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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP ISABELLA NOGUEIRA PARANAGUÁ DE CARVALHO DRUMOND POR UM DIÁLOGO ENTRE LIBERDADE RELIGIOSA E O DIREITO DAS FAMÍLIAS DOUTORADO EM DIREITO São Paulo 2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

ISABELLA NOGUEIRA PARANAGUÁ DE CARVALHO DRUMOND

POR UM DIÁLOGO ENTRE LIBERDADE RELIGIOSA E O DIREITO DAS FAMÍLIAS

DOUTORADO EM DIREITO

São Paulo

2016

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ISABELLA NOGUEIRA PARANAGUÁ DE CARVALHO DRUMOND

UM DIÁLOGO ENTRE LIBERDADE RELIGIOSA E O DIREITO DAS FAMÍLIAS

DOUTORADO EM DIREITO

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para obtenção

do título de Doutor em Filosofia do Direito sob

a orientação do Prof. Dr. Cláudio De Cicco.

São Paulo

2016

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BANCA EXAMINADORA

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Ao meu herói e à minha musa, meus pais, Rogério e Cláudia.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, fonte de luz e sabedoria.

À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), especialmente ao

Prof. Cláudio De Cicco, por seu carinho e excelente orientação; ao Prof. Álvaro de

Azevedo, pela cordialidade e atenção a mim concedidas; aos Juristas Rodrigo da

Cunha Pereira e Rodolfo Pamplona, pelo saneamento de dúvidas e estímulo à

descoberta de novos rumos; e aos colegas Rafael e Rui da Coordenação da Pós-

Graduação em Direito, pela gentileza e por terem me ensinado o lado administrativo do

Ensino Jurídico.

Aos meus pais, Rogério e Cláudia, pela criação exemplar, por seu apoio

constante, e, principalmente, pelo esforço a mim dedicado, fruto de grande amor. Aos

meus irmãos, Rodrigo e Vinícius, pelos momentos de alegria, e nos quais procuro

estimular a busca incessante do conhecimento. À minha família, em especial à minha

mãe-avó, Sônia Paranaguá, nossa base, mulher de caráter, pelo incentivo e amor

frequentes; aos meus tios, Ney, José Filho, Ricardo, Leonardo, Raimundo Jr.,

Jaqueline, Ana, Danielle, Vanessa e Cristiane; aos meus primos, Victor, Alice, Lucas,

Maria Alice, João Pedro, Juninho, Ravenna, Rhavy e Gabrielle, e a meu afilhado, José

Pedro, pela torcida.

Aos meus avós, Raimundo Drumond e Carminha, exemplos de fé, por

transmitirem valores cristãos à nossa família. Agradeço, ainda, à minha madrinha,

Waledice Paranaguá, que me ensinou a ser forte, não importando as adversidades.

Enfim, às minhas duas famílias, materna e paterna.

Ao Bruno, amor da minha vida, pela compreensão e paciência, neste período de

intenso estudo. Homem que me completa, me apoia e faz dos meus sonhos realidade.

E à sua família, por me ter acolhido em São Paulo com tanto afeto.

À amizade do meu orientador de Mestrado, Prof. Dr. Cleber de Deus, pela

disponibilidade e direcionamentos. À Olívia Brandão, que tanto me ajudou nos desafios

de doutoranda. Aos meus amigos de Doutorado, Sérgio Braga e Eudes, pelo

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compartilhamento de ideias e resistência conjunta. Agradeço, ainda, à Turma do Brilho,

minhas amigas de infância, pela fidelidade de décadas, à Equipe do Escritório Cláudia

Paranaguá e aos meus amigos em geral.

Sinto-me agradecida e feliz pela existência de todos. A vocês, minha gratidão.

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Acho ingênuo imaginar ser possível um

mundo sem Religião. Ingênuo e desnecessário. A

função da Ciência não é tirar Deus das pessoas. É

oferecer uma descrição do mundo natural cada vez

mais completa... A conciliação entre Ciência e

Religião só ocorrerá quando ficar claro o papel social

de cada uma. Negar uma ou outra é ignorar que o

homem é tanto um ser espiritual quanto racional

(Marcelo Gleiser).

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RESUMO

DRUMOND, Isabella Nogueira Paranaguá de Carvalho Drumond. Por um diálogo entre liberdade religiosa e o direito das famílias. 2016. 173 folhas. Tese em Filosofia do Direito – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Esta pesquisa foi desenvolvida com o objetivo de criar um diálogo entre liberdade religiosa e o direito das famílias. A sociedade vive um intenso processo de transformação cultural. Para responder às indagações sobre as lacunas existentes no ordenamento jurídico brasileiro no tocante à regulamentação de novos arranjos familiares, a filosofia jurídica possui papel essencial na elucidação das questões através de seus princípios e teorias. Em um mundo pós-secularizado, no qual Religião e Estado ainda precisam entender o espaço de atuação de cada um, estes princípios de justiça demonstram que a sociedade laica pressupõe o respeito à determinação da vontade dos cidadãos, tanto na escolha de sua crença religiosa quanto na opção em viver uma determinada forma de vida familiar. O liberalismo considera que as experiências e valores dos indivíduos são modelados com base em princípios de ordem moral pelos quais só há legitimidade caso haja observância aos princípios do Estado Democrático de Direito, em especial a autonomia dos indivíduos. Para a execução do presente trabalho, foi necessário um passeio pela história da Filosofia do Direito e uma breve análise sobre a ideia de Estado, Religião e Família na Antiguidade, apresentando os pensamentos de Sócrates, Platão e Aristóteles, bem como uma passagem pelo medievo para compreender as lições de Agostinho, Tomás de Aquino e Guilherme Ockham; além de buscar uma ideia de diálogo entre Religião, Estado legal e Famílias sob a visão moderna do pensamento liberal de Kant. Posteriormente, foi abordada a tradição do sagrado no espaço público e os efeitos da secularização, apresentando teorias contrapostas sobre a morte de Deus na esfera pública. Quanto à teoria da secularização foram avaliados os diagnósticos e contribuições de vários filósofos que debatem o tema, sendo destacadas as posições de Herbert Spencer, Emile Durkheim, Max Weber, Karl Marx e Sigmund Freud. Por outro lado, a favor da morte de Deus no mundo contemporâneo, e em oposição à decadência moral religiosa no contexto atual, foram apresentados os argumentos de Alexis de Tocqueville, MacIntyre, Charles Taylor e Maritain. Concluiu-se pela existência de um momento de extremo dinamismo social, levando a sociedade a criar diversos tipos de núcleos familiares, os quais o Estado brasileiro reluta em legalizar, com receio de comprometer a Igreja, haja vista que se trata de uma das instituições que mais trabalha para a família no país. Por fim, torna-se emergencial o estudo do tema, em razão da ciência de o Estado auto afirmar-se laico, fazendo-se necessária a racionalidade prática para a aceitação do que já vem ocorrendo no plano fático com relação às mudanças das famílias, bem como a necessidade de cooperação entre Religião e Estado para que haja o respeito da liberdade religiosa e ao direito das famílias, em concomitância, tudo isso como forma de efetivar a ideia de justiça.

Palavras-chaves: Liberdade. Religião. Direito. Famílias. Estado.

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ABSTRACT

DRUMOND, Isabella Nogueira Paranaguá Carvalho Drumond. For a dialogue between freedom of religion and the rights of families. 2016. 173 pages. Thesis in Philosophy of Law – Pontifical Catholic University of São Paulo.

This research was developed with the goal of creating a dialogue between freedom of religion and the rights of the families. The society is experiencing an intense process of cultural transformation. To answer questions about the gaps in Brazilian law regarding the regulation of new family arrangements, legal philosophy has an important role in the elucidation of the issues through their principles and theories. In a post-secular world, in which Religion and Government still need to understand the performance space of each of these principles of justice demonstrate that secular society requires respect for determining the will of the citizens, both in the choice of their religious belief as the option to live a certain way of family life. Liberalism believes that the experiences and values of individuals are modeled based on principles of moral order in which there is only legitimate if there is compliance with the principles of the Rechtsstaat, especially the autonomy of individuals. For the implementation of this work, it took a walk through the history of Philosophy of Law and a brief analysis of the idea of State, Religion and Family in antiquity, with the Socratic thought, Plato and Aristotle, as well as a passage through the Middle Ages to understand the lessons Augustine, Thomas Aquinas and William Ockham; and seek an idea of dialogue between Religion, Legal State and families under the modern vision of liberal thought of Kant. Subsequently, the sacred tradition in the public space and the effects of secularization was addressed, with opposing theories about the death of God in the public sphere. As for the theory of secularization evaluated the diagnostic and contributions of various philosophers debating the issue, and highlighted the positions of Herbert Spencer, Emile Durkheim, Max Weber, Karl Marx and Sigmund Freud. On the other hand, in favor of the death of God in the contemporary world, as opposed to religious moral decay in the current context, the arguments were presented to Alexis de Tocqueville, MacIntyre, Charles Taylor and Maritain. It was concluded that there was a moment of extreme social dynamism, leading the society to create different types of households, which the Brazilian Government is reluctant to legalize, for fear of compromising the Church, whereas it is one of the institutions that more work for the family in the country. Finally, it is emergency the subject of the study, due to the conciousness of the State to assert itself secular, making necessary practical rationality to the acceptance of what has been occurring in the factual background regarding changes in families, and the need for cooperation between Religion and Government to providing more respect for freedom of religion and the right of families, concomitantly, all as a way of carrying out the idea of justice. Keywords: Freedom, Religion, Law, Families, Government.

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XI

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 13

CAPÍTULO 1 – ALGUNS DIÁLOGOS NA HISTÓRIA E NA FILOSOFIA DO CONCEITO

DE FAMÍLIA ................................................................................................................... 18

1.1 O início das famílias: da Pré-História à Antiguidade –Grécia e Roma .................. 18

1.2 Família, formação do Estado e a marca da religião: pensamento de Sócrates,

Platão e Aristóteles ..................................................................................................... 31

1.2.1. Os pitagóricos, os jônicos e os sofistas ........................................................ 33

1.2.2 Sócrates e Platão ........................................................................................... 36

1.2.3 Aristóteles ...................................................................................................... 44

1.3. O pensamento medieval e seus efeitos para a estrutura do pensamento filosófico

moderno sobre a família e a justiça ............................................................................ 52

1.4 Família, Estado e religião para Kant ....................................................................... 65

1.4.1 Panorama da Idade Moderna ............................................................................ 65

1.4.2 Kant ................................................................................................................... 67

CAPÍTULO 2 – A TRADIÇÃO DO SAGRADO NA VIDA PÚBLICA E OS EFEITOS DA

SECULARIZAÇÃO ......................................................................................................... 76

2.1 Abordagem do sagrado ........................................................................................ 77

2.2 Dialética da secularização: razão e religião na concepção de Jurgen Habermas e

Joseph Ratzinger (Papa Bento XVI) ........................................................................... 99

CAPÍTULO 3 – LIBERDADE RELIGIOSA E ESTADO LAICO ..................................... 105

3.1 Laicismo (laicista) e Laicidade: definindo as oposições ...................................... 105

3.2 O Direito canônico e a nova imagem do Papado ................................................ 112

3.2.1 Direito canônico............................................................................................ 112

3.2.2 A nova imagem do Papado .......................................................................... 118

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XII

3.3 Direito e Religião no Brasil .................................................................................. 123

CAPÍTULO 4 – POR UM DIÁLOGO ENTRE LIBERDADE RELIGIOSA E A

EFETIVIDADE DO DIREITO DAS FAMÍLIAS .............................................................. 131

4.1. A família brasileira na pós-modernidade: aspectos jusfilosóficos ...................... 134

4.1.2. Monogamia: um princípio? .......................................................................... 143

4.1.3. As lacunas do ordenamento jurídico brasileiro com relação à família

homoafetiva ........................................................................................................... 148

4.1.4 Estatuto das Famílias x Estatuto da Família ................................................ 149

4.2 Construindo pontes entre liberdade religiosa e o direito das famílias ................. 152

4.2.1 Princípios jurídicos que devem permear o diálogo entre liberdade religiosa e o

direito das famílias .................................................................................................... 152

4.2.2 Possíveis Soluções: um Estado laico, mas não laicista. .................................. 153

CONCLUSÃO ............................................................................................................... 161

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INTRODUÇÃO

O pluralismo é um dos símbolos essenciais da pós-modernidade. Quando os

profissionais do Direito descrevem a família como fruto da cultura, referem-se ao fato de

que, no mundo moderno, já não é possível aceitar uma ideia linear e única sobre as

estruturas familiares. O pluralismo familiar, sendo assim, é a característica da

multiplicidade de espécies familiares que convivem num mesmo espaço público,

contudo, sem igualdade de legitimidade jurídica, o que gera injustiças sociais.

Ao longo deste trabalho, adentra-se pela discussão do papel da religião na

esfera pública e seu impacto no âmbito do direito das famílias, como também se analisa

a ruptura entre Estado e religião na Idade Média e na Idade Moderna, até chegar ao

exame das novas formas de família da pós-modernidade, fundamentando-se no Estado

laico não laicista. Não resta dúvida de que o debate sobre Direito das Famílias e

liberdade religiosa transcende sua própria historicidade e entra inevitavelmente na

Filosofia do Direito. O fenômeno da secularização é, portanto, um fenômeno importante

de estudo para o enfrentamento da discussão sobre separação ou consecução da

religião no mundo contemporâneo, e se há ou não a possibilidade de regulamentação

dos direitos de todos os núcleos familiares.

É precisamente por isso que, hoje, o debate sobre a morte de Deus em um

mundo secularizado é importante para o deslinde da efetividade do Direito em matéria

de família. Participam do debate filósofos, teólogos, constitucionalistas e familistas.

Ultrapassar as fronteiras de cada especialidade é importante para a busca da inclusão

de todas as famílias no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista o respeito à

dignidade da pessoa humana e autonomia da vontade, sendo imprescindível aceitar

que elas sofreram variações no tempo e espaço. Em paralelo, deve-se ter em conta a

família laica não laicista, ou seja, uma família que não odeia as religiões, respeitando-

se também a liberdade religiosa.

Conforme veremos no Capítulo a seguir, a concepção de Platão da justiça para o

interesse do indivíduo e a interpretação aristotélica de que é somente na cidade que o

homem realiza seu potencial de felicidade, interpretado como a vida de ação de acordo

com a virtude, são significações base para o entendimento das democracias modernas

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como sociedades nas quais convivem simultaneamente ideias distintas acerca do bem.

Quanto à existência do pluralismo social, nota-se que, desde os clássicos, há a

confirmação da multiplicidade de identidades sociais e de culturas étnicas e religiosas,

o que leva também à confirmação da diversidade familiar que chega até os dias atuais.

Aristóteles acredita que a transformação positiva do homem na vida ética só seria

atingida com a formação plena do Estado, unicamente nele os indivíduos se realizariam

absolutamente como cidadãos.

A teoria aristotélica de formação do Estado revela a especial atenção que ele

deu à família, uma associação a ser respeitada e regulada pelo Estado. A despeito da

história das famílias, é imperioso destacar a marca da religião, principalmente na Idade

Média, quando Estado e Igreja representavam um único corpo de poder. Nesse

período, profundamente marcado por traços religiosos, tanto no ambiente público

quanto no privado, faz-se a distinção entre as espécies de leis vigentes na terra: a

racional, a natural e a positiva. Filósofos como Santo Agostinho e Tomás de Aquino

discorrem sobre a dicotomia entre a cidade de Deus e a cidade dos homens.

As discussões em torno do conceito de família na pós-modernidade têm

aumentado, principalmente, desde o século XX, por meio de intensos debates entre

liberais a favor da regulamentação dos diversos núcleos familiares e conservadores,

apoiados na ideia cristã de família (homem-mulher). Trata-se de uma discussão que

perpassou várias décadas, e chega à filosofia jurídica contemporânea, centrada por

representantes dos dois lados. Do primeiro, Herbert Spencer, Emile Durkheim, Max

Weber, Karl Marx e Sigmund Freud, a favor da morte de Deus no mundo

contemporâneo; e, em oposição à decadência moral religiosa no contexto atual, Alexis

de Tocqueville, Alasdir MacIntyre, Charles Taylor e Maritain. Enquanto alguns

entendem que a sociedade deveria escolher um deles, a tese pressupõe a harmonia

que vai ao encontro do respeito pela liberdade religiosa, assim como o respeito pela

escolha de uma vida familiar não tradicional, sem a imposição de que uma determinada

forma de vida seja mais correta que a outra. Assim, liberais e conservadores podem

conviver no mesmo espaço público, cada um com suas significações de busca de um

bem comum.

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Com efeito, uma parcela significativa da doutrina brasileira ainda é contrária à

regulamentação das famílias de todas as espécies, numa visão positivista e

influenciada pelo princípio jurídico da monogamia, que é de cunho predominantemente

católico1. É evidente que o legislador não pode prever as mudanças que sofrem as

famílias ao longo do tempo; é por isso que existe a necessidade de olhar atento do

estudo amplo da evolução do conceito de família, bem como do papel da Igreja no hoje

e no amanhã. Há alguns caminhos para se chegar a um meio termo capaz de promover

a cooperação entre Religião e Estado, no tocante à possibilidade de regulamentação de

todas as famílias existentes; e este trabalho defenderá a tese de que alguns destes

caminhos para o alcançar é a obediência aos princípios da dignidade da pessoa

humana e da autonomia da vontade, reforçados por Rousseau e Immanuel Kant, no

princípio do Estado laico contido no art. 19, incisos I e III da Constituição Federal de

1988, e no direito fundamental da liberdade religiosa, estabelecido no art. 5, VI do

mesmo diploma.

Se a família é considerada a base da sociedade e possui proteção especial do

Estado (art. 226 da Constituição Federal de 1988), o casamento e a união estável não

podem ser os únicos núcleos primordiais desta célula. A Constituição Federal, na

posição de centro reunificador do direito privado, deve, assim, orientar o Código Civil;

este deve vislumbrar, em definitivo, uma nova tábua de direitos das famílias, para assim

conseguir tutelar os diversos núcleos familiares existentes na atualidade. Há vários

tipos de famílias, que não somente as estabelecidas pela Carta Magna

(matrimonializada, informal e monoparental). Existem, ainda, a família anaparental, a

homoafetiva, a mosaico, as socioafetivas, as paralelas, entre muitas outras

possibilidades. Em todas estas relações, quando existe o afeto, é possível se chegar à

definição de família.

A sociedade pós-moderna, não apenas no contexto brasileiro, mas a globalizada

e mundial, passa por uma profunda transformação de seus valores. As últimas décadas

são de intenso progresso científico e tecnológico, e disto resultam modificações das

relações sociais, que ora perdem a qualidade, ora se transformam em uma

1 A exemplo: A familista Regina Beatriz Tavares. In: SILVA, Regina Beatriz Tavares. Divórcio e

separação após a EC. n. 66/2010. 2. ed. 2012.

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multiplicidade de possibilidades de afeto. O início do século XXI vivencia a dúvida sobre

a função da religião no espaço público estatal secularizado, e as consequências do

Estado laico para o papel da religião no mundo contemporâneo. A sociedade

permanece ―vítima‖ da demora para a compreensão da necessidade de cooperação

entre ambos. Em um mundo caracterizado por contradições extremas, o progresso é

justamente o alcance do diálogo entre a liberdade religiosa e o direito de todas as

espécies de famílias, que fogem dos parâmetros convencionais da moralidade, mas

precisam igualmente de amparo legal.

Para a consecução da regulamentação dos diversos núcleos familiares sem

causar embate com a Igreja, é necessário o estudo da correta efetividade do Direito,

com base nos princípios do Estado Democrático laico, que não é antirreligioso nem

laicista. Em vista disso, foi importante analisar o fenômeno da secularização, ocorrido

na Idade Moderna e a característica do neutralismo do Estado, citando alguns

expoentes do assunto, tais como MacIntyre, Sandel, Charles Taylor, Peter L. Berger,

Herbert De Vriese, Gary Gabor, Rudolf Otto, Jurgen Habermas e Joseph Ratzinger.

Face ao clamor social da tutela dos vários tipos de família da

contemporaneidade, este trabalho se preocupou em discorrer sobre a história da

relação intrínseca entre Família e Religião ao longo do tempo, passando pela

Antiguidade até chegar aos dias atuais. Se havia, em tempos antigos, a família como

local fundamental para o culto religioso, de cunho extremamente patriarcal, na medida

em o homem era o chefe da entidade familiar, esta característica não mais condiz com

a realidade, visto que a relação entre homem e mulher é isonômica. Já no inciso I do

Art. 5 da Constituição Federal de 1988, resolve-se acentuar as cores da isonomia,

explicitando que ―homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações‖. E mais, ao

cuidar da proteção jurídica da família, no artigo 226, a Constituição ressalta novamente

a igualdade entre homem e mulher, deliberando que ―os direitos e deveres referentes à

sociedade conjugal são exercidos pelo homem e pela mulher2‖. Vale assinalar que

referida norma não coloca homens e mulheres em igualdade física ou psicológica, na

verdade, ela tenta pôr fim a qualquer discriminação, em razão do estado sexual,

2 FARIAS, Cristiano Chaves. ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. 3. ed. São Paulo: Lumen Juris.

2011. p. 49.

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retratos da emancipação da mulher, que leva ao deslocamento dos papéis dentro da

família.

Este novo contexto social, sem dúvida, repercute no direito de família pós-

moderno em uma ordem tal que não se tem um modelo fechado nem pré-definido de

família, e de quem exerce as funções de homem ou mulher dentro do núcleo da célula

primordial da sociedade, pois não mais há uma definição única que sirva para todos. O

que há bem delimitado é o conceito de família tradicional (matrimonializada), mas não

um conceito de família que sirva para todas as espécies dela, haja vista que elas são

plurais. Em outras palavras, o movimento de emancipação da mulher foi positivo, no

sentido de transformar as famílias.

As pessoas se unem pelo afeto, e principalmente hoje em dia, por livre e

espontânea vontade. Entende-se que, no instante da decisão por um formato de

família, cada um deposita suas convicções e confirma seus direitos e obrigações com

base em acordos de vontade. Se na pós-modernidade não deve preponderar o

matrimônio como obrigação ou união primordial entre seres com o objetivo de constituir

família, no Brasil as pessoas devem se sentir livres para escolher a que tipo de núcleo

familiar querem pertencer, sem a ordem de preferência induzida pelo legislador, apenas

com base na determinação de um simples, porém complexo, sentimento: o amor.

Não se trata de banalizar a família, pois cada um tem o direito de possuir suas

convicções individuais; por sua vez, o real modelo de família não deve ser um padrão

estabelecido pela sociedade, mas uma opção livre de seus membros quanto à forma de

buscar suas realizações. Ademais, o caput do artigo 226 da Constituição Federal de

1988 consagrou o princípio da pluralidade de famílias, merecendo proteção do Estado

qualquer agrupamento familiar que se enquadre nesse contexto. Com a ciência de que

esse tema ainda irá provocar grandes discussões, pontua-se que o Direito deve evoluir

junto com a sociedade; portanto, se os fatos estão dizendo que existem arrumações

familiares distintas, o Direito deve acompanhá-los e permitir a regulamentação das

diversas espécies de família, bem como respeitar a liberdade religiosa no seu âmbito de

atuação.

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CAPÍTULO 1 – ALGUNS DIÁLOGOS NA HISTÓRIA E NA FILOSOFIA DO

CONCEITO DE FAMÍLIA

Neste capítulo, o objetivo é elaborar um diagnóstico relativo à história e à filosofia

do conceito de família ao longo da Antiguidade, passando pela Idade Média, até se

chegar à Idade Moderna. A ênfase, sobretudo, recai sobre os impactos dos padrões

religiosos e políticos sobre as famílias, em cada período.

Para tornar a narrativa mais clara, se obedecerá a cronologia tornada clássica na

historiografia dos estágios sóciopolíticos. O capítulo, portanto, se subdividirá em quatro

secções.

Na primeira secção o foco da Idade Antiga foram as civilizações grega e romana,

devido a maior influência delas no direito ocidental. Antes, porém, de analisar os

fundamentos para o objetivo da formação das famílias na Grécia e em Roma é preciso,

embora de maneira sucinta, descrever a organização familiar no estágio selvagem do

homem.

Na segunda, saliento a importância do pensamento de Sócrates, Platão e

Aristóteles para a formação do Estado e suas consequências no plano da religião e das

famílias. Na outra, trabalho com os mesmos aspectos m relação à família e à justiça, só

que na concepção medieval.

Na última secção, reconstruo a trajetória da família e da religião na Idade

Moderna. Foi dedicada atenção maior à Immanuel Kant por causa dos seus estudos

mais sistemáticos sobre a gnosiologia da liberdade, a valorização da dignidade da

pessoa humana, a distinção feita entre leis humanas e leis divinas e as razões para o

Contrato Social, em um Estado que deveria ser supletivo, traduzindo ideias que podem

ajudar na efetividade do direito das famílias contemporâneo.

1.1 O início das famílias: da Pré-História à Antiguidade – Grécia e Roma

A espécie humana através dos milênios passou por diferentes períodos de

adaptação da organização familiar, segundo estudos da Paleontologia social. Vestígios

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de uso do fogo, o consequente domínio da produção de alimentos e ampliação das

fontes de subsistência revelam que a transição do período selvagem para o estado de

barbárie acontece ao mesmo tempo em que paralelamente se desenvolvem os

aglomerados familiares.

Até que o homem chegasse ao modelo de família como terreno cultural para a

consecução da felicidade3, enxergando nela o lugar para motivar suas escolhas

socioafetivas, outras características possuíram as famílias na passagem do homem

animal para o homem social. A exemplo, podem ser citadas a inexistência da

monogamia e a permissão tranquila da poligamia; esta última, à época, força propulsora

da constituição das primeiras hordas. Existia, portanto, nas sociedades primitivas o

matrimônio por associações, um modelo de união em que um grupo de homens e

mulheres pertenciam-se reciprocamente sem que houvesse ciúmes.

É certo que as famílias existem desde a formação das primeiras civilizações, e

que sempre foram uma realidade complexa. Com base em Malinowski4, as famílias

possuem a característica reprodutiva como célula básica. Ao ressaltar o estudo da

psicanálise do indivíduo para a antropologia da família, o autor denomina a instituição

doméstica de família nuclear, sendo para ele distinta do matrimônio, que é um contrato

que une dois indivíduos.

Malinowski considerou como modelos a análise da família europeia e da

trobriandesa. As questões tratadas por ele com relação à matéria consideravam

bastante a maneira como os indivíduos se comportavam, seus costumes e crenças,

valorizando-se os sentimentos humanos específicos. Malinowski aborda a

reciprocidade, e afirma que o homem só é completo com o matrimônio. Segundo ele, ―o

casamento traz consigo um considerável tributo anual em alimentos básicos, que a

família da mulher é obrigada a dar ao marido. Essa obrigação é possivelmente o fator

mais importante em todo o mecanismo social da sociedade trobriandesa. É nela que,

3 Definição do assunto por Claude Levi Strauss, que percebeu a característica cultural da família,

sobrepondo-se laços de afeto sobre os biológicos. In: LÉVI-STRAUSS, Claude. Les structures élémentaires de la parenté/ de Claude Lévi-Strauss. Reprint of the 2. ed. 1967. Berlin; New York: Mouton de Gruy. 2002. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=VeAe7R-7gmEC&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false. Acesso em: 10 jan. 2015. 4 MALINOWSKI, Bronislaw. Uma teoria cientifica da cultura. Rio de Janeiro: Zahar. 1975. Passim.

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através [...] do privilégio da poligamia, se fundam a autoridade do chefe e o seu poder

de financiar todos os empreendimentos e festividades cerimoniais. ‖5

O casamento ideal é, segundo ele, uma combinação entre sentimento, estrutura

e procriação, posto que a aliança é uma questão de interesse subjetivo, diferente da

ideia levistraussiana de contrato social. Com isto, o autor se aproxima do conceito de

que a aliança é a prática da troca matrimonial oriunda de estratégias políticas de

parentesco. O autor também retrata a passagem da infidelidade conjugal e do incesto.

―[...] tomamos conhecimento de muitas violações da fidelidade conjugal entre as esposas de To‘uluwa [o chefe], sobretudo – é claro – por parte das mais jovens. E os mexericos da aldeia insistem com uma força e uma malícia particulares no fato de que é com os filhos mais eminentes do próprio chefe que elas enganam seu marido. Falta, sem dúvida, a essas relações o sabor incestuoso que teriam para nós, uma vez que a existência de um vínculo carnal entre o pai e o filho não é reconhecido‖.

6

A família poligâmica era um costume trobriandês que possuía função social, por

estar estritamente ligada ao domínio do chefe da família; seu objetivo principal era

enriquecê-lo a partir da união com várias mulheres, daí derivando o poder para

governar, em um esquema de redistribuição que oferece em razão de seus

casamentos. Por isso, como diz Malinowski, em Vida Sexual e outros textos, devemos

desconfiar das regras ―ideais‖ e observar o comportamento ―real‖ dos indivíduos. Para

ele, a família resulta da sexualidade. Sob uma consideração utilitarista e neorromântica,

considera uma possível racionalidade dos nativos, busca considerar o indivíduo como

sujeito da ação de pertencer a um núcleo funcionalmente estruturado.

Havia um rigor na cobrança da fidelidade por parte da mulher legítima, no

modelo de família do período antigo. Configura-se, deste modo, o início da monogamia,

distante de ser uma reaproximação sentimental de apenas um homem e uma mulher,

mas na predominância de um casamento com uma carga de responsabilidade social e

patrimonial maior por parte do homem, deixando de lado o amor sentimental. Por sua

vez, surge, com isto, o conflito de sexos, com a diminuição da importância da mulher na

5 WOORTMANN, Klass. A ideia de família em Malinowski. Disponível em:

<revistas.ufpr.br/campos/article/download/1572/1320> Acesso em 12 jan. 2015. 6 Ibidem. p. 21.

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família. Ou seja, estão presentes os dissabores da mulher reprimida pelo homem, que

passou a cometer o adultério, severamente proibido, mas fatalmente praticado.

Margaret Mead, uma das antropólogas responsáveis por desmistificar a noção de

imutabilidade e naturalidade dos papéis sexuais, explica, de modo exímio, a

consequência desses traços humanos no grupo cultural a partir de comportamentos de

um único sexo em detrimento do outro. A atitude criada em épocas passadas, de impor

como natural o domínio do sexo feminino pelo masculino, criou seres desajustados

quanto às suas sexualidades. Para ela, todas as representações do masculino e do

feminino estão intrinsecamente atreladas aos contextos sociais, culturais e subjetivos

nos quais os indivíduos estão inseridos, verificando-se que o gênero não pode ser

reduzido a um fator meramente biológico. Segundo Alves (2015, apud MEAD, 2003, p.

269):

―as padronizadas diferenças de personalidade entre os sexos são desta ordem, criações culturais as quais cada geração, masculina e feminina, é treinada a conformar-se. Persiste, entretanto, o problema da origem dessas diferenças socialmente padronizadas‖.

7

De acordo com Cicco8, a organização social primitiva da Grécia foi do tipo

patriarcal e feudal; não havia um Estado grego como nos dias atuais. Cada núcleo

populacional constituía uma cidade autônoma. A célula inicial das cidades foi a família;

esta se agregava em torno do pai, sumo sacerdote do culto doméstico dos

antepassados ou lares, que era a autoridade máxima na família. O parentesco entre

duas ou mais famílias levou-as a constituir uma fratria, cujo chefe era o pai de família do

tronco genealógico mais antigo. A necessidade de associação levou as famílias e

fratrias a relações suprafamiliares, e a se unirem nem uma confederação de famílias, de

origem próxima da cidade, que se estruturou como uma família amplificada, com seu

forte ou acrópole; seu templo ou pritaneu; e sua praça de deliberações ou ágora.

7 ALVES, Paula Fernanda Pereira de Araújo. A rede de enfrentamento à violência contra a mulher. 2015.

Disponível em: <https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/12915/1/RedeEnfrentamentoViolencia.pdf (p. 24). Acesso em: 15 out. 2016. In: MEAD, Margareth. Sexo e temperamento. São Paulo: Perspectiva.

2003. 8 DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito.6. ed. São Paulo:

Saraiva, 2012. p. 45.

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Nos tempos heroicos ou homéricos, quando os gregos já viviam em cidades

amuralhadas, a reunião de várias tribos transformou-se em pequenos povos, os quais

conservavam as gens, fratrias e tribos. Com a ascensão da conquista de terras, gado,

escravos e bens, e a valorização exacerbada da propriedade privada, as organizações

meramente gentílicas começaram a enfraquecer, pois não mais eram capazes de

justificar o acúmulo de riquezas. Existiu, então, a necessidade de invenção de uma

instituição capaz de garantir novas formas de aquisição da propriedade privada, e,

dessa maneira, dividir a sociedade em classes, de acordo com suas riquezas. Dessa

reunião de ideias e pretensões, criou-se o Estado.

Chama-se a atenção para a necessidade da criação de uma administração

central, de assembleias, de líderes governamentais e um sistema de leis populares que

abarcasse o interesse comum das tribos e das gens. Aceitando esse formato, os

filósofos entendem que essas reformas partem do horizonte de que os interesses

devem estar relacionados a regras fixas para a interação entre o público e o privado.

De maneira geral, visando à organização da sociedade em classes, houve o fim

da organização gentílica e a distribuição do povo em três classes: os bem-nascidos ou

nobres, os agricultores e os artesãos, cabendo somente aos nobres o exercício de

cargos ou funções públicas. A propriedade a princípio já era familiar, posteriormente se

tornou propriedade privada individual. As famílias seguiam a regra do casamento

monogâmico e só era permitido entre os cidadãos das famílias nobres de Athenas. No

entanto, era possível o concubinato para o cidadão ateniense através das

cortesãs hetaerae (hetraíras ou amigas íntimas). No caso de a mulher ser infiel esta era

duramente castigada.

Adentrar pela vida privada das famílias da Grécia Antiga é um passaporte para a

descoberta filosófica da formação da democracia e do Estado, a partir da reunião

civilizada das famílias em sociedade. Verifica-se que a formação da família grega

possui grande carga socioeconômica e cultural, capaz de posicionar-se como instituição

social, influenciadora de atos da administração pública. Para o cidadão grego, o

pertencimento a uma família era fator decisivo na vida política e social, nela, ele deveria

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construir uma relação matrimonial com uma mulher, para manter sua linhagem

hereditária, excluídos deste intento o amor sexual. Nas palavras de Aristóteles:

―Temos, de um lado, a autoridade do senhor, depois a autoridade marital (não encontramos um termo especial para exprimir a relação do homem para com a mulher); em terceiro lugar, a procriação de filhos (para a qual tampouco encontramos uma denominação própria). Comumente só se contam esses três elementos da família. Contudo, existe ainda um quarto que muitos confundem com a administração doméstica, e outros julgam ser dela um importante ramo. É preciso também estudá-lo; quero falar daquilo que se chama a arte de

acumular fortuna. ‖ 9

Os fundamentos legais da família grega eram, portanto, voltados para a figura do

homem, que, conforme Flacelière, "casavam-se, antes de tudo, para ter filhos varões,

ao menos um, que lhe perpetuasse a raça, e assegurasse a seu pai o culto que este

celebrara em honra dos seus antepassados, culto que era considerado indispensável à

felicidade dos mortos no outro mundo".10

A infidelidade conjugal feminina na Grécia era duramente proibida, sobretudo em

Atenas, haja vista ser considerada uma afronta à autoridade do chefe da família. Os

casos de traição repercutiam ainda mais quando dessas relações advinham filhos

ilegítimos, fato inconcebível para a sociedade grega, que admitia o casamento como

forma de família justamente para que houvesse a reprodução sexual e,

consequentemente, a concepção de filhos legítimos, os quais eram os herdeiros

diretos. Em caso de adultério masculino, a punição só acontecia se a amante fosse

esposa de outro cidadão. Por outro lado, quando a infidelidade conjugal era feminina, o

esposo traído tinha o direito de praticar homicídio contra o ofensor, caso o apanhasse

em flagrante delito. O divórcio existia, mas era considerado apenas quando o

rompimento era vontade do marido.

Nessa conexão histórica, nota-se mais uma vez a condição socioeconômica

rebaixada da mulher e sua falta de voz para os atos da vida civil. Em Atenas, a mulher

sequer podia escolher o marido que iria ter, ficando a ela reservado apenas o dever de

procriar e o exercício de atividades do lar. Dessa maneira, o casamento não era um

9 ARISTÓTELES. A política. 2. ed. Rev. Bauru, SP: Edipro, 2009. p. 17-18.

10 FLACELIÈRE, Robert. A vida cotidiana dos gregos no século de Péricles. Tradução de Virginia

Motta. Lisboa: Livros do Brasil, 1985. p. 68.

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dever jurídico, mas uma convenção social que apontava o cidadão como pertencente a

uma família, daí advinham obrigações para com a sociedade.

Normalmente, a mulher era considerada uma moeda de troca; existia na Grécia a

etapa antecessora ao casamento, chamada noivado. Acredita-se que o casamento

adquire feição legal a partir do conhecimento de negociações contratuais entre o chefe

de uma família que possuía uma filha e o pretenso marido. O aspecto comercial da

referida união era evidenciado com a entrega de uma quantia em dinheiro (dote) pelo

pai ao interessado, tradição que perdurou por anos em outras culturas, inclusive a

brasileira do Período Colonial. Cumpre acrescentar também o poder da religião sobre

as normas sociais, uma vez que o Clero estava presente em praticamente todos os

momentos da vida social dos cidadãos gregos, exercendo coercitividade maior que a

própria lei.

Numa sequência lógica, as mulheres de Atenas não tinham direitos políticos ou

jurídicos e passavam a maior parte do tempo dedicadas aos afazeres domésticos,

vivendo praticamente reclusas e abandonadas; assim era desde a infância até o

matrimônio. A subserviência da mulher ao homem era justificada por Aristóteles, em

sua concepção, ela não detinha plenitude racional da alma, o logos, e, por isso, era

incapaz de decidir qualquer questão como cidadã.

Em contrapartida, a liberdade da figura da mulher em Esparta era maior, nesse

mesmo intervalo de tempo. Por causa da atitude das mulheres dessa região, Aristóteles

se posicionou contrário a elas, julgando-as ameaçadoras e dominadoras. Para o

filósofo:

―[...] da mesma forma que o homem e a mulher são parte da família, é óbvio que a cidade também é dividida em uma metade de população masculina e outra metade de população feminina, de tal forma que em todas as constituições nas quais a posição das mulheres é mal ordenada se pode considerar que metade da cidade não tem leis. Foi isto que aconteceu na Lacedemônia, pois o legislador, querendo que toda a comunidade fosse igualmente belicosa, atingiu claramente o seu objetivo com relação aos homens, mas falhou quanto às mulheres que vivem licenciosamente, entregues a todas as formas de depravação e da maneira mais luxuriosa. Disto resulta inevitavelmente que numa cidade assim estruturada a riqueza é excessivamente apreciada, especialmente se os homens se deixam governar pelas mulheres [...]. Existia tal característica entre os Lacedemônios, e no período de sua hegemonia muitos assuntos eram decididos pelas mulheres [...] as mulheres se tornaram possuidoras de cerca de dois quintos de todo o território da Lacedemônia, por

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causa do grande número delas que herda propriedades e da prática de dar grandes dotes [...] o mau comportamento da mulher não somente infunde um ar de licenciosidade à própria constituição, mas também tende de certo modo a estimular o amor à riqueza. ‖

11

Faz-se importante salientar que essa liberdade maior das mulheres espartanas

refletia a característica peculiar daquele tipo de sociedade. Em Esparta, o papel social

da família era mais fraco, pois no Estado predominava o investimento na vida militar.

Assim, os filhos eram criados pelo Estado e não pelas mães, e a convivência dos

maridos com as esposas e sua família era bastante reduzida.

Depreende-se que as mulheres de Esparta eram dotadas de menor valor no seio

da sociedade e da família do que as atenienses, posto que eram impossibilitadas de

educar seus filhos na sua tenra idade e também privadas do convívio frequente e

envolvimento conjugal com seus maridos. Enfatize-se que tudo isso ocorria porque

Esparta era uma cidade política voltada exclusivamente para a arte de guerrear, ficando

a esfera privada dos cidadãos em segundo ou último plano.

O Estado grego, como apresentam Fustel de Coulanges e tantos outros, ainda

permanecia nesse estágio:

Em que a religião é a senhora absoluta da vida privada e da vida pública; o Estado, uma comunidade religiosa; o rei, um pontífice; o magistrado, um sacerdote; a lei, uma fórmula sagrada; o patriotismo, piedade; o exílio, excomunhão. O homem vê-se submetido ao Estado pela alma, pelo corpo e pelos bens. É obrigatório o ódio ao estrangeiro, pois a noção do direito e do dever, da justiça e da afeição não ultrapassa os limites da cidade [...].

12

As famílias romanas possuíam uma constituição semelhante às gregas. Seguiam

com a valorização da figura masculina, excluindo as mulheres do direito de herdar.

Existiam nas gens (clãs) o dever de assistência mútua entre seus membros, o direito de

adotar o nome gentílico, que poderia ser utilizado pelos parentes do sexo masculino,

pelos clientes (plebeus que eram servos dos patrícios), pelos adotados e pelas

mulheres; havia, ainda, o dever de a mulher casar-se somente com pessoa da sua

mesma gens, salvo exceções especiais, quando, por exemplo, autorizada pelo Senado

11

ARISTÓTELES. A política. 2. ed. Rev. Bauru, SP: Edipro, 2009. p. 51. 12

REALE, Miguel. Horizontes do direito e da história. 3. ed. rev. e aum. 3. tir. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 6-7.

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e com a anuência de todos os membros de sua gens. A gens era, portanto, a reunião

desses integrantes, com o propósito de perpetuação da sua própria tribo.

Nas palavras de Cicco13, ―como todas as cidades antigas, Roma era uma

confederação de famílias patriarcais em torno de um rei, que figurava como pater

famílias maior. Sua estrutura era baseada no culto dos antepassados, próprio de cada

família, e, como na Grécia, as gens ou grupos de família tinham como laço de união um

antepassado em comum. As famílias, ao formarem a cidade, não abdicavam do seu

direito próprio (jus privatum), emanação do culto doméstico aos antepassados. O pater

era a suprema autoridade na família, por ser o sacerdote desse culto; o Estado romano

respeitava sua autoridade de juiz dos membros da família. Respeitava, ainda, o direito

de propriedade de cada família sobre o terreno em que construía casa, residência dos

vivos, altar dos antepassados da família. Não interferia quando o primogênito assumia o

cargo deixado vacante pela morte do pai, e não lhe impugnava a função de árbitro nas

questões familiares‖.

Dez gens formavam uma fratria, e um cidadão só era romano se pertencesse a

alguma gens. Nessa conjuntura, as famílias romanas possuíam de um chefe ou pater

(sempre do sexo masculino) com autoridade para gerir os negócios, uma vez que o

Senado era composto pelos chefes das gens. Em consonância com os gregos

homéricos, a democracia em Roma era estritamente militar, baseada e originada das

gens, fratrias tribos.

Sucede que a partir das conquistas imperiais de Roma, novas terras começaram

a fazer parte do seu território e, automaticamente, vários povos, que, decerto, não

pertenciam a nenhuma gens. Devido a esse novo contexto, uma nova constituição legal

surge em Roma, para afirmar que esses novos povos, conhecidos como plebeus,

podiam ser livres e possuir terras, mas estavam obrigados a pagar impostos, obrigados

ao serviço militar, proibidos de se beneficiar da distribuição de terras do Estado e de

exercer qualquer direito político. A nova constituição remonta ao modelo grego, posto

que dividiu as famílias em classes (patrícios/nobres e plebeus), definindo-as pelo grau

de riqueza. Demarcou territórios, bem como excluiu de vez o poder político das gens e

13

DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito.6. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 54.

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tribos, centralizando-o por completo na figura do Estado romano, base para a criação

da República Senatorial.

Estruturada dessa forma, a cidade adquiriu dois lados: o dos patrícios, que

tinham lugar no Senado, e o dos plebeus, que tinham a tribuna da plebe. Os últimos

passaram a lutar pela igualdade de direitos com aqueles, tendo como marco histórico a

Lei das Doze tábuas, em 451 a.C. e, logo em seguida, a origem da democracia em

Roma e de uma nova classe: a dos plebeus ricos. A nova constituição extingue a ordem

social fundada em laços sanguíneos, remanescendo para as famílias o aspecto

religioso, de procriação e formação do homem. A lei não mais advém do culto de uma

família, mas de uma esfera pública; isso porque a família é redefinida para o campo

exclusivamente privado.

Dito isto, nota-se que o direito baseado nos costumes das famílias empresta

cenário para o Direito que emana de leis escritas. Porém, tais acontecimentos não

desvirtuam o caráter de extrema importância que a família teve nesses momentos, pelo

contrário, o Estado nasceu da união de várias famílias, estrutura sólida da sociedade

civil, que tem o seu papel alterado e reelaborado ao longo da história da Humanidade.

De todo o exposto, constata-se que entender como funcionava o poder do

patriarca é essencial para compreender a representação, imagem e propósito da

formação das famílias nas civilizações greco-romanas clássicas. A família surgiu antes

da pólis (cidade) e, portanto, inicialmente obedeceu a princípios costumeiros e crenças

religiosas, como, por exemplo, o pátrio poder de sacrificar a vida do filho. É possível

verificar que o pai assumia também o exercício de juiz de sua própria família,

demonstrando que as relações privadas foram antecessoras ao regramento

jurídico/legal da sociedade antiga, e que foi a partir da família que ele foi concebido.

Sendo assim, os agentes da criação da legislação da cidade-Estado apenas

ratificaram a existência do pátrio poder e de seus direitos e deveres, como chefe do

culto doméstico, dono da propriedade e juiz de sua família, tornando o ambiente cada

vez mais propício a sua continuidade. Os demais membros da família, à época, eram

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criados como objetos de disposição da vontade do pater14, sendo que sua autoridade

perante os assuntos da sua gens era absoluta, no sentido de que era importante

desenvolvê-la para o pertencimento a uma hierarquia social superior e também para a

obediência aos preceitos religiosos.

Visualiza-se a formação das cidades greco-romanas como uma verdadeira

reunião das gens, notando-se que os cidadãos encaravam os deveres políticos e

jurídicos sem supressão da autoridade do chefe da família. Nessa lógica, se as famílias

eram células básicas e influenciadoras do corpo social, é plausível supor que a

discussão de seus fundamentos filosóficos são mecanismos fundamentais para crer-se

na importância do instituto da família na formação do Estado greco-romano como ente

que não possuía poder absoluto para decidir a esfera privada das famílias. Devia, por

isso, haver um diálogo paritário entre o chefe da família, que era responsável pelo culto

religioso, e o chefe de governo, de modo que este foi um problema flagrante na origem

da República romana.

Uma vez que o Direito assume a forma escrita e o Estado torna-se mais forte, a

autoridade absoluta do pater familias é revista, pois torna-se necessário romper com a

ideia anterior de equilíbrio entre as leis escritas e o direito sagrado. Assim é que o pátrio

poder começa a perder sua força e o direito romano clássico erige-se,

institucionalizando a família e regulando parcela de seus atos privados.

Na fase em que a República virou Principado, por volta de 30 a.C., houve o

resgate dos antigos costumes romanos, no tocante ao poder do pater familias. Com a

autoridade de Roma nas mãos de Otávio Augusto, a cidade voltou a ser vista sob a

14

Émile Benveniste nos esclarece sobre a origem etimológica do termo latino pater: de todos os termos de parentesco, a forma mais genuine é o nome de ―Pai‖, ―Pater‖, do sânscrito ‗Pitar‘. O termo ‗Pater‘ está plenamente justificado no seu emprego mitológico, pois é a qualificação permanente do Deus Supremo dos Indo-Europeus. Figura no Vocativo do nome divino de ‗Júpiter‘. A forma latina se originou de uma fórmula de invocação: ‗Zeû Páter‘. Neste sentido originário, a relação de paternidade física é de se excluir, pois estamos longe do parentesco estritamente físico e ‗Pater‘ não designa o pai no sentido pessoal. ‗Atta‘ é o pai nutrício, o que educa a criança. Daí a diferença entre ‗Atta‘e ‗Pater‘. A ‗Patria Potestas‘é o poder que se liga à ideia de pai em geral, que ele detém por sua qualidade de pai. ‗Patrius‘se refere não ao pai físico, mas ao pai enquanto classificação de parentesco. ‗Paternus‘é o adjetivo derivado de ‗Pater‘que exprime o pai físico e pessoal. Temos um terceiro adjetivo derivado de ‗Pater‘, ‗Patricius‘, o que descende de pais livres, nobres, exprimindo uma hierarquia social. Émile Benveniste, Le Vocabulaire des Institutions Indo-Européennes; Economie, Parenté, Societé, Paris, Les Éditions de Minuit, 1969, v.1, p. 209-211;271. In: DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito.6. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 71-72.

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perspectiva religiosa, distanciando-se da influência por aproximação com o Oriente e a

cultura grega. Contudo, o conflito com o Direito romano já na forma de leis escritas

continuava a existir, ou seja, apesar do retorno do poder do chefe de família no

Principado, existiam limitações legais, como, por exemplo, a proibição de ordenar a

morte ou a alienação da prole.

Ambos os povos, grego e romano, divinizaram o culto do Estado, contudo, mais

aderente à vida prática, sentiu o segundo as vantagens de uma delimitação de

faculdades no plano patrimonial, sem ferir em sua essência o caráter socialmente

totalitário do Estado, cujo imperium, consoante observação de Arangio Ruiz, é

supremacia ―que só pode encontrar limites nos direitos essenciais do cidadão ou nas

garantias conferidas por uma lex publica. Sempre a ideia fundamental de lex, como

vínculo normativo de faculdades, governando a totalidade do sistema público, que se

desdobra em manifestações múltiplas de imperium potestas.15

Se a urbe foi sempre tida como o ―valor supremo‖ isto, não obstante, só

tardiamente logrou absorver núcleos gentílicos, ciosos de seus direitos políticos

internos, não sendo demais notar que na esfera patrimonial foram sendo transferidos

para os indivíduos autônomos e não para o Estado eminente os direitos de que antes

se revestiam o patres familias. Daí dizer-se que o Direito romano foi, até muito tarde,

um Direito por excelência do patres familias.16

Com o posterior advento da fase do Dominato no Império Bizantino romano,

meados de 284 e 565 d.C., o cristianismo se tornou religião oficial do Estado, e trouxe

consigo problemas de ordem interna, concernentes à extrema marca da religião na vida

política dos cidadãos, o que gerou maior autoridade política da Igreja sobre o

funcionamento do Estado e da sociedade. Embora as leis permanecessem iguais,

houve uma aproximação destas com os ideais cristãos.

15

REALE, Miguel (1910; 1999) Horizontes do direito e da história. 3. ed. rev. e aum. 3. tir. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 22. 16

Ibidem. p. 23.

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Em vista disso, nas palavras de Cicco17 ficou reforçado, em matéria de pátrio

poder, o princípio de que debet in pietate non in atrocitate consistere. Proibiu-se a

venda do filho, sua morte ou entrega a um credor, o jus noxae dândi, não mais se

admitiu o jus vitae ac necis, pois o ensinamento do Apóstolo dos Gentios convidava ao

amor mútuo entre pais e filhos, como entre esposos. O poder do pai sobre o filho se

expressava no Decálogo mosaico, que chegou ao Ocidente com o Cristianismo, mas os

pais não deviam ―irritar seus filhos‖ (sic), segundo pondera o Apóstolo Paulo

(Colossenses, 3:21). Na matéria que nos interessa mais de perto, pode-se observar a

permanência das características essenciais do casamento romano no casamento

católico, sobretudo na ênfase dada ao aspecto de fecundidade.

A meta da Igreja Católica no Baixo Império Romano, período de Diocleciano até

Justiniano, era precisamente invocar o nome de Cristo com o objetivo político de ser

superior ao poder real ou imperial. Com a queda do Império Romano a Igreja se tornou

a única instituição organizada, e, por isso, passou a regulamentar todos os campos da

vida em sociedade. Era ela quem dava ao homem medieval um horizonte: participar do

grande drama da salvação da Humanidade.

Convém enfatizar que o aparecimento do Estado no Período Clássico romano

gerou reflexos na família e serviu também para o estreitamento de laços entre as gens

que se organizavam em torno do Estado/Sociedade. Na tentativa de minimizar os

conflitos entre as esferas familiares (privadas) e políticas (públicas) surge o Estado,

que, para regulamentá-las civilmente, cria suas leis escritas. O seu propósito serve

basicamente de fundamento para comprovar a importância milenar da família como

instituto que compõe a célula estatal, verificando-se que sua mutação, ao longo do

tempo, revela arranjos tão complexos que vão além de laços meramente conjugais e

consanguíneos, capazes de estruturar-se antes da existência de leis que os

regulamente, porém, necessitando do papel do Estado como agente saneador das

lacunas legais porventura existentes, devido justamente à capacidade de as famílias se

modificarem.

17

DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 83-84.

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1.2 Família, formação do Estado e a marca da religião: pensamento de Sócrates,

Platão e Aristóteles

A ideia inicial de Família nas cidades gregas, entre os séculos VI e IV antes de

Cristo, partiu de determinantes filosóficos e religiosos que denotam a importância da

família como influenciadora da concepção de Justiça e Política à época. Nas cidades

antigas, a família constituía-se em um lar, no qual os membros realizavam suas práticas

religiosas, o culto aos antepassados, suas refeições, bem como outras atividades,

todas lideradas pelo pater familias.

A família antiga por excelência excluía de seus princípios a afetividade e a

existência por geração. Era assim que não havia qualquer isonomia entre homem e

mulher. As mulheres emancipadas e as recém-casadas, por exemplo, eram

integralmente eliminadas como membros da família que nasceram. Enquanto a pós-

modernidade vive a elevação do afeto como um valor jurídico, os povos antigos

conservavam com prazer na mente o propósito meramente racional da existência da

família para a sociedade. No máximo, o pai poderia amar seu filho em mente, mas esse

pensamento estava excluído da apreciação do Direito grego e do Direito romano.

O princípio da família antiga partia da obediência aos cultos religiosos. A mulher

só ingressava na família com o casamento, e o filho deixava de fazer parte da família se

renunciasse ao culto. Os cidadãos eram somente as pessoas do sexo masculino,

ficando as mulheres e as crianças excluídas da cidadania. Daí constata-se a força da

religião que permeava as famílias para a sociedade antiga e a formação do Estado.

Neste sentido, a noção de igualdade, malgrado sua falta de generalidade, teve um

impacto extraordinário tanto na vida grega quanto na formação do pensamento

ocidental.

Esta definição sobre a religião como ditadora das regras da família pode ser

encontrada no livro A cidade antiga de Fustel de Coulanges18. A antiga língua tinha uma

palavra muito significativa para designar a família — dizia-se epístion —palavra que

significa literalmente aquilo que está perto do fogo. Uma família era um grupo de

18

FUSTEL DE COULANGES, Numa-Denys (1830-1889). A Cidade Antiga. Tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros. eBooksBrasil. São Paulo: Editora das Américas S.A..

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pessoas às quais a religião permitia invocar os mesmos manes, e oferecer o banquete

fúnebre aos mesmos antepassados.

Era por meio do matrimônio que os indivíduos iniciavam a constituição da família.

Com ele, a mulher deixava de cultuar os deuses da infância, pois, uma vez unindo-se a

um homem, necessariamente pertencente a outra família, ela tinha a obrigação de

venerar os deuses e rituais religiosos do marido. Desta forma, o casamento figurava

como uma solenidade rigorosa tanto para o homem quanto para a mulher. Por isso, o

casamento acontecia no seio doméstico, enfatizando seu forte cunho religioso. O ritual

dos casamentos da modernidade remonta aos ocorridos na Grécia e em Roma, ambos

semelhantes. No entanto, naquelas civilizações, a passagem da mulher de sua família

originária para a do esposo é considerada vontade dos deuses, como afirma Platão

(427- 347 a.C.).

Nas famílias gregas e romanas era fundamental que o homem formasse sua

prole, uma espécie de satisfação para com os deuses em caso de sua morte, pois

deveria haver a perpetuação da família para que não se findasse o culto. As leis

atenienses e romanas retratam sua profunda ligação inicial com a família, por meio de

trechos que ordenam pelo zelo da continuidade do culto religioso doméstico, bem como

pela exigência da ocorrência do casamento aos jovens. O culto só existia se o chefe da

família possuísse um filho homem. Na legislação de Licurgo, da cidade espartana,

encontram-se passagens de punição austera ao homem que não contraísse

matrimônio.

Sendo assim, o celibato era veemente recriminado, como se pode ver no tratado

das leis de Cícero. Embora o casamento pudesse ser dissolvido em casos excepcionais

no Direito romano, o religioso era inflexível. Também era permitido o divórcio em caso

de esterilidade da mulher. Portanto, o casamento era ato obrigatório nas sociedades

gregas e romanas, não ocorria pela conveniência de duas pessoas que se uniam pelo

amor, mas exclusivamente para perpetuação dos ritos sagrados da família.

Por outro lado, é necessário reconhecer o equívoco de uma identificação

absoluta entre o Estado grego e o romano, tal como o faz Fustel de Coulanges, haja

vista que o Estado romano apresenta caracteres inconfundíveis, significando um

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progresso quanto à consciência jurídica das esferas individuais de ação, notadamente

dos patres familias, dotados de uma autoridade originária não derivada da cidade.

Como observa Duruy e Léon Homo, o desenvolvimento ulterior da urbe favoreceu um

natural acréscimo de autonomia para os indivíduos em geral, e não apenas para o

patres familias: ―O Estado tornara-se tão grande que nele o cidadão se perdia,

reconquistando o sentimento da dignidade humana, superior a toda e qualquer lei

positiva‖. 19

A colonização e a formação de novos Estados, com novas leis, apartaram os

homens do costume tradicional, perturbando sua antiga estabilidade fundada nos

princípios religiosos familiares. Surgiu um novo movimento religioso: um ritual novo, um

sistema de ―mistérios‖, tendo como resultado sociedades religiosas independentes do

Estado ou modificações no sistema religioso oficial, que incorporava o novo ritual.

Ocorre nesse período o crescimento do conhecimento humano, principalmente um

progresso intelectual após as guerras persas.

Inicia-se um processo de especulação sobre a ética, a política e o papel da

família no Estado, movimentos de indagação que incitam o nascimento do pensamento

jurídico clássico. Tendo-se em vista que os sofistas foram importantes no ofício de

ensinar, vale assinalar que suas ideias divergiam entre si. Procuraram voltar o foco da

atenção para o homem e ensinaram o que lhe era próprio; prometiam transmitir o

conhecimento da arte de governar os Estados e administrar as famílias

adequadamente. Consideravam o homem mais importante do que a natureza.

1.2.1. Os pitagóricos, os jônicos e os sofistas

Em relação ao pensamento jurídico, Pitágoras (570 a.C. – 497 a.C) ajudou no

seu desenvolvimento, pois chegou até a ideia de justiça. Para os pitagóricos, a justiça é

compensação e reciprocidade: cada ser é medido pela medida com que mede os

outros. Desse ponto de partida, pode-se entender o Estado como uma soma de partes

iguais. Para que o conjunto das famílias se organizasse em torno da célula Estado, ele

19

BRAGUE, Rémi. A Lei de Deus. História filosófica de uma aliança. São Paulo: Loyola 2009. p. 17.

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devia repercutir sua finalidade de harmonização e equilíbrio perante a sociedade, o que

se pode chamar de Justiça, que preserva o ajustamento perfeito das partes. Esta é a

concepção de justiça que Platão adota na sua obra República.20

Aristóteles ainda e nesse mesmo contexto critica os pitagóricos; afirma que eles

reduziram vários conceitos, como o de oportunidade, de justiça, de casamento etc., sem

explicitamente definir o que seja. Ao contrário deles, Sócrates busca a quididade <tò tí

estin>21. [...] Por se ocupar com questões referentes à Ética e não a Physis em seu

conjunto, saiu em busca do universal, sendo o primeiro a aplicar o seu pensamento na

busca de definições. Por conseguinte, duas coisas devemos reconhecer com justiça a

Sócrates: a argumentação indutiva e a definição do universal, ambas resumem, por si

sós, o princípio da ciência. 22

Para os jônicos, a questão da formação do Estado envolvia aspectos da

natureza, posto que eram naturalistas, preocupados com a matéria e em busca da

unidade fundamental — água, ar e fogo. A analogia entre leis do mundo físico e Estado

aparece nas obras de Heráclito, Anaximandro, Xenófanes, por exemplo. Para eles há

uma disputa eterna entre fogo e água:

A guerra é mãe de todas as coisas e de todas as coisas é rainha... Aquilo que é oposição se concilia, das coisas diferentes nasce a mais bela harmonia e tudo se gera por meio de contrastes... Eles não compreendem que aquilo que é diferente concorda consigo mesmo; é a harmonia dos contrários, como a harmonia do arco e da lira.

23

Sendo assim, a guerra está na origem de todas as coisas; e o dever do homem,

como o dever do mundo, é unir-se ao fogo. Ou seja, as leis são emanadas dessa lei

fundamental; as leis são encarnações da substância comum do mundo e da alma, que

é o fogo.

A Atenas da segunda parte do séc. V possuía uma teoria política independente.

O pensamento ateniense voltava-se para a política, o mundo das instituições e da

20

PLATÃO. A República. Tradução de Anna Lia A. A. Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 21

Idem. 22

SPINELLI, Miguel. Questões fundamentais da filosofia grega. São Paulo: Loyola. 2006. p. 103-104. Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=WXk6ik5CML4C&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false. Acesso em: 21 dez. 2015. 23

Fragmentos de textos de Heráclito. In: REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia. vol. I, p. 36-37.

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conduta humana. A família grega foi inserida no formato de Estado como uma ordem

moral, da qual participavam todos os cidadãos e, por conta disso, passaram a estudar

mais o homem. E foi assim que, à época, ocorreu a valorização do indivíduo, e

começou a aparecer um espírito novo e revolucionário.

Nesse contexto, os sofistas eram, na sua maioria, estrangeiros, e recebiam

dinheiro para ensinar. Por sua vez, os ricos da Grécia precisavam de seus

ensinamentos. Assim, os sofistas se ofereciam para ensinar o que eles desejavam

aprender, e como aprender a arte da política. Protágoras foi um sofista de renome, o

primeiro grego a ensinar a dialética. Admitia a possibilidade de dois juízos sobre cada

coisa, opostos e, contudo, igualmente verdadeiros de acordo com pontos de vista

diferentes. Adotava uma posição empiricista, baseada em uma doutrina individualista,

na qual o homem é a medida de todas as coisas. Explicou a teoria da origem da

sociedade por meio de três estágios: a) natural: foi a necessidade que levou os homens

a criarem as cidades e a arte da política, senão o homem se destruiria; b) de

desenvolvimento, através do qual procuravam a vida urbana e a preservação da

espécie; c) Zeus enviou Hermes para que a justiça e o respeito fossem adotados como

princípios, de modo a ordenar e a aglutinar cidades. Surgiu então o Estado, portanto,

como uma criação divina e não humana. Isso quer dizer que Protágoras não acreditava

na doutrina do contrato social. Dizia que o estado natural era aquele em que os homens

eram comparados a animais, nesse sentido há a necessidade da lei superior, que

liberta os homens deste estado natural. Esse filósofo se interessa mais pelo Estado do

que pelo indivíduo. A escola sofista, portanto, opunha natureza a lei.

O pensamento jurídico na Grécia assentava-se em fatos da vida política, e sua

base consistia no estudo da força de um governante sobre a sociedade. A ideia de

Tucídides era o confronto entre fraco e forte. Platão afirmava que o tirano, considerado

como super-homem, cheio de virtude, e, portanto, o mais forte, faz da sua força o

padrão de direito.

Nesses aproximadamente dois séculos de sua história — de Tales (do século VI

a.C.) a Sócrates (do século IV a.C.) — a filosofia, concebida ao modo de um cultivo, em

sentido amplo, não mantinha nenhum interesse restrito, pois se estendia por diversas

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áreas da sabedoria ou do saber. Por filosofia se designava uma atitude refinada sob

vários aspectos: enquanto observação, explicação e argumentação ou cálculo racional.

Ela não se restringia tão somente a um conteúdo, antes expressava certo tipo de

habilidade ou destreza, voltada tanto para a virtude da ciência (o saber teórico) quanto

para a virtude moral (a sabedoria prática). Pressupunha dois movimentos entre si

conjugados: um para o interior de si próprio (no sentido de conhece-te a ti mesmo,

concebido por Tales, e adotado por Heráclito, e pela filosofia posterior); outro para fora

de si mesmo, ou seja, para as coisas do alto e também para os fenômenos da pólis.

A partir do ponto de vista do conhecimento e das especulações que surgiam com

a formação do Estado, o pensamento jurídico adquiria um papel cada vez maior na

elucidação dos problemas do homem, tanto como ser individual quanto ser social.

Dessa maneira, os filósofos também se preocuparam com o encontro dos fundamentos

para a mudança do papel da família na sociedade com a formação do Estado, e a

necessidade que surgiu com ele de ponderar os valores da família advindos dos

costumes no espírito das leis.

1.2.2 Sócrates e Platão

Sócrates não deixou legado escrito. Em razão disso, o conhecimento a respeito

das ideias socráticas advém dos seus seguidores, especialmente Platão, que era seu

discípulo. É pertinente afirmar que Sócrates é um ator dos diálogos de Platão,24 filósofo

que trabalha com o antagonismo entre o ser e o não ser, do modo como as coisas ou

pessoas são e não são. Nessa linha de raciocínio, o ―o que é‖ é infinito, haja vista que

inexiste estágio anterior à sua existência — ―não ser‖. Oportuno enfatizar que Sócrates

cunhava seu pensamento jurídico sem se ater para a aparência de justiça, mas na sua

estrita definição. Segundo ele, a justiça é uma virtude, o que representa o bem e a

utilidade. A justiça, nesse sentido, é capaz de gerar a congruência e a junção. De outro

24

PLATÃO. Apologia de Sócrates e Críton. Brasília: UnB, 1997. (Clássicos Gregos).

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lado, a injustiça é um vício, algo ruim. Tal exposição acerca da riqueza da força da

justiça encontra-se no livro A República de Platão.25

Sócrates era cidadão ateniense e membro do Comitê do Conselho. Ensinou a

dialética e a busca da verdade. Sua doutrina era conhecida como a dos ―Dois

Conhecimentos‖: para ele, existiam duas espécies de conhecimento — um aparente e

transitório e outro real e permanente. O homem deveria conhecer-se a si próprio. Não

acreditava, como os sofistas, que o bem fosse objeto de uma arte especial; para ele, o

bem resultava de uma capacitação geral, unificada, que colocava cada coisa no seu

lugar. O bem era para ele uma virtude geral de toda a alma, que resultava no equilíbrio

e harmonia. Tudo deveria ser explicado teologicamente, sendo que há dois tipos de

bem: um com base na opinião e outro no conhecimento.

Sócrates deu extrema importância às leis, e criou muitas lições políticas, para

sua época, que repercutem até os dias atuais. Para este filósofo, a política é uma arte,

na qual o político não deve visar o benefício próprio. Os sábios governam frente a uma

vontade popular, enquanto para os sofistas existia o direito do mais forte — o Estado

podia promover seus próprios interesses em prejuízo do cidadão. Referida

contraposição de argumentos, sobre a função do Estado e, consequentemente, do

governante, induziu ao questionamento dos cidadãos a respeito do grau de liberdade

que teriam com a formação do Estado. Então membros de uma família, os cidadãos

também discutiam sobre a interferência do Estado na esfera privada, pois as leis

restringiram alguns direitos antes amplos do chefe da família.

Portanto, é indispensável para a apreciação da visão das famílias modernas, a

forma como o pensamento jus filosófico clássico se originou, e serviu de base para o

entendimento sobre os impactos da religião na vida social das famílias. Sendo a família

o modelo mais elementar de reunião de pessoas com fins em comum, as regras de

justiça na cidade não poderiam deixar de apreciá-la.

O ensino da ética foi uma inclinação tomada pelo filósofo Platão. Seu objetivo era

treinar o governante/filósofo, que precisaria dominar pela virtude e inteligência, e não

pela letra das leis. Segundo ele, o emprego da analogia entre concepção da política,

25

PLATÃO. A República. Tradução de Anna Lia A. A. Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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das leis e da justiça como uma arte baseada no conhecimento da realidade era

fundamental. Ao discorrer sobre os problemas do pensamento político, Platão elabora

três primeiros diálogos, denominados A República, A Política e as Leis.

A República é um tratado sobre o pensamento humano e as leis que o regem.

Existe, ainda, neste livro, um tratado sobre metafísica, que demonstra a unidade de

todas as coisas na Ideia do Bem. Um tratado sobre filosofia moral, que investiga as

virtudes da alma, e mostra como elas se unem perfeitamente no conceito de Justiça. Há

igualmente um tratado sobre educação e outro sobre ciência política, que descreve o

sistema político e as instituições sociais do Estado ideal, como, por exemplo,

propriedade e família. Consiste também em um tratado sobre a Justiça. Contudo, o

tema único e abrangente dos livros é o homem.

Platão distinguia o justo ―em virtude da natureza‖ do justo ―em virtude da lei‖. Na

República, o Estado ideal não é governado por leis, feitas de acordo com a vontade

humana, mas sim por princípios da natureza, ditados por conhecedores da ciência real,

a ciência da Justiça (Themis, esposa de Zeus). Por isso considera que tais governantes

deveriam ser preparados desde meninos para tão elevado cargo, pois sua vontade

seria lei para os cidadãos. No diálogo Político, em contrapartida, apresenta a lei como

expressão da vontade do legislador, escolhido entre os melhores, que procura a justiça

humana ou Diké, filha da Justiça, mas não divina, por isso sujeita a erro. Finalmente, no

diálogo de sua velhice, Leis, admite que a lei possa provir de uma assembleia de todos

os cidadãos, mas tanto poderá ser justa quanto injusta.26

Podem ser encontrados na obra A República, de Platão, vários diálogos sobre a

cidade justa. Para ele, somente com a cidade justa é que se poderia conceituar

corretamente o termo justiça e diferenciar o significado do que é justo para o que se

assemelha ser justo. Essa cidade era ideal, contudo, esvaía do seu interesse o alcance

perfeito dela, apenas e tão somente os cidadãos deveriam viver de acordo com as leis

dessa Cidade.

26

DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito.6. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 48.

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Na República, a ideia de que a justiça é uma arte era uma máxime. Seria a

justiça a arte de fazer o bem aos amigos e o mal aos inimigos, o que infirma a definição

dada por Polemarco. Ela não é uma técnica, mas uma qualidade espiritual, uma

inclinação da alma; uma qualidade e inclinação tal que quem a tem não pode deixar de

agir de maneira diferenciada. No entanto, discordava do seu uso indeterminado. Platão

era contra a maneira como se ensinava e praticava a política naquele tempo, pois

buscava o bem-estar geral. Contrariando alguns líderes à época, Platão afirmava que

apenas quando o político se tornasse filósofo é que haveria a capacidade de edificar de

fato uma cidade; em outras palavras, instituir um Estado inspirado em valores do bem e

da justiça. Para ele, Estado era a comunhão de almas unidas necessariamente em

torno de um objetivo ético: sabedoria dos governantes, conhecedores da natureza da

alma e finalidade do mundo.

Platão observa que em todas as teorias — como, por exemplo, a de Glauco,

Polemarco, Trasímaco e Céfalo — a lei é externa, uma construção, uma importação ou

uma convenção. Deste modo, Platão busca demonstrar que a legislação humana não

se origina de uma convenção fortuita e que a sua validade não depende de algum

poder exterior; ao contrário, sua força deriva da sua própria majestade; corresponde à

condição própria da alma humana, exigida pela natureza do homem quando visto na

plenitude do seu meio. Desta forma, a justiça se internaliza, mas é na Cidade/Estado

que se realiza, uma vez que o indivíduo é o cidadão. Daí a importância cristalina de as

leis da comunidade política procurarem ao máximo ser justas, pois a cidade-Estado é o

único formato existencial de sociedade. A justiça, que é uma só, possui duas versões: a

justiça do indivíduo e a justiça do Estado. Sendo que a constatação da existência de

leis humanas suscita que o indivíduo não se encontra atrelado ao divino de maneira

contígua.

Segundo ele, o Estado nasce do caráter do homem, a sua preocupação é

descobrir o sentido interior de justiça que há neste homem. O Estado platônico é, em

seu conjunto, uma comunidade baseada na divisão de trabalho entre três classes

especializadas. Afirma que há três classes ou funções sociais de homem para o Estado

ser ideal: 1) a dos produtores, artesãos, agricultores, onde há temperança; 2) a dos

guardas-coragem e temperança; 3) a dos governantes, com sabedoria, coragem e

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temperança. A justiça estaria presente em todos e consiste em cada um exercer o seu

papel. É sabido que as características atribuídas a cada uma das fases foram todas

extraídas da Atenas daquele tempo, por isso se faz necessária a equilibrada análise

comparada de Platão para o mundo contemporâneo.

O divino é a presença de um príncipe soberano, acima de qualquer

determinação, e principalmente de qualquer expressão escrita. Idealmente, o divino que

deve comandar não está fora, ele é o intelecto alojado no íntimo de cada um, e mesmo

no mais profundo da estrutura do universo físico. Os deuses não são legisladores das

cidades, mas eles são para o cosmos. Se o demiurgo do Timeu é um operário, é

também um legislador. No livro X das Leis, o raciocínio destinado a estabelecer a

existência dos deuses cria uma reviravolta da ordem comumente aceita entre o natural

e o artificial; normalmente se acredita que a arte (technè) venha depois da natureza

(physis); será importante compreender que a alma é anterior a tudo o que é corpo, e

consequentemente a suposta natureza não é senão uma arte divina.27

Platão é uma exceção ao pensamento de sua época quanto às leis humanas.

Segundo ele, embora as leis humanas não fossem divinas originariamente, elas

deveriam se preocupar com o sagrado; ou seja, a lei divina poderia ser também lei de

uma cidade, num absoluto entrelaçamento desta com o espiritual.

Platão mantém a ideia de que é o divino que deve prescrever. A natureza

humana não tem condições de se governar sozinha, precisa da soberania divina, que

se exerce precisamente pela mediação no nomos. Platão parte da simples constatação

de um fato: nunca um homem criou uma lei; os fatores que criam as leis são antes os

encontros (tukhè) e as coincidências (sumphora). Montesquieu poderia aderir a esse

tipo de observação e, com ele, toda a tradição sociológica. Longe de parar por aqui,

contudo, Platão, observa que podemos também escolher outra ótica e afirmar que um

deus mantém o leme de todas as coisas, e, com o deus, o encontro e a ocasião

(kairos), aos quais se acrescenta a competência (tekhnè). Assim as leis são realmente

o resultado de uma inspiração divina. As opiniões sobre a origem das leis de que partia

o diálogo ficam assim confirmadas, mas em um nível superior. A ideia de uma lei divina,

27

BRAGUE, Rémi. A Lei de Deus. História filosófica de uma aliança. São Paulo: Loyola 2009. p. 46-47.

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resultante de um ato legislativo, está, portanto, atestada nas Leis, assim como nos

Minos, se esse diálogo for mesmo de Platão.28

Diante dessa observação, é plausível extrair que a lei divina orientava a

elaboração da legislação humana na Grécia Antiga. Os fundamentos filosóficos

platônicos que vão de encontro com o ideal de justiça na perspectiva das famílias, tais

como igualdade, proporcionalidade e liberdade têm um viés também religioso. Nessa

lógica, para Platão, o parentesco era a congregação de pessoas que adoravam os

mesmos deuses domésticos, forma de ver o papel da família na Grécia Antiga.

À época, não obstante as peculiaridades que destinaram a divisão da sociedade,

Platão já defendia, para a classe dos guardas, a isonomia entre homens e mulheres, e

também sobre afetividade. Urge salientar que a divisão da sociedade em classes

acontece no sentido de obtenção do bem comum, sem conotação de hierarquia de

poder absoluto de um sobre o outro.

No que se refere à família, o filósofo defendia para a classe dos guardas uma

comunhão entre os parentes, de maneira que existiria ao final uma grande família, onde

tudo era coletivo e o bem particular tornava-se bem comum. Sendo assim, visava a

extinção da propriedade sobre bens materiais. Partindo do Estado Ideal, criado por

condições psicológicas ideais, Platão desce gradualmente até a pior forma de Estado,

que resulta das piores condições psicológicas. Trata-se de uma tentativa de demonstrar

que a composição vai corresponder a uma corrupção do Estado. Para ele, a associação

é baseada em vínculos econômicos.

Ainda no tocante à família, Platão discorre sobre o objetivo da formação dos

núcleos familiares, aduzindo que a continuidade de uma família era uma decisão

tomada para a contribuição da melhoria da República. Assim, a intenção de procriar

não seria somente privada ou sexual, mas também uma tarefa de ambos os pais, sendo

que os filhos deveriam ser preparados desde o nascimento para a vida na República.

Para o filósofo ―Toda criança que nasce representa contribuição para a eternidade da

espécie. Quando um casal cuida de seu próprio filho, não está cuidando apenas de

uma criança, está cuidando de toda a humanidade. Aquela criança representa a

28

BRAGUE, Rémi, op. cit., 2009, p. 45.

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humanidade. ―Esposa e esposo devem ter em vista gerar para o Estado crianças da

maior excelência e beleza possíveis‖29. Em sua organização da cidade ideal, as

esposas deveriam ser posse comum, ou seja, nenhuma coabitaria em particular com

nenhum homem. A fundamentação seria o exercício do amor coletivo, que seria

propagado entre todos sem distinção, o que para ele seria o fim da família, fundida à

ideia de Estado.

Contudo, ao analisar a condição feminina na obra de Platão, Julia Annas30,

professora da Universidade do Arizona, entende que a proposta de colocar as mulheres

a serviço do bem comum como guardiãs não corresponde ao seu empoderamento de

direitos. À mulher ateniense era conferida uma única condição: a de dar à luz. Mesmo

assim, uma maior igualdade na formação das mulheres gregas é inaugurada no livro V

de A República, pois em algumas passagens do livro há um discurso novo para a

civilização antiga, notadamente quando Platão levanta a questão de necessidade de

educação extensível à mulher, embora essa conferência de direitos fosse somente para

a classe dos guardiões, ou seja, à elite31.

A função da razão para a construção do Estado ideal é dobrada: a razão ao lado

do espírito contribui para a organização militar do Estado. Há nela o componente

intelectual, que leva à apreensão, e um elemento de afeição e atração. O representante

deve ser sábio, contudo o que mais importa para Platão é que ele deve amar.

Governará melhor o Estado quem se dedicar mais a ele, isto é, quem acreditar que o

bem-estar do Estado é o seu próprio bem-estar. Sob este aspecto, a razão é o

elemento que mantém a unidade do Estado. Ideia dos governantes como soldados

29

PLATÃO. As leis, ou da legislação e epinomis. 1. ed. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 1999. p.271. 30

ANNAS, Júlia. An introduction to Plato’s Republic, Oxford, Clarendon Press, 1991. p. 181. 31

―Portanto ... se se evidenciar que, ou o sexo masculino, ou o feminino, é superior um ao outro no exercício de uma arte ou de qualquer outra ocupação, diremos que se deverá confiar essa função a um deles. Se, porém, se vir que a diferença consiste apenas no fato de a mulher dar à luz e o homem procriar, nem por isso diremos que está mais bem demonstrado que a mulher difere do homem em relação ao que dizemos, mas continuaremos a pensar que os nossos guardiões e as suas mulheres devem desempenhar as mesmas funções.‖ (Rep. V 454d-e). Em diálogo posterior, Platão mantém a sua posição, dizendo que ―não há argumentos que me levem a desistir do propósito de exigir que, na educação como em tudo o mais e na medida do possível, a mulher se iguale ao homem em matéria de exercícios" (Leis VII 805c-d).

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decorre dessa filosofia do governo como manifestação dos vários componentes da

alma.

O verdadeiro governante deve ser um filósofo; e só uns poucos têm natureza

filosófica. As virtudes públicas são as virtudes demonstradas pelos cidadãos, enquanto

membros do Estado. Assim, a sabedoria é a virtude dos governantes, que dirigem o

Estado com a razão; a coragem é a virtude dos soldados; o autocontrole, a dos

trabalhadores. O autocontrole significa a aceitação de um governo pelas classes

produtora e militar.

Assim, ao propor a vontade geral como a base da instituição de uma Cidade-

Estado justa, Platão analisa que o Estado deve ter em vista o bem da Comunidade. A

alegoria da caverna nada mais é do que uma tentativa de resolver a dificuldade a

respeito do conceito de justiça, que, segundo ele, só se conseguiria através da

educação adequada. Apenas desenvolvendo as qualidades da natureza humana, por

meio da educação, seria concretizada a justiça na vida privada e pública do homem.

Platão produziu um sistema de pensamento para o qual o conceito de Justiça

dependeria da função de cada cidadão no exercício de sua aptidão natural.

Ao discorrer sobre a justiça e a moral, Platão traz grandes contribuições para o

balizamento de normas legais no Direito de Família contemporâneo. Se para ele a

justiça era do interesse do indivíduo, de maneira a contemplar o bem, a lei não deve

importar que somente uma espécie de família seja tutelada, mas procurar que a

totalidade dos núcleos familiares sejam harmonizados, sem deixar tantas lacunas e

deficiências hoje existentes. Logo, afirmar que Platão era idealista é perigoso, porque

existe sua obra As Leis. A República de Platão o reporta como idealista, mas deve

haver cuidado na interpretação. Ele rompe com a ideia de castas e prega uma

aristocracia conforme de mérito. Em suma, o filósofo consegue falar para todas as

épocas.

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1.2.3 Aristóteles

Aristóteles nasceu em Estagira e foi terminar seus estudos em Atenas, onde

entrou para a Academia, sendo contemporâneo de Platão. Foi mestre de Alexandre

Magno. Depois da morte deste e da posterior rebelião das cidades gregas contra a

hegemonia macedônica, teve que abandonar Atenas. Suas obras mais conhecidas são

Ética a Nicômaco32 e Política.

Aristóteles fazia distinção entre ciências teóricas e ciências práticas. Segundo

ele, estas se diferem quanto ao método, faculdade intelectual, seus objetivos e

propósitos. A ciência teórica tem como objetos coisas que não são sujeitas à mudança

ou que a mudança se encontra nelas próprias; seu método é a análise dos princípios ou

causas destas coisas; seu propósito é o conhecimento demonstrativo e sua faculdade é

a porção científica ou teórica da parte racional da alma. Exemplo de ciências teóricas:

Metafísica, Teologia, Matemática, Física, Biologia, Psicologia. Já a ciência prática se

preocupa exclusivamente com o homem, observando-se que a ação humana está

exposta essencialmente a mudanças. Seu propósito não é a melhora da ação; sua

faculdade é o que Aristóteles chama de sabedoria prática ou a prudência — é o

segmento prático ou calculador da parte racional da alma. Seu método é um modo de

análise da ação humana por meio de um exame dialético e um refinamento das

opiniões dos homens com respeito aos fenômenos dessa ação humana.

Aristóteles distingue as coisas naturais das coisas humanas e coloca a ciência

prática como coextensiva à ciência política e com a prudência. Ainda, reconhece que a

ética forma parte integral da ciência política em seu sentido mais lato, assim ele afirma

na obra Ética a Nicômaco. Fala que todas as ações tendem a um fim determinado e

que experiência política ocorre quando o homem busca o bem humano, não só

individualmente, mas também o da cidade. O homem deve entender que o bem da

cidade é sempre maior, mais nobre e mais completo. Aristóteles afirmava que havia três

modos de vida ao alcance dos seres humanos: a vida de prazer, a vida política e a vida

teórica ou filosófica. A maioria dos homens leva uma vida voltada aos prazeres do

32

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Brasília: UnB, 1997. Passim.

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corpo, os homens de índole mais refinada se voltam para a política, e, por último,

existem aqueles que se voltam para o prazer da atividade intelectual.

Ao discutir sobre o comportamento humano, Aristóteles não distingue nem

recrimina a felicidade e o prazer; este último pode ser o motor para a felicidade. Porém,

devem ser usados com equilíbrio. Aristóteles admite que o alcance da felicidade é difícil

sem certa quantidade de bens exteriores, incluídos aí não só riqueza, mas outros

aspectos da situação humana. Para ele, a riqueza é menos importante como condição

externa de felicidade do que as relações humanas que dependem da virtude. Para agir

com virtude, o homem precisa agir com a razão, só assim estará sendo bom e justo.

Esse pensamento reforça sua ideia de o homem ser por natureza um animal social ou

político.

Em sua obra Ética a Nicômaco, Aristóteles distingue duas classes de homens

virtuosos: o homem bom — que atua com virtude por um desejo de adquirir as coisas

naturalmente boas da vida e o homem nobre e bom — que realiza ações de virtude por

si mesmas ou porque são nobres. Quase todos os políticos são os homens bons acima

definidos, pois o político escolhe realizar boas ações por si próprios, mas em sua

maioria adotam essa classe de vida por motivo de lucro e engrandecimento pessoal.

Para Aristóteles, o homem de grande alma é o que é capaz de prestar os

melhores serviços à cidade, é o que realiza as ações das virtudes na plenitude de seu

orgulho. A grandeza da alma é a coroa das virtudes (caballerosidad - cavalheirismo).

A justiça é que garante a felicidade da comunidade política, pois é através de leis

estabelecidas e do respeito a essas leis que se assegura o bem comum da cidade. A

justiça, assim, é tida como um elemento de análise política.

Ainda segundo Aristóteles, a justiça política se divide no que é justo por

natureza, e no que é justo por convenção ou lei. Ele também apresenta três tipos de

justiça: a justiça distributiva, a corretiva e a reciprocidade. Afirma que a justiça em seu

sentido mais pleno só existe numa comunidade de homens relativamente livres e iguais

cujas relações estão reguladas por leis. Aristóteles discorda dos sofistas, por dizerem

que a justiça só existe por convenção, e afirma que apesar de coisas e ações humanas

estarem sujeitas a mudanças há coisas justas por natureza, que, portanto, não mudam.

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Aristóteles também comenta sobre justiça e equidade, vislumbrando que o

exercício da equidade é necessário quando determinada lei é deficiente. Nesse caso

particular, cabe à prudência do político ou cidadão atuar.

Em relação à equidade, Aristóteles trata da importância do seu entrelaçamento

com a justiça. Ao escrever Ética a Nicômaco, em seu capítulo 10, o filósofo esclarece a

dúvida entre as duas variáveis; afirma que, em um primeiro momento, podem ser vistas

como conceitos de igual dimensão, haja vista que a justiça precisamente requer

equidade, que é a disposição para reconhecer imparcialmente o direito de cada qual,

uma justiça natural, no sentido de igualdade33. Por outra visão, destaca que a justiça

em sua concepção política detém uma força legal, ou seja, disposição para estar nas

leis, que a equidade não tem.

Ainda sobre esses conceitos, Aristóteles assevera que a equidade é espécie da

qual é gênero a justiça. A primeira age para corrigir a justiça de algumas leis, ou porque

são omissas, ou precárias em algum ponto, seja ele moral, ético ou jurídico. Ainda, está

conectada à virtude do homem em agir com prudência, para que se resguarde a correta

execução e a necessária correção de certas leis.

Para Aristóteles a igualdade é uma virtude ético/moral soberana, pois o seu

sentimento no homem é capaz de fazer com que ele saiba agir com virtude em

sociedade. Com isso, o homem é capaz de transferir para a lei o poder de regular sua

vida em sociedade; entretanto, com temperança, uma vez que algumas leis acabam se

tornando injustas ou nascem injustas. Nesse aspecto, a equidade não tem o condão de

tomar lugar da justiça, pois só a última tem força coercitiva; mas como acabamento do

ordenamento jurídico, a equidade é fundamental para a sua ação em prol do equilíbrio

das leis da sociedade.

O significado político do termo amistad empregado por Aristóteles é que as

coisas dos amigos são comuns. Aristóteles reconhece que a forma mais perfeita de

amizade é a amizade de homens bons com base na virtude. Nesse sentido, a amizade

33

Conceito de equidade retirado do dicionário Michaelis. In: MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=equidade>. Acesso em: 18 abr. 2016.

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que abarca tanto utilidade quanto prazer alcança a identificação mais perfeita de nosso

próprio bem com o bem dos nossos amigos, o que é reconhecidamente por ele muito

raro de acontecer.

Para Aristóteles, a prudência ou sabedoria prática é a virtude da parte racional

da alma. Ele faz uma análise da relação entre a prudência e a experiência política,

alegando que a última é uma forma de prudência. Para Aristóteles o estadista, o político

é o que combina a virtude moral com a inteligência prática, a experiência e o

conhecimento das características particulares de sua cidade e seu povo. É ingressando

na sociedade que o ser humano se torna apto a exercer e produzir sentimentos

opostos, como o bom e o ruim, o justo e o injusto. Daí resulta que o homem é

naturalmente um animal gregário.

A política aristotélica é o estudo dos regimes, e essa ciência se conecta ao seu

pensamento jurídico, uma vez que Aristóteles identifica a lei como uma das cinco áreas-

chaves da deliberação política (ingressos e egressos, guerra e paz, defesa do território,

importação e exportação e legislação). A conservação da cidade encontra-se em suas

leis, pelo que é necessário saber quantos tipos de regime há, quais os apropriados para

cada tipo de cidade e mediante que coisas ele pode se destruir.

Aristóteles considera inadequada a filosofia política de Platão já que este mesmo

afirmou que seu modelo de melhor regime é apenas ideal (a República de Platão), por

isso é inadequada, porque não é necessária para os estadistas práticos.

O filósofo estagirita tenta elucidar o caráter específico da cidade. Afirma que

Platão faz confusão entre as formas políticas com outras formas de governo. Para

Aristóteles, a cidade é uma espécie de associação, toda associação está constituída

para obter algum bem. A cidade é uma associação distinta das outras; e como as

associações são naturais, afirma-se também que a cidade é natural e que o homem é

por natureza um animal político (por ser animal racional e moral).34

34

Segundo outra interpretação — a do liberalismo moderno — a cidade é uma espécie de aliança entre seus membros para prevenir a injustiça e facilitar o intercâmbio econômico, em que a lei é um simples contrato e um garantidor mútuo das coisas justas. Para Aristóteles, é somente na cidade que o homem realiza seu potencial de felicidade interpretado como a vida de ação de acordo com a virtude.

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Aristóteles introduz a noção de cidadania como meio de entender a relação que

há entre a cidade e o regime. A identidade da cidade deriva de seus cidadãos, que são

aqueles que tomam as decisões do governo ou que atuam através do direito de voto

nas assembleias públicas ou que atuam como jurados.

Conforme Aristóteles há seis tipos básicos de regimes. O reinado é a forma

correta de governo de um só homem, o monárquico, a tirania é a forma desviada. O

governo de poucos toma a forma, o bem da aristocracia ou oligarquia. E o governo da

multidão em sua forma desgovernada é a democracia. A oligarquia é o governo dos

ricos, que geralmente são poucos; e a democracia é o governo dos pobres, que são a

maioria. Oligarcas e democratas convivem pelo princípio da justiça distributiva, mas

estão em desacordo quanto ao que é igual para todos. Os últimos querem trato igual

em todas as espécies. A Monarquia é para ele o regime apropriado para certas classes

de sociedades.

Trata também de um regime misto — uma mescla de oligarquia e democracia

(constituição política). Aristóteles afirma que é possível uma cidade grande ser bem

governada. Ainda, para ele o melhor modo de vida para a cidade e para os cidadãos

por igual é a vida prática ou ativa.

Aristóteles valoriza a família como estágio fundamental de evolução dos homens

para a sociedade civil. Segundo ele, o homem é um animal gregário; nesse sentido, a

natureza do Estado é contrária à unidade, sendo o significado de justiça a principal

virtude para a vida em associação. Com a função distributiva, ela procura repartir os

bens razoavelmente, como punitiva ela busca compensar os prejuízos ou danos

acometidos por alguém. A vida ética se realiza plenamente com a virtude da amizade,

sensação pela qual o homem consegue deixar de lado seu egoísmo e manter harmonia

entre seus interesses com os da comunidade.

Ao discordar da ideia de família na República de Platão, Aristóteles faz o

seguinte comentário: ―a) Sócrates não deixa claro nenhum motivo pelo qual esse

costume deva ser parte do sistema social; b) quando vista como meio para alcançar um

fim (par o qual, diz-se no diálogo, o Estado Existe), a proposta é inviável; c) em nenhum

lugar é explicada a maneira como a proposta pode ser posta em prática. Refiro-me à

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seguinte fala de Sócrates: ―É melhor que o Estado cresça na unidade‖. Certamente isso

não é verdade. O estado que se tornar progressivamente uma unidade deixará de ser

Estado. A pluralidade, neste caso, é natural; e quanto mais o Estado se afastar da

pluralidade, em direção à unidade, menos Estado será e mais próximo estará de uma

família, que por sua vez tornar-se-á um indivíduo. Digo isso porque a família, está claro,

é mais unidade do que o Estado, assim como o indivíduo o é em relação à família.

Assim, mesmo que fosse possível realizar essa unidade, ela não deveria ser feita, pois

destruiria o Estado‖35. Mais adiante, Aristóteles aborda sobre a importância da

afetividade nas relações familiares, afirmando que o resultado seria inverso do

almejado por Platão: ―Onde se partilham esposas e filhos existe menor afeição, e a

ausência de fortes laços afetivos entre os dominados leva à obediência, não à

revolução‖, e., ―acreditamos que a existência de sentimento de afeto e de amizade, nas

cidades, seja um enorme benefício, é uma salvaguarda contra os conflitos civis‖

Acrescenta ―um mínimo de vinho doce dissolvido numa grande quantidade de água não

se revela ao gosto, assim também os sentimento de solidariedade tornar-se-iam

diluídos até o nada; e numa cidade dessa espécie, não há o que faça os pais cuidar dos

filhos ou os filhos dos pais, ou os irmãos dos irmãos. Existem dois impulsos que, mais

do que todos, levam os seres humanos a amar e a zelar uns pelos outros: ―este é meu

filho‖ e ― eu o amo‖. Num Estado constituído segundo A República de Platão, ninguém

seria capaz de dizer frases como essas. ‖36.

Enquanto em Platão o bem soberano deveria ser imputado por um sábio, que

detinha uma condição superior para tal, a ética aristotélica de bem soberano era em

respeito à liberdade e diferença dos cidadãos que viviam em sociedade, ou seja,

oriunda restritamente da conexão entre os livres. Com o fim de prezar pelo espírito de

sociabilidade humana, Aristóteles afirmava que os homens almejavam uma ordem

política por causa da sua natureza de se associar, devendo a comunidade conseguir

alcançar o justo, o bom e o útil. Já Platão acreditava que os homens decidiam fazer

parte do Estado por conta de suas fraquezas, daí a necessidade de um ente soberano

e mais forte.

35

ARISTÓTELES. A Política. Trad. Therezinha Monteiro Deutsch e Baby Abrão. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os Pensadores). p. 170. 36

Ibidem. p. 174.

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A transformação positiva do homem na vida ética só seria atingida com a

formação plena do Estado, unicamente nele os indivíduos se realizariam absolutamente

como cidadãos. A teoria aristotélica de formação do Estado revela a especial atenção

que ele deu à família, uma associação a ser respeitada e regulada pelo Estado.

Para Aristóteles, esta dupla união do homem com a mulher, do senhor com o

escravo, constitui, antes de tudo, a família. Assim, naturalmente, a sociedade

constituída para prover as necessidades quotidianas é a família, daqueles que

Carondas chama homo pyens (tirando o pão da mesma arca), e que Epimenides, de

Creta, denomina homocapiens (comendo na mesma manjedoura). A primeira sociedade

formada por muitas famílias, tendo em vista a utilidade comum, mas não quotidiana, é o

pequeno povoado; esta parece ser naturalmente uma espécie de colônia da família. A

sociedade constituída por diversos pequenos povoados forma uma cidade completa,

com todos os meios de se abastecer por si, e tendo atingido, por assim dizer, o fim ao

qual se propôs. Nascida principalmente da necessidade de viver, ela subsiste para uma

vida feliz. Eis por que toda a cidade se integra na natureza, pois foi a própria natureza

que formou as primeiras sociedades: ora, a natureza era o fim dessas sociedades; e a

natureza é o verdadeiro fim de todas as coisas. Na ordem da natureza, o Estado se

coloca antes da família e antes do indivíduo, pois que o todo deve, forçosamente, ser

colocado antes da parte.37

Percebe-se, assim, em sua obra A Política, a importância que Aristóteles dá à

família como formadora do Estado. Primeiro, há a família que se reúne também pela

indispensável regulação de sua conduta, pois antes o que existia era a imposição das

vontades pela força e instinto. O pensamento jus filosófico, no significado amplo do

termo, confunde-se com a história do homem como um animal gregário organizado.

Nessa íntima relação, pode-se dizer que, sob uma perspectiva histórica, a descrição do

filósofo estagirita sobre a associação de famílias tem profunda ligação com a

constituição do Estado. A família forma a sociedade e, no mesmo momento em que a

origina, igualmente advém dela para se propor em novas bases, como, por exemplo,

com a necessidade de criação de leis atinentes ao direito das famílias. O Estado é, sem

37

ARISTÓTELES (384-322 a.C.). A política. 2. ed. Rev. Tradução Nestor Silveira Chaves. Bauru, SP: Edipro, 2009. p. 16-18. (Clássicos Edipro).

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dúvida, um elemento de organização da própria vida das famílias, pois todos os

cidadãos vivem em uma espécie dela, numa clara conjugação de seus próprios

interesses com os da sociedade em geral.

Do ponto de vista do pensamento jus filosófico, Aristóteles consegue ser um

filósofo atemporal. Ainda sobre a família como importante elemento para o conceito de

justiça, pode-se retirar do filósofo a ideia de que se a melhor forma de política é a que

melhor serve às necessidades dos cidadãos, deve existir uma adesão jurídica a leis

justas para todas as espécies familiares existentes na contemporaneidade, bem como a

reformulação de leis injustas para o tempo atual. Com temperança, também, insurge a

equidade na justiça. Além disso, pode-se alegar que a doutrina aristotélica do

eudemonismo, conceito central da sua ética, corrobora o respeito a todos os tipos de

núcleos familiares, uma vez que prega a realização da capacidade do homem através

da felicidade. Daí a inevitabilidade de o Estado proporcionar normas legais que

satisfaçam o maior número de preferências informadas pelas famílias, e,

consequentemente, entre as pessoas da sociedade.

Em uma análise crítica sobre as variadas interpretações no que se refere às

vertentes dessa ética eudemonista aristotélica, Antônio Manuel Martins faz um

esclarecimento sobre o objetivo de Aristóteles ao cunhar o conceito de eudemonia:

Como sublinha Roche (1992), o objetivo principal do texto aristotélico parece ser outro.

Trata-se de caracterizar o fim (telos) perfeito em contraste com o fim mais perfeito: o fim

perfeito será aquele que é desejado por outro (fim) enquanto que o fim mais perfeito de

todos (= bem supremo = eudaimonia) é de tal natureza que nunca é desejado por outro.

Por isso, a felicidade/ eudaimonia é um fim (telos) absolutamente perfeito é o bem

supremo do homem. Este seria o sentido fundamental do passo em questão.

Aristóteles, ao dizer que a eudaimonia é um bem supremo, não está a apresentar uma

conclusão retirada da observação e análise do comportamento das pessoas. O seu

ponto de apoio é, antes, a pré-compreensão de eudaimonia de seus interlocutores. A

eudaimonia é o fim (telos) de toda a ação humana, na medida em que não é possível

assinalar nenhum objetivo superior// melhor a práxis humana. Neste sentido, ela é o

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limite de toda ação humana, mas isso não implica que a eudaimonia seja o fim

perseguido (e eventualmente alcançado) de todas as ações humanas singulares.38

É fácil de entender, a partir desse posicionamento, o conceito central sobre

eudemonia aristotélica, e, assim, extrair dele a ligação que se pretende com o desenho

das famílias para o conceito de justiça contemporâneo. Nesse diapasão, se para

Aristóteles o que importa à justiça é a igualdade de todos perante a lei, resguardando a

equidade, para os cidadãos em suas relações privadas, e se para ele o Estado deve

preservar a família, pois ela é a base da disposição regular de sociedade, entende-se

que, também em conformidade com a eudemonia, a justiça deve fazer a correta

distinção entre o justo e o injusto, e preocupar-se em tratar das novas relações

familiares que surgem com a evolução dos séculos. Só assim a justiça, que está

circunscrita na família, promoverá a eudemonia dos cidadãos, que são livres e iguais, e

buscam a satisfação de seus interesses derivados de arranjos familiares diversos.

1.3. O pensamento medieval e seus efeitos para a estrutura do pensamento

filosófico moderno sobre a família e a justiça

A Idade Média compreende dez séculos ou, aproximadamente, um milênio, com

início no século V. d.C. até o final do século XV. Tempo do Império constantinopolitano

ou do Império Romano Oriental inicia-se com a queda do rei de Roma e termina com a

queda de Constantinopla. Período entre a Idade Antiga e a Moderna, a Idade Média é

considerada uma época de mistura de sensações. Os renascentistas a criticam e

consideram-na o tempo da ignorância, subdesenvolvimento generalizado, inflexão e

obscurantismo. Outra corrente afirma que foi dentro da Idade Média que foi gerado o

mundo moderno, portanto, é um período que merece ser retratado.

A ruralização da sociedade e a estagnação econômica, política e social reduziu

sobremaneira a função das cidades, que passaram a ser sede do bispado, e não centro

de comércio e vida intelectual. Com isso viabilizou-se a configuração da servidão ou da

38

MARTINS, António Manuel. A doutrina da eudaimonia em Aristóteles: da urgência de uma reconsideração; da compreensão aristotélia da ética. Humanitas, Universidade de Coimbra, v. XLVI, 1994.

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vassalagem e assim do sistema feudal (o homem vinculado à terra, numa relação entre

senhor feudal (proprietário da terra) e servo. Como a época era de grandes epidemias,

violência, fomes e escassez de bens, fazia-se interessante para os necessitados essa

relação de dependência, pois em troca do seu trabalho ganhavam apoio, comida,

proteção do seu senhor.

A queda do império romano tornou a Igreja Cristã Católica a única instituição

organizada, tendo sido Teodósio quem decretou o cristianismo como religião oficial e

única, ordenou um credo obrigatório e vetou o culto dos deuses pagãos. À época, a

história do cristianismo se juntou à do império. A Igreja dava ao homem medieval um

horizonte: participar do grande drama da salvação da humanidade. Incutindo no homem

a ideia de que era mais importante obedecer às leis divinas do que às leis elaboradas

pelos homens, a Igreja desenvolveu o direito canônico, que era independente do civil.

Assim, a instituição mais importante da Idade Média passou a ser a Igreja, que

regulamentava todas as esferas da vida em sociedade.

Representa a Idade Média uma era de grande enrijecimento das hierarquias

sociais, em que há uma estruturação tripartida da sociedade. A concepção da

trifuncionalidade da ordem social divide-se em três classes: uns nascem para orar

(clérigos), outros para combater (guerreiros) e outros para trabalhar (laboradores). Está

presente o aspecto de imobilismo social, garantido pela ordem das coisas ou pela

preservação da ordem universal. Cada homem está no seu lugar predestinado, a partir

de uma visão de ordem transcendente ou divina.

A família e o poder do seu patriarca possuíam imenso valor na Idade Média. Em

razão de não haver naquela era um Estado ao espelho dos dias atuais, pois ali vigorava

um Estado não soberano e não detentor de poder exclusivo de coerção à função da

família, que se organizava ao redor de um Estado fraco e uma Igreja forte, esta família

era bem mais larga e baseada intrinsicamente nos costumes religiosos. A família era

patriarcal e abrangia um leque maior de membros: mulher, prole, os cônjuges e

descendentes dos filhos, os irmãos mais novos do pater, agregados, os servos e os

agregados. Isso ocorreu por causa da fraqueza diante do rei ou do monarca.

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Das necessidades de segurança, desenvolveram-se relações pessoais e diretas,

sem intermediação do Estado. Esse estreitamento dos laços por um lado deu à família

um status maior no Período Medieval. Ela sobrevivia do poder paternal, sem apreço

pelo indivíduo, mas pelo agrupamento. Era superior à vida pública, e, por isso, a

propriedade somente podia pertencer ao grupo (família) e não ao indivíduo.

Estabeleceu-se, assim, uma verdadeira estrutura policêntrica de poder que tornava

qualquer ideia de poder centralizado uma ficção, com exceção da Igreja. Essa

fragmentação do poder central fortalece o poder da Igreja e do Papado.

Paralelamente, desenvolvia-se o direito visigótico39, que tinha tradição

romanística, porém, retirava do poder paternal o caráter absoluto. A família era

igualmente privilegiada, mas o poder do pai era limitado e compreendido como o de um

harmonizador da multiplicidade de trabalhos dos membros da família. Essa ideia se

estendeu para o cargo do rei, que para os visigodos era visto como um solucionador

dos problemas advindos da relação entre os senhores feudais.

O imperador João Tzimisces, no fim do século X, exprime o seu conceito da

relação entre o imperador e o patriarca, escrevendo: ―Conheço dois poderes na terra e

nesta vida, o sacerdócio e o império: ao primeiro o Criador confiou o cuidado com as

almas, ao segundo a autoridade sobre os corpos‖. Teodoro Balsamon, no fim do século

XIII, reformula esta já bastante clássica divisão do trabalho, mas fazendo a fronteira

passar em uma articulação inesperada; o imperador tem a função de esclarecer e

reforçar o corpo e a alma, ao patriarca é confiado somente o serviço da alma.

Essa questão jurídica levantada na Antiguidade gera reflexões até mesmo para

os dias atuais, uma vez que a discussão sobre a influência do sagrado no Estado é algo

39

Os visigodos foram um dos povos germânicos (bárbaros), originários do Leste Europeu, que invadiram o Império Romano do Ocidente nos séculos IV e V. ―O ano de 410 marca a primeira referência à ação depredatória dos visigodos. Alarico, rei dos visigodos, teria entrado em Roma com seus exércitos e saqueado a cidade (§ 43).‖(pág. 7) ―Caracterizado como o relato de um grupo especificamente identificado com a Hispania, a História dos godos realça traços significativos da conjuntura política e ideológica do reino visigodo. Em tal contexto se destaca o amplo esforço de consolidação do reino que tinha por base a relação entre episcopado peninsular e monarquia (ORLANDIS, 1976, p.35-76).‖ (Pag. 15). In: SILVA, Leila Rodrigues da; e DINIZ, Rita de Cássia Damil. Relações de poder na Crônica de Idácio e nas Histórias de Isidoro de Sevilha: um estudo comparado sobre suevos e visigodos. In: LESSA, F. S. (Org.) Poder e Trabalho: Experiências em História Comparada. Rio de Janeiro: Mauad. 2008. Passim.

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que volta à tona na Pós-Modernidade. Naquela época, o imperador era visto como

mensageiro de Deus, por isso, estava numa posição hierárquica superior às leis dos

homens, ideia cunhada por Justiniano. A ruptura entre a lei natural e a lei dos homens

ocorre com João Damasceno, quando alega a impossibilidade de o imperador legislar

sobre leis divinas, relegando para a Igreja e seus sacerdotes este papel. O pensamento

do medievo para essa separação se dá por causa da imutabilidade da lei de Deus

frente à lei civil, com característica contrária.

Assim, o cristianismo posicionou-se imediatamente fora do domínio político e

seus textos fundadores mostram desconfiança em relação ao próprio; ou seja, os

termos políticos empregados no Novo Testamento são títulos de perseguidores e dos

que crucificaram o personagem central. Algumas supostas evidências ―ocidentais‖

enraízam-se aí: Deus e César estão separados (Mt, 22:17); a cidade de Deus e do

Diabo são dois comportamentos, não duas entidades políticas; a cidade dos homens

tem de se guiar pelas regras morais às vezes inscritas no direito, mas sem que sua

organização dê destaque a uma lei religiosa.40

Na Idade Média, profundamente marcada por traços religiosos, faz-se, portanto,

a distinção entre as espécies de leis vigentes na terra: a racional, a natural e a positiva.

O reconhecimento de filósofos medievais como ícones para a compreensão da

mudança de valores na fase inicial da modernidade é, sem dúvida, uma chave para a

percepção do mundo pós-moderno. Em relação à filosofia medieval, assumem

destacada posição pensadores como Agostinho, Tomás de Aquino e Guilherme de

Ockham.

Como filósofo, Agostinho trata da dicotomia existente entre a Cidade de Deus e a

Cidade dos homens e da importância da fé e da razão da vida humana. De acordo com

ele, a razão ocupa papel importante na formulação da crença do homem em Deus.

Consequentemente, a fé é uma aliada nos momentos de incompreensão humana sobre

o mundo. Nesse sentido, fé e razão se complementam. A partir dessa visão, Agostinho

acredita que pela análise da mutação das coisas terrenas, o mundo é criação de Deus,

ser eterno e imutável.

40

BRAGUE, Rémi. História filosófica de uma aliança. In: A Lei de Deus. São Paulo: Loyola, 2009. p. 57.

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56

A relevância da obra Cidade de Deus para o pensamento jusfilosófico perpassa

ideias sobre a constituição da cidade, as leis da cidade e o poder divino com suas leis

sagradas. Agostinho procura destacar, logo no início, a importância da crença em Deus,

motivo pelo qual os filósofos ―platônicos‖ se sobressaem perante os demais. Aquele

filósofo se tornou adepto do neoplatonismo justamente pela valorização de Deus como

o soberano bem supremo, somente possível de se conhecer a partir de uma visão

libertada das impurezas do mundo.

Santo Agostinho retoma o estoicismo41 ao falar de lei natural, lei eterna e lei

humana. A lei eterna é superior a todas, pois retrata a sabedoria divina, capaz de

discernir os maus e os bons, e, consequentemente, quem merece felicidade ou

infelicidade. A Lei Natural é a Lei Divina acerca da espécie humana, levada aos

homens pelos sábios que conhecem a Deus. Essa lei descreve a harmonia do homem

terrena e espiritualmente. Por fim, a lei humana é criada com inspiração na Lei Natural

e nos princípios inalteráveis da Lei Eterna. Dito isto, mais uma vez é possível notar a

distinção entre a Cidade de Deus e a Cidade dos homens: as duas buscam a felicidade,

mas somente uma consegue efetivamente atingi-la.

Para Santo Agostinho, há uma natural distinção entre os homens. Aqueles que

agem segundo o egoísmo típico dos homens estão ligeiramente inclinados a vontades

más: os vícios e pecados terrenos; estes são aqueles que vivem na Cidade dos

Homens, e aqueles que vivem com base em Deus estão inclinados para a boa vontade,

que é o agir com virtude, ou seja, com base nas leis divinas. Afirma que o elemento de

diferenciação quanto ao pertencimento à cidade divina ou terrena seria a virtude. Os

contemplados serão os que atendem à Lei Natural e, em seguida, a Lei Humana, nessa

ordem de importância. Em continuidade, alega que o homem comete o pecado da

41

Os estoicos são panteístas e possuem uma concepção mecanicista do Universo. A divindade, tal como eles a concebem, está dentro, não fora do mundo, sendo a alma ou o espírito de tudo o quanto existe; de sorte que a lei que o ordena é a mesma lei que rege a conduta humana. A nota dominante da doutrina estoica é o culto da natureza, não sentimentalmente à maneira dos românticos do século XIX, mas racional e friamente, identificando-se com a própria divindade. Ao contrário dos sofistas, de Epicuro e dos filósofos franceses do século XVIII, Zeno e seus discípulos não admitem antinomia entre Razão e Natureza: parece-lhes antes que a Natureza é a Razão mesma, visto como Deus está imanente no universo, animando todas as cousas. In: REALE, Miguel (1910; 1999) Horizontes do direito e da história. 3. ed. rev. e aum. 3. tir. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 40.

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carne, que é o egoísmo. Por conta disto, a igualdade absoluta só é conseguida na

Cidade de Deus.

Essa concepção não quer dizer que ele visa a divisão entre as duas cidades ou a

inexistência do Estado. O que faz Agostinho, na verdade, é romper com a visão

clássica greco-romana de que uma ordem estatal só existe porque é feita à semelhança

da justiça do Deus do cristianismo. Não é isto, para ele, o ordenamento jurídico estatal

corresponde a uma aliança de interesses das famílias que ingressam no Estado para

que ele regule sua vida civil. Assim, nessa visão contratualista, Agostinho não nega a

imprescindibilidade do Estado, mas enfatiza que somente na Cidade de Deus é

possível encontrar justiça.

Em relação a isso, a obra Cidade de Deus informa que estas duas cidades estão

misturadas e atreladas entre si, neste século, até que sejam separadas pelo juízo

final.42 Toda a família do verdadeiro Deus soberano tem a sua consolação, uma

consolação não falaz nem assente em bens caducos e passageiros. De forma nenhuma

deve estar desgostosa da vida temporal. É nela que aprende a conseguir a eterna, e,

como peregrina que é, a utilizar-se dos bens terrenos, mas não a deixar-se por eles

cativar. E, quanto aos males, é neles posta à prova ou é por eles corrigida. Aos que

insultam a sua probidade e dizem, quando lhe advém algum mal: — Onde está o teu

Deus? O meu Deus está em toda a parte presente; todo em toda a parte; em parte

nenhuma encerrado; pode estar presente sem que saibamos; pode ausentar-se sem se

mover. Quando me atormenta com a adversidade, está submetendo à prova os meus

merecimentos ou castigando os meus pecados; mas, em compensação dos meus

males temporais, piedosamente suportados, tem-me reservada uma recompensa

eterna.43

Nesse sentido, não prega a ruptura de uma das cidades face a outra, mas tão

somente que o homem virtuoso consiga exercer tanto seus direitos e deveres civis na

cidade dos homens, mas também se dedique ao amor a Deus sobre todas as coisas, só

42

SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus. Trad. De J. Dias Pereira. 2. ed. v. I. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p. 191. Disponível em: <http://docslide.com.br/documents/ a-cidade-de-deus-santo-agostinho-volume-ipdf.html>.p. 191. Acesso em: 22 fev. 2016. 43

Ibidem. p. 179-180. Acesso em: 22 fev. 2016.

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assim encontrará o homem a paz e a felicidade. Numa sequência lógica para

Agostinho, todo poder emana de Deus e o Estado deve obedecer a ordenamentos

cristãos, por isso deve se situar numa posição hierárquica inferior à da Igreja. Porém,

não é intenção do filósofo criar uma disputa entre religião e Estado, uma vez que ele

fala da possibilidade de harmonização nas duas categorias.

A Lei Divina, no entanto, não depende do domínio político. A ideia de uma lei

divina que governe uma cidade só apareceu pela pena de Agostinho a propósito das

leis dos deuses pagãos, que criam os costumes de seus adeptos, levando-os a imitar o

comportamento, contudo pouco edificante de tais deuses. Agostinho chega mesmo a

esboçar uma teoria da indiferença cristã pelos sistemas políticos e jurídicos voltados

para a manutenção da paz da cidade terrestre: a Igreja reúne cidadãos que convoca do

seio de todas as nações, pouco se preocupando com a diversidade dos costumes, das

leis e instituições; ela não impõe nenhuma restrição, nem abolição a esses costumes,

muito pelo contrário, os conserva e os aceita; pede somente às instituições humanas

que não rejeitem a religião que ensina a cultuar ao único Deus, supremo e verdadeiro.

Isso poderia ser visto como a origem de uma tradição de pensamento que aflora em

outro ponto na Idade Média e que poderíamos chamar, com o risco de soarmos

anacrônicos, ―liberal‖: a tradição que renuncia ao sonho platônico de uma ordem social

na qual cada um receberia do poder supremo seu posto e seu trabalho, em prol de uma

concepção da providência que dá a cada um a inclinação para exercer determinada

profissão, tornando assim inútil a cidade ideal.44

Michel Villey mostra em seu La Formation de La Pensée Juridique Moderne o

caráter das colocações de Santo Agostinho: partindo da ideia de que a ―Cidade do

Homem‖ está sob a lei do pecado, nela não se pode pretender a justiça plena, própria

da ―Cidade de Deus‖. A obediência às leis feitas pelo homem não resulta de seu acerto

ou justiça essencial, que só se encontram na lei feita por Deus, tal como aparece na

natureza, na Lei Mosaica e no Evangelho, a obediência às leis positivas e humanas

resulta da necessidade da boa ordem e segurança social. E, para Agostinho, não se

deve buscar uma legitimidade absoluta para o poder humano, pois, submetido ao

44

BRAGUE, Rémi. História filosófica de uma aliança. In: A Lei de Deus. São Paulo: Loyola, 2009. p. 279-280.

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tempo, ao curso da história, o homem aceita como providencialmente querido ou

permitido por Deus este ou aquele sistema de governo sem discutir, de acordo com De

Cicco (2012, apud VILLEY, 1975, p 83-85).45

Da confluência de elementos extraídos de Aristóteles, dos estoicos e de Santo

Agostinho, Santo Tomás elabora uma notável e precisa filosofia político/jurídica da

natureza das leis. O mérito de sua construção está na fundamentação racionalista da

legalidade, e na sistematicidade e na distinção das leis em geral (Lei Eterna, Lei

Natural, Lei Humana e Lei Divina). Para o autor de Suma Teleológica, a razão adquire

uma primazia sobre a vontade, impondo-se o intelectualismo helênico sobre o

voluntarismo da metafísica paulino/agostiniana.

Nesse sentido, o conceito de lei é formulado no âmbito do intelecto, da razão.

Ora, se ―só a razão pode ser regra ou medida, e como a lei é regra e medida das ações

humanas, é evidente que esta última há de depender da razão. Se, pelo contrário,

definir a lei partindo da vontade não determinada pela razão, chega-se mais à injustiça

do que ao Direito. [...]. A vontade é só o meio pelo qual a razão põe em vigor seus

planos‖.46

Tomás de Aquino apresenta com clareza definições sobre a lei que são úteis não

apenas para o medievo de sua época, mas também para a Idade Moderna e Pós-

Moderna ocidentais. Ao conseguir equilibrar o pensamento clássico de Aristóteles com

o cristianismo, de seus ricos pensamentos sobre Teleologia, consegue deixar um

estimado legado intelectual sobre Teoria da Justiça e do Estado, e, com isso, sua

contribuição para o estudo da transformação da família no meio social. Há uma

retomada da ideia aristotélica de bem comum, uma vida racional do homem

necessariamente na comunidade política visando o principal bem: o da coletividade.

45

Michel Villey, La formation de la pensée juridique Moderne. Paris. Ed Monstchrestien. 1975, p 83-5. In: DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 115. 46

WOLKMER, Antônio Carlos. O pensamento político medieval: Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino. Revista Crítica Jurídica. n.19. jul/dez 2001. Disponível em: http://www.juridicas.unam.mx/publica/librev/rev/critica/cont/19/teo/teo2.pdf. p. 24. Acesse em: 20 fev. 2015.

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60

Em sua obra Escritos Políticos, Tomás de Aquino destaca que assim como o

homem é parte do lar, igualmente é o lar parte da cidade. Ora, é a cidade uma

comunidade perfeita, como se diz na Política (I, 1, 1252a5). Donde, assim como o bem

de um só homem não é um fim último, mas ordena-se para o bem comum, assim

também o fim de um lar se ordena para o bem de uma cidade, a qual é uma

comunidade perfeita. Donde aquele que governa uma família pode ser autor de certos

preceitos ou estatutos, mas estes não possuem, em sentido próprio, a razão de lei.47

Acrescenta que a lei pertence ao que é princípio dos atos humanos, por ser regra e

medida o fim último da vida humana: — a felicidade ou beatitude, como acima se

estabeleceu (q. 2, art.7). Donde se faz necessário que a lei vise sobretudo a ordenação

para a beatitude. Ora, a ordenação para o bem comum, pertinente à lei, é aplicável aos

fins singulares. É a este título que têm lugar preceitos concernentes a algo particular.

Deve dizer-se que as operações são da ordem do particular; mas tal particular pode ser

referido ao bem comum, não em virtude de comunidade de gênero ou de espécie, mas

por ter em comum a causa final, na medida em que o bem comum se diz o fim

comum.48

A filosofia de Tomás de Aquino representa uma das grandes análises e sínteses

do pensamento cristão ocidental, uma vez que além de filósofo ele também era um

teólogo. Isto posto, a família na perspectiva de Tomás de Aquino era cristã (ou deveria

ser). O desenvolvimento do tema da família na doutrina tomista é paralelo à sua

concepção de felicidade, a qual parte do princípio de que a vida humana é portadora de

um fim último: Deus. No entanto, nem sempre o homem O procura. É o fim último que

fornece o sentido de todos os acontecimentos da vida humana, sendo que o bem e o

fim se identificam. Assim, o homem deveria buscar este fim último na família, pois é

nela que ele também realiza sua felicidade. ― Logo, a beatitude suprema do homem

consiste na contemplação das coisas divinas. É isto que toda a substância intelectual

deseja como fim último e unicamente por si mesmo. Logo, a beatitude última de toda

substância intelectual é conhecer a Deus. ‖49.

47

AQUINO, Tomás de. Escritos Políticos. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes. 1995. p.40 48

Ibidem. p. 38-39. 49

PICHLER, Nadir Antônio. Revista Cultura de Fé. n.130, ano 33, p.315. jun./set. [s.d].

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Dessa forma, a função do homem na família convergia no conhecimento de

Deus. A falta do encontro com Deus poderia acarretar um mal. Por isso, o homem

deveria buscar a vida ativa e a vida contemplativa através da prudência, propiciadora a

efetivação a práxis pelas virtudes morais na vida humana e na comunidade política, aí

incluída a vida no seio familiar. Nesta visão, Tomás de Aquino nos remonta ao

pensamento aristotélico, onde a ―a felicidade é a ação que procede de uma virtude

perfeita‖50.

Em uma linguagem que tem sido familiar no Ocidente, desde o Tratado de Direito

de São Tomás de Aquino, poder-se-ia colocar o ponto de vista de Aristóteles desta

forma. Ter concedido a distinção fundamental entre a Lei Natural, que é uma forma

distinta de entender o que os filósofos modernos chamariam de moralidade universal, e

direito positivo ou humano, que é a lei que está em vigor em um determinado lugar. A

questão que surge então é de saber se a Lei Humana em um lugar particular é

determinada unicamente por suas fontes legais escritas ou costumeiras, ou se é, pelo

menos em parte, também determinada pela lei natural. Aristóteles vê que ambas

possíveis respostas a esta pergunta sobre a natureza do direito (humano) podem ser

feitas para parecer plausível.51

Para Aquino e Lei Humana advém da Lei Natural, sua referência para os atos

humanos, pois nela há razão. A Lei Eterna é a Lei Divina, e figura-se em um plano

superior. Pelo entendimento de que o homem é criado à imagem e semelhança de

Deus, é pelo poder espiritual, baseado na fé em Deus como Salvador, que o bom

governo consegue guiar o homem em sociedade. A lei eterna é, portanto, a razão

suprema existente em Deus. Este raciocínio também foi cunhado por Agostinho. A

Justiça moral, nesse passo, requer o ajuste das ações humanas visando a maneira de

agir e o fim dos atos. Com outro conceito, a Justiça legal comporta somente a atitude

demandada à obediência às obrigações sociais. Esta última provoca a observância de

uma atitude pública, e é por conta de diferentes condutas de famílias que se formam na

50

AQUINO, Tomás de. Suma teológica. São Paulo: Loyola, 2003. vol. III, 555 p.64. 51

MURPHY, Liam B. (1960). What makes law: an introduction to the philosophy of law. In: MURPHY, Liam B. An Introduction to the Philosophy of Law. Page‘s cm. Cambridge. p. 17. (Tradução nossa).

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sociedade que surge a necessidade de criação das leis, regulando os atos humanos e

estabelecendo limites e obrigações ao exercício de suas ações públicas.

Havendo uma lei comum, poderá existir uma sociedade que reúna Deus e o

homem. É o que afirma Tomás, plenamente consciente do que o separa nesse aspecto,

de Aristóteles, de quem cita, não sem alguma provocação, a fórmula de que os deuses

não são virtuosos. Para Tomás, ―a lei divina nos guia por seus preceitos numa vida

espiritual, ao longo da qual fazemos parte da sociedade, não apenas com o homem,

mas com Deus‖. Contudo, não pode haver plena reciprocidade entre o homem e Deus,

de forma que a Lei Divina liga-se não ao jus, mas ao faz”.52

Em uma reflexão perspicaz sobre as espécies de leis Aquino acredita com

clareza na coexistência harmônica entre a Lei Civil e a Lei Divina, uma vez que para ele

a Lei dos Homens é uma providência divina, e se o homem for prudente não só na

elaboração das leis, mas também em sua obediência a elas, ele estará atendendo ao

chamado de Deus, que corresponde ao agir com bondade. Sua notável contribuição

para o pensamento jurídico perpassa por um Estado com leis que valorizam a

religiosidade cristã e que fazem com que as famílias queiram ser protegidas por elas,

porque estão cientes da pluralidade de pessoas racionais e livres que ali se reúnem,

mesmo que essa liberdade seja limitada em algumas ocasiões, pois o ser humano é

pecador.

Assim, tanto para Aquino quanto para Agostinho, ambos adeptos do estoicismo,

a Lei Civil, quando preciso, deverá retroceder à Lei Divina. Esta última é a única capaz

de desenvolver a racionalidade para a construção de um Estado bem ordenado, que

visa o bem de todos. É por isso que o homem deve agir com sabedoria para formular

leis humanas, numa completa identificação entre a lei e o sagrado do cristianismo. Ao

continuar sua disposição sobre Lei Divina, Aquino aduz que ela alcança a fé absoluta

em Deus quando a reunião das famílias em sociedade acontece por amizade,

retomando a expressão Aristotélica phillia, que designa o homem como um animal

político, sociável por natureza, assim como o sentimento de justiça do ideal platônico,

no qual cada um age como tem que agir.

52

BRAGUE, Rémi. História filosófica de uma aliança. In: A Lei de Deus. São Paulo: Loyola, 2009. p. 286-287.

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A Lei Divina, assim, repercute diretamente na cidade dos homens, pois gera

efeitos de um princípio ético íntimo que se pronuncia pelo poder da razão. A ciência da

Lei Divina, segundo Aquino, era de sabedoria dos padres, numa notória colocação de

superioridade da Igreja, instituição organizada pelos guardiães da lei. A fusão do divino

na Lei dos Homens era a concepção predominante na Idade Média. A maneira como os

citados filósofos medievais reputavam a divindade da lei serve para o entendimento de

como se desenrolou a disputa por espaço entre Estado e Igreja no medievo, como isso

repercutiu na transformação das famílias ao longo das eras, bem como a forma pela

qual se desenvolveram os pensamentos acerca deste tema na Idade seguinte, a

Moderna.

Na Baixa Idade Média (séculos IX a XV) acontece a crise da sociedade feudal e

a preparação dos novos tempos: de modernidade, laicismo, centralização administrativa

e renascimento do direito romano nas universidades. Período de crise e esgotamento

dos pressupostos e fundamentos da sociedade feudal, a Baixa Idade Média foi um

momento de transição para a Idade Moderna, e com ele o florescimento do comércio,

ascensão, novamente, das cidades, a ruptura com as formas de sociabilidades agrárias

ou rurais, declínio do papado, reafirmação do poder político centralizado, Renascimento

e os primeiros passos na afirmação do Estado Moderno.

A organização jurídica deste período é a soma do processo de permanência do

dogma jurídico romano, não concretizado em sua totalidade e do processo de perda

civilizacional. Assim explica Franz Wieacker:

―Como muitas das grandes culturas do mundo, a cultura ocidental desenvolveu-se sobre o corpo de uma pré-cultura, quando grupos de povos guerreiros invasores dominaram uma velha civilização urbana com uma organização débil ou em desagregação e, ao fazê-lo, foram remodelados por ela. A assimilação civilizacional significa simultaneamente uma educação espiritual que desperta uma nova força criadora; à educação externa acaba por se seguir um renascimento da pré-cultura a partir do novo sentido da vida. Esta matriz fundamental domina também o ritmo da evolução jurídica europeia, que constitui uma progressiva apropriação do patrimônio romanístico em desenvolvimento até os nossos dias. Primeiramente foram recebidos os elementos materiais e técnicos do direito vulgar. A transição para o século XII assiste ao encontro sempre aberto e provisório, com a grande jurisprudência romana na versão do classicismo justinianeu, encontro acompanhado pela recepção da teoria jurídica e política de Aristóteles que produziu, na Suma de S. Tomás, o primeiro sistema europeu de direito natural. Só com o humanismo se iniciam as tentativas de arrancar ao Corpus Iuris justinianeu o autêntico direito

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romano clássico, tentativas que, mais tarde, a Escola Histórica de novo retomou e que a moderna romanística concluiu de forma metódica. ‖

53.

A estrutura familiar da sociedade medieval caracterizava-se pela submissão da

mulher ao homem. A mulher não tinha direitos e era tida como uma posse, tendo o

homem disposição hereditária sobre ela, passada do pai ao marido. ―No século XIII, os

livros de direito abriram algumas liberdades para as mulheres solteiras e viúvas, em

relação a quando prevalecia o direito gentílico. É curioso notar que mulheres

vendedeiras e comerciantes, mesmo casadas se livraram do poder de tutela do marido

devido a independência financeira‖54.

Em toda a Idade Média o casamento possuía um modelo cristão, que perdurou

até a Idade Moderna, sendo considerado um laço entre famílias, que conferia ao

homem todo o poder sobre a família que constituía. Era o chamado poder patriarcal.

Assim, não necessariamente representava uma união amorosa, pois na maioria das

vezes se dava em razão de conveniências entre os pais dos noivos.

No século IX, as cerimônias matrimoniais entre nobres se davam com os noivos

deitados com os corpos nus sobre o leito, e o pai do noivo invocava as bênçãos de

Deus sobre o casal, selando a união entre as parentelas. Aos poucos os padres foram

tornando-se importantes na cerimônia, limitando-se a abençoar a cama do casal com

água benta. No século XII, o casamento foi transformado numa cerimônia totalmente

pública, era uma festividade, um rito, uma solenidade. Já entre os séculos XIII e XIV, a

cerimônia matrimonial dividiu-se em duas partes. Na primeira, o pai da noiva entregava

a filha ao padre, que por sua vez, entregava-a ao noivo. Na segunda parte, o padre

colocava a mão de um sobre o outro e estavam entregues um ao outro.55

Uma forma bastante difundida na Idade Média como alternativa para casar-se

com quem de vontade fosse era o rapto, do qual a culpa sempre recaía sobre o

homem, como se tivesse roubado a moça utilizando-se de força e violência, mas que,

na maioria das vezes teria sido impossível sem a cumplicidade da moça.56

53

WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1967. 54

MACEDO, José Rivair. A mulher na Idade Média.São Paulo: Contexto, 2002. p. 42. 55

Ibidem. p. 25. 56

Ibidem. p. 365.

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Muito ligada à religião, a procriação era, na Idade Média, requisito essencial para

a constituição de uma família, visto que havia obediência ao mandamento bíblico:

"Crescei e multiplicai-vos. Dessa forma, a família, criada pelo unicamente através do

casamento deveria ter prole, caso contrário, era rebaixada com relação as que

procriavam. O sexo dentro do casamento, portanto, tinha somente duas finalidades: o

prazer masculino e a concepção de filhos. Já a mulher era considerada incapaz de

sentir prazer.

É nesse contexto de mutação histórica da Idade Média para o Estado Moderno

que a observância do pensar filosófico medieval se caracteriza como indispensável

para o estudo da família, do Estado e da religião e sua repercussão no mundo

contemporâneo.

A partir deste momento, passo a analisar a Família, o Estado e a Religião

segundo filósofos da Idade Moderna. É pertinente, então, observar em especial a

influência de Kant no pensamento liberal contemporâneo, uma filosofia expressiva do

espírito iluminista, onde tudo deve ser levado à coletividade, para que todos possam

enxergar e examinaras circunstâncias sociais. 57

1.4 Família, Estado e religião para Kant

1.4.1 Panorama da Idade Moderna

O fim da Idade Média é marcado pelo conflito de poder entre Igreja e Estado. A

primeira entra em conflito com as monarquias emergentes, e, quando o povo percebe

que os representantes do papado disputavam mais pelo poder do que pela defesa

como apóstolos de Cristo, na medida do tempo, a Igreja perdia totalmente seu poder

anterior. Isso possibilitou a Reforma Protestante do século XVI, que dividiu

definitivamente a cristandade em católicos e protestantes.

57

Trata-se do Princípio da Publicidade, que vai gerar importantes consequências políticas.

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O Renascimento surge da sociedade de mercadores, em um momento de

cristalização da abundância econômica. A atitude dos intelectuais iluministas do

Renascimento foi resgatar a antiga erudição e modelos da Grécia e Roma, um

reflorescimento da grandeza cultural do Período Clássico. Acreditavam estar vivendo

uma libertação da época das trevas e uma nova época, laica e politicamente

progressista. Houve o afastamento da teologia e o coroamento da ciência, com a

prevalência do aspecto humanista. As pessoas passaram a se preocupar mais com a

vida terrena e a explicar sua vida mais pela ciência e menos pela metafísica marcante

na Idade Média. No Renascimento, acreditava-se que o indivíduo era livre para traçar

seu próprio destino, e não mais eram tolhidos pela predestinação divina.

A luta contra os poderes locais e universais da religião como fonte de

legitimidade e de identidade do Estado, a constituição dos chamados monopólios

estatais (distribuição da justiça, emprego de violência legítima, arrecadação de

impostos etc.) e a delimitação territorial e pessoal do Estado constituíram fatores que

impulsionaram a formação do Estado moderno. As monarquias modernas vão aos

poucos tornando-se as principais unidades políticas da nova etapa da trajetória da

Humanidade. Com isso, vai-se afirmando o conceito de Estado, como seria conhecido

nos próximos séculos do mundo moderno: uma unidade política autônoma a qual os

súditos devem taxas e obrigações. Nesse sentido, dentro de suas fronteiras, o Estado é

absoluto, todas as outras instituições, tanto seculares quanto religiosas, tinham de

reconhecer sua autoridade. Ampliado seu poder mediante guerra e tributos, o Estado,

agora centralizado e unificado, se tornara a unidade básica da autoridade política do

Ocidente.

Com a Reforma Protestante, no início do século XVI, o enfoque antes totalmente

cristão da família bifurcou entre os católicos, segundo os quais caberia apenas à Igreja

dispor sobre casamento, e os não católicos, para os quais era papel do Estado essa

regulamentação. A partir de então surgiram as primeiras leis civis disciplinando o

casamento não religioso. No período da Revolução Industrial (início no século XVIII),

houve uma mudança do panorama familiar, pois como qualquer membro do núcleo

familiar poderia trabalhar nas fábricas, cada um tinha uma contribuição econômica para

sua família. Assim, a família deixou de ser a maior produtora dos bens para a sua

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própria subsistência, passando a auferir o seu sustento da produção, ora como

proprietária, ora como proletária.

A Revolução Francesa inaugurou a bandeira das prescrições de liberdade,

igualdade e fraternidade no mundo ocidental. Com isto, novos arranjos familiares foram

surgindo. Entretanto, o direito de família francês não protegeu as novas famílias, em

razão da sua conexão com o direito canônico. Dessa maneira, quaisquer outros tipos

de família que não o casamento tradicional, não detinham proteção jurídica. Nesse

diapasão, muitas legislações da época58 silenciaram a respeito das famílias que

começavam a se tornar plurais.

No século XX, iniciou-se o processo de laicização do Estado, que será abordado

no terceiro capítulo desta tese. Em suma, com ele houve o afastamento entre Igreja e

Estado. A partir disso, muitas outras transformações de origem liberal ocorreram para

reforçar a constituição de novos tipos de família: a revolução feminina (movimento

feminista), a criação de métodos contraceptivos e a evolução da genética, que permitiu

novas formas de reprodução.

Em uma perspectiva que continua na pós-modernidade, fundamentada em

princípios consagrados pela ordem democrática, tais como dignidade da pessoa

humana, e aqueles defendidos pela Revolução Francesa, o conceito de família se

remodelou, não sendo mais resumido na simples equação do casamento entre um

homem e uma mulher. Dessa forma, ultrapassados os moldes retrógrados, nos quais

família se resumia ao casamento e ao sexo para procriação, cunhou-se um novo

conceito de família, pelo qual uma gama de espécies familiares se constitui, sendo a

união estável o exemplo mais clássico de quebra do paradigma linear e fechado da

família na Idade Moderna.

1.4.2 Kant

Se faz importante mencionar os avanços das ideias iluministas para se chegar a

Kant (1724-1804). A principal ajuda de John Locke (1632-1704), foi a percepção da

58

A exemplo, o Código de Napoleão, o Código Civil brasileiro de 1916.

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imprescindível tolerância entre Estado e Igreja. Sua argumentação contratual afirma

que o homem tem uma natureza boa e é como a cera, que pode ser moldada como

quiser. Assim, pode ser transformado tanto em um fanático quanto em um tolerante. A

Carta sobre a tolerância e o Tratado do governo são obras de Locke que dita o caminho

da paz na Europa através da tolerância. Esta obra recebeu uma aceitação formidável

por parte dos intelectuais e profissionais liberais que não possuíam ligação com o poder

na Idade Moderna.

O filósofo inglês se torna um precursor da democracia liberal, dado o grande

passo em vista da liberdade de consciência e tolerância religiosa, conquistado pela

Revolução Francesa. Para Locke, a intolerância é grave, pois distancia o homem da

salvação da alma, prejudicando-o não só como ser particular, mas também como

agente político. Assim, ao Estado deve ser dada a autoridade para gerir os bens civis

da sociedade, de modo que a Igreja também mereça possuir suas leis próprias. Numa

convivência sem coercitividade mútua, ambos os entes são capazes de conviver

harmonicamente, pois não há sobreposição de poderes.

Nas palavras de Locke: O que ficou dito acerca da tolerância mútua de pessoas

que divergem entre si em assuntos religiosos vale igualmente para as diferentes igrejas

que devem se relacionar entre si do mesmo modo que as pessoas; ou seja, nenhuma

delas tem qualquer jurisdição sobre a outra, nem mesmo quando o magistrado civil — o

que por vezes ocorre — pertence a esta ou aquela Igreja, já que o governo não pode

outorgar qualquer novo direito à Igreja nem a Igreja ao governo civil. Assim sendo,

pertença o magistrado civil a certa Igreja ou dela se separe, a Igreja permanece sempre

o que fora antes: sociedade livre e voluntária. Não adquire o poder da espada pelo

ingresso do magistrado, nem por tê-la deixado perde a autoridade de ensinar e

excomungar que antes possuía. Este será sempre o direito imutável de uma sociedade

espontânea: o poder de expelir o membro que julgar merecedor, e por aceitar novos

membros não adquire nenhuma jurisdição sobre os que lhe são estranhos. Portanto, a

paz, a equidade e a amizade são mutuamente observáveis nas diferentes igrejas, do

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mesmo modo que entre os indivíduos, sem nenhuma alegação de jurisdição sobre os

outros.59

Em período congruente, surgiram os pensamentos radicais de Hugo Grócio

(1583-1645) sobre divisão do poder. Partindo da premissa de que o homem é mau,

para ele o Direito sobressairia sobre o Sagrado, pois só com o medo imposto pelo

Estado seria possível a convivência entre os dois poderes: o do Estado e o da Igreja.

Significa dizer que o Estado não pode interferir no foro íntimo do homem, mas deve

repreender certas atitudes dele. Ou seja, Grócio nega a composição da sociedade em

vários micro-organismos: famílias, municípios, corporações etc., pois somente com o

Estado totalitário seria possível haver segurança para a Humanidade.

Em outra ponta, um filósofo moralista não iluminista despertou o interesse de

Kant, Rousseau (1712-1778). Considerado um homem de fé, acredita não só na

bondade do homem, mas na criação por si própria, coisa que o rígido raciocínio dos

iluministas jamais admitiria. Ele trabalha com um ponto de partida diferente do

Iluminismo, posto que era sentimentalista e não racionalista. Rousseau era um homem

de fé cristã, nascido do calvinismo e convertido ao catolicismo, tendo, posteriormente,

criado uma Igreja Evangélica — Pietismo — que vai ligar-se a Kant. Ele faz um discurso

contra as ciências dizendo que o exagero do racionalismo iria transformá-los em ateus.

O Contratualismo, a explicação da ordem jurídica como simples resultado de um

encontro de vontades, constitui, ainda hoje, um tema inesgotado, e, sob vários

aspectos, uma questão aberta, tais e tantas são as divergências entre os mais sagazes

intérpretes do pensamento de Altusio, Grocio e seus continuadores. De tal ordem é a

preeminência dessa doutrina, que não será exagero dizer que a história do

Contratualismo é a história mesma da cultura jurídica individualista burguesa.

Representando, de início, uma simples justificação, muitas vezes implícita, da origem e

da autoridade do Governo (pactum subjectionis), a ideia do contrato social veio se

transformando, aos poucos, na explicação originária da própria sociedade e do Estado

(pactum unionis civilis), à medida que o individualismo se afirmava como tendência

59

LOCKE, John (1632-1704). Carta acerca da tolerância. Coleção ―Os Pensadores‖. Abril Cultural. p. 7. Tradução de Anoar Aiex. Disponível em: <http://dhnet.org.br/direitos/anthist/ marcos/edh_locke_carta_tolerancia.pdf>. Acesso em: 12 jan. 2016.

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peculiar à época. Ao mesmo tempo, esse potenciamento da doutrina exigia

explicações, mais refinadas e sutis, de sorte que o primitivo Contratualismo, que

repousava sobre a crença na historicidade do ―estado de natureza‖ (Contratualismo de

caráter histórico), que ainda é o de Grocio e de Locke, se converteu em uma explicação

racional da ordem jurídica como um pressuposto de ordem psicológica (Contratualismo

como pressuposto psicológico), tal como não o apresentam Hobbes e Rousseau, para,

afinal, sublimar-se em um mero pressuposto lógico, em uma ficção racionalista

(contratualismo de ordem lógica), de Kant e Fichte.60

A enorme tarefa que projetou o filósofo alemão Kant no decorrer de sua trajetória

foi a valorização da dignidade da pessoa humana frente aos regimes autoritários de sua

época. Resulta disso a confiança depositada na força máxima da lei e não no arbítrio da

autoridade governamental. O interesse kantiano era, no ―Estado de Direito‖, restringido

por normas legais, definidoras das liberdades, em que as famílias e,

consequentemente, a sociedade pudessem coexistir pacificamente. Trata-se de

colocação atinente a um liberalismo jurídico que preconiza a aceitação ontológica do

homem racional pelo pacto, porque admite a formação de um Estado para reconhecer

seus direitos e deveres.

A filosofia kantiana percorre o ápice da burguesia e dos ideais liberais na

Europa. Nesse cenário, Kant constrói na obra Religião limites simples da razão uma

teoria sobre comunidade ética e comunidade jurídica, de maneira que as duas possam

coexistir tranquilamente, mas com suas devidas atribuições. O ideal seria que o homem

agisse de acordo com as leis da virtude moral de Deus e políticas de Direito.

Segundo Kant, ―poderia, decerto, conceber-se também um povo de Deus

segundo leis estatutárias, i.e., segundo leis em cuja observância não se trata da

moralidade, mas apenas da legalidade das ações; tal povo seria uma comunidade

jurídica, de que Deus seria certamente o legislador (portanto, a sua constituição seria

teocracia), mas homens, como sacerdotes que dele receberam imediatamente os seus

mandatos, dirigiriam um governo aristocrático. Entretanto, semelhante constituição, cuja

existência e forma se alicerça inteiramente em fundamentos históricos, não é a que

60

REALE, Miguel (1910; 1999) Horizontes do direito e da história. 3. ed. rev. e aum. 3. tir. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 128-129.

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constitui a tarefa da pura razão moralmente legisladora, cuja solução unicamente aqui

temos de realizar; tal constituição será considerada na secção histórica como

instituição, segundo leis civis políticas, cujo legislador – embora seja Deus – é, no

entanto, externo, ao passo que aqui temos a ver apenas com uma constituição, cuja

legislação é simplesmente interna, de uma república sob leis de virtude, i.e., de um

povo de Deus (que seria diligente nas obras boas).61

O filósofo elabora também uma teoria sobre os imperativos: o categórico e o

hipotético. Com isso ele consegue auferir os limites das liberdades e o respeito à

liberdade dos cidadãos em sociedade. Para ele o imperativo categórico é autônomo e

faz parte da moralidade. Já o imperativo hipotético é Direito, aquilo que a consciência

de cada um às vezes não percebe que determinadas situações precisam ser reguladas

pela lei para serem prevenidas. O direito, assim, possui coercibilidade em razão da

necessidade de o assim ser.

Para Kant o Estado não deve ser totalitário nem paternalista, mas supletivo.

Quando tudo falta (moral, ética, decoro), deve existir o Estado com suas normas legais.

Isto é o Direito para a sociedade. Caso o Direito venha a falhar estará instalada a

desordem. Por isso a preocupação de Kant com a essência do Direito, em uma

sociedade que se funda não na base do Direito, mas da Moral. Em razão disso, Kant

não descarta a importância de uma comunidade ética, a Igreja.

Kant, assim, modela, claramente, o homem como um ser duplo: corpo e alma. O

que o torna diferente dos demais é a alma. O que Kant afirma ser o a priori da ética.

Existe Deus, o livre-arbítrio e a alma imortal. Com isso se constrói toda a gnosiologia —

a ética. Segundo ele, ninguém pode provar a existência de Deus, porque ele está fora

do tempo e do espaço, haja vista ser infinito. Uma nova abordagem da Teoria do

Conhecimento: o tempo e espaço, a quantidade e a relação. A partir desse ponto de

vista, Deus está fora dessa relação. Ele postula a ética como um a priori, um referencial

61

KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão. Tradutor: Artur Morão. Colecção: Textos Clássicos de Filosofia. Universidade da Beira Interior, Covilhã, 2008. Disponível em: <http://www.lusosofia.net/textos/kant_immanuel_religiao_limites_simples_razao.pdf. p. 115-115>. Acesso em: 14 fev. 2016.

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— um arquétipo — um bem absoluto. O ser humano, portanto, está no mundo da

liberdade, porque se você não a possui não há ética.

Assim, alude Immanuel Kant:

―Uma comunidade ética sob a legislação moral divina é uma Igreja, que, na medida em que não é objeto algum de experiência possível, se chama a Igreja invisível (uma mera ideia da união de todos os homens retos sob o governo divino imediato, mas moral, do mundo, tal como serve de arquétipo às que devem ser fundadas por homens). A visível é a união efetiva dos homens num todo que concorda com aquele ideal. Na medida em que toda a sociedade sob leis públicas traz consigo uma subordinação de seus membros (na relação dos que obedecem às suas leis com os que se atêm à observância das mesmas), a multidão unida naquele todo (a Igreja) é a congregação sob os seus superiores, que (chamados também mestres ou pastores de almas) administram somente os negócios do seu chefe invisível e se chamam conjuntamente, a este respeito, servidores da Igreja, do mesmo modo que na comunidade política, o chefe visível se denomina a si mesmo, de vez em quando, o supremo servidor do Estado, embora não reconheça decerto acima de si nenhum homem (em geral, nem sequer a própria totalidade do povo). A verdadeira Igreja (visível) é aquela que representa o reino (moral) de Deus na Terra, tanto quanto isso pode acontecer através dos homens. ‖

62

Longe de uma concepção ampla de liberdade, em que a pessoa faz o que bem

entende, na concepção de Kant, liberdade é quando uma pessoa tem a capacidade de

obedecer uma regra naturalmente ordenada pela razão. A lei moral desemboca numa

vontade humana livre, sendo que o dever requer do homem uma determinação

racional.

―A liberdade, no sentido prático, é a independência do arbítrio frente à coação

dos impulsos da sensibilidade‖63. Kant reconhece que na natureza tudo acontece

segundo as leis necessárias, mas um ser racional pode agir segundo princípios que

seriam a representação das leis.64 Portanto, a lucidez do homem sobre a liberdade

acontece apenas pela lei moral, que é a razão do conhecimento da liberdade. Os

mandamentos divinos para ele são mandamentos morais ditados pela consciência,

sendo que a Religião absoluta e sem precedentes é aquela que possui somente leis,

62

KANT, Immanuel. A religião nos limites da simples razão. Tradutor: Artur Morão. Colecção: Textos Clássicos de Filosofia. Universidade da Beira Interior, Covilhã, 2008. Disponível em: <http://www.lusosofia.net/textos/kant_immanuel_religiao_limites_simples_razao.pdf. p. 117-118>. Acesso em: 14 fev. 2016. 63

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993b. 64

KANT, op. cit., 2009, p. 237. ―[...] uma faculdade de se determinar a si mesma a agir em conformidade com a representação de certas leis. E uma tal faculdade só pode ser encontrada em seres racionais‖.

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não ―estatutos, ou seja, disposições tidas por divinas e que, no nosso julgamento

exclusivamente moral são arbitrárias e fortuitas‖.65 Nessa sequência, por meio de um

trabalho de confiança com o cidadão, seria possível uma ordem legal, o que vem a se

chamar atualmente de Estado de Direito e democracia, e que Kant chamava de

governo da lei ou lei dos homens.

Kant aborda o conceito de família, segundo o aspecto da liberdade no Direito real

pessoal. Em sua obra Doutrina do Direito, afirma que ―este direito é o da posse de um

objeto exterior como de uma coisa e de seu uso como de uma pessoa. (O meu e o teu

que concernem a esse direito é tudo o que se refere à família; e a relação, neste

estado, é a da comunidade de seres livres que, pela influência mútua — de uma pessoa

sobre outra — produzem, segundo o princípio da liberdade exterior — causalidade —

uma sociedade de membros de um todo — entre pessoas que vivem em comunidade; o

que se chama a família).A maneira de adquirir este estado não ocorre por um fato

arbitrário (facto), nem por simples contrato (pacto), mas sim por uma lei (lege). Esta lei,

pelo fato de não ser somente um direito contra uma pessoa, deve ser um direito

superior a todo direito real e pessoal, a saber: o direito da Humanidade em nossa

própria pessoa; direito cuja consequência é uma lei natural facultativa em cujo favor é

possível semelhante aquisição.66

Percebe-se a partir daí a nova definição do conceito de lei predominante na

Idade Moderna. Ou seja, mesmo que Kant fosse um cristão com leituras

rousseaunianas, acreditava na distinção entre leis divinas e leis humanas, uma não

podendo confundir-se com a outra, colocando as famílias sob a tutela de um Direito real

pessoal. A lei civil estava, dessa forma, desatrelada à Igreja, mas conhecedora do valor

de cada uma para com o homem, e, consequentemente, para as famílias e a

sociedade. Então, não é certo acusar Kant por ser individualista extremo, pois, ao

centralizar seu estudo no homem, sem dúvida, acaba respingando igualmente sobre o

estudo das famílias.

65

KANT, Immanuel. R, IV, 2; WW, t. IV, 838. 66

KANT, Immanuel. Doutrina do Direito. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Ícone, 2013. p. 108. (Coleção Fundamentos do Direito).

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Infere-se que a lei divina foi apossada sobretudo como a manifestação da

vontade de Deus, determinada às coisas imediatas, e não mais como a marca da

plenitude divina na própria essência do ser humano. Tornou-se complicado desenvolver

uma lei que não fosse positiva, por causa dessas mudanças; defronte a uma Lei Divina

— Lei Moral — colocou-se uma Lei Humana — Lei Civil.

Nesse sentido, o modelo jurídico/liberal de Kant ganha proporção para além de

seu tempo. Contudo, sem olvidar sua opinião errada e superada sobre o direito privado,

como sendo o natural, e o direito positivo como sendo o direito público. Isto porque,

desde o Direito romano, existe a diferença entre público e privado. Não é a natureza

que tem que dizer como é um contrato de casamento, desde que sob a égide de uma

norma legal civil. Fora esse raciocínio, há muito o que se aproveitar do estudo kantiano

da Idade Moderna, principalmente na ênfase dada ao direito como convívio dos

arbítrios.

Kant elaborou um conjunto de ideias liberais oriundas do legalismo, porém,

explanou teoremas filosóficos que serão arrostados pelo mundo contemporâneo. Criou

uma filosofia prática na qual a moral é guia para a indagação acerca dos mais valiosos

temas do Estado, política e justiça, sob a ordem da história universal, de modo a

fornecer diretrizes para o Estado de Direito e a noção de uma união dos povos que leve

à paz geral.

A Lei Moral não repousa sobre nenhum fundamento religioso; ao contrário, a

religião se define a partir desta Lei. A religião se define como:

―O conhecimento de todos os deveres como mandamentos divinos, não como sanções, ou seja, disposições arbitrárias e, assim, acidentais de uma vontade estranha, mas como leis essenciais que cada vontade livre se impõe, que devem, no entanto, ser consideradas como mandamento do Ser Supremo, pois é tão-só de uma vontade moralmente perfeita (santa e generosa), e, ao mesmo tempo onipotente, que podemos esperar o bem soberano. ‖

67

Sendo assim, Kant comunga com filósofos, tais como: Montesquieu e Maquiavel.

Estes afirmam que pensar em Deus é possuir sabedoria; homem prudente é aquele que

67

BRAGUE, Rémi. História filosófica de uma aliança. In: A Lei de Deus. São Paulo: Loyola, 2009. p. 314.

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deve saber conviver com a existência de duas leis: a Divina e a Humana, pois

justamente onde não é divina, ou mesmo porque não o seja, a lei precisa do divino.

No mundo contemporâneo, pode-se abstrair de Kant a opção pelo individualismo

e a luta em face das variadas formas de despotismo. Sua doutrina é importante, assim,

para a compreensão de um novo olhar sobre a relação entre Estado, Igreja, bem como

das famílias, uma vez que aborda a questão da liberdade como última análise a todos

os direitos da natureza humana. No fundo, o que existe é a liberdade, senão todos os

direitos caem. Por isso, Kant é um autor que deve ser revisitado, para que — em nome

de certas bandeiras: justiça social para as diversas espécies de família e tolerância

religiosa no Estado — não se atropelem direitos que fazem parte intrinsecamente da

liberdade individual humana.

Assinale-se que a expressão liberdade passa a sofrer grande desgaste, logo

após a morte de Kant, com a chegada do Liberalismo. Considerar só a liberdade fica

muito difícil. Contudo, no cenário atual, devem ser resgatados os princípios kantianos,

pois o Direito tem gerado muitas lacunas em nome do coletivo social. Com relação a

esse aspecto, o filósofo trata também das minorias, e defende que desconfia das

decisões de algumas assembleias, por negarem a legitimação de algumas minorias. E

aí podemos incluir atualmente modelos minoritários de núcleos familiares existentes na

Pós-Modernidade.

Portanto, torna-se inviável afastar-se desse conceito de Kant, pois o coletivismo

total da sociedade do presente tem afastado parcialmente os direitos de algumas

minorias, sendo plausível supor que o retorno da importância do indivíduo é uma chave

para a defesa das diversas espécies de núcleos familiares da atualidade.

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CAPÍTULO 2 – A TRADIÇÃO DO SAGRADO NA VIDA PÚBLICA E OS EFEITOS DA

SECULARIZAÇÃO

Antes de conhecer melhor o fenômeno da secularização nesta investigação,

acredito que seja necessário apresentar de que forma tem sido discutida a trajetória do

sagrado ao longo do tempo. Acredito que tal recurso torna-se pertinente para perceber

em que medida o Estado mantém conexão com a Religião.

Como será citado, há uma tese recorrente na literatura afirmando existir o

desaparecimento do sagrado no mundo secularizado. Deus, segundo essa

interpretação, seria mero fruto da mente humana, devendo ser excluído de qualquer

questão social. Um dos principais defensores desta tese datam do século XIX. São

alguns deles os filósofos Herbert Spencer, Emile Durkheim, Max Weber, Karl Marx e

Sigmund Freud, que viam tão positivamente a secularização, ao ponto de pregar a

morte de Deus. Conforme esses pensadores, o sagrado atingiria um estágio tão

reduzido, que ficaria adstrito à esfera mais particular do indivíduo, sem nenhuma

atuação na esfera pública.

Em discordância com a leitura dos mencionados cientistas, existem os que

defendem que aa Idade Moderna não é uma idade sem religião. Nessa linha de

argumentação, em traços gerais, a secularização é um fenômeno que deixa a

sociedade livre para escolher suas crenças, mas isso não significa a perda de espaço

público do sagrado. Ele continua forte, apenas é uma opção e não uma imposição.

Existem vários trabalhos mostrando que não necessariamente a modernização da

sociedade vem acompanhada do declínio da religião, tais como os de Peter. L. Berger,

Rodney Stark, Roger Finke, Charles Taylor, Maritain e MacIntyre.

Na minha leitura, e por meio das evidências apresentadas logo adiante, defendo

a ideia segundo a qual o sagrado permanece vivo no espaço público. Contudo, deve-se

superar o debate da secularização na perspectiva pela qual Estado e Religião são

encarados como rivais em constante embate. Deve-se, na verdade respeitar a liberdade

religiosa que há no Estado laico. Dessa maneira, a harmonia entre Estado e Igreja é

fundamental para a consolidação de um Estado Democrático de Direito.

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Dito isto, passo, agora, para a descrição do sagrado na esfera pública e os

efeitos da secularização. Num segundo momento, analisarei a ―Dialética da

secularização‖, uma discussão interessante sobre razão e religião na concepção de

Jurgen Habermas e Joseph Ratzinger (Papa Bento XVI), por entender que são

importantes expoentes sobre o tema. Contudo, tal análise não é exaustiva. Ela visa

somente fornecer os elementos para entender a necessidade do diálogo entre liberdade

religiosa e direito das famílias.

2.1 Abordagem do sagrado

A tradição antiga do uso da lei como experiência de manifestação do divino pode

ser um dos fatores para explicar que a vida moral do indivíduo de fato repercute no

contexto normativo do Estado, uma vez que a regulamentação busca, em um contexto

amplo de convivência mútua entre os outros indivíduos, regular suas ações e

relacionamentos, por meio de instituições justas, ao menos em tese.

Assim, sob a perspectiva de padrões coletivos, em diversas civilizações, nota-se

o aparecimento da religião como fator por vezes influenciador de normas jurídicas. Mas

até que ponto o sagrado interfere na esfera pública atual, dada a modificação do caráter

divino da lei, que acontece no final da Idade Média e vai até secularização68 do Estado?

A forte ligação do sagrado, nas dimensões políticas e na atividade legisladora dos

tempos antigos, continua sendo demasiado interessante para o pensamento

jusfilosófico, uma vez que a ideia de que ainda existe uma precedência do divino sobre

certo padrão de homem cristão atual, em um sentido axiológico, demonstra a

necessidade do estudo em retrospectiva da situação.

Não se pode diminuir o conteúdo do sagrado apenas porque no fluxo da

Revolução Francesa a noção sobre lei divina saiu da memória, ou porque os Estados

ocidentais experimentaram o fenômeno da secularização. A reflexão geral em torno da

natureza do indivíduo que vive em sociedade envolve a compreensão da moralidade

68

O termo ―secularização‖ deriva do vocábulo latino saeculum, o qual foi utilizado, na Vulgata, para traduzir o termo grego aion, ―século‖, ―mundo‖, no sentido paulino de ―domínio do pecado‖. Seu oposto simétrico é a eaternum, o eterno (Cf. BEDOUELLE apud LACOSTE, 2004, p. 1629).

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positiva e axiológica que a religião exerce na vida de cada um; na medida em que a

construção de modelos de ordem estatal, especificamente para as famílias, possui

cunho moral significativo, é importante discernir até que ponto o sagrado pode exercer

influência também ontológica na esfera pública.

Os efeitos da tradição do sagrado na história das sociedades podem servir de

exemplo para justificar a resistência conservadora do sistema de algumas normas

atinentes ao direito de família moderno ocidental, embora a prática política do homem

tenha dissociado Estado de Religião. A pós-modernidade vivencia uma mutação de

espécies de famílias tão grande que a discussão do desenvolvimento paralelo dessas

duas instituições se torna a chave para uma nova forma de pensar a filosofia sob a

perspectiva da liberdade que merece ser dada aos novos núcleos familiares. A crença

no sagrado é, de modo geral, uma corrente também filosófica que acredita no

cristianismo como meio para se obter a justiça.

Embora o divino tenha sido desmitificado e a lei tenha adquirido independência

quanto ao sagrado, durante a Idade Moderna, a problemática do religioso na esfera

pública continua. Ainda não restou demonstrado que a ideia de um Estado paternalista

e secularizado seja a via mais exequível para a Humanidade. Portanto, resta à Filosofia

do Direito provar que o contrato social, quer seja tácito ou explícito, é capaz de

desenvolver normas legais justas para todos os indivíduos nele inseridos, e que sejam

livres de contato com o divino. Essa compreensão é o cerne para não se propagarem

visões acerca do papel do Estado ou da Religião, especificamente concernente às

famílias, que envolvam riscos conscientes de causarem danos às próprias instituições.

O termo numinoso é utilizado pelo teólogo alemão Rudolf Otto para designar o

vocábulo sagrado numa acepção geral. Ao que lhe parece, a expressão sagrada é mais

utilizada hodiernamente para denotar o aspecto moral e ético da religião, o que não

seria favorável, pois o sagrado envolve tantos aspectos do ser humano que seria ruim

reduzi-lo somente a este campo. Para ele, a religião deve ser compreendida por sua

essência, e não como uma derivada de outras áreas do saber.

Segundo o mencionado teólogo, nos habituamos a usar ―sagrado‖ num sentido

totalmente derivado, que não é o original. Geralmente, o entendemos tanto como

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atributo absolutamente moral, quanto perfeitamente bom. Kant, por exemplo, chama de

vontade santa a vontade impelida pelo dever e que, sem titubear, obedece à lei moral.

Só que isso seria simplesmente a vontade moral perfeita. Nesse sentido, também fala

de dever ―sagrado‖ ou da ―santa lei‖, mesmo quando o que se quer dizer não é nada

mais do que sua necessidade prática, seu caráter normativo geral. Só que esse uso do

termo heilig não é rigoroso.

Embora o termo abranja tudo isso, nossa sensação a seu respeito subentende

algo mais, que precisamos especificar agora. Na verdade, o termo heilig e seus

equivalentes linguísticos semítico, latino, grego e em outras línguas antigas inicialmente

designavam apenas esse algo mais, não implicando, de forma alguma, o aspecto

moral, pelo menos não num primeiro momento e nunca de modo exclusivo. Como para

nós hoje santidade sempre tem também conotação moral, será conveniente, ao

tratarmos aquele componente especial e peculiar, inventar um termo específico para o

mesmo‖.69

Sendo assim, para aquele autor, o numinoso possui categoria composta, um lado

racional e outro irracional, sentimentos que são identificados pela disposição do ser

humano em um determinado momento. Existem crenças sobre o sagrado tidas como

absolutas e indiscutíveis, que fogem à identificação com a moral. São vindas do

irracional humano, tais como louvor, receio e obediência pelo elevado.

Dessa maneira, a carga moral do divino e sua associação ao santo é apenas

uma das vertentes do sagrado que levam o sujeito a tornar a religião, no caso a cristã,

uma obrigação íntima em sua vida, criando uma normatividade em sua consciência que,

em alguns cidadãos perpassa para sua vida política, afetando por vezes a associação

harmônica em Estados secularizados.

Sob o viés da valorização do sagrado na esfera pública, Rudolf Otto afirma que:

―O fato de os elementos irracionais numa religião se manterem sempre vivos e ativos preserva-a de virar racionalismo. O fato de ela embeber-se ricamente de elementos racionais preserva-a de decair para o fanatismo ou misticismo ou neles permanecer, capacita-a a ser a religião de qualidade, civilizada, universal. A presença de ambos os elementos em harmonia sadia e perfeita é, por sua

69

OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais da noção do divino e sua relação com o racional. Tradução Walter O. Schlupp. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, 2007. p. 37-38.

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vez, critério pelo qual se poder medir a superioridade de uma religião, e mais: é um critério propriamente religioso. Também por esse critério, o cristianismo é, por excelência, superior a suas religiões na Terra. Sobre fundamento profundamente irracional ergue-se a luzente arquitetura de seus puros e claros conceitos, sentimentos e vivências. O irracional é apenas seu fundamento, marco e cunho, preservando-lhe sempre a profundidade mística e proporcionando-lhe os tons graves e sombrios da mística. Na proporção sadia dos seus elementos, o cristianismo adquire a forma clássica, a qual mais vivamente se transmite ao sentimento quanto mais honesta e desinibidamente ele seja submetido ao estudo comparativo das religiões. Reconhece-se, então, que nele, de modo especial, inclusive superior, chegou à maturidade um aspecto da vida do espírito humano, aspecto este que também em outros

lugares tem suas analogias e leva o nome de ‗religião‘. ‖ 70

Como se pode observar, a característica religiosa do sagrado vai desde os

tempos antigos até a contemporaneidade. Os símbolos e sinais da crença na santidade

permanecem nos dias atuais, entretanto, com conotações diferentes das dos povos

arcaicos, posto que a Religião acompanha a modificação da sociedade através dos

tempos, prova de que não se apagou. Sendo assim, o sagrado não é um vetor imóvel,

mas sim um instrumento que incita o homem e lhe ocasiona o pensar além de seus

imediatismos. Sagrado é imagem, sublimidade, acréscimo, horizonte, caminho, mistério,

renovação, sentimentos que uma vez descobertos e sentidos permitem ao homem

enxergar uma magnificência encantadora proporcional a plenitude de vida, e para isso

ocorrer o fiel cristão precisa de amadurecimento.

Desta forma, o sagrado indica em termos axiológicos a existência de um Deus

cada dia mais vivo, que orienta o indivíduo como ser particular e público. Esse elemento

para o sagrado é a chave para o distanciamento das coisas profanas, ou seja, leigas à

religião. A experimentação do sagrado se torna um relevante atemporal para as

civilizações, haja vista que a religião, assim como os três poderes do Estado

(Legislativo, Executivo e Judiciário) têm o poder de delinear os contornos da sociedade.

Não obstante, é preciso reconhecer que o Ocidente tem experimentado intenso

processo de secularização, conforme aponta Gallego ―que, no abalizado dizer de

Charles Taylor (2007), atua por três vias: pelo embate entre religião e Estado, pela

70

Ibidem. p. 178-179.

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saída de Deus do espaço público, e, por fim, pelas assim denominadas ―condições de

possibilidade da descrença‖.71

O embate entre religião e Estado é revestido de maior ou menor intensidade

conforme o país estudado e o modelo de relacionamento entre tais instâncias pelo

mesmo adotado. Na França, nação herdeira de uma hostilidade jacobina com relação à

religião, prevalece o modelo excludente, no qual se almeja ―limpar‖ o espaço público de

qualquer traço religioso. Já na Inglaterra adota-se o modelo inclusivo, por meio do qual

todas as crenças ‒ e sua exteriorização ‒ são toleradas no espaço público, desde que,

obviamente, não malfiram a ordem pública.72

O Brasil, que por influência da colonização portuguesa, em outras constituições

pátrias, já erigiu a religião católica como a oficial do País; numa sequência inspirada

nos acontecimentos da modernidade igualmente vivenciou a secularização. As

doutrinas modernas inspiradas na secularização apoiam o andamento da ordem pública

do Estado afastado de qualquer caráter religioso. Isto é, pensam na construção da

sociedade a partir de uma consideração sobre a ação completa e eficaz do Estado, sem

a necessidade do império do sagrado. Com esse posicionamento, indivíduos racionais

e interessados podem recorrer à religião, porém, no âmbito privado. A grande

dificuldade da Igreja nesse novo contexto é a de não se enfraquecer; para tanto, deve

demonstrar que cada uma das instituições, Estado ou Igreja, possui sua especificidade

na hora de cunhar horizontes para a vida humana, buscando demonstrar que não

perdeu sua relevância na sociedade, apenas ele foi remodelado de acordo com o

século.

Percebe-se a tentativa do homem moderno de suprir suas falhas, independente

do dogmatismo sagrado, realizando-se em si mesmo e plenamente, na ordem pública

estatal, cunhada por ele próprio, ao estabelecer o contrato social para a nação. Ocorre

que isso deve ser tratado com prudência, vez que as questões religiosas não são

somente questões abstratas, mas questões que ressurgem e surgem constantemente

71

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a àgora: religião e laicidade no estado democrático de direito. In: GONZAGA, Álvaro de Azevedo; GONÇALVEZ, Antonio Baptista (Coord.). Repensando o Direito: estudos em homenagem ao Prof. Cláudio De Cicco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 284. 72

Idem.

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na prática social, jurídica e política. Na verdade, embora a secularização seja a opção

do Estado moderno, avançado com base no ordenamento jurídico e na ciência, este

retorno da moral religiosa sempre acontece devido à crise da alma humana, a qual

muitas vezes só consegue ser explicada à luz do sagrado transcendental.

Deste ponto de vista, a publicação do artigo O sagrado e a ágora: religião e

laicidade no estado democrático de Direito constitui uma espécie de manifesto desta

nova exigência de refletir sobre a continuidade da tradição do sagrado na esfera

pública. Roberto de Almeida Gallego, aludindo a estudiosos do assunto, afirma que

―Alexis de Tocqueville, com sua habitual acuidade, já afirmava no século XVIII, ao

analisar a nascente democracia norte-americana, que:

―As crenças dogmáticas podem mudar de forma e de objeto; mas não se poderia fazer que não houvesse crenças dogmáticas, ou seja, opinião que os homens recebem em confiança e sem discuti-las. Por todas essas razões é forçoso reconhecer que mesmo os ditos estados laicos contemporâneos não se mostram isentos de conteúdos religiosos e indemonstráveis sob o prisma empírico. Em seu seio convivem as crenças religiosas enquanto tal e também conteúdos religiosos em roupagem secular. ‖

73

A Religião é interpretada por variadas correntes da Filosofia. Para os críticos do

sagrado, a preocupação que a religião impõe ao seu fiel, com característica punitiva e

autoritária, através da representação divina, é algo ilusório, sendo as escrituras

sagradas meros frutos da criatividade humana. Segundo eles, as questões sobre a

crise moral humana aparecem como meio de justificar a fundamentação religiosa de

algumas leis humanas, na tentativa de se criar a ideia de justiça a partir da visão do

sagrado contida nas leis do Estado.

Deste ponto de vista, o racionalismo inaugurou no século XVIII a interpretação

iluminista sobre o mundo, com base na razão, deixando a religião de fora dessa

concepção, por considerá-la uma visão sobrenatural e rudimentar da Humanidade, e

que, portanto, foge da racionalidade. Conforme os filósofos racionalistas, que têm David

Hume (1711-1776) como ícone, o Estado é capaz de sobreviver tranquilamente sem o

73

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado e a àgora: religião e laicidade no estado democrático de direito. In: GONZAGA, Álvaro de Azevedo; GONÇALVEZ, Antonio Baptista (Coord.). Repensando o Direito: estudos em homenagem ao Prof. Cláudio De Cicco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p. 287-288.

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sagrado, isso porque tudo pode ser explicado pelo naturalismo, não sendo preciso

decair em Deus como a razão de todas as coisas.

A fim de ilustrar tais opiniões negativas acerca da função da religião no espaço

público, outra vertente crítica adotou o posicionamento de que a religião constitui uma

espécie de criação humana, advinda da psique, por isso, a ideia do sagrado em Deus

era um equívoco humano, oriundo de seus encantos psicológicos, ensaios, sinais e

necessidades. Os pensamentos de Friedrich Nietzsche,74 em meados do século XIX, e

Ludwig Feuerbach,75 em 1814, que destacam o divino como uma incidência meramente

humana, servem de exemplo para o entendimento de Karl Marx (1818-1883),76 o qual

explica a religião através do contexto dos conflitos sociais entre as classes,

enxergando-a como uma forma de status, no qual os dominadores utilizam a palavra

Deus para manipular, oprimir e repreender as classes dominadas. Sigmund Freud

(1856-1939)77 explica a religião como uma máscara para as realizações emocionais

que as funções sociais cotidianas retraem; para ele, não passava de reflexos das

aspirações do ego humano frágil.

Como as crenças religiosas são feitas da mesma matéria que a alienação

humana, elas desaparecerão quando a vida na terra se tornar digna de ser vivida e

harmoniosa. Os marxistas alegam que são eles mesmos, e não os religionistas, que

estão criando o verdadeiro ―reino‖ da justiça aqui embaixo, que eles são os verdadeiros

―bons samaritanos‖ cuidando dos aflitos. A religião é sintoma de uma doença que será

curada quando as pessoas não mais se sentirem forçadas a sonhar com outros mundos

para conferir dignidade a si mesmas, e puderem, em vez disso, estabelecer as

condições de dignidade em sociedades históricas verdadeiras. Neste sentido, Marx

escreveu:

―A abolição da religião como felicidade ilusória do povo é necessária para a sua verdadeira felicidade. A exigência de abrir mão da ilusão sobre a sua condição é a exigência de abrir mão de uma condição que precisa de ilusões. A crítica da

74

Evento cultural ―morte de Deus‖. 75

FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. 2. ed. Campinas: Papirus, 1997. 76

MARX, Weber. On religion. New York: Schocken Books, 1964. 77

FREUD, Sigmund. Futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1927 (data da primeira publicação).

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religião é, portanto, em embrião, a crítica do vale de lágrimas, cuja auréola é a religião‖.

78

Os novos caminhos da vida pública do homem ocidental, que surgiam por volta

do final da Idade Média, relacionados à diferentes aspectos políticos, jurídicos e

econômicos, aumentaram a velocidade dos acontecimentos, sem eximi-los da questão

religiosa. Por um longo período, o sagrado continuou influenciando a estrutura social

com base na moralidade impingida pela ideia de sagrado; no entanto, a Igreja ficava

cada vez mais sujeita à individualização institucional ordenada pelo Estado Moderno

com o movimento de secularização.

As transformações estruturais e culturais, geralmente difundidas pelo Iluminismo,

e a Revolução Industrial aceleraram o processo de divisão entre o Estado e a Igreja. O

sagrado e a moral foram cada vez mais individualizados em setores específicos e fora

do ordenamento estatal. A religião, assim, se tornou uma fé puramente privada e a

moralidade fixou morada na consciência subjetiva, mas isso não significa dizer que o

religioso perdeu influência na vida pública, pois alguns homens continuam firmando

certas convicções, segundo suas orientações religiosas.

Além do que, existe ainda certo conservadorismo por parte do legislador na

aceitação de novos fatos sociais, sendo plausível supor que isto advém também ou do

resquício histórico e cultural do poder do sagrado ou na influência de bancadas

religiosas, embora determinado Estado se estatize como laico.

De modo histórico, a Teoria do Contrato Social foi utilizada para refutar a origem

divina do poder, procurando erigir o Estado com base nos princípios da liberdade e

igualdade. Os séculos XVII e XVIII deram início ao desenvolvimento dessa teoria, e

teve na figura do filósofo Jean Jacques Rousseau um de seus maiores expoentes.

Em suma, essa corrente entende que a origem da sociedade está no contrato

firmado entre os cidadãos e o Estado, uma espécie de pacto espontâneo entre os

celebrantes, visando a paz social. Nessa lógica, para os filósofos contratualistas, existe

78

PADEN. William E. Interpretando o sagrado: modos de conceber a religião. Willian E. Paden. Tradução Ricardo Gouveia. São Paulo: Paulinas, 2001. p. 44-45. (Coleção Religião e Cultura). Título original interpreting the sacred: ways of viewing religion.

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uma passagem do homem, que sai do estado de natureza e ingressa no estado civil,

este último, local de realização da vontade política dos cidadãos.

Sendo assim, pode-se inferir que o Contratualismo é um acordo jurídico que

estabelece direitos e deveres mútuos. É a partir desta relação que há a definição das

medidas e capacitações da justificação dos vínculos políticos existentes na sociedade

civil. Nesse ínterim, terão credibilidade as instituições que atuarem em harmonia com

seus limites contratuais. E é por essa concordância advinda do Contrato que a

sociedade se edifica e não se confunde com as outras formas de comunidade. Nesse

contexto, o Estado é determinado como um agrupamento de ligações de poder

raciocinadas e justificadas em direitos e obrigações. Resumindo, em poucas palavras,

sem contrato, não há cidade, não há instituição e não há poder.

Concomitante a esse pensamento moderno de direito político, os filósofos

contratualistas constroem a ideia de Estado separada da Religião. Ou seja, para eles

cada instituição tem seu objetivo, conforme o espaço que ocupa. Afinal, o Estado ocupa

o público e a Religião permanece no campo privado da vida humana.

Nessa perspectiva, Jean Jacques Rousseau,79 conhecido como um dos

principais filósofos do Iluminismo, define a separação natural do Estado com a Religião,

e coloca a última no campo espiritual do homem. Contudo, aduz a importância de o

homem ser um cristão, demonstrando que uma gama de filósofos,

intitulados contratualistas, comunga dos valores políticos do contrato social de maneira

distinta. Segundo Rousseau:

―Resta, pois, a religião do homem, ou o cristianismo, não o de hoje, mas sim o do Evangelho, totalmente diverso: por essa religião santa, verdadeira e sublime, os homens, filhos do próprio Deus, se reconhecem todos por irmãos, e nem a morte põe termo à sociedade que os une; mas não tendo nenhuma relação particular com o corpo político, deixa às leis a única força que de si próprias tiram, sem lhes ajuntar qualquer outra, o que inutiliza um dos maiores liames da sociedade particular. Ainda mais, longe de afeiçoar os cidadãos à república, dela os desprende, como de todas as coisas terrestres: não tenho conhecimento de nada mais oposto ao espírito social. Diz-se-nos que um povo de verdadeiros cristãos formaria a mais perfeita sociedade imaginável; nesse pressuposto só acho uma grandíssima dificuldade, e é a de que a sociedade de verdadeiros cristãos já não fora sociedade de homens, e, a despeito de tanta excelência, até digo que não fora a mais forte nem a mais durável; à força de

79

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Du contrat social: ou principes du droit politique. Metalibri, 2007.

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ser perfeita, necessitaria de nexo, e na própria bondade teria o seu vício destruidor. Cada qual desempenharia seu dever, curvar-se-iam às leis o povo, seriam justos e moderados os cabeças, íntegros e incorruptos os juízes, desprezaria o soldado a morte, não haveria luxo nem vaidade; que ótimas virtudes! ‖

80

As ideias de Rousseau servem para visualizar que apesar do fenômeno da

secularização, ocorrido na Idade Moderna, há filósofos que pregam a harmonia entre as

instituições Estado e Igreja, de maneira a não desfavorecer uma em face da outra,

posto que cada uma tem seu papel de importância na esfera pública.

No começo da era Moderna essa diferenciação entre instituições é ferreamente

debatida. A política, a ciência e o direito se dividem em ramos diferentes e autônomos,

provocando um processo de individualização, que leva o homem a se enxergar por um

ponto flexível. A diferenciação em setores funcionais entra em conflito com a estrutura

hierárquica, e então alguns indivíduos passam a dispensar a razão religiosa no contexto

do Estado, que, no medievo, dava total sentido àquelas hierarquias e estruturava o

sagrado como imanente à esfera política do Estado.

Luc Ferry e Marcel Gauchet,81 na defesa da importância do religioso na vida

pública indagam se a Humanidade moderna vivia a morte de Deus ou o retorno da

religião. No interior de seus debates é possível identificar a filosofia que discorda da

reflexão sobre a qual as igrejas e dogmas teriam se enfraquecido com o surgimento da

secularização. Apenas passou a existir uma nova forma social de religião.

Na visão de Luc Ferry e Marcel Gauchet:

―Partimos da tese fundamental que os dados que nos são acessíveis me parecem impor: a religião é uma posição de heteronomia, posição que visa produzir uma economia determinada de ligação política e com a sociedade por uma intencionalidade inconsciente. A tese contesta a ideia corrente segundo a qual a criatura angustiada se limita a divinizar espontaneamente as forças naturais que a dominam. Não é difícil de mostrar que a ideia é absurda. A religião é, no sentido mais amplo, um fato institucional, com um viés social-humano heteronômico. ‖

82

80

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou princípios do direito político. Tradução Pietro Nassetti Martin Claret, 2006. p. 121-122. 81

FERRY, Luc et MARCEL, Gauchet. Le religieux après la religion. Noveau College de Philosophie.. Paris: Bernard Grasset (N d‘etition: 13427. Passim 82

FERRY, Luc et MARCEL, Gauchet. Le religieux après la religion. Noveau College de Philosophie.. Paris: Bernard Grasset (N d‘etition: 13427). N dimpression: 043900/1. Depot legal: octobre 2004. Passim.

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87

Porém, não era assim que entendiam os filósofos do século XIX, esses viam

positivamente a secularização, tais como: Herbert Spencer, Emile Durkheim, Max

Weber, Karl Marx e Sigmund Freud. Todos eles acreditavam que a religião deixaria de

ter relevância à medida que o advento das conquistas da Revolução Industrial fosse

acontecendo, deixando de ser expressiva na esfera pública. Para esses pensadores,

chegaria a hora em que o sagrado teria espaço somente no campo privado,

desencadeando uma espécie de morte lenta. Tal debate continua acalentando o corpo

dos críticos83 que sucederam esse século, no sentido de questionar a credibilidade da

teoria da secularização, afirmando que seus argumentos são falhos e viciados.

Weber,84 considerado um dos maiores pensadores da Teoria Sociológica da

Secularização, afirmava que o sagrado desapareceria com o desenvolvimento do

processo de industrialização da sociedade e a criação de instituições modernas. Para

definir esse momento, ele utilizou o vocábulo ―desencantamento‖ do mundo, no qual,

segundo ele, ocasionaria a sucumbência das práticas religiosas na esfera pública. Sua

ideia consistia em uma secularização generalizada das civilizações, pela qual seria o

mundo ocidental o precursor. Aduz o pensador que seria o agir de acordo com a

racionalidade metódica o responsável pela salvação pessoal. Assim agiram os

primeiros capitalistas nos Estados Unidos da América, que evidenciaram a

secularização com base nos discursos da Reforma Protestante, principalmente, o

calvinismo, no século XVII.

Contudo, entende-se falha a visão de Weber no tocante ao desencantamento do

mundo com a religião, uma vez que sua tese era mais intuitiva do que concreta,

revelando uma confusão de ideias não colidentes, sem inclusão de um método explícito

ou alguma prioridade na comparação de uns princípios com os outros. Nessa linha de

raciocínio, a secularização também afeta a abordagem jurídica do Estado, haja vista

que não permite a discussão dos embates sociais por outros atores institucionais, pois

somente o Estado-juiz racionalizado é competente para sanar as divergências ocorridas

83

Alguns críticos da Teoria da Secularização podem ser citados: Peter. L. Berger, Rodney Stark, Roger Finke, Charles Taylor e MacIntyre. 84

A ética protestante e o espírito do capitalismo.

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na sociedade. Logo, para ele, não se trata do desaparecimento amplo da religião, ela

continua no campo subjetivo, no entanto, não mais no âmbito público.

A secularização abrange em suas disposições o sentido de um mundo concreto

completamente independente do sagrado, sendo interpretado unicamente pela

imanência. A secularização incita a retirada do cunho religioso nos arranjos

socioculturais; a pretendida diminuição do poder da Igreja acarreta a transferência de

suas dúvidas existenciais e públicas para o campo da razão humana, levando à

valorização do profano em face do religioso.

Contudo, apesar da tendência pela secularização que ocorre nas nações ricas,

isso não significa que o mundo como um todo se tornou menos religioso. Como este

livro irá demonstrar:

1. O público das sociedades industriais avançadas praticamente foi todo se

movendo em direção a mais orientações seculares durante os últimos cinquenta

anos.

Mesmo assim:

2. O mundo como um todo agora tem mais pessoas com visões religiosas

tradicionais do que nunca antes ‒ e constituem uma proporção crescente da

população do mundo. Embora essas duas proposições possam inicialmente

parecer contraditórias, elas não o são.85

Nesse contexto, pode-se citar um dos grandes críticos à modernidade liberal e à

secularização, o filósofo escocês MacIntyre. Para ele, a Idade Moderna não gerou

efeitos somente positivos para a sociedade, dentre os negativos pode-se citar, por

exemplo, a perda da compreensão de união e substancialidade, que até mesmo povos

antigos (Grécia) já haviam testado. Essa perda fincou seus alicerces no indivíduo – ser

autônomo – em relação aos dogmas; perda que o citado filósofo credita à perda de

qualidades ou valores da civilização moderna.

85

NORRIS, Pippa, INGLEHART, Ronald. Sacred and Secular: religion and politics worldwide. Cambridge University Press, 20 set 2004. Disponível em: <https://www.hks.harvard.edu/fs/ pnorris/Acrobat/Sacred_and_Secular/Chapter%201.pdf>. Acesso em: 18 abr. 2016.

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Com efeito, para MacIntyre, a desgraça da filosofia moderna corresponde à crise

moral por ela proporcionada. Sob uma perspectiva do mundo ocidental, baseada em

três patamares da cultura e da ética, o filósofo aborda a decadência dos padrões

morais. Em um primeiro degrau, existiam padrões ético-morais firmes e procedentes de

sensações rigorosa. Em uma segunda escala, houve a ruptura dessa unidade, na

tentativa de novas explicações para os acontecimentos. Essa tentativa,

conforme MacIntyre, foi malsucedida, e causou o colapso da moralidade humana. O

terceiro patamar identifica os que não se deixaram levar pelas novas abordagens, os

quais convivem próximos dos indivíduos com ideais incompatíveis. Para ele, nesse

instante, o relativismo reina sobre uma crença moral objetiva. Claramente, este

pensador foi um crítico ferrenho do iluminismo.

MacIntyre acusa o desígnio iluminista liberal e racional, que busca emancipar o

homem a partir de seu livramento da pressão da tradição e declina todo tipo de visão do

sagrado na da natureza humana. Ainda, segundo ele, o resultado disso era uma

racionalidade incapaz de interpretar as paixões humanas, bem como de regularizá-las.

Isso significa dizer que a não admissão de um bem supremo ‒ Deus ‒ cedeu espaço

para a asserção de que as crenças humanas se fundam, por derradeiro, na consciência

íntima e no costume. Em uma visão difícil de ser aceita na pós-modernidade, o filósofo

afirma que uma comunidade não pode obter sucesso se houver o pluralismo das

sociedades modernas. Na sua ótica, apenas aquelas que se combinam em ética,

cultura e religião teriam condições de conviver pacífica e virtuosamente.

Partindo desse referencial de comunidade, o projeto liberal acabou constituindo

um mundo sobre o qual, pela justificativa da liberdade moral do indivíduo e da recusa

das tradições, acaba erigindo uma esfera pública na qual o que é aceito é tido como

manifestação de primazia do homem como ser particular ou social, representando um

argumento falho, pois é equívoco interpretar as próprias preferências da coletividade

como sendo as mesmas preferências de um indivíduo particular, sem discussão

profunda sobre a medida desse acréscimo de uma na outra e dos valores relativos a

determinada matéria para cada ator.

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Diferentemente de MacIntyre, Sandel e Taylor acreditam que a ―confusão

conceitual‖ das sociedades modernas não está em não reconhecer a contradição

irreconciliável entre o patriotismo e a moral e direitos subjetivos, mas em não

reconhecer que a sociedade moderna democrática não pode sobreviver sem

solidariedade e patriotismo. Prova disso, segundo eles, é que a sociedade liberal vive

de um patriotismo de seus cidadãos, o qual ela nega conceitualmente e ameaça.

Portanto, o patriotismo é sinal de vínculo forte com a coletividade, semelhante à

pertença numa família.86

O filósofo Charles Taylor assume a discussão complexa sobre o extenso

fenômeno da secularização, abordando a vida privada e todas as atividades humanas

que têm sido afetadas pela religião ao longo dos últimos cinco séculos. Em sua obra,

intitulada A secular age,87 o autor se contrapõe à teoria da subtração, criada pela

secularização, a qual afirma que o papel do sagrado na esfera pública desapareceu,

dando lugar à ciência e à racionalidade. Contrário a essa versão, ele entende o

secularismo como um incremento no interior do cristianismo ocidental, oriundo do

caráter cada vez mais antropocêntrico da religião que surgiu a partir da Reforma.

Conforme preceitua Taylor, a idade moderna não é uma idade sem religião; em vez

disso, a secularização invoca uma sociedade que admite a crença em Deus sem

contestá-la, entendendo-a como mais uma opção entre outras religiões também

existentes. O resultado da equação gera um pluralismo, que, além de defender uma

liberdade sem precedentes, produz novas provocações e inconstâncias, o que pode ser

observado mais adiante, com a complexidade da sociedade pós-moderna.

Segundo Taylor, "Secularização" é um termo muito usado para descrever a

sociedade moderna, e, às vezes, é mesmo oferecido como explicação parcial para

características desta sociedade. Contudo, é mais um local de questões do que uma

fonte de explicações.

86

FORST, Rainer. Contextos de justiça: filosofia política para além de liberalismo e comunitarismo. Tradução de D. L. Werle. São Paulo: Boitempo, 2010. p. 133. 87

TAYLOR, Charles. A Secular Age. The Belknap Press of Harvard University Press Cambridge, Massachusetts, and London: England. 2007. Obra em pdf. Disponível em: http://www.thedivineconspiracy.org/Z5233S.pdf. Acesso em: 22 fev. 2016.

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Na filosofia de Maritain,88 do século XX, é possível encontrar traços favoráveis à

liberdade religiosa. Tendo em vista a convivência simultânea entre Estado e Religião, o

estudioso defende que, partindo do pressuposto de que a Igreja é um todo, na sua

essência, ela não se insere no corpo político. Assim, por ter personalidade e

independência ontológica, a Igreja pode tranquilamente compatibilizar-se com o direito

posto. Resumindo, Estado e Igreja devem respeitar-se mutuamente, reconhecendo-se

como instituições com ordens próprias, sem interferência direta de uma sobre a outra, o

que resulta na busca de uma perfeita cooperação entre elas. Nesse ponto, o filósofo

cristão retoma a expressão ―Dá a César o que é de Cesar‖ e a ―Deus o que é de Deus‖.

Maritain desenvolve questões sobre religião e lei; sobre em que consiste a

coexistência entre as duas variáveis na organização da sociedade. Conforme

mencionado, seu debate traz ideias fundamentais sobre cooperação mútua entre Igreja

e Estado. Para tanto, o autor utiliza conceitos, a partir de S. Tomás de Aquino, como,

por exemplo, o que assevera que somente com a ciência da lei natural, na sua

dependência transcendental e capacidade realista, é que existiria a habilitação da

racionalização dos direitos do homem.

Para esclarecer sua crítica à secularização, Maritain sustenta que

―[...] por mais claramente distintos que possam ser, a Igreja e o corpo político não podem viver e se desenvolver em isolamento e ignorância recíprocos. Isto seria simplesmente contra natura, pelo fato de que a mesma pessoa humana é, a um só tempo, membro dessa sociedade que é a Igreja e dessa outra sociedade que é o corpo político. Logo, uma divisão absoluta entre estas duas sociedades significaria que a pessoa humana haveria de estar cortada em duas‖.

89

Valorizando a doutrina de S. Tomás de Aquino, Maritain aborda a lei natural na

sua característica ontológica. Mais precisamente, a lei natural entendida como um

arranjo que a racionalidade do homem pode conhecer e pelo qual o desejo deve atuar

para que se ajuste aos objetivos que permeiam a subsistência do ser humano. Outro

ponto interessante de seu legado é o elemento gnosiológico, que se refere ao

88

MARITAIN, Jacques (1882). Direitos do homem e a lei natural. 3. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1967. p. 22. Disponível em: <http://www.youscribe.com/catalogue/livres/ ressources-professionnelles/droit-et-juridique/la-laicite-francaise-a-l-epreuve-de-l-integration-europeenne-1418131>. Acesso em: 18 abr. 2016. 89

Idem.

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92

conhecimento da lei natural por inclinações; ou seja, a pessoa descobre a lei natural por

co-naturalidade, sem precisar recorrer à racionalidade ou conceituações formais. Isso

porque a ordem da lei natural é conhecida sem necessidade de demonstração, marca

da sua singeleza.

Desses argumentos, conclui-se que, para Maritain, é na razão divina que a lei

natural vai construir sua semântica, e por causa disto inexiste qualquer rijeza de

encargo para uma lei natural que não advenha da razão divina. Esse entendimento é

importante para o posterior debate entre lei natural e positivismo jurídico racionalista,

prezando nesse quesito para Maritain, em sua visão cristã de retorno da evidência da

lei natural. Tudo isso revela a intenção do filósofo em não considerar a Igreja como um

departamento do Estado, demonstrando sua visão crítica à secularização.

De maneira mais radical, outra vertente de pensadores defende o inclusivismo

total da Igreja no espaço público.

Segundo Herbert De Vriese e Gary Gabor:

―O argumento de Quinn é apenas a ponta de um grande iceberg. Iniciando com uma importante resposta dada a Audi por Paul Weithman, vasta literatura tem surgido com o intuito de defender o inclusivismo religioso absoluto. No entanto, o debate entre os defensores do inclusivismo religioso absoluto e apoiadores da separação rígida, a quem eles criticam, ocorre, muitas vezes, de forma articulada e surpreendente: autores de ambos os lados escrevem como se este assunto fosse um problema independente da filosofia política, que pudesse ser abordado sem responder a questões fundamentais da teoria da democracia. Inclusivistas religiosos falam como se fosse, obviamente, injusto para as pessoas religiosas pedir-lhes que ponham de lado suas convicções religiosas e sua fé, na tomada de decisões políticas ou no debate de questões políticas, com o intuito de persuadir os outros, enquanto aqueles que gostariam de eliminar todos os argumentos baseados em religião do discurso político (pelo menos quando leis que limitam liberdades estão em jogo) falam como se disso, certamente decorresse o fato de o pluralismo nas sociedades multiculturais contemporâneas ou a neutralidade do Estado em relação às crenças religiosas como um pré-requisito – e nem mesmo parecem pensar que eles precisam primeiramente de uma margem robusta de argumentos religiosos na esfera pública (Tradução nossa).‖

90

90

Quinn's argument is just the tip of a large iceberg. Starting with an important response to Audi by paul Withman, a large literature has arisen defending unlimited religious inclusivism. Yet the debate bwtween defenders of unlimited religious inclusivism and supporters of strong separation who they critique is often in articulate in a surprising way: authors on both sides write as if this matter were a free-standing problem in political philosophy that can be addressed without answering fundamental questions of democracy theory. Religious inclusivists talk as if is just obviously unfair to religious persons to ask them to put aside faith convictions in making political decisions or debating political issues with an intent to persuade others,

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O funcionamento da estrutura das sociedades modernas, quanto à moralidade, é

diferente da unicidade das comunidades arcaicas. Mais precisamente, porque os

grupos das sociedades modernas seguem uma moralidade interna que nem sempre é

obrigatória fora deles. A ordem jurídica do Estado é escolhida com base nas noções de

bem e mal, certo e errado, justo ou injusto. Apesar de nem sempre os cidadãos

mensurarem estas noções de maneira igual, é sensato para eles que possuam um

Estado capaz de conduzir uma vida boa. Sejam quais forem as nuances entre os

projetos de vida dos indivíduos, geralmente eles compartilham um ideal de bem comum

com base em convicções de boa vida. Certas ações são essenciais para atingir isso:

direitos, deveres e liberdades são uma delas.

Nota-se, ainda, que mesmo em Estados secularizados, hierarquias de valor

dogmático que contêm conceitos canônicos da boa vida exercem influência em certos

cidadãos. Além disso, algumas noções certas e erradas também são transmitidas por

outros vários canais, especialmente da família e outras instituições intermediárias,

associações e instituições, tais como organizações cívicas, clubes, congregações

religiosas, escolas, seminários e academias. Dessa forma, percebe-se que a família e a

Igreja são instituições intermediárias que também servem de recurso de reforço, pelo

menos parcial, da moralidade na ordem de interação elaborada pelo Estado.

No entanto, é cediço que nem todas as famílias da atualidade seguem os crivos

canônicos como base de sua moralidade, o que comporta uma discussão intensa sobre

a retirada do olhar intrinsecamente religioso da instituição família, sob o ponto de vista

do Estado secularizado. Ao mesmo tempo, não se pode desrespeitar aquelas que

vivem na moralidade religiosa, pois a ponte entre uma e outra é a chave para a pós-

modernidade adquirir uma cultura de paz entre Religião, Estado e Família.

while those who would exclude all religion-depend arguments from political discourse (at least when laws limiting liberties are at stake) talk as if thus obsviously follows from the facto of pluralism in contemporary multicultural societies, or from state neutrallity towards religious creeds as a given- and neither seemes to think tha they first need a robust scope of religious arguments in the public sphere (Original). Rethinking the secularization. Philosophy and the prophecy of a secular age, edited by Herbert de vriese and gary gabor. Cambridge Scholars Publishing copyright 2009. p. 305. Rethinking the secularization. Philosophy and the prophecy of a secular age, edited by Herbert de vriese and gary gabor. Cambridge Scholars Publishing copyright. 2009. p. 305. IN: TAYLOR, Charles. A secular age. The Belknap Press of Harvard University Press Cambridge, Massachusetts, and London, England • 2007. Disponível em: http://www.thedivineconspiracy.org/Z5233S.pdf>. Acesso em 22 fev. 2016.

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Neste sentido, a teoria da secularização, na concepção de Peter L. Berger, é

falsa, visto que não necessariamente a modernização da sociedade vem acompanhada

do declínio da religião. Por meio da concepção de que o mundo de hoje, com suas

devidas exceções, é religioso como nunca antes foi, o mencionado filósofo garante que

embora algumas instituições religiosas tenham perdido poder e influência em muitas

sociedades, velhas e novas crenças e práticas religiosas continuaram na vida dos

indivíduos, algumas vezes tomando novas formas institucionais, demostrando que o

sagrado não perdeu seu espaço no cenário social ou político, mesmo quando poucas

pessoas acreditam ou praticam a religião que as instituições representam.

Segundo Peter. L. Berger, curiosamente, a Teoria da Secularização também tem

sido deturpada pelos resultados de estratégias de adaptação de instituições religiosas.

Se realmente vive-se em um mundo intensamente secularizado, então seria esperado

que instituições religiosas subsistissem à medida que conseguissem secularização.

Essa tem sido a suposição empírica das estratégias de adaptação. O que de fato

ocorreu é que, em geral, as comunidades religiosas têm sobrevivido e até mesmo

prosperado na medida em que elas não têm tentado adaptar-se às supostas exigências

de um mundo secularizado. Em suma, as experiências com religião secularizada

geralmente têm falhado; movimentos religiosos com crenças e práticas gotejando

sobrenaturalismo reacionário (o tipo totalmente fora de questão nas respeitáveis festas

de faculdade) têm sido amplamente bem-sucedidos.91

Peter L. Berger, em seu trabalho sobre a ―dessecularização‖ do mundo, procura

desenvolver uma alternativa à secularização, pois a considera uma ameaça para a boa

relação entre religião e Estado, tão complicada na modernidade. No entanto,

sabiamente, informa duas exceções à tese da ―dessecularização‖. Trata-se de lugares,

91

Interestingly, secularization theory has also been falsified by the results of adaptation strategies by religious institutions. If we really lived in a highly secularized world, then religious institutions could be expected to survive to the degree that they manage to secularity. That has been the empirical assumption of adaptation strategies. What has in fact occurred is that, by and large, religious communities have survived and even flourished to the degree that they have not tried to adapt themselves to the alleged requirements of a secularized world. To put it simply, experiments with secularized religion have generally failed; religious movements with beliefs and practices dripping with reactionary supernaturalism (the kind utterly beyond the pale at self-respecting faculty parties) have widely suceeded (Original). The desecularization of the world: resurgent religion and world politics. Edited by Peter L. Berger. Ethics and public policy center. Washington dc, d.c. William B. Eerdmans Publishing Company. Michigan: Grand Rapids, p. 3-4.

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pessoas e instituições nos quais a antiga teoria da secularização permanece forte. Um

deles é a Europa Ocidental, que, com o aumento da modernização, tem crescido o fator

secularização tanto com relação às crenças expressas (especialmente aquelas que

poderiam ser chamadas ortodoxas em termos protestantes ou católicos) quanto em

nível dos códigos de comportamento pessoal ditados pela Igreja, especialmente os que

dizem respeito à sexualidade, reprodução e casamento. A outra exceção é a existência

de uma subcultura internacional composta de pessoas com modelos ocidentais

elevados de educação, especialmente nas ciências humanas e sociais, que, sem

dúvida, tem aspectos de secularização. Essa subcultura é a principal portadora de

progressivas, crenças e valores esclarecidos. Ao tempo em que seus membros são

relativamente fincados no chão, eles são muito influentes, como, por exemplo, no

controle às instituições que fornecem as definições oficiais da realidade,

nomeadamente o sistema de ensino, os meios de comunicação de massa, e os

alcances mais altos do sistema legal. É uma espécie de elite cultural globalizada.

Ao abordar o assunto sob a ótica dos direitos humanos e justiça social, Peter. L.

Berger afirma que ―as instituições religiosas têm, é claro, feito muitas declarações sobre

direitos humanos e justiça social. Algumas delas tiveram consequências políticas

importantes, como na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e o colapso dos

regimes comunistas na Europa. No entanto, conforme mencionado anteriormente,

existem diferentes visões articuladas religiosamente sobre a natureza dos direitos

humanos. O mesmo vale para ideias sobre justiça social, ou seja, é muito claro que as

posições tomadas pelos grupos religiosos sobre tais assuntos são baseadas em uma

razão religiosa; a oposição, de princípio, ao aborto e contracepção pela Igreja Católica

Romana é um caso bastante claro.

Em outras ocasiões, entretanto, posições sobre justiça social, mesmo que

legitimadas pela retórica religiosa, refletem a localização dos funcionários religiosos

nesta rede de classes e interesses sociais não religiosos. Para ficar com o mesmo

exemplo, acredita-se que este é o caso da maioria das posições tomadas pelas

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instituições católicas norte-americanas por razões diferentes das relativas à sexualidade

e reprodução das questões de justiça social.92

De todo modo, traçadas as devidas pontuações de Peter. L. Berger, conclui-se

que todos os fenômenos têm a ver com a modernização, que transforma as sociedades

e as torna heterogêneas e pluralistas, desfavorecendo o estabelecimento (ou

restabelecimento) dos monopólios religiosos dentro do ordenamento estatal que é laico.

O ideal para o mundo pós-moderno, portanto, seria a superação da secularização

elitista e da tentativa radical de inclusivismo religioso amplo sobre o Estado.

Sabendo-se que o mundo no próximo século XXI não será menos religioso do

que o de hoje, é a reciprocidade no trato entre todas as espécies de família existentes

no fato social, a harmonia entre as instituições sociais (Religião, Família e Estado) e a

confiança em um ordenamento jurídico estatal justo que preservará a sociedade como

um empreendimento cooperativo.

A tolerância entre as instituições sociais pode garantir que não ocorram

distinções arbitrárias entre as pessoas na atribuição de direitos e deveres básicos na

sociedade; pode garantir também regras que proporcionem um equilíbrio estável entre

reivindicações de interesses concorrentes das vantagens da vida social. A democracia

deliberativa é defendida por Habermas. A partir da definição de princípios e

estruturação da sociedade pelos próprios cidadãos em um processo democrático é que

seria possível a construção de uma sociedade liberal, tolerante e justa para todos,

através do diálogo entre os diversos atores da sociedade civil.

Uma nova forma social de transformação não substitui uma velha. A conjuntura

com a moralidade é semelhante. E também os argumentos da religião e da moralidade

são mutáveis de modo significativo. Em suas versões dominantes são caracterizados

pela constrição, pela redução das transcendências que enfrentam (Tradução nossa).93

92

The desecularization of the world: resurgent religion and world politics. Edited by Peter L. Berger. Ethics and public policy center. Washington dc, d.c. William B. Eerdmans Publishing Company. Michigan: Grand Rapids, p. 17-18. 93

Una nuova forma sociale de transformazioni ne ha rimpiazzata una vecchia. La situazione con la moralità è simile. E anche i contenuti della religione e della moralitá sono cambiati in modo significativo. Nelle loro versioni dominanti sono caratterizzati dalla contrazione, dalla diminuzione delle trascendenze a cui fanno fronte (Original).

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Se as nossas noções sobre a natureza da religião são fortemente limitadas pela

forma social de religião de tradição ocidental na sua mais concreta apresentação

histórica, como Igreja cristã, esta situação deve parecer representativa de um declínio

radical da religião, que só pode ser explicado por algumas teorias sobre o laicismo (ou

secularização). Espera-se ter mostrado que os fatos são diversos e que uma explicação

melhor é cabível. A religião tem experimentado uma mudança histórica imediata na sua

forma social de religião no Ocidente que a associou (afinidade seletiva?) a uma redução

na sua relevância, e, pelo menos nas sociedades da Europa Ocidental, também a uma

perda substancial de espaço onde agora as igrejas operam sob a forma de religiões

privatizadas e mantêm-se com sucesso a se autogerirem. E uma questão em aberto

permanecerá limiar a esta (Tradução nossa).94

Mas novamente, em comparação à visão racionalista que vê a religião como um

fenômeno histórico de passagem, as mudanças recentemente observadas não são de

fato tão radicais: a religião não desapareceu, a moralidade não desapareceu. De uma

forma ou de outra, elas estão ainda muito próximas a nós e em nós (Tradução nossa).95

Diante do exposto, argui-se que as questões referentes à divisão e

hierarquização entre Estado e Religião são assuntos a serem superados, posto que a

contínua complexidade das sociedades, principalmente com o nascimento da

modernidade liberal, requer uma ordem estatal em que indivíduos livres e iguais

possam intentar e desfrutar da ideia de vida boa que lhes aprouver.

94

Se le nostre nozioni sulla natura della religione sono fermamente circoscritte dalla forma sociale di religione della tradizione occidentale nella sua apparizione storica concreta come chiese cristiane, questa situazione deve apparire rappresentativa di un declino radicale della religione, que può essere spiegato soltanto da alcune teorie sulla secolarizzazione. Spero di aver mostrato che i fatti sono diversi e che è disponibile una spiegazione migliore. La religione ha subito un cambiamento storico della forma sociale di religione nell 'Occidente che l'ha associata (affinità selettiva?) a una diminuzione delle trascendenze e, almeno nelle società dell'Europa Ocidentale, anche con una sostanziale diminuzione dell'ambiente al quale le chiese ora operanti nella forma di religioni privatizzata si continuano con sucesso a indirizzate loro stesse. E un problema aperto se rimarrà limito a queste (Original). 95

Ma, di nnuovo, comparati alla visione razionalista che vede la religione come un fenomeno storico di passagio, i cambiamenti appena osservati non sono affato radicali: la religione non è scomparsa, la moralità non è scomparsa. In una forma o in un ' altra esse sono ancora molto attorno a noi e in noi (Original). Il Fenomeno religioso oggi. Tradizione, mutamento, negazione. Urbaniana University Press. In: Oberto Cipriani - Gaspare Mura (a cura di) città del vaticano via urbano viii, 16- 00165. Roma: Urbaniana University press 2002. p. 64-65).

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A concepção política de um Estado neutro é o cerne para a fundamentação da

sustentação da convivência entre liberdades religiosas e liberdades civis. Acredita-se

que a valorização da primazia da autonomia de escolha pelo individual não exclui de o

pensamento de bem comum, pois a preferência por adotar critérios de individualidade

pode ser entendida como um dos modos de determinar o bem comum. Sendo assim,

um Estado neutro não implica no repúdio pela coletividade. Neste tipo de sociedade, o

bem comum reside na união do individual com o coletivo, no sentido de fortalecer

igualitariamente esses dois importantes pontos que repercutem na concepção de vida

boa social.96

Por fim, percebe-se que a teoria de exclusão da Religião do espaço público

requer maior cuidado quanto ao seu resultado, visto que a decadência de algumas

religiões não implica, em vasto plano, o enterro do sagrado na mente humana ocidental.

Ademais, embora tenha acontecido a escolha de parcela da sociedade quanto à

preferência pelo agnosticismo ou ateísmo, essa aderência fora do transcendental não

comporta, necessariamente, na perda de espaço da religião. Ocorre, na verdade, uma

ressignificação da função da Igreja para a vida pública. Na verdade, deve-se difundir

para a pós-modernidade a ideia da Igreja como uma instituição independente do

Estado, mas que coopera com ele, a fim de auxiliar o homem na sua busca espiritual e

melhorar, consequentemente, seu modo de vida coletiva. Sob essa ótica, não se fala

em desencantamento do religioso por causa do direito, mas sim na harmonização entre

um e outro, cada um no seu lugar igualmente importante na sociedade.

96

Cita-se como um dos críticos ao liberalismo o pensador Charles Taylor. TAYLOR, Charles. Hegel e a sociedade moderna, 2005, p. 157. ―A liberdade completa seria um vácuo no qual nada valeria a pena ser feito, nada mereceria ser considerado para alguma coisa. O eu que chegou à liberdade colocando de lado todos os obstáculos e intrusões exteriores não tem personalidade e, portanto, nenhum propósito definido. [...] ele não pode especificar nenhum conteúdo para nossa ação fora de uma situação que estabelece objetivos para nós, a qual, desta maneira, confere uma forma à racionalidade e provê uma inspiração para a criatividade‖.

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2.2 Dialética da secularização: razão e religião na concepção de Jurgen Habermas

e Joseph Ratzinger (Papa Bento XVI)

O famoso debate sobre questões de natureza ética, religiosa e filosófica entre os

pensadores Habermas e Ratzinger ocorreu em 19 de janeiro de 2004, a convite da

Academia Católica da Baviera, em Munique. A posição original de ambos gira em torno

da indagação sobre o que mantém o mundo unido, questões sobre Deus estar vivo ou

morto, reflexões essenciais sobre a vida humana.

Para tanto, é interessante que se faça a localização de cada um na referida

discussão. De um lado, Habermas, nascido em 1929, representa o ponto de vista da

secularização do Estado liberal; e, de outro, Ratzinger, com sua doutrina de fé católica.

Ambos exercem contribuição significativa na descrição de uma situação em que os

indivíduos racionais devem decidir quais serão os princípios de justiça que nortearão a

sociedade na qual eles vivem. Esta decisão, para eles, deve ser tomada de forma

racional, pois são as ―bases pré-políticas de um Estado liberal‖, o que significa que há

enfoque na dignidade da pessoa humana.

Esta ideia permite estabelecer princípios,97 axiomas e argumentos sobre o papel

do sagrado na esfera pública. Na visão de Habermas, a noção sobre o transcendental

existe para que se possa compreender o mundo secularizado. Já Ratzinger entende

que a função das razões religiosas vai além de algo meramente prático. O religioso é

para Ratzinger, sob a perspectiva de Deus e das criaturas, algo muito superior a

qualquer fundamentação humana com base na razão. Dito isto, percebe-se o quanto

este debate continua repercutindo no mundo atual, sobretudo quando se analisa a

questão sob a ótica das famílias da atualidade. O novo século, assim, demonstra haver

uma escassez de estudo sobre os fundamentos filosóficos do diálogo entre a liberdade

religiosa e o direito das famílias que convivem em um Estado laico e não laicista.

97

A palavra ―princípio‖ vem do latim ―principium‖, que significa, numa acepção vulgar, início, começo, origem das coisas. Na ideia de Luís Diez Picazo apud Bonavides ―onde designa as verdades primeiras‖, bem como têm os princípios, de um lado, ―servido de critério de inspiração às leis ou normas concretas desse Direito positivo‖ e, de outro, de normas obtidas ―mediante um processo de generalização e decantação dessas leis‖. In: BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 228- 229.

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Dessa forma, a primeira inquirição feita no debate já provoca especial interesse

dos estudiosos do tema. Será que o Estado liberal98 secularizado se alimenta de

pressupostos normativos que ele próprio não é capaz de garantir? Isto se coloca à tona

por causa da continuidade do aspecto religioso em determinadas decisões estatais,

numa clara contraposição ao Estado democrático de direito99 que foi positivado e que

tem como base a neutralidade. Não há como ignorar tais divergências.

Na concepção da posição a favor do pluralismo, Habermas concede vultosa

contribuição ao deslinde das dúvidas filosóficas sobre o assunto. Em suas palavras, ―a

ordem liberal depende da solidariedade de seus cidadãos, mas as fontes dessa

solidariedade podem secar se a secularização da sociedade como um todo ―sair dos

trilhos‖. É um diagnóstico que não pode ser pura e simplesmente descartado, mas

também não pode se concluir dela, sem mais nem menos, que as pessoas cultas entre

os defensores da religião tirem dela uma espécie de ―mais-valia‖ Em vez disso,

pretende-se, neste estudo, propor que a secularização cultural e social seja entendida

como um processo de aprendizagem dupla, que obriga tanto as tradições do Iluminismo

quanto as doutrinas religiosas a refletirem sobre seus respectivos limites. Quanto às

sociedades pós-seculares, é preciso responder à pergunta: — Quais orientações

98

O termo liberalismo ganhou destaque após a Revolução Francesa, em 1789. Em sua origem, o liberalismo não se confunde com a democracia. De fato, nem todos os Estados originariamente liberais tornaram-se democráticos. Entretanto, os Estados democráticos existentes foram originariamente liberais. Assim, liberalismo e democracia não são interdependentes: um Estado liberal não é necessariamente democrático e um governo democrático se transforma necessariamente em um Estado liberal. Isso porque, enquanto o ideal do primeiro é limitar o poder, o do segundo é distribuir o poder. Liberalismo e democracia tratam de assuntos divergentes: o liberalismo à questão das funções do governo e à limitação de seus poderes; a democracia ao problema de quem deve governar e com quais procedimentos. O liberalismo exige que todo poder seja submetido a limites, inclusive o da maioria. A democracia, ao contrário, chega a considerar a opinião da maioria o único limite aos poderes do governo. É uma teoria dos limites do poder do Estado. Tais limites valem para quem quer que detenha o poder político, inclusive para um regime democrático em que todos os cidadãos têm o direito de participar, mesmo que indiretamente, da tomada das grandes decisões, e cuja regra é a regra da maioria. Na formulação hoje, mais corrente, o liberalismo é a doutrina do ―Estado mínimo‖. Rev. Filos., v. 19, n. 25, p. 361-372, jul./dez. 2007. Norberto Bobbio: teoria política e direitos humanos. Samuel Antonio Merbach de Oliveira, p. 6. 99

Por Estado de direito entende-se geralmente um Estado em que os poderes públicos são regulados por normas gerais e devem ser exercidos no âmbito das leis que os regulam. Trata-se da doutrina da superioridade do governo das leis sobre o governo dos homens. O Estado de direito significa não só subordinação dos poderes públicos às leis, mas também subordinação das leis ao limite material do reconhecimento de alguns direitos fundamentais considerados constitucionalmente e, portanto, invioláveis. Norberto Bobbio: teoria política e direitos humanos. p. 365. Rev. Filos., v. 19, n. 25, p. 361-372, jul./dez. 2007.

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cognitivas e expectativas normativas o Estado liberal precisa exigir de seus cidadãos

crentes e não crentes no relacionamento mútuo? ‖. 100

Neste ambiente, a opinião de Habermas sobre a fundamentação do Estado

constitucional secular, a partir das fontes da razão e prática, ocorre com valorização da

doutrina kantiana, utilizada para reforçar seu entendimento sobre um Estado

constitucional democrático livre das amarras do transcendentalismo divino, elevando,

assim, a melhor forma de justiça, que, segundo ele, ocorre com o direito racionalizado,

fora das concepções metafísicas de origem religiosa, ou seja, de direito natural. Seus

adeptos saúdam a ideia inspirada em Kant de um Estado com princípios constitucionais

independentes, que permitem a recepção racional de todos os indivíduos sociais.

Habermas admite a existência do estado pré-político, anterior ao exercício da

cidadania com base na democracia participativa. Reforça que não é possível o Estado

liberal viver somente do respeito às liberdades individuais, sendo necessário o

reconhecimento da diversidade cultural da sociedade em um mesmo local, sugerindo

que a prática comunicativa entre os povos é capaz de sustentar um Estado unificado e

com uma constituição justa, e que, por isso, merece ser livre da religião ou qualquer

outro poder pré-político de Estado.

Embora defenda a natureza secular do status da constituição democrática,

Habermas pondera que seu posicionamento não pretende diminuir a religião como um

puro e simples fato social. O filósofo entende que qualquer radicalismo, seja do lado

dos pós-iluministas que adotam a visão da razão pós-metafísica, seja dos que partem

de uma justificativa estatal com fundamentação religiosa, é prejudicial à sociedade. O

ponto em comum é justamente no Estado neutro, que deve aceitar também no seu

ambiente de secularização a permanência da tradição religiosa, não mais como

detentora de poder absoluto, mas tendo a Igreja como uma das instituições paralelas ao

Estado que contribui para a cooperação dos cidadãos. Só assim é possível visualizar a

secularização como processo de aprendizagem duplo e complementar. Por esse

motivo, acredita-se, antecipadamente aos comentários que serão feitos sobre a

resposta de Ratzinger ao debate, que Habermas é o vencedor, pois promulga a ideia de

100

HABERMAS, Jurgen. RATZINGER, Joseph. Dialética da secularização: sobre razão e religião. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2007. p. 25-26.

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aprendizagem frente à religião, mostrando que deve ser de vontade do Estado a

harmonia das diversas religiões, pois a partir delas se pode ter consciência normativa e

solidariedade entre os cidadãos.

O véu da tolerância é ponto de destaque no diálogo de Habermas, que o encerra

com a correção da tentativa de sobreposição do sagrado divino (Igreja Católica) sobre o

Estado secularizado, neutro e com liberdade religiosa ampla. O equilíbrio reflexivo

destes atores seria uma forma de justificação racional de um Estado liberal, que convive

com seres humanos com variados modus vivendi. Contudo, não obstante seja racional

deduzir isso, nada garante que sua aceitabilidade racional seja geral, demonstrando

que a aceitação prática e real por todas as camadas da sociedade depende de

sensatez e habilidade para abordar o tema, sem que pluralistas ou religiosos se sintam

em volta de dissensos em uma cultura política liberal.

Por fim, Jurgen Habermas introduz um processo de correção de ideias

conflitantes sobre religião e secularização, oferecendo paz à discussão, no sentido de o

mundo secularizado não negar a importância da tradição religiosa e de a religião não

interferir na cultura política liberal de forma a impedir a promoção do pluralismo social

pós-secular.

Em um discurso preocupado com a construção de bases éticas que possibilitem

a ordem e o controle de um poder jurídico equilibrado, o filósofo Ratzinger (Papa Bento

XVI) considera que a progressão do momento histórico atual gerou uma sociedade

dotada de interdependência entre os setores político, econômico e cultural, além do que

um ser humano com destreza para criar ou destruir, o que leva à providencial busca da

solução ética para a convivência pacífica entre culturas diferentes.

Para corroborar seu raciocínio, Ratzinger argumenta que a ciência não é capaz

de proporcionar um costume ético rejuvenescido para o contexto atual, embora

reconheça a importância da ciência para a redefinição de certos valores morais.

Contudo, para ele, o que mantém o mundo unido não é a ciência, indicando a Filosofia

como a responsável por avaliar de maneira crítica as ciências singulares, denunciando

conclusões precipitadas e certezas aparentes sobre o que é o ser humano, de onde

vem e para que existe, ou, em outras palavras, eliminando o elemento não científico

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dos resultados científicos com os quais não raramente se confunde, para manter aberto

o olhar sobre o todo, sobre as demais dimensões da realidade humana, da qual as

ciências só podem mostrar aspectos parciais.

Sábios reconhecimentos de Ratzinger são apresentados na dialética da

secularização, como a relevância da existência do direito e da ordem, pois a liberdade

sem direito é anarquia que destrói aquele princípio fundamental. Também há sua

declaração de que o direito não pode ser instrumento do poder de somente alguns,

porque para ser efetivo precisa ser expressão do interesse comum de todos.

Sendo assim, embora o então cardeal Ratzinger mantenha um posicionamento

singularizado sobre a questão, pois enaltece a interpretação cristã em face da cultura

racional secular, nota-se que ele escreve em defesa dos direitos humanos na sua

totalidade, ou seja, sem a sobreposição de uma maioria. Na sequência do raciocínio,

inclui no debate da secularização o reconhecimento da multiplicidade social e de apoio

a todas as culturas que existem dentro de um mesmo espaço, sejam maioria ou

minoria.

Nesse ponto, observa-se uma controvérsia na argumentação do cardeal

Ratzinger, pois ao tempo em que se mantém no discurso como um filósofo cristão

contrário à confiabilidade da razão, em alguns trechos aborda a necessidade do direito

e da ordem jurídica, que são produtos da racionalidade humana, e que, no momento

histórico atual, nem sempre recorrem ao sagrado como o cerne principal para a

manutenção do mundo unido. Outra posição dúbia é o reconhecimento da pluralidade

social ao mesmo tempo em que se apresenta como a personificação da fé católica, que

não protege no direito canônico todas as espécies de famílias da sociedade pós-

moderna.

Apesar disso, podem-se extrair dois argumentos de Ratzinger a favor da

presente tese. O primeiro argumento seria a libertação da supervalorização da razão do

mundo secularizado frente ao sagrado. O segundo é o de que deve haver uma

correlacionalidade entre razão e fé, entre razão e religião, pois como ele aponta, ambas

são chamadas a purificar-se e a curar-se mutuamente; para tanto, se faz necessário

que reconheçam o fato de que uma precisa da outra.

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104

A divinização da razão induz à entrada singular de direitos, uma vez que cada

religião, seja católica seja qualquer outra, tem suas restrições. Ainda, pode-se aduzir

com veemência que tanto razão quanto religião já provaram suas debilidades, visto que

o mundo já sofreu mazelas por fundamentalismos de ambas. Sendo assim, um dos

fatores que pode manter o mundo atual unido é justamente a harmonia entre razão e

religião no espaço público.

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105

CAPÍTULO 3 – LIBERDADE RELIGIOSA E ESTADO LAICO

3.1 Laicismo (laicista) e Laicidade: definindo as oposições

A origem da palavra ―laïcité‖ (laicismo ou secularismo em português) é grega e

remonta à palavra laikos, que designa as pessoas como um todo; o termo foi tomado

para uso pela linguagem religiosa por diferenciar os levitas e os sacerdotes dos outros

judeus. A origem etimológica do termo opõe o religioso comum, laikos, ao religioso que

ensina e confere sacramentos, clerikos. A evolução terminológica da palavra torna-se

laicus, para tomar sua forma atual ―laïque‖ (laico ou secular em português) no século

XVI (Tradução nossa).101

A evolução do sentido fez-se essencialmente entre a Idade Média e o século

XIX, designando sucessivamente o indivíduo que não tinha a qualidade de eclesiástico

ou clérigo, para, em seguida, o que não é religioso, dando ao termo atual de laicismo

seu sentido definitivo (Tradução nossa).102

O primeiro uso da palavra laicismo data de 1871, no jornal intitulado ―La Patrie‖

(―A Pátria‖, em português). O termo aparecera primeiramente sob sua forma adjetiva,

em seguida, em sua forma substantiva nos dicionários, em 1873, em que o definiam

como sendo ―a característica de tudo que é laico, ou de uma pessoa laica‖. O adjetivo

laico definiu-se como ―o que não é nem eclesiástico nem religioso‖. Ferdinand Buisson

justificara o laicismo pelo reconhecimento da autonomia do Estado e da sociedade em

detrimento de qualquer religião. Ele especificou: ―a noção fundamental do Estado laico,

ou seja, a delimitação profunda entre o temporal e o espiritual é a porta de entrada nas

101

CHARLIER-DAGRAS, Marie-Dominique. La laïcité française à l'épreuve de l'intégration européenne. Pluralisme et convergences. Préf. de Danièle Lochak. Paris, L'Harmattan, 2002. p. 22. Disponível em: <http://www.youscribe.com/catalogue/livres/ressources-professionnelles/droit-et-juridique/la-laicite-francaise-a-l-epreuve-de-l-integration-europeenne-1418131>. Acesso em: 21 fev. 2016. (Lórigine du mot ―laicité‖ est grecque et remonte au mots laikos, designant le peuple dans sa totalite; le terme frut repris par la langue religieuse pour differencier les levites et les pretes par rapport aux autres juifs. Lórigine etymologique du term oppose le fidéle ordinaire laikos au fidele qui enseigne et s‘occupe d‘aministrer clerikos. L‘evolution terminologique du mot deviendra laicus , pour prendre sa forme actuelle ―laique‖au XVIème siècle.) (Original). 102

L‘evolucion du sens se fera essentiellement entre le Moyen-âge et le XIXème designant sucessivement l‘individu qui n‘a pas la qualité d‘ecclesiastique ou det clerc., puis se qui n‘est pas religieux, donnant au terme actuel de laicite son sens definitif (Original). Ibidem. p. 22.

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106

nossas condutas de maneira a não mais sair‖. Émile Littré definiu o laicismo do Estado

como sendo a neutralidade deste em matéria religiosa (Tradução nossa).103

A Modernidade fundamenta o Estado laico104 como um processo de superação

do pensamento medieval, atribuindo-lhe características de não confessionalidade, ou

seja, enfatizando que as ações estatais distam igualmente de todas as religiões

existentes na sociedade. Este Estado laico com raízes renascentistas, portanto, não

seria um ambiente para interesses particulares, pois objetiva abrigar todos os tipos de

cidadãos, respeitando suas diversas religiões, crenças ou ideologias.

O Iluminismo105 foi um movimento que teve vários expoentes favoráveis à ideia

de emancipação do homem com relação a costumes medievais que eram contrários a

qualquer tipo de crença não tradicional. Isso porque, como já mencionado, no medievo

não havia separação entre Estado e Igreja. Para o Iluminismo, a liberdade de crença

religiosa se tornou vontade geral, e muitos cidadãos promoveram o colapso com

estruturas tradicionais, principalmente referentes à intolerância da Igreja frente às

diversas potencialidades individuais. O brado da liberdade disseminada pelo Iluminismo

prosseguiu nas declarações universais dos séculos XVIII e XIX, resultando na

dissolução das fronteiras da sacralidade.

Um Estado laico, portanto, é um Estado sem religião oficial, pois trata todos os

seus cidadãos de forma igualitária, independente da orientação religiosa de cada um.

Isso significa que o princípio da laicidade pressupõe duas características fundamentais:

a neutralidade do Estado, que confere o pleno exercício do direito à liberdade religiosa

do indivíduo, como também a separação do Estado com a religião, que garante uma

103

La première utilisation du mot laicite date du 1871 dans le journal intitule ―La Patrie‖. Le term figurera sous sa form adjective puis substantive dans les dictionaires en 1873 où ele definie comme étant ―le caractere de tout qui est laique, ou d‘une personne laique. Ládjectif laique se definissant comme ―ce qui n‘est ni eclesiastique ni religieux. Ferdinant Buisson justifiera la laicite par la reconossaince de l‘autonomie de l‘Etat e de la societe par rapport a toute religion. Il précisera: ―la notion fondamentalle de l‘Etat laique, c‘est a dire la delimitation profonde entre le temporel et le spirituel est entree dans nos mouers de maniere à ne plur en sortir. Emile Littré définira la laicite de l‘Etat comme etant la neutralite de celui-ci en matiére religieuse (Original). Ibidem. p. 22. 104

Termo cujo sentido semântico deriva da palavra grega laikos, que significa ―leigo, do povo‖. 105

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado laico. Dissertação (Mestrado em Direito). PUC, SP, 2010ba. p. 112. Disponível em: <http://www. dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp141078.pdf>. Acesso em 14 fev. 2016.

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não confessionalidade colaborativa, através da qual Estado e Igreja podem cooperar-se

mutuamente em prol do bem comum, contudo, sem interferir na esfera do outro.

Essa concepção de Estado laico está vinculada à noção de liberdade religiosa.

Sendo todos moralmente iguais, não haveria motivos para privilégios ou sobreposição

de doutrinas religiosas, pois há o respeito à opção religiosa dos cidadãos. Esta

preocupação com a realização da liberdade na relação de cooperação entre o Estado e

a Igreja, o Estado e as diversas crenças de seus integrantes está presente na acepção

jurídica do termo laico.

Entretanto, a modernidade está convencida da problemática que circunda a

garantia de igualdade que o Estado laico preconiza. Isso porque tem ocorrido a

individualização da igualdade para casos concretos, o que merece atenção dos

estudiosos contemporâneos, uma vez que não pode haver uma mistura desarmoniosa

de fragmentos desordenados. A fragmentação da consciência moderna laica, nesse

sentido, não pode culminar em obstáculo à liberdade religiosa, tampouco à igualdade

entre as diversas espécies de família, pois o Estado laico deve ser neutro. Na lição de

Pierre Caye e Dominique Terré:

―A laicidade se define como a neutralidade do Estado com relação à sociedade e crenças desta. Tal neutralidade não se limita à simples organização de coexistência pacífica das diversas comunidades entre si. Ela significa que o Estado se recusa a remontar o seu poder a qualquer instância fundamental, que não ele próprio. [...] Ao afirmar a laicidade, o Estado instaura seu poder sobre o vazio e assim afirma a sua mais alta soberania.‖

106

Marco Aurélio Lagreca Casamasso assim se manifesta a respeito de tal

problemática:

―[...] se, por um lado, a laicidade pressupõe supremacia da política sobre a religião – uma desigualdade –, por outro, pressupõe, tanto para o Estado quanto para as confissões religiosas, a possibilidade de uma atuação livre e de uma existência emancipada – uma igualdade. Ainda que seja impossível e chegar a uma harmonia absoluta entre os dois pressupostos, pode-se buscar uma relação mais equilibrada entre ambos. Para tanto, o Estado laico deverá reconhecer e garantir, para os crentes e as confissões religiosas, a mais ampla

106

CAYE, Pierre; TERRÉ, Dominique. Le neutre à l'épreuve de la puissance. Archives de Philosophiedu droit. Tome 45. Paris: Dalloz, 2005, p. 26. Disponível em: <http://www. dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp141078.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2016

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108

liberdade possível, sempre dentro dos limites da laicidade.‖107

Ocorre que em tempos de extremo dinamismo social, os limites da laicidade são

questionáveis. O modelo de liberdade calcado na igualdade absoluta certamente é

difícil de ser implementado. A ideia de que, se todos são iguais, a todos também

assistiria o igual direito em diferentes âmbitos familiares é uma das grandes discussões

da Filosofia do Direito e do direito de família modernos. Dessa forma, o Estado laico

tem responsabilidade na garantia de autonomia e liberdade para todos, inclusive os que

vivem em modelos não tradicionais de família. Assim, os limites da laicidade devem

apoiar reciprocamente a liberdade religiosa e o direito das famílias pós-modernas. E,

para esta igualdade ampla se propagar, é importante que se observe um Estado laico

que não seja superior hierarquicamente às religiões, mas que seja capaz de

regulamentá-las de maneira que todas convivam pacificamente. Assim, o Estado laico

que respeita fielmente seus limites é aquele que não aceita interferências religiosas e

permite concomitantemente o grau de liberdade capaz de possibilitar a escolha

voluntária da espécie de família que melhor aprouver a cada indivíduo.

Ainda não há soluções completas para o deslinde da questão. Entretanto, é

cediço que este é o momento indispensável para o respeito entre Estado e Igreja. Por

ser laico, o Estado respeita as religiões e o pleno exercício independente de suas

atividades sociais, assim como se as situações são postas no plano fático, o Estado

laico também tem como papel regular todas as relações familiares.

Sendo assim, é importante observar o período de mudança do papel do religioso

no espaço público, que foi assentado por duas espécies de pensamento sobre o Estado

laico: o Estado laico compromissado com a laicidade e o Estado laico de

fundamentação laicista. Nessa esteira, o laicismo representa a subjugação do aspecto

religioso pelo científico, argumento correspondente à perda de espaço da religião no

ambiente público. É, portanto, a doutrina que dá às instituições um caráter não

religioso, de modo a garantir um Estado totalmente indiferente à doutrina eclesiástica,

banindo-a das discussões político-civis.

107

GALLEGO, Roberto de Almeida. O sagrado na esfera pública: religião, direito e Estado laico. Dissertação (Mestrado em Direito). PUC, SP, 2010ba. p. 115. Disponível em: <http://www. dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp141078.pdf. Acesso em: 14 fev. 2016.

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109

O laicismo enxerga a Igreja como uma instituição social que possui leis próprias,

mas que não necessariamente são as mesmas que regem o funcionamento do sistema

político. Essa concepção laicista desconsidera o poder da Igreja, forçando um total

isolamento entre ela e o Estado, diminuindo a ideia do divino e expondo-a a juízo

negativo, de uma Igreja desacreditada e sem participação alguma na sociedade. Neste

sentido, segundo Tavares:

―O laicismo significa um juízo de valor negativo, pelo Estado, em relação às posturas da fé. Baseado, historicamente, no racionalismo e no cientificismo, é hostil à liberdade de religião plena, às suas práticas amplas. A França, e seus recentes episódios de intolerância religiosa, pode ser aqui lembrada como exemplo mais evidente de um Estado que, longe de permitir e consagrar amplamente a liberdade de religião e o não comprometimento religioso do Estado, compromete-se, ao contrário, com uma postura de desvalorização da religião, seja ela qual for. Já a laicidade, como neutralidade, significa a isenção acima referida.‖

108

A ideia de Estado laico de vertente laicista se configurou pela doutrina liberal

brasileira contrária ao imperialismo católico, e que tinha como objetivo afastar a Igreja

do cenário público e das questões seculares. Buscava com isso delinear a República

com base no poderio radical e exclusivo do Estado. Essa característica de ruptura entre

Estado e Igreja fez com que a Igreja também elaborasse suas defesas próprias. Com o

intuito de manter a hegemonia sobre o pensamento espiritual do homem, a Igreja se

contrapunha ao laicismo através de movimentos de impressão romântica, como o culto

do Sagrado Coração e a propagação da infalibilidade do Papa, sustentando através

deles o princípio da finitude do Estado.

Enquanto o laicismo não respeita a liberdade religiosa, a laicidade permite a

convivência harmônica entre a percepção transcendental e a percepção materialista de

mundo, sem a qualidade hostil entre ambos. Assim, a laicidade permite a garantia de

um Estado democrático de direito pacífico a questões religiosas, desde que não afetem

a apologética do pluralismo de um Estado laico.

Neste sentir, o Estado laico comprometido com a laicidade, ao invés de rejeitar

ou tentar suprimir o religioso, considera-o um fato público, e, embora não perca de vista

a distinção entre o campo religioso e a esfera secular, não desconhece as

108

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. Passim.

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necessidades espirituais de seus cidadãos. O Estado laico movido pelos ideais da

laicidade, embora não privilegie nenhuma religião específica, não se mostra hostil a

nenhum credo, almejando, com estes, manter relação de colaboração de acordo com

as especificidades de cada qual. O Estado laico de orientação laicista, por sua vez,

ostenta nítida parecença com o Estado ateu: sua preocupação é com a administração

das necessidades materiais do homem; a religião, para ele, é assunto exclusivamente

privado, um anacronismo que a ciência e o progresso humano se incumbirão de

exterminar; ademais, caracteriza-se pela confusão entre o público e o estatal,

porquanto não respeite a autonomia do social em sua dimensão religiosa.109

O Estado laico é fruto das democracias ocidentais, equidistantes às religiões,

uma vez que possuem Estados neutros, nos quais a política atua sem interferências

externas, isto é, a religião é aceita de maneira particularizada. Estado laico é,

resumidamente, o fundamento de uma sociedade que respeita todos os tipos de

religião, pois não adere a nenhuma delas, culminando numa lógica separação entre

Estado e Igreja, sem que um manche a atuação do outro.

Uma das manifestações do laicismo é o ateísmo, no qual é excluída totalmente a

ideia religiosa da atuação política e também da vida privada dos cidadãos. Refere-se a

um movimento iniciado no Renascentismo, em que membros da sociedade se

comportam sem nenhuma referência religiosa, numa absoluta negação de Deus ou

outro ser metafísico. Esta é uma concepção absolutamente materialista de mundo,

contrária à propagação pública da fé, na perspectiva de que Deus é invenção humana,

e que, por isso, deve ser eximido das discussões político-sociais, estimulando os

cidadãos a buscarem soluções somente humanísticas ou existenciais para os seus

problemas. Mister frisar que o Estado laico é diferente do Estado ateu. Enquanto o

primeiro é reconhecido constitucionalmente pelo ordenamento jurídico, o outro é

absolutamente ignorado pelo Direito e pela política. Ainda, é importante enfatizar que o

Estado que se defende nesta Tese é o laico não laicista, ou seja, de cunho fincado na

laicidade.

109

GONZAGA, op. cit., 2010, p. 292.

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Sob essa ótica, o Estado laico, baseado na laicidade, aparece para equilibrar a

omissão do Estado ateu diante dos impasses sociais e a marca tirana do Estado

confessional do Antigo Regime. Procurando balancear a questão, o laicismo tenta

mostrar que sua missão garante a autonomia de cada indivíduo para a escolha de suas

convicções através da liberdade de consciência. O Estado laico propaga a ideia da

tolerância entre os homens de diversas crenças. Um Estado laico, portanto, é um

Estado propriamente neutro em relação ao sagrado, pois considera todos os indivíduos

de modo igualitário, não importa a sua opção religiosa, sem conceder preferências ou

benefícios devidos à religião. Sendo assim, o princípio cardeal da laicidade diz respeito

não só à liberdade de consciência individual, mas também a obrigação de o Estado

respeitar este direito fundamental reproduzido pela Constituição da República fixada em

uma ordem pública democrática.

A marca principal de um Estado laico é a aceitação da liberdade de crença e da

existência inevitável do religioso na vida privada das pessoas. Nas palavras de Giorgio

Resta e Guido Alpa:

―A laicidade é um método que pertence aos crentes e aos não crentes: laicidade significa que o Estado (precisamente leigo) é ―não confessional‖, não prevê uma sanção legal à norma ético-religiosa própria de uma única confissão, mas ao mesmo tempo, reconhece não apenas a liberdade de consciência daquela instituição religiosa e a importância fundamental do fator religioso para a vida daquela comunidade política. ‖

110

Paradoxalmente, na sociedade plural contemporânea, o papel de tutor proposto

ao Estado consiste no grande obstáculo a desafiar a efetividade da laicidade. Afinal, o

Estado muitas vezes se depara com esse princípio, restringindo seu campo de atuação

às políticas públicas e ao ordenamento jurídico, aspectos destinados ao exercício do

bem comum e à coletividade. Assim, a intervenção ou a abstenção do poder público

nessas questões, sem a observância do princípio da neutralidade a que o Estado está

vinculado por força do art. 19, I da Constituição da República Federativa do Brasil de

1988, culmina por deflagrar conflitos de natureza religiosa que acabam repercutindo na

esfera familiar do indivíduo em alguns casos. Para se atingir um equilíbrio na atuação

neutra do Estado perante a liberdade religiosa, faz-se imperiosa a observância de dois

110

ALPA, Guido; Resta, Giorgio. Le Persone e La Famiglia. Le Persone Fisiche e Il Diritti della Personalità. Giuridica. In: Persona e Principio di laicità. Torino: UTET, 2006. Cap. 10. p. 258.

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elementos reguladores dessa relação: a verificação do interesse público, do clamor

social e a obediência do Estado ao princípio da tolerância. Assim, dentro dos limites de

uma ordem pública democrática e do respeito aos princípios constitucionais correlatos,

o Estado possibilitará que a pessoa possa livremente desenvolver a sua autonomia e

personalidade, especialmente na família a que pertencer.

3.2 O Direito canônico e a nova imagem do Papado

3.2.1 Direito canônico

O Direito Canônico é uma ramificação jurídica ontologicamente ligada aos

trabalhos da Igreja Católica, que também possui princípios do Direito. A constituição de

normas morais e positivas é vinculante para a Igreja porque ela tem como

comprometimento a divulgação da palavra de Deus na sociedade que vive

automaticamente em um espaço jurídico-legal.

Tal status jurídico da Igreja Católica Apostólica Romana é confirmado nos seus

vinte séculos de atuação. Decorre de uma constituição natural de dogmas jurídico-

eclesiásticos com justificação divina, porém de criação humana, responsáveis por

conduzir e informar os fiéis a Cristo sobre a existência da Igreja, seus ideais e a busca

da realização dos indivíduos através do encontro com Deus.

Segundo a lição de Monsenhor Maurílio César de Lima:

―Tecnicamente a expressão Corpo do Direito Canônico indica uma constante da legislação eclesiástica contida no Decreto de Graciano, no Livro Extra, no Livro Sexto, nas Clementinas, nas Extravagantes de João XXII e nas Extravagantes Comuns. Se é impossível dizer que se trata de coletânea oficial, provavelmente lhe cabe a qualificação de oficiosa, desde que o papa Gregório XIII (1572-1585), com o breve Cum pro munere, de 1/7/1580, ordenou a elaboração de um texto que abrangesse todas aquelas leis redigidas pelos redactores romani para a edição romana de 1582, também aprovada pelo mesmo papa, sem que com isso se alterasse o valor jurídico de outras coleções, que conservaram cada uma seu próprio valor intrínseco. Por isso o Corpo do Direito Canônico não é uma coleção autêntica, universal, única e exclusiva: há nele leis ab-rogadas e

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derrogadas por leis posteriores.‖111

O Corpo do Canônico na atualidade se resume basicamente no Código de

Direito Canônico, de 1823, na Constituição Pastoral e a Dogmática do Concílio Vaticano

II, respectivamente, Gladium et Spes e Lumen Gentium, e tem como máxime diretor da

atividade legislativa o Papa.

A definição de Direito Canônico perfilhada por Ghirlanda é a seguinte: ―conjunto

das leis e das normas positivas dadas pela autoridade legítima que regulam o

entrecruzar-se das relações intersubjetivas na vida da comunidade eclesial e, assim,

constituem instituições, cuja totalidade produz a ordenação canônica‖ [...]. O discrímem

poderia estar presente na ontologia de determinadas normas, que são de origem divina,

consoante o escólio de Rafael Llano Cifuentes. Ao contrário do direito estatal, o

ordenamento jurídico eclesiástico possui normas, encontradiças quer seja na Bíblia

quer seja na sagrada tradição, de caráter estritamente divino. Como exemplo,

poderíamos citar o cânon 205, que alude aos batizados, membros do povo de Deus.112

Nesse plano, a Igreja alimenta-se da concepção teleológica de que enquanto

organização cristã tem tripartição de poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) para o

desenvolvimento de suas significações do bem e do justo para guiar o povo de Deus a

uma vida de virtude, que só é alcançada através do contato com o divino.

Ao adentrar pela história do Direito Civil, percebe-se uma profunda simbiose

entre ele e o Direito Canônico durante a Idade Média, fruto da reciprocidade entre

Estado e Igreja nesse período, o que, de certa forma, continua deixando marcas no

direito ocidental civil moderno de origem romano-germânica, no tocante à família, posto

que a legislação, agora laica, tarda a aceitar novos moldes sociais de várias ordens.

Grande parte das discussões na Filosofia do Direito contemporânea é marcada

por questões normativas conflitantes entre direito positivado e verdade fática, com foco

voltado para a fundamentação dos princípios de justiça de um Estado laico em

contraposição à visão religiosa de mundo. É impossível não sujeitar o Direito

eclesiástico às mutações sociais advindas de novos contextos existenciais dos homens.

111

LIMA, Mons. Maurílio Cesar de. Introdução à história do Direito canônico. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2004. p. 127-128. 112

SAMPEL, Edson Luiz. Introdução ao direito canônico. São Paulo: LTR, 2001. p. 18.

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114

Por isso, é importante que o Direito Canônico permaneça com suas injunções

restritivas, mas reconheça a evolução social.

Ao longo da história, a Igreja teve que aceitar as mudanças exigidas pela

sociedade, pois estas também interferiam no seu caminhar. Daí a necessidade de

promulgar novas codificações, como, por exemplo, a substituição do Código Canônico

de 1917, pela Constituição Apostólica de João Paulo II Sacrae disciplina eleges, o

Código de 1983.

A publicação, em 1983, do novo Código Eclesiástico Católico evidencia a

conexão entre Estado e Igreja, como duas instituições distintas e autônomas, com

objetivos e instrumentos peculiares a cada uma para o desenvolvimento do homem em

sociedade. Menciona Mons. Maurílio de César Lima que:

―Assim é que se destaca para o primeiro plano o Povo de Deus, a igualdade dos fiéis batizados, sem considerar a diversidade de funções ou encargos exercidos; a colegiabilidade episcopal e a communio; a afirmação da liberdade religiosa; a valorização da figura do leigo, a quem se confia levar a mensagem e a animação cristã ao mundo, particularmente no âmbito temporal e político, e ao qual se podem também confiar encargos religiosos institucionais; a plena afirmação de distinção e independência entre Igreja e Estado; estas dimensões, que não se encontram no antigo Código de 1917, são ideias fortemente marcadas para uma Igreja que evoluía, não mais como pensava o Vaticano I, exclusivamente centrada no papel do papa e da hierarquia, mas que agora sentia a necessidade de contar com a participação e colaboração do clero e de seus fiéis, instituindo nas dioceses e nas paróquias órgãos colegiais de consultoria (conselhos presbiteriais, econômicos, secretariados de pastoral e diversos outros), resultantes de uma adaptação aos novos tempos de uma Igreja voltara para a pastoral e que o Vaticano I não estava em condições de legislar, de tal como se tinham mudado os tempos.

113

As críticas feitas ao Código de 1983 repercutem até os dias atuais, pois

perpassam pelo clamor social da mudança de paradigmas do conservadorismo católico.

A justificação é feita através de princípios morais do Liberalismo, pelos quais o poder

político só tem legitimidade caso esteja pautado na liberdade igual, autonomia dos

indivíduos, Estado de Direito, justiça e democracia.

Há o reconhecimento pela Igreja dos conceitos de matéria e espírito,

caracterizadores do dualismo cristão. Sendo assim, a religião não pode caminhar em

total separação do poder estatal, do mesmo modo que o Estado deve aceitar a Igreja

113

LIMA, Mons. Maurílio Cesar de. Introdução à história do direito canônico. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2004. p. 277-278.

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115

como instituição jurídica independente, uma regulando a vida religiosa e outra a vida

civil dos cidadãos. Desta intercambiabilidade colaborativa contextualiza-se o objetivo

interno de cada um, assim como permite a convergência de ações em prol da

comunidade.

Dessa forma, à luz das diversidades familiares resultantes de múltiplas faces

culturais, a crítica negativa à codificação eclesiástica do século XX reside

primordialmente em questões que o Liberalismo contemporâneo rebate: o lugar

minorado das mulheres na Igreja e na sociedade, a não abertura de funções para leigos

e o não acolhimento das novas espécies de arranjos familiares da pós-modernidade.

Em uma sociedade pluralística, então, um dos desafios éticos da Religião e da

Razão é o de aprendizado da convivência em harmonia, sob pena de deslegitimação

mútua perante os indivíduos, que possuem diferentes planos de vida. Assim, rechaça-

se a tese de distanciamento total entre Estado e Igreja, na qual há dois pensamentos

discrepantes: um afirma que, para conduzir-se moralmente, o homem tem que negar

Deus; o outro que, se Deus não existe, o homem não pode conduzir-se moralmente.

A permanência da ética religiosa na sociedade civil, conforme visto, repercute

sobremaneira na sociedade pós-moderna, na qual há uma variedade de concepções do

bem. E os motivos são óbvios para o Direito de família moderno. As famílias têm vários

modos de formação, cuja soma sempre conduz a um grupo organizado de pessoas na

sociedade civil, regulada por um ordenamento jurídico que se intitula laico justamente

com o objetivo de satisfação do interesse de todos, independentemente da religião.

Contudo, ainda assim, a ética laica padece de ambiguidade, haja vista que,

civilmente não existe a proteção jurídica a todas as espécies familiares. Uma das

razões para tal é a forte influência da Igreja Católica, que aceita apenas um tipo de

família, aquela formada por um homem e uma mulher. Embora os avanços do estado

laico tenham modificado alguns dispositivos constitucionais e infraconstitucionais sobre

a matéria, o debate da coexistência entre Estado e Igreja continua pertinente, posto que

a doutrina possui pouco estudo sobre os fundamentos filosóficos para o encontro ideal

entre Religião e Razão, em benefício de todos os tipos familiares. O projeto de um

discurso ético não necessariamente conectado com a ideia cristã de família possui

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116

sentido, uma vez que adota prescrições de uma moral ampla em uma sociedade

secularizada, pós-cristã, pós-moral, pós-metafísica e pós-divina.

Quanto à discussão de inconciliabilidade e convergência entre Estado e Igreja,

Antonio Marchionni argumenta que:

―Falar de Religião, em termos de modernidade antirreligiosa, significa entrar em terreno explosivo. Pois a Religião vive da obediência filial ao Criador (e aos pastores), enquanto a Razão aborrece a ideia de obediência a poderes superiores e declara a autonomia livre do homem. Inimigo declarado do Iluminismo foi e é principalmente o Catolicismo, porque este desafia de peito aberto a modernidade agnóstica e fala até uma língua diversa, o latim. O Catolicismo ainda ousa intervir com força nas crises das sociedades, defende posições impopulares, faz ressoar no mundo a sua voz moral, enquanto outras religiões frequentemente se calam. Não podemos escamotear um fato: a Razão materialista e a Religião mística constituem duas visões de mundo conceitualmente irredutíveis entre si. Mesmo que entre Religião e Razão no nível prático possam existir convergências humanísticas, em nível teórico é titânica a luta entre as duas. ‖

114

Com efeito, os problemas relativos aos desafios éticos da coexistência entre

Estado Laico e Igreja tornaram-se mais complexos com o aparecimento da

modernidade liberal e sua profícua herança iluminista em erigir uma sociedade bem

ordenada, na qual as famílias livres e iguais pudessem viver com base na ideia do bem

que achasse melhor. Contudo, entende-se que o tratamento competitivo entre as duas

instituições também não é saudável. Segundo os críticos, por exemplo, as questões

referentes à Razão deveriam tomar o lugar da tradição religiosa, porque são duas

propostas éticas diferentes.

Segundo as categorias materialistas, a essência da Religião é a negação do

homem. Deus é criatura da infantilidade humana e a Religião é criação do homem fraco

ou com problemas no cérebro. Feuerbach afirma que a essência da Religião é ―a

essência do homem projetada fantasticamente na essência de Deus‖; ou seja, é a

projeção num Deus irreal dos atributos humanos que o homem real deve e pode

realizar, como: criatividade, bondade, fraternidade, inteireza, força, conhecimento,

benevolência, não maleficência (em A Essência do Cristianismo, 1841) 115. A religião

seria a covardia do homem que realiza ilusoriamente no Céu aquilo que deveria realizar

114

MARCHIONNI, Antonio. Ética: a arte do bom. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. p. 235. 115

FEUERBACH, Ludwig. A essência do Cristianismo. Trad. José da Silva Brandão, 2. ed.. Campinas: Papirus, 1997.

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na terra. Assim continua Feuerbach em A Essência da Fé segundo Lutero (1844):

―Tanto menos é Deus. Se queres ter Deus, deves renunciar ao homem; se queres ter o

homem, deves renunciar a Deus‖. Ou Deus ou o Homem.116 Em contrapartida, com

justificação mais pacífica, Juan L. Ruiz de la Peña, afirma com rigor que:

―O eclipse de Deus na cultura da modernidade tem aberto um rico e complexo debate sobre oethos humano. O resultado mais importante do mesmo é a persuasão, amplamente generalizada, de que o escalonamento entre parêntesis da ideia de Deus não tem por que gerar um esvaziamento ético, uma sociedade desmoralizada, como presumiram em sua época os positivismos cientifistas e os pessimismos radicais. O projeto de uma ética cívica, laica, não religiosa, é possível, legítimo e necessário. A tarefa de vertebrar este projeto coerentemente é um dos mais destacados empenhos de nosso tempo, ao que os cristãos têm de contribuir sem reticências nem restrições mentais (Tradução nossa). ‖

117

Ao passo em que a ética religiosa continua movendo milhões de pessoas ao

redor do mundo com o ensinamento da Arte do Bom através da obediência a Deus

inscrita nos Livros Sagrados, a moral laica e racionalista moderna se firma pela razão

individual e autônoma do indivíduo. Para a última, nenhuma autoridade moral existe

acima e fora do indivíduo. A razão cria um consenso máximo nas leis científicas,

mínimo nas leis morais. Contudo, não se vislumbra suficiente para o direito de família

moderno a aferição dos impactos da ética religiosa e da ética laica isoladamente, uma

vez que há lacunas legais que omitem o amplo espectro de modelos familiares da pós-

modernidade. Como uma das primeiras limitações para o reconhecimento dessas

diversas espécies familiares no ordenamento civil brasileiro é a moral religiosa de

singularidade da família resumida em homem e mulher, mister se faz o levantamento de

ideais capazes de realizar consensos de coesão social nos quais haja o respeito à

liberdade religiosa, mas também haja o respeito à liberdade das famílias plurais, de

modo que o direito positivo laico cumpra de fato com a ética secular, sem causar o

116

FEUERBACH, Op. cit., p. 237. 117

El eclipse de Dios en la cultura de la modernidade ha aberto un rico y complejo debate sobre el ethos humano. El resultado más importante del mismo es la persuasión, ampliamente generalizada, de que la puesta entre parêntesis de la idea de Dios no tiene por qué generar un vaciamiento ético, una sociedade desmoralizada, como presumieran en su momento los positivismos cientifistas y los pessimismos radicales. El pryecto de una ética cívica, laica, no religiosa, es posible, legitimo e necessário. La tarea de vertebrar este proyecto coerentemente es uno de los más destacados empenhos de nuestro tempo, al que los cristianos temos de contribuir sem reticencias ni restriciones mentales (Original). J. L. Ruiz de La Peña, Crisis y apologia de la fe. Evangelio y Nuevo milenio. Coleáo Presencia Teológica. Editorial Sal Terrae Santander. 1995. Polígono de raos, parcela 14-I 39600 Maliano (Cantabria) Impresso em Espanha. p. 233.

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atraso da realização do público.

Assim, uma vez que o fenômeno social do dinamismo das famílias afeta tanto a

sociedade civil quanto a eclesiástica, não há que se rivalizar o espaço público que é de

ambos. A tentativa de justificação hierárquica de um sobre o outro significa fornecer

razões para o declínio mútuo do Estado e da Igreja, haja vista que o índice de confiança

institucional vale para as duas. As normas morais sempre devem ser justificadas em

contextos amplos, pois a contemporaneidade convive com um pluralismo exacerbado;

sendo, portanto, necessário que os valores éticos sejam discutidos em diferentes

planos do cenário público. Tal garantia de harmonia permite que a comunidade seja

beneficiada, tendo em vista a consecução do bem comum.

Ademais, a própria codificação canônica, em específico o Gladium et Spes,

admite a existência da sociedade plural, a autonomia da Igreja com relação ao sistema

político e a marca mística da ética religiosa, que a difere da atuação do poder estatal,

mas que resultam ambos em trabalho a serviço do mesmo polo passivo: – a sociedade.

Os debates em torno de uma rearticulação entre ética religiosa e ética secular

tem se tornado, portanto, cada vez mais frequentes e controversos, principalmente na

democracia ocidental. Sobre o tema, muito se tem observado o posicionamento

inovador dentro da Igreja do novo papa, o jesuíta Jorge Mario Bergoglio. Numa

sociedade que vive uma crise de valores morais e éticos diversos, o papa tem se

manifestado de maneira pacífica ao pluralismo familiar, demonstrando que, acima do

Direito Canônico ou das lacunas do Direito Positivo, há uma construção maior, que é a

elevação do afeto como fundamental na crença (e prática) moral, e o funcionamento

harmônico das instituições para a manutenção do Bem Comum.

3.2.2 A nova imagem do Papado

Em 13 de março de 2013, Jorge Mario Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires,

capital da Argentina, foi nomeado Sumo Pontífice da Igreja Católica, substituindo o

renunciante Bento XVI. O novo papa, que passou a se chamar Francisco, é o primeiro

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papa latino-americano e o primeiro papa pertencente à Companhia de Jesus, a ordem

missionária por excelência.

O novo pontífice se mostra um papa distinto, com decisões e gestos de

humildade e proximidade entre as diversas culturas que surpreendem não só os

católicos, mas também a todos os homens e mulheres do mundo. Dentre os seus

posicionamentos baseados no diálogo, na humildade e na evangelização, merece

destaque sua postura sobre o divórcio, o casamento de pessoas do mesmo sexo e as

famílias não tradicionais.

Bergoglio participou de um diálogo com o rabino Abraham Skorka, publicado na

obra Sobre o Céu e a Terra.118 Segundo o autor Skorka, ―a preocupação ‒ e o tema

central de nossas conversas ‒ sempre foi e é o indivíduo e sua problemática‖. Este é o

objetivo do livro. Não é uma história das ideias, mas sim uma trilha de reflexão ético-

moral e política sobre assuntos que afetam a sociedade contemporânea‖.

Ao citar A Lei do Divórcio, Bergoglio afirma que o casamento é um valor muito

forte no Catolicismo, posto que indissolúvel para a Igreja, mas que fiéis divorciados e

casados novamente não estão excomungados. Com essa mensagem, estimula a vida

paroquial dos casais reconstituídos. O Papa Francisco apresenta uma postura aberta

aos reajustes de novas famílias que surgem, após o divórcio das partes, sem importar

ideologia, classe social ou credo. Para ele, são vitais a transcendência e a construção

de um mundo melhor e próximo a Deus: uma cultura de diálogo e o encontro entre os

homens. Outro pilar que ele sustenta é a reevangelização,119 capaz de fazer com que

os fiéis voltem a se conectar com Criador.

Ainda no diálogo com Skorka, com relação ao casamento entre pessoas do

mesmo sexo, o novo papa menciona que a Religião tem direito de opinar, pois está a

serviço das pessoas, mas não tem direito de forçar nada na vida privada de ninguém.

Porém, embora condene o assédio espiritual e admitindo a liberdade do outro, o novo

118

BERGOGLIO, Jorge; SKORKA, Abraham. Sobre o Céu e a Terra. Tradução Sandra Martha Dolinsky. 1. ed. São Paulo: Paralela, 2013. 119

Todos aqueles que se auto definem como católicos, que não tenham só a etiqueta de católico, mas que pratiquem seu catolicismo na Igreja e fora dela. O momento em que estamos vivendo requer uma nova evangelização num território já evangelizado, que não se reconhece somente como cristão. Afirma o novo Papa que a Igreja deve ir ao encontro do povo, escutar o povo, essa é a Igreja que ele busca.

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papa mantém firme o posicionamento conservador de que o ideal não é uma criança

ser adotada por homossexuais. E isso, sobretudo, porque, para a Igreja Católica, só

existe uma espécie de família, o matrimônio indissolúvel entre um homem e uma

mulher.

Bergoglio desenvolve questões sobre moral e lei; sobre os novos tempos de

novas organizações familiares. Na crítica ao casamento homoafetivo o papa aduz:

―Há cinquenta anos, o concubinato não era uma coisa socialmente tão comum como agora. Era até uma palavra claramente pejorativa. Depois, a situação foi mudando. Hoje, coabitar antes de se casar, embora não seja o correto do ponto de vista religioso, não tem o peso social pejorativo de cinquenta anos atrás. É um fato sociológico, que certamente não tem a plenitude nem a grandeza do casamento, que é um valor milenar que merece ser defendido. Por isso, alertamos sobre sua possível desvalorização, e, antes de modificar uma jurisprudência, é preciso refletir muito sobre tudo o que está em jogo. Para nós também é importante o que o senhor acaba de apontar, a base do direito natural que aparece na Bíblia, que fala da união do homem e da mulher. Sempre houve homossexuais. A ilha de Lesbos era conhecida porque ali viviam mulheres homossexuais. Mas nunca ocorreu na história que se tentasse dar a essa relação o mesmo status do casamento. Era tolerado ou não, admirado ou não, mas nunca equiparado. Sabemos que em momentos de mudanças de época crescia o fenômeno da homossexualidade. Mas esta época é a primeira em que se levanta o problema jurídico de equiparar a união homossexual ao casamento, o que considero uma depreciação e um retrocesso antropológico. Digo isso porque transcende a questão religiosa, é antropológica. Se existe uma união de tipo privada, não existe um terceiro nem uma sociedade afetados. Toda pessoa precisa de um pai masculino e uma mãe feminina que ajudem a criar sua identidade. ‖

120

O Papa Francisco critica ainda a eficiência do ordenamento civil, afirmando que

mais que uma lei de casamento para que as pessoas do mesmo sexo possam adotar, é

preciso melhorar a legislação de adoção. Essa prioridade pelo casamento tradicional

não acompanha a moralidade do Estado constitucional democrático, que anseia pela

liberdade e igualdade dos cidadãos, e consequentemente das diversas famílias

existentes.

São palavras do papa a consciência que a Igreja Católica deve ter de respeito e

amizade entre os diversos homens e mulheres, e a promoção do respeito e amizade

entre os homens e mulheres inseridos em diferentes tipos de arranjos familiares. O

novo papa, assim, abre portas para a relação com as famílias não tradicionais, o que é

muito importante para o mundo contemporâneo. Na consideração de todos os homens

120

BERGOGLIO; SKORKA, op. cit., p. 99.

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para que lutem pela paz, Bergoglio apresentou no Vaticano, no dia 8 de abril de 2016, a

Exortação Apostólica Amoris Laetitia ‒ A alegria do amor, fruto dos dois Sínodos sobre

a família, convocados pelo Papa Francisco e realizados nos anos de 2014 e 2015.

A Exortação aborda temas de direito de família concernentes às novas

realidades familiares advindas da pós-modernidade. Sendo assim, discute os temas

atuais da sexualidade, gestação, adoção, divórcio, separação, nulidade matrimonial,

tendência homossexual, educação dos filhos, entre outros. Na perspectiva da

Exortação Apostólica Pós-Sinodal, ventila-se o desejo de continuar lutando pela

valorização da família e do matrimônio, e que, embora este último apresente crises,

permanece a família como uma instituição forte e viva, especialmente entre os jovens, o

que estimula a Igreja. Apesar de reconhecer e pedir maior compreensão com as

famílias não tradicionais, a carta mantém a ética religiosa que sempre foi contrária aos

projetos de equiparação das uniões entre pessoas homossexuais através do

matrimônio.121

Segundo o texto, não existe nenhum fundamento para assimilar ou estabelecer

analogias, nem mesmo remotas, entre uniões homossexuais e o desígnio e Deus sobre

o matrimônio e a família. É inaceitável que as Igrejas sofram pressões nessa matéria e que

os organismos internacionais condicionem a ajuda financeira aos países pobres à

introdução de leis que instituam o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, afirma em

outro trecho.122

A carta demonstra o caráter religioso da mensagem, com pressupostos cristãos

de valorização do matrimônio entre um homem e uma mulher, o único modelo aceito

dentro da Igreja Católica. Bergoglio propõe que:

―Como cristãos, não podemos renunciar a propor o matrimónio, para não contradizer a sensibilidade actual, para estar na moda, ou por sentimentos de inferioridade face ao descalabro moral e humano; estaríamos a privar o mundo dos valores que podemos e devemos oferecer. É verdade que não tem sentido

121

BERGOGLIO, Jorge Mario. Exortação Apostólica Pós-Sinodal Amoris Lætitia do Santo Padre

Francisco aos Bispos aos Presbíteros e aos Diáconos às Pessoas Consagradas aos Esposos

Cristãos e a Todos os Fiéis Leigos sobre o Amor na Família. 2016. Trecho 52. p. 44-45. Disponível

em: <http://www.agencia.ecclesia.pt/netimages/file/papa-francesco_esortazione-ap_20160319_amoris-

laetitia_po.pdf.> Acesso em: 18 mar. 2016. 122

Idem.

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122

limitar-nos a uma denúncia retórica dos males actuais, como se isso pudesse mudar qualquer coisa. De nada serve também querer impor normas pela força da autoridade. É-nos pedido um esforço mais responsável e generoso, que consiste em apresentar as razões e os motivos para se optar pelo matrimónio e a família, de modo que as pessoas estejam melhor preparadas para responder à graça que Deus lhes oferece. ‖

123

Segundo a posição do Papa Francisco, o secularismo enfraquece alguns valores

tradicionais ao incentivar a regulamentação de outros tipos de família que não a

matrimonial cristã. Para ele, isso é nocivo à sociedade. O papa critica a autonomia da

vontade exacerbada e argumenta que:

―Nalgumas sociedades, vigora ainda a prática da poligamia; noutros contextos, permanece a prática dos matrimónios combinados. [...] Em muitos contextos, e não apenas ocidentais, está a difundir-se largamente a prática da convivência que precede o matrimónio e também a prática de convivências não orientadas para assumir a forma dum vínculo institucional.

Em vários países, a legislação facilita o avanço de várias alternativas, de modo que um matrimónio com as características de exclusividade, indissolubilidade e abertura à vida acaba por aparecer como mais uma proposta antiquada entre muitas outras. Avança, em muitos países, uma desconstrução jurídica da família, que tende a adoptar formas baseadas quase exclusivamente no paradigma da autonomia da vontade. Embora seja legítimo e justo rejeitar velhas formas de família «tradicional», caracterizadas pelo autoritarismo e inclusive pela violência, todavia isso não deveria levar ao desprezo do matrimónio, mas à redescoberta do seu verdadeiro sentido e à sua renovação. A força da família «reside essencialmente na sua capacidade de amar e ensinar a amar. Por muito ferida que possa estar uma família, ela pode sempre crescer a partir do amor. ‖

124

O documento tem passagens que em que eleva o matrimônio cristão e critica a

valorização de outras formas de família em detrimento daquela. Nos dizeres do papa, é

seu anseio a vontade de continuar o caminho do diálogo ecumênico. O novo papa se

posiciona respeitoso quanto às famílias não tradicionais, de modo que reconhece sua

existência na sociedade, mas não do ponto de vista da Igreja Católica, o que demonstra

que ela preza pela sua liberdade religiosa. A cultura do encontro do novo papa implica

dizer que o outro tem muito a dar. Que temos que ir até o próximo com uma atitude de

abertura e escuta.

Sendo assim, o novo papa tem se revelado empenhado em um mundo mais

justo, capaz de unir, pacificar e de criar comunidade passando a mensagem de nova

123

Ibidem, trecho 52, p. 28. 124

Ibidem, trecho 52, p. 45-46.

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evangelização e transformando suas estruturas para transmitir e facilitar a fé e

reconhecer a dignidade de todos os homens. Porém, no sentido pleno dos dogmas

católicos família continua sendo a união entre homem e mulher, conceito que a Igreja

Católica mantém.

Esta breve descrição feita da nova imagem do Papado, na pós-modernidade,

serviu para demonstrar a importância da posição da Igreja Católica125 frente assuntos

que envolvem as famílias. Tendo em vista a predominância do catolicismo no Brasil,

sabe-se que a opinião da Igreja Católica em matéria de família sempre teve força, tanto

no espaço privado quanto no público, mesmo no mundo secularizado. Esse traço

perdurou por gerações, e ainda se mantém no século XXI, embora o Estado brasileiro

seja laico, segundo o qual confere ao cidadão o direito de liberdade religiosa, assim

como estabelece a pluralidade familiar.

A partir do próximo tópico, começo a investigar, brevemente, o desenvolvimento

do Direito e da Religião no Brasil126, observando em que medida se desestruturou o

catolicismo como religião oficial para dar lugar a um sistema laico.

3.3 Direito e Religião no Brasil

A formação da sociedade considera o envolvimento de elementos que a

alicerçam. Os valores que a fundamentam perpassam por fatores culturais, políticos,

filosóficos, econômicos e religiosos. No que concerne à presença da Igreja no Estado,

de geração em geração, o Brasil experimentou períodos bem definidos e diferenciados.

No Brasil-Colônia, a religião oficial era o Catolicismo. Sucedendo esse período, a

Proclamação da Independência organizou a primeira constituinte, em 1824, trazendo

consigo influências Filipinas para o ordenamento civil. A herança religiosa, devido à

colonização portuguesa, foi tamanha que, mesmo com o surgimento de novos tipos

125

A escolha pelo enfoque na Igreja católica se deu porque é a instituição religiosa que congrega o maior número de fiéis no Brasil. Segundo dados do censo do IBGE 2010. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/08052002tabulacao.shtm> Acesso em 20 set. 2016. 126

A escolha por delimitar a tese ao caso brasileiro é devido a contradições ainda existentes neste Estado que se intitula como laico, mas freia a efetivação do direito de todas as famílias em razão, predominantemente, de bancadas conservadoras religiosas.

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urbanos127 e novas formas de pensar, advindas do processo de modernização, a

Constituição Imperial de 1824, no artigo 5, ainda mantinha a união entre Estado e Igreja

Católica. Nesta Constituição, o sagrado era valorizado em diversas passagens e,

muitas vezes, a figura do imperador era realçada com frases religiosas de alusão à

iluminação divina de suas atividades.

Contudo, essa simbiose não se afigurava saudável para a Igreja Católica, pois

sua liberdade de expressão e atuação passou a ser controlada pelo Estado-imperador

por aval legal, a exemplo, o art. 102, II, da Constituição de 1824, que autorizava o

imperador a designar o corpo episcopal e a munir financeiramente o Clero. Com a

chegada de novas teorias, tais como o evolucionismo positivista, o poder da Igreja

Católica e outras igrejas cristãs foi diminuindo perante o Estado. Essa fase representou

o decurso da perda do caráter sagrado anteriormente inserido no ordenamento estatal,

o que provocou a separação entre Estado e Igreja, chegando à atualidade.

A era republicana, inaugurada pelo golpe militar de 15 de novembro de 1889,

trouxe consigo ideias progressistas e de filosofia liberais, a exemplo, o pensamento

rousseauniano. Conforme Cicco, ―com relação ao direito canônico, continuou ele em

vigor para os cidadãos que professam o Catolicismo como sua religião, mas já sem

nenhum efeito na ordem civil e jurídica específica‖.128

Na medida em que o Estado moderno traçava sua marca laica, o

confessionalismo tomava um novo rumo, uma vez que ficou proibido o subsídio

financeiro de qualquer espécie pelo Estado à Igreja. A adoção do modelo laico pela

constituinte de 1891 possuía notas francesas de alusão ateísta, traço bastante rígido se

comparado ao laicismo americano, mais brando quanto à permissibilidade de cada

Estado federado para decidir sobre a questão, sem que houvesse minoração fatal da

importância da crença religiosa cristã. Por assim dizer, a Constituição de 1891 declarou-

se absolutamente livre da influência da Igreja.

A Igreja Católica entrou em choque com o Brasil República, se insurgindo contra

a liberdade do Estado acima dos particulares, dentre eles, a própria Igreja. Nesse

127

Industriais, engenheiros, bacharéis especialistas em Direito comercial e familiar. 128

DE CICCO, Cláudio. História do pensamento jurídico e da filosofia do direito.6. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 291.

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período, os discursos religiosos remetiam à coação da alma humana pelo poder laicista

do Estado. Ao tempo em que a política liberal republicana tentava eliminar a Igreja do

espaço público, a Igreja Católica buscava resistir às influências laicizantes,

proclamando por quase dois milênios na cultura popular o Cristianismo. Nesse período,

portanto, a instituição católica e a estatal se digladiavam, almejando em dissenso a

unidade territorial do País, uma rejeitando o secularismo, outra imbuindo-se da

racionalidade extrema da Filosofia positivista, na qual a Igreja seria a personificação de

um erro cometido no passado, contrária ao progresso da nação, a ser decididamente

exterminada pelas elites leigas.

Inútil, pois, ordenar à Igreja que se recolhesse totalmente à particularidade das

consciências individuais, mormente quando começava a recuperar audiência mais

ampla. Renegar seu ser público seria renunciar a si própria. O processo de luta

chegava ao limite a partir do qual não há síntese possível. Nesta encruzilhada, tornou-

se inviável a união do Catolicismo e do Liberalismo, enquanto este se apresentou sob

forma laica e contra a Igreja no espaço político. Neste momento, não havia

possibilidade de ―diálogo‖ entre a teologia católica e as formas de pensamento secular,

especialmente no que se refere à questão de Deus. Isto é expresso de forma crua, mas

inequívoca, por Donoso Cortés: ―É católico quem reconhece em Deus a soberania

constituinte e a atual; é deísta quem nega a atual e reconhece nele a constituinte; é

ateu quem nega dele toda soberania, porque nega sua existência [...].129

À medida que essas relações se modificam, uma série de tomadas de posição

pela Igreja e pelo Estado entram em conflito, repercutindo nos interesses sociais e

econômicos. O peso das negociações acaba sendo determinante para o resultado

acerca do tema nas constituições seguintes. Como consequência, as Constituições de

1934, 1946 e 1969 adotaram o modelo da separação com cooperação entre Estado e

Igreja. O primeiro desenrolar dessa política liberal de cunho laico foi a vedação de

tratamento desigual ou injusto a pessoa ou grupo por motivo de crença religiosa. A

segunda etapa da ideia de colaboração seria mostrar a possibilidade de convivência

entre ambas, em prol da coletividade. Ou seja, sob essa ótica, o objetivo do Estado

129

ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra o Estado. 1. ed. São Paulo: Kairós, nov. 1979. p. 105.

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laico e neutralizado é revelar o equívoco do inconformismo de uma das partes e da

insistente ideia adversária entre as instituições Estado e Igreja.

Dessa maneira, mostrou-se mais brando o Positivismo, inclusive no Brasil,

resguardando o direito à posse e propriedade da Igreja, permitindo-lhe a participação

no ambiente público, desde que se mantivesse separada do Estado, restando a ela o

status civil de pessoa jurídica. Por outro lado, a crítica dos liberais radicais era no

sentido de rejeitar a presença do sagrado na esfera pública. Também procuravam

reduzir a religiosidade a um sentimento moral individual. Nessa perspectiva, a Igreja

não teria qualquer participação nos assuntos políticos, somente os espirituais subjetivos

da consciência humana, representando um absoluto laicismo estatal, motivo principal

para a elevação de uma possível cultura de disputa entre instituições, religiosa e

estatal, no seio de uma sociedade pluralista.

Uma leitura rápida da questão poderia auferir que a Igreja constituída sob a

égide da crítica positivista seria mais benéfica. Contudo, sabe-se que os positivistas

precisavam abrandar a relação com o Catolicismo para poder firmar suas bases legais

no Estado com a Proclamação da República. Essa concordância com a Igreja

possibilitaria a soberania laica. Segundo o pensamento crítico à Igreja de Demérito

Ribeiro,130 como solução prática, haveria a mudança de mentalidade do povo, que

passaria do estado de ignorante e católico para o maduro e científico. Para ele, apenas

assim o Catolicismo se tornaria dispensável e seriam poupados os cursos de guerras e

campanhas contra o poder religioso. Logo, no entendimento de Roberto Romano,131

tudo não passou de uma atitude reflexiva sistemática, com o cunho de assegurar

definitivamente a separação entre os dois poderes.

Nas palavras de Roberto Romano, ora, a ruptura entre a legalidade secular e o

ordenamento religioso teria sido pensada e preparada no Brasil, na reflexão dos

positivistas de modo que mantivesse a existência empírica da Igreja, retirando-lhe ao

mesmo tempo qualquer influência na consolidação racional do Estado. Em outras

palavras, esta política se deu no sentido de retirar toda e qualquer implicação teológica

e transcende de legalidade. Maneira certa, radical e segura de retirar da Igreja a

130

Discurso… In: I. Lins, op. cit. , p. 325 131

Op. cit., nov. 1979, p. 132-133.

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possibilidade de qualquer apelo a seus princípios particulares de justiça, quando, em

problemas decisivos de direito público, sua ação pudesse ferir ou desestabilizar o

circuito racional do domínio do Estado sobre o todo da Nação.

―A eliminação da teologia do Estado foi, pois, completa, mesmo quanto ao dogma fundamental, o ‗grande preconceito‘, como lhe chamava Diderot. As crenças da vida pública foram inteiramente banidas das manifestações da vida pública para ficarem um assunto de ordem puramente privada. ‖

132

Para se estruturar como nova forma de governo, a República concedeu

liberdades pontuais à Igreja, permitindo, sob a ótica dos positivistas, sua não falência

institucional, que poderia conviver com o Estado, em uma hierarquia inferior, mas que

lhe permitisse benesses. Nessa perspectiva, foi permitida, ao mesmo tempo, a

reprodução de dioceses e o crescimento da adesão da sociedade ao republicanismo.

Essa visão positivista da simultânea liberdade republicana e liberdade religiosa,

contudo, aufere-se nociva à sociedade, pois trata a coletividade como um todo

dominado pelo Estado/autoridade, em que a Igreja se une ao poder, moldado pelos

ditames positivistas, com o fito de manter-se na ordem pública por meio da aderência

da opinião popular, de modo que ela conseguiu se manter estável como força social no

período republicano. Tal característica se revela contrária ao pacto social do

Liberalismo, pois, neste último, a adesão dos cidadãos acontece em respeito à

igualdade dos contratantes Estado-povo.

Considera-se um ponto negativo a cooperação entre Estado e Igreja que se faz

no intuito de vantagens recíprocas para manter hegemonia em relação à sociedade. A

essa fase sucedeu outra em que liberais e positivistas não aceitavam a permanência da

Igreja no espaço público. Entende-se, assim, que um dos erros da modernidade foi a

supervalorização do indivíduo, deixando espaço para a criação de um poder superior a

ele para ordenar a coletividade, instituído por um Estado forte e controlador. Por sua

vez, a ditadura positivista foi uma passagem vivida pelo Brasil no século XIX, marcada

pela cooperação política entre Igreja Católica e República com vistas a garantia de

poder de cada instituição.

132

ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra o Estado. 1. ed. São Paulo: Kairós, nov. 1979. p. 132.

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128

O novel diploma magno surge com um novo cenário, pois o mundo

contemporâneo é extremamente marcado pelo pluralismo religioso. Acrescido isso ao

processo de redemocratização do País, o desafio de tentar estabelecer um diálogo

entre a liberdade religiosa e o Estado é iminente.

A Constituição Federal do Brasil, de 1988, preconiza o direito de liberdade de

consciência e de crença religiosa no artigo 5, VI e VIII. Ainda, estabelece a religião

como um direito fundamental que se insere no amplo rol de direitos humanos. O art. 19,

I, do referido diploma garante o princípio da igualdade religiosa subjetiva, sendo vedada

a criação de privilégios, benefícios ou vantagens pela adoção de determinado credo.

Portanto, o País é regido por um Estado laico, estando presentes os princípios da

separação institucional entre Estado e Igreja e o princípio da colaboração entre ambos

em prol do bem comum. Isto posto, verifica-se que a confessionalidade do Estado laico

brasileiro assevera um Estado Democrático de Direito fixado em soberania popular,

igualdade, e liberdade, mas que não denota em ateísmo. A marca do teísmo,133 na

Carta Magna, é vista em seu preâmbulo, no qual faz referência ao nome de Deus. Com

relação ao direito de família, a tradição religiosa é resguardada no art. 226, §2º da

Constituição Federal ao citar o casamento religioso – que é optativo.

Em sequência, a elaboração do Código Civil de 2016 foi o resultado da

dissociação entre o sagrado e o Estado, compreendendo um diploma não mais com

influência do direito canônico ou qualquer outra crença religiosa. As questões religiosas

ficaram reservadas apenas à esfera privada da Igreja, ressaltando-se o caráter laico do

Estado. Se a Igreja Católica era religião majoritária, tal fator não importava para o

Estado que era leigo. Isso significa que a Igreja teve que conviver com o Estado laico.

O regime de separação entre Estado e Igreja estabelecido pela Carta Maior foi

abrandado pelo acordo celebrado entre Estado brasileiro e Santa Sé134 no dia 13 de

novembro de 2008, sendo confirmado pelo Congresso Nacional em 7 de outubro de

133

Teísmo é a crença na existência de Deus. Ateísmo ou doutrina dos ateus é o inverso. Disponível em: <https://www.priberam.pt/dlpo/ate%C3%ADsmo>. Acesso em: 14 fev. 2016. 134

O artigo 361 do Código de Direito Canônico afirma que a Santa Sé corresponde à Secretaria de Estado, o Conselho para negócios públicos da Igreja e demais organismos da Cúria Romana. A Santa Sé é sujeito de direito internacional, que possui delegações junto a Conselhos Internacionais e o seu representante, o pontífice Papa, é o líder da missão espiritual universal.

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129

2009. Com o referido acordo, a Igreja Católica do Brasil passou a ter seu próprio

estatuto jurídico. Acredita-se que o mencionado acordo não representou uma afronta ao

Estado laico brasileiro, apenas serviu para regular algumas questões pertinentes a

ambas as instituições, Estado e Igreja Católica do Brasil. Deste modo, o intuito é de

fortalecer a harmonia e cooperação mútuas, e garantir a autonomia de cada um para

gerir situações que lhe são próprias. Em matéria de família, há, por exemplo,

interessante ênfase sobre a possibilidade de divórcio, quando o casamento religioso é

registrado no Registro Civil, gerando efeitos diversos do direito canônico, que tem o

casamento como um ato indissolúvel.

Com efeito, nota-se que é mais adequada a insurgência de um Estado laico e

não laicista, pois é erro acreditar que o Estado ou a Igreja gozam de privilégios

ilimitados, sendo forçoso reiterar que a Constituição Federal proíbe a discriminação de

alguém por motivo de crença religiosa, mas aceita o sentimento de religiosidade de

alguns. O real objetivo não é anular as religiões, pois isto não fomentaria a igualdade,

ao contrário, levaria ao embrutecimento da relação entre Estado e religião. A laicidade

não implica em sistemática de tudo ou nada, ao revés, pondera os interesses para que

haja tolerância entre as religiões no Estado democrático de Direito.

Por conseguinte, se faz importante para os teólogos, em específico os católicos,

que saibam conviver com a modernidade, pois, ao tempo em que une, pode também

separar a vida social da religiosa. Saber viver o tempo enquanto tal é crucial para a

Igreja continuar universalizada e representativa da mensagem da Salvação. Com o

respeito da liberdade religiosa, sem fundamentação em poderio eclesiástico, mas em

mais um tipo de doutrina feita para o bem-estar da sociedade e a busca de solução de

seus problemas materiais e espirituais, é possível haver cooperação entre Estado e

Igreja sem submissão de um sobre o outro.

Diferentemente do pensamento filosófico liberal e idealista que prega total

ruptura entre Estado e Igreja, a Teologia pós-moderna deve fincar seus alicerces sem

sobreposições de poder. A convivência das diversas formas de religião em um mundo

secularizado, contudo, não ocasiona a eliminação das ideias sobre o divino. Ocorre que

as realidades terrestres são múltiplas, sendo as liberdades culturais também. A fé,

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130

nesse diapasão, continua sendo uma tradição viva, mas que deve saber dialogar com o

Estado laico ‒ não laicista. Essa convivência pacífica em prol da coletividade é o cerne

para a consecução do Estado Democrático de Direito, especialmente no âmbito do

direito das famílias.

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131

CAPÍTULO 4 – POR UM DIÁLOGO ENTRE LIBERDADE RELIGIOSA E A

EFETIVIDADE DO DIREITO DAS FAMÍLIAS

Para melhor compreender a evolução do conceito e da função das famílias no

direito brasileiro, deve-se adotar como marco fundamental a Constituição Federal de

1988. Dessa forma, se faz necessário observar o avanço ocorrido na referida carta

constitucional, ao reconhecer, embora timidamente, outras duas espécies de família,

diferentes do casamento, no artigo 226 do seu texto.

Nessa perspectiva, vem à tona algumas indagações: teria a Carta Magna pátria

exaurido todas as espécies de núcleo familiar naquele artigo? Trata-se de um rol

exemplificativo ou taxativo? Por que o Estado laico brasileiro não dispõe sobre todos os

modelos de arranjo familiar existentes na atualidade? Existe a interferência de

orientações religiosas, obstaculizando a proteção legal da pluralidade de famílias,

embora seja o Estado laico? São estas as principais perguntas a serem respondidas

através de fundamentos comuns para o debate entre liberdade religiosa e direito das

famílias.

O modo de estruturação das famílias no estado brasileiro ao longo dos últimos

anos modificou de tal maneira que provocou e vem provocando impactos em alguns

aspectos da vida social. Num quadro mais amplo, deve-se admitir que o Direito das

Famílias é a ramificação do Direito Civil brasileiro que sofre mais impacto com as

transformações sociais. A título de exemplo, o Direito das Obrigações ainda obedece na

atualidade, sem muito desgaste, algumas classificações romanas. Por assim dizer é

que o Direito das Famílias é o mais dinâmico dos direitos, pois muda ao mesmo passo

que a sociedade. Tal processo lança as bases para a elaboração de novos documentos

legais, que merecem possuir características liberais e que atendam à principal função

da instituição família: a sua característica de meio para a busca da felicidade e da

realização dos desejos e pretensões do homem, que se une por vínculos sócio

afetivos135.

135

Cf. Princípio da função social da família diz que não é a família um fim em si mesmo. Em GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito civil: volume 6: direito de família: as

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O primeiro fato que precisa ser destacado é o de que o ordenamento jurídico

brasileiro é omisso quando não confere legalidade a todas as espécies de família

existentes na atualidade. Isto traz consequências negativas enormes para organização

do Estado Democrático brasileiro, as quais recaem diretamente sobre a sociedade, pois

todo cidadão vive em um tipo de núcleo familiar.

É imprescindível lembrar que o anteprojeto do Código Civil de 2002 data de

1972, sendo que o projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 1984, após

cuidadoso estudo e debate de 1.063 emendas. Além disso, o diploma foi criado durante

um momento de profundas alterações políticas, caracterizadas pela passagem do

sistema militar para o regime democrático. Assim, no campo do Direito das Famílias

sobrevieram mudanças essenciais, as quais o referido diploma precisa de adaptação

para os moldes atuais.

Segundo o coordenador geral do projeto do Código Civil de 2002, Miguel

Reale:

―Em um País há duas leis fundamentais, a Constituição e o Código Civil: a primeira estabelece a estrutura e as atribuições do Estado em função do ser humano e da sociedade civil; a segunda se refere à pessoa humana e à sociedade civil como tais, abrangendo suas atividades essenciais. É claro que nas nações anglo-americanas, de tradição costumeira-jurisprudencial, não há códigos privados, mas não deixa de haver normas civis básicas no sistema do common-law. É a razão pela qual costumo declarar que o Código Civil é "a constituição do homem comum", devendo cuidar de preferência das normas gerais consagradas ao longo do tempo, ou então, de regras novas dotadas de plausível certeza e segurança, não podendo dar guarida, incontinenti, a todas as inovações ocorrentes. ‖

136.

O Código Civil brasileiro vigente (2002) dificulta a proteção de novos grupos

familiares subsistentes na vida pública desde seu processo de criação, pois não os

identifica em seu texto legal. Sendo assim, há também uma justificativa histórica para a

não proteção das famílias plurais, posto que não há possibilidade de o diploma prever

certos acontecimentos. Contudo, a família não é natural. É cultural, por isso o seu

famílias em perspectiva constitucional. 6. Ed. Rev. e atual. de acordo com o novo CPC. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 101 e 102. 136

REALE, Miguel. Visão Geral do Projeto de Código Civil. Disponível em: <http://www.miguelreale.com.br/artigos/vgpcc.htm> Acesso em: 21 set. 2016.

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133

conceito transcende sua própria historicidade. Logo, como o objetivo é analisar a

efetividade do Direito das Famílias pós-moderno, tal limitação se constitui no obstáculo

de maior proporção, uma vez considerando que o rol do artigo 226 da Constituição é

aberto.

Nas palavras de Paulo Lôbo:

―Os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família indicado no caput. Como todo conceito indeterminado, depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductilidade e adaptabilidade. ‖

137.

Entretanto, nota-se no exercício do direito de família contemporâneo a debilidade

que há por conta das lacunas no ordenamento jurídico brasileiro, quando não dispõe

claramente sobre os vários tipos de arranjos familiares, como será visto. Nesse sentido,

desses trechos é possível fazer uma relação entre o papel da justiça da lei e uma lei

produtiva para o Direito das famílias. Uma vez que o homem é um animal político, que

tende a se agrupar e criar uma cidade, em busca da realização do bem comum, sua

capacidade de se comunicar com os demais da sociedade é fundamental para a

persecução de leis que visem o bem comum, o fim último do homem. Contudo, como

ressalva Tomás de Aquino, deve-se lembrar que neste bem comum há igualmente o

desejo do interesse individual. Contanto que o homem aja sempre de acordo com a

virtude, sua realização como pessoa também importa para o espírito da lei.

Vale dizer, o Estado e a Igreja deixaram de ser necessárias instâncias

legitimadoras da família, para que se pudesse, então, valorizar a liberdade afetiva do

casal na formação de seu núcleo familiar, circunstância esta verificada, inclusive, na

Europa, conforme anota Guilherme de Oliveira: ―Desde então tem se tornado mais

nítida a perda do valor do Estado e da Igreja como instância legitimadora da comunhão

de vida e nota-se uma crescente rejeição dos valores e dos ‗deveres conjugais‘

137

LÔBO, Paulo Luiz Neto. Entidades Familiares Constitucionalizadas: para além do numerus clausus”. Teresina: Jus Navigandi. ano 6, n.53, jan: 2002. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2552>. Acesso em: 22 de set. 2016.

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134

predeterminados por qualquer entidade externa aos conviventes‖. 138

Nos próximos tópicos, portanto, será investigado o conceito atual de família no

Brasil, apontando-se as soluções para o conflito Estado, Religião e Famílias, e

verificando a hipótese sugerida através da leitura sobre o tema, ou seja, a de que as

mudanças sociais ocorridas nas últimas décadas no estado brasileiro tornaram as

famílias dinâmicas e plurais. Portanto, se o Estado brasileiro é laico e diz que seus

cidadãos devem ser tratados de forma igualitária, não há porque orientações religiosas

impedirem a regulamentação legal de todos os núcleos familiares.

4.1. A família brasileira na pós-modernidade: aspectos jusfilosóficos

A família representa o espaço natural de pertencimento do indivíduo a um grupo

pelo nascimento ou adoção. É no seio dela que o homem cresce, desenvolve seu

caráter e adquire as habilidades para se portar na sociedade. A discussão sobre os

modelos de família vem à tona devido aos impactos da pós-modernidade, que criou

uma geração diversificada e capaz de transformar-se rapidamente em um curto período

de tempo. Assim sendo, concomitantemente ao lado da família tradicional, - formada

pelo casamento entre um homem, uma mulher e a procriação, predominantemente

eivada de morais religiosos-, constituíram-se novos modos de relação familiar,

igualmente consolidados pelo afeto entre os membros.

A família brasileira atual não é a mesma das ordenações filipinas do Brasil

Colônia, que conferiam apenas à autoridade eclesiástica a incumbência da celebração

e regulamentação do casamento e adotava para o direito pátrio de família as normas do

Direito Canônico. Também, é uma família além da proclamação da República, momento

histórico em que houve a separação formal entre a Igreja e o Estado, e regulamentou-

se o casamento civil, com o Decreto n. 181, de 24.01.1890, no qual Rui Barbosa foi o

autor.

138

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito civil: volume 6: direito de família: as famílias em perspectiva constitucional. 6. Ed. Rev. e atual. de acordo com o novo CPC. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 44

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135

Este período correspondeu ao momento em que o casamento só existiria através

do seu devido registro no Cartório de Registro Civil. Referido decreto aceitava a

liberdade de crença religiosa, aceitando fora dos ditames legais a realização do

casamento religioso, contudo, apesar deste forte hábito social de cunho sagrado, para

ser admitido legalmente o casamento deveria ser confirmado pelo poder estatal. Tendo

em vista isto, elaborou-se posteriormente o Decreto n. 521, em 26 de junho de 1890,

que vedava a celebração de casamento religioso antecedido ao civil.

Esses acontecimentos são retratos da mudança do Estado Democrático

brasileiro, que passou a se impor diante do poder da Igreja (Lei n. 1.144/1861, e os

Decretos n. 181 e 521), notando-se que aos poucos o Estado buscou absorver o

controle regulamentar da família, que até então possuía como única forma aceita o

casamento. O advento da Constituição Republicana marcou ainda mais a divisão entre

Igreja Católica e Estado, afirmando a República o reconhecimento de uma única forma

de casamento, o civil. Na sequência, todas as constituições seguintes regulamentaram

a família através da proteção legal ao casamento entre um homem e uma mulher.

A influência da Igreja sempre foi tão forte na sociedade que por bastante tempo

perdurou nas disposições sobre direito de família do Código Civil Bevilaqua os mesmos

moldes do Direito canônico. A narrativa do Código Civil de 1916 considerava a

indissolubilidade do casamento. Contudo, os ventos da mudança fizeram prevalecer o

secularismo no Código Civil de 2002, que mudou alguns paradigmas da família

brasileira, admitindo os institutos do divórcio e a união estável como mais uma espécie

familiar.

O conceito de família, portanto, não é uma acepção rasa e fechada. Como as

famílias estão em constante dinamismo não pode haver uma positivação única para

todas elas. A questão é lógica, visto que não pode o sistema restringi-las a meras

convenções não correspondentes na maioria das vezes à realidade fática. O judiciário,

assim, não deve ir contra o clamor social, que nem sempre é de uma maioria, pois é o

Direito quem deve acompanhar os fatos e não o contrário. A família perdeu sua

preponderância como instituição e passou a ser muito mais o núcleo formador do

sujeito. Se, atualmente, os laços familiares estão fincados no afeto e não mais

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136

essencialmente na reprodução sexual ou em fatores econômicos, é natural que surjam

novos tipos familiares.

Diante de tais argumentos, existe uma necessidade premente de regulamentar e

modificar no Código Civil Brasileiro alguns conceitos sobre o Direito das famílias,

justamente porque o momento atual é o de codificar efetivamente os preceitos de todas

as espécies de famílias não tradicionais, bem como ficar atento para as que venham a

surgir posteriormente.

Apesar de um longo período sustentando por um modelo cristão de família,

provavelmente devido a maioria católica do país, o ordenamento jurídico brasileiro nas

últimas décadas passou a admitir algumas variações. Em contrapartida à visão

espiritual caminha o direito de família moderno. Com a promulgação da Carta Magna de

1988, o Brasil experimentou ainda mais os efeitos do pluralismo social, marca

constitutiva das democracias contemporâneas. Isso gerou um impacto considerável nas

famílias, que passaram a existir legalmente não só no modelo tradicional do casamento.

A dinâmica das entidades familiares levou o legislador a reconhecer a necessidade de

alterar a redação da nossa Constituição, no tocante a isso; atualmente é estatuído mais

de um arranjo familiar em lei, porém, ainda não há regulamentação de todos.

O Estado brasileiro institui-se como laico, respeitando a liberdade religiosa e ao

mesmo tempo protege, parcialmente, as famílias no art. 226, senão vejamos:

―Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

§1º. O casamento é civil, e gratuita a celebração.

§2º. O casamento religioso tem efeito civil nos termos da lei.

§3º. Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§4º. Entendem-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. ‖

Segundo Giselda Hironaka, os modelos familiais expressamente previstos na

Constituição de 1988 são: (i) família matrimonializada, que decorre do casamento entre

homem e mulher (art. 226, §1º, 2º e 5º); (ii) família informal, decorrente da união estável

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137

entre homem e mulher (art. 226, §3º); e (iii) família monoparental, constituída pelo

vínculo existente entre os genitores e sua prole (art. 226, §4º). 139

Ainda, segundo a autora:

―Em que pese essas tímidas disposições constitucionais, em não sendo exaustivas, posto informadas pelo princípio da dignidade humana e seus vetores integrativos como a liberdade, igualdade, pluralismo/ alteridade, afetividade, entre outros, claro fica que existem arranjos familiais implicitamente abarcados no texto constitucional, carecedores de igual proteção do Estado. Entre alguns: (i) família anaparental, constituída por parentes e pessoas que convivem em interdependência afetiva, sem pai ou mãe que a chefie, como no caso de grupo de irmãos, ou de avós e netos, ou de tios e sobrinhos; (ii) família homoafetiva, constituída por pessoas do mesmo sexo, especialmente sob o modelo de união estável; (iii) família mosaico, modelo pelo qual se reconstitui família pela junção de duas famílias anteriores, unindo filhos de um e de outro dos genitores, além dos filhos comuns que eventualmente venham a ter; (iv) família socioafetiva, constituída por pessoas não aparentadas entre si, mas que nutrem interdependência afetiva, como o caso dos chamados ―filhos de criação‖, ou a relação paterno/filial estabelecida efetivamente entre padrasto e enteado, dando vigor ao princípio da desbiologização da paternidade. Aliás, sobre esse assunto há pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal um Agravo em Recurso Extraordinário n. 692.186-PB, de relatoria no Ministro Luiz Fux, com repercussão geral reconhecida, por meio do qual se decidirá a controvérsia acerca da prevalência ou não da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica; (v) famílias paralelas, modelos familiares de conjugalidades concomitantes, isto é, as famílias conjugais- por casamento e união estável ou por união estável e união estável- paralelas ou simultâneas. A jurisprudência acerca do reconhecimento de famílias paralelas ainda é vacilante. A questão de o concubino impuro receber a pensão por morte também está afetada no Supremo Tribunal Federal sob o rito da repercussão geral. ‖

140

Conforme Rodrigo da Cunha, pode-se dividir as famílias parentais em

anaparental, monoparental, binuclear, ectogenetica, extensa, homoparental, mútuas,

adotivas e socioafetivas. Ainda, conforme o mesmo doutrinador existem mais dois tipos

de família fruto da pós-modernidade, a família multiespécie, que consiste em um grupo

familiar composto por pessoas que reconhecem e legitimam seus animais de estimação

como membros da família, e, por último, as famílias unipessoais, seguindo a linha de

raciocínio da Súmula 364 do Superior Tribunal de Justiça, que aduz ―o conceito de

impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas

139

Tratado de Direito das familias/ Rodrigo da Cunha Pereira (organizador)- Belo horizonte: IBDFAM, 2015. 1024 P. NOME DO CAPÍTULO: O conceito de família e sua organização jurídica. Autora: Giselda maria Fernandes novaes hironaka. pág 57. 140

Tratado de Direito das familias/ Rodrigo da Cunha Pereira (organizador)- Belo horizonte: IBDFAM, 2015. 1024 P. NOME DO CAPÍTULO: O conceito de família e sua organização jurídica. Autora: Giselda maria Fernandes novaes hironaka. pág 57/58.

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138

solteiras, separadas e viúvas.‖. Assim, na visão do mencionado jurista teríamos 4

espécies de família, com seus devidos desdobramentos: I. conjugal, II. Parental, III.

Unipessoal e IV. Multiespécie.

Quanto à necessidade de evolução do ordenamento jurídico brasileiro, nas

palavras de Rolf Madaleno, ―A Carta Política de 1988 resgatou a dignidade do

concubinato e passou a denominá-lo união estável, mas não tratou o legislador

constituinte de apagar as marcas do preconceito e da histórica censura às relações

informais de uma união marginal que, embora socialmente tolerada, já mereceu no

período colonial brasileiro a condição de crime passível do degredo e do cárcere. Claro

que os tempos e a legislação constitucional não reservaram tamanha ojeriza cultural à

união estável, mas, ao estabelecer que a relação informal possa a qualquer tempo ser

convertida em matrimônio (CF, art. 226, §3º), com efeito, que fez parecer existir uma

espécie de segunda categoria de entidade familiar, com uma nem tão velada

preferência pela instituição do casamento. 141

O doutrinador prossegue com seu raciocínio afirmando que ―as estatísticas

mostram um acentuado crescimento e até mesmo a superação numérica de

relacionamentos estáveis em detrimento do casamento civil, e estudos sociais e

jurídicos apontam diversas causas tidas como responsáveis pelo constante crescimento

das famílias informais e, não obstante a importância desse crescimento das entidades

familiares informais, mas que cada vez mais estão se formalizando por meio de

contratos escritos de uniões estáveis, e do ponto de vista legal ainda seguem em vigor

gritantes diferenças entre as duas principais famílias constitucionais, do casamento e

da união estável. 142

De vinte anos da promulgação do Código Civil atual para cá percebe-se poucas

modificações, sendo o direito obrigado a rever certas questões, como por exemplo o

conceito de união estável, disposto no art. 1723 do referido diploma legal. Além de

apresentar-se legalmente como uma espécie de família hierarquicamente inferior ao

casamento, o conceito legal de união estável não acompanha a evolução do conceito

141

Madaleno, Rolf. Curso de direito de família. 6a ed rev atual ampl Rio de janeiro: Forense, 2015. Pag. 9 142

Idem.

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139

de namoro. Com o passar do tempo, outras questões referentes à união estável foram

levadas em conta, ou seja, a ideia atual de união estável não pode ser mais aquela

atrelada a uma mera união informal. Além disso, não há razão alguma para a

inferioridade sucessória da figura do companheiro no art. 1.790 do Código Civil,

devendo o legislador fazer uma equiparação plena da união estável ao casamento143.

Nesse sentido, à luz das diversidades culturais da vida individual, a Constituição

Federal de 1988 reconheceu a pluralidade familiar, no entanto, regulamentou somente

três formas de concepção da família (casamento, união estável e monoparentalidade

familiar). Ainda, observa-se a supervalorização constitucional do casamento frente a

outras espécies de família, que não só a união estável. Aufere-se que embora notória a

confirmação da instituição família como base da sociedade, surge, então a discussão

da regulamentação de todos os arranjos familiares, os quais o Código Civil de 2002 não

protege em amplitude, tendo em vista as famílias nacionais existentes na realidade.

Embora seja verdade que a Constituição Federal tenha sido revolucionária ao

expandir o conceito oficial de família e permitir o reconhecimento de outros modelos de

relação familiar que não fossem obrigatoriamente ligados ao casamento, e diante dessa

realidade estender à união estável e à família monoparental o mesmo braço protetor

destinado ao matrimônio (CF, art. 226), não é possível desconsiderar a pluralidade

familiar e de cujo extenso leque o Estatuto da Criança e do Adolescente, com a

incorporação dessa filosofia pluralista, reuniu em texto escrito o reconhecimento oficial

de diferentes modelos de núcleos familiares: como a família natural, a família ampliada

e a família substituta. 144

143

No dia 31 de agosto de 2016, houve pauta no Supremo Tribunal Federal (STF) acerca da concorrência sucessória entre cônjuge e companheiro. Com sete votos favoráveis, os ministros decidiram pela inconstitucionalidade do artigo 1.790, que, conferido pelo Código Civil, trata de forma diferenciada os cônjuges e os companheiros no que diz respeito à sucessão hereditária. Com pedido de vista de Dias Toffoli, ainda estão pendentes os votos de Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes. O IBDFAM defende a inconstitucionalidade do artigo. Disponível em:<http://www.rodrigodacunha.adv.br/julgamento-stf-tem-sete-votos-pela-inconstitucionalidade-artigo-1-790-que-preve-diferencas-entre-conjuge-e-companheiro-quanto-heranca/>. Acesso em: 27 de set. 2016. 144

Oliveira, Euclides e Hironaka, Giselda Maria Fernandes Novaes. Do Direito de Família. In: Dias, Maria Berenice e Pereira, Rodrigo da Cunha (Coord). Direito de Família e o novo Código Civil. Belo horizonte: Del rey e IBDFAM, 2001, p.5.

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Grande parte do debate no direito de família contemporâneo é vinculado a

aceitação legislativa dos novos arranjos familiares hoje existentes. Fundamentando-se

nos princípios de justiça e nos ideais de liberdade, propostas de reforma do Código Civil

Brasileiro vigente, promulgado em 2002, surgem e revelam uma modificação radical nos

contornos das famílias brasileiras, afetando logicamente os aspectos sociais e jurídicos

da sociedade. Na justificação da necessidade de diálogo entre a liberdade religiosa e o

direito de todas as espécies de família, o Estado laico tem sido o cerne dominante no

debate, assim como pensamentos jusfilosóficos do Liberalismo, tanto nos seus pontos

conceituais e centrais quanto nas críticas oriundas da divergência com a teoria.

Interessante se faz destacar o período de concepção da doutrina liberal, durante

o século XVII, responsável pela ampliação do entendimento sobre o melhor exercício

do poder político, com base em princípios de ordem moral pelos quais só há

legitimidade caso haja observância aos princípios do Estado Democrático de Direito, em

especial a autonomia privada dos indivíduos. Isso revela o olhar crítico liberal sobre a

indagação: como garantir a todos os integrantes de uma sociedade pluralista a

autonomia individual para viver no ambiente familiar que lhes convier?

Para prosseguir na defesa da autonomia privada em detrimento da intervenção

do Estado na família, é preciso fazer um sintético retrospecto da roupagem destas

instituições no contexto histórico. Paulo Luiz Netto Lôbo foi quem melhor conseguiu

fazer esta síntese ao lembrar-nos que o Estado pode ser dividido em três fases

históricas: absolutista, liberal e social. O Estado absolutista era marcado pela vontade

soberana do monarca. O liberal – ―antípoda do Estado absolutista‖ –, pela mínima

intervenção estatal, que se justificava pela ascendência da burguesia ao poder e a

defesa da cidadania, do respeito à dignidade humana e da liberdade de aquisição,

domínio e transmissão de propriedade. Por fim, o Estado Social retomou o processo

intervencionista do Estado absolutista, em que o poder político variava da democracia

social ao socialismo. A família, por óbvio, sofreu influência dessas vicissitudes do

Estado.145

145 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais e norteadores para a organização jurídica da família. Disponível em:

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A partir da aquisição de novos olhares e papéis, a família brasileira pós-moderna

não suporta mais intervenção do Estado, principalmente no que diz respeito a esfera

privada dos seus integrantes. Isto revela um momento de privatização das relações

familiares, sob a roupagem do liberalismo, e da ―desinstitucionalização da família‖, no

sentido de que embora importante para a ordem pública estatal, as funções privadas da

família devem sobressair frente àquelas, em respeito à informalidade que rege as

famílias atuais.

Nesta perspectiva, esta tese se preocupou em buscar o diálogo entre os

fundamentos jusfilosóficos da liberdade religiosa e do direito das famílias, percebendo-

se a necessidade de reconstrução do diploma civil pátrio, que por ser antigo demais

para os impactos da pós-modernidade não regulamenta todos os tipos familiares que

surgiram e se multiplicaram após a superação da família patriarcal; além disso, apesar

do mencionado diploma, em seu art. 1.513, vedar a ingerência do Estado na comunhão

de vida do casal, esse mesmo Código nega a autonomia da vontade dos membros da

família, ao por exemplo, obrigá-los a coabitar, numa clara intromissão na vida íntima do

casal. Sabe-se que na atualidade a coabitação não deve mais ser encarada como

dever conjugal, sendo esta uma característica do modelo cristão de família, que ainda

está permanece no diploma civil em razão de resistências de bancadas religiosas Daí a

imperioso desafio desta tese, o de defender a necessidade da reedição de normas civis

para o direito de família que se conjuguem com a autonomia e a liberdade de escolha

dos membros da família, ficando para o Estado o papel mínimo de atuação, no sentido

de proteção das famílias.

Assim, na tentativa de evitar a arbitrariedade estatuída que não supre a realidade

dos fatos sociais, cumpre enaltecer alguns princípios gerais aplicáveis ao direito das

famílias que corroboram com a ideia de autonomia dos indivíduos livres e iguais do

liberalismo clássico. A nova perspectiva do Direito das Famílias reúne princípios e

valores mais extensos, atingindo direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa

humana (artigo 1º, III, da CF); isonomia e respeito às diferenças, ao confirmar a

<http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/2272/Tese_Dr.+Rodrigo+da+Cunha.pdf?sequence=1> pag. 110. Acesso em 21 de set. 2016.

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igualdade de direitos e deveres do homem e da mulher e o título de igualdade jurídica

entre todos os filhos, advindos ou não de um casamento ou união estável (artigo 5º, I da

CF); o melhor interesse da criança ou do adolescente (art. 227, caput, da CF e no

Estatuto da Criança e do Adolescente em seus artigos 4º, caput, e 5º); a solidariedade

social (artigo 3º, I da CF); a autonomia e a menor intervenção estatal;

a afetividade146 que, nesse contexto, ganha dimensão jurídica como um valor a ser

disposto na Constituição; e o princípio da pluralidade das formas de família.

Na verdade, esses princípios tem a função de encarar o problema das lacunas

normativas diante de uma realidade fática, em se tratando de pluralidade familiar e a

falta de tutela de direitos amplos a todas as famílias. O problema de leis injustas para o

direito das famílias provoca o sentimento de crise do direito. O Direito não pode ser

dissociado dos anseios da sociedade nem dos valores humanos sob pena de se

converter em objeto de dominação, arbítrio e aviltamento do ser humano. A norma legal

infraconstitucional, não obstante, seja uma norma proveniente do Estado não pode ir de

encontro a valores expressos em nossa constituição, tais como a pluralidade familiar

É possível que, também nesta paisagem do direito, muito do que consideramos

crítico seja apenas contemporâneo, trazendo consigo uma carga de pessimismo

negativa. Contudo, só nos resta analisar. O fato é que o mundo se transformou muito

em pouco tempo. Os esquemas básicos de toda a cultura alteraram-se profundamente

e, viu-se que, enquanto as leis positivas se lançavam a novas realidades que

incessantemente brotavam da vida, as estruturas teóricas através das quais o direito se

torna legível, só lentamente se moviam, como se, construídas para permanecer e só

146

A mais nova introdução à categoria dos princípios é a afetividade. O afeto se tornou um valor jurídico e logo foi elevado à categoria de princípio como resultado de uma construção histórica em que o discurso psicanalítico é um dos principais responsáveis. É a partir da Psicanálise, com a introdução do sujeito do inconsciente e das subjetividades, que podemos pensar que o verdadeiro sustento do laço conjugal e da família parental está no desejo e no amor. É isto que nos permite considerar as relações parentais para além dos vínculos biológicos, e com isto criar novos institutos jurídicos como o da parentalidade socioafetiva, expressão inventada por Luiz Edson Fachin a partir da desbiologização, cunhada por João Baptista Villela. O princípio da afetividade funciona como se fosse o alicerce para a construção e manutenção das relações de família. É, portanto, base para todos os outros princípios, assim como o da dignidade da pessoa humana, que paira sobre todos os princípios, como se fosse o telhado dessa construção principiológica para o ordenamento jurídico da família. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais e norteadores para a organização jurídica da família. Disponível em: http://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/2272/Tese_Dr.+Rodrigo+da+Cunha.pdf?sequence=1 pag. 140. Acesso em 21 de set. 2016.

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penosamente pudessem caminhar. Não eram apenas os novos fatos que apareciam

contra os velhos códigos; eram os regimes instituídos pelas novas leis que apareciam

em rebeldia aos cânones fundamentais das ordens jurídicas. As instituições judiciárias,

por sua vez, tolhidas pelo embate entre os preceitos de hoje com os conceitos de

ontem, foram diminuindo a confiança dos homens nos valores fundamentais da

segurança e da justiça.147

De qualquer forma, do ponto de vista jurídico, parece não haver outra forma de

enfrentar as desatualizações do Código Civil brasileiro de 2002 no tocante ao direito

das famílias, senão conferindo prioridade à criação de um Estatuto das Famílias,

possuidor de mecanismos que buscam garantir a efetividade do direito das famílias.

Nos dois subtópicos seguintes serão debatidos alguns assuntos polêmicos em

Direito de Família mais profundamente. O primeiro diz respeito à dúvida sobre a

natureza jurídica da acepção monogamia, contida no ordenamento jurídico brasileiro.

Em um segundo momento serão analisadas as lacunas ainda existentes na seara do

direito homoafetivo, e, por último será detalhado em que consiste o projeto de lei

―Estatuto das Famílias‖.

4.1.2. Monogamia: um princípio?

Existe um novo padrão familiar que tem provocado polêmica não só entre os

cidadãos brasileiros comuns, mas sobretudo entre os profissionais da área do Direito de

Família, uma vez que uma parcela de juristas defende a possibilidade de legalização da

família poliafetiva, que é a união estável de alguém num mesmo período de tempo com

duas ou mais pessoas, de forma pública, contínua e duradoura.

147

SARAIVA, José Hermano. O que é direito? A crise do direito e outros estudos jurídicos. Lisboa:

Gradiva, 2009. p. 249.

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O doutrinador Rodrigo da Cunha explica que no Brasil, tais uniões são vistas

com reservas, em função do princípio da monogamia, base sobre a qual o Direito de

Família brasileiro está organizado, embora sejam comuns em ordenamentos jurídicos

de alguns países da África e no mundo árabe que adotam o sistema da poligamia. Para

o advogado, a monogamia funciona como um ponto chave das conexões morais de

determinada sociedade. Mas não pode ser uma regra ou princípio moralista, a ponto de

inviabilizar direitos. ―O princípio da monogamia deve ser conjugado e ponderado com

outros valores e princípios, especialmente o da dignidade da pessoa humana. Por este

motivo, todos os direitos concedidos aos casais com união estável devem ser

garantidos à essa união poliafetiva‖. 148

A família poliafetiva não representa uma poligamia no sentido do casamento

enquanto instituição, aborda-se na verdade vivências e a possibilidade de relações

entre diversos parceiros afetivos. A razão de viver em um Estado democrático laico e

em uma sociedade livre está justamente em respeitar a liberdade de escolha do outro e

aceitar que um padrão familiar poliafetivo pode existir para o outro. Assim, a ideia de

poliafetividade está atrelada a uma perspectiva de superação de modelos tradicionais.

Há uma emergência dos direitos fundamentais nas relações privadas, que vieram para

descortinar abusos à liberdade de pessoas que querem constituir a entidade familiar

que achem adequada para sua vida concreta. Em suma, o entendimento dos

doutrinadores que apoiam149 essa tese é de que havendo boa-fé objetiva entre os

componentes, com o intuito de constituição familiar, pelos princípios da autonomia

privada e da dignidade da pessoa humana, o Estado não pode intervir, tampouco negar

a vontade dessas pessoas em viver poliafetividades.

Tais argumentos tem gerado polêmica, haja vista que alguns tribunais, de

maneira isolada, já reconhecem a existência de uniões estáveis concomitantes150.

148

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Brasil registra mais uma união poliafetiva. Disponível em: <http://www.rodrigodacunha.adv.br/brasil-registra-mais-uma-uniao-poliafetiva/>. Acesso em: 25 de set. 2016. 149

Rodolfo Pamplona, Pablo Stolze, Regina Navarros, Ricardo Calderón, Marcos Alves. 150

PREVIDENCIÁRIO. PENSÃO POR MORTE. CONCESSÃO. QUALIDADE DE DEPENDENTE. UNIÃO ESTÁVEL. DUAS COMPANHEIRAS CONCOMITANTES. 1. A concessão do benefício de pensão por morte depende da ocorrência do evento morte, da demonstração da qualidade de segurado do de cujus e da condição de dependente de quem objetiva a pensão. 2. Para a obtenção do benefício de pensão por morte deve a parte interessada preencher os requisitos estabelecidos na legislação previdenciária

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Contudo, é importante frisar que uniões simultâneas são diferentes de famílias

poliafetivas. Na primeira não há coexistência entre todos os membros e na última há

concordância recíproca. O Superior Tribunal de Justiça mantém o raciocínio de ser

inadmissível o reconhecimento de uniões estáveis paralelas (simultâneas,

concomitantes) e, sobretudo, as poliafetivas. Assim, se uma relação afetiva de

convivência for caracterizada como união estável, as outras concomitantes, quando

muito, poderão ser enquadradas como concubinato (ou sociedade de fato). A partir

dessa explicação, o Superior Tribunal de Justiça reforça a obediência ao princípio da

monogamia e o dever de fidelidade (art. 1727 do CC/02) e lealdade (art.1566 do

CC/02). 151

Em entendimento contrário à regulamentação das famílias paralelas e das

poliafetivas, a doutrinadora Regina Beatriz Tavares152 afirma de maneira radical que

esta nova configuração representa uma tentativa de destruição do valor da família

brasileira e do princípio da monogamia que rege o direito de família brasileiro. No Brasil,

a poligamia não é autorizada e sua prática está tipificada no art. 235 do Código Penal.

Ainda, de acordo com o art.235, §1º do mesmo diploma legal, se o segundo cônjuge

tiver ciência do primeiro, pode ele também ser punido.

Já para Maria Berenice Dias (2007, p. 195-196): Os relacionamentos paralelos,

além de receberem denominações pejorativas, são condenados à invisibilidade.

Simplesmente a tendência é não reconhecer sequer sua existência. Somente na

hipótese de a mulher alegar desconhecimento da duplicidade das vidas do varão é que

tais vínculos são alocados no direito obrigacional e lá tratados como sociedades de

fato. Muitas uniões que persistem por toda uma existência, muitas vezes com extensa

vigente à data do óbito, consoante iterativa jurisprudência dos Tribunais Superiores e desta Corte. 3. É presumida a condição de dependência do companheiro, face às disposições contidas no artigo 16, I e § 4º, da Lei 8.213/91. 4. Necessidade de comprovação da união estável, para fim de caracterizar a dependência econômica da companheira, face às disposições contidas no artigo 16, I e § 4º, da Lei 8.213/91. 5. Comprovado nos autos que a autora e a ré eram concomitantemente companheiras do segurado falecido, fazem jus ao rateio do pagamento do benefício de pensão por morte do instituidor. (TRF-4 - AC: 50390071320154049999 5039007-13.2015.404.9999, Relator: ROGERIO FAVRETO, Data de Julgamento: 15/12/2015, QUINTA TURMA, Data de Publicação: D.E. 17/12/2015). 152

SILVA, Regina Beatriz Tavares. Crítica ao Projeto de Lei Estatuto das Famílias. Disponível em: <http://reginabeatriz.com.br/a-prof-a-regina-beatriz-presidente-da-adfas-critica-o-pl-estatuto-das-familias-na-televisao/> Acesso em: 25 set. 2016.

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prole e reconhecimento social, são simplesmente expulsas da tutela jurídica. De

qualquer forma, ―negar a existência de famílias paralelas – quer um casamento e uma

união estável, quer duas ou mais uniões estáveis – é simplesmente não ver a

realidade‖. 153

Não entendo que esse tipo de relação seja considerada aviltante à família

matrimonial, tanto com relação à família civil ou quanto a eclesiástica. A

regulamentação do relacionamento amoroso entre dois ou mais indivíduos sob a forma

de contrato público não agride a espécie tradicional de família, haja vista que os

poliafetivos não se tornariam pessoas casadas, mas tão somente teriam reconhecidas

juridicamente a sua união. Caso seja aceita em um futuro como uma espécie familiar,

seus efeitos jurídicos serão os mesmos estabelecidos pela união estável. Nesses

casos, as consequências jurídicas de um possível rompimento se multiplicariam pelo

número de parceiros existentes: pensão e sucessão, por exemplo.154

Dessa maneira, parece dúbio o cumprimento do dispositivo do art. 5º, VIII da

Constituição Federal de 1988, pois ao mesmo tempo em que o legislador concede a

liberdade religiosa, a restringe com posição não permissiva à escolha de uma união

poliafetiva por uma parte dos cidadãos, embora seja o Estado laico, que em tese é

aquele que deve aceitar diversas religiões e credos. Assim surge a dúvida: o Estado

Brasileiro é efetivamente laico? A monogamia está acima do princípio da liberdade

religiosa? A simultaneidade familiar representa uma quebra da monogamia?

Pelo exposto, antes de uma possível regulamentação da família poliafetiva é

imperioso discutir sobre melhores interpretações sobre o tema. Se a dignidade da

pessoa (art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988) consiste em dividir o amor com

quantas queira, se a busca da felicidade consiste na união com mais de um parceiro,

153 MALUF, Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus. A Família na Contemporaneidade – Aspectos Jusfilosóficos. pag. 227 apud MALUF, 2012, p. 283. Disponível em: http://editorarevistas.mackenzie.br/index.php/tint/article/viewFile/5017/3829. Acesso em: 25 set. 2016. 154

Foi divulgada em agosto de 2012 uma Escritura Pública de União Poliafetiva que, de acordo com a tabeliã de notas e protestos da cidade de Tupã, interior de São Paulo, Cláudia do Nascimento Domingues, pode ser considerada a primeira que trata sobre uniões poliafetivas no Brasil. Ela, tabeliã responsável pelo caso, explica que os três indivíduos: duas mulheres e um homem, viviam em união estável e desejavam declarar essa situação publicamente para a garantia de seus direitos. In: http://www.ibdfam.org.br/noticias/4862/novosite.

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desde que haja boa-fé entre todos os integrantes dessa relação é possível a existência

de uniões poliafetivas. Se o Brasil é um Estado Democrático de Direito intitulado como

laico, não há porque uma posição moral religiosa sobre relacionamentos se sobrepor a

outros tipos de moralidade, pois assim como há liberdade religiosa, onde inclusive

algumas autorizam o casamento poligâmico, o óbice do legislador à regulamentação da

poliafetividade estaria impedindo a própria autonomia de culto de algumas religiões.

Ademais, em um Estado Democrático de Direito e laico, a monogamia deveria ser, na

verdade, voluntária e não obrigatória, haja vista não ser um princípio.

É relevante, no que diz respeito a esta questão, a observação de Stloze e

Pamplona:

―Pensamos que a fidelidade é (e jamais deixará de ser) um valor juridicamente tutelado, e tanto o é que fora erigido como dever legal decorrente do casamento (1.566, CC/2002) ou da união estável (1.724, CC/2002). Aliás, a violação desse dever aliada à insuportabilidade da vida em comum, poderia, segundo norte pretoriano, não somente resultar na dissolução da união conjugal ou da relação de companheirismo (o que depende, basicamente, da autonomia da vontade dos interessados, na atual disciplina normativa do tema), mas também em consequências indenizatórias. Com isto, no entanto, não se conclua que, posto a monogamia seja uma nota característica do nosso sistema, a fidelidade traduza um padrão valorativo absoluto. O Estado, à luz do princípio da intervenção mínima no Direito de Família, visto linhas acima, não poderia, sob nenhum pretexto, impor, coercitivamente, a todos os casais, a estrita observância da fidelidade recíproca. ‖

155

Com a ciência de que esse tema ainda irá provocar grandes discussões, deve-se

pontuar que o Direito deve observar atentamente as alterações das arrumações

familiares, que são distintas. Porém, é preciso ter cautela com os impactos da pós-

modernidade, que ao mesmo tempo que une, afasta. A família sofre com essas

mudanças. A geração atual sofre de debilidade moral, pois baseia suas relações em um

consumismo de massa, procurando apenas a quantidade, desprezando a qualidade e

desvalorizando o amor. Assim, muitos relacionamentos tornam-se múltiplos, efêmeros e

informais.

Assim, rebatendo o eco das posições contrárias às uniões poliafetivas, com

fundamento da liberdade e da dignidade humana, afirma-se que há moralismo advindo

155

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito civil: volume 6: direito de família: as famílias em perspectiva constitucional. 6. Ed. Rev. e atual. de acordo com o novo CPC. São Paulo. Saraiva, 2016. p. 109

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de valores pessoais fortes que giram em torno da monogamia, tais como ciúme, amor,

traição, emoção, direitos, culpa, lar, solidão, inveja e dinheiro. Não se trata de banalizar

a família monogâmica, que é uma opção de projeto familiar fundamental para a

existência de relações duradouras, mas cada um tem o direito de possuir suas

convicções individuais, enquanto que o real modelo de família não deve ser um padrão

estabelecido pela sociedade, mas uma opção livre de seus membros quanto à forma de

buscar suas realizações. Ademais, o caput do artigo 226 da Constituição Federal de

1988 consagrou o princípio da pluralidade de famílias, merecendo proteção do Estado

qualquer agrupamento familiar que se enquadre nesse contexto.

4.1.3. As lacunas do ordenamento jurídico brasileiro com relação à família

homoafetiva

Em maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a possibilidade

de união estável entre dois homens ou duas mulheres, através do julgamento da Ação

Direta de Inconstitucionalidade (Adin nº 4277), afirmando que essa união homossexual

tem os mesmos efeitos jurídicos da união estável entre pessoas de sexo

diferente. Embora não tenha reconhecido legalmente a possibilidade de casamento

entre pessoas do mesmo sexo, justamente pela carga religiosa que ainda permeia a

noção de casamento, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), posteriormente, autorizou

que os noivos, mesmo sendo de mesmo sexo, poderiam requerer a habilitação para o

casamento diretamente junto ao Registro Civil, sem precisar antes comprovar a união

para depois transformá-la em casamento.156 Inclusive, já existe no Conselho Nacional

de Justiça (CNJ) uma instrução nesse sentido157.

Tais mudanças são louváveis, pois aduzir que antes um sobrinho distante era

beneficiado com a morte de um tio em detrimento do companheiro homoafetivo é

156

Cartórios de todo o Brasil não poderão recusar a celebração de casamentos civis de casais do mesmo sexo ou deixar de converter em casamento a união estável homoafetiva, como estabelece a Resolução n. 175, de 14 de maio de 2013, aprovada durante a 169ª Sessão Plenária do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Disponível em: http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/destaquesNewsletter.php?sigla=newsletterPortalInternacionalDestaques&idConteudo=238515. Acesso em: 25 set.2016. 157

Resolução Nº 175 de 14/05/2013.

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recordar a injustiça que havia simplesmente porque a pessoa escolheu viver uma união

amorosa homoafetiva. De fato, a razão para a omissão do legislador constituinte era

baseada exclusivamente no preconceito. Por outro lado, a realidade gritava às portas

do Judiciário toda vez que um casal de homossexuais pedia a proteção de sua relação,

baseados nos direitos fundamentais, em especial o da dignidade da pessoa humana

(art. 1, III, da CF/88).

Contudo, apesar da garantia legal de outros direitos homoafetivos, ainda não há

na lei um artigo que autorize expressamente a adoção conjunta por parceiros

homoafetivos. Segundo a norma jurídica pátria, a adoção pode ser feita individualmente

por qualquer pessoa, independentemente do estado civil, fato que amplia as

possibilidades de realização do ato. Porém, conjuntamente, só podem adotar homem e

mulher, casados ou que vivam em união estável. Isso está disposto no artigo 1.622 do

Código Civil e demonstra o quanto ainda carece de tutela todos os tipos de arranjo

familiar, preconceitos muitas vezes de ordem religiosa que estão enraizados num

Estado que se diz laico.

4.1.4 Estatuto das Famílias x Estatuto da Família

É exatamente devido ao complicado assunto terreno das transformações

familiares da sociedade plural, evidenciando a formação de novos núcleos familiares

constituídos no plano fático, mas não previstos em sua totalidade na lei, que o Instituto

Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM)158 se empenhou em construir o Projeto de Lei

n. 2.285/2007, intitulado ―Estatuto das Famílias‖ (PL 470/2013), que pretende

reestruturar o Direito de Família pátrio, tendo em vista que o atual Código Civil, que

data de 2002, e que foi concebido no final dos anos 1960 encontra-se defasado sobre o

tema. Mencionado projeto foi encabeçado pelo Deputado Federal Sérgio Barradas

158

O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) é uma entidade técnico-científica sem fins

lucrativos reconhecida pelo Ministério da Justiça como de Utilidade Pública Federal que tem o objetivo de

desenvolver e divulgar o conhecimento sobre o Direito das Famílias, além de atuar como força

representativa nas questões pertinentes às famílias brasileiras. Desde a sua fundação, vem trabalhando

para adequar o atendimento às diversidades e especificidades das demandas sociais que recorrem à

Justiça. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/conheca-o-ibdfam/historia. Acesso em: 27 ago. 2016.

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Carneiro e seu encaminhamento do Senado Federal foi confiado ao senador Eduardo

Suplicy. O objetivo do ―Estatuto das famílias‖, portanto, é o de promover a igualdade e a

liberdade de todas as espécies de família da sociedade pós-moderna, com base em

valores consagrados nos princípios fundamentais e nas garantias constitucionais.

Após vários meses de debates, a comissão científica do IBDFAM, ouvindo os

membros associados, concluiu que, mais que uma revisão, seria necessário um

estatuto autônomo, desmembrado do Código Civil, até porque seria imprescindível

associar as normas de direito material com as normas especiais de direito processual.

Não é mais possível tratar questões visceralmente pessoais da vida familiar,

perpassadas por sentimentos, valendo-se das mesmas normas que regulam as

questões patrimoniais, como propriedades, contratos e demais obrigações. Essa

dificuldade, inerente às peculiaridades das relações familiares, tem estimulado muitos

países a editarem códigos ou leis autônomas dos direitos das famílias. Outra razão a

recomendar a autonomia legal da matéria é o grande número de projetos de leis

específicos, que tramitam nas duas Casas Legislativas, propondo alterações ao Livro

de Direito de Família do Código Civil, alguns modificando radicalmente o sentido e o

alcance das normas atuais. Uma lei que provoca a demanda por tantas mudanças, em

tão pouco tempo de vigência, não pode ser considerada adequada. Eis porque, também

convencido dessas razões, submeto o presente projeto de lei, como Estatuto das

Famílias, traduzindo os valores que estão consagrados nos princípios emergentes dos

artigos 226 a 230 da Constituição Federal. A denominação utilizada, ―Estatuto das

Famílias‖, contempla melhor a opção constitucional de proteção das variadas entidades

familiares. No passado, apenas a família constituída pelo casamento – portanto única-

era objeto de direito de família. Optou-se por uma linguagem mais acessível à pessoa

comum do povo, destinatária maior dessas normas, evitando-se termos excessivamente

técnicos ou em desuso. 159

Porém, paralelo ao projeto ―Estatuto das Famílias‖ tramita igualmente no

Congresso Nacional o projeto de lei intitulado ―Estatuto da Família‖ (PL 6.583/2013),

que também discute questões ligadas às relações familiares. São dois estatutos

159

Passagem da Justificativa do Projeto n. 2.285/07. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/artigos/Estatuto_das_Famílias.pdf. Acesso em: 31 ago. 2016.

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151

totalmente distintos e diametralmente opostos. Enquanto o ―Estatuto das Famílias‖ traz

um conceito plural, extensivo e inclusivo de família, o ―Estatuto da Família‖ insiste na

permanência de um modelo cristão para o ordenamento jurídico laico brasileiro, onde

família seria apenas o casamento ou união estável entre homens e mulheres e seus

filhos, sem qualquer viés democrático e igualitário, e desprovido de princípios e valores

que regem o Direito das Famílias moderno, como a socioafetividade.

Portanto, é preciso cautela para não confundir os projetos, visto que há

diferenças profundas nas duas propostas. Esta tese defende o ―Estatuto das Famílias‖,

que embora necessite de eventuais ajustes técnicos, pugna pela obediência aos

princípios liberais do Estado Democrático de Direito, no qual família é plural. Enfatize-

se, insistentemente, que o respeito ao direito das famílias não representa uma afronta

aos dogmas da Igreja, pois o Estado é laico e uma vez que garante a liberdade

religiosa, esse princípio deve ser harmonizado com a autonomia privada dos

participantes de uma família, que justamente por terem liberdade de escolha religiosa,

podem escolher viver o modelo de família que lhes convier. Dessa forma, não há razão

para Estado e Igreja entrarem em conflito no tocante a questões que dispõem sobre as

famílias, pois cada um tem uma função distinta na esfera pública. A Igreja deve ser uma

opção para o cidadão brasileiro, enquanto o Estado deve garantir a liberdade religiosa

que culmina na liberdade para o exercício de modelos de família plurais.

Nesse diapasão, nota-se a evolução histórica do conceito de família, que nos

dias atuais assume-se plural e dotada de múltiplos costumes e valores. O

reconhecimento de todas as novas modalidades de família é um desafio para o Direito

de Família contemporâneo, que por isso, precisa de aprofundamento da análise, crítica

e reconstrução com base em fundamentos jusfilosóficos sólidos capazes de sedimentar

o assunto, em busca de uma interpretação justa para o Direito. É importante que haja a

superação estatal de conhecimentos conservadores e meramente religiosos sobre o

tema, de maneira a enfatizar os princípios e teorias nesta tese defendidos em benefício

da efetividade do Direito das famílias, pois a história da família pós-moderna revela que

o mais importante de qualquer relação é a busca da felicidade, valorizando-se o afeto e

a autonomia do indivíduo.

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4.2 Construindo pontes entre liberdade religiosa e o direito das famílias

4.2.1 Princípios jurídicos que devem permear o diálogo entre liberdade religiosa e

o direito das famílias

O princípio da cooperação tem como pressuposto a ausência de autoridade

estatal no interior das atividades da Igreja. Ele parte da ideia já mencionada de respeito

à liberdade religiosa, que no caso da Católica propõe a caminhada do povo de Deus em

busca da salvação através da palavra de Jesus Cristo. Segundo os seus defensores, as

vantagens da justificação católica é a de trilhar um caminho entre o mundo justo e

fraterno e apoiar-se na preferência pela ajuda aos pobres.

Contudo, em matéria de família é preciso avaliar esta colaboração de maneira

mais acurada, pois sabe-se que para o direito canônico só existe uma espécie de

família, regulada pelo direito matrimonial canônico: o casamento celebrado entre um

homem e uma mulher. Nas palavras Edson Luiz Sampel:

―O matrimônio, para os católicos, é sempre indissolúvel. Trata-se, com efeito, de injunção expressa de Jesus. O direito da Igreja, portanto, não poderia acutilar um preceito de natureza divina. Entretanto, a justiça eclesiástica, composta de juízes, defensores do vínculo, notários e advogados canônicos, ao apreciar o matrimônio que lhe é submetido, manifesta-se tão-somente acerca de sua validade, isto é, verifica, no curso de um processo judicial, se, à época do matrimônio in fieri (matrimônio ato) estiveram ou não presentes os pressupostos necessários para a validez do negócio jurídico‖

160.

Crise do princípio da colaboração da Igreja e do Estado ou respeito à liberdade

religiosa? Para dar resposta a essa pergunta é necessário invocar os princípios da

independência jurídica e o da incompetência recíproca. O primeiro é uma lição básica

do laicismo do Estado, que cunha pela autonomia de cada instituição para a tomada de

decisões que reflitam na vida social. Assim, a igreja precisa ser livre para desempenhar

suas atividades segundo o Direito Canônico, assim como o Estado precisa ser livre de

influências religiosas para regulamentar o direito positivo, para poder então atuar cada

dia mais em benefício das sociedades plurais existentes. O segundo princípio cunha

pelo respeito ao Estado laico, o qual veda a elaboração de leis religiosas de impacto

160

SAMPEL, Edson Luiz. Introdução ao Direito Canônico. São Paulo: LTR, 2001. p. 28.

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sobre a totalidade dos cidadãos, uma vez que é competência privilegiada do

ordenamento civil leis com eficácia erga omnes. No mesmo sentido, a liberdade de fato

e de direito da Igreja para continuar com sua missão divina.

4.2.2 Possíveis Soluções: um Estado laico, mas não laicista.

Ao acompanhar as constantes mudanças sociais, o Direito de família apresenta-

se como versátil e com tendência evolutiva. O Direito Civil, principalmente em matéria

de família, não pode desprezar a pessoa de carne humana e preocupar-se somente

com o indivíduo abstrato, pólo de relações patrimoniais. O homem é um animal gregário

e sujeito à liberdade de constituir ou não uma família, portanto, sem qualquer motivo

justo a imputação de um único modelo fechado e formalizado de família. Pensar o

contrário seria vedar os olhos para a realidade social gritante da diversidade familiar.

Porém, ainda há uma bancada conservadora, que força o nosso ordenamento

jurídico a não tutelar todas as espécies familiares, com justificativas religiosas de crise

de valores da sociedade161, olvidando do contexto laico sob o qual a nossa constituição

se firma162. Sobre os tópicos da modernidade a Igreja mantém seu conservadorismo

através do direito canônico, considerando o matrimônio celebrado no foro cível mero

concubinato, bem como julgando inválido o divórcio cível. A Igreja não reconhece o

direito de o Estado anular um matrimônio eclesiástico formalmente criado, assim como

o direito eclesial não reconhece outro tipo de família que não o casamento.

Segundo Sampel, esta distinta inteligência da instituição matrimonial deve-se ao

fato de que o Direito Canônico enxerga no matrimônio não um mero contrato, mas uma

verdadeira aliança que visa sobretudo à geração e ao bem da prole. Para o Direito

161

O deputado Jair Bolsonaro e o deputado Silas Malafaia são conhecidos por manifestações contra a família homoafetiva. 162

A Bancada Evangélica no Parlamento é composta, em setembro de 2016, por 84 deputados/as federais e 3 senadores, num total de 87 parlamentares. A força da Assembleia de Deus como igreja que predomina na bancada evangélica na Câmara fica mantida, seguida da Igreja Universal do Reino de Deus e da Igreja Batista. Dos 84 parlamentares da bancada na Câmara, mais da metade (48) pertence a estas três igrejas (26 na primeira e 11 na segunda e na terceira). O presbiteriano tem 10 representantes e configura uma força entre as igrejas históricas. Os demais parlamentares seguem distribuídos em 25 denominações diferentes. Disponível em: http://www.metodista.br/midiareligiaopolitica/index.php/composicao-bancada-evangelica/. Acesso em: 31 ago. 2016.

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Canônico, é claro, tenta invalidamente o matrimônio a pessoa que está consorciada

segunda das normas da Igreja. Desta feita, mesmo que alguém obtenha uma sentença

de divórcio (rompimento do vínculo) no foro civil, em hipótese alguma poderá convolar a

novas núpcias, pois o matrimônio, para Igreja, é sempre indissolúvel, por injunção

taxativa de nosso Senhor Jesus Cristo. Somente em sentença, proferida por tribunal

eclesiástico, na qual se ateste a nulidade (inexistência) do matrimônio in fieri, poderá

dar azo à celebração de um novo matrimônio. Eis o escólio do saudoso Pe. Pegoraro,

defensor do vínculo, promotor de justiça e professor em São Paulo: ―A Igreja, em sua

doutrina milenar, sempre se declarou incompetente em dissolver o vínculo que nasce

do sacramento do matrimônio validamente celebrado e consumado, assim como

declara incompetente qualquer outra autoridade. O caminho que ela percorre é

diferente. Ela aprofunda uma compreensão cada vez maior das exigências e das

condições necessárias para assumir este projeto de vida de forma definitiva, ampliando

a possibilidade de declaração de nulidade do matrimônio celebrado. Muitos

casamentos, que aparentemente parecem válidos, são passíveis de sentença de

nulidade, pois sua realidade interior não está suficientemente constituída. 163

É cediço que o exercício concomitante das liberdades individuais é um assunto

intrinsicamente relacionado à falta de diálogo concreto entre Estado e Igreja,

principalmente no quesito multiplicidade familiar. De um lado a opinião da Igreja como

instituição moral, que não reconhece o direito das famílias plurais por um motivo

sagrado, de outro o Estado, que embora laico, ainda não se desprendeu totalmente da

raiz histórica do catolicismo como religião majoritária e presente na formação do estado

brasileiro, assim dificultando a regulamentação legal e bem delineada em matéria de

família de todas as espécies familiares.

O problema relativo aos novos arranjos familiares existentes na pós-

modernidade está diretamente ligado à correta compreensão do que vem a ser

realmente o tão invocado ―bem comum‖. Essa questão, norteada pela histórica e

complexa relação entre Estado secularizado e Igreja cristã de Deus carece de um rigor

científico para aceitar no mundo jurídico atual a liberdade da família laica e não laicista.

163

Sampel, Edson Luiz. Introdução ao Direito Canônico/ São Paulo: LTR, 2001. p. 79-80.

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Importante frisar que não é uma atitude cristã impedir a felicidade do outro por

questões de escolhas individuais ou excluir uma pessoa do amparo porque ela é

diferente ou pertence a um núcleo familiar não tradicional. A essência do cristianismo é

a inclusão pela união e pelo amor, e não a segregação. Sendo assim, aufere-se que a

ruptura entre Estado e Igreja entre a Idade Média e a Modernidade não foi suficiente

para separá-los. Estado e Igreja são duas instituições importantes para a sociedade,

sendo que a rivalidade entre ambos deve ser superada, de modo que cada um

reconheça seu papel diante das famílias, para que haja uma conivência de pensamento

no tocante ao respeito concomitante entre liberdade religiosa e o direito das famílias

plurais.

A igreja possui seu papel relevante na sociedade, não devendo o Estado intervir

na sua esfera. Em compensação, igualmente a Igreja deve respeitar o Estado laico não

laicista. É a partir desta ideia que o bom cristão não pode impedir a regulamentação

legal de novos modelos familiares, pois o que deve prevalecer para as famílias é a

elevação do afeto como um valor jurídico. A Bíblia afirma que ―onde dois ou mais

estiverem reunidos em meu nome, eu estarei entre vós‖ (MT, 18:20), o que significa

dizer que não necessariamente a melhor união é entre um homem e uma mulher. Por

uma interpretação cristã não fundamentalista, tranquilamente podem haver várias

espécies familiares, ali estando presente a figura do sagrado representada por Deus,

desde que elas sejam construídas sob a égide do amor.

Para Gisele Groeninga, ―o afeto entrou no mundo do direito através daquilo que

anteriormente lhe era excluído: as relações de filiação e as relações homoafetivas. A

busca da humanização do sujeito e as tentativas de compreensão das relações entre o

sentimento, o pensamento e a ação dirigiu-se para a busca do ser ético, que leva em

conta o individual sem perder de vista o coletivo tendo sempre em vista o conceito de

dignidade da pessoa humana. 164

Nesta perspectiva, para o Estado há uma dessacralização do conceito de família,

que por ser laica deve amparar também as entidades familiares não tradicionais. Isso

164

GROENINGA, Giselle Câmara. Direito e psicanálise: um novo horizonte epistemológico. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.) Afeto, ética, família e o novo Código Civil. Belo Horizonte. Del Rey; IBDFAM 2004. p. 259 e 262.

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não significa dizer que o sagrado perdeu lugar frente ao Estado laico, mas que a

história da família pós-moderna deve se assentar primordialmente no sentimento do

amor, respeitando-se os inúmeros arranjos familiares através da observância aos

princípios da autonomia da vontade, dignidade da pessoa humana e da felicidade.

Nossas sociedades modernas se consideram democráticas. Este adjetivo

assumiu um sentido diferente do que tinha na Grécia antiga: o tema da força (kratos)

passa agora a ser o povo todo e não apenas um clube de machos não escravos: na

essência, a força exercida mudou de natureza. O povo herdou a soberania reivindicada

na Idade Média pelos papas, depois na aurora dos tempos modernos pelos reis dando-

lhe uma extensão universal: ele é a única fonte de legitimidade política. E revela a

tendência de se tornar fonte de todo valor ético. A lei se reduz a uma mera convenção

de uma sociedade organizando a si mesma. O termo ―autonomia‖ assume um sentido

inédito para designar essa situação. 165

No nível teórico, as relações entre o descritivo e o normativo se apresentam sob

um novo aspecto: o ser (is, Sein) e o dever ser (ough, Sollen), cuja distinção tornou-se o

bê-á-bá da filosofia moral, só se separam no fim do século XVIII depois de uma

machadada aplicada por Hume, na Escócia, e por Kant, na Prússia. Mas na prática, ou

talvez compensando o primeiro fenômeno, as sociedades modernas vivem como se

exercessem sobre si mesmas uma pressão que tende a identificar o que é do que deve

ser. Essa pressão suave se revela talvez de fato mais tirânica que nunca, e a prova

disso é o caráter central da ideia de normalidade. A norma, como regra do direito e,

antes de qualquer coisa, segundo a etimologia (norma) do retilíneo, torna-se o ―normal‖:

a descrição e a valorização coincidindo nela. A sociedade defende essa norma exibindo

um sistema de disciplina com o qual ela se confunde.166

Segundo André Fischer, a sociedade vem se conscientizando de que existem

outras possibilidades e relacionamentos a serem aceitas. Desta sorte, legiões de

homens e mulheres, com diversa orientação sexual, começam a experimentar novas

165

BRAGUE, Remi. A lei de Deus. História filosófica de uma aliança. Tradução: Lúcia Pereira de Souza. Edições Loyola. São Paulo, 2009. p. 309. 166

BRAGUE, Remi. A lei de Deus. História filosófica de uma aliança. Tradução: Lúcia Pereira de Souza. São Paulo: Loyola, 2009. p. 309 e 310.

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fórmulas de relacionamento afetivo, do namoro ao casamento, com todas as

repercussões e desdobramentos daí decorrentes, donde se destaca uma maior

abertura à tolerância e à diversidade. 167

Quando Jurgen Habermas descreve a ―moralidade pós-convencional” ou quando

Claude Lefort menciona a dissolução dos ―marcos de referência da certeza”, ambos se

referem ao fato de que no mundo moderno já não é possível configurar uma ideia

substantiva acerca do bem que venha a ser compartilhada por todos. O pluralismo,

entretanto, possui, pelo menos, duas significações distintas: ou o utilizamos para

descrever a diversidade de concepções individuais acerca da vida digna ou para

assinalar a multiplicidade de identidades sociais, específicas culturalmente e únicas do

ponto de vista histórico. 168

No âmbito da filosofia política contemporânea, os representantes do pensamento

liberal- John Rawls, Ronald Dworkin e Charles Larmore, dentre outros- adotam o

primeiro significado do pluralismo e descrevem as democracias modernas como

sociedades onde coexistem distintas concepções individuais acerca do bem. Quanto à

segunda significação do pluralismo, são os representantes do pensamento comunitário,

Charles Taylor e Michael Walzer, dentre outros, que a utilizam para salientar a

multiplicidade de identidades sociais e de culturas étnicas e religiosas que estão

presentes nas sociedades contemporâneas. De outra parte, Jurgen Habermas-

debatendo com liberais e comunitários e representando o que aqui designamos por

pensamento crítico-deliberativo - acredita que as duas dimensões do pluralismo- isto é,

a diversidade das concepções de vida que compartilham valores, costumes e tradições

- estão presentes nas democracias contemporâneas e não há como optar por uma em

detrimento da outra. No entanto, e a despeito das diferentes maneiras através das

quais descrevem e compreendem as sociedades democráticas contemporâneas,

liberais, comunitários e crítico-deliberativos acreditam que é possível formular e

justificar um ideal de justiça- especialmente de justiça distributiva- adequado ao

167

FISCHER, André. Como o mundo virou gay?: crônicas sobre a nova ordem sexual. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008. p. 13. 168

CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva. Elementos da Filosofia Constitucional Contemporânea. 3 ed. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2004. p. 1.

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158

pluralismo do mundo moderno. 169

Quando os liberais associam o pluralismo às diversas concepções individuais

acerca da vida digna, optam claramente por conferir prioridade aos direitos

fundamentais em detrimento da soberania popular. Seja em Rawls, seja em Larmore, o

Estado, em uma sociedade democrática liberal, deve ser neutro em relação às diversas

concepções individuais acerca do bem. É ―fato‖ do pluralismo- ou a existência do

desacordo razoável- que impede a interferência do Estado em relação às visões

substantivas dos indivíduos. A prioridade dos direitos fundamentais é o que assegura a

configuração de um Estado neutro, isto é, sem compromissos culturais que possam ir

além da liberdade individual e do bem-estar dos cidadãos.170

Nas famílias pós-modernas surgem valores, anseios e desejos de indivíduos e

grupos com noção distinta de moralidade. Para a convivência pacífica entre todos

esses atores sociais é preciso conservar princípios e regras que assegurem o diálogo

entre Igreja e Estado, e que promovam políticas públicas para julgar as reivindicações

nos casos de conflitos, sob pena de perde-se a própria autonomia dos indivíduos livres.

Assim, por todo lado que se analisa a questão verifica-se que pensamentos retrógrados

dificultam o diálogo entre a Religião e o Estado. É preciso abominar as distorções de

um lado ou outro e eliminar a disputa entre o sagrado e o terreno, em prol do bem

comum, que não necessariamente é a vontade coletiva, pois existem as minorias. Com

esta compreensão será possível regulamentar todas as espécies familiares e

consequentemente remodelar as leis que regulamentam o tema.

Algumas pessoas insistem em considerar que a moralidade não é relevante para

descobrir o que é o Direito, para que ele serve e qual é a função das leis. Contudo,

percebe-se desde Aristóteles, em seu tratado sobre a Filosofia moral, a preocupação

em mostrar que os campos se conectam. Sendo assim, a natureza de algumas leis

também traz um viés moral, principalmente no que diz respeito ao Direito de Família,

que advém essencialmente da moral e dos costumes de um povo.

169

Ibidem. p.1-2. 170

Ibidem. p. 129-130.

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Nesses casos, quem antecipam as mudanças são a justiça171 e a doutrina. A

capacidade do homem de optar por valores distintos insurge a discussão sobre a

verdade relativa e o direito de liberdade. Tal discernimento é de origem secular,

encontrando subsídio também em Agostinho: a noção de saber julgar o que é certo e o

que é errado para a lei, mas de acordo igualmente com análise da moral de mal ou

bem, intrinsicamente tomada de racionalidade. O homem, ao passo em que é um ser

individual, associa-se aos outros para reunião de fins, que são racionalmente melhor

obtidos através da colaboração de todos. A sociedade nada mais é do que a reunião de

vários núcleos familiares, liderada por um governante e com leis que devem ser

prudentes para o bem comum.

A questão central do liberalismo passa a ser, então, saber como é possível existir

uma sociedade justa, boa e estável. O ideal do liberalismo é, portanto, manter uma

sociabilidade em que as pessoas possam viver dentro de um pluralismo moral, religioso

e político razoável. O pressuposto básico do liberalismo é que as pessoas são livres

para perseguirem suas próprias concepções do bem.

O mais importante é que o Estado cumpra seu papel no que concerne à laicidade

que garante a pluralidade familiar e a liberdade religiosa, À Igreja devem ser conferidas

condições de desempenhar a sagrada missão em favor das famílias, ao mesmo tempo

em que o Estado deve agir de acordo com seu fundamento laico, como exaustivamente

exposto. Com efeito, a Carta magna possui uma plêiade de dispositivos que visam

tutelar a Igreja e a Família enquanto instituições e, por via oblíqua, o matrimônio. É

extremamente necessário que o cidadão, no sentido cabal, vale dizer, conhecedor dos

direitos e deveres civis, exija das autoridades civis o respeito devido à liberdade de

escolher em qual arranjo familiar quer pertencer.

Dessa forma, a importância deste trabalho decorre justamente da constatação

das distintas visões sobre o tema ‗família‘ (ou ‗famílias‘), a religiosa e a do Estado laico

brasileiro, e da necessidade de aferição de suas diferenças, direitos e deveres. É

171

Nesse plano, a justiça é puramente a eliminação do arbitrário subjetivo e a instauração da possibilidade de uma jurisdição neutra, imparcial. É a solução imparcial do conflito, independentemente de um juízo de conteúdo da lei aplicável, ou da própria decisão. Justa é a decisão imparcial, não arbitrária.

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preciso ter respeito à liberdade religiosa, estimulando a cooperação entre Igreja e

Estado, numa separação respeitosa entre ambos, em prol da sociedade. A Igreja é uma

instituição que faz parte do corpo político e exerce um papel social importantíssimo.

Assim, o fato de dogmas religiosos não estarem contidos no Direito posto não significa

dizer que estão incorretos. O diálogo entre Estado e Religião consiste justamente em

compreender que existem diferentes abordagens acerca das famílias. A família pode

continuar imutável para o modelo cristão, se resumindo à união amorosa entre um

homem e uma mulher, assim como ela pode (e deve) ser plural para o Estado. Dessa

forma, a Igreja deve agir com razoabilidade, haja vista que o Estado brasileiro é laico,

sendo que não é possível dar efetividade à liberdade religiosa sem dar liberdade às

diversas espécies de família.

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161

CONCLUSÃO

Como vimos ao longo do trabalho, são significativas as diferenças entre o

discurso religioso e a ideia pós-moderna sobre o conceito de família. Enquanto a Igreja

opta pelo modelo singular que pressupõe a existência da família a partir da união entre

apenas um homem e uma mulher, o Direito das Famílias pós-moderno adota uma

postura pluralista compatível com os ideais do Estado Democrático de Direito, com

traços do pensamento laico e liberal. Destes diferentes traços inicias decorrem distintas

opções metodológicas- o construtivismo liberal para as famílias de todas as espécies e

o particularismo dos dogmas da Igreja no âmbito familiar.

Quando enfrentam o tema do direito também há discordâncias entre os

doutrinadores modernos de Direito de Família. Afinal, ainda há os que estabelecem o

paralelo entre família e o modelo monogâmico cristão dela. No entanto, é razoável

afirmar que a doutrina majoritária orienta a interpretação do fenômeno com base em

concepções individuais acerca do bem em conjunto com a variedade de famílias plurais

multiplicidade, afirmando que são impactos da pós-modernidade que precisam ser

aceitos pelo ordenamento jurídico brasileiro- a partir da elaboração de normas justas e

baseadas nos princípios norteadores do Direito das Famílias- a dignidade da pessoa

humana, a isonomia e o respeito às diferenças, a pluralidade familiar, a autonomia e a

menor intervenção estatal, dispostos na Constituição Federal brasileira, e, não menos

importante, o princípio da afetividade.

No que diz respeito à Igreja, há a manutenção da tradição enquanto base moral

sobre a qual se assentam as famílias cristãs. Isto se revela, como assinalamos, no

compromisso da Igreja Católica com a permanência do discurso de singularidade da

família, embora a imagem do novo Papado tenha levado a Igreja a um período de

reevangelização e, portanto, da aceitação de fiéis que não obedecem a todos os

dogmas da Igreja Católica. É precisamente por isso que o diálogo entre a liberdade

religiosa e o direito das famílias deve considerar o papel distinto que Estado e Igreja

exercem na esfera pública. Quanto ao Estado, frente ao fato do pluralismo, existe a

necessidade de garantir proteção a todas as espécies de família da atualidade, pois a

família é o lugar de realização do projeto pessoal de vida e da busca da felicidade,

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sendo que seus direitos fundamentais gozam de prioridade normativa sobre qualquer

concepção religiosa de bem, ainda que a população brasileira seja majoritariamente

católica. Daí a necessidade de uma interpretação legal orientada pelo modelo laico de

Estado, já contida no art. 19, I, da Constituição Federal.

O termo ―dignidade da pessoa humana‖ é um símbolo kantiano do começo do

século XIX. Apesar de não ter sido criado por Kant, foi desenvolvida pelo filósofo,

principalmente na sua obra ―Fundamentação da metafísica dos costumes (1785) ‖. Na

busca da compreensão ética da natureza do ser humano, Kant utilizou a expressão

―dignidade da natureza humana‖, buscando que o homem fosse o fim e não meio de

todas as coisas. Com sua contribuição, o ideal de dignidade da pessoa humana foi

positivado nos ordenamentos jurídicos dos Estado Democráticos, resultando no

aumento de discussões políticas acerca dos ideais de liberdade e igualdade. Como se

pôde ver, tal princípio está profundamente ligado ao Direito das Famílias, pois sua

compreensão leva ao entendimento sobre o respeito e tratamento igualitário aos vários

núcleos familiares que hoje existem.

Se observarmos a argumentação de Kant acerca da ―dignidade da pessoa

humana‖, veremos ―que o homem não deve jamais ser transformado num instrumento

para a ação de outrem. Embora o mundo da prática permita que certas coisas ou certos

seres sejam utilizados como meios para a obtenção de determinados fins ou

determinadas ações, e embora também não seja incomum historicamente que os

próprios seres humanos sejam utilizados como tais meios, a natureza humana é de tal

ordem que exige que o homem não se torne instrumento da ação ou da vontade de

quem quer que seja. Em outras palavras, embora os homens tendam a fazer dos outros

homens instrumento ou meios para suas próprias vontades ou fins, isso é uma afronta

ao próprio homem. É que o homem, sendo dotado de consciência moral, tem um valor

que o torna sem preço, que o põe acima de qualquer especulação material, isto é,

coloca-o acima da condição de coisa. Ao tratar disso na Fundamentação da Metafísica

dos costumes, Kant é explícito em seus termos. O valor intrínseco que faz do homem

um ser superior às coisas (que podem receber preço) é a dignidade; e considerar o

homem um ser que não pode ser tratado ou avaliado como coisa implica conceber uma

denominação mais específica ao próprio homem: pessoa. Assim, o homem, em Kant, é

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decididamente um ser superior na ordem da natureza e das coisas. Por conter essa

dignidade, esse valor intrínseco, sem preço e acima de qualquer preço, que faz dele

pessoa, ou seja, um ser dotado de consciência racional e moral, e por isso mesmo

capaz de responsabilidade e liberdade‖.

O liberalismo de Kant, com efeito, não é, como se poderia supor, contrários às

religiões. Para ele, o conceito da religião é racional e resultante da moral.

Ainda, segundo sua concepção moral individual, o cristianismo seria a fé mais

convincente de todas, porém, Kant pregava a pluralidade de credos, ou seja, a

possibilidade de convivência pacífica entre os diversos tipos de fé.

A despeito dos profundos desacordos que separam Estado e Religião no debate

sobre a liberdade do Direito das Famílias no mundo contemporâneo, perpassamos por

variados momentos da relação entre aquelas instituições. Da antiguidade clássica que

confundia Religião com Estado, pois os cultos religiosos influenciavam em toda a

estrutura da cidade, até se chegar à Idade Média, onde a Igreja possuía forte influência

sobre o Estado, podendo dispor sobre a ordem da sociedade de maneira ampla. Por

fim, a análise do mundo moderno secularizado, onde vimos a pretensão de alguns

autores daquele período pela separação total entre Estado e Igreja. Assim, para a

garantia da efetividade do Direito pós-moderno contudo, o seria a consecução entre

Estado e Igreja.

O que Kant assinala pode ser utilizado no discurso moderno de famílias, pois

utiliza uma interpretação racionalmente construída a partir do princípio substantivo da

dignidade. A religião estatutária (igreja visível), para ele, é sempre um meio para atingir

a verdadeira religião. Portanto, se uma exposição de fé é divergente da moral, deve ser

substituída por outra mais adequada. Nessa linha de raciocínio, a sociedade deve

progredir moralmente até chegar ao ápice de seu desenvolvimento, que é a

comunidade ética sob leis de virtude, comandada por um legislador justo e que pode

retribuir a cada um de acordo com suas obras. Neste sentido, no mundo atual, no qual

já não é possível se apoiar em um conceito somente cristão de família dentro de um

Estado Democrático de Direito que se afigura como laico, resta apelar para a harmonia

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entre religião e Estado, de forma que cada um conheça seu papel distinto no espaço

público.

Se observarmos os argumentos formulados por muitos dos autores que

entendem pelo diálogo salutar entre Estado e Igreja, veremos que compartilham do

reconhecimento da existência da importante função da Igreja. Com efeito, não há o

evento da morte de Deus no mundo contemporâneo. Forte no exposto, o Brasil é um

Estado com a marca do teísmo no preâmbulo de sua Constituição, ou seja, está

presente a crença na existência de Deus, mas isso não significa dizer que o Direito de

Família deve ser cristão, pois também está presente a característica laica. Nesta tese

defende-se o Estado laico com característica de laicidade, estando presentes os

princípios da separação institucional entre Estado e Igreja e o princípio da colaboração

entre ambos em prol do bem comum. Isto posto, verifica-se que a confessionalidade do

Estado laico brasileiro assevera um Estado Democrático de Direito fixado em soberania

popular, igualdade, e liberdade, mas que não denota em ateísmo.

Portanto, além dos princípios norteadores do Direito das Famílias mencionados

acima, devem também permear o diálogo entre Religião e Estado os princípios da

colaboração, da independência jurídica e o da incompetência recíproca, isso tudo para

o benefício do direito das famílias brasileiras. Todos estes princípios conjugados se

desdobram nos fundamentos para a possibilidade de regulamentação de todas as

espécies de família, visto que há uma força normativa principiológica de garantia da

pluralidade familiar, constante na Constituição Federal de 1988, que é a luz do novo

Direito das Famílias. São os fundamentos filosóficos atrelados aos princípios elencados

que não admitirão as normas retrógradas para o Direito das Famílias ainda contidas no

Código Civil brasileiro e a superioridade do direito sobre os fatos reais que denotam a

existência de múltiplas espécies de famílias.

Os mais pessimistas falaram da morte de Deus. Não se trata de sinal de morte,

mas da religiosidade como uma opção privada do indivíduo. Já o futuro do direito das

famílias depende de um olhar cauteloso sobre sua ontologia e axiologia, que deve

prezar pela busca do reconhecimento e proteção de todos os núcleos familiares. Dessa

forma, considera-se urgente a conscientização do legislador frente ao clamor social que

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chega ao Judiciário como um problema, pois o formalismo do Código Civil atual ainda

se sobrepõe à essência do Direito, em alguns casos. É necessário, assim, um resgate

imediato dos fundamentos filosóficos que retomam o ideal de justiça.

Com a concepção de justiça- virtude moral, associada com a ideia de que a

Constituição é uma estrutura normativa que envolve um conjunto de valores, deve-se

defender os compromissos constitucionais com as diversas famílias brasileiras,

intimamente ligados à ideia de igualdade e autonomia da vontade. Para que a justiça

seja alcançada de forma efetiva para o Direito das Famílias, teremos que raciocinar a

partir do que é importante para a felicidade do homem- animal gregário.

É relevante, no que diz respeito a esta questão, a observação de Rodrigo da

Cunha no sentido de que ―Enfim, organizar juridicamente as intrincadas e complexas

relações familiares neste tempo de declínio do patriarcalismo, de pós-feminismo, de

avanços científicos e biotecnológicos, requer dos operadores do Direito a ampliação da

compreensão de que as relações jurídicas de família, antes, acima e depois de estarem

sustentadas nas regras e nos códigos, estão assentadas em uma principiologia jurídica,

cuja força motriz deve ser sempre em direção ao sujeito ético, que por sua vez

pressupõe o sujeito de desejo. E é por isto que não se pode mais falar em Direito de

Família, mas em Direito de Famílias. ‖

Conclui-se, portanto, que o diálogo entre liberdade religiosa e direito das famílias

é fundamental para o contexto contemporâneo, pois é importante para procurar

entender a necessidade de suprir lacunas do ordenamento jurídico brasileiro no tocante

ao Direito das Famílias. As instituições Estado e Igreja continuam existindo, aquele

neutro e laico, esta com papel fundamental para o bem das famílias de seus fiéis.

Espera-se, todavia, que ambas instituições funcionem em harmonia, de forma que o

verdadeiro ideal de justiça, sendo o bem comum, se converta também no direito do

homem enquanto ser individual detentor da liberdade de escolha de viver na espécie de

família que melhor lhe convier. Não há mais como falar em Direito de família no

singular, pois a justiça com a prática de virtudes morais deve respeitar as escolhas do

cidadão. Somente assim existirá um Direito das Famílias justo e comprometido com a

ideia laica de Estado Democrático de Direito.

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