos Humanos. Então eles chamaram as pastorais sociais, as oposições sindicais, para participar dessa articulação do Centro de Defesa dos Direitos Humanos (...). A igreja era o nosso espaço de atuação. A formação

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em direitos humanos, a semana dos direitos humanos, era tudo a partir da militância da igreja. 125

Os militantes destas pastorais participavam de organizações de trabalhadores

e de moradores, articulavam iniciativas conjuntas e formulavam estratégias de luta

para dar força aos movimentos comunitários que defendiam126. Passaram a

reivindicar a melhoria dos serviços públicos, como o saneamento básico, o

transporte, a saúde pública, e a necessidade de moradia. As pastorais

transformaram ainda mais a relação entre as comunidades e a Igreja. Suas ações

transmitiam as desigualdades materiais da cidade, as reivindicações e os embates

promovidos pelas CEBs no nível de bairro127.

Assim, em Osasco a formação de projetos pastorais favoreceu a aproximação

da igreja com os mais pobres. Modificou a compreensão da realidade social de

alguns padres e agentes pastorais, que passavam a questionar o papel da igreja na

sociedade. Nesse processo, a igreja tradicional, com suas relações de privilégio e

seus acordos palacianos, foi contrastada com outra que nascia à sua margem,

popular, organizativa, comunitária, e embasada na busca por paz e justiça.

Esse contexto possibilitou a formação do Centro de Defesa dos Direitos

Humanos de Osasco, quando os projetos das pastorais sociais e a experiência da

CADH se unificaram em um organismo cujas pautas se relacionaram com a atuação

de sujeitos ligados à luta operária, articulados às CEBs e outros coletivos

organizados nos bairros.

125

Depoimento concedido por Maria Aparecida ao pesquisador Lucas Alves de Camargo no dia 13 de agosto de

2015. 126

Cf. GRANDMAISON, Op. cit, 1992. 127

De acordo com o relatório quinquenal de 1975-1980 da arquidiocese de São Paulo, em Osasco existiam 116

centros comunitários (ligados as CEBs) e 38 paróquias. Fundo do CDDHO-CEDIC.

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CAPÍTULO 2

O CENTRO DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS DE OSASCO

2.1 - A construção do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco

O Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco (CDDHO) foi fundado

em setembro de 1977, no colégio Misericórdia. Formou-se através da articulação

entre diferentes movimentos, que buscavam consolidar uma entidade que

defendesse as classes populares no campo jurídico. Participaram da construção do

projeto, a Pastoral dos Direitos Humanos, a Pastoral do Mundo do Trabalho, a

Frente Nacional do Trabalho e o Movimento de Justiça e Não Violência da

arquidiocese de São Paulo.

A região de Osasco contava com muitos casos de violência policial, possuía

uma grande área periférica com muitas comunidades pobres. No município as

pautas de membros progressistas do clero se unificaram com a atuação de

trabalhadores que construíam novas formas de organização através do vínculo

comunitário. Esse contexto favoreceu a criação da entidade na cidade, a primeira do

gênero no estado de São Paulo e segunda no Brasil.

Sobre esse processo, Maria Aparecida, plantonista da entidade e militante da

pastoral de direitos humanos, se recorda da centralidade da Igreja e dos trabalhos

pastorais para o engajamento de setores populares que formaram o CDDHO e da

importância do relacionamento de entidades com objetivos diversos para a formação

de um movimento de luta pelos direitos humanos em Osasco.

Nos anos 70, a gente vivia uma repressão muito grande no Brasil e em especial aqui em Osasco com aquela repressão da greve de 68 que aconteceu em Osasco e Contagem e desde então, as pessoas vinham se reunindo e a nível de igreja, que tinha toda uma discussão e uma atuação pastoral. Nós éramos aqui em Osasco ligados à arquidiocese de São Paulo e a arquidiocese com D. Paulo Evaristo Arns, tinha um plano de pastoral que era a pastoral dos Direitos Humanos, a pastoral Operária, (pastoral do Mundo do Trabalho), a pastoral das Comunidades eclesiais de base e a pastoral da Periferia. Eu atuava na pastoral dos Direitos Humanos, mas tinha uma estreita ligação, articulação com a pastoral do Mundo do Trabalho, com a pastoral das CEBs e da Periferia e fazíamos toda essa discussão de como avançar na luta social, na garantia de direitos. Militantes começaram a discutir a possibilidade de criar uma entidade de Direitos Humanos que acolhesse todos esses movimentos, a oposição sindical, movimento por moradia, o

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movimento de Direitos Humanos e tudo. Então teve cerca de um a dois anos, fazendo essa discussão da fundação, dessa entidade que pudesse acolher todos esses movimentos, onde eles pudessem se articular e se reunir. Então, participou ativamente dessa discussão a igreja através da pastoral dos Direitos Humanos, a pastoral do Mundo do Trabalho, a Frente Nacional do Trabalho, que tinha a sede aqui em Osasco, e o movimento de Justiça e Não Violência, que também foi importante nessa formação inicial do CDDHO. 128

Os diálogos acerca do projeto começaram em setembro de 1976, quando

militantes desses coletivos se reuniam para discutir os trabalhos realizados pelas

diferentes frentes de ação social. Nesses encontros articularam um plano conjunto

com o objetivo de fundir os múltiplos interesses existentes em um órgão de luta

pelos direitos humanos. As lideranças destes movimentos formaram a primeira

diretoria do centro, responsável por elaborar sua estrutura, objetivos e os projetos de

atuação.

O CDDHO foi criado como entidade oficial, que buscava responder

juridicamente aos casos de violência política e policial das instituições do Estado129.

Os estatutos formados pela entidade foram registrados em cartório no dia 07 de

agosto de 1977. Com a formação de uma entidade jurídica o movimento separava-

se institucionalmente da igreja e assumia uma identidade autônoma, junto à

sociedade civil. Com a oficialização, os advogados teriam também uma blindagem

maior para sua atuação em defesa dos presos e perseguidos.

Em seu estatuto foram consolidados os objetivos, as regras, a estrutura e os

princípios da entidade. Esse material era divulgado para os membros do movimento

e para as instituições públicas com as quais o centro veio a se relacionar, sobretudo

após 1978. No segundo artigo de seu estatuto o Centro apresentava os seus

objetivos e características de atuação. Objetivava atuar na defesa dos direitos

individuais e coletivos presentes nas leis nacionais e nas declarações e tratados

internacionais, sobretudo com relação aos artigos da Declaração Universal dos

Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, de 1948. Afirmava atuar nos

128

Depoimento concedido por Maria Aparecida ao pesquisador Lucas Alves de Camargo no dia 13 de agosto de

2015. 129

Partimos do entendimento elucidado por Pedro R. Jacobi (1987), que percebe nos anos finais da década de

1970 uma nova tendência nos movimentos sociais, que passam a identificar o Estado a partir de uma matriz

essencialista, em uma perspectiva que o identificava enquanto inimigo autoritário contra o qual se mobilizaria a

sociedade civil. Cf. JACOBI, Pedro R. Movimentos sociais urbanos numa época de transição: limites e

potencialidade. In SADER, E. (organizador). Movimentos sociais na transição democrática. São Paulo: Cortez,

1987. P.13.

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limites do sistema legal, defendendo os direitos da população pobre da cidade

embasando-se nas leis do país e nos regimentos e declarações universais130.

O Centro se definiu como um movimento da sociedade civil sem fins

lucrativos, com prazo de duração indeterminado, que buscava atuar junto à

população do município sem distinguir etnias, gênero ou opções politicas, na luta

jurídica pelo reconhecimento de seus direitos civis e humanos. Foi fundado

enquanto um movimento social independente, nutrido por coletivos com seus

múltiplos interesses, que tinham como eixo de ligação a luta pela defesa dos direitos

humanos.

O CDDHO colocava-se enquanto uma entidade de apoio e assistência jurídica

para pessoas necessitadas. A partir desse objetivo atuou com base no trabalho de

advogados, contratados ou voluntários, que cuidariam da defesa dos necessitados

que se encontravam em situação de conflito com a legislação ou com as instituições

do Estado. Entretanto, sua atuação não se deu somente nesse campo, estendendo-

se também a um intenso trabalho comunitário, formando lideranças para a defesa

dos direitos humanos e de uma sociedade livre e democrática, conforme

discutiremos no decorrer do capítulo 3.

O CDDHO buscava auxiliar as ações e organismos criados pelos

trabalhadores na luta por seus direitos. Assim, procurava dar suporte e apoio a

diversas causas e atuações de coletivos de trabalhadores que surgissem na cidade.

Exemplo disso foi o empréstimo de sua sede para a realização de reuniões de

outros coletivos, como a oposição sindical dos químicos e a juventude católica.

Compartilhava material de treinamento, de produção de cartilhas e folhetos, que

traziam informações específicas dos movimentos à população da cidade. Assim,

buscava comunicar-se com outros movimentos sociais e auxiliar as diversas frentes

de ação popular que existiam na cidade.

A entidade construiu um sistema de sócios, que poderiam contribuir

financeiramente com as ações do centro131. As contribuições oscilavam de acordo

com a situação econômica de cada associado, em 1982 elas variavam de 50 até

1500 cruzeiros anuais. Entre os associados estavam padres, médicos, profissionais

130

Cf. Estatuto do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco. Fundo do CDDHO-CEDIC. 131

Segundo o relatório financeiro de 1980, entre sócios e benfeitores as doações alcançavam cerca de cinco mil

dólares anuais. Cf. Relatório Financeiro de 1980 do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco. Fundo

do CDDHO-CEDIC.

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liberais, servidores públicos, donas-de-casa, operários, trabalhadores do comércio e

demais trabalhadores assalariados. Existiam duas categorias de associados, os

sócios fundadores e os contribuintes. Eram considerados sócios fundadores aqueles

que entraram na entidade até 31/12/1977, ano de sua fundação. Sócios

contribuintes eram aqueles que pagavam mensalidades e participavam das

reuniões. Qualquer pessoa poderia se associar.

Esse tipo de organização possibilitou ao CDDHO uma perspectiva de atuação

ampla. Os associados estavam relacionados com as atividades desempenhadas

pelas matrizes de formação132, mas possuíam suas expectativas pessoais, que eram

relatadas ao Centro no momento de sua filiação.

Os associados ligados à atuação operária incentivavam o desenvolvimento de

projetos de formação dos trabalhadores, buscavam o CDDHO para aproximar seu

campo de luta com outros movimentos. Assim, esperavam que o Centro se

transformasse em um mecanismo de ampliação da luta e de conexão entre o

movimento sindical e a luta das bases, que ocorria nos espaços do bairro e das

igrejas, conforme nos demonstra o relato de Aparecido, ajudante de produção filiado

ao CDDHO.

Sendo o Centro de Defesa dos Direitos Humanos, uma organização que visa defender os direitos daqueles mais explorados, espero que seja realmente uma organização de defesa, discutindo, organizando e apoiando as pessoas, nas suas lutas contra as violências e dificuldades sociais, policiais, etc. No campo sindical no movimento de bairro, comunidades etc, procurando sempre a forma mais democrática possível 133.

Padres progressistas se filiavam ao CDDHO em consonância com os projetos

pastorais que defendiam. As expectativas destes sacerdotes estavam direcionadas

para a superação da alienação dos direitos humanos dos pobres, conforme a ficha

cadastral do Padre Benedito, que esperava que o CDDHO desenvolvesse:

A prática de seu objetivo, ou seja, a favor do pobre, do empobrecido, principalmente, na defesa dos seus inalienáveis direitos a vida, comida, liberdade e dignidade. 134

As expectativas dos associados impeliram o centro para a promoção de

projetos com as comunidades e outras coletividades presentes na cidade de

132

As matrizes de formação estão detalhadas no capítulo 1. 133

Cf. Ficha de Sócio Individual, Fundo do CDDHO-CEDIC. 134

Idem.

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Osasco, desenvolvendo uma atuação conectada com pautas oriundas de outros

coletivos, como os movimentos de luta por moradia, os coletivos que reivindicavam

melhorias no sistema de saúde e a construção de creches, as oposições sindicais,

entre outras experiências coletivas. Esse contexto originou trabalhos diversos que

abrangeram a ação de movimentos espalhados pela região, ao mesmo tempo em

que favoreceu a apropriação pelo CDDHO de elementos oriundos de outras

experiências de atuação coletiva, como as formações e práticas vindas da

experiência sindical.

Nesse processo de aparelhamento mútuo a entidade desenvolveu uma

estrutura burocrática próxima da existente nos sindicatos. Havia uma diretoria fixa,

que seria escolhida pelos associados em uma eleição direta. Os sócios poderiam

votar e serem votados, propor ideias e discussões. Poderiam utilizar os trabalhos

realizados no CDDHO, de cunho jurídico, e a utilização da sede social. Os sócios

assumiam o compromisso de ajudar na atuação e poderiam ser punidos e excluídos

do quadro de associados.

Compunham as estruturas burocráticas do CDDHO as seguintes instâncias:

Assembleia geral, órgão máximo para a tomada de decisão que contava com todos

os associados; diretoria; conselho fiscal; reuniões gerais e comissões de trabalho.

Em casos importantes fazia-se uma assembleia geral extraordinária, que poderia ser

solicitada pela diretoria ou por dois terços dos sócios. A assembleia geral ordinária

ocorria uma vez por ano, no mês de abril. Era responsável por avaliar o trabalho da

diretoria, o orçamento e os projetos, a cada três anos se reunia para eleger uma

nova diretoria. A assembleia podia revogar resoluções da diretoria e até mesmo

dissolver a entidade.

A diretoria era composta por sete membros, configurada por um presidente,

dois tesoureiros, um secretário geral, um secretário de organização e dois diretores

gerais. Eram atribuições da diretoria: cuidar da vida financeira da entidade; emitir

boletins e relatórios para informar os associados; analisar os pedidos dos

associados; publicar as notícias e informações sobre a atuação da entidade;

promover a realização de palestras, cursos e encontros; buscar estabelecer

parcerias com entidades próximas; organizar e administrar os funcionários

contratados; buscar doações e subsídios para a execução das ações; organizar as

assembleias e aplicar sanções aos sócios.

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Ao presidente cabia à representação do CDDHO. Deveria presidir reuniões

da diretoria e assembleias, avaliar projetos, buscar condições para cumprir os

objetivos da entidade, assinar atas e documentos oficiais, cuidar dos bens e

participar de reuniões e congressos externos.

Uma análise sobre os fundadores da entidade que participaram da primeira

diretoria demonstra a sua composição heterogênea e a hegemonia de padres, de

operários oriundos da experiência sindical e de leigos católicos que atuavam nas

CEBs da cidade. Assim, a primeira diretoria foi formada pelo presidente Marcelo

Duarte de Oliveira (padre Agostinho), destacado pela sua atuação junto aos presos

comuns, era membro da comissão arquidiocesana de direitos humanos e

coordenador de direitos humanos da região episcopal de Osasco. Havia sido

responsável pela promoção do projeto da pastoral de direitos humanos na região. A

vice-presidente era Marinete de Brito Brasil, funcionária do centro de vivência que

operava na comunidade de base do bairro de Vila Yolanda e atuante no movimento

de mulheres do bairro, que se organizava a partir do trabalho promovido por padres

da Missão São Pedro e São Paulo. O secretário era o advogado trabalhista Albertino

Souza Oliva, morador do Km 18, diretor da FNT em Osasco, com experiência na

defesa de trabalhadores no interior da estrutura jurídica existente. Albertino havia se

destacado na atuação junto aos trabalhadores da Cobrasma durante a greve de

1968, quando atuou na formação operária na área dos direitos e na defesa jurídica.

Como tesoureiro foi escolhido José Groff, operário e vice-presidente da FNT em

Osasco, atuante no movimento sindical metalúrgico que havia organizado a greve de

1968. O Diretor adjunto era José Carlos da Silva, operário e atuante na comunidade

de base do bairro de Munhoz.

Havia um conselho deliberativo fiscal formado por padre Domingos Barbé,

missionário francês que articulava projetos comunitários na comunidade de Vila

Yolanda. Auxiliavam Luiz Matheus do Amaral, bancário e diretor da FNT em Osasco;

Maria Ione Ferreira, funcionária de creche municipal, atuante na comunidade de

base do bairro de Vila Yolanda; Alberto Abib Andery, sacerdote, professor da PUC-

SP, ex-assistente da ACO e sócio da FNT; Maria da Silva Santos Soares, operária,

moradora da cidade de Jandira que atuava em parceria com o CDDHO em sua

comunidade. Auxiliaram ainda a estruturação da entidade a professora Gilda

Pedrosa (PUC-SP e UNICAMP) e a militante de direitos humanos, a americana

Michel Mary Nolan, que no período atuava na comunidade de Jaguaré-SP.

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Durante o período analisado a estrutura do CDDHO era formada por cerca de

duas dezenas de militantes, que se revezavam nas tarefas e atribuições. As

mulheres possuíam destacado papel na elaboração dos trabalhos e no planejamento

das ações, mas nos primeiros anos o movimento foi liderado por padres,

responsáveis por erigir o projeto da entidade e por aproximar o CDDHO dos

objetivos pastorais da arquidiocese de São Paulo.

Essa influencia levou o CDDHO a desenvolver algumas características do

cristianismo de libertação, tais como se instituir enquanto um mecanismo mediador

no processo de conscientização popular, elemento que fez a entidade se preocupar

com a formação das bases para a luta contra as estruturas repressivas do Estado

Autocrático. Esse trabalho foi erigido com a experiência resultante do plantão

jurídico, que auxiliava as pessoas no trato com a burocracia do Estado.

O CDDHO também se valia da influencia dos padres para a sua vinculação

com outros projetos que eram desenvolvidos por membros do clero progressista.

Isso possibilitou o cruzamento de sua ação com outros Centros de Defesa e com a

Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, conforme veremos mais adiante.

No inicio de suas atividades o CDDHO funcionou na casa de Padre

Agostinho. Inicialmente contava com o trabalho de militantes selecionados entre as

pastorais sociais, que realizavam algumas ações junto das comunidades de base do

bairro de Vila Yolanda e KM 18135. No primeiro ano de sua atuação foi definida uma

sede fixa que receberia a documentação e funcionaria como local de trabalho dos

plantonistas e da diretoria, que cuidavam da vida funcional do centro e atendiam às

demandas de pessoas diversas que buscavam a entidade.

Apesar de estar desvinculada da igreja, pela proposta de seus fundadores, a

entidade buscou apoio da arquidiocese para custear as ações e o aparelhamento de

sua estrutura. Os fundadores do CDDHO tinham como objetivo consolidar um

quadro de funcionários fixo para administrar e cuidar das tarefas diárias em tempo

integral136. Estes funcionários foram escolhidos entre os militantes das pastorais e

receberam remuneração pelos seus serviços. Foram treinados na área dos direitos

humanos e passaram por orientações sobre como auxiliar as comunidades na luta

por seus direitos, sobretudo na área da saúde, moradia, trabalho e violência policial.

135

A primeira diretoria da entidade esperava que o processo de construção do CDDHO durasse cerca de dois

anos, quando seria estabelecido o vínculo com as comunidades de base presentes na cidade de Osasco. 136

Seria contratado um coordenador com o salário mensal de 9.800 CR$ e dois plantonistas fixos, com o salário

de 5.600 CR$ cada.

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Os líderes do centro esperavam que a igreja oferecesse recursos para a

instalação da estrutura fixa inicial, que seria erigida para promover ações próximas

do trabalho projetado pela cúria paulistana para a CADH. A entidade buscou

negociar esse apoio com a apresentação do projeto de formação da entidade. Com

o desdobramento das negociações a arquidiocese de São Paulo apoiou a criação do

CDDHO e disponibilizou recursos e apoio técnico para a formação dos primeiros

trabalhos, que estariam relacionados com suas propostas de expansão da temática

dos direitos humanos nas periferias da região metropolitana de São Paulo, como

demonstra correspondência enviada pela Arquidiocese em abril de 1978.

Confirmando nossa orientação no Serviço da Justiça, o Povo de Deus da Arquidiocese de São Paulo, com as suas oito regiões episcopais, tendo a frente seus bispos auxiliares, reuniu-se em assembleia e decidiu que uma das linhas prioritárias para o biênio de 1978-1979; é a pastoral de Direitos Humanos e Marginalizados. (...) Sempre entendemos de grande utilidade a formação de um centro de defesa dos direitos humanos, na região episcopal de Osasco. Foi portanto com alegria que estudamos o projeto em anexo e o consideramos merecedor de nosso integral apoio. 137

Com o suporte financeiro proveniente da arquidiocese de São Paulo a

estrutura fixa da entidade foi consolidada. O projeto inicial do Centro foi alocado na

Rua Nelson Camargo, 343, em Osasco, Estado de São Paulo. Buscava atuar na

cidade de Osasco e região, atingindo os municípios de Barueri, Carapicuíba, Itapevi,

Jandira, Cotia, Ibiúna, São Roque, Mairinque e na parte oeste do município de São

Paulo.

Com relação à área de atuação, o CDDHO previa atuar sobre uma região

pobre com muitos problemas estruturais, com um poder público ineficiente e incapaz

de lidar com o denso aumento populacional e os problemas estruturais decorrentes,

sobretudo nas áreas periféricas.

A área escolhida é uma região bastante pobre, sem recursos financeiros e com uma elevada densidade demográfica. Só o município de Osasco possui mais de 500 mil habitantes. O poder público municipal e regional não possui infraestrutura suficiente e condição para atender toda a população carente. 138

O CDDHO entendia que iria promover uma atuação junto à população pobre

formada por operários e por antigos trabalhadores rurais que migraram de suas

137

Cf. Carta da arquidiocese de São Paulo, assinada por D. Francisco Manuel Vieira de 03 de abril de 1978,

fundo do CDDHO-CEDIC. 138

Cf. Projeto de Formação do CDDHO, 1977. Fundo do CDDHO-CEDIC.

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regiões em busca de trabalho na metrópole. Considerava que esta população não

tinha consciência de seus direitos individuais e coletivos e por este motivo estaria

suscetível a formas de exploração e controle. Com a ausência de entidades que

informassem os pobres sobre seus direitos, o CDDHO se posicionava a favor de um

trabalho na área da formação e da defesa jurídica dos subalternos.

Para os fundadores da entidade, as comunidades pobres não estavam em

condições de lutar por seus direitos, uma vez que não conheciam o funcionamento

das estruturas jurídicas do Estado, tampouco eram capazes de resolver casos de

transgressão aos direitos sem o apoio de uma assessoria instalada na sociedade

civil, que funcionasse como mediadora entre a população e o Estado. Assim,

esperava atuar junto à classe trabalhadora da região, conforme afirmava em seu

projeto de formação:

O CDDHO procurará atingir, especialmente os grupos ou populações de operários, subempregados, desempregados, marginalizados em geral e comunidades de base. 139

Durante os primeiros anos, entendia-se que os membros do movimento não

deveriam ser cooptados por partidos e discursos ideológicos que fugissem da prática

cristã, aspecto que demonstrava a aproximação da entidade com a perspectiva de

ação social oriunda da corrente progressista católica, que evitava a submissão

partidária e a conexão com movimentos que se valessem de práticas violentas para

a realização dos objetivos.

Solidarizava-se com os povos da América Latina, e com todo tipo de

manifestação de luta pelos direitos humanos, inserindo-se também no interior de

uma corrente internacional de luta pelos direitos humanos. Através de entidades

como a Fundación de Ayuda Social de las Iglesias Cristianas (FASIC) e do

Programa de Derechos Humanos de La Universidad Academia de Humanismo

Cristiano, o CDDHO recebia informações constantes de aproximadamente 250

entidades de direitos humanos espalhadas pela América Latina.

O centro também compartilhava informações de suas ações com coletivos de

outras partes da América Latina, participava de fóruns e debates sobre a realidade

de outros países e a respeito de métodos e entendimentos trazidos pela experiência

de movimentos sociais direcionados para a temática dos direitos humanos.

139

Idem.

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81

A relação do CDDHO com outras entidades cristãs que fomentavam os

direitos humanos evidencia o surgimento de um movimento ecumênico mais amplo

no início da década de 1980, em defesa dos direitos humanos e compartilhamento

de pautas e estratégias com as entidades em luta. Esse vínculo permitiu a formação

de novas entidades civis, que possibilitaram a formação de um movimento nacional

de direitos humanos140.

A partir de uma ampla comunicação com entidades internacionais o CDDHO

buscou o custeio de sua estrutura através do financiamento da entidade protestante

alemã Brot Für Die Welt (pão para o mundo) 141. Padre Domingos Barbé foi o

responsável pela comunicação com a entidade alemã. Ele redigia a documentação e

as cartas, que eram entregues à entidade no idioma francês. O centro enviava

relatórios de atividades, projetos de ação para o ano, previsões orçamentárias e

dados com todos os custos de sua operação.

Maria Aparecida se recorda da importância do aporte financeiro e da

articulação buscada pelo padre Domingos Barbé junto a entidades europeias:

A gente fazia um projeto de financiamento e nesse projeto a gente colocava desde o começo, da primeira quando foi fundada, a gente já teve essa cooperação internacional e a gente fazia um projeto, o pessoal fazia um projeto e encaminhava para várias entidades no exterior. Tinha o padre Domingos Barbé, que era francês e tinha uma articulação na Europa, ele visitava as entidades lá e conseguia o financiamento pra gente. 142

A entidade alemã analisava o material e enviava cheques com valores para o

custeio das despesas. Em 1979, ano da primeira contribuição, o CDDHO recebeu a

quantia 15.000,00 dólares. Esse valor passava por oscilações, uma vez que o centro

solicitava a diferença entre os seus gastos e o total de suas receitas. Em 1983 o

140

Não objetivamos nesse trabalho analisar as características do movimento nacional de direitos humanos que se

formou no inicio da década de 1980. Entendemos que o vínculo do CDDHO com outras entidades permitiu a

consolidação de práticas e entendimentos que estiveram alinhadas com as propostas do cristianismo de

libertação. Para mais informações sobre o tema indicamos a leitura de CARVALHAL, 2007. 141

Pão Para O Mundo é um Serviço de igrejas Protestantes para o Desenvolvimento de ações humanitárias que

atua a nível mundial. Durante a década de 1980 a entidade auxiliou movimentos de luta pelos direitos humanos. 142

Depoimento concedido por Maria Aparecida ao pesquisador Lucas Alves de Camargo no dia 13 de agosto de

2015. Aparecida foi militante da pastoral dos direitos humanos de Osasco quando entrou em contato com o

recém-criado Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco. Começou a atuar junto da entidade como

plantonista contratada, onde trabalhou recebendo denúncias de sujeitos que buscavam relatar casos de

transgressão aos direitos humanos. Atuou no interior dos projetos do CDDHO, esteve próxima do trabalho junto

às comunidades e dos processos de formação dos sujeitos coletivos. Conhecedora do cotidiano de atuação do

CDDHO, seu relato apresenta a experiência de formação da luta pelos direitos humanos e a atuação desenvolvida

pelo centro nos anos de regime ditatorial.

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valor de contribuição chegava a 6.865,00 dólares, que convertidos para a moeda

alemã totalizavam 19.031,78 marcos143.

Carlos Alberto, militante do centro que chegou a presidir a entidade entre os

anos de 1989-1990, se recorda do funcionamento desse financiamento, de acordo

com seu relato o CDDHO:

Foi criado aqui com o apoio de militantes sindicais, de igrejas, professores e da igreja católica embora não tivesse vinculação efetiva com a igreja; ele era uma entidade civil criada pelos militantes e ele teve um apoio financeiro de uma organização chamada “Pão para no mundo”, da Alemanha. A gente conseguiu um projeto de manutenção mínima, sendo naquele tempo as igrejas da Europa se interessavam muito pela questão do Brasil, questão da violência, questão de participação, superação da pobreza aqui e as igrejas financiavam projetos específicos. A gente ia apresentar o projeto e conseguia uns valores para manter a entidade com aluguel, funcionários, carros, uniforme e a gente fez esse trabalho. 144

Com essa estrutura o CDDHO manteve um programa de atuação para as

comunidades pobres, embasado na luta jurídica que se desenvolveria a partir da

atuação de advogados e do relacionamento de militantes com a burocracia do

Estado ditatorial.

2.2 - Ações do Centro de Direitos Humanos – Plantão

O atendimento de denúncias sobre transgressões aos direitos humanos foi

parte do projeto inicial do CDDHO e esteve em funcionamento durante todo o

período de sua atividade. Este trabalho ocorria através de um serviço gratuito de

auxilio jurídico para as comunidades por meio do trabalho de advogados e da

assessoria de membros do CDDHO.

O processo ocorria por meio do relacionamento de membros do CDDHO com

as CEBs da região. Através da militância de lideranças comunitárias o CDDHO

atendia juridicamente as demandas provenientes dos bairros pobres.

O recebimento das denúncias ocorria a partir do funcionamento de um

plantão, que se dividia em dois turnos, recebendo denúncias na parte da manhã,

143

Estas informações estão explicitadas em relatórios financeiros e em cartas trocadas entre a PPM e o CDDHO,

sobretudo entre o padre Domingos Barbé e o secretário para a América Latina Jürgen Stahn, 144

Depoimento concedido por Carlos Alberto ao pesquisador Lucas Alves de Camargo no dia 17 de julho de

2015.

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tarde e noite, das 9:00 às 19:30 horas. Por ele as pessoas eram encaminhadas para

a entidade e buscavam apoio para a resolução de problemas diversos que

enfrentavam.

A entidade formulou um procedimento para este atendimento. Os que

possuíam um problema de natureza jurídica eram encaminhados por sua

comunidade e recebidos por um dos plantonistas fixos do CDDHO, que descrevia o

caso através de uma ficha que continha informações sobre a vítima e a natureza do

ocorrido. Após a análise do plantonista o caso era levado para a diretoria e para

membros do setor jurídico, que decidiam a respeito do andamento do caso e das

ações que seriam tomadas.

Os plantonistas fixos completavam a estrutura burocrática da entidade. Eles

trabalhavam diariamente na sede do CDDHO e possuíam diversas funções: eram

responsáveis pelo recebimento de denúncias, cuidavam da vida cotidiana da

entidade, faziam serviços burocráticos, visitavam as comunidades, promoviam os

treinamentos, participavam de eventos ligados à luta pelos direitos humanos,

preenchiam os anuários e faziam uma seleção dos casos para o tratamento

específico de acordo com a especificidade necessitada. Os plantonistas do CDDHO

ligavam as diferentes áreas atuantes na entidade com as comunidades, conforme

recordação da ex-plantonista do CDDHO Maria Aparecida:

O plantonista do bairro recebia alguma denúncia de violência, ele procurava o Centro de Defesa, a gente registrava a denúncia e repassava para o jurídico do Centro de Defesa e às vezes, se era alguma coisa assim, emergencial, a pessoa estava sendo presa, ou foi presa por nada, se não sabia onde estava. Às vezes nós que éramos plantonistas, a gente ia à delegacia e dizia que nós somos dos Direitos Humanos e viemos aqui saber como que está “fulano” e tal. Só o fato de estar indo lá, se a pessoa estava apanhando ou sendo violentada já amenizava a repressão em relação àquela criança e aí entrava o advogado no outro dia e tal. Eu cheguei várias vezes a fazer isso também. 145

Assim, os plantonistas fixos recebiam as denúncias levadas pelas

comunidades e as encaminhavam com base na realidade das demandas, que eram

resolvidas através de orientações jurídicas e técnicas.

Eles eram auxiliados por plantonistas selecionados entre as lideranças das

comunidades da cidade. Eram voluntários que aceitavam os treinamentos na área

dos direitos humanos e que se convertiam em plantonistas de seus bairros.

145

Depoimento concedido por Maria Aparecida, Op. cit.

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Plantonistas são pessoas que aprenderam a receber as queixas do povo e levá-las adiante, buscando sempre um despertar, uma mobilização e uma organização da comunidade, do bairro. [...] É o representante do CDDHO na comunidade, é ele que une o centro à comunidade. Sem o trabalho dos plantonistas o centro de defesa não teria razão de existir. 146

Os plantonistas de comunidade compunham um grupo comunitário de

representantes do centro. Denunciavam os casos de violações que ocorriam em

seus bairros e direcionavam os moradores para o atendimento jurídico. Por meio

dessa atuação o CDDHO conseguiu alcançar um número maior de comunidades,

expandindo o seu trabalho para diversos bairros da cidade. O processo de formação

de plantonistas nas comunidades é assunto que abordaremos no capítulo 3.

Através do trabalho de seus plantonistas o CDDHO recebia demandas de

diversas ordens, tais como problemas domésticos; conflitos entre moradores; abuso

de poder por agentes do Estado; casos de violência policial; ameaças e ataques às

comunidades em área de invasão; orientações jurídicas em demandas coletivas

contra empresas de loteamento, construtoras, indústrias e lojas.

Alguns casos estavam relacionados com reclamações das comunidades

contra o poder público. Eram embates maiores que se valiam da estrutura do

CDDHO não apenas para orientações jurídicas, mas para a organização coletiva e

divulgação das ações desenvolvidas, como em reivindicações de bairro que

buscavam melhorias na infraestrutura, na saúde, na educação e segurança pública.

Todavia, existiam inúmeras pessoas que buscavam o CDDHO para o relato de

problemas pessoais e familiares, como a resolução de conflitos conjugais, a

violência doméstica, erros de documentação, dificuldades envolvendo heranças,

processos trabalhistas, problemas em contratos de prestação de serviço

(envolvendo na maior parte das vezes problemas com o aluguel de imóveis) e

conflitos entre vizinhos. Pode-se ter uma dimensão dos casos atendidos pela

observação da tabela abaixo, que traz o conjunto do trabalho de plantão durante o

ano de 1979 147:

146

Cf. Relatório anual de atividades de 1979. Fundo do CDDHO-CEDIC. 147

Idem.

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Tabela 2 – Casos atendidos com fichas preenchidas.

Tipos de caso Quantidade

Violência policial 26 casos

Trabalhista 11 casos

Escrituração de terrenos 09 casos

Documentação 04 casos

Saúde 04 casos

Familiar 11 casos

Diversos 10 casos

Os plantonistas eram auxiliados por técnicos, constituídos por sujeitos que

prestavam serviços de apoio ao CDDHO. Eram advogados, psicólogos, padres e

operários engajados em comunidades. Estes sujeitos eram constantemente

acionados para o apoio na tratativa de questões que envolviam sua área de atuação.

Tinham a função de apoiar as necessidades da entidade e dos casos atendidos,

trabalhando nos problemas que apareciam de acordo com suas possibilidades. Essa

estrutura pode ser melhor compreendida na análise de um caso citato no

treinamento dos plantonistas, durante o encontro de março de 1979:

O Operário foi preso por ter pego carne do lixo da empresa onde trabalhava. A comunidade se dirigiu ao CDDHO, que encaminhou para o advogado [...], sendo depois encaminhado para um outro advogado em Jandira 148.

As comunidades se dirigiam ao CDDHO com um problema que não podiam

resolver, eram atendidas pelos plantonistas que faziam um registro dos casos em

fichas padronizadas, que possuíam o detalhamento necessário para a tomada de

ação, com as seguintes informações: comunidade oriunda, tipo de caso, violação

sofrida, partes envolvidas, dados do denunciante e da vítima, descrição do histórico

do caso e documentos anexos. Estes elementos possibilitavam a posterior analise

pelos técnicos, que encaminhavam o caso para ser efetivada uma tratativa, que

poderia estar relacionada a uma medida jurídica, ou ligada à promoção de trabalhos

com a comunidade, como em atendimentos que envolviam problemas familiares.

Era comum que pessoas buscassem a entidade para o relato de problemas

que requeriam a orientação de um advogado ou um serviço jurídico, como um caso

atendido pelo CDDHO em abril de 1983:

148

Cf. Relatório sobre o treinamento de plantonistas. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 17.

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D. Iponina mãe de Henrique149 quer consertar o registro de nascimento de seu filho, que foi registrado como menina. Isso tem trazido problemas para o garoto que não quer mais frequentar a escola. 150

Nesse caso os plantonistas entraram em contato com um advogado que

apresentou a melhor forma de solucionar o problema. Ainda no plantão a mãe foi

orientada para a verificação de uma correção do registro civil de seu filho através de

procedimentos possíveis de serem conseguidos no cartório do município. Estes

processos eram simples, porém pouco conhecidos pela população mais pobre da

cidade, que tinha dificuldades em lidar com os regimentos burocráticos do Estado.

Maura atuou no CDDHO enquanto secretária. Ela operava na comunidade de

base de seu bairro, em Jandira, quando entrou em contato com as ações do

CDDHO. Fez parte do projeto da entidade, articulando os trabalhos desenvolvidos

pelo centro em sua cidade. Recorda-se do trabalho dos advogados ligados à

entidade, que ofereciam um auxílio gratuito para as pessoas que buscavam o

Centro. Estas ações eram o principal meio para que o CDDHO alcançasse seus

objetivos, de acordo com suas lembranças no trabalho desenvolvido pelo centro

havia:

Muita defesa, nós tivemos muitas advogadas que contribuíam muito tanto para defender de fato a pessoa que estava já numa situação de necessidade de advogado, quanto na linha da orientação. Então nós tivemos a presença de muitos advogados no sentido de trazer essa contribuição gratuita na forma de defender realmente aquele que estava sendo violado nos seus direitos, então, esses advogados faziam esse papel gratuitamente em função desse centro existir e também na linha de conhecimentos, com muitas palestras, muita preparação para que essas pessoas também se preparassem para a realidade. 151

Em diversas ocasiões pessoas pobres eram lesados sem ter alternativa de

defesa no âmbito legal. O Centro recebia esses relatos e colocava-se enquanto

interlocutor de conflitos, tal como demonstra um caso de disputa pela posse de um

terreno que ocorreu entre uma família da comunidade de Helena Maria e a igreja

presbiteriana que se instalava no bairro:

Há dois meses, marido internado, houve enchente na favela Jardim Helena. Crentes se propuseram a ajudar a desmontar o barraco e a

149

Nome alterado. 150

Cf. Ficha de atendimento do caso. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 1. 151

Depoimento concedido por Maura ao pesquisador Lucas Alves de Camargo no dia 13 de agosto de 2015.

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montá-lo em outro local. No entanto, apoderaram-se do material e no local construíram uma igreja. 152

De acordo com o relato da família, eles haviam sido expulsos do local pela

igreja presbiteriana, que havia tomado posse do seu material e desfeito o acordo de

reconstrução do seu barraco.

O CDDHO interviu enviando uma correspondência para a igreja, solicitando o

comparecimento dos responsáveis para uma reunião com os advogados do centro.

Neste caso específico evidencia-se o compromisso do CDDHO em se colocar

enquanto mediador dos conflitos.

Prezados Senhores. Na condição de advogado do Sr. Denizart e da SRA Olinda, solicito o comparecimento de V. S. no endereço acima numa terça ou sexta-feira das 15 às 18:30, no prazo de quinze dias a contar do recebimento desta, para tratarmos amigavelmente do problema referente ao barraco de meus clientes, que foi demolido por V. S.153

Os responsáveis pela igreja compareceram ao CDDHO na data estipulada

pela entidade. Afirmaram aos advogados terem ajudado a família em troca do

terreno, fato que acarretou na desistência dos acusadores em prosseguir com uma

medida jurídica.

O CDDHO também recebia pessoas que relatavam problemas conjugais,

agressões domésticas e disputas cotidianas entre vizinhos. Em sua maioria,

buscavam a entidade para a resolução de problemas que necessitavam de medidas

judiciais.

Em um dos casos relatados, datado de dezembro de 1982, uma mãe oriunda

da comunidade de São José Operário buscou a entidade para solicitar ajuda na

resolução de um conflito com seu antigo esposo, um soldador que havia deixado a

sua casa para viver com outra mulher, conforme a ficha do caso:

Não estava combinando bem, então ele saiu de casa foi morar com outra mulher deixando a esposa Dona Elizabeth com 2 filhos menores [...] Dona Elizabeth pede para que ele aumente a pensão das crianças porque ele entrou na firma ganhando 74.000,00 e só está dando 20.000,00 para as duas crianças. Ele entrou na firma em março deste ano mas já teve dois reajustes. 154

O Centro buscou auxiliar a requerente no diálogo com o ex-esposo, de modo

que este passasse a pagar um valor proporcional aos aumentos salariais que havia

152

Cf. Ficha de atendimento do caso, 1983. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 1. 153

Cf. Carta do CDDHO à igreja presbiteriana, 1983. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 1. 154

Cf. Ficha de atendimento do caso, 1982. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 1.

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recebido. Em casos como este o diálogo entre os envolvidos era a primeira ação

buscada pela entidade, com a não resolução, recorria-se à justiça. Essas formas de

atendimento ampliaram as ações do CDDHO, que havia sido planejado para atender

os conflitos das classes populares em demandas contra o Estado, sobretudo com

relação á violência policial, mas que passava a ser um local de assistência mais

geral para a resolução de problemas jurídicos diversos.

Essa característica do trabalho do plantão do CDDHO objetivava enfrentar a

negação dos direitos da população subalterna que buscava auxílio. Assim, o

CDDHO aparecia como uma possibilidade no âmbito do Direito para sujeitos

desprovidos de recursos e de conhecimento técnico.

Em setembro de 1983 o CDDHO recebeu uma denúncia do Centro

Comunitário da COOHAB de Carapicuíba. Mulheres ligadas ao centro comunitário

buscaram a entidade para relatar uma ameaça de despejo de famílias que haviam

ocupado o bairro da Fazenda, sem que houvesse ocorrido um procedimento legal

para o ato, conforme evidencia a ficha sobre o caso:

Este caso é muito sério, porque envolve mais de 300 famílias; na fazenda municipal de Carapicuíba, onde o prefeito atual está tentando desaloja-las sem a mínima condição legal [...]. 155

Em resposta a essa atitude o centro comunitário local se reuniu e buscou

tomar providencias para enfrentar o problema. Deste modo, o caso foi levado para a

ciência do CDDHO que se comunicou com o coletivo e participou de reuniões para

oferecer orientações sobre procedimentos a serem tomados pelo coletivo de

moradores.

Estivemos reunidas com quase 50 pessoas com que discutimos. Haveremos de tomar algumas iniciativas concretas, como intervir junto ao fórum de Barueri; junto da prefeitura para discutir com o prefeito quanto à verdadeira intenção. 156

Os plantonistas do centro se dirigiram para a comunidade e apresentaram as

possibilidades de ação coletiva a serem tomadas. Propuseram um levantamento das

ameaças e das demandas comunitárias para que fosse redigido um manifesto a ser

preenchido em forma de abaixo-assinado. Estas ações resultavam no protocolo do

manifesto nas secretarias da cidade, no gabinete do prefeito e na promotoria

pública. Apesar de não significarem a instalação de um procedimento jurídico,

155

Cf. Ficha de atendimento do caso, 1983. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 1. 156

Idem.

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acabavam por organizar a comunidade para combater a ameaça de despejo através

da elucidação do funcionamento das normas e da burocracia estatal.

Com essas práticas o CDDHO se propunha a dar assistência aos subalternos,

de modo que fossem eles os responsáveis pela transformação das estruturas que

causavam as transgressões aos direitos humanos. Assim, um problema local seria

resolvido pela própria comunidade, que entraria em contato com o centro que

auxiliava os moradores através de orientações, estruturadas em uma perspectiva

pacifica de atuação, (relacionadas com a noção de firmeza-permanente),

promovidas através da organização coletiva com perspectivas jurídicas.

Essas práticas foram projetadas pelas lideranças do CDDHO através de seu

vínculo com a experiência resultante dos movimentos pastorais e das ideias da

teologia da libertação, que incentivavam a formação de mecanismos de auxílio aos

subalternos em sua autolibertação. Eram ainda, utilizados os pressupostos de

atuação embasados na não-violência, que previam uma resistência coletiva

pacífica157.

Em outro caso, que ocorreu na comunidade de Bom Pastor, moradores da

Favela 3, da paróquia de São José Operário, buscaram o CDDHO para relatar uma

série de ameaças que sofriam de pessoas que buscavam expulsar as famílias de um

terreno que pertencia a um grande proprietário da região, Antônio da Costa. As

famílias ocuparam a área que ficava próxima do km 16,5 da Rodovia Raposo

Tavares no ano de 1979. O relato levado ao CDDHO contava com a assinatura de

membros do coletivo de moradores formado na ocupação, em sua fala eles

afirmavam que:

Quando foram pedir água e luz na Prefeitura as Assistentes Sociais negaram dizendo que o terreno era de particulares. De vez em quando famílias recebem ameaças de boca e sem agressão. – Vocês precisam desocupar esta terra, à ação de despejo vai chegar e vai ser pior para vocês. 158

Uma irmã que atuava na paróquia local tomou ciência das dificuldades

enfrentadas pela comunidade. Ela incentivou os moradores a descreverem suas

condições em um atestado individual de pobreza, todavia, os moradores se

recusaram a fazê-lo. De acordo com o relato do CDDHO os ocupantes tinham medo

157

Destacamos o posicionamento do padre Domingos Barbé, que defendia a necessidade de o CDDHO buscar

multiplicar grupos de base e preparar o povo para a desobediência civil organizada e pacifica. 158

Cf. Ficha de atendimento do caso, 1979. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 2.

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de represálias por parte de pessoas alinhadas com o interesse do proprietário. Por

fim, o caso foi encaminhado para o Centro de Defesa Santo Dias da Silva, que

direcionou seus membros para a realização de um cadastramento no local e fez uma

denúncia sobre as condições de vida dos moradores. A demanda foi encaminhada

ao CDDHO, que realizou reuniões com os ocupantes e disponibilizou um advogado

para a defesa de possíveis ações contrárias à ocupação.

O advogado orientou os moradores sobre os dados do terreno ocupado, o

proprietário e as demandas que existiam sobre a sua posse. As moradias foram

cadastradas e os moradores foram listados para que um documento coletivo fosse

encaminhado à secretaria de habitação do município.

Apesar de o centro ter adotado vários procedimentos, o recurso final utilizado

foi à orientação jurídica. Essa foi a principal estratégia desenvolvida pela entidade

em sua relação com grupos que estiveram em conflito contra o Estado.

Este caso ilustra ainda a ação de alguns membros da estrutura católica na

defesa do laicado pobre que passou a contar, a partir dos anos iniciais da década de

1980, com o apoio dos Centros de Direitos Humanos, consolidando uma ação

integrada, com o compartilhamento de informações e estratégias de acordo com a

especificidade constatada.

O Centro contribuía também nos casos de outras instituições, que buscavam

seu trabalho para questões que não conseguiam resolver, sobretudo no campo

jurídico. Em 1980 atuou em parceria com a Associação para o Desenvolvimento do

Cidadão (ACD), ligada à igreja católica, que realizava ações de assistência social

para a recuperação de detentos e menores. Contava com o trabalho de médicos

psiquiatras, psicólogos e religiosos. Entre suas lideranças se destacava Marcelo

Duarte de Oliveira (padre Agostinho), que havia liderado a Pastoral de Direitos

Humanos e auxiliado no processo de formação do CDDHO.

Em outubro do mesmo ano a ACD solicitou o apoio do CDDHO. De acordo

com a ficha de caso:

O grupo que trabalha na cadeia de Osasco entrou em contato no dia 13/10/80 com um detido, há aproximadamente dois meses. Este preso resolvendo falar com um dos integrantes da equipe da ADC (uma psicóloga), externou que o estado em que se encontra é de desespero, em virtude de não ter um advogado e precisar de um, ainda mais considerando o fato de dois irmãos seus já terem sido executados pela Rota em Osasco, aproximadamente na 5ª feira da semana anterior. O mesmo diz ser irmão e esposo de duas mulheres

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que foram assassinadas e encontrados os corpos dilacerados, em Carapicuíba, há cerca de 7 meses atrás [...]. 159

Segundo o histórico do caso o detento sofria ameaças e temia sua morte, pois

conhecia os responsáveis pelo assassinato de criminosos comuns na região de

Osasco.

Na prisão diz que o mesmo já sofreu ameaças de um policial feitas através de sua irmã, quando da presença da mesma numa determinada delegacia de Osasco. Nas suas relações com os demais presos, também se diz ameaçado, e que já foi agredido, sofrendo violências físicas. Manifestou também muita preocupação com a segurança da família (mãe, irmã, irmãos menores, sobrinhos, e filhos – 11 menores ao todo). [...] Diz que os irmãos foram mortos pela Rota em Osasco e afirma ainda que a sua irmã e esposa foram assassinadas por um - Esquadrão da morte – que se formou em Osasco naquela época. 160

O caso foi comunicado ao CDDHO e levado pelo padre Agostinho para Dom

Francisco Vieira, bispo da diocese de Osasco.

Foi feita uma visita à família do detento, residente no Bairro do Jardim

Baronesa. A mãe era doméstica e sustentava seis netos de filhos mortos por

agentes da policia. Afirmou que queria mudar-se, pois estava ameaçada de morte e

a sua casa já havia sido invadida em algumas ocasiões. De acordo com a descrição

do caso, a família já havia se dirigido ao fórum de Osasco, mas não havia sido

atendida, pois não possuía um advogado. Temiam pela morte do filho que estava

preso, tentando denunciar as ameaças sem haver encontrado alguma forma de lidar

com a situação. Sua nora e filha haviam cometido crimes e foram brutalmente

assassinadas por supostos policiais:

Ao narrarem estes fatos, esclareceram que na época da morte das duas mulheres referidas, a situação foi tão revoltante tal o estado dos corpos, que elas procuraram a delegacia seccional de Vila Pestana, de Osasco, onde prestaram declarações de muitas folhas, e como a casa vinha sendo invadida muitas vezes com muita violência, por policiais de Osasco [...]. 161

O CDDHO tratou com sigilo as ações que realizou junto da família. Articulou

com a comunidade de Helena Maria apoio para que os familiares pudessem ter

segurança, apesar do medo que membros da comunidade sentiam da exposição à

159

Cf. Ficha de atendimento do caso, 1980. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 2. 160

Idem. 161

Cf. Nota interna do CDDHO sobre os assassinatos de presos comuns ligados ao caso de 1980. Fundo do

CDDHO-CEDIC, caixa 18.

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violência decorrente desse auxílio. Além dessas ações toda a documentação do

caso foi duplicada e guardada em outros locais.

O CDDHO buscou o apoio do Centro Santo Dias de Direitos Humanos, que foi

comunicado sobre as especificidades da ocorrência. Em mensagem enviada sobre o

caso concluiu:

Fica evidenciado, pelo quadro apresentado pelas partes submetidas á violência institucionalizada, que deve existir, sub jacente, motivos não esclarecidos, mas que se pode avaliar, para justificar as pressões e as mortes e ameaças: os vivos sabem demais. 162

O centro não indagava sobre a responsabilidade ou culpa dos crimes

cometidos pelas pessoas assassinadas. Objetivava a resolução do caso e a

“responsabilização das autoridades policiais e judiciais quanto à incoluminidade do

prisioneiro 163”. Concluía sobre a necessidade de ação de um advogado “versado no

direito criminal e afeito às lides do esquadrão da morte, para assumir a defesa do preso.” 164

As conclusões do CDDHO foram preponderantes para o desenvolvimento das

ações futuras. A entidade indagava sobre a falta de apoio da opinião pública para a

luta pelos direitos humanos e a necessidade de interlocução entre as diferentes

instituições existentes na região metropolitana de São Paulo:

Torna-se imperioso que outros grupos, voltados para a defesa dos direitos humanos, na capital e, até, internacionalmente, venham em socorro daqueles que estão necessitando de ajuda imediata e efetiva 165.

Para concluir o caso, o CDDHO enviou o histórico e suas considerações para

o Dr. Hélio Bicudo, que havia se destacado como opositor e desarticulador dos

esquadrões da morte166. O Centro esperava que Hélio Bicudo, membro ativo da

Comissão de Justiça e Paz de São Paulo e do Centro Santo Dias de Direitos

Humanos, que passava a centralizar a luta pelos direitos humanos na cidade de São

Paulo, mobilizasse os recursos e a capacidade técnica da Comissão Arquidiocesana

da Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados, com vistas a oferecer um

melhor apoio para a família, conhecida as restrições de ação do CDDHO com

relação ao limitado quadro de membros e aos insuficientes recursos financeiros. A

162

Cf. Carta enviada ao Centro Santo Dias de Direitos Humanos, 1980. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 18. 163

Idem. 164

Idem. 165

Idem. 166

Para mais informações sobre a atuação de Hélio Bicudo contra os esquadrões da morte indicamos a leitura de

BICUDO, 2002, op. cit.

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entidade cobrou ainda, uma articulação mais eficiente entre as entidades ligadas à

ação da CADDH e apoio para as ações desenvolvidas em Osasco:

Como toda a problemática envolve questões de violações aos direitos das pessoas, bem como sérios riscos à segurança pessoal de muitos e, certamente, apuração e denúncia de responsabilidade de autoridades públicas, também este Centro de Defesa necessita de maior respaldo de outros organismos como a “comissão arquidiocesana da pastoral dos direitos humanos e marginalizados” e a “Comissão de Justiça e Paz” a outros que possam colaborar. 167

Desses casos, evidencia-se o trabalho em rede de setores progressistas da

igreja católica, que moviam recursos da estrutura para o auxílio de perseguidos pela

repressão. Esses esforços eram apoiados pelo CDDHO que encorpava a formação

de uma articulação entre as entidades que atuavam na área dos direitos humanos,

ação que se respaldava na luta desenvolvida pela Comissão de Justiça e Paz de

SP, com o apoio da arquidiocese de São Paulo. Como demonstrado por Michael

Lewy (2000), entendemos que essas esferas de luta, articuladas com a ala

progressista da igreja católica, se alinhavam com as perspectivas do cristianismo de

libertação.

De acordo com Juliana Carvalhal (2007), o CDDHO comunicava-se com

outras entidades e auxiliava na divulgação de campanhas e aporte material. Recebia

constantemente casos de violação dos direitos humanos que ocorriam em outras

regiões e comparava a realidade existente em outros locais com a luta que promovia

na cidade de Osasco. Isso resultava na troca experiência entre as entidades de

direitos humanos, que fortaleciam a defesa dos subalternos na região.

O plantão do CDDHO também recebia casos individuais que relatavam abuso

de autoridade, violência cotidiana e policial nas comunidades pobres de Osasco.

Em outubro de 1981 um garoto que vendia bolas no semáforo da Avenida dos

Autonomistas, em Osasco, foi abordado por um carro da prefeitura com três

homens, dois deles identificados como fiscais e um policial militar. Segundo o relato

de uma testemunha:

O fiscal disse que o menino estava sendo explorado por uma firma de Diadema, que fabricava as bolas, e, para compensar tal exploração o fiscal furou as 21 bolas que estavam com o garoto [...]. Após isso, preencheu a guia de apreensão da Secretaria de Serviços

167

Cf. Carta enviada pelo CDDHO para o Centro Santo Dias de Direitos Humanos e Dr. Hélio Bicudo em 19

de outubro de 1980. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 18.

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municipais e fez o garoto assinar. Este, tão assustado, não conseguiu dizer nem mesmo em que bairro morava.168

Neste caso, os comerciantes e pedestres que passavam pelo local se

revoltaram e tentaram intervir junto aos agentes em auxilio do garoto, que era o

proprietário das bolas e estaria trabalhando, vendendo-as para os motoristas que

passavam pelo semáforo. Uma das testemunhas compreendeu a ação como

violação e abuso de poder e levou o caso para o CDDHO. A entidade descreveu o

relato da testemunha e redigiu uma carta denúncia que foi protocolada na Secretaria

de Serviços Municipais em nome do Secretário da pasta, sem, todavia, conseguir a

devolução do material apreendido.

Em março do mesmo ano um plantonista da comunidade de Munhoz Junior

levou o caso de um garoto da comunidade que estava escondido na paróquia do

bairro após uma tentativa de assalto em um ônibus municipal. Segundo o seu relato

sobre o caso:

Aconteceu um assalto de um ônibus no Munhoz. Estava no ônibus (o garoto), um colega, duas pessoas o motorista e inspetor do ônibus. Quando estava próximo do ponto final os dois desconhecidos sacaram armas, dizendo ser um assalto, quando foram surpreendidos pelo inspetor que também sacou uma arma e começou a atirar. Os dois desconhecidos saíram correndo e atrás deles também o (garoto), quando viu que seu colega foi atingido por uma bala. (O garoto) também foi atingido, o colega morreu. 169

De acordo com o relato, o colega morto e o garoto atingido haviam sido

acusados de serem os assaltantes do ônibus, assim, o sobrevivente estaria sendo

procurado pela polícia. Em frente a um caso ambíguo e pleno de informações

conflitantes o CDDHO tomou uma série de iniciativas que demonstram o

funcionamento de suas práticas. Buscou verificar o histórico do rapaz no bairro com

o auxílio da comunidade; levou as informações para uma advogada que prestava

serviços para a entidade, a fim de verificar as possíveis implicações jurídicas sobre o

ocorrido e por fim, trouxe o rapaz para um diálogo na sede da entidade para

reconstruir o caso. Nestes procedimentos verificou que o sujeito era menor de idade,

e descobriu o Departamento de Polícia onde havia sido aberto o boletim de

ocorrência. Por fim, a advogada do caso acompanhou o garoto até a delegacia,

onde foi indiciado e liberado por falta de provas. O CDDHO buscou, ainda, oferecer

168

Cf. Ficha de caso, 1981. Fundo do CDDHO, caixa 1. 169

Cf. Ficha de caso, 1981. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 1.

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um suporte junto à família do rapaz, através da indicação de abrigos onde pudesse

se alocar.

Em sua atuação o Centro buscou defender menores que haviam sido detidos

e pessoas acusadas de crimes sem provas, com julgamento sumário que as

instituições policiais realizavam em determinadas ocasiões170.

Em algumas ocasiões havia a desistência por parte da vítima em dar

andamento ao seu relato. Eram situações ocasionadas pelo temor de enfrentar uma

ação contra agentes do Estado, fator que impelia a vítima a abandonar a

possibilidade de prosseguir com uma ação na justiça contra a violação sofrida,

mesmo quando o transgressor era identificado pelo CDDHO.

Entre os casos de desistência encontra-se o relato de Aparecida, que

procurou o centro em abril de 1984 para relatar um caso de agressão de que havia

sido vítima. Ela retornava do pronto socorro do bairro de Helena Maria quando:

Um policial à paisana no seu próprio carro, começou a mexer com ela. Aparecida e sua amiga correram e se esconderam em um bar, mas quando saíram, ele estava por perto e conseguiu alcança-la e começou a espancá-la e xinga-lá. 171

Aparecida fez boletim de ocorrência relatando o caso e teve liberação para a

realização de corpo de delito. Através do trabalho do CDDHO o policial foi

identificado, todavia Aparecida desistiu de dar prosseguimento no caso, encerrando

a demanda junto ao centro.

Em outras ocasiões a comunidade buscava o CDDHO para realizar uma

denúncia de violação que havia ocorrido no bairro, mas a vítima se negava a

comparecer na entidade e a buscar auxílio. Estes casos muitas vezes eram

contabilizados como “não registrados”, uma vez que os elementos relatados

impediam o prosseguimento dos trabalhos pelo centro.

Os relatos existentes nas fichas de caso evidenciam diversas práticas e

formas de ação realizadas pelas instituições policiais nas periferias da cidade de

Osasco. É possível perceber sua brutalidade e truculência em diversas situações

cotidianas.

170

Para mais sobre o papel violento desempenhado pela polícia brasileira com relação ao cumprimento de sua

ação indicamos a leitura de IZUMINO, Wania Pasinato (org.) in: Violência policial a ação justificada pelo

estrito cumprimento do dever, USP: Núcleo de Estudos da Violência, 1998.

171

Cf. Ficha de caso, 1984. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 1.

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Em 1983 um garoto epilético saiu de sua casa para consertar a televisão de

sua família a pedido de sua mãe. De acordo com o relato do caso, no trajeto ele fez

uma visita a uma amiga da família, que morava em um barraco próximo de sua

residência:

Ocorre que no fundo deste barraco, mora um rapaz que é traficante de drogas. No momento em que o garoto entrou, a polícia em 1 baratinha e 2 polos, chegou dando tiros para cima, batendo e quebrando tudo. Prenderam três pessoas: o irmão de D. Mafalda (amiga da família), que é traficante, um rapaz que não era da área e o garoto. 172

A mãe do garoto procurou seu filho pelas delegacias da região até encontrá-lo

na delegacia do Bairro de Vila Pestana. Segundo o seu relato, no diálogo com o

delegado:

Este afirmou que todas as mães de marginais vão até lá chorando e não tomou nenhuma providencia, dizendo que estava entregue nas mãos do juiz e que a mãe deveria procurar um advogado. 173

Após este desdobramento ela foi aconselhada por membros de sua

comunidade a buscar o CDDHO. Em suas tratativas o centro buscou um advogado

que entrou em contato com o Promotor da Cidade. Segundo o relato do advogado

do caso:

Telefonei ao Dr. Marcos Caldas, promotor da Vara de Menores e da Corregedoria, e pedi a ele que requisitasse a realização de exame de corpo de delito no menor, ante as informações de vizinhos que presenciaram a prisão de que ele foi agredido por policiais. O promotor se comprometeu a tomar as medidas necessárias. 174

Através da pressão exercida pelo centro, o promotor deferiu o exame de

corpo de delito e marcou uma audiência para julgar o caso. Por ser menor de idade

e por ter sido preso sem provas de crime, o garoto foi entregue para sua família uma

semana após sua prisão. Apesar das denúncias de agressão o exame não

constatou violência física por parte dos policiais, elemento que se repete em alguns

casos atendidos pelo CDDHO no decorrer deste período.

Nesse caso, o garoto preso era menor de idade, mas foi levado para a

delegacia e tratado como um criminoso comum. A intervenção do CDDHO procurou

apontar os equívocos no processo de detenção, que acabavam por descaracterizar

a legalidade do ato.

172

Cf. Ficha de caso, 1983. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 17. 173

Idem. 174

Idem.

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97

Com o atendimento de plantão o CDDHO se posicionava como um escritório

de advocacia que não cobrava honorários aos que buscavam auxílio frente às

violações do Estado. Assim, na difícil relação dos marginalizados com o regime, o

centro conseguia atuar sobre as falhas cometidas pelo poder público, utilizando as

regras jurídicas vigentes com o objetivo de amenizar as transgressões que ocorriam.

O centro também se ocupava da violência cotidiana praticada pela população.

Posicionava-se contra os casos de agressão e os julgamentos populares que

considerava representar um entrave à democratização e ao processo de construção

da cidadania. Em abril de 1984 a entidade relatou o linchamento de um menor de 17

anos, que foi registrado como assaltante. O garoto foi espancado pela população,

sobretudo, por funcionários da empresa de ônibus Urubupungá. Ele havia sido

acusado pelos funcionários de furtar um relógio. Como a polícia não apareceu para

tratar da ocorrência, ele foi espancado até a morte. Em seu jornal o centro analisou

o assassinato:

Os funcionários, já cansados de serem explorados pela empresa,

descarregaram sua raiva neste garoto poderia ser em qualquer outra

pessoa suspeito de ter roubado horas antes um relógio de um

motorista. O furto ainda não provado não inocentará os mais de

oitenta justiceiros; mas a grande revolta não é nem com os assaltos.

Os grandes responsáveis pela morte de [Menor] não são os

funcionários e sim a empresa Urubupungá, que rouba seus

empregados após mais de 10 horas de trabalho. E os policiais de

plantão na delegacia de Osasco, que receberam nada mais que seis

telefonemas, informaram a impossibilidade de irem ao local por falta

de viaturas. Cabe agora á secretaria de justiça e a secretaria de

segurança publica apurar os verdadeiros culpados [...] bandido ou

não, também teria direito a um julgamento justo. 175.

A entidade aproveitava para denunciar o excesso de trabalho dos motoristas

da empresa de ônibus, mas enfatizava que mesmo com a constatação do crime não

havia justiça no linchamento. Entendia que apenas um julgamento que ocorresse no

interior do sistema jurídico, com todas as condições de defesa asseguradas, poderia

garantir a justiça com relação a um crime. Esse posicionamento criticava a justiça

popular176 com uma perspectiva legalista que buscava defender os princípios da

cidadania177 e da estrutura de julgamento via sistema jurídico.

175

Cf. Jornal Passo-a-passo, ano II, número 9, página 2. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 9, grifo nosso. 176

Justiça Popular como abordado por THOMPSON (2015), sobretudo com relação à distinção entre o código

jurídico aplicado em leis positivadas através da escrita e códigos populares consolidados pela tradição e pelos

costumes, oriundos da experiência coletiva histórica, atravessada pela oralidade. Cf. THOMPSON, E.P.

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98

Em sua prática o CDDHO compreendeu que os pobres eram vítimas

constantes da violência urbana. Essa violência seria devida á não aplicação da

justiça pelos agentes do Estado, condição que impedia a manifestação da cidadania

e incentivava a população pobre á prática de manifestações de violência.

Em setembro de 1984 um pai foi ao CDDHO relatar a prisão de seu filho,

menor de idade, que havia sido acusado de assassinato. Ele estava retornando do

trabalho quando viu seu filho sendo levado por uma Rural da PM. De acordo com

seu relato, dialogou com os policiais sobre a idade do seu filho e solicitou que não

batessem no garoto, mas não foi ouvido pelos agentes.

O pai procurou seu filho pelas delegacias da cidade, sem sucesso. Procurou o

juizado de menores e a procuradoria, mas nenhuma informação foi apresentada.

Após duas semanas de buscas ele procurou apoio junto ao CDDHO.

O centro buscou o menor nos Departamentos de Polícia da cidade,

procurando informações sobre a detenção e as acusações existentes. Através de

uma varredura que promoveu pelas delegacias da região, localizou-o no DP do

Jardim Pestana, onde estava à disposição da justiça. Segundo constatou a família

não havia sido intimada e tampouco havia informações oficiais sobre o motivo da

detenção.

Dias depois de encontrado, o jovem foi entregue à família. Segundo dados do

histórico do caso:

Ele estava sendo acusado de matar um rapaz em Santo Amaro. Foi torturado e disse que não aguentava mais apanhar e inventou uma história, dizendo que tinha um irmão em Santo Amaro e foi visita-lo, mas não tinha matado ninguém. 178

No decorrer da detenção ele foi levado para a FEBEM, onde passou uma

semana, depois foi encaminhado ao fórum e à delegacia seccional. Após sua

liberação o caso foi encerrado pela família.

Costumes em comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional. Tradução Rosaura Eichemberg. São Paulo:

Companhia das letras, 2015. 177

A defesa da cidadania foi consolidada desde a experiência da revolução francesa enquanto defesa do direito

ao julgamento e o fim da detenção e condenação sem a existência de constatação de crime. Estes princípios

embasam os significados jurídicos atribuídos para o habeas corpus. Cf. AVILA, Flavia de. Direitos e direitos

humanos: abordagem histórico-filosófica e conceitual. PR: Curitiba, Appris, 2014.

178

Cf. Ficha de caso, 1984. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 18.

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Em setembro de 1979 o Centro identificou o assassinato de três jovens

acusados de roubo na cidade de Osasco. A ficha de caso apresenta a seguinte

descrição:

Marcos179 foi morto com mais dois jovens. Um teria 19 anos e outro 14 anos. Marcos tinha 16 anos. Ambos foram assassinados pela polícia, que acusa de serem bandidos. 180

Diante da constatação de violência policial o centro procurou a comunidade

do Jardim Veloso para conhecer o histórico de Marcos. Dialogou com os familiares e

buscou identificar problemas que pudessem ter envolvido a polícia, segundo sua

conclusão:

O Centro de Defesa dos direitos humanos de Osasco entrou em contato com seus pais e levantou seus documentos provando que ele não tinha nem passagem pela polícia, era estudante e estava empregado. Seus pais pedem justiça. 181

O Centro solicitou o auxílio do advogado Dr. Albertino, que atuava junto da

Frente Nacional do Trabalho, para levantar um Dossiê com documentos que

atestavam aspectos idôneos da vítima. Para isso, identificou o local de trabalho e

solicitou uma declaração, anexada ao processo:

A quem possa interessar. Declaro para os devidos fins que o Sr. Marcos [...], foi meu funcionário de 01 de março de 1979 à 10 de janeiro de 1979, exercendo a função de balconista, sendo que nada conste que o desabone. 182

O Dossiê contava com documentos que o centro recolheu junto a entidades

que poderiam legitimar o discurso de que a vítima não representava uma ameaça

para a sociedade:

Declaro para os devidos fins que Marcos (...) cursou a 8ª série do ensino do 1º grau, tendo sido desistente. Nada consta em seu prontuário, que pudesse desabonar sua conduta moral na escola. 183

O Centro recolheu, ainda, uma declaração expedida pelo Juizado de Menores

para certificar que o jovem assassinado não havia apresentado conduta que o

levasse a possuir problemas com a justiça, que verificou que:

179

Nome alterado. 180

Cf. Ficha de caso, 1984. Op. cit. 181

Idem. 182

Cf. Declaração espedida pelo empregador da vítima ao CDDHO, agosto de 1979. Fundo do CDDHO-

CEDIC, caixa 18. 183

Cf. Declaração espedida pela escola do jardim Santo Antônio ao CDDHO, agosto de 1979. Fundo do

CDDHO-CEDIC, caixa 18.

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[...] Nada Consta com referencia ao Menor Marcos (...), sendo certo que referendo menor NÃO CONSTA com passagens pelo juizado de Menores desta comarca [...] 184.

Este levantamento não teve prosseguimento jurídico, mas foi efetivado pelo

CDDHO para documentar e divulgar as práticas de transgressões que ocorriam na

região de Osasco por parte das instituições policiais, que assassinavam menores de

idade, realizavam julgamentos sem base legal e sem a comprovação de dolo,

impossibilitando a defesa da vítima, um pressuposto essencial para a garantia da

cidadania.

Caso semelhante foi levado ao Centro pela Comunidade paroquial de Vila

Baronesa. O relato indica que um jovem da comunidade estava acompanhando um

amigo no centro da cidade de Osasco com o objetivo de retirar novos documentos,

quando:

Inopnadamente, sem qualquer motivo os mesmos foram abordados por policiais da Tático-Móvel n° 2005, que nem sequer solicitaram a documentação dos referidos rapazes, e acabaram por deter Rafael185 de forma arbitrária, dispensando o outro [...]. Depois de muitas voltas dentro da viatura policial o jovem foi deixado na delegacia, por volta das 12:00 horas, sendo que nesta oportunidade as autoridades responsáveis não solicitaram a documentação que estava em seu poder, mandando colocá-lo num local da própria delegacia conhecido como chiqueirinho, em companhia de outros presos correcionais, sendo liberado por volta das 19 horas. 186

Enquanto o jovem estava encarcerado a família buscou-o nas delegacias da

cidade, sem saber o paradeiro do rapaz. Um membro da comunidade e um

advogado visitaram a delegacia onde estava detido, mas “As autoridades da mesma

delegacia, também negaram a presença do detido” 187.

O Centro buscou identificar o motivo que levou as autoridades a

concretizarem a prisão de Rafael sem acusação. Entrou em contato com a delegacia

para que os agentes justificassem os motivos de terem negado a informação de que

ele se encontrava detido. Apesar das dificuldades em solucionar o caso, o CDDHO

buscou respostas e montou um dossiê sobre o fato.

Durante o andamento do caso ficou evidente a importância que o CDDHO

assumia para comunidades que necessitavam de apoio jurídico na luta por justiça,

184

Cf. Declaração expedida pelo Juizado de Menores, Poder Judiciário de São Paulo, agosto de 1979. Fundo

do CDDHO-CEDIC, caixa 18. 185

Nome alterado. 186

Cf. Ficha de caso, 1979. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 18. 187

Idem.

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conforme a indicação da carta que foi redigida em março de 1979 pelo coletivo da

paróquia de Helena Maria:

Esperamos que o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco, por seus responsáveis, dentro dos objetivos desta entidade, tomem as devidas providencias que julguem necessárias, afim de que, tais arbitrariedades não se repitam e que prevaleça a Justiça. 188

Em outra situação, datada de março de 1984 uma mãe buscou o centro para

relatar um caso de família. Segundo seu relato, um de seus filhos, menor de idade,

havia furtado alguns carros, por diversão, com colegas. A polícia o havia

identificado, todavia, ele ainda não tinha sido encontrado. Na busca pelo rapaz:

A polícia já invadiu a casa de D. Iracema. A primeira vez foi, em janeiro de 1984, por volta das 10:30. A policia disse que estava a procura de João189, (que fugiu pelos fundos quando a policia chegou), e como não o encontraram, levaram seu outro irmão, Francisco190. Abriram processo para ele por furto. Francisco foi solto no outro dia, mas antes a delegada disse a d. Iracema que só soltaria o Francisco quando ela entregasse o João. 191

Francisco foi solto e retornou para sua família. Sua casa foi novamente

invadida por policiais no mês seguinte, eles afirmavam procurar um gravador e um

relógio, decorrentes de furto. Nessa ocasião ameaçaram leva-lo novamente, pois a

família não havia entregado o local de paradeiro de seu irmão. Apesar da

constatação de prática ilegal, uma vez que Francisco havia sido detido como forma

de pressionar a família para entregar o verdadeiro procurado, o caso foi encerrado

pelo CDDHO por desistência da depoente.

Em outra situação, que ocorreu em 1981, José, da comunidade de Vila Crete,

buscou o CDDHO. De acordo com seu relato, um policial não identificado chegou à

sua residência e o prendeu com sua esposa. Seus irmãos, que estavam no local,

também foram presos. Segundo o histórico do caso:

Foram para a delegacia e a Nadir (esposa) foi deixada lá, enquanto os 4 homens foram levados para Barueri, porém antes, a polícia rodou, parou em Vila Lourdes e bateu nos 4 rapazes. 192

188

Cf. Carta da comunidade de Helena Maria, março de 1979. Fundo do CDDHO, caixa 18. 189

Nome alterado. 190

Cf. Ficha de caso, 1981. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 18. 191

Idem. 192

Idem.

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Quando José e seus irmãos chegaram à delegacia foram encaminhados para

a realização do corpo de delito. Um dos seus Irmãos apresentou hematomas nas

mãos e nos braços. Após tais procedimentos foram soltos.

O CDDHO enviou uma plantonista para acompanhar o caso junto à delegacia.

Ela verificou a situação dos rapazes e procurou dialogar com o delegado do caso,

que aceitou ouvir o relato de agressão. Dois policiais foram identificados pelo

trabalho do CDDHO, que conseguiu fotos dos agentes que trabalhavam no batalhão

ligado à delegacia na qual havia ocorrido a detenção. Pela conclusão do caso, os

jovens não deram prosseguimento com a acusação, mesmo com a realização do

corpo de delito, que comprovava os hematomas após a detenção ter sido realizada.

De acordo com essas fichas de casos, os relatos sobre o papel da Policia

evidenciam que na visão dos agredidos a Instituição não existia para diminuir a

violência em favor dos moradores, mas que sua presença significava a propagação

de tensões constantes que a expandiam, aumentando as dificuldades no cotidiano

da população. São exemplos desse sentimento a queixa de ameaças sobre famílias

e comunidades envolvidas em situações delituosas, as frequentes invasões de

residências e barracos sem ordem judicial, as detenções sem provas ou constatação

de dolo, as frequentes trocas de tiros, as execuções sumárias, os sumiços de

investigados capturados por carros sem identificação e a truculência exacerbada nas

operações e averiguações policiais.

Em agosto de 1980 uma mãe da comunidade de Jardim Roberto procurou o

Centro para relatar uma agressão praticada contra seu filho, um jovem negro de 17

anos que trabalhava como servente de pedreiro. Segundo o relato, após chegar da

escola por volta das 11:00 da noite, foi ajudar seu vizinho a empurrar um veículo que

pertencia ao cunhado, após a conclusão da ação os dois conversavam em frente ao

portão quando:

“Chegou então uma viatura de nº 209, revistou eles, deixou o (vizinho) e levou preso o Felipe193, que resistia dizendo que morava ali, mas não adiantou, bateram, deram soco, que o menor chegou a vomitar. Queriam que ele desse conta de um marginal chamado Biri. Depois de ter rodado bastante soltou ele lá para os lados da fazenda velha” 194.

A mãe do rapaz se dirigiu ao CDDHO aconselhada por membros da

comunidade, pois sua casa já havia sido invadida por policiais no mês anterior à

193

Nome alterado. 194

Cf. Ficha de caso, 1980. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 18.

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ocorrência, quando quebraram a porta de sua residência devido a uma perseguição,

conforme relatou ao plantonista:

Estavam procurando um marginal de nome Rochedo, que correu, os policiais achando que ele tinha entrado no meu quintal de arma empunha prenderam meu cunhado, que estava no banheiro, deram tiro para assusta, e levaram meu cunhado algemado e deram chutes. 195

Segundo a depoente seu cunhado foi levado preso confundido com o

“marginal” e solto no mesmo dia, após a averiguação do equivoco. Em seu ponto de

vista tal agressão configurava uma injustiça contra sua família.

O CDDHO enviou seus plantonistas para acompanharem a mãe e seu filho à

delegacia de Osasco. Segundo a documentação, o delegado encaminhou o caso

para o quartel da PM, responsável pela viatura que havia praticado as ações. Do

quartel foi levado para outra unidade próxima da delegacia de Osasco, onde o jovem

foi ouvido por mais de uma hora, mas não pode identificar nenhum dos policiais que

estavam em serviço. O CDDHO esforçou-se para identificar os responsáveis pela

ação, na tentativa de dar andamento jurídico para o caso. Todavia, de acordo com a

conclusão da ficha:

O Tenente responsável do serviço ficou de tentar localizar (os responsáveis) em outros quarteis. Qualquer coisa Cida (plantonista do CDDHO) ficou de fazer contato. 196

Após o contato com os responsáveis pela “investigação”, o tenente afirmou

não ter descoberto nada, invalidando o prosseguimento das ações do CDDHO.

Esses casos demonstram que era difícil resolver os abusos de poder dos

agentes da polícia. O centro lidava com barreiras no interior das delegacias e

enfrentava um forte protecionismo das patentes superiores, que não davam

prosseguimento às investigações e limitavam seu trabalho. Assim, diversos casos de

abusos, equívocos e acobertamentos chegavam ao Centro que podia realizar

poucas ações para levar o caso a julgamento, pela falta de provas, não identificação

dos responsáveis e limitação das investigações.

Apesar das dificuldades impostas, a ação desenvolvida pelo plantão do

CDDHO pressionava as instituições policiais da cidade e causava um debate público

que enfatizava as agressões que ocorriam na região. Nesse sentido, o CDDHO

constituía uma ferramenta para os subalternos enfrentarem a burocracia do Estado

195

Idem. 196

Idem.

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autocrático. Sem o apoio jurídico oferecido pelo CDDHO, haveria dificuldades

intransponíveis no trato com os órgãos públicos, que dificultavam a ação contrária às

transgressões operadas pelos agentes do Estado.

Com relação a essa difícil atuação do CDDHO, Carlos Alberto se recorda da

especificidade da violência sobre os pobres e das ações que o centro buscava

realizar, em um período no qual poucas eram as possibilidades para responsabilizar

os policiais que cometiam agressões:

Nessa década de 1970 houve uma violência muito grande por parte da policia, principalmente na repressão dos movimentos sociais e que se teve reflexo na violência contra os pobres, então a gente apurava denúncias de assassinatos de jovens, de pobres que a policia sumia com os corpos e as famílias não tinham notícias, os inquéritos policiais não eram concluídos, não havia responsabilização dos policiais militares da policia contra tortura e contra desaparecimento e contra assassinato dos pobres e a gente, do centro, era a única entidade que se preocupava com essa questão e fazia o trabalho, tentava fazer esse trabalho. Então a gente tinha advogados que acompanhavam as famílias e a gente recebia denúncias, tentava encaminhar pelos canais, era muito difícil. A mídia naquele tempo, muito mais que hoje, era toda voltada pra combater os Direitos Humanos e para dar suporte para essas ações das polícias que não tinham nenhuma forma de prestar conta e não tinham nenhuma fiscalização dos órgãos. O Ministério Público ainda não existia, ele é de 1988, então o Ministério Público não tinha essa configuração que teve depois da constituição. Praticamente você não tinha a quem recorrer; como é o caso dos presos políticos que tinham que recorrer a igreja que D. Paulo dava apoio e ia fazer as visitas nos presídios pra saber como estava a situação, a gente fazia isso exatamente nas cadeias e a gente ia praticamente sem apoio institucional nenhum. 197

O Centro dava continuidade em Osasco ao projeto desenvolvido pela

Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, todavia, suas ações priorizavam a defesa

das violações cometidas contra presos comuns e acusados de crimes que não

possuíam caráter político. Esse trabalho possibilitava a vinculação da luta pelos

direitos humanos à defesa dos subalternos, uma percepção que ampliava os

horizontes de luta e que alargava o sentido de direitos para as classes sociais sem

acesso ao instrumental jurídico.

Em setembro de 1980, chegou ao centro um homem chamado Jonas. Em

seu relato afirmava que no dia 04/09, por volta das 18 horas, voltava do serviço de

uma fábrica da cidade, quando foi parado por quatro policiais que passavam em um

VW, e lhe deram voz de prisão, pedindo para que colocasse as mãos na cabeça.

197

Depoimento concedido por Carlos Alberto. Op. cit.

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Jonas ficou ofendido e disse que estava voltando do serviço e que não tinha motivo

para por a mão na cabeça. Os policiais passaram a dar-lhe pontapés no tórax:

Jonas disse para os policiais que ele estava com a profissional e que o RG estava em casa. Os policiais nem quiseram olhar a CTPS e disseram que ele era suspeito de um roubo, pois estava com o mesmo traje de um dos assaltantes. (...) Depois foi levado para o 2° DP, onde queriam que ele confessasse vários furtos. Jonas dizia que não ia confessar o que não tinha feito mesmo que fosse torturado. Os policiais que estavam no plantão chegaram a amarrar Jonas para pendurá-lo no pau-de-arara, o que não chegou a ocorrer. 198

De acordo com a verificação do Centro, Jonas foi liberado sem que houvesse

queixa contra sua pessoa. Não assinou nenhum papel, nem houve comprovante do

fato.

O CDDHO o encaminhou para que tirasse radiografias para que o caso fosse

encaminhado para exame de corpo de delito. Ele foi conduzido pela promotoria para

a realização do exame no IML, onde foram feitos procedimentos que apontavam o

quadro de lesões que ele havia relatado. O CDDHO buscou testemunhas que

presenciaram a prisão e que poderiam testemunhar a favor do depoente. O

processo foi arquivado, pois Jonas desistiu do caso e não retornou ao centro,

impedindo a continuidade das ações.

Este caso evidencia alguns elementos importantes sobre o período: possuir

documentação que comprovasse vínculo empregatício, documento de identidade e

carteira de trabalho assinada era fator que incidia a favor do depoente em uma

abordagem policial. Também as roupas, o local de moradia e o horário de circulação

em via pública eram determinantes para um procedimento de verificação pelos

agentes da polícia.

Sobre estes aspectos a recordação de Maura, secretária do CDDHO, é

elucidativa. De acordo com suas memórias a ação da Polícia Militar no período era:

Muito turbulenta e exagerada, exagerada mesmo, com abordagens,

com violência mesmo, exigindo documentos e principalmente carteira

profissional assinada. Naquele período a carteira profissional fazia

parte do documento que você tinha que carregar, porque a não

assinatura da carteira profissional dava uma margem para ser

considerado uma pessoa não bem vista e a policia naquele período,

198

Cf. Ficha de caso, 1980. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 18.

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também na cidade de Jandira era uma polícia violenta e abordava

muito; era uma abordagem constante. 199

Isso ocorria porque as práticas da polícia nas periferias da região de Osasco

durante o período parecem ter sido direcionadas para uma intensa fiscalização e

controle dos moradores com o objetivo de perseguir os criminosos e conter os

crimes.

Como demonstrado por Regina Célia Pedroso (2005), o aparato policial é

uma formação que visa, em primeira instancia, a manutenção da segurança e da

ordem social, e por isso, é legitimado pelo direito, uma vez que sua função é a

execução das regras e normas institucionais. Assim, pode intervir no controle do

cotidiano dos cidadãos de acordo com os fins jurídicos estabelecidos pelo Estado. O

que se visualiza no período analisado é uma extensão das práticas policiais, que

deixam de embasar-se apenas nas normas e passam a existir de acordo com o

interesse e subjetividade dos agentes.

Em diversos casos relatados ao CDDHO evidencia-se um pré-julgamento do

criminoso. Observam-se trajes, padrões comportamentais, cor da pele e local de

moradia. O julgamento precedia a verificação, o que ocasionava uma disfunção do

regimento jurídico e propagava práticas policiais que não se embasavam na

legislação. Sobre este ponto podemos nos valer da análise de Regina Célia

Pedroso, quando demonstra a definição de criminoso utilizada pelas instituições

policiais:

O conceito de criminoso é estabelecido a partir da constituição de um universo de exclusão social, definindo quem são os perseguidos. Considerando essa construção mental que leva em consideração padrões comportamentais, utilidade econômica e eficiência polícia, é que a delimitação das camadas excluídas (leia-se criminosas) é edificada. Nesse sentido, podemos concluir que os aspectos para a ordenação da sociedade são aspectos concretos que visam a ordem política, a organização perfeita do modelo econômico e, por fim, o estabelecimento de uma linha comportamental que perpassa todos os grupos sociais. 200

Por sua vez, os casos atendidos pelo CDDHO revelam que a atividade policial

acarretava em transgressões contínuas a pessoas de baixa renda, com pouca

escolaridade, que residiam nas periferias da região de Osasco.

199

Depoimento concedido por Maura, Op. cit. 200

PEDROSO, página 42, 2005.

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Para enfrentar o contexto de violência vivenciado pelos mais pobres, o

CDDHO buscou a ferramenta jurídica para avançar a luta social. A entidade entendia

que a luta por meio do cumprimento das leis desembaraçaria a burocracia do

regime, pois a ação estaria embasada nas mesmas estruturas que sustentavam o

sistema autocrático. Seria também um caminho para enfrentar a intensa violência

policial, que agia de acordo com a percepção da exclusão social e utilizava a

estrutura burocrática para perpetuar diversos crimes de autoridade.

Deste modo, a entidade denunciou em janeiro de 1984 o assassinato de um

garoto de 12 anos, morto com um tiro no rosto no dia 13 de dezembro de 1983, por

um policial que fazia ronda no centro de Osasco. O garoto era portador de distúrbios

mentais. Seu pai, vendedor de quadros, procurou o CDDHO para auxiliar no caso.

Após a análise do histórico do caso, o centro buscou advogados para

esclarecimento das questões existentes. Foi constatado que o garoto estava sendo

procurado pela polícia desde a tarde por ter tentado furtar uma bicicleta da

residência de um suposto policial. Segundo o texto publicado no jornal Passo-a-

Passo:

No BO nº 7868/83 consta uma versão de que o policial viu um vulto

saindo do vitrô da casa situada à rua João Colino, 301, às 2 horas da

manhã. Então o policial teria gritado para que o vulto se identificasse

e, como estava escuro, atirou imediatamente, atingindo o menino no

rosto. 201

Segundo a documentação, o pai do garoto discordava do fato relatado pelo

policial:

Porque (o garoto) foi ferido no braço e no rosto, ao mesmo tempo, se

só foi disferido um tiro? Dai eu chegar a seguinte conclusão: meu

filho foi morto em outro local e colocado no vitrô para caracterizar um

assalto. 202

Este caso apresenta práticas da polícia em Osasco que são relatadas em

outros fatos atendidos pelo CDDHO. São ações relacionadas à orquestração de

cenas de crime, à suposição de crime sem julgamento, à execuções arbitrárias e à

ausência de julgamento e avaliação das ações cometidas por policiais.

No desdobramento de sua experiência o CDDHO fez frente à intensa

violência institucionalizada contra a classe subalterna. O seu combate às

201

Cf. Jornal passo-a-passo, edição nº8, página 3, janeiro de 1984. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 9. 202

Idem.

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108

transgressões indicava a necessidade de denunciar a violência relacionada à

condição social, que se mostrava clara com relação ao local de moradia das vítimas.

Essa violência é indicada em um dos casos atendidos pelo CDDHO em junho de

1982, trazido pela comunidade de Santo Antônio, que relatou ações ilegais

realizadas por agentes da polícia no período:

No dia 28/06, Daniel e seu irmão Walmir e mais colegas voltavam de uma festinha quando foram interceptados por 2 guardas-noturnos fardados, perto do mercado Japão no Jd. Santo Antônio. Os guardas nem pediram documento para os três e disseram que os 3 tinham arrombado o Mercado (...). os guardas começaram a atirar e os três se esconderam mas Walmir foi baleado. Chegaram mais 4 guardas (alguns a paisana) em 2 carros (os carros não eram da polícia) que já pegaram os 3 e começaram a bater neles. Depois, levaram eles p/ o Asilo de Velhos, onde haviam mais policiais. Apanharam bastante e puseram Daniel e seu colega num carro e levaram eles para a delegacia [...] Ao sair da delegacia os familiares de Daniel o esperavam e disseram que o corpo de Walmir tinha sido encontrado no Hospital das clinicas – o atestado de óbito dizia que Walmir morreu de bronco-pneumonia. 203

O relato da comunidade de Santo Antônio fala de policiais à “paisana”, que

não estavam identificados, andando em carros particulares, prontos para atender o

chamado e agredir os possíveis suspeitos. São relatos de experiências de

moradores que viviam nas periferias da cidade. Por fim, a própria morte aparece

dissimulada, tratada como acontecimento banal que acaba por ocultar à violência

noturna, quando deixam de existir os responsáveis do Estado por ela.

Neste contexto, os mais jovens temiam ser confundidos com criminosos pela

polícia. Evitavam circular em grupo e raramente saiam pelas ruas após escurecer.

Temiam os assaltos e a violência cotidiana das vilas e favelas, conheciam o perigo

que atentava contra seus pertences e suas vidas, mas também receavam os

“enquadros” que poderiam levá-los a becos onde apanhariam, conheciam casos de

jovens mortos em rondas policiais, intimidavam-se pela presença de viaturas nas

ruas em que moravam.

Em outro caso, de 1981, Maria, da comunidade do Jardim Roberto, procurou

o CDDHO para relatar o desaparecimento de seu filho. Ele desapareceu de casa no

dia 12 de julho e não deixou qualquer tipo de informação. Os vizinhos afirmavam

que o garoto havia sido levado pela polícia, pois estava cometendo assaltos. A mãe

relatou que o filho não havia cometido nenhum crime e que estava empregado em

203

Cf. Ficha de caso, 1982. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 18.

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uma empresa da região. Ele também não havia aparecido no trabalho e tampouco

no colégio do Jardim Pestana, onde frequentava o 8º ano.

A partir do relato, o CDDHO procurou nas delegacias da região informações

sobre o rapaz. Entrou em contato com advogados que averiguaram junto a

delegados dados sobre a possível prisão. Após uma semana de trabalhos o centro

não encontrou qualquer informação sobre o caso.

No dia 10 de agosto um irmão do rapaz se dirigiu até ao Centro e informou

que ele havia sido assassinado junto com mais três jovens. Seu corpo foi encontrado

na cidade de Santana de Parnaíba.

Ainda, em 1981, Geraldo e sua esposa buscaram o CDDHO para relatar uma

agressão contra seu filho. O Jovem havia sido levado da casa de uma amiga por

uma viatura da Rota. Segundo relatos da comunidade, a amiga havia chamado a

polícia. Após a detenção a família procurou o rapaz em diversos locais, mas não

obteve sucesso sobre seu paradeiro. Segundo o histórico do caso:

No dia 12/08, informado por amigos, o pai de Luiz compareceu ao IML, onde reconheceu o corpo de seu filho. [...] Quando foi preso ele portava todos os seus documentos. [...] o Corpo foi encontrado junto com outros corpos pendurados e metralhados no Alphaville em Barueri, um corpo era de um colega, preso junto com ele. 204.

Sobre estes dois assassinatos, o centro não pode comprovar o envolvimento

de policiais no crime e os casos foram encerrados.

Outras fichas apresentam dados de casos que já haviam ocorrido há certo

tempo, mas que a família buscava a orientação para a luta pelo reconhecimento da

responsabilidade do assassinato pelo Estado.

Em março de 1983 uma mãe foi ao Centro denunciar a morte de seu filho,

que havia ocorrido em setembro de 1978. Segundo seu relato: “José foi morto pela

polícia no dia 18-09 quando ele mais um colega estavam em um carro roubado. Ele foi

barbarizado pela polícia até a morte” 205.

Ela procurou o Centro para conseguir uma indenização pela morte de seu

filho. O caso possuía elementos de difícil resolução, deste modo, buscou-se o auxilio

de um advogado. Ao analisar o histórico do caso e as perspectivas da família, o

CDDHO identificou a possibilidade de conseguir uma aposentadoria para seu

marido. A mãe foi então encaminhada para um advogado especializado em ações

trabalhistas.

204

Cf. Ficha de caso, 1981. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 18. 205

Idem.

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110

Em maio de 1983 a comunidade de Bom Pastor levou ao Centro o caso de

Eliseu, que havia sido detido por um suposto investigador que buscava solucionar

um crime de agressão no bairro. Ele foi levado ao 6º distrito policial para

averiguação:

Enquanto era feita a ficha na polícia, ficou algemado e fechado no quarto. Com maus tratos foi levado a “central” – chiqueirinho – onde permaneceu até o dia 19. Da central foi liberado [...]. Dia 17 as 16 horas retornou ao 6º distrito algemado foi ameaçado ser torturado no pau-de-arara, choque elétrico e até ser morto caso não se entregasse como criminoso. No 6º DP o delegado exigiu que entregasse o Jaime (verdadeiro agressor) se caso não fizesse ficaria de um mês e até mais tempo detido. No mesmo dia, aproximadamente às 20:00 h retornou ao chiqueirinho. Durante o tempo detido viu vários presos sendo levados a uma sala e submetidos à tortura, entre os que retornavam ao chiqueirinho. No xadrez viu a marca dos maus tratos. 206

As fichas também indicam práticas de tortura utilizadas em criminosos

comuns, tais como o chiqueirinho, pau-de-arara, geladeira e choques-elétricos, já

conhecidos pelas comunidades através de indivíduos que haviam presenciado ou

passado por sessões de tortura e de parentes e amigos que voltavam assustados

das visitas realizadas no interior das delegacias e cadeias da região. A tortura de

indivíduos de baixa renda era percebida como uma constante para a obtenção de

informações necessárias por parte da polícia, que provavelmente a utilizaria quando

os presos se negassem a prestar as informações que eram solicitadas pelos

agentes. A prisão era, assim, um local caracterizado pela violência, onde eram

utilizadas práticas de tortura que não se limitavam aos opositores do regime, mas

que eram utilizadas amplamente em presos comuns. Esses discursos faziam parte

dos relatos propagados pelos grupos sociais organizados que buscavam o Centro

de Direitos Humanos, que reproduzia os entendimentos sobre a condição de

violência propagada pelo Estado aos presos pobres.

Sobre esse entendimento a pesquisa organizada por Nancy Cardia e Roberta

Astolfi (2004) é elucidativa. As autoras buscaram compreender as justificativas

existentes para a prática de tortura no Brasil. O estudo abrangeu dados sobre a

opinião pública, relatos de agentes, dados sobre violações e documentos oficiais

para elucidar as estruturas de legitimidade social para a prática de tortura. Ainda que

esteja direcionada para o período pós-democratização, alguns dados são úteis para

nossa análise. As autoras demonstraram que apesar do aparato legal criado para 206

Cf. Ficha de caso, 1983. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 18.

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combater a tortura após 1985, que seria resultado de ampla luta social e jurídica, a

realidade apontava para a continuidade da tortura sobre criminosos comuns. A

justificativa para essa continuidade estaria no fato de que a tortura no Brasil teria

uma base de sustentação em ideias que são historicamente disseminadas pelos

circuitos de informação, que perceberiam a tortura enquanto uma prática aceitável

quando utilizada para o combate ao criminoso, que representaria o mal social.

Assim, os excessos seriam justificados através da noção de que a criminalidade

deve ser enfrentada com um combate exaustivo e enérgico. De acordo com as

autoras:

Enfim, a tortura continua a ser utilizada de maneira sistemática pela polícia em todo o país e durante todas as fases de detenção do indivíduo: das detenções provisórias à pena de prisão, passando pelas instituições para jovens. Em todos esses casos o alvo é claramente o criminoso comum, o que compreende de grosso modo os pobres, os negros e aqueles que cometeram crimes menos graves. 207

Portanto, os relatos levados ao plantão do CDDHO evidenciam o temor que

os moradores sentiam das rondas policiais. Trazem evidências das imagens de

repressão, das prisões de criminosos comuns nos bairros, à luz do dia, das trocas

de tiros noturnas, das caminhonetes pretas que levavam para a prisão, das cores

vermelha e preta do Tático Móvel, da ação aguda da ROTA, dos enquadramentos

noturnos e das invasões repentinas a barracos.

A documentação traz aspectos contidos nos discursos proferidos pelos que

habitavam os locais periféricos da cidade e que foram ao Centro de Direitos

Humanos para reclamar das ações do poder Público. Essas falas deixam evidências

da imagem da Polícia e de outros agentes do Estado, que circulavam pelo espaço

periférico da cidade.

Os militantes percebiam os agentes da burocracia do Estado como

fomentadores da violência, desrespeitadores dos direitos dos cidadãos pobres e da

Constituição.

Em maio de 1980 o metalúrgico Alcides procurou o CDDHO com o auxílio do

Padre João, vigário da paróquia de Helena Maria. Relatou que havia sido abordado

por policiais da Tático-Móvel quando ia para o trabalho por volta das 20:40 horas.

Estava a cerca de 100 metros de sua casa e portava uma pasta com documentos.

207

CARDIA & ASTOLFI, página 450, 2009.

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Um morador do bairro, com o qual possuía desavenças, começou a chamá-lo de

bandido, desordeiro e vagabundo. Policiais que estavam em uma viatura ouviram as

ofensas e realizaram um procedimento de averiguação e revista de Alcides.

Segundo a ficha de descrição do caso, os policiais agiram com truculência e levaram

Alcides para a delegacia. Ele era acusado por um casal de inquilinos, que se

posicionaram próximos da viatura.

Sr. Alcides foi jogado no chiqueirinho da viatura e conduzido a delegacia, onde foi liberado depois de ser lavrado o boletim de ocorrência. 208

Sua inquilina fez um boletim de ocorrência de suposta agressão e afirmou em

depoimento que Alcides havia tentado seduzi-la, mas todos foram liberados pela

contradição na fala da acusadora e pela ausência de provas.

Após ser liberado Alcides procurou ajuda na comunidade de Jardim Imperial,

sendo aconselhado a procurar o CDDHO.

A comunidade redigiu uma carta com os apontamentos sobre a ilegalidade da

ação que havia ocorrido:

A prisão Ilegal: a) Não tinha nenhuma ordem de prisão por escrito. b) A prisão foi baseada em denúncias falsas. c) A efetivação da prisão se deu a noite, quando o senhor Alcides ia para o trabalho. d) Preso quando portava todos os documentos que o identificavam. 209

Este caso evidencia a ação da comunidade, organizando-se para a defesa de

um morador, que considerava ter sido acusado injustamente. Para a defesa o

CDDHO orientou os moradores, que realizaram uma lista dos pontos de ilegalidade

no procedimento. Este processo foi finalizado com uma denúncia pública que

contava com a assinatura de membros da comunidade. Este documento foi enviado

pelo CDDHO para jornais da região: “Cida (plantonista), enviou uma carta denúncia aos

jornais O São Paulo, A região, Diário de Osasco e Grande Osasco.” 210

O Jornal “Diário de Osasco” publicou a integra da carta na edição de 20 de

maio de 1980, na seção de cartas à edição. O Jornal “O São Paulo” publicou o relato

sobre o fato na edição de 23 de junho de 1980, na página 9. O Jornal “O Grande

208

Cf. Ficha de caso, 1980. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 18. 209

Cf. Carta da comunidade de Helena Maria para as autoridades públicas, 1980. Fundo do CDDHO-CEDIC,

caixa 18. 210

Cf. Ficha de caso, 1980. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 18.

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Osasco” publicou uma nota sobre o caso na edição de 25 de maio de 1980, com o

Titulo “O Centro de Defesa repudia prisão” 211.

Após as publicações na imprensa o delegado de plantão respondeu ao jornal

“O grande Osasco”, fato que foi registrado pelo CDDHO:

O delegado de plantão sexta-feira ultima, Adalberto Alcântara Lima, classificou o caso como de rotina. – Não houve prisão ilegal, afirmou, o que aconteceu foi uma detenção para averiguação, o que pode existir mesmo que o indivíduo esteja portando os documentos. 212

O delegado classificou o boletim de ocorrência como desinteligente, já que o

caso não necessitaria de BO, pois se resolveu em diálogo com o delegado.

Os trabalhos que o CDDHO desenvolveu no atendimento das ocorrências que

chegaram ao seu plantão possibilitaram a percepção dos aspectos da violência

praticada pela burocracia do Estado autocrático. Para fazer frente a essa realidade a

entidade passou a se valer de sua influencia nos círculos católicos da região e

buscou erigir projetos cujos objetivos se voltavam para ensinar as comunidades

sobre os significados da resistência com base nos direitos humanos e para a

divulgação dos abusos e crimes cometidos pelos agentes do Estado. Esses

trabalhos seriam difundidos junto de setores da sociedade civil, como grupos de

operários, ativistas das CEBs e padres alinhados à corrente progressista da igreja

católica. A partir desses trabalhos a entidade se transformava em um núcleo de

resistência cuja práxis emponderava coletivos comunitários, ao oferecer uma

possibilidade de enfrentamento às diferentes formas de violência existentes.

Dada a dificuldade no combate aos abusos e agressões praticadas pelos

agentes do Estado, o centro passava a se organizar para promover denúncias

públicas sobre as transgressões que identificava em seu trabalho de plantão. Esses

projetos tinham a pretensão de fazer frente à institucionalização da violência contra

os pobres.

2.3 - Denúncia da violência policial

A partir da experiência acumulada pelos trabalhos de plantão, o CDDHO

consolidou em 1980 um documento intitulado “Precisamos denunciar a violência

crescente contra os pobres”. Tratava-se de um dossiê com análises e recortes de

211

O Jornal “O Grande Osasco” publicou uma nota do fato na edição de 25 de maio de 1980. 212

Cf. Registro do CDDHO sobre publicação na imprensa, 1980. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 18.

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jornais que apresentavam aspectos da violência praticada na região de Osasco, com

reportagens sobre a violência policial e abuso de poder.

Para a construção do documento foram utilizadas reportagens dos jornais

Folha de São Paulo, Jornal da República, Jornal da Tarde, A região, Diário da Noite,

Jornal da Tarde e a Revista Isto É.

O dossiê trazia um recorte meticuloso de reportagens de diversos veículos de

comunicação que apresentavam os assassinatos ocorridos em diversas cidades

brasileiras e que acabavam por ter como pano de fundo a ação de grupos

paramilitares que estavam envolvidos com a estrutura das instituições policiais.

Isso não é apenas um terrorismo publicitário planejado para afastar os delinquentes conhecidos pela polícia. Trata-se mesmo de matanças, postas em prática fria e monstruosamente conforme noticiam abertamente os grandes jornais destes estados. 213

No dossiê o CDDHO apresentava a sua percepção sobre a violência urbana

que presenciava em Osasco. A entidade entendia que a pena de morte ocorria

livremente na região de Osasco através da ação da ROTA, que julgava e matava

aqueles que considerava culpados. O centro denunciava ainda outros crimes, que

de acordo com sua percepção, eram práticas comuns no trabalho dos policiais:

A situação é mais grave pela generalização dos delitos cometidos pela polícia, tais como invasão de domicílio, prisões por falta de documentos ou simplesmente falta de carteira de trabalho assinada, blitz onde realizam prisões em massa na grande maioria de inocentes, agressões e espancamentos a torto e direito, recolhimento de dinheiro que não é devolvido, encarceramento por dias ou semanas de pessoas não identificadas ou identificadas erroneamente. 214

Na visão do CDDHO havia sido erigida uma campanha contra a violência

urbana a partir do Estado, com o apoio dos grandes veículos de comunicação. Esta

campanha teria como desdobramento fazer com que a população aceitasse a

violência policial com a perspectiva de que ela era uma ação necessária para conter

a violência cotidiana, um instrumento para a redução da criminalidade a “níveis

aceitáveis”. Para o centro tratava-se de uma tentativa de legitimar a atuação dos

esquadrões da morte:

Esta institucionalização do esquadrão da morte de fato realizou-se. A campanha iniciou-se com reportagens apresentando os casos de

213

Cf. DOSSIE do CDDHO: Precisamos denunciar a violência crescente contra os pobres, 1980. Fundo do

CDDHO-CEDIC, caixa 18, et. seq. 214

Idem.

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violência, principalmente nos assaltos; numa segunda etapa apresentou documentários que estimulam a população a realizar linchamentos, isso intercalado com entrevistas de autoridades ou especialistas, boa parte destes favoráveis ao aumento do rigor repressivo; e ainda as famosas entrevistas de rua, com a população levada à responder perguntas formuladas de maneira à tal induzirem a resposta desejada. 215

O CDDHO relacionava a violência urbana ao modo de vida da população, à

sua miséria, fome e exploração. As causas da criminalidade estariam, portanto, nos

altos índices do custo de vida, no baixo rendimento dos trabalhadores, na inflação e

nos erros do governo, que faziam crescer a inflação e a dívida externa.

Não se trata apenas de institucionalizar a violência, pois esta, como estratégia de dominação, assim já está há muito, o que pretendem é reorganiza-la, intensificando-a. Quando ser cidadão é ser suspeito de algum crime, justificando-se aí a violação de qualquer dos direitos da cidadania, constata-se então que na verdade, procura-se controlar com mais violência a violência dos dominados que ameaça os ricos quando a ordem social existente não sustenta com segurança um modo de ser de exploração e miséria. 216

O centro relacionava a ação dos grupos de extermínio com a perseguição

histórica aos pobres, aspecto da ideologia histórica das instituições policiais.

Regina Célia Pedroso (2005) elucida o funcionamento dessa ideologia nas

ações da polícia. No seu entendimento, em sua formação a polícia tinha a função de

garantir a segurança pública e a ordem interna a partir da proteção da propriedade

privada e do controle social sobre os pobres. Ao longo da história das funções

atribuídas para a polícia, desde meados do século XIX, o uso da força foi legitimado

quando utilizado em sujeitos que fossem classificados como perigosos pelos grupos

hegemônicos, controladores do Estado. A ideologia policial estaria, portanto, imersa

na manutenção da vigilância e no combate sobre aqueles que fossem considerados

ameaça à sociedade.

A mentalidade autoritária no Brasil teve como pressupostos básicos o modelo jurídico, o poder centralizado e elitizado e a organização das forças policiais que se incumbiram de perseguir as camadas sociais desprivilegiadas. Ordem pública e segurança interna encontram-se na raiz da construção ideológica do estado. 217

215

Idem. 216

Idem. 217

PEDROSO, página 49, 2005.

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A polícia teria assim, o papel de garantir a ordem pública e a propriedade

privada assegurando que os despossuídos estariam dentro dos limites estabelecidos

pelos interesses dos proprietários. Este processo estaria marcado pelo discurso de

proteção do Estado, e posteriormente da nação, conforme analisa:

O discurso é apaziguador e o fingimento faz parte da dinâmica e a exclusão social: os perseguidos são os fracos, despossuídos e julgados socialmente como débeis. São os despossuídos sociais os alvos preferenciais que dão suporte para a construção do universo da ordem pública. 218

O crime estaria associado à perspectiva da ordem/desordem e caberia à

polícia combater o que fosse indesejado. Assim, ela representaria uma estrutura de

controle e repressão, embasada na regulamentação de leis, sobre a raiz do Direito

de Estado, que legitima o uso da força. Sob esta perspectiva a polícia atuaria

enquanto olhar vigilante, especializado, capaz de garantir a sociabilidade pela força,

ao passo em que persegue e aprisiona o criminoso, percebido por esta instituição

como ameaçador das instituições e do bom ordenamento social.

O CDDHO, tal qual o método difundido para a Ação Católica, que preconizava

o “ver, julgar e agir”, buscava encontrar respostas que explicassem a extrema

violência praticada sobre a população subalterna da região de Osasco.

A partir do seu trabalho o Centro passou a compreender a polícia enquanto

uma instituição que agia com truculência e violência sobre os pobres dado o papel

que ocupava na sociedade e no sistema produtivo. Pela perspectiva histórica

construída, entendia que a violência tinha como fundamento a compreensão de que

os despossuídos eram ameaça para a sociedade.

Precisamos, portanto denunciar o mais amplamente possível esta investida que é, em ultima instancia, mais violência dos exploradores sobre a população pobre. 219

Com esses entendimentos, amostras de recortes de jornais eram anexadas

contendo matérias sobre a violência policial e as práticas cometidas contra a

população pobre. Junto das matérias eram produzidos textos que analisavam

aspectos da violência identificada pelos trabalhos do plantão. Esses materiais eram

compartilhados com entidades e comunidades da cidade.

218

Ibid., página 46. 219

Cf. DOSSIE do CDDHO: Precisamos denunciar a violência crescente contra os pobres, 1980. Fundo do

CDDHO-CEDIC, caixa 18.

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A partir da identificação da necessidade de divulgação da luta pelos direitos

humanos o CDDHO bancou uma campanha pelos direitos na cidade de Osasco.

Entre as ações promovidas foi consolidada a construção de um jornal da entidade,

que foi formado para apresentar o conjunto das ações desenvolvidas, com a

divulgação de informes e atividades e as denúncias que se fizessem necessárias,

conforme apresentava o editorial da primeira edição:

O Objetivo desse boletim é informar e esclarecer aos sócios, comunidades e companheiros em geral, sobre a situação do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco, e, sobretudo servir de intercambio entre as diversas lutas desenvolvidas em nossa região. 220

O primeiro número foi finalizado no salão da matriz de Osasco. A proposta

abrangia a confecção de um pequeno boletim, todavia, a ideia inicial foi alargada e o

jornal passou a ser identificado como um veículo de divulgação das lutas populares

de toda a região. As pautas eram construídas pela equipe do CDDHO em parceria

com membros das comunidades, que traziam ideias sobre matérias e demandas que

fundamentariam os textos.

O jornal foi denominado de “Passo-a-Passo”, sua primeira edição foi

publicada em março de 1982 e a última em junho de 1984, totalizando dez edições

impressas. Era comercializado pelo CDDHO e distribuído para contribuintes e

membros da entidade. As primeiras edições custavam 50 CR$, enquanto as últimas

custavam em média 100 CR$.

O jornal Passo-a-Passo foi criado para ser a voz dos perseguidos e das lutas

pelos direitos humanos. Consolidou-se como um veículo onde o CDDHO expressava

suas opiniões e ideias sobre variados aspectos da luta que desenvolvia. Era um

espaço de promoção da luta pelos direitos humanos em toda a região, com ênfase

para as violações identificadas pelo CDDHO em seu trabalho de plantão e com

relação às ações desenvolvidas junto das comunidades. Apresentava matérias com

a análise do contexto vivenciado em nível local e nacional, com a publicação de

artigos sobre a luta de outros movimentos atuantes na área dos direitos humanos.

Neste espaço o CDDHO trazia informações sobre o cotidiano da entidade,

denúncias, organizações comunitárias, divulgação de trabalhos e projetos

desenvolvidos.

220

Cf. Nota Primeira Edição do Jornal Passo-a-Passo, Março de 1982, Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 21.

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É um jornal feito a partir da prática diária dos DH, na tentativa de ser um elo de troca de experiências e aprofundamento nos temas que interessam de fato aos movimentos e pessoas, que querem e lutam por uma transformação efetiva da nossa sociedade. Por isto, é um instrumento preciso exatamente no sentido de integração entre o CDDH-Osasco e todos os que se emprenham nessa tarefa (...). Mas não somente a denúncia: é também o chamamento à concretização desse ideal, que somente juntos e organizados nossos trabalhos podem se realizar. 221

Em seu jornal o CDDHO defendia o fim da violência urbana. Acusava os

meios de comunicação e o Estado de incentivar práticas de violência entre os

cidadãos. Era contrário ao aparelhamento da polícia e defendia o uso desses

recursos em programas sociais. Via que a expansão do aparelho policial nas

periferias traria como resultado a ampliação das agressões e a morte de pessoas.

Nossa luta é pela dignidade da pessoa humana, é para que seus

direitos sejam respeitados. Reconhecemos que a criminalidade e a

violência estão aumentando, porém, defendemos que devem ser

atacadas as causas de tudo isso. Não é armando e equipando mais

a polícia que o problema será resolvido. A matança pode ser maior. 222

Através de sua interpretação da Declaração Universal dos Direitos Humanos

o CDDHO defendia que a atuação das instituições policiais atentava contra os

direitos da pessoa humana, uma vez que os agentes de segurança operavam de

forma arbitrária, sem embasamento na constituição.

O artigo 3º da declaração universal dos Direitos Humanos diz que

“Todo Homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”

estamos certos disso. Porém, segurança não é ter polícia na rua,

sobretudo quando esta age fora da lei, de forma arbitrária e

discriminatória. Segurança, liberdade, vida, é ter comida, casa,

escola, saúde, trabalho, oportunidades. 223

O CDDHO utilizava os espaços do jornal para fazer denúncias sobre

agressões que identificava na região. Entre as denúncias realizadas, a entidade

acompanhou o trabalho dos vendedores ambulantes dos trens da empresa

FEPASA. Verificou que a empresa havia instalado uma politica de repressão para

todos os que comercializassem mercadorias nas dependências dos vagões. O

CDDHO justificava o subemprego como um das características da realidade 221

Cf. Relatório de reinicio da impressão do Jornal Passo-a-Passo, Fundo do Fundo CDDHO-CEDIC, caixa 13. 222

Cf. Jornal Passo-a-passo, edição nº 6, página 3, novembro de 1983, Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 9. 223

Ibid., página 4.

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econômica do país, que privava os mais pobres do direito de trabalhar e obrigava as

crianças a auxiliar nas despesas da casa com trabalhos informais degradantes. As

crianças pegas comercializando mercadorias eram encaminhadas para a FEBEM.

Os adultos eram multados em 4700,00 Cr$. No cotidiano do trabalho dos

vendedores informais a violência era uma realidade comum, como apontava a

entrevista com um menor que comercializava doces nos vagões da linha que ligava

a região oeste da área metropolitana com a capital, conforme entrevista publicada

no jornal Passo-a-Passo em 1983.

Esses dias os agentes me pegaram perto da plataforma e me deram

um monte de tapa na cabeça. Me levaram xingando lá pra cima, pro

escritório. Depois me levaram para a Febem de São Roque. Lá no

portão, eu consegui escapar, corri, corri, fiquei andando por aí...

Passei um dia fora de casa na rua. Minha Mãe queria falar com os

homens. Mas eu disse pra ela que não adiantava de nada. 224

Em outras circunstâncias o CDDHO utilizava o espaço do jornal para acusar a

ação policial na cidade. Em sua 10ª edição apresentou o caso ocorrido no colégio

EEPG Luiz Lustosa da Silva, do bairro Jardim Baronesa. De acordo com a

reportagem a direção solicitou apoio da policia militar, que enviou uma viatura até o

colégio. Os estudantes foram revistados na entrada da escola. Um dos menores, de

13 anos, protestou contra a violência e foi agredido por três policiais, que o levaram

até a delegacia. Uma hora depois o pai foi buscá-lo e ouviu a explicação de que

havia ocorrido um mal entendido. O fato foi relatado no jornal do Centro que divulgou

a agressão cometida pelos agentes na unidade escolar:

Os estudantes não se calaram e buscaram o apoio do CDDHO, onde

algumas providencias já foram tomadas, entre elas o

encaminhamento de uma representação contra os policiais, que

deverão ser processados criminalmente pelo abuso de autoridade

que praticaram. 225

Em novembro de 1983 o jornal divulgou a realização de um tribunal popular,

que havia sido organizado na igreja Matriz para discutir e avaliar atos de violência

policial. Além dos técnicos dos centros de direitos humanos, as comunidades foram

convidadas, e seriam responsáveis por avaliar os diferentes casos de transgressão.

O evento contou com a participação de cerca de 500 pessoas.

224

Idem. 225

Cf. Jornal passo-a-passo edição nº 10, página 2, novembro de 1984, Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 9.

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120

O jornal, ao relatar o encontro, posicionou-se contra a ação das instituições

policiais na cidade através da fala de Luiz Eduardo Greenhalgh, participante do

evento. Esta ação questionava as práticas ilegais de membros da policia, que

atuavam de modo violento, e a própria instituição policial por aceitar as violações

dos direitos previstos na constituição e nas convenções internacionais:

Nós não estamos pedindo a extinção da polícia, os Estados

capitalistas e socialistas tem polícia, estamos questionando se a

polícia age dentro da lei. [...] A polícia se transformou em mais uma

associação de delinquentes, somos a favor de existir a polícia, mas

na lei ela não pode fazer justiça com as próprias mãos. 226

Além do jornal passo-a-passo, o CDDHO buscou divulgar as ações de

violência policial para as comunidades através de uma cartilha denominada de

“Manual de Informação e reflexão sobre a Violência Policial”. Redigido e desenhado

a mão e copiado com uso do mimeografo. Tratava-se de um pequeno manual de 25

páginas que contava com textos simples e imagens ilustrativas sobre aspectos da

luta pelos direitos humanos. Todos os textos eram seguidos de leis nacionais e

trechos da carta de direitos humanos da ONU.

Com esse material o centro buscava informar e conscientizar o povo sobre os

direitos que possuíam com o objetivo de combater a violência institucional da polícia.

O texto do material trazia a apresentação da luta construída pelo CDDHO e

finalizava com uma reflexão: O que você e sua comunidade, acham do alto índice da

criminalidade e da violência policial? 227.

As páginas que seguiam apresentavam as características das transgressões

identificadas pelo centro. A mensagem era passada através de diálogos entre

personagens com nomes populares. O primeiro tópico abrangia a questão das

prisões ilegais, onde era apresentado o diálogo:

Ah Leonor, meu marido foi preso ontem porque estava sem

documento bebendo uma cerveja no bar do seu João. E isso foi logo

que chegou do trabalho. Não sei o que eu faço. 228

Outro personagem respondia:

Assim não dá, mais um no bairro, é a tal da operação arrastão, eles

vão pegando todo mundo, nem querem saber se é trabalhador.

Levam por simples suspeita. 229

226

Cf. Jornal passo-a-passo edição nº 6, página 3, novembro de 1983, Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 9. 227

Cf. Manual de Violência Policial, Fundo do CDDHO-CEDIC, Caixa 05, et seq. 228

Idem. 229

Idem.

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121

Após o diálogo seguia uma proposta de reflexão ao leitor: “Você tomou

conhecimento de algum tipo de prisão ilegal? O que foi feito?” 230.

A página seguinte tratava de um recorte de texto oriundo da constituição

Brasileira:

Ninguém será preso senão em flagrante de delito ou por ordem

escrita da autoridade competente. A lei disporá sobre a prestação de

fiança. A prisão ou detenção de qualquer pessoa será imediatamente

comunicada ao juiz competente, que a relaxará se não for ilegal.

(artigo 153 S12). 231

Após a constituição o texto seguia com um poema oriundo do artigo 11 da

declaração dos direitos humanos da ONU:

Qualquer pessoa acusada

se tenha por inocente

até que fique provado que é culpada realmente,

num público julgamento,

feito de modo legal,

em que tenha garantida

uma defesa real [...]. 232

O material deixava as análises longas, características da entidade, em vista

de oferecer textos simples e imagens com diálogos. Com esses elementos foram

construídas montagens que levavam os leitores à reflexão final proposta sobre o

tema.

As páginas seguintes tratavam da questão da prisão de menores. O diálogo

começava com uma situação comum ao trabalho do CDDHO: “Meu sobrinho está

preso a mais de 4 dias, e a agente não consegue vê-lo. Ele só tem 16 anos” 233.

E continuava: “Nem sabemos o que ele está passando dentro daquelas celas

pequenas e superlotadas, sem tratamento especial para a sua idade” 234.

Um dos personagens respondia: “o Sr. Já foi no fórum falar com o juiz de

menores?” 235.

230

Idem. 231

Idem. 232

Idem. 233

Idem. 234

Idem. 235

Idem.

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122

Conforme demonstrado, estes diálogos apresentam diversas características

conhecidas pelo trabalho de plantão da entidade. A ele seguia-se uma análise do código de

menores da lei nº 6696 de 10/10/1979:

Art. 99 – O menor de 18 anos, a que se atribua a infração penal, será,

desde logo, encaminhado a autoridade judiciária.

S 2º Sendo impossível a apresentação imediata, a autoridade policial

encaminhará o menor a repartição policial especializada ou a

estabelecimento de assistência, que apresentará o menor a autoridade

judiciária no prazo de 24 horas. 236

E prosseguia com o artigo 3 da declaração dos direitos humanos da ONU:

“todo homem tem direito de viver, mesmo a criança, de ter vida garantida, liberdade e

segurança” 237.

O tópico era encerrado com uma reflexão sobre as causas para a

marginalização do menor, como o abandono e a ausência de oportunidades.

Outros assuntos foram tratados no manual de violência policial do CDDHO. O

documento discutia a questão da invasão domiciliar, sobretudo com relação à

invasão da polícia em busca de suspeitos: “Pela lei é totalmente vedada a entrada da

polícia em domicílios, se não em casos especiais acompanhados de mandato judicial” 238.

Tratava ainda do tema da tortura, afirmando que esta era uma prática da ação

policial que mais atentava contra os direitos da pessoa humana. O trecho trazia uma

sátira sobre a prática de tortura que era realizada sobre os pobres, uma mensagem

construída sobre os entendimentos provenientes da experiência do centro. No

diálogo final um personagem que trazia marcas de curativos dizia: “E eles me

bateram tanto, só para eu confessar onde havia roubado o meu carrinho de

pedreiro” 239.

Esta clara indicação, revela a reflexão que o CDDHO pretendia disseminar

para os sujeitos: a violência policial era uma prática difundida sobre os pobres.

Os últimos itens do documento apresentam indicações para a comunidade

sobre formas de agir com relação à violência policial, da qual o CDDHO orientava:

Anotar hora e dia;

Anotar o número da viatura;

Anotar o número da chapa;

Anotar a cor do carro;

Anotar o modelo do carro;

236

Idem. 237

Idem. 238

Idem. 239

Idem.

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Imediatamente avisar os familiares e o centro de Defesa dos direitos

humanos de Osasco. 240

Na sequencia eram listadas as delegacias e seccionais da cidade com a

indicação de onde os familiares deveriam procurar os parentes detidos pela polícia.

Com esse material o CDDHO objetivava que as famílias ficassem a favor da

pauta pelos direitos humanos. Buscava compartilhar a mensagem de que a violência

policial deveria se discutida nos bairros e paróquias da cidade, por se tratar de uma

ação ilegal que impedia a segurança das pessoas.

O Objetivo deste manual não é simplesmente criticar a ação policial,

mas sim mostrar que esta ação deve ser de proteção e não de

opressão. Levando as pessoas a verem e discutirem que o problema

de segurança não se resolve com a mudança do sistema policial, e

sim na mudança da estrutura, social econômica e política de nosso

país. Por isso propomos discussões nos bairros tendo como primeiro

tema a Violência Policial. 241

Os dossiês, o Jornal Passo-a-Passo e o manual de violência policial eram

divulgados para coletivos e entidades da região. Junto à produção desses

documentos o CDDHO se uniu a outros coletivos na elaboração de propostas para

agir contra as agressões e crimes policiais.

A entidade buscou estabelecer espaços de discussão do material e fez uso de

sua relação com projetos pastorais para utilizar a estrutura católica como forma de

disseminar as informações.

Em fevereiro de 1981 o Centro de Direitos Humanos convocou uma reunião

na igreja Matriz de Osasco com caráter de assembleia, para discutir a violência em

Osasco. Participaram do encontro a Pastoral de Direitos Humanos, a Associação de

Defesa do Cidadão, a Frente Nacional do Trabalho, e sujeitos oriundos das

comunidades dos bairros de KM 18, Vila Yolanda, Jardim Tereza, Helena Maria,

Bom Pastor, Quitaúna, Jardim Veloso, Munhoz, Vila Analândia (Jandira), Santo

Amaro (Barueri), São Paulo da Cruz, Bel Jardim, Jardim Cipava e a federação das

sociedades de amigos dos bairros de Osasco.

Os participantes reclamavam do fechamento do Centro de Vivência do

Munhoz, que havia se consolidado como um local de encontro e organização de

coletivos do bairro, em especial das Mães do local.

240

Idem. 241

Idem.

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124

A reunião foi coordenada pelo advogado Albertino Gomes, teve inicio com a

fala de Padre Domingos Barbé, que apresentou seu relato sobre as formas de

violência presenciadas no bairro, como o assassinato de jovens delituosos e outras

formas de violência praticadas por policiais, que eram apresentadas ao CDDHO

através de solicitações recebidas pelo plantão da entidade. De acordo com suas

informações no mês de dezembro de 1980 haviam ocorrido nove assassinatos no

bairro Jardim Helena Maria, onde residia. Ele analisou a estrutura de trabalho do

CDDHO e da Pastoral de Direitos Humanos com relação ao trabalho de apoio às

vítimas de violência.

Uma das participantes do encontro, a líder comunitária Sônia Rainho

questionou sobre a dificuldade de realização de um trabalho no bairro, sobretudo

com relação aos moradores que apoiavam a violência praticada contra pessoas que

cometiam crimes. Ela afirmava que os policiais cometiam assassinatos e que

estimulavam o conflito entre grupos de criminosos para o extermínio de pessoas de

interesse da corporação.

Na continuidade da reunião, padre Agostinho fez uma fala sobre a relação

dos presos com a polícia. Os presos saberiam das ações da polícia e conheceriam

os nomes dos agentes que cometiam infrações na cidade. Ele relatou os constantes

tiroteios no bairro e o medo que os moradores sentiam de frequentar as

associações. De acordo com sua análise: “Realmente temos que estar cientes de

que existe um plano para a violência da polícia” 242.

Em sua visão os jornais não cobriam todas as mortes para evitar que a

população tomasse conhecimento dos crimes cometidos. Esse quadro seria o

reflexo do aumento da violência urbana e policial na cidade, que estaria alargando

com o crescimento da população, sobretudo nos bairros mais pobres.

Outros participantes destacaram a violência em seus bairros e apresentaram

casos sobre o desemprego, a miséria e assassinatos que se supunha praticados

pela polícia. O advogado Albertino Souza Oliva destacou a necessidade de

organização popular e a tomada de consciência sobre a realidade enfrentada em

toda a cidade. Afirmou que a população era incentivada a se afastar dos problemas

gerais, sendo necessário o conhecimento e o enfrentamento desses problemas.

242

Cf. Relatório do CDDHO sobre a reunião contra a violência em Osasco, fevereiro de 1981. Fundo do

CDDHO-CEDIC, Caixa 17.

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As conclusões provenientes do dialogo entre os coletivos previam a

organização de assembleias populares para a discussão de temas de interesse da

população. Considerava-se que a polícia militar não era preparada e que

representava a repressão ao povo, estando tomada pela corrupção. Alguns

participantes afirmavam que a violência partia do marginal, sendo necessária a

atuação e o combate por parte das instituições, mas que estas deveriam agir “dentro

da lei”.

Para concluir o encontro foram votadas medidas e propostas que seriam

encaminhadas pelos coletivos. Entre as medidas foram aprovadas:

1 – A formação de mulheres para trabalhar e entrar em contato com os marginais; 2 - Dialogar com marginal, lembrando que ele é uma vítima da sociedade, formar grupos de contato. 3 – Planejar uma assembleia popular saindo das comunidades, com algumas reivindicações:

A) 100 vagas nas firmas de Osasco, para jovens dos bairros; B) Controle pedagógico nos jovens de idade de serviço militar; C) Psicologia para crianças pobres; D) Exigir cursos que preparem psicologicamente os policiais; E) Que as comunidades façam uma reunião em seu bairro, para discutir

as causas das violências e como combate-la; 4 – Tentar sensibilizar outras pessoas (entidades) a virem na próxima reunião; 5 – Preparar as pessoas que irão trabalhar com os marginais (nos bairros) a fim de levar conscientização para eles. 6 – Centro de Defesa e a Pastoral dos Direitos Humanos, fazer levantamento das mortes, da violência – isso para mostrar as provas; 7 – Cursos profissionalizantes; 8 – Que as comunidades incentivem a formação de grupos dispostos a trabalhar com marginais; 9 – Que as comunidades abram as portas para os trombadinhas; 10 Descobrir que está passando droga; 11 – Formação, conscientização do povo todo em relação a violência; 12 – Fazer trabalho com os jovens que estão na idade de prestarem serviço militar; 13 – Marcar reunião com todas as entidades, inclusive as que faltaram para amadurecer tudo que foi levantado hoje; 14 – Que se divulgue o trabalho com os menores de rua e incremente os trabalhos com menores; 15 – Formação de grupos que trabalham dentro das escolas, na formação dos professores, pais e alunos [...] 243

Essas reuniões e discussões com membros das comunidades trouxeram uma

prática de trabalho que completaria a ação do CDDHO. As dificuldades de ação pela

243

Idem.

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126

estrutura jurídica e a divulgação da violência policial e urbana pela imprensa levaram

o CDDHO a criar um projeto mais amplo, que visava à formação na área dos direitos

humanos. Após os primeiros anos de atuação o centro ampliaria o trabalho

comunitário, que se dava de modo paralelo e conectado às ações de seu plantão.

Em sua análise sobre os documentos provenientes das entidades de Direitos

Humanos participantes do MNDDH, Juliana Carvalhal (2007) percebeu que os

centros buscaram desenvolver a luta pelos Direitos Humanos a partir do

levantamento das transgressões dos direitos, do atendimento jurídico e da

propagação de denúncias. Todavia, concluiu que os CDDHs expandiram tais ações

ao formularem princípios de luta com base no cotidiano do trabalho desenvolvido e

na experiência de organização das ações, que se voltava para a educação das

bases e a formação de quadros populares espalhados pelos bairros pobres das

cidades.

As formas de ação utilizadas pelas associações de defesa da pessoa humana demonstram, por um lado, intima relação com os objetivos traçados pela Comissão Brasileira Justiça e Paz. Como dito anteriormente, estes núcleos de defesa dos direitos humanos, tal como idealizados pela CJP/BR, tinham como metas principais o levantamento dos casos e a realização de denuncias. Os documentos analisados indicam, por outro lado, que estas finalidades foram extrapoladas pela prática adotada pelos organismos. De modo que, além do levantamento dos incidentes de violação dos direitos humanos, estes organismos partiram para a veiculação das denuncias e para a educação e organização popular. 244

Sobre estes aspectos Carlos Alberto se recorda das perspectivas buscadas

pelo projeto comunitário desenvolvido pelo CDDHO:

Primeiro a gente conversava com a comunidade, explicando quais

eram as raízes dessa violência; era uma violência do Estado uma

violência repressiva que iniciou lá com outros movimentos sociais e

populares e depois virou uma violência completamente direcionada

aos pobres e que a policia não respeitava os direitos mínimos dos

cidadãos; batia, agredia, torturava, inclusive para crimes comuns. A

historia da violência da policia começa com a repressão do golpe e

se espraia durante toda a década de 70 até hoje, até hoje mesmo,

apesar de todos esses avanços a gente vê por aí, truculência da

policia, e naquele tempo então que não havia controle nenhum, as

corregedorias ainda estavam iniciando e alguns nem tinham

corregedorias e a violência era incentivada pelos meios de

comunicação como se fosse um combate a violência e quem sofria

eram os pobres, principalmente os jovens. Dai o que a gente fazia? A

244

CARVALHAL, página 81, 2007.

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gente mobilizava a comunidade para cobrar resposta, a gente criava

uma reflexão sobre os motivos da violência, que a gente não podia

aceitar isso e isso teve reflexo grande quando a gente foi no

processo da constituinte. Então, a gente mobilizou muita gente da

comunidade para essa questão da violência, dos direitos humanos,

para que isso seja respeitado e acho que acabou tendo reflexo pra

configuração hoje de como foi a formulação da constituição. 245

O projeto comunitário do CDDHO estabeleceu uma nova abordagem para a

luta pelos direitos humanos em Osasco, buscando o auxílio das comunidades para a

transformação das estruturas sociais injustas e opressoras. O CDDHO passaria a

atuar sobre a miséria e as difíceis condições materiais experimentadas pela parcela

da população mais pobre da cidade, com as quais passou a ter um contato mais

próximo.

245

Depoimento concedido por Carlos Alberto, op. cit.

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CAPITULO 3

A FORMAÇÃO DO MOVIMENTO NOS BAIRROS

3.1 - O projeto de ação comunitária do CDDHO

A noção de direitos humanos do CDDHO não pode ser entendida como

simples apropriação dos códigos jurídicos nacionais e internacionais, como a Carta

das Nações Unidas. Deve ser pensada de acordo com os significados que foram

elaborados pelos movimentos que a edificaram, como a Comissão Arquidiocesana

de Direitos Humanos. Nesse sentido, o CDDHO constituiu entendimentos distintos

do direito liberal e alcançou uma ressignificação que partia de sua experiência

jurídica e comunitária, ou seja, da práxis proveniente de sua relação com os

subalternos.

Em Osasco, a luta pelos direitos humanos foi além da defesa jurídica

estabelecida pelas ações de seu plantão. O contexto de formação do movimento foi

alargado com a atuação comunitária nos bairros, onde foram estabelecidas

diferentes práticas junto das comunidades. Estas ações integraram um cenário de

popularização da luta pelos direitos e de transformação dos significados atribuídos

para a sua defesa.

Em 1978 o CDDHO construiu um projeto de atuação junto às CEBs baseado

no treinamento de lideranças e na perspectiva de ampliar a discussão sobre os

direitos humanos através do trabalho de militantes das comunidades e das pastorais

sociais. Com esse propósito foram construídas ações que visavam à aproximação

com os coletivos de bairro. O CDDHO esperava alcançar dois objetivos com estes

trabalhos: a ampliação da temática dos direitos nas reivindicações comunitárias e a

formação de plantonistas de bairro, que denunciariam as violações que ocorriam em

suas comunidades para que o CDDHO pudesse dar andamento na esfera jurídica.

Com isso, o centro se integraria ao cotidiano das periferias, que atuariam junto ao

seu corpo fixo de funcionários, possibilitando a amplificação da fiscalização e da

atuação jurídica contra as transgressões aos direitos.

A entidade criou um manual com orientações para visitar as comunidades,

estabelecendo procedimentos que deveriam ser realizados na aproximação com as

CEBs. Os militantes deveriam relatar as características da comunidade, o telefone e

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endereço das lideranças. O contato deveria resultar na realização de reuniões e

assembleias, onde seriam apresentadas as características da entidade, como os

projetos desenvolvidos, o atendimento de plantão, palestras e o treinamento de

plantonistas. Com essa aproximação seriam construídos os primeiros vínculos,

relacionados ao planejamento e execução de formas mútuas de auxílio.

A partir do primeiro contato, os membros da entidade faziam visitas

periódicas para estabelecer vínculos com os bairros. Os moradores eram

convidados para reuniões na sede do CDDHO, onde seriam buscadas formas de

intercambio entre as necessidades e ações do Centro e as pautas comunitárias:

Além da violência do salário mínimo, moradia precária, alimentação insuficiente, transporte caro, falta de saúde, desemprego, insegurança, o trabalhador tem que enfrentar o problema da violência policial. Só nesse ano a polícia militar já matou 100 pessoas sob a alegação de tiroteios com bandidos. [...] E muitos desses familiares tem nos procurado para denunciar a morte de seus filhos e exigir justiça. Mas a lentidão dos inquéritos, a falta de provas, torna difícil a ação do centro de defesa. [...] Vimos junto a alguns familiares à necessidade de criar uma comissão, para analisar e fortalecer essa luta contra a violência. Por isso convidamos vocês para uma reunião no dia 01 de junho às 19:30 hs na sede do Centro de defesa [...]. 246

O CDDHO valia-se do apoio dado pela arquidiocese para dialogar com alguns

padres e grupos de leigos organizados no interior das igrejas. Assim, os militantes

incorporados quase sempre estavam ligados à área de influencia católica, sobretudo

por padres e leigos que se identificavam com os pressupostos de ação social

provenientes do cristianismo de libertação.

Nas reuniões a entidade denunciava a violência na cidade relacionando as

dificuldades diárias vividas nas periferias com a luta pelos direitos. Nestes encontros

um caso era exemplificado para os novos militantes:

Marido que abandona a mulher. Na casa não existe nada. O menino maior começou a assaltar os meninos que iam e voltavam do empório, armazém. É um menino esforçado e quer trabalhar. Encontra dificuldades de tirar carteira profissional. E se tivesse um Centro de Defesa organizado, para exigir da prefeitura municipal de Osasco para que haja mais funcionários nas repartições públicas? 247

A proposta de atuação no campo jurídico permitiu que a entidade se

sobressaísse no relacionamento com algumas CEBs exatamente por sua

246

Cf. Carta do CDDHO para entidades e imprensa de 18 de junho de 1982, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa

número 4. 247

Cf. Relatório anual de atividades do CDDHO de 1979, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa número 6.

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capacidade de oferecer uma ferramenta que não estava à disposição das classes

subalternas no período: o conhecimento e uso dos aparelhos burocráticos.

Um exemplo dessa atuação está na luta dos desempregados por transporte

gratuito, em 1983. Segundo dados levantados pelo CDDHO junto à prefeitura,

existiam em Osasco 60 mil pessoas desempregadas. Dessas, apenas 3500

possuíam passe livre nas linhas de ônibus municipais. No bairro de Jardim Veloso,

área periférica da zona sul de Osasco, consolidou-se um movimento autônomo de

desempregados, nascido a partir das comissões de moradores existentes. Através

das orientações do CDDHO e por meio da secretaria de promoção social de Osasco,

enviavam-se solicitações de passes populares, cartas, abaixo-assinados e

requerimentos diversos que reuniam o conjunto das reivindicações do movimento.

Com relação aos passes populares houve um embate com as empresas de ônibus

do município, contrárias à reivindicação:

No dia 14 de junho, de repente, cerca de 300 integrantes do Comitê de desempregados do Jardim Veloso entraram na prefeitura Municipal de Osasco com quatro reivindicações básicas: passe-desemprego; cestas de alimentos para as famílias cadastradas no comitê; 25 empregos imediatos na própria prefeitura; uma campanha de solidariedade a ser desenvolvida pelo gabinete da 1a dama em função dos desempregados. 248

A entidade defendia que o seu relacionamento com as comunidades ampliaria

a sua capacidade de enfrentamento com o poder público. Por isso, esperava

interagir com cerca de 200 coletivos comunitários em toda a região de Osasco,

número elevado, nunca alcançado em toda a sua vida social249. Embora tenha

existido um projeto de atuação comunitária amplo, até 1983 ocorreu uma

comunicação direta e efetiva com cerca de quinze CEBs, que possuíam sujeitos

ativos em projetos de outras localidades. Assim, o centro acabava por ter uma

atuação direta em pelo menos duas dezenas de bairros da região de Osasco. Entre

as comunidades se destacavam os coletivos do Jardim Padroeira II, J. Roberto,

Santo Antônio, Munhoz, Mutinga, Bel Jardim, Jd. Bussocaba, Jd. Cipava, Bela Vista,

Km 18, Vila Yolanda Baronesa, Jd. de Abril e Jd. Cipava.

248

Cf. Jornal passo-a-passo edição nº 10, agosto de 1984, página 40, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa número

12. 249

Em relatório de 1979 o CDDHO relatou a dificuldade de fazer viva a luta pelos direitos humanos “devido às

poucas comunidades engajadas na luta pela libertação”, ou seja, devido à quantidade reduzida de comunidades

de base atuantes em ações fomentadas pelo clero progressista.

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Através da aproximação de práticas fomentadas pela Pastoral de Direitos

Humanos, com a influência das propostas de Padre Agostinho, o CDDHO passou a

priorizar a formação e orientação das comunidades na área dos direitos humanos. A

formação passava a ser interpretada enquanto a possibilidade de capacitar os

militantes para que estes pudessem desenvolver autonomia na luta contra as

transgressões do Estado, de acordo com suas necessidades e prioridades.

Assim, esse treinamento será promovido em finais de semana, em locais apropriados, alugados para esse fim, com despesas de pernoite, alimentação, honorário de pessoal técnico. Serão convidados para participar das formações pessoas indicadas pelas CEBs ou escolhidas pelos diretores do CDDHO. 250

O CDDHO estruturou um programa de treinamento que conciliava o

pressuposto de formação das bases, proveniente das pastorais sociais, com

aspectos próprios que foram definidos pelo movimento. A entidade entendia que

seria necessário o estudo da legislação e dos regimentos internacionais, como a

constituição nacional e a declaração dos direitos humanos da ONU, para fazer frente

à violência policial. Esses estudos seriam conciliados com a análise da realidade

vivida pelas comunidades. Sobre os objetivos do processo de formação das CEBs a

lembrança de Carlos é elucidativa:

O intuito maior era fazer prevenção era municiar as pessoas das comunidades para que elas pudessem, elas mesmas pudessem fazer a defesa dos seus direitos. O centro não era um substituto das comunidades, a gente tentava fazer com que aquilo lá assumisse o seu papel de denunciar, de defender os direitos humanos conhecendo a constituição, conhecendo os seus direitos, conhecendo as leis, então a gente fazia cartilhas, formação, estudo, semanas de debate e nosso foco era bastante isso. 251

Os treinamentos eram divididos em nove eixos principais. O primeiro buscava

apresentar a estrutura do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco, seus

contatos, objetivos e formas de atuação. O segundo realizava um estudo da

declaração universal dos direitos humanos da ONU, com ênfase na análise dos

artigos relacionados à realidade das comunidades. O terceiro tratava da atuação das

instituições policiais nas comunidades e da violência cotidiana nos bairros da cidade.

O quarto analisava as leis trabalhistas e as transgressões aos direitos dos

trabalhadores. O quinto buscava entrar na questão sindical através de explanações

250

Cf. Jornal passo-a-passo edição nº 10, op. cit. 251

Depoimento concedido por Carlos ao pesquisador Lucas Alves de Camargo, op. cit.

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a respeito da função dos sindicatos e da realidade existente nos principais sindicatos

da região. O sétimo dialogava sobre as condições familiares, com ênfase na

alimentação, cuidado com os filhos, escola e delinquência. O oitavo abrangia

técnicas de dinâmica de grupo, com o objetivo de instruir sobre a estrutura e

organização dos coletivos; o nono e último módulo, buscava realizar um diálogo

sobre a realidade brasileira, com análises sobre a história do país e a realidade

política vivenciada no período. Este bloco final buscava apresentar as características

da classe trabalhadora e elucidar aspectos do capitalismo e do marxismo, efetivando

uma aproximação entre o cristianismo e o materialismo dialético252.

No decorrer do projeto de formação de militantes de bairros o centro entrou

em contato com pautas novas. Eram ações voltadas para a luta por moradia, contra

a violência e pela melhoria de estruturas e serviços públicos.

Após os treinamentos253 realizava-se a conexão entre o CDDHO e os bairros

em que os militantes viviam. Conforme recorda Maria Aparecida, plantonista que

participou de eventos de formação do Centro:

A atuação do Centro de Defesa era a partir das comunidades, da igreja católica. Nas igrejas católicas, nas comunidades de toda a diocese. A gente sensibilizava pessoas para lá serem plantonistas de direitos humanos lá na comunidade. Elas faziam a ponte do Centro de Defesa com a comunidade. 254

Os Plantonistas de comunidade formados pelo CDDHO colhiam denúncias,

encaminhavam casos para o atendimento do plantão, reuniam as pautas e

demandas da comunidade, ajudavam no auxilio de projetos de formação que

ocorriam no bairro.

Entre as atuações realizadas, o trabalho do plantonista de comunidade pode

ser evidenciado no levantamento de relatos dos moradores da comunidade Marisa,

em 1980, quando ocorreram tiroteios pela madrugada, próximo às residências de

algumas famílias. O plantonista andou pelos barracos entrevistando os moradores

252

Parte do material utilizado nos treinamentos era oriundo da comissão arquidiocesana de Direitos Humanos.

Com relação à violência policial os dados utilizados eram provenientes do trabalho do CDDHO, que buscava

realizar levantamentos através das denúncias e das reuniões realizadas com os coletivos de bairro. 253

Neste momento, utilizamos a noção de sujeito tal qual proposto por Luiz Eduardo W. Wanderley (2007), no

sentido de fazer referência àquele que faz a ação e a comanda. Partimos do entendimento de que as conjunturas

são fundamentais para o desdobramento da história e que a causalidade é uma força real e ativa que interage com

a experiência humana. Todavia, acreditamos que os sujeitos são os responsáveis pelo desenvolvimento das

forças históricas, uma vez que objetivam o conjunto de suas forças para a consolidação de seus pressupostos

teleológicos. Cf. WANDERLEY. Luiz Eduardo W. Democracia e Igreja Popular. São Paulo: EDUC, 2007. 254

Depoimento concedido por Maria Aparecida ao pesquisador Lucas Alves de Camargo, op. cit.

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sobre a violência da noite anterior. O documento, um caderno com anotações,

reunia informações que seriam levadas ao CDDHO:

Lúcia [...] estava acordada fazendo mamadeira e ficou muito assustada com os tiros la pelas 4 da manhã. Neuza [...] estava de saída para o trabalho quando começou os tiros, esperou cezar os tiros e viu as 4 poças de sangue. 255

Para facilitar a realização das denúncias públicas, a entidade ensinava

práticas para que os militantes extraíssem dados no interior da comunidade. O

caminho construído no relacionamento do militante de comunidade com os demais

moradores também era utilizado para propagar informações vindas do centro.

Todo caso encaminhado para atendimento na sede do CDDHO, deve

ser discutido pelo plantonista de bairro ou núcleo de direitos

humanos. 256

Assim, o centro inseria quadros populares em sua estrutura, como explicitado

no relatório anual de atividades de 1979, que definia como objetivo e filosofia do

centro:

Dentro de uma linha de Não-Violência-ativa e de firmeza permanente, formar quadros populares capazes de atender o povo. O centro a principio não atende pessoa isolada, mas a comunidade onde vive essa pessoa. Ele apoia essa comunidade, fornecendo à mesma instrumentos de ação ou de pressão para resolver o problema de seus membros, cujos direitos humanos são violados. 257

O treinamento e a incorporação de militantes católicos nas atuações

desenvolvidas pela entidade propiciaram a formação de uma luta coletiva,

embasada na perspectiva da não-violência, que se espalhava por alguns canais

populares da cidade e se transformava em um meio para que os moradores se

engajassem em processos reivindicativos.

Exemplo dessa forma de atuação ocorreu no Jardim Thereza em 1979,

quando moradores se reuniram para discutir o aumento do uso de drogas pelos

jovens e a decorrente violência cotidiana, que havia se expandido na escola do

bairro. O Centro de Defesa dos Direitos Humanos foi buscado pelo coletivo para

auxiliar na organização da comissão. Essa iniciativa começou com um número

pequeno de moradores, mas chegou a contar com a atuação de 160 pessoas. As

255

Cf. Caderno de anotações proveniente da comunidade J. Mariza, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa número 1. 256

Cf. Jornal passo-a-passo edição nº 5, página 2, outubro de 1983, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa número

12. 257

Cf. Relatório anual de atividades do CDDHO de 1979, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa número 8.

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CEBs assumiram a responsabilidade de orientar os jovens com reuniões e

campanhas que seriam difundidas na paróquia. Para evitar a circulação de drogas,

algumas pessoas se ofereceram para ficar na porta da escola durante as aulas,

enquanto outros se encarregaram de visitar as famílias, para compreender as

necessidades existentes e posteriormente contribuir com ajuda material e

religiosa258.

Através da ação que passou a desenvolver nas comunidades o Centro

incentivou a organização de comissões de moradores em diferentes locais da

cidade, que objetivavam amenizar ou resolver os problemas identificados.

Como resultado desse processo, a entidade formou núcleos de militantes

divididos em comissões comunitárias, que buscavam levar adiante as propostas de

luta por melhorias públicas e no combate à violência policial. Entre as pautas

destacadas, priorizou a consolidação de debates comunitários, com reuniões

frequentes nos bairros e a organização de atos públicos.

Exemplo desse fomento das comissões é percebido no bairro de São Paulo

da Cruz, em 1979, quando o CDDHO se articulou com a comunidade local na

formação de uma comissão de saúde, criada para reivindicar melhorias nos postos

de atendimento da região. Os moradores realizaram uma pesquisa sobre o problema

da água e verificaram que grande parte do bairro não era abastecida e não possuía

coleta de esgoto. Esse coletivo se comunicava com membros ativos do centro e

desenvolviam uma atuação conjunta.

Nesse sentido, através da campanha levaremos o povo a pensar sobre o problema da falta de água nos bairros, falta de saneamento básico, problemas esses que ocasionaram problemas de saúde. 259

As comissões faziam um intenso trabalho de divulgação de materiais

informativos. Elaboravam textos que seriam fixados nos muros das igrejas e

discutidos nos encontros. Elas se engajavam em processos reivindicativos e

buscavam o CDDHO para a formalização de reivindicações comunitárias.

O centro incentivava a constituição de reuniões e assembleias onde seus

militantes ampliariam as estratégias de diálogo com as CEBs e articulariam as

demandas comunitárias com o projeto de ação do CDDHO. Exemplo de ação pode

258

Cf. Caderno de registro de atividades, fundo do CDDHO-CEDIC, pasta 22. 259

Idem.

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ser verificado na carta de reivindicações das comunidades do Jardim Veloso e

Jardim Joelma, organizada com o apoio da entidade de direitos humanos:

Nós da comissão de Defesa dos Direitos humanos desses bairros. Convidamos vocês e seus vizinhos para participarem da 2ª assembleia popular no último domingo, dia 31/10/82 às 15:30. Nessa reunião vamos discutir os seguintes problemas: 1- Regularização dos loteamentos do J. primavera e Jardim dos Autonomistas; 2- Iluminação pública; 3- Guias e sarjetas; 4- Prolongamento da linha de ônibus da Empresa de Transportes Miresa, de Osasco a Veloso para o J. Joelma. Companheiros e companheiras? Sabemos que nossa força é nossa união e organização. Por isso sua presença é importante e indispensável. 260

Outra ação ilustrativa do trabalho conjunto entre o CDDHO e as comissões

pode ser percebida na ação da Comissão de saúde formada no bairro do Jardim

Padroeira. A partir de 1979 cerca de 20 pessoas passaram a se reunir para esboçar

um planejamento relacionado aos problemas do bairro. O projeto levado pelo centro

aos moradores estava relacionado com a convocação da comunidade para a

realização de uma assembleia, que em sua visão, legitimaria as pautas propostas

pelo coletivo ao unificar os interesses e conflitos de forma democrática.

Domingo estive em reunião com a equipe de saúde do Jardim Padroeira II, ocasião em que discutimos o encaminhamento dos trabalhos que vem sendo desenvolvidos naquele bairro com acompanhamento do CDDHO através dos plantonistas João e Cida e o DR. Takaoita. Decidimos fazer um mutirão para entregar os convites aos moradores do bairro para a assembleia do próximo dia 18 as 15 horas. 261

A entidade também buscava divulgar a organização coletiva em suas

instâncias administrativas, sobretudo no atendimento do plantão. Em maio de 1979,

o CDDHO foi procurado por um morador da comunidade de Jd. Santo Antônio, que

denunciou um suposto caso de erro médico. De acordo com seu relato um jovem

internado havia sido liberado para retornar à sua casa, sem condições clinicas para

isso. Foi deixado por uma ambulância no centro da cidade de Osasco, onde teve

que buscar um ônibus para se deslocar até a sua residência. Ao chegar ao local

passou mal e veio a falecer horas depois. Tal acontecimento despertou indignação

260

Cf. Carta de moradores dos Jardins Primavera, Autonomistas, Veloso, das Bandeiras, Joelma, Padroeira II e

Turíbio, 31 de janeiro de 1982, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa número 4. 261

Cf. Anuário do Plantão de 1979, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa número 24.

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na comunidade, que acreditava ter ocorrido uma negligencia no atendimento ao

jovem. O Centro orientou para que os moradores se reunissem em maior número

possível para uma reunião, que visava à formação de um núcleo permanente no

bairro. Nessas situações, a entidade se valia de uma queixa coletiva existente para

inserir suas pautas e estratégias. Com essa forma de atuação a entidade conseguiu

se aparelhar no interior de algumas comunidades da cidade.

Ao mesmo tempo em que buscava atrair uma militância a partir das CEBs, o

Centro fornecia aos coletivos diferentes técnicas e estratégias de atuação. De

acordo com a necessidade de cada local, as comissões também desenvolveram

estratégias próprias para dialogar com as instâncias de poder. Em sua atuação elas

fomentavam as manifestações coletivas, coletas de assinaturas e petições,

solicitavam através de ofícios protocolados na prefeitura, reuniões com prefeitos e

secretários, forçando-os a assinar documentos e aceitar acordos com os moradores.

Conforme ilustram as pautas do centro comunitário da fazenda de Carapicuíba, em

1982:

As melhorias que foram feitas no bairro não caíram do céu, foram conquistadas com muita luta e união da atual comissão de defesa do bairro. É necessário deixar claro que o prefeito assinou um compromisso com essa comissão [...] e que em parte não cumpriu até a data marcada: 07/07/1982. [...] Sabemos todos que somos responsáveis pelo bem estar do JD. Guapiuva, pois quem paga impostos somos nós [...] Pauta da Reivindicação: 1 – Abertura do Ribeirão Carapicuíba; 2 – Galeria; 3 – Ponte na rua Catanduva; 4 - Horário e dia certo para o lixeiro passar; 5 – Luz na estrada do Guabiroba. Morador Unido jamais será vencido. 262

Como proposto por Thompson (2012), esta experiência foi constitutiva de

práticas coletivas de luta. Através da atuação efetivada pelos movimentos

reivindicativos, que buscavam defender as pautas comunitárias, as camadas

subalternas consolidaram novos entendimentos sobre o papel de sua luta pelos

direitos.

O modo articulado como se compunham os núcleos de luta na cidade

favoreceu o cruzamento de expectativas em torno da reivindicação por direitos.

262

Cf. Comissão de defesa dos direitos dos moradores do J.D Guapiuva, 1982. fundo do CDDHO-CEDIC, caixa

2.

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Assim, estes grupos, unidos em torno de pautas alinhadas às suas experiências,

formaram uma resistência coletiva263, com características semelhantes.

Essa resistência esteve relacionada com a formação de uma cultura popular

reivindicativa, tal qual proposto por Stuart Hall (2003), para quem a cultura popular é

o terreno sobre o qual as transformações são operadas, por estar inserida em um

campo de forças no qual as contradições ocorrem, possuindo um duplo movimento:

o de conter e resistir. Para o autor, a definição do popular está em sua posição

diante da luta entre a cultura hegemônica controladora do Estado e a cultura das

classes subalternas.

O principio estruturador do popular são as tensões e oposições entre aquilo que permanece ao domínio cultural da elite ou da cultura dominante, e à cultura da periferia. 264

Deste modo, o projeto comunitário do CDDHO promoveu entre os núcleos de

bairro da região uma luta popular pelo acesso aos direitos, que era originada dos

ensejos das comunidades periféricas de Osasco.

O centro buscava chamar a atenção das comunidades também para a

questão da terra e da luta por moradia, que defendeu enquanto prioridade em seu

projeto comunitário, sobretudo após 1980. As demandas apresentavam

características diversificadas, com diferentes conflitos e interesses. Destacava-se o

diálogo com associações de moradores e grupos de famílias ocupantes, que

buscaram o Centro para denunciar as ameaças existentes contra o seu direito de

morar, para questionar os objetivos do governo, denunciar a ação ilegal de

imobiliárias e o não cumprimento de acordos coletivos por parte de empresas de

loteamento.

A questão da terra, incluindo a necessidade de reforma agrária no

campo, bem como o problema da terra na cidade (favelas,

loteamentos clandestinos, etc), será o assunto do debate marcado

para o próximo dia 4 (quarta-feira), às 19h30m, no salão da Igreja

Matriz de Santo Antônio, em Osasco. 265

263

Neste sentido nos aproximamos do dualismo apontado por Pedro R. Jacobi (1987), a respeito das

características dos movimentos comunitários do período em relação a aproximação com a prática política

institucional, que hora negada e em outras apropriada com uma ressignificação das práticas para a promoção das

demandas populares. JACOBI, Pedro R. Op. Cit, páginas 11-23. 264

Veja-se Hall, páginas 249 e 256, 2003. 265

Cf. Jornal passo-a-passo edição nº 5, página 2, outubro de 1983, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa número

12.

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O CDDHO listava a existência de mais de 230 loteamentos irregulares

existentes em Osasco. Para trabalhar com esta temática a entidade erigiu um

projeto de ação que resultou na organização dos ocupantes em comissões de

moradia para a coordenação dos trabalhos. Em 1981 foi contratado um advogado

próprio para assessorar os coletivos e acompanhar os processos que chegavam ao

centro266.

Uma das propostas centrais era negociar com o poder público a escritura de

propriedade para as famílias que viviam em loteamentos irregulares. Nestes

embates, a entidade incorporava as posições das CEBs locais:

A bíblia fala que a terra é de todos, que Deus criou a terra para todos. Nós lutamos para pegar os terrenos e agora estamos lutando com a ajuda de Deus Vivo e Verdadeiro para conseguir a escritura que é o único documento que nos dá a posse da terra, que pagamos com o nosso trabalho, suado e sofrido. 267

Essa relação resultava em novas interpretações para a entidade. O CDDHO

acreditava que um dos entraves para o desenvolvimento humano estava no modelo

de desenvolvimento embasado na grande propriedade que facilitava o acúmulo de

capital pelos grandes proprietários e dificultava a vida dos humildes, expulsos do

campo pelas péssimas condições de vida, obrigados a migrar para a cidade em

busca de trabalho, encontravam na cidade, a miséria e a falta de moradia. Os

humildes eram ainda perseguidos pelas autoridades, convivendo com a falta de

estrutura dos bairros periféricos, que cresciam sem nenhum auxílio público. Na visão

do CDDHO, esse contexto formava um único sistema de exploração:

Nas cidades, onde são despejados todos os dias milhares desses

sem-terra, os problemas de moradia se agravam dia a dia: as

favelas, os cortiços, os mocambos estão cada vez mais cheios, sem

contar aqueles que vivem ao relento. A falta de água, luz,

saneamento básico, saúde, escola, emprego, etc, relegam esses

milhões à situação de miséria. 268

Para fazer frente aos problemas de moradia vivenciados pela população

pobre da região de Osasco, o CDDHO buscava uma ação popular de luta contínua.

Precisamos nos organizar nos bairros, nas comunidades, fábricas

sindicatos e escolas para juntos podermos transformar a situação de

266

Dentre estes coletivos se destacavam o Jd. Santo Antônio, o Jd. Imperial, Jd. Do lago, Jd. Primavera e J.

Autonomistas, Aldeia de Carapicuíba e J. Elena. 267

Cf. Comissão de Loteamento Do Jardim Imperial, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa número 14. 268

Cf. Jornal passo-a-passo edição nº 9, página 1, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa número 12.

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opressão. [...] Apoiamos todas as formas de luta da classe

trabalhadora pela posse da terra, pois, assim fazemos valer o artigo

XVII de declaração dos direitos humanos, que diz – Todo Homem

tem direito á propriedade, só ou em sociedade com outros. 269

Assim, a entidade enfatizava em seus projetos de treinamento a questão da

precariedade da moradia para os trabalhadores, entendida como uma violação dos

direitos humanos fundamentais:

Um dos grandes problemas que o trabalhador enfrenta hoje é o da

moradia. Muitos, impossibilitados de pagar aluguel, viram-se

obrigados a morar num barraco em condições precárias e

ameaçados de serem expulsos a qualquer momento. A declaração

universal de direitos humanos diz que ter casa para morar é um

direito de todos e o Brasil tem o compromisso de fazer valer o que

está escrito lá: “Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz

de assegurar a si e à sua família, saúde e bem estar, inclusive

alimentação, vestuário, habitação”. 270

Nesse contexto, em 1980 o CDDHO criou uma comissão de loteamentos que

visitou mais de 90 comunidades da cidade e estabeleceu um trabalho junto aos

movimentos de ocupação em locais ainda não loteados pelo poder público.

Teve destaque o apoio dado para movimentos que lutavam pelo garantia de

posse da moradia, como os coletivos do Jardim Imperial, Jaguaré e Jardim do Lago,

em São Paulo. Este último buscou o centro para solicitar auxílio na luta pelo

reconhecimento dos loteamentos que haviam sido ocupados pelas famílias, mas que

sofriam o risco de desapropriação pelo poder público. O centro ajudou a defender

judicialmente as famílias, oferecendo a estrutura da entidade para a construção das

ações.

Naquela região mais de 400 famílias adquiriram seus lotes há oito anos, já pagaram o que deviam, mas ainda não conseguiram tirar as escrituras. A comissão dos moradores dos loteamentos do Jardim Imperial, Jardim do lago e Vila Nova Jaguaré, que chama para assembleia, aponta os nomes das imobiliárias responsáveis pelo abuso. 271

Em outra situação, o CDDHO auxiliou os moradores do Jardim Helena Maria

na luta pela manutenção de suas habitações, e pela reivindicação de água e luz. No

local de ocupação, uma única torneira de água era compartilhada por mais de 120

269

Cf. Jornal passo-a-passo edição nº 10, página 2, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa número 12. 270

Idem. 271

Cf. Jornal passo-a-passo edição nº 5, página 1, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa número 12.

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famílias. Constatando a realidade material existente, a entidade auxiliou os

moradores com a organização de comissões para a efetivação de uma disputa

contra Munhoz Bonilha, loteador e dono da propriedade. O proprietário objetivava

vender as terras, que já estavam ocupadas há uma década. Através do engajamento

do CDDHO, os moradores organizaram uma comissão que conseguiu manter

reuniões com representantes do poder público, com o objetivo de conseguir a

manutenção das residências.

Esperando ser atendida pela prefeitura, uma comissão de mais de 30

moradores da área “BM”, acompanhada por representantes da União

das Famílias da Cidade Munhoz Jr., pelo vereador João Paulo do PT

e pelo CDDHO foi recebido no dia 19 de janeiro pelo Secretario de

obras e da comissão de loteamentos clandestinos. Ficou clara a

disposição das 120 famílias que ocupam 119 barracos de continuar

na área. 272

Nestas ocasiões o Centro buscava enfatizar que os ocupantes de áreas

públicas e privadas estavam consolidando uma função social para terrenos sem uso.

Na defesa dos ocupantes, citava o artigo 20, da lei federal nº 4132 de 10/11/1962,

que tratava da possibilidade de desapropriação da terra para fins sociais. Como

afirmava na edição do jornal passo-a-passo de março de 1984:

Diz a lei: considera-se de interesse social: a manutenção de

posseiros urbanos onde, com tolerância expressa ou tácita do

proprietário, tenham construído sua habitação, formando núcleos

residenciais de mais de 10 famílias. 273

Outro exemplo dessa atuação foi o apoio que a entidade ofereceu para a

comissão do Jardim Primavera e Autonomistas, em reivindicação por melhorias no

bairro.

Exmo. Sr. Prefeito de Osasco Guaçu Piteri: A comissão dos direitos humanos e os moradores do J. Primavera e J. Autonomistas, vêm reivindicar de EXA, as soluções para os problemas abaixo relacionados: 1. A regularização dos loteamentos do J. Primavera e J. Autonomistas; 2. Guias e sarjetas; 3. Extensão da linha de ônibus de Osasco à Jd. Veloso, até o J. Joelma, da empresa Transporte coletivo Miresa.

272

Cf. Jornal passo-a-passo edição nº 8, página 3, janeiro de 1984 fundo do CDDHO-CEDIC, caixa número 12. 273

Cf. Jornal passo-a-passo edição nº 9, página 4, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa número 12.

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E reivindicamos também, conforme oficio já encaminhado e não respondido, do centro de defesa dos direitos humanos de Osasco, uma visita de V. Exa no bairro, em dia e hora que combinaremos. 274

Nesse caso, o CDDHO orientou a comissão de moradores desses bairros

para que a carta fosse endereçada ao Prefeito com as principais pautas resultantes

da reunião entre os moradores, realizada dias antes, solicitando ainda, a presença

do prefeito no bairro, onde a pressão por melhorias seria maior. Nessas

reivindicações a entidade estimulava a comunicação com os órgãos públicos através

de cartas, ofícios e abaixo-assinados.

Em outras ocasiões a entidade participava de uma luta popular já

consolidada, fomentando práticas organizativas importantes, como o cadastramento

dos barracos de uma área de invasão, o contato com políticos destacados da região,

auxílio no recolhimento e distribuição de alimentos, entre outras ações.

Em locais onde ocorriam ocupações, o CDDHO encaminhava seus militantes

que prestavam auxílio para os ocupantes. Em alguns casos era realizado um

cadastramento dos moradores para que fossem organizadas ações coletivas, como

a distribuição de comida e água, as pautas de negociação, que seriam levadas para

o prefeito e para a secretaria de habitação.

O centro possuía uma ficha de cadastro das famílias275 com informações

sobre a quantidade de filhos, a profissão, a localização no interior da invasão e

informações sobre as suas condições materiais. A partir desse trabalho era

esquematizada uma rede de solidariedade que buscava ajudar os ocupantes na

negociação com o poder público. Como se recorda uma moradora que participou da

ocupação no Bairro de Jardim Conceição, em entrevista para o pesquisador

Eduardo Loebel (2006):

Aí não foi só nós que cadastrou também não, aí o João Paulo trouxe toda uma turma do Centro de defesa para ajudar a cadastrar, dos direitos humanos, eles também ajudaram. A gente ia passando, chamando o povo para subir que tinha uma sede onde era cadastrado. Eles eram mais rápidos né, tudo naquele momento exigia rapidez [...] Ai depois que a gente fez isso, nós fomos entrar em negociação, aí a gente já foi para a Prefeitura. [...] Fizemos o cadastramento, ocupamos a área, né. Agora vamos à parte da negociação. 276

274

Cf. Carta da comissão de defesa dos Direitos Humanos do J. Primavera e J. dos Autonomistas, 8 de janeiro

de 1981, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa número 5. 275

Cf. Ficha de cadastramento de invasão, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa número 6. 276

LOEBEL, pág. 400, 2006.

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Além desses auxílios, o CDDHO enviava cartas para as comunidades visando

solicitar ajuda para os ocupantes. A entidade denunciava a ameaça de reintegração

de posse e o destrato com os moradores, ocorrido em reuniões com o secretário de

habitação e prefeito. Para vencer a resistência do poder público, clamava pelo apoio

da população da cidade, para o reconhecimento do direito dos ocupantes:

Desde o dia 26 de junho estamos nós 250 famílias acampadas no Jd. Conceição em busca de um lugar para podermos criar nossos filhos. Desde a ocupação estamos recebendo o apoio das comunidades em dinheiro, roupas ou alimentos. 277

Essas ocupações eram organizadas nas igrejas da região, contavam com o

apoio das comunidades e da rede de solidariedade que se conectava com as CEBs,

tendo o CDDHO destacado papel. Através do auxílio do centro, as reivindicações

eram levadas para a prefeitura, em alguns momentos com o apoio de políticos de

partidos como o MDB e posteriormente o PT.

Através da relação com as CEBs e da influencia das práticas propagadas pelo

CDDHO, os movimentos comunitários operavam com algumas características

semelhantes. O processo reivindicativo tinha início com a chamada para uma

reunião na paróquia ou no centro comunitário. Os grupos redigiam folhetos e se

espalhavam na divulgação do evento pelo bairro. Na assembleia as pautas eram

discutidas e votadas, resultando na construção de documentos com as

reivindicações dos moradores, como requerimentos e abaixo-assinados, que eram

encaminhados para vereadores, secretários e membros da burocracia. Quando a

pauta possuía grande participação e havia a recusa do poder público em atender as

demandas requisitadas, o movimento se expandia e utilizava outras estratégias de

ação. Grupos de moradores se dirigiam até a prefeitura Municipal, exigiam uma

reunião com o prefeito e cobravam um posicionamento sobre as suas

reivindicações. As principais demandas eram o asfaltamento e iluminação das ruas;

a instalação de feiras livres, creches, escolas e postos de saúde; a coleta de lixo e a

criação de novas linhas de ônibus.

Como resultado da luta popular, ainda que as reivindicações não fossem

prontamente atendidas, creches e postos de saúde foram instalados em negociação

com grupos comunitários, diversas ruas foram asfaltadas e linhas de ônibus criadas.

277

Cf. Carta dos ocupantes do Jardim Conceição, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 24.

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Desde 1977, o grupo da saúde, o clube de mães e a nossa comunidade vem lutando e se organizando para melhoria do bairro. No dia 07 de setembro de 1979, conseguimos o posto de saúde, depois de irmos 3 vezes com mais de 50 pessoas, na prefeitura municipal. Trouxemos o prefeito ao nosso bairro. Nessa reunião tinha mais de 200 pessoas e exigimos condução, feira livre na rua 8, iluminação, guias e sarjetas e uma creche para o bairro. E hoje vocês estão vendo que está sendo inaugurado o asfalto, que foi uma luta sua e de todos os moradores do bairro. [...] Vamos nos organizar e nos unir! [...] Cadê a feira? cadê a Iluminação? Cadê o ônibus direto para a Lapa?. 278

Com a efetivação do seu projeto de ação social o CDDHO constatou que a

maioria dos bairros constituídos por trabalhadores na cidade de Osasco sofria com a

constante ausência de equipamentos públicos, a inexistência de ações afirmativas

do Estado e a ineficiência generalizada dos serviços prestados para a população.

Essa realidade favoreceu a articulação de grupos atuantes na cidade com as pautas

do movimento de direitos humanos279.

Entendemos que o bairro não emergiu como novo local para a efetivação da

atuação política, tampouco que a atuação ao nível de bairro tenha passado a existir

para substituir a organização operária nas fábricas. A atuação nos bairros era

constante e intensa antes da desarticulação do movimento operário tradicional de

Osasco e estava conectada com o contexto do trabalho operário, recebendo

influencias de outras atuações sociais, como os movimentos ligados à igreja. Após a

intensificação da repressão politica, os bairros tornaram-se a matriz central para a

constituição dos movimentos sociais promovidos e organizados pelas classes

populares, que não possuíam mais as organizações sindicais tradicionais, assim

como não poderiam atuar em partidos contrários ao regime. Como demonstrado,

aliado a esses fatores, o contexto de luta desencadeado por uma parcela

progressista da igreja católica amplificou as formas de atuação dos moradores, que

passaram a contar em alguns locais, com os espaços e a estrutura das paróquias

para promover suas demandas.

Os moradores do Jardim Ipê, Cipava e Jaguaribe vem se reunindo

desde o início do ano para discutir os problemas comuns aos bairros

e a necessidade da criação de uma entidade que venha a defender

os direitos da população. Os moradores estão reivindicando junto à

278

Cf. Carta do Clube de Mães e do Grupo de Saúde do Jd. Padroeira II para a Comunidade, fundo do

CDDHO-CEDIC, caixa 25. 279

Temos a evidência de comunidades engajadas na luta pelos direitos humanos nos seguintes bairros: Vila

Yolanda, JD. Cipava, Cidade das Flores, Jd. Turíbio, Jd. Manah, Jd. Novo Osasco, Quitaúna, Munhoz, Jd.

Veloso, Bel Jardim, Km 18, Santo Antônio e Padroeira.

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144

prefeitura e à Câmara Municipal, um plano de obras públicas com a

consulta à comunidade, como forma de abrir frente de trabalhos;

passe para o trabalhador que recebe até três salários; congelamento

das passagens dos ônibus em Cr$ 85,00, entre outras. 280

Essas formas de organização comunitária colaboraram para o vínculo de

novos militantes, que já operavam em outras instâncias coletivas como as oposições

operárias, os movimentos de moradia, os clubes de mães e demais grupos

espalhados pelos bairros da cidade. A partir da ação desses quadros, as pautas

históricas do movimento operário da cidade se intercalaram com as demandas

comunitárias e se mantiveram presentes nas falas das comissões vinculadas ao

CDDHO.

A realidade acenava para a necessidade de construir uma luta conjunta, que

se estruturava através dos coletivos da igreja, pela defesa dos direitos.

Além do trabalho pesado da fábrica, do pouco salário que a gente recebe, de dormir pouco e ter que levantar cedo, a gente tem que enfrentar fila de espera dos ônibus, que não está cumprindo o horário e agora o aumento da passagem de $ 31,00 para $ 35,00 (...) A gente não pode concordar com isso. TEMOS QUE REAGIR! Então vamos nos reunir no dia 20/05 às 19:30 na igrejinha de Sta. Maria. 281

O CDDHO buscava centralizar em suas estruturas esse processo de

vinculação comunitária em embates contra o Estado. Essa atuação se mostrava

distinta das ações que existiam nos partidos e em movimentos da esquerda

tradicional. Suas ações se dirigiam à esfera dos direitos, a partir das necessidades,

estendendo-as a um amplo conjunto de instâncias que se davam nas ruas, nas

associações de bairro, nos movimentos das mulheres, nas pastorais católicas, nos

movimentos de jovens e operários católicos e nos mais diversos grupos populares.

Este aspecto amplo da ação do movimento demonstra sua contribuição para

a democratização da sociedade civil. Como demonstra Marilena Chauí (1994), a luta

por direitos em Osasco se relaciona com a manifestação das classes subalternas em

uma sociedade autoritária controlada por um Estado que negava direitos aos pobres,

o que nos leva a examinar esta cultura popular como cultura plebeia, no sentido de

buscar compreender “aqueles desprovidos de cidadania e que se fazem representar por

meio de outros, encarregados de apresentar e defender direitos na cena pública”, mas

280

Cf. Jornal passo-a-passo edição nº 6, página 3, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa número 12. 281

Cf. Grupo de Moradores Sta. Maria, fundo do CDDHO-CEDIC, CEDIC, caixa 14.

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também de sujeitos que são capazes de se organizar coletivamente para exigir

direitos contra o Estado e os grupos hegemônicos que o controlam282.

Em Osasco essas iniciativas formaram um processo reivindicativo popular

que consolidou o movimento pelos direitos humanos, uma forma nova de atuação

social para a cidade de Osasco.

Assim, o escopo de ação do Centro foi ampliado pela participação de

militantes oriundos de coletivos comunitários283. As comunidades se transformaram

nos braços do movimento, funcionando como agentes fiscalizadores da repressão

policial e como articuladores do projeto, que seria gerido nos bairros pelos próprios

moradores, de modo que a perspectiva de luta do CDDHO estivesse embasada no

ensinamento dos militantes e na propagação da atuação coletiva pela defesa dos

direitos humanos.

3.2 - Ações da Comunidade de Vila Yolanda

Entre as comunidades que atuaram no projeto de luta pelos direitos humanos,

estruturado pelo CDDHO, destacou-se o coletivo organizado no bairro de Vila

Yolanda. Nesse bairro, leigos atuantes se aproximaram dos projetos das pastorais

sociais e passaram a desempenhar ações organizativas na comunidade. Este grupo

de militantes sustentou desde o princípio o projeto comunitário de luta pelos direitos

humanos, tornando-se uma referência para os trabalhos promovidos pela entidade.

No bairro de Vila Yolanda, localizado no cinturão intermediário que margeia o

centro do município, constituiu-se uma grande população operária que atuava nas

áreas industriais da zona sul de Osasco. De acordo com Maria Inês Z. Coelho

(2001), o bairro se desenvolveu no decorrer da década de 1950, em um período de

instalação de indústrias e forte aumento populacional. Nesta Vila, alguns moradores

começaram a se reunir através da igreja do bairro para a promoção de atividades

litúrgicas e obras de caridade.

282

Assim como M. Chauí (1994) buscamos visualizar o conjunto de práticas, representações e apropriações

criadas pelas classes populares da cidade de Osasco na construção de sua experiência, capazes de exprimir uma

posição dos dominados com relação à cultura dominante. Cf. CHAUI, Marilena de Souza. Conformismo e

resistência. São Paulo, Autentica: Fundação Perseu Abramo, 2014. 283

Cf. Relatório das propostas do curso de formação do CDDHO, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 18.

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No final dos anos 1960 missionários franceses, pertencentes à missão

operária São Pedro e São Paulo284 (MOPP), se descolocaram para a paróquia do

bairro e organizaram uma comunidade de base. A diferença no comportamento e na

atuação dos padres Operários causou estranheza e dúvidas na comunidade. Era

uma novidade o fato de que os sacerdotes pudessem levar uma vida de operários,

tal qual os leigos que viviam no bairro.

Neste período Dona Maria Ione, moradora do bairro de Vila Yolanda,

começou a atuar nas atividades da paróquia. No decorrer da década de 1970 ela

atuou em creche do município e participou de projetos de assistência junto a

crianças e desfavorecidos. Anos mais tarde ajudou a fundar um grupo de mulheres

que atuou junto ao movimento de direitos humanos. Entre os anos de 1979 a 1981

foi vice-presidente da entidade, quando liderou projetos na área dos direitos

humanos em seu bairro, com ênfase na defesa dos menores. Ela se recorda da

importância da chegada dos padres operários no bairro de Vila Yolanda;

Quando chegou esses padres para nós foi uma surpresa grande porque eles alugaram uma casa na Vila Yolanda e três homens estavam morando lá e é padre, é padre. Mas como padre? Cadê a batina? Cadê? Então eles saíram, já foram arrumar trabalho. Mas são trabalhadores? Que história é essa? Então para nós foi uma surpresa. E depois fomos fazendo todo esse entrosamento com esses padres. 285

Os padres à frente da missão operária em Osasco eram Domingos Barbé e

Jean Wauthier, responsáveis por organizar os moradores do bairro em círculos de fé

e de ação social, para que lutassem, através do evangelho, pelos seus direitos,

sobretudo nas fábricas. Em anos posteriores Domingos Barbé consolidou-se como

uma das lideranças da Pastoral Operária de Osasco e do Centro de Direitos

Humanos de Osasco, fincando junto aos moradores do bairro de Vila Yolanda uma

das bases centrais para a luta dos católicos pelos direitos humanos em Osasco. Já

Jean Wauthier teve um destino diferente.

Pierre Joseph Wauthier nasceu na França, foi ordenado no Brasil em 1968.

Enviado para Osasco, passou a trabalhar na fábrica da BRASEIXOS em

284

A missão operária São Pedro e São Paulo foi fundada pelo dominicano francês Tiago Loew, cujo objetivo era

levar o cristianismo para locais pobres com grande número de operários através de missionários que presenciem

a experiência das populações trabalhadoras em comunhão de destino. Acreditamos que a existência de elevado nº

de operários tenha sido o principio motivador da ida dos missionários para o bairro de Vl. Yolanda. Veja-se:

JESUS, 2007. 285

Depoimento concedido por Maria Ione ao pesquisador Lucas Alves de Camargo no dia 17 de julho de 2015.

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expedientes normais, enquanto realizava as atividades eclesiais junto à paróquia no

bairro de Vila Yolanda. De acordo com Jesus (2007), ele auxiliava na organização

de abaixo-assinados e de petições para as secretarias de governo da cidade, além

de incentivar projetos para alfabetizar adultos. Em 1968 atuou junto aos outros

trabalhadores na greve da COBRASMA. Ele se recusou a auxiliar os empresários no

diálogo com os operários, posicionando-se a favor da greve e da sua principal

reivindicação, um aumento de 35% e reajustes trimestrais capazes de suprir as

taxas de inflação. A greve durou três dias, acabando com a invasão da fábrica pela

policia militar e a prisão de alguns trabalhadores. Wauthier foi preso, acusado de

fomentar a greve entre os operários. O padre ficou um mês no DOPS e depois foi

transferido, após pressões da Igreja, para o regime de liberdade assistida na casa

de d. Agnelo Rossi, então Arcebispo de São Paulo. Quando este se ausentou para

participar da II Conferência do Episcopado em Medellín, padre Wauthier foi

novamente preso e por fim, deportado para a França.

Padre Tião286 recorda-se que para estes missionários o evangelho se

constituía numa fonte de organização popular, uma importante ferramenta de

motivação de movimentos que poderiam dialogar com a realidade social vivida pelas

comunidades pobres de Osasco, que alcançariam através da reflexão sobre as

passagens bíblicas, as bases necessárias para o questionamento de sua realidade.

Assim, através da fé e daquilo que entendiam ser a palavra de Cristo, esperavam

alcançar às reivindicações sobre a insalubridade dos bairros, sobre a necessidade

de creches, de moradia e de todo tipo de ausência de equipamentos públicos

necessários para uma vida digna dos moradores. Essa visão de fé alastrou-se para

algumas paróquias da cidade antes mesmo da divulgação das premissas da II

Conferência do Episcopado Latino-Americano287.

A atuação de padres missionários estrangeiros junto aos trabalhadores da

cidade serviu de base para a realização de trabalhos posteriores, transformando-se

em um experimento que embasou a corrente da teologia da libertação em Osasco.

286

Padre Tião era morador de Osasco e no período buscou integrar-se a vida religiosa. Entrou em contato com as

propostas teológicas da libertação e recebeu influencia dos padres missionários. Anos mais tarde foi um

articulador de processos reivindicativos no bairro de Novo Osasco e Jardim Conceição. 287

Como aponta Michael Lowy (1991), os documentos que embasaram a Teologia da Libertação e as

conferências Episcopais foram discutidos a luz de trabalhos desenvolvidos em muitas comunidades em período

anterior. LOWY, Michael. Marxismo e teologia da libertação. SP: São Paulo, trad. Myrian Veras Baptista.

Cortez, 1991.

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De acordo com Michael Lowy (2000), estes padres missionários chegavam

aos locais periféricos com o objetivo de fundir a presença católica com processos de

cristianização. Através do contato com a realidade material das classes

desfavorecidas eles passaram para uma posição à esquerda no espectro de

correntes existentes no interior da igreja, tanto com relação a questões teológicas

como à atuação social:

O contraste entre as condições de vida em seu país de origem e a pobreza total que descobriram na América Latina levou muitos deles a uma verdadeira conversão moral e religiosa ao movimento de libertação dos pobres. 288

Os padres missionários visitavam as famílias em suas residências e

estabeleciam uma relação muito próxima com a comunidade. Eles motivaram a

organização de ações de caridade e assistência social. Os moradores passavam a

se reunir com mais frequência, constituindo pequenas coletividades envolvidas em

prol das obras da paróquia, buscando através dos projetos da igreja atingir seus

objetivos, ao mesmo tempo em que participavam de ações missionárias e litúrgicas,

que iam desde a leitura da bíblia até a evangelização.

O incentivo desses sacerdotes para que se desenvolvesse uma atuação mais

intensa dos leigos em relação à comunidade foi uma transformação no contexto de

ação coletiva em Osasco. Favoreceu o uso da estrutura da igreja para a organização

e atuação coletiva que modificou profundamente as bases do cristianismo vivido no

bairro de Vila Yolanda.

Isso possibilitou que a comunidade da paróquia obtivesse mais autonomia e

atuasse segundo métodos distintos dos setores tradicionais do clero de Osasco.

Entretanto, havia desentendimentos entre o comportamento dos padres missionários

e os clérigos da paróquia, que não concordavam com aspectos oriundos da

organização dos leigos, sobretudo com relação a livre interpretação do evangelho e

a associação dos signos católicos com as pautas e reivindicações materiais da

comunidade.

Todavia, através da orientação dos padres missionários a leitura do evangelho

levaria a um projeto de transformação da sociedade, que deveria partir dos pobres,

como recorda Maria Ione.

Nós íamos nas casas das pessoas levar o evangelho. E no evangelho lia uma parte do evangelho e as pessoas iam começando

288

LEWY, página 75, 2000.

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a falar. As pessoas que você achava que não tinha, as pessoas começaram a entender, isso depois Lucas, por que tiraram os padres da comunidade depois de 12 anos, as pessoas estavam enxergando, estavam caminhando, estavam tendo consciência de seus direitos. Não era mais aquela coisa de o padre estar na missa e diz, diz, diz. Não. Nós questionávamos. 289

A partir de uma leitura particular da bíblia a comunidade passou a elaborar

novas representações, extraindo do evangelho uma força renovadora. Aos poucos

passaram a entrar em contato com outros textos de cunho religioso, como as

produções das pastorais sociais. Com o desenvolvimento dos encontros liam jornais

e discutiam as notícias. Cantavam músicas religiosas e leigas, buscando refletir

sobre as questões apresentadas nas letras.

Os padres missionários passaram a dialogar com uma nova geração de

padres progressistas que vivenciavam o momento de contestação pelo qual passava

o país e que alcançava os cursos de teologia e os seminários da região. Este

pequeno setor do clero da cidade passou a propagar uma nova interpretação sobre

a atuação social e a fé coletiva, como se recorda padre Tião:

A comunidade é o local de nós rezarmos, de tomar cada vez mais o sabor pelo evangelho, de compreender o evangelho de compreender esse Jesus profundamente comprometido com as massas, com a organização das massas. 290

Assim a religiosidade possibilitou a aglutinação de pessoas e fomentou a

identificação de moradores em grupos que se estruturavam a partir de uma leitura

coletiva do evangelho e dos símbolos religiosos, identificados a partir de sua

experiência.

As atividades de leitura da bíblia, as rezas coletivas, os momentos de contato

religioso foram elementos que possibilitaram o surgimento de uma fé compartilhada

capaz de engendrar unidades de ação entre os leigos. As diferentes formas de

religiosidade destes grupos foram quase sempre um ponto de partida para a

estruturação de movimentos, que estiveram ancorados na religiosidade partilhada e

na experiência de vida em comum.

Tal qual o entendimento de Ana Maria Doimo (1986), pesquisadora que

buscou compreender a relação entre a religiosidade popular e os movimentos

sociais nascidos a partir das comunidades de base da igreja católica, percebemos a

289

Depoimento concedido por Maria Ione ao pesquisador Lucas Alves de Camargo, op. cit. 290

Depoimento concedido por padre Tião ao pesquisador Lucas Alves de Camargo, op. cit.

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religiosidade existente em torno dos grupos comunitários como um elemento capaz

de centralizar a ação e os interesses coletivos em torno de uma causa comum, que

era partilhada pela experiência coletiva cotidiana.

[...] A religiosidade tem-se apresentado como um fator de aglutinação das pessoas e como um elemento mantenedor de identidades grupais, à medida que se sobrepõe a pequenas clivagens, nivelando interesses, proporcionando unidade na ação e mantendo setores populares relativamente mobilizados e predispostos a participarem em movimentos sociais reivindicatórios e de protesto. 291

Existiam articulações entre a atuação social e as formas de fé coletiva, que

estavam naturalmente integradas ao cotidiano dos coletivos organizados nas

paróquias desde a sua fundação. Exemplo disso pode ser observado nas formas de

atuação que a comunidade do bairro de Vila Yolanda desenvolveu. Em 20 de abril

de 1982 parte do coletivo se reuniu com militantes do CDDHO para dialogar sobre o

projeto de conscientização das famílias do bairro para a participação nos atos contra

a violência policial e para análise de reportagens sensacionalistas sobre a violência

urbana. A reunião, que durou duas horas, era parte da ação de militantes de

comunidade que operavam na paróquia e estavam denunciando um caso de

assassinato causado pela Polícia Militar. A comunidade escolheu duas propostas

para combater a violência. A primeira dizia respeito à preparação de uma denúncia

coletiva em forma de carta a ser endereçada aos chefes da polícia e à imprensa,

relatando o histórico de uma das vítimas da violência policial. A segunda proposta,

que teve adesão maior dos moradores, previa a realização de uma missa em

homenagem ao aniversário de um mês de morte da vítima. A celebração seria

realizada pelo Padre Agostinho, pároco atuante nos movimentos sociais da cidade,

preparada pelo CDDHO, pela Pastoral de Direitos Humanos, pela família e por

membros da comunidade. Na ocasião seriam lembrados os casos de violência

sofridos pela comunidade através de uma homilia contra a violência.

A comunidade, portanto, havia proposto a denúncia pública dos abusos

perpetuados pela polícia, articulando esta proposta com a realização de uma

celebração religiosa onde também efetivaria ações direcionadas para o caso em

pauta. Articulavam-se, assim, práticas religiosas com ações políticas efetivas292.

291

DOIMO, pág. 123, 1986. 292

Cf. Relatório de reunião do CDDHO com a comunidade de Vila Yolanda, fundo do CDDHO- CEDIC, caixa

24.

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Contudo, a religiosidade coletiva não foi o único fator de motivação para o

engajamento politico comunitário. Por mais que tenha possibilitado a formação de

uma identidade coletiva, a religiosidade sempre esteve aliada à experiência

cotidiana dos sujeitos.

Para a comunidade, que extraia suas convicções tanto do evangelho quanto

da experiência resultante da organização coletiva, era importante ajudar os mais

pobres, obrar pela edificação da igreja e trabalhar na evangelização dos vizinhos,

acolhendo necessitados, realizando campanhas e mutirões de arrecadação de

alimentos, do mesmo modo que trabalhavam para construir diversas formas de

apoio aos trabalhadores da cidade e consolidavam campanhas fraternas que entre

outros desdobramentos angariavam fundos de apoio aos grevistas da região293.

Deste modo, para alguns militantes católicos que se formavam no período,

não existiam limites entre a ação cristã e a atuação social. Ambas partilhavam do

mesmo projeto, um plano divino de libertação dos pobres que tinha suas origens nos

ensinamentos de Cristo. Essa perspectiva é percebida na memória de padre Tião:

Cada projeto de Jesus é um milagre de libertação, não tem milagre pelo milagre. É um projeto dentro do reino de Deus. E ai você pode posteriormente refletir sobre cada milagre. O milagre não é um milagre em si mesmo, mas é um projeto para a nova sociedade. 294

A participação efetiva de militantes das comunidades eclesiais de base em

trabalhos na paróquia e a proximidade estabelecida com padres adeptos à teologia

da libertação, favoreceu a construção de novos valores comunitários295, novas

concepções de fé e de atuação social.

A partir do vínculo de moradores do bairro com as Pastorais Sociais,

apresentadas anteriormente, o coletivo de moradores do bairro de Vila Yolanda se

transformou em 1977 em um dos principais braços de apoio ao trabalho do Centro

de Direitos Humanos de Osasco. As lideranças, sobretudo de algumas mulheres que

trabalhavam a serviço da paróquia, possibilitaram o estabelecimento de ações

fomentadas pelo centro na comunidade. Entre elas se destacam as ações de

293

Cf. JESUS, 2007, Op. cit. 294

Depoimento concedido por padre Tião ao pesquisador Lucas Alves de Camargo, op. cit. 295

Com relação à construção dos valores nos aproximamos do entendimento de Agnes Heller (1985) que

considera ser o carácter substancial da história atribuído a “construção de valores sobre a base de outros

valores”. Para Heller a essência do ser humano é sempre histórica, deste modo, são as esferas heterogêneas da

vida humana que edificam os valores, erigidos na realização gradual e continua experiência. Cf. HELLER,

Agnes: O cotidiano e a história. Rio de Janeiro, Paz e terra. 10ª Edição, trads. Carlos Nelson Coutinho, Leandro

Konder. 2014.

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divulgação, o trabalho junto à população carente, o recolhimento de denúncias, os

treinamentos a respeito dos direitos humanos, e a comunicação com coletivos que

se organizavam a partir da igreja, aspecto que favoreceu o cruzamento de ações

entre os movimentos populares existentes.

No bairro de Vila Yolanda formou-se um clube de mães, composto por

mulheres que realizavam trabalhos para a paróquia. As reuniões eram semanais,

com a participação de cerca de 20 mulheres. Nos encontros liam a bíblia e

realizavam atividades manuais, como o bordado e a costura. Também realizavam

obras assistenciais além da participação nas celebrações e no cuidado com o prédio

da paróquia.

De acordo com Robert Grandmaison (1992) os clubes de mães foram

coletividades importantes para a estruturação de movimentos coletivos no período,

pois:

A mulher que participou do clube de mães podia superar sua visão fatalista da realidade e adquirir outros instrumentos de compreensão da realidade na qual vivia. Podia passar do isolamento para uma comunidade, do individualismo para um grupo. 296

Através da liderança do padre Domingos Barbé, algumas mulheres que

participavam do clube de mães foram convidadas para integrarem os trabalhos

comunitários do CDDHO. Aos poucos foram desempenhando novas atividades que

se conectavam com os diálogos realizados em torno do projeto comunitário do

Centro. Essas mulheres passavam a buscar alternativas para a ausência de serviços

públicos, constituindo um núcleo de formação para mães do bairro e de outras

comunidades com as quais o CDDHO se relacionava. Elas passaram a se reunir

regularmente e a convidar as suas vizinhas para a participação nas reuniões:

Reflita na sua comunidade e traga suas preocupações para o grupo de mulheres do centro de Defesa. Estamos nos reunindo todas as segundas e quartas-feiras de cada mês, às 19:30 hs, no CDDHO. 297

A partir do engajamento de algumas lideranças femininas nas atividades de

formação, foi planejado o desenvolvimento de um treinamento em conjunto com as

mulheres atuantes na comunidade. Esse núcleo ultrapassava o aspecto

assistencialista e passava a atuar no desenvolvimento de projetos de reivindicação e

denúncia.

296

GRADNMAISON, página 52, 1992. 297

Cf. Jornal passo-a-passo edição nº 9, página 2, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa número 12.

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A partir de 1978 o Centro se reunia regularmente com o núcleo de mulheres

do bairro. Nas primeiras reuniões os ativistas apresentavam as ideias da entidade

sobre a defesa dos direitos humanos. As mulheres expunham suas opiniões e

destacavam os problemas existentes no bairro, como a falta de hospitais e escolas.

Durante os encontros eram organizados os planos de ação e discutidas as

dificuldades enfrentadas, sobretudo com relação ao papel da mulher como esposa e

mãe e sua relação com a militância, sempre marcada por preconceitos e pela não

aceitação de seus maridos.

O CDDHO buscava em documentos da igreja e textos de Frei Beto e de Paulo

Freire, elementos para a discussão sobre a realidade trazida pelas mulheres.

Através das considerações das lideranças femininas algumas conclusões eram

tomadas:

Além do estudo de documentos existe uma grande necessidade de discutir mais especificamente o problema da mulher em casa, no trabalho, no bairro, relacionamento marido-mulher, planejamento familiar, educação de filhos. Estudo esse que pretendemos esquematizar e organizar junto com as mulheres. 298

Maria Ione se recorda da violência e privação que as mulheres sofriam em

seus lares, violência que dificultava a vinculação coletiva, uma vez que muitas

deixavam o grupo por não terem o apoio dos maridos, que não compreendiam e não

aceitavam a atuação política de suas esposas. Havia o desconforto e a desconfiança

por parte destes quanto às visitas que faziam a outras residências, e das longas

horas que passavam longe de suas casas, enquanto eles estavam trabalhando nas

fábricas. As mulheres que participavam dos encontros eram encorajadas a ajudarem

nos procedimentos do centro e passavam a questionar as limitações impostas por

suas famílias.

Foi difícil por que nossas reuniões eram reuniões escondidas, eram reuniões que nos assustávamos por que éramos mulheres, mulheres submissas aos maridos ainda, que não entendiam essa saída da mulher, esse crescimento da mulher. A mulher era aquela ainda que ficava em casa e que ele trazia o pão e dava as ordens, e a mulher já começando a ter esses conhecimentos e o marido não queria. 299

Por sua vez, o projeto de atuação comunitária que o CDDHO desenvolveu

com as mulheres buscava:

298

Cf. Relatório anual de atividades de 1978, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 6, et. seq. 299

Idem.

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154

Levar as mulheres a adquirirem uma consciência critica da sua situação como mulher e como mulher interferir, participar no processo de transformação social a partir do seu bairro e da sua realidade. 300

Nos encontros as dificuldades individuais se coletivizavam e o papel que

desempenhavam em relação à família e aos maridos era questionado e revisto. Elas

se transformavam em lideranças das ações na comunidade onde foram construídos

espaços que permitiam a ampliação de sua autonomia crítica com relação aos

direitos de suas famílias e aos seus próprios.

A mulher foi descobrindo que ela tinha direitos, que ela tinha vez, que não era submissa. Que não era aquela que lavava no tanque e secava no ferro e nem na pia. Então ela foi buscando os seus direitos e começando a dar seus passos. 301

O núcleo de mulheres foi crucial para a expansão da luta comunitária pelos

direitos civis e humanos na comunidade. Como exemplo dessas atuações, nos anos

finais da década de 1970 este coletivo desenvolveu um movimento de combate à

verminose através da conscientização das mães que viviam em seus bairros. A

ineficiência dos serviços públicos, que se mostravam incapazes de resolver o

problema de saúde pública, levou as mulheres a se reunirem para compreender a

origem do problema a fim de consolidar propostas para resoluções possíveis.

Chegaram à conclusão de que as condições precárias de higiene e a desinformação

das mães que estavam mais vulneráveis à situação de pobreza eram a origem da

doença. Através desses entendimentos elas utilizaram os espaços da igreja para

divulgar o material produzido para a campanha e passaram a se deslocar pela

vizinhança, levando informações sobre a doença para as mulheres da comunidade.

Nesse processo, as mulheres assumiam para si as tarefas que cobravam do

governo municipal.

A consideração do núcleo também se estendia ao conhecimento do corpo e

da sexualidade das mulheres. Em abril de 1982 um grupo de mulheres atuantes no

CDDHO reuniu-se com os coletivos femininos das comunidades de Buraco Quente,

Padroeira II e Bom Pastor. A partir desses encontros foram erigidas duas ações, a

primeira consistiu na apreciação de informações sobre a pílula contraceptiva, na

segunda foi realizado um debate, no qual as mulheres puderam tecer análises e

comparar as informações sobre o uso da pílula com a sua vida sexual.

300

Idem. 301

Idem.

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155

Propôs-se como resultado dessas ações que o CDDHO promovesse um

curso que tratasse do corpo da mulher. O curso foi pensado através das escolhas e

opiniões das militantes, que traziam conclusões a respeito do seu relacionamento

com as mulheres dos bairros. Os palestrantes eram médicos, assistentes sociais e

membros do CDDHO. No decorrer dessa atividade as lideranças das comunidades

eram selecionadas para os treinamentos e depois repassavam o que aprendiam nos

encontros dos coletivos em seus bairros. A programação do curso consistia nas

seguintes aulas:

1 aula – Corpo da mulher e ciclo de reprodução, métodos anti-concepcionais; 2 aula – Corpo do homem e relação sexual; 3 aula – Contracepção e aborto, gravides, parto e amamentação; 4 aula – Menopausa, doenças sexualmente transmissíveis, exame ginecológico e autoexame. 302

Em abril de 1984 as mulheres buscaram se reunir para dialogar sobre a

saúde da mulher na cidade de Osasco. Uma nota foi publicada no jornal Passo-a-

Passo para convidar a comunidade a participar do encontro:

- Você já se viu grávida sem querer ter o filho? - Algum dia você se engravidou e passou a gravidez toda preocupada, pensando em como sustentar mais uma criança? - Você conversa com seu marido sobre o número de filhos que quer, ou ele deixa tudo para você resolver sozinha? - Você conhece todos os métodos para evitar a gravidez? 303

As participantes do evento relataram a ausência de médicos e a falta de

medicamentos nas unidades de saúde de Osasco. Descreveram suas dificuldades

durante a gravidez e acenaram para a falta de conhecimento da mulher sobre o seu

corpo e sobre os métodos contraceptivos. Algumas indagações foram listadas pelas

mulheres que concluíram que os Centros e Postos de Saúde não eram capazes de

atender a demanda das comunidades pobres, atendendo a população de forma

precária. Para melhorar a saúde feminina elas propuseram que as unidades de

saúde distribuíssem pílulas anticoncepcionais304.

O tema dos encontros não era uma proposta fechada pelo centro, era

decorrente do diálogo e das discussões que ocorriam nos coletivos de mulheres,

que acreditavam ser importante a formação de mães conscientes sobre o corpo

302

Cf. Relatório anual de 1982, seção V – Trabalho com as mulheres. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 14. 303

Cf. Jornal passo-a-passo edição nº 9, página 2, fundo do CDDHO-CEDIC, caixa número 12. 304

Idem.

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156

feminino e a respeito de métodos existentes para evitar a grande quantidade de

filhos que muitas famílias possuíam no período.

A organização das mulheres favoreceu a construção de meios funcionais para

levar conhecimento para as famílias a fim de melhorar a qualidade de vida nas

periferias, onde a pouca informação, decorrente da baixa-escolarização, coexistia

com escassas ações públicas na área da saúde pública e da educação.

A partir desses encontros as mulheres passavam a lutar pelo direito ao corpo

e à sexualidade feminina. Esse desdobramento do movimento incomodava setores

tradicionais do clero em Osasco. Além das dificuldades que as lideranças femininas

possuíam para manter essas pautas no interior do movimento, que contava com a

participação de um número restrito de mulheres devido às dificuldades já

mencionadas, eram ainda desencorajadas pelos padres de algumas paróquias, que

criticavam o teor das discussões pela forma como se contrapunha à moral religiosa.

Conforme recorda D. Ione:

Nós fizemos uma reunião de núcleo, com os padres inclusive, que nós fomos falar com eles porque nós não concordávamos com o que eles estavam fazendo, e até esses padres diferenciados dos outros também questionaram a gente: A coisa está indo longe demais, eles já estão inclusive nos questionando. 305

Segundo Renata Gomes Netto (2006), apesar da forte presença feminina em

movimentos católicos, a questão da sexualidade na igreja era um tabu, ora

associada ao desejo proveniente do pecado original, carregada de tentação e

sedução, ora restrita á figura da maternidade e reprodução, considerada como

edificadora da moral familiar embasada na família patriarcal, devendo a prática do

sexo se acomodar no interior dessas condicionantes:

O modelo negativista em relação à sexualidade está ainda presente na Igreja católica por meio de regulamentações das práticas sexuais. Os últimos papas e João Paulo II e Paulo VI, e o atual representante da Igreja, papa Bento XVI, perpetuam as condenações dos contraceptivos naturais, considerando maus de natureza por incitarem a prática sexual como mera busca pelo prazer. 306

Apesar das dificuldades as ações femininas contribuíram para a

conscientização de muitas mulheres. Sobre este aspecto, a memória de Maura

torna-se elucidativa. Ela era jovem quando passou a atuar junto ao movimento de

direitos humanos em Osasco e se relacionou com esse grupo de mulheres, que

305

Idem. 306

NETTO, página 77, 2005.

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estavam na vanguarda de diversas atividades de formação e de processos

reivindicativos:

Recebi muito, foi uma formação diferenciada em relação até as outras pessoas da minha época, porque não foi uma formação de faculdade, mas foi uma formação de vida mesmo, foi uma universidade de vida e que essa universidade mudou muito a minha realidade e aquilo que eu pude trazer de contribuição para a cidade. Com esse movimento todo, eu pude ter uma atuação diferenciada enquanto mulher até nessa linha “mulher”, pelo fato de que as mulheres, principalmente as mulheres dessa época, a maioria eram donas de casa e sem muito envolvimento. 307

A partir de 1980 a organização das mulheres em torno de núcleos

reivindicativos se expandiu, alcançando cinco coletivos de bairro, que possuíam

relação com os clubes de mães de algumas paróquias da cidade.

O trabalho tem se desenvolvido satisfatoriamente nos 5 clubes em que temos trabalhado. Sendo o enfoque em todos os bairros problema da infraestrutura que não existe e falta de união e entrosamento e falta de consciência das mulheres e moradores dos bairros. 308

Em bairros como Jd. Padroeira I e II, Jd. Das Bandeiras, Jd. Joelma, a

mobilização resultou na relação com Grupos de Saúde, que estavam estruturados a

partir da atuação de mulheres que reconheciam as necessidades de seus bairros e

criavam estratégias para serem ouvidas pelo poder público. Nos bairros de Jd.

Tereza, Jd. Cipava e Jd. Santo Antônio se formaram grupos de mulheres ativas nos

movimentos sociais existentes em seus bairros, que trouxeram formas de

organização que iam além das reivindicações junto ao poder público, uma vez que

buscavam elas próprias a resolução dos problemas vivenciados. Assim, passavam a

ter uma atuação destacada no Centro de Defesa dos Direitos Humanos, sobretudo

em campanhas e ações que foram desenvolvidas nos locais onde viviam.

As Mulheres que participavam das ações comunitárias do CDDHO romperam

o isolamento e se conscientizaram sobre a saúde de suas famílias e sobre a questão

do saneamento básico. Conquistaram creches, iluminação de ruas e linhas de

ônibus, mas enfrentaram dificuldades com relação à opressão sobre seu sexo,

sobretudo por sua vinculação com a igreja, cujas pautas seguiam lideradas por

homens. Aparelhadas na entidade de direitos humanos e em núcleos que partiam de

307

Depoimento concedido por Maura ao pesquisador Lucas Alves de Camargo no dia 13 de agosto de 2015. 308

Cf. Relatório anual de 1982, seção V – Trabalho com as mulheres. Op. cit.

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seu ativismo nas CEBs, tiveram que lidar com o papel contraditório dos movimentos

da igreja, que apoiavam a vinculação feminina enquanto inibiam aspectos de sua

atuação ao seguir propondo papeis tradicionais.

Assim, a vinculação de coletivos comunitários com o CDDHO, que contava

com a atuação de lideranças femininas, ampliou o horizonte de luta da entidade,

tornando-se simultânea a ação jurídica e a formativa, cujo objetivo era expandir a

discussão sobre os direitos humanos para diversas áreas da cidade.

3.3 - Projetos de Formação Comunitária

Para difundir e ampliar a temática dos direitos humanos em Osasco o

CDDHO buscou consolidar um trabalho de divulgação e formação das comunidades

na área dos direitos civis e humanos. A principal ação criada no interior desse

projeto foi uma atividade semanal, com periodicidade anual, que teria o objetivo de

abranger as diversas comunidades presentes na luta e alcançar os bairros com

núcleos atuantes na cidade. Assim, foi construído um evento de alcance regional

denominado de Semana de Direitos Humanos de Osasco.

No evento a entidade apresentava os seus trabalhos e buscava estabelecer

um contato mais próximo com os núcleos dos bairros. Deste modo, a semana era

formada enquanto um espaço de diálogo e reflexão sobre a realidade da cidade e a

centralidade da luta pelos direitos. Conforme se recorda Cida, ela visava:

Anunciar os direitos humanos, formar em direitos humanos e denunciar as violações dos direitos humanos. Todo ano era feita, por ocasião em Dezembro, mês de aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. 309

A semana de direitos humanos era organizada em parceria com a Pastoral

de Direitos Humanos. Consistia no desenvolvimento da proposta da Comissão

Arquidiocesana de Direitos Humanos de São Paulo, para a divulgação da temática

dos direitos humanos em toda arquidiocese. Os eventos ocorriam nas salas das

igrejas da cidade e contavam com a participação de padres, médicos, advogados,

professores, ativistas e membros das comunidades. Havia um tema central, que era

desmembrado em mesas de diálogo. Contava-se também com atividades paralelas,

como a apresentação de filmes, campanhas de prevenção e conscientização e

divulgação de materiais diversos. 309

Depoimento concedido por Cida ao pesquisador Lucas Alves de Camargo, op. cit.

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O CDDHO convidava palestrantes, além de dezenas de ativistas da região,

personalidades políticas e membros do clero. Eram presenças comuns, Leonardo

Boff e Plínio de Arruda Sampaio. Os padres que atuavam nos movimentos pastorais

também contribuíam no preparo e realização do evento, que alcançava as paróquias

mais engajadas, conforme se recorda Carlos:

Então, a gente tinha muito contato com os padres e com as lideranças das comunidades. A gente era chamado para fazer palestras, debate, em toda diocese, junto com a diocese e junto com essa prioridade da pastoral dos direitos humanos, então junto com a pastoral dos Direitos Humanos a gente fazia todo ano uma semana de Defesa dos Direitos Humanos; a gente elegia temas e fazia debate nas comunidades junto com os padres, junto com os militantes e tal, a gente fazia uma semana inteira de debates, fazia cartazes, fazia cartilhas, então além de fazer essa questão de defesa com advogados, a gente fazia a formação. 310

Os temas do encontro eram divulgados em diferentes paróquias onde havia

uma militância presente na luta pelos direitos humanos. Cada igreja recebia um

tema especifico em datas diferentes, totalizando uma semana de evento. Os temas

recorrentes durante os anos de duração do evento foram a violência policial; família

e controle da natalidade; terra e moradia; meios de comunicação social; crise;

desemprego e salário.

O tema escolhido para a semana de direitos humanos refletia aspectos da

conjuntura nacional e estava relacionado com a experiência resultante dos trabalhos

da entidade na região. Assim, em 1979 o CDDHO e a Pastoral de Direitos Humanos

promoveram o encontro com base no problema dos menores, como revela o

relatório anual de atividades da entidade de 1979:

A pastoral dos direitos humanos e marginalizados junto com o Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco, em vista da grande mobilização em torno da problemática do menor, especificamente, discussão do projeto de lei para diminuição da maioridade penal de 18 anos para 16 ou 14 e do ano internacional da criança (1979) acharam conveniente tratar do problema do menor na Semana de Direitos Humanos de Osasco. 311

O encontro teve como objetivo fomentar o diálogo sobre as propostas dos

projetos de lei número 334, de autoria do Deputado Federal Péricles Gonçalves

(MDB), e 370, de autoria do Deputado Federal Antônio Zacharias (MDB). As

propostas defendiam a redução da idade para a punição de menores. De acordo

310

Depoimento concedido por Carlos ao pesquisador Lucas Alves de Camargo, op. cit. 311

Cf. Relatório anual de atividades de 1979. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 8.

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com Brites e Nunes (2015), o governo ditatorial buscava reformar a legislação sobre

a punição aos menores, com a edição do código de 1927, que ainda vigorava.

A reforma da legislação sobre assistência às crianças pobres no próprio ano de 1979, com a edição do Código de Menores que revogava o anterior editado em 1927, expressava cabalmente a intenção interventora e arbitrária do Estado, cristalizando a doutrina da Situação Irregular, com amplas faculdades atribuídas ao Estado para retirar de circulação as pessoas com menos de 18 anos, impondo-lhes privações da liberdade com internações intermináveis, e que mantinha a idade de responsabilização penal a partir dos 18 anos. 312

O centro buscava dialogar e abranger a discussão nacional através da

observação da realidade de Osasco, segundo a percepção dos pobres, moradores

da periferia, que em sua visão, estariam mais suscetíveis à aplicação da medida.

Assim, através da escolha desse tema esperava-se:

Constatar através do levantamento de dados e denunciar a realidade de vida do menor em Osasco e cidades vizinhas e apresentar, levantar junto com a assembleia presente na semana, propostas de trabalho. 313

O evento foi antecedido por reuniões entre o CDDHO e outras entidades da

região, como membros da Ordem dos Advogados, da Confederação de Amigos do

Bairro, o Sindicato dos Metalúrgicos e dos Químicos. A entidade buscava ampliar a

discussão e embasar os argumentos com uma leitura jurídica dos projetos de lei.

A semana de direitos humanos ocorreu no salão paroquial da Matriz de

Osasco, onde estiveram presentes cerca de 300 pessoas. Foram discutidos os

seguintes assuntos: Introdução à realidade de Osasco, fala proferida por membros

da comunidade do KM 18; o menor antes de nascer, organizado por membros do

CDDHO; menores: delinquência e prostituição, sob a responsabilidade do grupo

pastoral coordenado pelo Padre Agostinho; entidades e instituições que trabalham

com menores em Osasco, a cargo do grupo de mulheres do bairro de Vila Yolanda.

Os núcleos, provenientes dos bairros da cidade, formaram comissões de

trabalho de até dez pessoas, responsáveis por desenvolver pesquisas sobre os

assuntos escolhidos para o encontro. Sempre em consonância com o cotidiano da

região. Com esse objetivo, o coletivo de jovens do bairro de KM 18 percorreu as

312

BRITES & NUNES, Projeto História, São Paulo, n. 54, página 61, Set-Dez. 2015. 313

Cf. Relatório anual de atividades de 1979. Op. Cit.

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ruas da cidade para pesquisar a vida dos menores moradores de rua. Com a

pesquisa perceberam:

O Contraste do centro de Osasco e sua periferia; a população favelada; a subnutrição; as moradias precárias; o menor na rua; o menor no trabalho; o menor nas escolas periféricas de Osasco, as entidades e instituições que trabalham com menores. 314

Como resultado dessa percepção, concluíram que o modo de vida dos

menores das periferias, contribuía para a sua vinculação com a criminalidade.

Esses trabalhos fomentavam a interlocução entre os objetivos da entidade e a

realidade da região. Possibilitavam o reconhecimento, por parte dos militantes das

comunidades, das precariedades vividas pela população e das contradições entre os

diferentes bairros da cidade. Por sua vez, a entidade nutria-se de tais informações

para organizar sua atuação:

Sabemos das grandes dificuldades que a população marginalizada é vítima a cada dia: a violência da falta de emprego, da fome, da miséria e, talvez a pior das violências sofridas pelo povo, a própria violência institucionalizada pelo governo, supostamente o primeiro a ter de defender-lhe os direitos. 315

Através do grupo de mulheres do bairro de Vila Yolanda, discutiu-se as

creches na região. O coletivo feminino visitou creches da cidade e conversou com

mães de diferentes bairros. Durante o evento elas chegaram às seguintes

conclusões:

As condições de trabalho (nas creches) são péssimas, os salários são baixos e existe ainda a disputa das mães por vagas nas creches, a espera nas filas são grandes. Proposta: Comissões de controle, trabalho no bairro; as comunidades devem se empenhar, fiscalizar, reivindicar dos órgãos competentes o que é de direito. Não é suficiente conquistar creches. É importante que essas creches funcionem a contento da população. É importante o povo conquistar o poder de decisão. 316

O CDDHO por sua vez, incentivava a fiscalização e cobrança do poder

público, com o objetivo de que as instituições funcionassem de acordo com a

necessidade da população.

O centro também incentivou a analise da legislação existente acerca do

problema. No caso das creches, os participantes constataram que as leis que

314

Cf. Relatório de resultados da semana de direitos humanos de 1977. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 8. 315

Cf. Nota do CDDHO sobre o fim da produção do Jornal Passo-a-passo em 1984. Fundo do CDDHO, caixa

14. 316

Cf. Relatório de resultados da semana de direitos humanos de 1977. op. cit.

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garantiriam o atendimento para filhos de mães trabalhadoras não estava sendo

cumprida. O movimento acenou para a necessidade de luta coletiva contra a “fraude

da lei”, entendida como o não cumprimento da legislação para os pobres.

O CDDHO consolidou os entendimentos provenientes das diferentes

comunidades que participaram do evento e enviou suas interpretações sobre o

projeto de redução da maioridade penal para juristas e vereadores de Osasco

alinhados ao MDB. Através da participação das comunidades a entidade construiu o

entendimento de que o projeto seria danoso para as camadas mais pobres da

sociedade, que estariam mais afetadas à violência e marginalização devido à sua

precariedade material.

As campanhas do CDDHO possibilitaram a construção de espaços de dialogo

onde as camadas populares entravam em contato com questões de abrangência

nacional, onde realizavam reflexões e balizavam propostas de acordo com suas

premissas.

Assim, os militantes das comunidades passavam a perceber a ação jurídica

enquanto um campo de luta viável, onde a atuação poderia se desenvolver para o

benefício da população subalterna.

Esse contexto favoreceu a construção coletiva da noção de direitos, que

fomentava um novo espaço para a cidadania. Tal aspecto do movimento consolidou

a formação de uma cultura política que partia das reclamações e das reivindicações

comunitárias para alcançar o campo do direito. De acordo com Pedro R. Jacobi

(1987), esses aspectos foram disseminados por alguns movimentos coletivos

urbanos no início da década de 1980:

Os movimentos populares urbanos têm tornado manifesta uma identidade que se concretiza a partir da construção coletiva de uma noção de direitos, que, relacionada diretamente com a ampliação do espaço de cidadania, dá lugar ao reconhecimento público das carências. 317

Entre as propostas levantadas para o atendimento à falta de vagas nas

creches buscou-se a vinculação com a luta sindical metalúrgica, que poderia apoiar

o movimento ao difundir a reivindicação por mais creches como parte de suas

demandas. Em diversas ocasiões nos anos de atuação do CDDHO esteve evidente

o trabalho conjunto com outras frentes de ação. Outras entidades colaboravam com

317

JACOBI, pág. 13, 1987.

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iniciativas na área dos direitos humanos e com o compartilhamento das pautas de

luta. As mulheres destacavam, ainda, a importância de o movimento conquistar os

espaços burocráticos da máquina pública para que a execução das ações ocorresse

no interior das estruturas do poder público Municipal.

No final do evento de 1979. enfatizou-se a, “esperança muito grande de

organizar as bases para uma luta popular” 318. Neste momento o CDDHO consolidava

os seus objetivos e definia os rumos da luta que viria a edificar junto das

comunidades, ação que partia da prática e da conscientização. Esse entendimento

era compartilhado por um dos membros do CDDHO presente na reunião:

Parece que o CD está mais coeso, caminhando para a coesão, consenso de prática não de ideias. [...] Trabalho na área da saúde voltou-se mais para a conscientização do que uma espécie de assistencialismo que se propunha no começo. 319

A análise da experiência estabelecida nos dois primeiros anos de atuação

levou a entidade a definir um novo rumo para suas ações. Esperava-se que o

CDDHO partisse menos de campanhas de solidariedade, assistencialismo

fomentados pela cúria paulistana através da CADH, e passasse a defender as lutas

populares da região em suas demandas com o Estado. Assim, a defesa dos direitos

humanos deveria conter uma atuação que buscasse a coesão com as classes

populares e seus objetivos imediatos. No entender dos participantes a entidade

deveria:

Ultrapassar o que está estabelecido e definido. Reconceituar o que é o centro de defesa, no ideológico, político, social. Tem que ser um organismo não só de conscientização e mobilização, mas como defensor global das classes populares. 320

Já no ano de 1982 houve o desmembramento da Semana de Direitos

Humanos em três setores específicos: Matriz de Santo Antônio, Igreja do Bom Fim e

Barueri, com um total de 230 participantes por dia. Essa descentralização objetivava

a participação de um número maior de comunidades. O Centro buscava o diálogo

sobre temas de interesses de cada comunidade onde o evento foi realizado, assim

“primeiro ouvia-se o povo do lugar e em cima disso conversava”. 321

318

Cf. Documento com dados de reunião interna. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 8. 319

Idem. 320

Idem. 321

Cf. Relatório da reunião preparatória da Semana de Direitos Humanos. Fundo do CDDHO-CEDIC, pasta

número 16.

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No decorrer do encontro os participantes realizaram um amplo diálogo sobre

as experiências realizadas pelas CEBs em seus bairros. A partir do relato dos

militantes das comunidades os debatedores convidados pelo CDDHO apresentaram

reflexões que abrangiam a relação entre fé e política, insistindo na centralidade do

vínculo entre as duas esferas da vida social, que em sua visão, faziam parte de um

mesmo processo de luta. De acordo com as conclusões do centro sobre o encontro:

O povo viu que faz política nos trabalhos que estão levando e ficou mais claro como deve ser a participação na política e a necessidade dessa participação. 322

Em parceria com a CADH a entidade elaborou uma cartilha que buscava incentivar

as pessoas à realização de uma conexão entre as práticas religiosas e a atuação social:

Severino: Eu acho que ter fé é acreditar em Deus. Maria: Mas, para que a gente possa realmente acreditar em Deus é necessário estar ao lado dEle, aceitodo-O bem como o seu projeto de vida. Severino: Ah, agora eu posso entender o que diz São João no seu Evangelho no capítulo 3 versículo 21: “Aquele que pratica a verdade, vem para a luz. Torna-se claro que as suas obras são feitas em Deus”. Joaquim: Então, não pode haver uma vida de fé, sem a prática da verdade (...). Maria: E sem usar palavras difíceis, São Thiago nos alerta sobre a necessidade de unir fé e vida. São Thiago diz o seguinte: “De que aproveitará, irmãos, alguém dizer que tem fé, se não tiver obras? Acaso esta fé poderá salva-lo?” Se a um irmão e a uma irmã faltarem roupas e o alimento cotidiano, e algum de vós lhe disser: “Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos”, mas não lhe der o necessário para o corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: Se não tiver obras é morta em si mesma. 323

Os trechos de diálogo eram intercalados com perguntas que seriam discutidas

durante os encontros:

1 – Você acha que a fé só serve para a vida interior? 2 – O que responder a quem afirma que a fé não tem nada a ver com a vida social? 3 – Os cristãos estão preparados para assumir seus compromissos sociais?. 324

Os participantes explanavam suas opiniões. Enfatizavam a necessidade de

obrar para melhorar a “situação das coisas” 325, e traziam suas experiências que

322

Cf. Cartilha sobre a atuação social dos cristãos, 1982. Fundo do CDDHO-CEDIC, caixa 23, et. seq. 323

Idem. 324

Cf. Relatório de conclusão da semana de direitos humanos de 1982. Fundo do CDDHO, caixa 23. 325

Cf. Cartilha sobre a atuação social dos cristãos, 1982. Op. cit.

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acenavam para os limites e problemas dessa atuação, sobretudo com relação ao

“desconhecimento das coisas” 326 e à limitação imposta pelo ritmo de trabalho diário.

O momento de diálogo era seguido pela leitura de um novo trecho do

documento. Esta etapa apresentava a fala de personagens que representariam os

militantes das CEBs em uma discussão sobre a relação da fé com a atuação

política:

Joana: Se é fácil definir o que é fé, é bem mais difícil definir o que é política. Que tal começar a dizer que a política é uma virtude? Um aspecto da virtude da prudência? [...]. Maria: Cristo não definiu a política, mas nos deu uma noção concreta de política quando falou do bom pastor. O bom pastor conhece suas ovelhas, as chama pelo nome, vai adiante delas, dá a vida por elas, se preocupa com as ovelhas perdidas... (jó 10,1-16). Joaquim: É que nós conhecemos mais a politicagem do que a política. A politicagem não se preocupa com o bem comum, mas visa seu interesse. [...] É a figura do mercenário, não a do bom pastor. [...] Manoel: Uma das grandes conquistas da sociedade moderna é a democracia. Mas democracia exige participação. Não há verdadeira democracia até que não haja verdadeira participação. Isso supõe que a sociedade dê para todos a informação correta o debate livre a organização de grupos. Mas exige também que os cidadãos acordem de seu sono, se interessem pelos problemas sociais, participem das grandes decisões nacionais e locais. Joana: E esta participação na vida social e política é a função própria dos leigos. [...] Joana: E assim vimos claramente que Fé e Política não são duas coisas separadas: a política é uma vivencia da fé, e a fé se concretiza na política. Maria: E é através da fé que a política descobre o Projeto de Deus, e procura realiza-lo, para criar uma sociedade mais humana e mais fraterna [...]. 327

Neste trecho percebemos tanto uma matriz politica quanto religiosa. Assim,

a realidade acenava para a necessidade de luta em prol da superação da

precariedade das condições existentes, sendo a religiosidade um caminho para a

efetivação das ações coletivas. Com essa leitura o CDDHO incentivava os militantes

católicos e as CEBs para uma atuação que promovesse ações capazes de

extrapolar a esfera religiosa, alcançando também uma perspectiva reivindicativa.

Esse aspecto do movimento consolidou a atuação social que foi promovida

pela teologia da libertação, um dos pilares de fundação do projeto comunitário do

CDDHO. Para os teólogos da libertação o movimento social deveria buscar no

326

Idem. 327

Idem.

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exemplo bíblico o embasamento para a ação sobre a realidade, de modo que os

pobres consolidassem sua libertação com o uso de ferramentas teológicas328.

Michael Lowy (1999) analisou estas relações entre a fé e a atuação social

nos movimentos abarcados pelo cristianismo de libertação:

“Na América latina ambas tem um significado muito mais amplo e mesmo quando permanecem autônomas, desenvolve-se um elo verdadeiramente dialético entre elas. Conceitos tais como “trabalho pastoral” ou “libertação” têm um significado que é tanto religioso quanto político, tanto espiritual quanto material, tanto cristão quanto social”. 329

Em sua percepção, concluiu que no cristianismo proveniente da libertação,

existente em um ramo da igreja da qual o CDDHO se originou, a comunidade

aparece enquanto um valor transindividual central, que pode ser tanto

étnico/religioso quanto sócio/político. Essa condição permitiria, ainda, a afinidade

eletiva entre a ética religiosa e as utopias sociais, das quais os direitos humanos

certamente se relacionam.

Assim, o projeto comunitário do CDDHO alcançou uma vinculação entre a fé

e a atuação política utilizando-se de novos instrumentais analíticos, que

disseminaram a possibilidade de realização de uma nova leitura da bíblia em relação

ao processo de libertação, que deveria partir da luta dos pobres por sua

autolibertação.

Com esse contexto as Semanas de Direitos Humanos se consolidaram como

um espaço de divulgação da luta pelos direitos humanos para as bases, mas

também se transformaram em um momento de consolidação da identidade do

movimento. Esses eventos resultaram em dois aspectos centrais. O primeiro diz

respeito à construção da experiência de ação do CDDHO sobre a realidade material

de sua área de atuação. Sobre este aspecto o centro construiu seus entendimentos

com base nas pesquisas, análises e experiência dos militantes, que nutriram a luta

com elementos que eram oriundos da região de Osasco, e por isso, possuíam

aspectos próprios. O segundo diz respeito às interpretações resultantes dos diálogos

e das discussões promovidas pelo CDDHO com as comunidades. Este aspecto

definiu os rumos da luta e posicionou a atuação do CDDHO para problemas que se

destacavam aos olhos dos militantes. Assim, a luta pelos direitos humanos deixava

328

Como demonstrado no capítulo 1.1. 329

LEWY, página 62, 1999.

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de se embasar unicamente nos conceitos filosóficos contidos na carta de direitos

humanos da ONU e nos textos da igreja e se voltava para as causas populares, com

auxilio de mecanismos de interpretação oriundos, sobretudo, da sociologia marxista

e da Teologia da Libertação.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O CDDHO foi projetado para ser uma entidade de luta jurídica que objetivaria

a defesa dos casos de violência, sobretudo policial, contra a população pobre da

região de Osasco. Com essa perspectiva a entidade criou um plantão de

atendimento para as Comunidades, com a perspectiva de luta social através dos

regimentos burocráticos do Estado.

A partir da relação dos fundadores do CDDHO com outros movimentos

sociais, o centro ampliou suas ações, consolidando-se enquanto uma entidade

capaz de unificar múltiplos interesses em um projeto de atuação que abrangia tanto

a luta no interior das estruturas jurídicas quanto um movimento comunitário amplo,

que se desenvolvia em bairros e paróquias, passando a envolver inúmeras pautas

oriundas da experiência coletiva vivida nas periferias da cidade de Osasco.

Com o compromisso de formar pessoas e comunidades, capazes de

esclarecer e ajudar a orientar os cidadãos e os coletivos da sociedade civil no que

concerne aos seus direitos, o CDDHO desenvolveu campanhas em jornais da

cidade, estimulou fóruns de discussões e debates, promoveu projetos de formação

comunitária, criou um jornal de divulgação das suas pautas e estruturou uma

semana anual de direitos humanos. Através dessas ações a entidade defendia a

conscientização para a tomada de decisão a partir dos sujeitos, que auxiliariam a

construção da cidadania com ações comunitárias que seriam compartilhadas em

suas diversas áreas de atuação social.

Este contexto favoreceu a construção de atuações jurídicas através de pautas

populares, que passavam a ser compreendidas como uma forma possível de luta

social, capaz de ampliar o espectro de ações que buscavam a promoção de uma

sociedade mais justa.

Não acreditamos em mudanças profundas na sociedade através de

medidas vindas de cima. Quando o povo se organiza, se une nos

bairros, nos sindicatos, nas comunidades, nos grupos populares –

até que a transformação vai acontecendo. Nós do CDDHO apoiamos

e incentivamos todo tipo de luta popular e colocamos nossa sede,

nossos técnicos, jornal e militantes, à disposição. Acreditamos na

transformação, mas sabemos que ela não acontecerá se não houver

muita luta. 330

330

Cf. Jornal Passo-a-passo, Edição 10, Página 1. Agosto de 1984. Fundo do CDDHO, caixa 9.

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O Centro apresentava para as classes populares os ideais da declaração dos

direitos humanos, com ênfase na importância de seus artigos para a construção do

direito a vida, ao trabalho, a segurança, a justa remuneração, a moradia, a saúde, a

educação e ao lazer. Em seu trabalho de formação estabeleceu parâmetros de

comparação entre os pressupostos dos direitos da pessoa humana com a realidade

enfrentada pela população mais pobre do país. Evidenciava na realidade brasileira a

violação aos direitos humanos no índice de mortalidade infantil, no desemprego, no

arrocho salarial, no alto custo de vida, na precariedade das moradias e dos bairros

periféricos, na desigualdade do campo, na educação e saúde. Entendia que a

população mais pobre era vítima de um sistema opressivo, alienante, que contava

com o apoio dos grandes veículos de comunicação para a promoção do ódio e da

dominação das classes hegemônicas. O resultado da aproximação dos direitos

humanos com a realidade material dos subalternos levou a uma percepção de que a

luta pelos direitos deveria se constituir enquanto conscientização contra as formas

existentes de opressão:

Todas essas violências geram na população um estado de tensão e

insegurança que faz com que o próprio povo tone-se cada vez mais

violento. Essa violência é incentivada e sustentada pela classe

dominante através do rádio, dos jornais e da televisão, para que o

povo fique dividido e não tome consciência da situação de opressão

que vive. 331

O intercâmbio entre a esfera jurídica e as demandas trazidas pelas

comunidades amplificou a luta por direitos na região. Nesse processo ocorreu a

formação de uma cultura popular reivindicativa capaz de democratizar a cena

pública através de núcleos de moradores que possuíam destacada atuação política

em seus bairros. Nesses espaços as matrizes históricas de organização política se

intercambiaram e formaram um contexto de ampla mobilização comunitária.

Como resultado a entidade identificou na defesa dos direitos humanos uma

proposta para a transformação de toda a sociedade. A luta pelos direitos humanos

conciliava os ensejos da militância católica, ao aproximar a fé da atuação social.

Valia-se da experiência de organização operária para a estruturação do movimento,

utilizando métodos de organização e atuação que haviam sido experimentados por

parte de seus militantes, ao mesmo tempo em que erigia uma perspectiva de ação

331

Cf. Jornal passo-a-passo, Edição nº 7, página 1, dezembro de1983. Fundo do CDDHO, caixa 9.

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embasada na não-violência ativa, oriunda da relação da novidade eclesial com as

práticas oriundas da experiência operária. Assim, a luta edificada previa o combate

às formas de injustiça e incentivava a existência de uma mobilização popular capaz

de modificar as estruturas em beneficio da igualdade, uma perspectiva de ação que

em sua visão, beneficiaria as populações subalternas e amenizaria as diferenças

entre os homens. Esse processo resultou na construção de um movimento social

que atuava no sentido de reivindicar os direitos.

A luta pelos DH é a tentativa concreta de superação dessas diferenças. É a tentativa de construção de uma sociedade justa e fraterna, além de igualitária. É a denúncia da violação aos direitos fundamentais da pessoa. Mas não somente a denúncia: é também o chamamento à concretização desse ideal, que somente em nossos trabalhos podemos realizar. 332

Nesse processo, as reivindicações sobre saúde, educação, infraestrutura e

serviços públicos, foram relacionadas à luta pelos direitos humanos. Assim, o direito

da pessoa humana passava a ser compreendido enquanto direito dialético333.

Deste modo, o projeto de aproximação das comunidades pobres alcançado

pelo CDDHO foi preponderante para a mudança de enfoque dos direitos reclamados

pela entidade, pois eles foram alicerçados sobre as contradições percebidas em sua

luta. Do mesmo modo como o cristianismo de libertação realizou uma leitura do

evangelho à luz de suas práticas, o movimento de direitos humanos de Osasco,

estruturado a partir do relacionamento do CDDHO com as comunidades da região,

construiu uma ressignificação sobre os direitos humanos que partia de sua práxis.

Através de sua experiência de atuação, a entidade desenvolveu a percepção

de que os direitos humanos seriam interpretados como formas múltiplas de

reivindicações provenientes das comunidades pobres. Consistia no entendimento de

que o Estado possuía obrigações com os pobres e, portanto, as pautas da luta não

necessitavam estar positivadas na legislação, uma vez que eram consideradas

justas por serem entendidas como privação e negação de direitos.

332

Nota do CDDHO sobre o término da produção do jornal Passo-a-Passo em 1984. Fundo do CDDHO, caixa

14. 333

A percepção dialética presente neste trecho faz referência à dialética marxista, que identifica enquanto base

para as transformações sociais à contradição resultante da luta entre as classes sociais antagônicas e a primazia

da ação humana, materializada pelo processo de trabalho, sobre a construção do social. Assim, a história seria

movida pelas ações humanas, vivenciadas enquanto contradição e transformação. De acordo com Agnes Heler

(1979), sobre a perspectiva de Marx, a história é formada em um processo de exteriorização da essência humana,

entendida como objetivação da socialidade, universalidade, consciência e liberdade, enquanto realização gradual

e contínua das possibilidades imanentes do gênero humano. Cf. HELLER, Agnes: O cotidiano e a história. Rio

de Janeiro, Paz e terra. 10ª Edição, trads. Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder. 2014.

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Em decorrência desse processo, no lugar das noções hegemônicas se

consolidou uma visão dialética, que percebia os direitos humanos enquanto o direito

dos empobrecidos. Esta construção teve a novidade de embasar-se mais na

experiência de vida e atuação comunitária do que em conceitos filosóficos e jurídicos

de leis naturais ou positivas.

Assim, através da ação desenvolvida pelo CDDHO os entendimentos a

respeito dos Direitos Humanos mudaram de direção. Eles não seriam naturais a

partir de algo externo ao ser humano. Estes direitos estariam alicerçados na

materialidade da vida cotidiana dos pobres e seriam concebidos a partir das suas

reivindicações e necessidades.

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Tabela 1 – Listagem de entrevistados.

Nome

Experiência no movimento de Direitos Humanos

Padre Claudio Padre, auxiliou nos trabalhos desenvolvidos pelo CDDHO e

demais movimentos populares.

Padre Tião

Padre, atuante no CDDHO e em movimentos de luta por

moradia, sobretudo nos bairros de jardim Novo Osasco e

Jardim Conceição.

Maura Militante de comunidade de base, organizou projetos

fomentados pelo CDDHO na cidade de Jandira.

Carlos Alberto Militante da comunidade de base do bairro do Km 18, atuou

no CDDHO e exerceu atividades na diretoria da entidade.

Maria Aparecida

Militante da Comunidade do KM 18, foi plantonista do

CDDHO. Participou de inúmeras atividades fomentadas pela

entidade.

Maria Isabel Militante de comunidade de Base, atuou em movimentos de

direitos humanos em Osasco.

Maria Ione

Militante da comunidade de base de Vila Yolanda. Atuou na

formação do CDDHO, em coletivos populares e grupos de

mulheres organizados a partir da paróquia do bairro de Vila

Yolanda.

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Tabela 2 – Casos atendidos com fichas preenchidas.

Tipos de caso Quantidade

Violência policial 26 casos

Trabalhista 11 casos

Escrituração de terrenos 09 casos

Documentação 04 casos

Saúde 04 casos

Familiar 11 casos

Diversos 10 casos