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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação. Dilma Antunes Silva De pajem a professora de educação infantil: um estudo sobre a constituição identitária da profissional de creche São Paulo 2015

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação.

Dilma Antunes Silva

De pajem a professora de educação infantil: um estudo sobre a constituição

identitária da profissional de creche

São Paulo

2015

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação.

Dilma Antunes Silva

De pajem a professora de educação infantil: um estudo sobre a constituição

identitária da profissional de creche

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como

exigência parcial para obtenção do título de Mestre em

Educação: Psicologia da Educação, sob a orientação da Profª Drª Mitsuko Aparecida Makino Antunes.

São Paulo

2015

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Banca Examinadora

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Por que a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a

prova das coisas que se não veem (Hebreus 11)

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Agradecimentos

À minha família pelo amor inesgotável, pela compreensão e incentivo constantes. Por ser

minha fortaleza nas horas de angústia, de incerteza. Pelas palavras firmes, sábias, pelo

carinho algumas vezes imerecido.

Ao querido amigo Prof. Ms. Enésio Marinho pelo carinho dispensado a mim, pela

confiança depositada e pelos bons conselhos.

Aos mestres que participaram da minha formação: Profª Drª. Mitsuko Aparecida Makino

Antunes, minha orientadora, pessoa e educadora admirável; muitíssimo obrigada pelas

orientações, pelos conselhos, pela escuta e por me permitir sonhar; Profª Drª Laurinda

Ramalho de Almeida, sempre muito amável com seus alunos, obrigada pelas contribuições

valiosas e por prontamente aceitar o convite de participar da minha banca de Qualificação

e Defesa; Profª Drª Wanda Maria Junqueira a quem sou profundamente grata pelos

ensinamentos; Profª Drª Lindabel Delgado Cardoso, educadora, gestora e pesquisadora

engajada na luta pela defesa dos direitos das crianças e qualidade da educação infantil,

obrigada pela valiosa contribuição e pelo pronto aceite em participar da minha banca de

Qualificação e Defesa. A vocês todo meu carinho, repeito e admiração.

Às professoras que participaram deste estudo, cuja colaboração foi vital. MUITO

OBRIGADA!

A todas as crianças deste país, em especial, meus sobrinhos. A vocês, todo o meu amor!

A todas as professoras de educação infantil, em especial, aquelas com as quais convivi:

toda a minha gratidão e respeito.

Às amigas que me acompanharam em todos os momentos, obrigada por toda ajuda, pelo

carinho e amizade. Jamais saberei como retribuir.

Ao Edson pela gentileza, simpatia e profissionalismo.

À Capes pelo apoio financeiro.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 16

Sobre a identidade das professoras de educação infantil: um olhar para as produções

apresentadas no GT07 nas Reuniões Anuais da ANPED no período de 2004 a 2013 ........ 18

CAPÍTULO 1. A CRECHE NO BRASIL: UM BREVE HISTÓRICO ...................... 22

1.1 A educação infantil de zero a três anos ....................................................................... 23

1.2 Legislação Atual e Políticas Educacionais. ................................................................. 30

1.2.1 A Formação das professoras de creche .................................................................... 31

1.2.2 Educar, cuidar e brincar ........................................................................................ 36

1.3 Organização e funcionamento da educação infantil de zero a três anos ...................... 38

1.3.1 Organização dos agrupamentos na creche ............................................................... 39

1.3.2 Funcionamento ...................................................................................................... 40

CAPÍTULO 2. REFERENCIAL TEÓRICO ............................................................... 42

CAPÍTULO 3. A PESQUISA ....................................................................................... 46

3.1 Objetivos .................................................................................................................... 46

3.2 Concepção de homem para a Psicologia Sócio-histórica ............................................. 46

3.3 Procedimentos ............................................................................................................ 48

3.3.1 O cenário da pesquisa ............................................................................................. 50

CAPÍTULO 4. APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS........... 52

4.1 Conhecendo as educadoras ......................................................................................... 52

4.2 A origem humilde e as marcas da infância ................................................................. 56

4.3 Trajetórias pessoais e de profissionalização ............................................................... 64

4.4 Dimensão afetiva da prática pedagógica ..................................................................... 81

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 89

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 92

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ANEXOS

Anexo I- Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)

Anexo II- Entrevistas

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LISTA DE SIGLAS

ADI: Auxiliar de desenvolvimento infantil

ANPED: Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Educação

CLT: Consolidação das leis do trabalho

ECA: Estatuto da criança e do adolescente

EMEI: Escola municipal de educação infantil

EUA: Estados Unidos da América

GT: Grupo de Trabalho

LDBEN: Lei de diretrizes e bases da educação nacional

MEC: Ministério da Educação e Cultura

OIT: Organização Internacional do Trabalho

PDI: Professora de desenvolvimento infantil

PEI: Professora de educação infantil

PEIF: Professora de educação infantil e ensino fundamental I

PMSP: Prefeitura Municipal de São Paulo

RCNEI: Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil

SAS: Secretaria de Assistência Social

SEDIN: Sindicato dos Professores de Educação Infantil do município de São Paulo

TCLE: Termo de consentimento livre e esclarecido

UNICEF: Fundo das Nações Unidas para a Infância

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RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo investigar o processo de constituição identitária de

professoras de educação infantil que atuam em creche, especificamente aquelas que

iniciaram seu trabalho nesse campo como pajens e auxiliares de desenvolvimento infantil e

se justifica pelo fato de ainda ser um tema pouco explorado em pesquisas sobre a docência

na Educação Infantil de zero a três anos. Trata-se de um estudo qualitativo fundamentado

nas concepções da Psicologia Sócio-histórica; adotou-se como procedimento de coleta dos

dados a entrevista não-diretiva, com foco na narrativa da história de vida. Fez-se

necessário, ainda, além de um estudo bibliográfico, o levantamento dos estudos sobre

identidade docente apresentados ao longo da última década no GT07 da ANPED, que

concentra estudos sobre a Educação Infantil de zero a seis anos. Foram encontrados 256

trabalhos durante o decênio de 2004-2013, dos quais apenas três contemplam a temática

abordada nesta pesquisa. Participaram desta pesquisa três professoras de educação infantil

que atuam em creche da rede pública municipal de São Paulo; após a coleta e transcrição

das entrevistas concedidas por elas, procedeu-se à análise temática do material. A análise

dos resultados obtidos se baseou nos seguintes eixos: a origem humilde e as marcas da

infância das educadoras de creche; trajetórias pessoais e de profissionalização e dimensão

afetiva da prática pedagógica. Os resultados mostram que os percursos da vida pessoal e

profissional e os percursos formativos são elementos constituintes das identidades

profissionais das educadoras de creche. Observou-se nas falas das educadoras que o campo

da formação inicial e contínua lhes possibilitou desenvolver o sentimento de pertença a um

grupo de professores da educação básica. Entretanto, ainda permanece, no âmbito da

escola, uma hierarquização, reforçada legalmente, entre os docentes dos diferentes níveis,

na qual a professora da educação infantil, sobretudo aquela responsável pelas crianças de

zero a três anos, é considerada menos “educadora” que as demais, reforçando a ideia da

prevalência do cuidado em detrimento da educação e o não reconhecimento da

indissociabilidade entre essas atividades, independentemente do segmento da educação.

Palavras-Chave: Educação Infantil. Creche. Formação de Professores. Identidade.

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ABSTRACT

This research aims to investigate the process of identity formation of teachers in early

childhood education working in daycare, specifically those who have started their work in

the field as day care takers and child development assistants. The research is justified by

the fact that it is still a poorly explored theme in the studies on the field of teaching early

childhood education, from zero to three years old. This is a qualitative study based on

conceptions of social and historical Psychology. The procedure of research adopted was

data collection through non-direct interview policy with focus on narratives of life stories.

Apart from a bibliographical study, it was necessary to carry out a survey of the studies on

teacher identity presented over the last decade at the GT07 of ANPED, which focuses

studies on early childhood education, from zero to six years old. There were 256 papers

found during the decade of 2004-2013, amongst them only three are on the theme

addressed in this research. Three teachers from early childhood education, working

specifically in day care from public municipal de São Paulo participated in this research.

After collecting and transcribing their interviews, we proceeded to the thematic analysis of

the material. The analysis of the results obtained was based on the following axes: the

humble beginnings and the childhood background of educators of kindergarten; their

personal and professional trajectories; and the affective dimension of pedagogical practice.

The results show that their journeys of personal and professional life and their formative

journeys are constituent elements of the professional identity of daycare teachers. It was

observed in the discourse of the educators that the initial and continuing teacher

development in this field has enabled them to develop a sense of belonging to a group of

teachers of basic education. However, as far as the school goes, there is still a hierarchy,

reinforced legally, among teachers of different levels, in which the teacher of early

childhood education, especially those responsible for children from zero to three years old,

is considered less of an "educator" than the others, reinforcing the idea of the prevalence of

caution at the expense of education and the non-recognition of the inseparability between

these activities, regardless of the education segment.

Keywords: Early Childhood Education. Daycare. Teacher Development. Identity.

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APRESENTAÇÃO

Quem sou eu?

Sou alguém que não se cansa de sonhar! Nasci em 1982, sou a terceira filha do

casal Antonio Ferreira Silva e Ana Aparecida Antunes Silva, pessoas humildes, naturais de

Espinosa-MG, que deixaram para trás a família e os amigos em busca de uma vida melhor

em São Paulo. Na mala traziam apenas algumas peças de roupas bastante gastas e um

bilhete com o endereço dos parentes que os abrigariam.

Meu pai sem escolaridade, sabendo apenas desenhar o próprio nome teve

dificuldade de conseguir emprego. Mamãe, quando criança frequentou os dois primeiros

anos do ensino básico, aprendeu a ler e escrever e tinha noções de cálculo matemático.

Habilidades que mais tarde seriam fundamentais para lhe conferir o direito de cursar corte

e costura. Em 1987, após o nascimento de minha irmã mais nova, devido às condições

materiais as quais estávamos sujeitos, mamãe decide costurar para fora. Comprou uma

máquina de costura em suaves prestações e diante dela passava horas a fio, cortando

costurando, remendando. Dos retalhos que sobravam ela fazia roupas para nós. Roupas que

usávamos para ir à igreja e para passear.

Minhas irmãs e eu brincávamos de costureiras e sonhávamos com desfiles de

modas. Meu irmão também participava das brincadeiras, era sempre ele quem desenhava

as peças utilizando os moldes de mamãe. Tudo escondido, claro! Bastava que minha mãe

descuidasse um pouquinho ou saísse para resolver alguma coisa ou fazer uma entrega que

lá iam os quatro aprontarem alguma. E aprontamos muitas! Tivemos uma infância muito

feliz. Brincamos muito, fizemos muita traquinagem. Meus irmãos e eu formávamos uma

equipe. Éramos cúmplices, parceiros e defensores uns dos outros. Até pouco tempo atrás

eu jamais tinha dito que os amava, mas quando analiso nossa história, eu sei: Eu os amava.

Sempre nos amamos!

Uma coisa bonita que aprendi com esta pesquisa, algo tão óbvio, mas que às vezes

não damos a devida importância é que não necessitamos de riqueza nem de luxos, quando

somos acolhidos com amor. Quando aprendemos a partilhar com o próximo o pouco que

temos, não importa quem ele seja. Foi exatamente esse o desejo e o ensinamento dos meus

pais.

Toda minha infância e adolescência foi marcada pela presença da bebida, vício

contra o qual meu pai lutou por mais de trinta anos. Minha mãe, sempre guerreira,

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batalhava todos os dias para garantir uma vida digna para os quatro filhos. Exigiam que

estudássemos, eram presentes em nossa vida escolar e me lembro claramente das vezes que

minha mãe segurou minha mão na hora do dever de casa.

Nasci e cresci numa família humilde, meus irmãos começaram a trabalhar cedo

para ajudar nas despesas da casa. Lembro que meu irmão vendia picolés e minha irmã mais

velha o acompanhava para garantir que ninguém o passasse para trás. Eu, imatura e muito

sonhadora dizia que só trabalharia para ganhar o salário máximo. Eu não entendia

exatamente as políticas salariais vigentes, mas já sabia que um salário mínimo não era

suficiente para garantir aos cidadãos uma vida digna.

Dos sonhos que tive, e foram muitos, esse foi o que realizei ou, melhor dizendo,

experimentei: fui jogadora de voleibol e disputei dois importantes campeonatos. Eu não

tinha tênis para participar dos treinos e dos jogos, minha mãe teve que fazer um crediário.

Pouco tempo depois troquei o sonho por um emprego.

A universidade não foi algo que sonhei. Aliás, só em 2005 é que comecei a cogitar

essa possibilidade. Antes disso, esse assunto não era abordado em minha casa, meus

amigos também não sonhavam em “fazer faculdade”. Esse silêncio acerca da temática

universidade, certamente era decorrente da histórica divisão de classes que se estabeleceu

nesse país. Cursar o ensino superior, até pouco tempo atrás, não era uma possibilidade para

os filhos das camadas mais pobres da sociedade. Digo isso, pois nos últimos doze anos

especificamente, mais oportunidades de emprego e de acesso aos níveis mais elevados do

ensino têm sido contempladas pelas políticas públicas sociais.

Com os programas do Governo Federal Pro-Uni, Fies e outros, o sonho da

formação em nível superior se torna cada vez mais real na vida dos inúmeros jovens

oriundos de diferentes camadas da esfera social.

Em dezembro de 2009 conclui a graduação em Pedagogia, não fui diretamente

beneficiada pelos programas supracitados, mas tenho a convicção que essa realização está

pautada numa política de ação afirmativa que vislumbrava o acesso das massas aos

serviços de educação, saúde, moradia como nunca se viu na história desse país.

Minha expectativa nessa época era a de lecionar para crianças das séries iniciais do

ensino fundamental. Isso nunca aconteceu!

Nunca me imaginei cuidando de crianças pequenas. Me achava pouco delicada para

isso, eu sequer sabia como segurar um bebê, entretanto...

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No ano seguinte, ingressei no cargo de professora de desenvolvimento infantil (PDI) numa

escola da rede pública de ensino na grande São Paulo. Essa foi uma experiência que me

marcou profundamente.

No dia quatro de março de 2010 cheguei à Pré Escola Jardim Eldorado antes do

horário previsto para o início da aula. Fui bem recebida pela diretora que prontamente me

acompanhou até a classe. Lembro a satisfação e a alegria que senti quando pisei no chão da

minha sala de aula pela primeira vez. Eu tinha um sorriso incontido no rosto. Tinha

planos! Eu sabia que ali seria feliz!

Mas ao término do expediente a única certeza que eu tinha era a de não voltar

nunca mais àquele lugar. Eu quis desistir, pois logo no primeiro dia me deparei com

situações para as quais eu não tinha recebido nenhuma orientação. Situações que não foram

abordadas ao longo do curso de Pedagogia.

Chegando em casa, meus pais que aguardavam ansiosamente para saber como foi

meu primeiro dia como professora, tiveram de aparar minhas lágrimas. Contei como havia

sido e disse a eles que desistiria.

Desistir, como assim? Eu havia batalhado tanto para ingressar naquele cargo. Essas

palavras martelaram a minha mente a noite toda. Não dormi.

No dia seguinte, me arrumei e segui viagem. A escola ficava a três horas de

distância da minha casa. Cheguei antes do horário previsto e decidi falar com a

coordenadora, pedi a ela dicas de como trabalhar com aquela turma, pois já no primeiro dia

havia percebido que seria uma tarefa árdua. As crianças fugiam do meu modelo idealizado

de criança e, por conseguinte de aluno. Elas eram indisciplinas, barulhentas e machucavam

umas às outras. As mães me pareceram pouco compreensivas e os colegas de trabalho não

se mostravam companheiros.

Com tudo isso, persisti!

As PDIs eram minoria nas escolas de educação infantil daquela rede e

desenvolviam atividades paralelas ao trabalho da professora de educação infantil. Eram

reconhecidas pelos membros da escola como “tia” ou simplesmente PDI e não como

professoras. Naquela época eu não tinha muita clareza do quanto essa hierarquia

estabelecida oficialmente pode ser perniciosa, sobretudo porque acentua a cisão da imagem

profissional das educadoras infantis, reforça uma visão fragmentada de criança e de

trabalho educativo e contribui para perpetuar desigualdades nesse campo.

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O não reconhecimento como professora fazia minar em mim a possibilidade de

construir uma identidade profissional. Eu não era professora, não me sentia parte de um

grupo de professores. Me assumi PDI, alguém sem voz, cujos direitos e sonhos eram

diariamente desrespeitados.

Não me reconhecendo como professora, aceitando-me como PDI, me acostumei

com o fato de ter meu nome raramente pronunciado. No entanto, acostumar-se ao

anonimato não significou aceitá-lo. Não aceitá-lo implicava uma mudança, uma

transformação. A metamorfose da professora começou, efetivamente, em outubro de 2010

quando assumi o cargo de professora de educação infantil (PEI) na prefeitura de São Paulo.

Aqui, ao contrário do que acontecia acolá, não existia uma hierarquia entre as

professoras, todas desempenhavam as mesmas funções eu era a PROFESSORA, e aos

poucos um sentimento de pertença a um grupo começava crescer dentro de mim. Tornei-

me professora de educação infantil!

O contato diário com as crianças possibilitou a descoberta de mim mesma.

Descobri que meus argumentos eram falhos, eu era capaz de cuidar de bebês. De fazê-los

sorrir, de me ver em suas ações. Formei-me professora pelas mãos das crianças. Elas me

titularam.

Nessa nova instituição, assumi, em princípio, a regência numa turma de berçário; a

classe era composta por dois grupos de nove crianças de um ano de idade e o trabalho

diário era partilhado com outra professora. Ela, bastante experiente no magistério infantil,

mãe e avó, cuidava dos bebês como certamente um dia cuidara dos seus filhos e netos. Sua

primeira pergunta, como ela mesma disse, “mais pessoal”: Você tem filhos?

Por um instante pensei que seria o fato de ser mãe um pré-requisito para o

magistério na educação infantil. Não sendo mãe, não seria eu competente o bastante para

lidar com os bebês? E o fato de ser mãe garantiria a qualidade do trabalho docente

desenvolvido diariamente nos centros de educação infantil?

São questionamentos dessa natureza que me proponho a pesquisar. O foco de

interesse da pesquisa centra-se na busca pela compreensão da identidade profissional das

professoras de educação infantil que atuam em creches e centros de educação infantil.

Minha experiência ainda incipiente nesse campo, o desejo crescente por qualidade de

atendimento à pequena infância e a luta pela valorização profissional das inúmeras

professoras de educação infantil caracterizam a relevância acadêmica e social desta

dissertação de Mestrado. .

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O trabalho está organizado da seguinte maneira: na apresentação, a pesquisadora

apresenta as motivações e os percursos por ela trilhados para chegar ao objeto de sua

investigação. Em seguida serão apresentados e discutidos estudos correlacionados à

identidade da professora de creche.

O primeiro capítulo trará um breve histórico da Educação Infantil brasileira, cujo

enfoque está no atendimento voltado para a criança de zero a três anos de idade. Ao longo

desse capítulo serão abordadas temáticas relacionadas à legislação, formação de

professores e organização e funcionamento das instituições que atendem a pequena

infância. No segundo capítulo apresentamos o referencial teórico desta pesquisa e em

seguida, no capítulo denominado A Pesquisa, serão apresentadas as etapas para elaboração

do trabalho.

O quarto capítulo será destinado à apresentação, análise e discussão dos dados

coletados durante as entrevistas com as profissionais de educação infantil. Por fim, nas

considerações finais buscaremos uma reflexão acerca das contribuições deste trabalho

tanto no âmbito pessoal, profissional e social.

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INTRODUÇÃO

Este tópico apresenta uma revisão bibliográfica sobre o tema Identidade Docente e

formação de professores de educação infantil.

Diferentes estudos enfatizam que o trabalho docente realizado em creches traz

consigo características do trabalho doméstico, caracterizado pelo acúmulo de funções, pela

inseparabilidade entre público e privado nas atividades domésticas; pela rotina diária; pela

atividade docente vincular-se ao que se considera como saber “natural” e o fato de ser um

trabalho desempenhado por mulheres, em sua maioria pobres e com poucos anos de

escolarização (ARCE, 2001; CERISARA, 2002; PIZA, 1992).

Buscando compreender os processos pelos quais as identidades docentes se

constituem e quais elementos podem contribuir ou dificultar esse processo de constituição

identitária, foi realizado um levantamento dos trabalhos apresentados nas Reuniões Anuais

da ANPED na última década (2004-2013).

Foram encontrados 256 trabalhos (pôsteres e comunicação oral) no GT-07

(Educação de crianças de zero a seis anos). No gráfico a seguir temos um retrato da

distribuição dessas produções por ano de edição do evento.

*Elaborado pela autora.

Alguns dados do gráfico merecem ser comentados: a pouca produção de trabalhos

na modalidade pôster nos períodos de 2004 a 2008 e de 2010 a 2013 em relação ao ano de

9

2018 18 19

1618

15 16

12

68

4 52

58

0

4 53

0

10

20

30

40

50

60

70

2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

Comunicação oral Pôster

Tabalhos apresentados no GT07 da Anped: Educação da criança de 0-6 anos

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2009; nota-se também que nos anos de 2004 e 2013 concentram-se a menor quantidade de

trabalhos apresentados em comunicações orais.

No ano em que o GT07 completou trinta anos (2007) apenas vinte e três trabalhos

foram apresentados, sendo dezoito comunicações. Destas, apenas duas visavam o estudo

sobre a constituição identitária das professoras de creche.

Deteremos nossa atenção na análise dos trabalhos apresentados no formato de

comunicação oral, um universo composto por 161 produções. Destas, observou-se que

apenas dezesseis faziam menção direta à profissional de creche e, numa análise ainda

inicial, percebemos uma grande variação na maneira de se reportar às professoras, visto

que ao menos dez nomenclaturas distintas foram empregadas para se referir a essa

profissional, o que, a nosso ver, já caracteriza uma cisão identitária na educação infantil e

acentua ainda mais a hierarquização do trabalho nesse segmento.

Os estudos também apontam que a falta de distinção entre atividades profissionais e

familiares no interior das instituições de educação infantil pode dificultar o processo de

compreensão da constituição identitária das profissionais que nelas atuam, pois, na maioria

das vezes, o trabalho limita-se ao cuidar, quando, na verdade, a atividade profissional

deveria ser constituída pela indissociabilidade entre educar, cuidar e brincar.

Aprofundando nossa análise, encontramos nessa pequena parcela de trabalhos sobre

a professora de creche apenas três que apresentavam no título e no resumo a proposta de

estudar a constituição identitária dessas profissionais.

Diante dessas constatações, foi realizado um estudo bibliográfico mais

aprofundado. Teses, dissertações, livros e artigos foram consultados, tendo por objetivo

aprofundar os conhecimentos acerca da temática proposta e extrair subsídios teóricos para

análise e interpretação dos dados revelados pelo universo das participantes.

Ressalta-se que quando da pesquisa por artigos disponíveis em revistas e periódicos

eletrônicos, sobreveio-nos certa preocupação, tendo em vista a diminuta quantidade de

material sobre o tema e a categoria profissional docente do segmento de zero a três anos.

Dos artigos que compõem nosso referencial bibliográfico apenas um trata da construção da

Número de trabalhos cujos títulos e resumos contemplam a temática Identidade

Profissional da educadora de creche.

Total

2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

01 0 0 02 0 0 0 0 0 0 03

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identidade docente tendo como porta-vozes da discussão as próprias professoras de

educação infantil.

Nesse trabalho, Oliveira et.al (2006) analisou as produções da primeira turma de

alunas1 formadas pelo Programa ADI Magistério e constatou:

(...) era composta por mulheres (...). Delas, 41,6% tinham idade entre 41 e 50 anos,

sendo que 34,2% tinham mais de 50 anos e apenas 7%, menos de 35 anos. Eram

casadas ou moravam com companheiros 62,8% das ADIs, e 90,1% delas tinham filhos. Estavam no trabalho em creches há muito tempo: 81% delas trabalhavam

entre 11 e 20 anos, 15,7% tinham mais que 20 anos de serviço e apenas 2,3%

trabalhavam há menos de 10 anos na área. Muitas das ADIs (52%) relatavam ter

tido história de fracasso escolar, 31% haviam deixado de estudar há mais de 20

anos e apenas 4% estavam fora da escola há menos de cinco (pp. 551-552).

Estavam matriculadas nessa turma 850 profissionais de educação infantil que

haviam concluído apenas o ensino fundamental. Foram selecionados 33 textos que

compunham as produções individuais das alunas concluintes da primeira edição do

Programa: “Tais textos compunham um memorial em que as alunas eram convidadas a

traçar sua trajetória pessoal” (OLIVEIRA et. al, 2006, p. 555).

Ainda segundo a autora, os trechos selecionados indicam que “as escolhas feitas

pelas ADIs para representarem a si mesmas trazem marcas significativas cunhadas na

cultura e na participação no programa” (OLIVEIRA et. al, 2006, p. 555).

Pretendendo aprofundar nossa compreensão acerca dessas marcas que as

educadoras de creche trazem consigo, apresentamos e discutimos na sequência os trabalhos

apresentados nas Reuniões Anuais da ANPED que investigaram a construção das

identidades profissionais das trabalhadoras de creche.

Sobre a identidade das professoras de educação infantil: um olhar para as

produções apresentadas no GT07 nas Reuniões Anuais da ANPED no período de

2004 a 2013

Gomes (2004) refere-se às professoras de educação infantil do segmento etário de

zero a três anos como educadoras de crianças pequenas, e não professora,termo este

utilizado para identificar as profissionais que atuam nas pré-escolas e outras etapas da

escolarização. O trabalho apresentado visava uma compreensão dos caminhos pelos quais

1 Segundo a autora havia apenas um homem matriculado na turma, daí a escolha pela utilização do gênero

feminino.

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as educadoras construíam suas identidades profissionais; para isso, utilizou-se de dois

procedimentos metodológicos: entrevista e relato autobiográfico. Seu universo participante

era composto por doze sujeitos, professoras de educação infantil de ambos os segmentos

(creche e pré-escola) e estagiárias de um curso de Pedagogia.

Em sua pesquisa, Gomes (2004) aponta alguns elementos que, segundo ela, são

dificultadores do processo de construção e revelação de identidades, dentre eles: “o fato do

trabalho com crianças pequenas em creches (...) estar muito próximo daquele desenvolvido

pelas famílias” e “a existência de uma crise de identidade com relação às educadoras de

creche” (GOMES, 2004, pp. 12-13).

Quanto à crise identitária dessas profissionais, a autora explica que as “educadoras

seguem reproduzindo ações, traduzidas, por um lado, na forma de imitação da professora,

tal qual a imaginam, tendo a imagem da escola de caráter instrucional como referência” (p.

13). Não obstante, há uma superposição do papel de cuidadora, daquela que “toma conta”

das crianças, a tia, acarretando um desvio da “função de educadora e prejudicando a noção

de pertencimento profissional” nesse cenário em que educar e cuidar são inseparáveis

(GOMES, 2004, p.13). Em concordância, Campos e Cruz (2006, p. 111), ressaltam que:

(...) a identidade da professora de educação infantil ainda não se consolidou como

profissional. (...) Na ambiguidade de alguém que atua em um “segundo lar” (que deve “cuidar bem” da criança) e ao mesmo tempo como educadora (que precisa

prepará-la para o futuro escolar e para uma melhor situação de trabalho no

futuro), perde-se sua principal função de incentivadora, facilitadora e

propiciadora da aprendizagem e do desenvolvimento da criança dessa faixa

etária no presente, desenvolvimento que supõe a integração entre os aspectos de

cuidado e educação nas práticas cotidianas.

Gomes (2004) chama a atenção para a valorização profissional e formação

contínua como traços importantes para a construção de uma identidade profissional. Para

ela, a valorização e o reconhecimento como professora constituem-se em caminhos para a

superação da crise identitária instaurada no campo da educação infantil.

A formação surge, a partir das narrativas analisadas pela autora, como “uma parte

importante dessa trajetória [da construção do ser professora de educação infantil],

qualificando e valorizando profissionalmente as educadoras desse ofício” (GOMES, 2004,

p. 5).

Dos trabalhos apresentados na 30ª edição do evento, ocorrida em 2007, autores

como Cota (2007) e Nascimento (2007) também colocam as questões sobre identidade no

centro do debate em educação infantil.

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O trabalho de Cota (2007, p. 01) resulta de um profícuo estudo sobre os “possíveis

traços e processos identitários das trabalhadoras de creche”. Utilizando-se de entrevistas

abertas procurou compreender os processos que constituem a identidade das profissionais

que trabalham na educação infantil. Ao analisar a história oral das cinco entrevistadas, a

autora aponta quatro traços determinantes para desvendar as identidades das professoras de

creche. O primeiro diz respeito à mistura dos papéis de mãe e professora, implicando a

construção de uma ‘identidade profissional’ no âmbito institucional, reforçando que “o

cuidar é de competência da mulher” (COTA, 2007 p. 13).

Outros dois pontos comuns entre as educadoras, apresentados por Cota (2007, p.

14), são a “condição sociocultural e econômica e (...) a formação deficiente das

trabalhadoras”. A autora salienta que o universo participante da pesquisa era de origem

humilde e que todas eram oriundas de meios menos favorecidos, filhas de pais analfabetos

e ou com pouquíssima escolaridade. Por fim, Cota (2007) observa no discurso das

entrevistadas uma falta de pertencimento ao grupo de professoras de educação infantil.

Finalmente, foi possível perceber, diante dos significados expressos por elas, um

sentimento de pertencimento a um grupo específico: sentem-se como professoras

de creche e não como professoras de educação infantil (COTA, 2007, p. 14).

É importante assinalar que, embora a formação dessas profissionais não fosse o

foco dos estudos de Cota (2004), essa temática aparece de forma velada nos discursos das

participantes da pesquisa. A autora ainda destaca “que o desejo de serem reconhecidas

como professoras foi o que motivou o grupo a participar [de um] Programa Emergencial”

de formação de professores para atuar na educação infantil (COTA, 2007, p. 14). A

pergunta que lançamos aqui é: quais as marcas que a formação imprimiu nessas

educadoras?

Cota (2007, p. 14) conclui que faltam às profissionais que atuam em creches “uma

formação mais sistemática para as dimensões do educar e cuidar” e lança outras questões,

para as quais buscaremos as respostas nos relatos de Graça, Penélope e Diana 2*, professoras

de educação infantil que a nós narraram suas histórias de vida, partilharam conosco um

pouco de suas experiências e desejos, nos permitido assim compreender os processos pelos

quais suas identidades vão se constituindo.

Nascimento (2007), em seu trabalho, analisou as práticas de atendimento em vinte

instituições de educação infantil da rede pública. Considerando que a creche vem sendo

2*Nomes fictícios das educadoras participantes desta pesquisa.

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construída cotidianamente, a autora buscou responder quais são as marcas da identidade da

professora em relação à instituição e ao fazer docente. Para isso desenvolveu uma

pesquisa de campo, na qual observou as práticas de atendimento às crianças da pequena

infância em vinte instituições de educação infantil numa determinada região metropolitana

brasileira.

No que diz respeito à identidade profissional, Nascimento (2007) assinala que a

identidade da professora contribui para a construção da identidade do trabalho pedagógico

desenvolvido na unidade educacional.

Ainda segundo Nascimento (2007), o processo histórico do qual a creche faz parte é

fortemente influenciado por ações da esfera doméstica. Ao longo do trabalho a autora

discute questões ligadas ao cuidar que, em sua concepção, se manifesta no comportamento

profissional que mistura as relações casa-creche. À guisa de conclusão, a autora afirma:

(...) as práticas femininas domésticas caminham junto com as práticas femininas

profissionais: ao mesmo tempo em que “cuida” (...) a professora também tem

uma grande preocupação com a atividade que desenvolve, com o relacionamento entre as crianças, com suas famílias, além do compromisso em trazer para a sala

de aula elementos da cultura e conhecimentos das diferentes áreas do saber

(NASCIMENTO, 2007, p. 10).

Os estudos de Gomes (2004), Cota (2007) e Nascimento (2007) indicam que a

identidade da professora de creche passa por um terreno conflituoso que envolve a

dicotomização dos saberes e fazeres dessas profissionais. Além disso, as pesquisadoras são

concordes em afirmar que no universo da educação infantil estão presentes práticas

femininas domésticas e que o cuidar se sobrepõe ao educar. Observa-se também que esses

estudos não lançam luz sobre a questão da formação contínua dessas profissionais que,

sobretudo, nas duas últimas décadas, têm sido foco de políticas públicas no plano federal.

Revela-se, por fim, a necessidade de se investir no campo da formação inicial e contínua

dos profissionais da educação infantil e de investir na produção de conhecimentos e

promoção de discussões acerca da questão da identidade e formação docente como um dos

elementos propulsores de um atendimento de qualidade para as crianças da pequena

infância.

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CAPÍTULO 1. A CRECHE NO BRASIL: UM BREVE HISTÓRICO

Falar de creche ou de educação infantil é muito mais do que tratar de uma

instituição, de suas qualidades e defeitos, da sua necessidade social ou

importância educacional. (...) É tocar no mistério da pessoa humana enquanto

vida em busca de plenitude, de felicidade, de encontro. E, é, também, falar um

pouco de nós mesmos, pois quando nos colocamos diante da criança, como pais

ou educadores, estamos nos interrogando sobre a nossa própria trajetória a partir

da criança que fomos (DIDONET, 2001, p. 11).

Historicamente o cuidado das crianças pequenas foi relegado a segundo plano; a

falta de políticas públicas e de investimentos na construção de espaços institucionais para

guarda e proteção dos pequenos fez com que ações caritativas predominassem.

Ariès (1981, p.17), em estudo sobre a história da criança, afirma ser muito provável

que, até por volta do século XII, não houvesse lugar para a infância neste mundo.

Por séculos a criança foi concebida como um homúnculo, ser de menor

importância, cuja morte era naturalizada. Além de muito curta, sua passagem pela vida

familiar e social era considerada algo insignificante, passível de substituição; não havia

uma consciência da particularidade infantil, tampouco de criança como pessoa em

desenvolvimento. Kramer (2011), referenciando o historiador francês, afirma que, no

entanto,

Sentimento de infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças;

corresponde, na verdade, à consciência da particularidade infantil, ou seja, aquilo

que distingue a criança do adulto e faz com que ela seja considerada como um

adulto em potencial, dotada de capacidade de desenvolvimento (KRAMER,

2011, p. 17).

Transformações de toda ordem (política, social, econômica, familiar etc.) e as

influências artísticas e religiosas contribuíram para que, em determinado momento da

história, a criança deixasse de ser vista e tratada como adulto em miniatura, passando a ter

mais espaço na vida familiar e social, saindo de um profundo estado de anonimato.

O termo empregado para expressar a primeira – e muito importante – fase da vida

humana deriva do latim in-fari que significa “aquele não fala”. O silêncio, historicamente

imposto aos infantes, furtou-lhes o direito de serem vistos e respeitados como sujeitos

reais, pertencentes a uma realidade sócio-histórico-cultural e colocou a criança, por

séculos, à margem da história da humanidade.

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Avançando alguns séculos, no ano de 1990, é aprovada no Brasil a Lei 8.069, que

dispõe sobre a proteção integral da criança e do adolescente, o Estatuto da Criança e do

Adolescente (ECA), que considera a infância uma etapa da vida humana, cujas

características diferenciam-se das da fase adulta, refere-se à criança e ao adolescente como

“portadores de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da

proteção integral (...) assegurando-se-lhes (...) todas as oportunidades e facilidades, a fim

de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições

de liberdade e de dignidade” (Art. 3º). No que diz respeito à educação, a referida lei

acentua que esta deve possibilitar o desenvolvimento pleno da criança.

O ECA é, sem dúvida alguma, uma grande conquista para a sociedade brasileira,

não apenas no sentido de assegurar os direitos das crianças, mas, em especial por dar

visibilidade a esse público e contribuir para o início de mais uma importante etapa da

história da infância no país.

1.1 A educação infantil de zero a três anos

A educação infantil dividiu-se em duas modalidades de atendimento: a creche e a

pré-escola. Em ambos os casos, as instituições receberam ao longo de sua história

diferentes denominações; entretanto, aqui utilizaremos os termos creche e pré-escola

quando nos referirmos ao atendimento oferecido, conforme explicita a Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional- LDBEN 9394/96 em seu artigo 30, em:

I - creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade;

II - pré-escolas, para as crianças de quatro e cinco anos de idade.

Contudo, vale ressaltar, segundo Silva (2012), que os termos creche e pré-escola

definem-se não somente pela faixa etária do público que atendem, mas pela especificidade

do trabalho desenvolvido nessas instituições.

Criada na França, em 1844, a creche chegou ao Brasil, inicialmente como ideia,

ainda no período Imperial (KUHLMANN Jr, 2000.). A creche, que em francês significa

manjedoura, caracterizou-se em nosso país por atender crianças até três anos de idade,

oriundas das camadas populares e filhas de mães trabalhadoras, tendo como característica

o trabalho diário em período integral e a preocupação com a custódia e assistência

(alimentação, cuidados etc.). Já às pré-escolas competia a educação das crianças

(KISHIMOTO, 1986; SILVA, 2012).

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Na década de 1920, o atendimento aos “menores necessitados” aconteceu

predominantemente em asilos e orfanatos, em regime de internato, pois, no Brasil, até

meados do século XIX, não havia nenhum tipo de atendimento especializado voltado para

crianças muito pequenas.

Segundo Oliveira (2011), era muito comum em algumas regiões o cuidado das

crianças órfãs ou abandonadas ser assumido por famílias de fazendeiros, enquanto em

zonas mais desenvolvidas e/ou urbanizadas, as crianças abandonadas pelas mães eram

recolhidas nas “rodas dos expostos3”.

A “roda” teve sua origem na Europa e chegou ao Brasil no início do século XVIII,

primeiro no estado do Rio de Janeiro e, mais tarde, foi instalada na Santa Casa de São

Paulo e também na Bahia. Os expostos, muitos deles desnutridos e enfermos, eram

recolhidos pelas freiras que providenciavam a internação4. As crianças muito pequenas, em

fase de amamentação eram entregues às criadeiras, mulheres de origem humilde a quem

era confiada sua guarda, alimentação e cuidados (KUHLMANN Jr., 2000; OLIVEIRA,

2011).

Com o fim da escravidão e com a migração para os grandes centros urbanos,

registrou-se um aumento expressivo no número de crianças abandonadas, concorrendo

para acentuar ainda mais as desigualdades em nosso país. Conforme explicação de Oliveira

(2011, p.92):

(...) a abolição da escravatura no Brasil, (...) concorreu para o aumento do

abandono de criança e para a busca de novas soluções para o problema da

infância (...): criação de creches, asilos e internatos (...) instituições (...)

destinadas a cuidar das crianças pobres.

Na tentativa de solucionar o problema surgiram iniciativas isoladas como a

construção de espaços voltados para o cuidado e proteção de crianças pequenas. Tais

soluções traziam em seu bojo um caráter médico, visto que a preocupação vigente era

combater o elevado índice de mortalidade infantil.

Em decorrência dessa preocupação com a saúde pública, foi criado em 1919 o

Departamento da Criança, precedido da fundação do Instituto de Proteção e Assistência à

Infância, em 1899.

3Conforme consta nos site do Museu Eng. Augusto Carlos Ferreira Velloso.

4Na roda dos expostos eram deixadas crianças não desejadas pelos pais, filhos de mães solteiras (algumas

pertencentes à alta sociedade) e de mulheres de “má conduta”. Além de filhos da pobreza, filhos de escravos

também eram expostos na roda (Ver: http://www.santacasasp.org.br; Didonet, 2005, pp. 11-12; Kuhlmann

Jr., 2006, p. 600).

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O conceito de assistência nessa época previa um atendimento de baixa qualidade

para as crianças das camadas pobres. Conforme denunciam Rosemberg e Campos (1985, p.

05), “nem sempre se deu a devida importância à questão da qualidade dos serviços

prestados”; o assistencialismo, predominante nas intuições de atendimento à criança

pequena, por muito tempo foi considerado como “favor à população”.

Nesse contexto, a creche tinha como função combater a pobreza e a mortalidade

infantil, não havendo qualquer preocupação com a qualidade do atendimento.

As primeiras creches do final do século XIX e início do século XX eram

precárias e insuficientes de recursos: apresentavam má qualidade no atendimento

(...) e não havia legislação específica ou normas básicas de funcionamento e sim

dificuldades de instrumentos de toda ordem: material/ física/ humana (...)

(OLIVEIRA, 2006, p. 84).

As primeiras décadas do século XX são marcadas por intensas mudanças nas

relações sociais, políticas, econômicas e familiares, sobretudo devido ao processo

acelerado de urbanização das grandes cidades. A chegada da mulher no mercado de

trabalho é impulsionada pela expansão industrial e pela carência de mão-de-obra

masculina; com isso, a exigência por instituições para guarda e proteção das crianças

pequenas é cada vez maior. Entretanto, a insuficiência de creches e instituições gratuitas

obrigavam as mães trabalhadoras a deixar seus filhos em lares vicinais.

Os lares vicinais ou creches domiciliares/familiares passaram a ser alternativas

para as mulheres operárias. Seus filhos ficariam sob os cuidados das criadeiras ou mães

crecheiras, termo empregado às mulheres que se propunham a cuidar dos pequenos em

troca de uma remuneração irrisória.

Vasta bibliografia sobre a história da educação infantil brasileira apresenta

diferentes denominações para um mesmo modo de atendimento à infância: creche

domiciliar ou familiar ou, ainda, de emergência; lar vicinal, mães crecheiras,

nomenclaturas utilizadas para designar o atendimento de crianças realizado por mulheres

em suas próprias casas, em geral, residências extremamente humildes que nem “sempre

tinham condições de garantir às crianças um desenvolvimento adequado, visto que a casa

de muitas crecheiras não tinha água, luz e esgoto, nem suprimentos básicos para higiene e

saúde” (ROSEMBERG, CAMPOS, 1985, p. 78).

Vários autores, (Oliveira, 2011; Rosemberg e Campos, 1985 e Rosemberg, 1986)

afirmam que a creche domiciliar passou a ser vista pelos órgãos públicos como alternativa

possível para uma rápida expansão do atendimento aos pequenos. Tratava-se de um

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“negócio” de baixo custo sustentado pelo discurso ideológico de “participação da

sociedade” e pela argumentação de que dispensaria investimentos, pois não haveria a

necessidade de construção de prédios para o atendimento das crianças; portanto,

economizar-se-ia com a contratação de pessoal, aquisição de material e manutenção dos

recursos etc. Argumentava-se, ainda, que os lares vicinais eram adequados, pois se tratava

de uma modalidade de atendimento “familiar”, no qual as crianças poderiam conviver com

outras de diferentes faixas etárias enquanto suas mães trabalhavam.

Nos anos 1920 e início da década de 1930, o movimento operário ganhou força.

Trabalhadores com o apoio de organizações sindicais reivindicavam, dentre outros direitos,

um local para atendimento integral das crianças menores de sete anos de idade, por meio

de equipamentos públicos (OLIVEIRA, 2011; ROSEMBERG, CAMPOS, 1985). No

entanto, os apelos dos trabalhadores

(...) eram fortemente combatidos pelas associações patronais (...). Alguns

empresários, no entanto, foram modificando sua política de repressão direta aos

sindicatos e concedendo certos benefícios sociais como forma de enfraquecer os movimentos operários, arrefecer suas aposições e controlar a vida dos

trabalhadores, dentro e fora da fabrica. Para atrair e reter a força de trabalho

fundaram vilas operárias, clubes esportivos e também algumas creches e escolas

maternais para os filhos de operários (...) iniciativas que forma sendo

timidamente seguidas por outros empresários (OLIVEIRA, 2011, p. 96).

Assim, creches e escolas maternais começaram a surgir lentamente em diferentes

cidades brasileiras. Os empregadores, visando maior obtenção de lucros, cediam

gradativamente às reivindicações do operariado, começavam a instalar creches e escolas

maternais onde os filhos de suas funcionárias permaneceriam durante a jornada de trabalho

das respectivas mães, acreditando-se que a proximidade entre a mãe e a criança causava

uma melhora considerável em seu rendimento profissional.

Na segunda década do século XX, o país enfrenta forte crise no sistema

econômico; nesse período também acontece o Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à

Infância, no qual, de acordo com Oliveira (2011, p. 97), discutiram-se temas “como a

educação moral e higiênica (...) com ênfase no papel da mulher como cuidadora”.

Mas foi por volta de 1940 que ações governamentais nas áreas da saúde,

previdência e assistência se efetivaram. As creches, “mal necessário”, passam a ser

“planejadas como instituição de saúde, com rotinas de triagem, lactário, pessoal auxiliar de

enfermagem e preocupação com a higiene do ambiente físico” (OLIVEIRA, 2011, p.100).

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No âmbito trabalhista, a CLT, aprovada pelo Decreto 5.452 de 1º de maio de 1943,

obriga o empregador a fornecer local apropriado, onde suas funcionárias tenham a guarda e

assistência dos filhos garantida durante sua jornada de trabalho (Artigo 389, § 1º). O artigo

396 também garante à mãe trabalhadora o direito de amamentar o filho até o sexto mês de

vida. Tais normas foram direcionadas, na época, às empresas nas quais eram empregadas,

no mínimo, trinta mulheres com idade entre dezesseis e quarenta anos.

Nessa época, entidades filantrópicas também passam a atender crianças oriundas

das camadas populares, priorizando a guarda, a alimentação e os cuidados. Várias foram

as asserções médico-assistencialistas nessa época, das quais destacam-se propostas de

proteção à infância, em geral marcadas pelo higienismo, filantropia e puericultura como

alternativas para combater a mortalidade infantil e resolver problemas de saúde pública

(OLIVEIRA, 2011). Na segunda metade do século XX,

(...) o incremento da industrialização e da urbanização no país propiciou novo

aumento na participação da mulher no mercado de trabalho. Creches e parques

infantis (...) passavam a ser cada vez mais procurados não só por operárias e empregadas domésticas, mas também por trabalhadoras do comércio e

funcionárias públicas (OLIVEIRA, 2011, p. 102).

A inserção das mulheres das camadas médias no mercado de trabalho contribuiu

para um aumento de creches e pré-escolas. Kuhlmann Jr. (2000, p.12) afirma que

“anteriormente não se cogitava de que mulheres de outra condição social pudessem querer

trabalhar” após terem se tornado mães e, caso isso acontecesse, a solução era ficar restrita

ao lar.

Os trabalhos de educação sanitária intensificam-se durante a década de 1950; vários

programas e campanhas visavam combater a desnutrição e fortalecer o conceito de

assistência à infância. Em 1952 são criados os Clubes de Mães5, que visavam à valorização

do trabalho doméstico e seu papel na educação das crianças (KRAMER, 2011).

Nos anos 1970, várias teorias importadas da Europa e EUA defendiam que as

crianças pobres sofriam de privação cultural, influenciando também as tomadas de decisão

para a implementação de políticas para a educação infantil brasileira. Propostas de

5 Azevedo e Barletta (2011) aprofundam a discussão sobre o Clube de Mães e ressaltam que essa organização

de mulheres surgiu, inicialmente, como uma forma de capacitar a mão-de-obra para trabalho doméstico.

Esteve ligada à Igreja Católica e centrava suas ações na oferta de serviços religiosos e na organização de

ações comunitárias. (p. 135).

Disponível em: http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index. php/cedem/article/viewFile/1647/1400

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trabalho para a infância foram elaboradas sob uma ótica de educação compensatória e de

cunho assistencial, sobretudo às ditas crianças carentes.

Segundo Kramer (2011, p. 25), o conceito de educação compensatória era

enfatizado “como um antídoto para a privação cultural”. Para a autora, a abordagem da

privação cultural está apoiada na falsa crença de que

(...) as crianças das classes populares (...) apresentam “desvantagens

‘socioculturais”, ou seja, carências de ordem social. Tais desvantagens são

perturbações, ora de ordem intelectual ou linguística, ora de ordem afetiva: em

ambos os casos, as crianças apresentam “insuficiências” que é necessário

compensar através de métodos pedagógicos adequados, se quer diminuir a

diferença entre essas crianças “desfavoráveis” e as demais, na área do desempenho escolar.

Sob essa perspectiva foram elaboradas propostas de trabalho com ênfase na

estimulação precoce e preparo para a iniciação escolar. No entanto, nas instituições que

atendiam a população pauperizada perduravam práticas pautadas por uma visão

assistencialista.

A Lei nº 5692/71(Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional- LDBEN)

contribuiu para uma mudança de olhar em relação à educação infantil. Ao valorizar o

atendimento das crianças pequenas, impulsionou a expansão de creches em todo país. Essa

lei estabelecia que os sistemas de ensino incumbir-se-iam da educação das crianças

menores de sete anos em escolas maternais, jardins-de-infância e instituições equivalentes.

Também na década de 1970, a Legião Brasileira de Assistência e a Fundação

Mobral implantaram projetos cuja justificativa era a de combater as desigualdades e a

promoção de práticas educativas atreladas ao combate à desnutrição, formação de hábitos,

habilidades e atitudes. Tais iniciativas contribuíram para reforçar, no imaginário da época,

a função da creche como equipamento social e assistencial à infância, sobretudo às

crianças das classes trabalhadoras.

No que tange à educação assistencialista, Kuhlmann Jr. (2000, pp. 166-167) afirma

que o pensamento vigente era de creche como:

(...) um lugar de guarda, de assistência e não de educação, sendo assim, a

pedagogia dessas instituições se pautava numa pedagogia da submissão, uma

educação assistencialista (...) marcada (...) por oferecer atendimento como dádiva, como favor (...) que parte de uma concepção preconceituosa da pobreza e

que, por meio de um atendimento de baixa qualidade, pretende preparar os

atendidos para permanecer no lugar social a que estariam destinados.

Em concordância, Kramer (2011) destaca cinco conjuntos de fatores que

contribuíram para a expansão da pré-escola no Brasil, dentre eles os referentes à assistência

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social, que tinha como característica a baixa qualidade no atendimento (KRAMER, 2011;

KUHLMANN Jr.2000; OLIVEIRA, 2011).

Segundo Oliveira (2011, p. 115), discussões relacionadas à questão das creches

tomam espaço no cenário social e político, no ano de 1986, devido à elaboração do Plano

Nacional de Desenvolvimento. Debates sobre a função da creche, o trabalho a ser

desenvolvido pelos educadores e a quem se destinaria esse equipamento buscavam romper

com as concepções construídas e sustentadas até então.

(...) começava a ser admitida a ideia de que a creche não dizia respeito apenas à

mulher e à família. (...) Retomou-se a discussão sobre a função da creche (...) e

de novas programações pedagógicas que buscavam romper com concepções

meramente assistencialistas e/ou compensatórias, propondo-lhes uma função

pedagógica que enfatizasse o desenvolvimento linguístico e cognitivo das

crianças (OLIVEIRA, 2011, p.115).

Em 1988, a Constituição Federal estabeleceu a educação infantil como um dever do

Estado e direito da criança e não apenas da mãe trabalhadora. Destacou o direito à

educação visando o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente assegurando

igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, o direito de serem

atendidos em instituições educacionais desde o nascimento e de serem respeitados por seus

educadores.

A infância passa a ser reconhecida desde então como uma fase da vida com

características peculiares e um período essencial do desenvolvimento do ser humano. Foi a

partir daí que a creche, segundo Montenegro (2005), ganhou legitimidade oficial.

A Lei 9394/96 reafirma a educação infantil como etapa inicial da educação básica

e direito da criança. O texto oficial prima pela garantia de atendimento educacional em

creches à criança, desde seu nascimento até os três anos de idade, prevê medidas referentes

às condições de funcionamento das unidades de educação infantil e ressalta, ainda, a

valorização dos profissionais da educação (OLIVEIRA, 2011).

Ainda na década de 1990 é criado o Estatuto da Criança e do Adolescente. O

documento ressalta que a criança possui “todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa

humana”. No que diz respeito à educação, acentua que esta deve possibilitar o

desenvolvimento pleno da criança.

Nota-se, sobretudo, nas últimas décadas, um esforço contínuo para a

implementação de iniciativas que colaborem para que as práticas educativas nas unidades

de educação infantil brasileiras possam se consolidar.

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1.2 Legislação Atual e Políticas Educacionais.

A educação infantil no Brasil tem sido foco das políticas educacionais e de debates

acadêmicos no que tange à universalização. Nesse sentido, a discussão sobre políticas

públicas, embora não seja o escopo central deste trabalho, é necessária para

compreendermos a importância de ações afirmativas na busca pela melhoria da qualidade

da educação em nosso país e na efetivação dos direitos das crianças, das famílias e dos

educadores. Acreditamos que as políticas públicas podem ajudar a superar ou reforçar6 as

desigualdades presentes nas diferentes esferas da sociedade.

Inspirado na LDBEN em vigor, o Plano Nacional de Educação, elaborado em 2001 e

com validade para dez anos, visava ampliar o atendimento de crianças na faixa etária de

zero a três anos em instituições educacionais. Convém salientar que esta é uma meta ainda

perseguida nos dias atuais. O gráfico a seguir ajuda a entender o porquê disso.

Gráfico 1- Taxa de frequência bruta a estabelecimento de ensino da população residente, segundo os

grupos de idade. Brasil- 2002/2012

Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2002/2012.

(1) Exclusive a população rural de Rondônia, Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.

Com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2012

(PNAD), a taxa de frequência bruta das crianças em idade de creche subiu

aproximadamente 10%, considerando o período analisado. Em relação à população com

6 No capítulo 4 trazemos exemplos de reforçamento das desigualdades no âmbito da educação infantil, fruto

de uma política segregacionista que concebe a trabalhadora da creche como não pertencente à classe de

trabalhadores da pré-escola, todos professores de educação infantil.

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31

idade para cursar os ensinos fundamental e médio, houve um pequeno aumento como

podemos verificar no gráfico acima.

A taxa de frequência das crianças com idade entre quatro e cinco anos foi a que

mais cresceu nos últimos anos, conforme os dados da pesquisa, sendo superior à somatória

dos demais percentuais obtidos no período analisado.

Corroborando os dados apresentados no gráfico, em 2010, o Censo Escolar7

apontava para um aumento considerável no número de crianças matriculadas na educação

infantil. Dois anos depois, o MEC divulgou uma nota na qual afirma que o número de

crianças atendidas em creches no país subiu substancialmente, tendo o estado de São Paulo

o segundo maior percentual de crianças atendidas em creches8.

Nosso desejo é que esse aumento do contingente de crianças na educação infantil

seja acompanhado da garantia da qualidade dos serviços destinados a elas nesses espaços.

Contudo,

(...) passados vinte e quatro anos da aprovação da Constituição de 1998 e dezesseis

anos da LDB, ainda há uma grande distância entre o que determina a legislação e o

alcance das políticas públicas implementadas no país para efetivar o direito à

educação infantil (CARDOSO, 2014, p.88).

Apesar do avanço, a universalização do atendimento escolar e a ampliação da oferta

de creches para atender a 50% da população de até três anos ainda são desafios a serem

superados.

Outra meta explicitada nos Planos decenais de 2001 e de 2011 diz respeito à

valorização e formação dos profissionais da carreira do magistério e carece de especial

atenção.

1.2.1 A Formação das professoras de creche

Desde a década de 1980 o debate em torno do profissional da pequena infância vem

se fortalecendo; com isso, estudos sobre a qualidade da educação infantil brasileira têm

ressaltado as especificidades do trabalho desenvolvido junto a crianças pequenas no âmbito

dessas instituições.

7 Fonte: http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2013/04/numero-de-creches-e-pre-escolas-sera-

ampliado-ate-2014. Acesso em 23/07/2014. 8Fonte:http://www.educacao.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=17753:numero-de-

criancas-em-creches-cresce-150-em-uma-decada&catid=207&Itemid=86. Acesso em 25/07/2014.

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Mesmo sendo a creche uma instituição antiga em nosso país (DIDONET, 2001), a

preocupação com a formação de suas profissionais é algo bastante recente. No município

de São Paulo, durante a primeira metade da década de 1980, iniciou-se um importante

debate sobre a regularização dos cargos públicos e criação de carreiras na esfera municipal,

que culminou com a aprovação da Lei 10.430 de 1988.

No caso das pajens, termo utilizado para denominar as profissionais de creche,

ainda vinculadas à Secretaria de Assistência Social (SAS), a preocupação era ressaltar o

caráter educativo de sua função; entretanto, o fato de não serem concebidas como

professoras, mas “educadoras-natas”, implicou atribuir ao cargo “a responsabilidade pelo

desenvolvimento infantil, mas sem o caráter educativo que exigiria uma formação

acadêmica específica” (CAPESTRANI, 2007, p. 63).

O termo pajem historicamente esteve associado ao cuidado e traz traços de uma

sociedade em que se estabeleceu uma dicotomia entre cuidar e educar e que deixou marcas

na sociedade como um todo e apresenta resquícios na cultura, na prática escolar infantil e

no processo de profissionalização do professor desse nível de ensino.

Com a inclusão da educação infantil ao sistema de ensino, o caráter educativo das

creches é ressaltado e a exigência por qualificação profissional passa a ser cada vez maior.

A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível

superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e

institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o

exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do

ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal (LDB-

Art. 62º).

A LDB ainda instituiu, em seu artigo 87º, “A década da Educação”, que

compreendia o período de 1997 a 2007. No parágrafo 4º afirma-se que “somente serão

admitidos professores habilitados em nível superior ou formados por treinamento em

serviço”. Estados e Municípios tiveram de se organizar para garantir a formação de seus

educadores visto o que determinava a Lei de Diretrizes e Bases do Ensino Nacional.

Os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da educação,

assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do

magistério público: I – ingresso exclusivamente por concurso público de provas

e títulos; II – aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com

licenciamento periódico remunerado para esse fim; III – piso salarial

profissional; IV – progressão funcional baseada na titulação ou habilitação, e na

avaliação do desempenho; V – período reservado a estudos, planejamento e

avaliação, incluído na carga de trabalho; VI – condições adequadas de trabalho

(LDB, artigo 67).

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Em cumprimento à Lei, foi criado no município de São Paulo o Programa ADI

Magistério, que tinha como meta formar as profissionais de creche. A parceria da

Secretaria Municipal de Educação com a Fundação Vanzolini permitiu a cerca de 3.6009

ex-pajens a formação em nível médio na modalidade normal. Não obstante, questões de

cunho discriminatório perduravam. De igual maneira, a ideia de polarização da educação

infantil se mantinha (SENE, 2010).

A iniciativa do governo paulistano possibilitou a mudança de cargo, elevação

salarial e integração ao quadro do magistério municipal e contribuiu para uma profunda

mudança em relação às formas de olhar e de conduzir a educação infantil em nosso país.

Vale dizer que a última importante modificação da nomenclatura dos cargos das

professoras atuantes em creches ocorreu quando da transformação dos cargos de

Professora de Desenvolvimento Infantil (PDI) para Professora de Educação Infantil (PEI).

Tantas modificações na denominação de cargos envolvendo as profissionais de educação

infantil de zero a três anos podem ser justificadas pela Lei 11.229/92, que tem como

princípios o aprimoramento da qualidade do ensino público municipal e a valorização dos

profissionais do ensino (Artigo 1º, incisos II e III).

Os princípios dos quais trata a referida lei deveriam ser assegurados através de

programas de formação permanente, condições dignas de trabalho e perspectiva de

progressão na carreira (Lei Municipal 11.229/92; Artigo 4º, incisos I, II e III).

O que causa inquietação é pensar como essa mudança de “status” da educação

infantil refletiu, de fato, na vida profissional e pessoal das inúmeras mulheres-mães, e

agora Professoras de Educação Infantil.

Observando a tabela a seguir, nota-se que o número de funções docentes nas

creches brasileiras mais que quadruplicou nos últimos quinze anos. Todavia, o número de

professores cuja formação compreende apenas o ensino médio (normal e/ou magistério)

beira a 40% do total em todo o território nacional.

9 Número de profissionais que concluíram sua formação. Fonte: Fundação Vanzolini.

Disponível em: http://www.vanzolini.org.br/conteudo-76.asp?cod_menu=768&cod_site=76&id_menu=785

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Elaborado pela autora a partir de dados extraídos da Sinopse Estatística da Educação Básica, disponível para consulta em: http://portal.inep.gov.br/basica-censo-escolar-sinopse-sinopse. *Compreende nível médio na modalidade normal e magistério.

O quadro apresentado também indica que, em 2001, pouco mais de 68,5mil

professores trabalhavam em creches públicas e privadas no território nacional, dos quais

apenas 12% haviam concluído o nível superior (MEC/INEP/SEEC, 2001). Nos anos

seguintes observou-se crescente aumento no número de profissionais que atingiram

formação nos níveis fundamental, médio e superior, bem como uma gradativa queda no

número de profissionais que possuíam apenas o ensino fundamental. Os números no

quadro expressam a necessidade de continuar fomentando programas de formação contínua

e qualificação profissional para as professoras de educação infantil que, a nosso ver, se

caracteriza como um dos pilares para a garantia da qualidade do atendimento nessa etapa

da educação básica.

Como vimos, apenas recentemente as políticas educacionais passaram a enfatizar a

importância de formar profissionais para atuar nesse nível da educação básica. Um

exemplo disso está no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI),

no qual se afirma que a garantia de um trabalho de qualidade a ser desenvolvido junto às

crianças depende, em grande parte, da formação das professoras de educação infantil

(BRASIL, 1998).

Outro exemplo está no documento publicado pelo MEC em 1994, denominado Por

uma Política de Formação do Professor de Educação Infantil. Inspirado nos debates e

estudos ocorridos não só no Brasil como também na Europa e Estados Unidos, atribuía

grande importância à capacitação profissional das educadoras da pequena infância e

criticava “a ideia de que bastava apenas ser mulher e gostar de criança para ser educador

infantil” (ROSEMBERG; CAMPOS, 1994, p. 52).

A política preconizava o caráter profissional do trabalho desenvolvido no âmbito

institucional e enfatizava que a educação infantil deveria cumprir com as funções de

educar e cuidar, de maneira complementar e indissociável (BRASIL, 1994).

Total de funções docentes no

território nacional.

Nível de escolaridade dos professores de creche.

Ano Fundamental Médio* Superior

1999 52.378 8.223 33.530 4.705

2001 68.526 7.990 47.137 8.201

2007 95.643 2.896 52.472 40.255

2009 127.657 2.508 66.195 58.954

2013 211.694 1.738 84.550 125.406

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A preocupação com a formação dessas profissionais também pode ser evidenciada

nos estudos de Rosemberg (2002); segundo a autora, a formação possibilitaria romper com

a imagem duplicada que se tem de profissional da educação infantil.

Em virtude de a creche ser alocada no sistema educacional e, em decorrência das

exigências legais, esse “novo” espaço educativo começa a ganhar mais visibilidade no

meio acadêmico. Dessa vez, a preocupação com a qualidade dos cursos e programas de

formação de professores para atuar na educação infantil e séries iniciais do ensino

fundamental é alvo dos estudos de Rosemberg et al (1992); Rosemberg (2002), Kishimoto

(2008) e Maciel e Shigunov Neto (2011).

Esses estudos revelam uma baixa qualidade dos cursos oferecidos em grande parte das

instituições de ensino superior (SILVA, 2013). Além disso, evidenciou-se uma presença

reduzida nos currículos de temas voltados para a educação infantil e “uma ausência do

tratamento de práticas pertinentes ao trabalho com crianças pequenas, em suas diferentes

fases do desenvolvimento” (GATTI et al, 2008, s/p).

Kishimoto (2008) também traz importantes contribuições sobre essa problemática.

Ao destacar que a forma como o curso de Pedagogia é organizado precisa ser repensada; a

autora adverte para a necessidade de “pensar em outra modalidade de formação que

respeite a organização da área da infância, uma pedagogia da infância com novos

pressupostos e com formas alternativas de organização curricular” (KISHIMOTO, 2008. p.

113).

O trabalho na educação infantil carrega consigo muita responsabilidade, por isso

precisa ser valorizado no momento de formação, na instituição onde é desenvolvido e na

comunidade. Professoras bem formadas são fundamentais para o alcance da qualidade do

trabalho e do atendimento nas instituições de educação infantil. Uma boa formação,

contudo, não acontece da noite para o dia: “Ela é um processo contínuo que se inicia antes

do exercício profissional das atividades pedagógicas, prossegue ao longo da carreira e

permeia toda a prática profissional, numa perspectiva de formação permanente”

(MACIEL; SHIGUNOV NETO, 2011, p. 72).

Almejando políticas que questionem e rompam com as raízes ideológicas e

discriminatórias que historicamente alimentam desigualdades no âmbito da educação

infantil, insistimos que os cursos de formação de professores para essa etapa da educação

básica devam propiciar a aquisição de conhecimentos teórico-metodológicos e práticos que

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subsidiem a ação pedagógica sem desconsiderar as etapas do desenvolvimento infantil e a

unidade entre educar, cuidar e brincar.

1.2.2 Educar, cuidar e brincar

Ao longo das duas últimas décadas, a presença do binômio educar e cuidar no

universo da educação infantil tem ganhado força e legitimidade (BRASIL, 2006). Se no

passado as práticas institucionalizadas reforçavam uma ruptura entre educação e cuidado,

criando estereótipos como, por exemplo, a creche como órgão de assistência e a pré-escola

como uma etapa preparatória para o ensino fundamental, atualmente compreende-se que o

“ato de cuidar ultrapassa processos ligados à proteção e ao atendimento das necessidades

físicas de alimentação, repouso, higiene, conforto e prevenção da dor” (BRASIL, 1999, p.

68).

O termo cuidar, usualmente, refere-se a zelar pelo bem-estar ou pela saúde de

outrem; entretanto, essa concepção, no âmbito da escola ganha outros significados,

podendo ser compreendida sob diferentes enfoques.

Conforme consta no Projeto Práticas Cotidianas na Educação Infantil: bases

para uma reflexão sobre as orientações curriculares, desenvolvido pelo Ministério da

Educação em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1999, cuidar

exige:

(...) colocar-se em escuta às necessidades, aos desejos e inquietações, supõe

encorajar e conter ações no coletivo solicita apoiar a criança em seus devaneios e desafios, requer interpretação do sentido singular de suas conquistas no grupo,

implica também aceitar a lógica das crianças em suas opções e tentativas de

explorar movimentos no mundo (BRASIL, 2009, p. 68).

A Indissociabilidade entre educação e cuidado se faz necessário para:

(...) afirmar na educação infantil a dimensão de defesa dos direitos das crianças,

não somente aqueles vinculados à proteção da vida, à participação social,

cultural e política, mas também aos direitos universais de aprender a sonhar, a

duvidar, a pensar, a fingir, a não saber, a silenciar, a rir e a movimentar-se. O ato

de educar nega propostas educacionais que optam por estabelecer currículos prontos e estereotipados, visando apenas resultados acadêmicos que dificilmente

conseguem atender a especificidade dos bebês e das crianças bem pequenas

como sujeitos sociais, históricos e culturais, que têm direito à educação e ao

bem-estar (BRASIL, 2009, p. 68).

O RCNEI traz em seu bojo uma concepção de práticas educativas integradoras

voltadas para a pequena infância, apontando para a necessidade de se incorporar nas

“instituições de educação infantil as funções de educar e cuidar”, destacando também a

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importância de não diferenciar ou hierarquizar “os profissionais e instituições que atuam

com as crianças pequenas e/ou aqueles que trabalham com as maiores” (BRASIL, 1998, p.

23).

Durante toda a trajetória de institucionalização da creche em nosso país, muitas

concepções sobre a criança e a função dos equipamentos destinados a atendê-las foram se

modificando em decorrência da luta travada pelos movimentos sociais, por profissionais da

área e por diversas entidades defensoras dos direitos das crianças, além das transformações

advindas dos conhecimentos produzidos e acumulados na área da educação.

Essas mudanças influenciaram fortemente a legislação brasileira; sobre esse

aspecto podemos citar a Resolução nº 05 de 2009, que em seu artigo 5º traz a seguinte

redação:

A Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, é oferecida em creches

e pré-escolas, as quais se caracterizam como espaços institucionais não

domésticos que constituem estabelecimentos educacionais públicos ou privados

que educam e cuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade no período diurno, em

jornada integral ou parcial, regulados e supervisionados por órgão competente do

sistema de ensino e submetidos a controle social.

O referido documento, ao destacar que a educação infantil é um espaço

institucional não doméstico, rompe com o estereótipo historicamente atribuído à creche

como “extensão do lar”, valorizando, assim, as práticas pedagógicas, dando maior

profissionalidade ao segmento e às suas profissionais.

No tocante ao brincar, estudos como os realizados por Piaget, Vigotski, Leontiev,

Wallon e outros teóricos ligados à Antropologia, Psicologia e Linguística enfatizam que o

brincar tem um importante papel no desenvolvimento infantil, além de promover processos

de descoberta de si, do outro e do mundo.

O Manual de Orientação Pedagógica, criado pelo MEC com apoio da Unicef,

considera que “ as interações e brincadeiras são eixos fundamentais para se educar com

qualidade”(BRASIL, 2012, p.11). Atrelamos a esses eixos a formação inicial e contínua

dos professores, de modo que possam construir um conhecimento pedagógico

especializado, dotando-os, como diria Imbernón (2000, p. 66), “de uma bagagem sólida

nos âmbitos científico, cultural, contextual, psicopedagógico e pessoal”.

De acordo com o guia de Orientações Curriculares e Expectativa de

Aprendizagem para a Educação Infantil, elaborado pela Secretaria Municipal de Educação

de São Paulo, o brincar é uma atividade cultural

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38

(...) que possibilita que as crianças se constituam como sujeitos em um ambiente

em contínua mudança, onde ocorre constantemente recriação de significados.

(...) Ao brincar, produzem ações em contextos socio-histórico-culturais que

asseguram não só um conhecimento, mas a segurança de pertencer a um grupo e

partilhar da identidade que o mesmo confere a seus membros (SÃO PAULO,

2007, pp. 54-55).

Em concordância com Vigotski (1933/1966/2007), acreditamos que é incorreto

conceber o brincar como uma atividade sem propósito. Por isso, ao propor uma situação

de jogo ou brincadeira, é necessário que objetivos tenham sido definidos pelo professor. O

momento da brincadeira deve, portanto, ser programado de acordo com os interesses e

necessidades das crianças e considerando o estágio de desenvolvimento em que se

encontram.

O papel do educador como mediador das descobertas e aprendizagens das

crianças também é abordado no Manual de Brincadeiras publicado pela Secretaria

Municipal de Educação de São Paulo em 2006. O texto menciona a importância de

observar as brincadeiras infantis e as formas de brincar das crianças, apontando para a

necessidade de resgatar e valorizar as brincadeiras da cultura infantil e enfatiza que no

contexto da educação infantil é imprescindível que os educadores compreendam a

importância da brincadeira, integrando-a ao educar e ao cuidar durante todo o tempo de

permanência da criança na instituição.

1.3 Organização e funcionamento da educação infantil de zero a três anos

Essa temática é contemplada pelo documento elaborado por Campos e Rosemberg

(2009, p. 07) para o Ministério da Educação, que trata dos critérios para o atendimento em

creches, organizado em duas partes. Na primeira, apresentam–se “os critérios relativos à

organização e ao funcionamento interno das creches” sobre os quais discorremos a seguir.

Na maior parte das creches brasileiras, o atendimento das crianças ocorre

diariamente em período integral. Para um atendimento de qualidade é necessário criar

condições que priorizem a criança e a respeite como sujeito de direitos que vive uma fase

peculiar de desenvolvimento (CAMPOS; ROSEMBERG, 2009).

Uma das maneiras de se evitar que os direitos fundamentais das crianças sejam

feridos é propor uma situação de rotina que compreenda planejamento e flexibilidade das

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ações e práticas didáticas, respeitando-se sempre as necessidades de cuidados específicos

dessa faixa etária.

1.3.1 Organização dos agrupamentos na creche

Segundo consta no RCNEI, a rotina da creche representa “a estrutura sobre a qual

será organizado o tempo didático, ou seja, o tempo de trabalho educativo realizado com as

crianças”, por isso, deve contemplar “os cuidados, as brincadeiras e as situações de

aprendizagens orientadas”, (BRASIL, 1998, p. 54), zelando pela qualidade do atendimento

prestado à pequena infância.

Contudo, Bassedas, Hugut & Solé (1999), ao analisarem a quantidade de crianças

por grupo, consideraram-na excessiva para as educadoras. Visto que nos grupos de

crianças de até um ano (berçário I), cada profissional é responsável pela educação e

cuidado de sete bebês. Crianças com idades entre um e dois anos, formam um grupo de dez

crianças para uma educadora. O número aumenta conforme a idade das crianças;

entretanto, a quantidade de adultos se mantém. Na faixa etária de 2 a 3 anos, 18 crianças

“torna-se um número excessivo para a educadora”, afirmam (p. 98).

Consideradas as peculiaridades e características próprias de cada faixa etária, a

organização dos espaços educativos deve contemplar a necessidade e o direito da criança a

um ambiente aconchegante, seguro e estimulante, no qual ela se sinta motivada a interagir,

onde possa se sentir protegida e expressar seus sentimentos (CAMPOS; ROSEMBERG,

2009).

No que diz respeito à sala de aula, o Ministério da Educação estabelece como

critérios para o atendimento de qualidade nas creches:

A arrumação com capricho e criatividade dos lugares onde as crianças passam o

dia, incluindo-se a observação das salas se são claras, limpas e ventiladas.

A organização de lugares agradáveis nos quais as crianças possam se recostar e

desenvolver atividades calmas; além de lugares adequados para seu descanso e

sono (CAMPOS; ROSEMBERG, 2009, p. 17).

A organização dos espaços na educação infantil de zero a três anos deve primar

pelo respeito às diferentes necessidades dos pequenos e precisa estar de acordo com a

proposição de diferentes atividades. Nesse sentido, Zabalza (1998, p. 50) afirma que o

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“espaço acaba tornando-se uma condição básica para poder levar adiante muitos dos outros

aspectos-chave” de uma educação de qualidade.

Em concordância, Forneiro (1998) afirma que a organização do espaço permite que

o mesmo se torne um ambiente rico e estimulante para as aprendizagens infantis.

Na sua consideração educativa, o espaço é um acúmulo de recursos de

aprendizagem e desenvolvimento pessoal. Justamente por isso é tão importante a

organização dos espaços de forma tal que constituam um ambiente rico e

estimulante de aprendizagem (FONEIRO, 1998, p. 241).

Vale ressaltar que, no âmbito institucional, não é a quantidade ou tamanho dos

espaços que caracterizam a qualidade do trabalho desenvolvido diariamente junto às

crianças, mas as possibilidades que esses espaços dão a elas: possibilidades de interação de

autoconhecimento, ricos momentos de aprendizagem, de trocas afetivas e descobertas.

1.3.2 Funcionamento

As normas de funcionamento dos centros de educação infantil municipais estão

apoiadas nas Portarias nº5152, de 19/10/07; 4022, de 23/06/03, e na Deliberação do CME

01/99. No entanto, anualmente são publicadas portarias que dispõem sobre a organização e

os critérios de atendimento nas unidades de educação infantil de zero a três anos, tendo em

vista a demanda por vaga. A Portaria nº 5152/07 ainda trata da titularização das

profissionais de creche e ressalta que as mesmas devem ter a formação mínima prevista na

Lei de Diretrizes e Bases em vigor, a saber, a oferecida em nível médio na modalidade

normal.

A LDB traz em seu título V, Art. 8º, parágrafo 2º, que os sistemas de ensino

brasileiros têm liberdade de organização. Desse modo, e com base nos dispostos legais, o

atendimento em creches públicas tem sua “duração igual ou superior a sete horas diárias,

compreendendo o tempo total que a criança permanece na instituição” (BRASIL, 2010, p.

15).

Percebe-se, portanto, que a legislação contempla a educação da criança de zero a

três anos na perspectiva de uma educação integral, com vistas a possibilitar seu pleno

desenvolvimento, considerando seus múltiplos aspectos (BRASIL, 1994; 1998; 2009),

incluindo a formação dos educadores para atuar especificamente com crianças dessa faixa

etária. Contudo, observada a extensão do território nacional e as diferenças sociais e

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econômicas, ainda há um longo caminho a ser percorrido para garantir um atendimento de

qualidade em todas as instituições de educação infantil brasileiras.

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CAPÍTULO 2. REFERENCIAL TEÓRICO

Preciso ser um outro

para ser eu mesmo (...)

Existo onde me desconheço

aguardando pelo meu passado

ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro

no mundo por que luto nasço.

Mia Couto

2.1 Identidade

Este capítulo tem como objetivo discutir especificamente a abordagem teórica

acerca da identidade, adotada nesta pesquisa, tendo por base a elaboração teórica de

Ciampa (2005). Segundo Lima (2010, p. 169), pesquisar identidade é buscar compreendê-

la em toda sua abrangência e complexidade.

Sabemos que nenhuma identidade se constitui isoladamente, tampouco se trata de

algo imutável; por isso, quando se objetiva desvendar identidades é fundamental que

consideremos a realidade social e profissional e a trajetória de cada indivíduo (ALFONSI,

2013). O conceito de identidade aqui adotado, o de Ciampa (2005), é compreendido como

processo constante de metamorfose.

A escolha por esse teórico e não outro se justifica pelo fato de considerarmos

Antonio da Costa Ciampa um dos pioneiros na construção de uma psicologia social crítica.

Além disso, Lima (2010, pp. 137-138) afirma que “Ciampa conseguiu propor uma teoria

de identidade que espelha o processo de metamorfose de nossa sociedade e as dificuldades

de emancipação”.

Em A Estória do Severino e a História da Severina, Ciampa assumiu uma

concepção de identidade que rompia com as teorias naturalizantes importadas e utilizadas

no Brasil, que sustentavam uma ideia de identidade como algo dado.

Para o autor, a identidade não é natural, é um processo dinâmico, de constante

metamorfose. O pensamento de Ciampa subverte as concepções teóricas predominantes até

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o final da década de 1970, superando a ideia de “identidade pessoal” em defesa de uma

identidade constitutivamente social (LIMA, 2010).

Em sua tese de doutorado, Ciampa prevê uma articulação entre unidades de

contrários. Lima (2010, p. 141) confirma nossa proposição ao afirmar que “Ciampa propõe

que a identidade é a articulação tanto entre diferença e igualdade (ou semelhança), como

objetividade e subjetividade”. Sem essa unidade, acreditamos que seria impossível falar de

identidade como processo constante de metamorfose. Para explicar como esse processo

ocorre, Ciampa recorre à dramaturgia: “Metodologicamente, isso implica defender que a

identidade passa a ser vista, expressa empiricamente, por meio de personagens, e que é a

articulação dessas personagens que vai construir a identidade”, esclarece Lima (2010, p.

144).

Nas palavras de Ciampa (2005, p. 205), “podemos dizer que as personagens são

momentos da identidade, degraus que se sucedem, círculos que se voltam sobre si em um

movimento, ao mesmo tempo, de progressão e de regressão”. Compreende-se, desse modo,

que não existe identidade fixa, imutável ou desligada das condições históricas, sociais e

materiais às quais o individuo está sujeito.

Em concordância, Oliveira (2006 et. al, p. 550) afirma não ser possível

compreender o conceito de identidade isolado das identidades de “gênero, familiares,

religiosas, raciais, de classe, que são carregadas de contradições, cujas marcas

socioistóricas aparecem nos relatos que as pessoas fazem de si”.

Falar de identidade é considerar o ontem, o hoje e o porvir, pois “ficar só no ontem

é tão absurdo quanto ignorá-lo. O mesmo vale para o hoje e o amanhã” (CIAMPA, 2005,

p. 207). É nesse prisma que esta pesquisa se baseia.

Buscando compreender como vão se constituindo as identidades profissionais das

trabalhadoras da educação infantil, colocamo-nos na condição de ouvintes para captar suas

histórias de vida. Os relatos que as profissionais faziam de si nos revelavam diferentes

personagens encarnadas por elas. Essas personagens, segundo Pacheco e Ciampa (2006),

vão se constituindo mutuamente, de modo que:

(...) o desenvolvimento da identidade resulta da interação das personagens encarnadas pelo indivíduo. Muitas são as personagens que aparecem na vida das

pessoas, sendo que a transformação do sujeito advinda deste movimento de

morte e vida, em que uma personagem é abandonada e outra surge (...) é que

permite a concretização da identidade como metamorfose em busca de

emancipação (PACHECO; CIAMPA, 2006, pp. 164-165).

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A citação acima nos ajuda a concluir que é impossível ao homem viver sem

personagens, pois a identidade humana jamais poderá ser representada em sua totalidade

(CIAMPA; 2005; 2012).

Estudando Ciampa, compreendemos que a identidade é a expressão de várias

personagens que se articulam dialeticamente e, por conseguinte, revelam o Eu do

indivíduo, pois:

(...) cada posição minha me determina, fazendo com que minha existência

concreta seja a unidade da multiplicidade, que se realiza pelo desenvolvimento

dessas determinações. Em cada momento de minha existência, embora eu seja

uma totalidade, manifesta-se uma parte de mim como desdobramento das

múltiplas determinações a que estou sujeito (CIAMPA, 2012, p. 67).

Dessa maneira, entendemos o indivíduo como um portador de múltiplos papéis que

ora coexistem, ora se alternam e dialeticamente representam o sujeito em todas as suas

determinações. Para Lima (2010, p. 145), essa ideia de personagem proposta por Ciampa

explicita “que o papel é uma atividade previamente padronizada, uma tentativa de controle,

administração e reprodução da identidade pressuposta”.

Explicando o que significa identidade pressuposta, Pacheco e Ciampa (2006, p.

164) salientam:

Pressuposições de identidade sempre afetam a todos. Mesmo antes do nascimento de um filho, é possível que os futuros pais já tenham expectativas

que irão interferir significativamente no desenvolvimento e formação da criança

que ainda não nasceu. Ou seja, já nascemos com uma identidade pressuposta,

nem que seja a de que ‘meu filho vai ser o que ele quiser, não o que eu quero’.

Contudo é importante lembrar que há outras pressuposições, além das

expectativas dos outros significativos (como é o caso dos pais), que constituem

uma complexa rede de relações intersubjetivas que organiza a sociedade como

um todo, envolvendo as relações de classe, social, trabalho, gênero, religião,

etnia, faixa etária etc.

Ainda segundo esses autores, quanto maior o conformismo com as convenções

sociais, mais as identidades pressupostas serão repostas, consolidando uma tradição que

torna natural o que é social e consequentemente histórico. Com isso, a identidade pode

parecer estática ou inalterada, contudo, isto é só na aparência. Ela está sendo transformada

à medida que, através de suas ações, o sujeito repõe aquilo que a sociedade põe como

certo, isto é, aquilo que as normas sociais e o pensamento ideológico dominante

estabelecem como mais adequado (PACHECO; CIAMPA, 2006). É nesse processo que o

movimento de mesmice, empregado por Ciampa (2005; 2012), se origina.

Lima (2010, p. 149), a partir das proposições de Ciampa, explica que “o movimento

de mesmice é um fenômeno decorrente da reposição da identidade que pode se dar como

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consciente busca de estabilidade ou inconsciente compulsão à repetição”. A mesmice é

dada como natural e não como uma reposição de uma identidade que uma vez foi posta.

Nesse processo, a identidade perde seu caráter de historicidade e se aproxima mais da

noção de “mito”, que prescreve as condutas adequadas, reproduzindo o social sem

questionamentos por parte do sujeito (CIAMPA, 2005; PACHECO; CIAMPA, 2006).

Nessa perspectiva, a metamorfose, que nesses termos se dá por reposição, pode ser julgada

como negativa, pois o que de fato se impede é a emancipação (PACHECO; CIAMPA,

2006, p. 164).

Entendemos por emancipação a possibilidade que o indivíduo tem de um agir mais

livre e criativo para alcançar seus objetivos e realizar seus desejos (PACHECO; CIAMPA,

2006). Emancipar-se é transformar-se em outro “outro” sendo si próprio. Tal

transformação é denominada por Ciampa (2002; 2005) como mesmidade; para ele a

mesmidade é a superação da mesmice, a transformação do ser, não como uma atualização

de uma essência, mas como superação das determinações exteriores. Nesse movimento o

indivíduo se apropria de novos valores, novas normas de conduta que são produzidas no

próprio processo de produção da identidade.

No capítulo quatro discorreremos mais profundamente sobre o sintagma identidade-

metamorfose-emancipação adotado por Ciampa (2005; 2012), concretizado nas narrativas

coletadas para este estudo. Por ora queremos retomar uma ideia explicitada por Ciampa em

A estória do Severino e a História da Severina, que nos conduz ao entendimento de que a

identidade resulta da superação de uma contradição e se configura na dialética posição-

reposição, podendo ser tanto positiva como negativa. A identidade do indivíduo é,

portanto, resultante da articulação que ele próprio faz com o que fizeram ou fazem dele em

todos os momentos de sua história (LIMA, 2010). Por isso, identidade é movimento!

Compreendê-la nesses termos implica aceitar o inacabamento do humano, requer aceitar e

acreditar que o homem é um eterno vir-a-ser e, portanto, não existe uma natureza dada,

pronta e acabada. Requer a compreensão de que o homem vai se constituindo homem, vai

se humanizando ao passo que produz a própria história, sendo ele mesmo produto dela.

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CAPÍTULO 3. A PESQUISA

Trata-se de um estudo sob o enfoque da Psicologia Sócio-histórica cuja base está na

Psicologia Histórico-Cultural de Vigotski (BOCK; 2001). Neste estudo, a categoria

identidade será a base teórica e o fio condutor do processo metodológico. Essa abordagem

encontra-se fundamentada “no marxismo e adota o materialismo, histórico e dialético

como filosofia, teoria e método” (BOCK 2001, p. 17).

O problema a que esta pesquisa procurou responder é: como se dá o processo de

constituição da identidade de professoras de educação infantil que atuam em creches e que

iniciaram sua atividade com “pajens”.

3.1 Objetivos

Esta pesquisa tem como objetivo investigar o processo de constituição identitária

das professoras de educação infantil que atuam em creche e se justifica pelo fato de ainda

ser um tema pouco explorado em pesquisas sobre a docência na Educação Infantil de zero

a três anos. Para isso, espera- se responder às seguintes questões:

Como os percursos da vida pessoal e profissional contribuíram para sua constituição

identitária?

Quais os sentimentos e perspectivas das educadoras em relação ao fazer docente?

Qual o significado que essas profissionais dão à função desempenhada?

É importante frisar que, para que esses objetivos sejam atingidos será necessário

apreender o conjunto de significados e sentidos atribuídos pelas educadoras a partir de suas

vivências e experiências nos diferentes tempos e momentos de sua trajetória de vida.

3.2 Concepção de homem para a Psicologia Sócio-histórica

A Psicologia Sócio-histórica acredita que o “homem que se constitui numa relação

dialética com o social e a história” (AGUIAR, 2002, p. 129).

Como afirma Aguiar (2002; 2006), a constituição dialética do homem não se dá

como mera transposição do social, mas resulta de um processo no qual o sujeito transforma

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o mundo material e social, transformando-se a si próprio, criando assim a possibilidade do

novo. Dessa forma, indivíduo e sociedade são constitutivos um do outro.

Rego (2012, p.98) também traz uma importante contribuição sobre a noção de

constituição humana:

A noção de constituição de homem como ser histórico traz implícita a

concepção de que não há uma essência humana dada e imutável, pelo contrário,

supõe um homem ativo, contínuo e infinito de construção de si mesmo, da natureza e da história.

No que concerne à história, encontramos nas obras de Vigotski duas maneiras de

compreendê-la: “em termos genéricos, significa ‘uma abordagem dialética geral das

coisas’; em sentido restrito, significa a ‘história humana’” (SIRGADO, 2000a, p. 48).

Esses dois modos de compreensão da história revelam a preocupação de Vigotski

de articular a história individual à história da espécie humana (evolução). Podemos

depreender, segundo a abordagem sócio-histórica, que os indivíduos não são iguais entre

si, mas de algum modo eles incorporam a história e a cultura. Desse modo, o homem é um

ser histórico, social e individual ao mesmo tempo, portanto, não dicotômico10

.

Sirgado (2000b) comenta também que a história de cada indivíduo singular está

fortemente ligada à história de seu meio. Colocadas as coisas dessa maneira, podemos

afirmar que todas as pessoas são diferentes, que cada uma é uma história e não

simplesmente tem ou teve uma história ou um passado.

Ciampa (2005, p. 207) diz: “Quando afirmamos que, como ser histórico, como ser

social, o homem é horizonte de possibilidades, estamos pensando em todas as dimensões

do tempo”. A partir dessas contribuições, acreditamos que seria impossível investigar a

constituição identitária das professoras de educação infantil sem contemplá-las em sua

temporalidade ou abrindo mão de seus projetos e desejos. Impossível seria discutir o

conceito de identidade como constante movimento e que se transforma, sem o amparo de

uma teoria e método que compreendam a realidade e os sujeitos em constante

transformação e sem entender as determinações históricas e sociais acerca do fenômeno

analisado.

Nossa tarefa, portanto, é ir além da mera descrição da realidade, saindo da

aparência, e buscar a construção de um conhecimento que seja desvelador da realidade

investigada. Para Aguiar e Ozella (2013):

10 Ideia baseada em anotação de aula, da disciplina Contribuições de Vigotski para a Pesquisa e Educação,

ministrada pela Professora Drª Wanda Maria Junqueira de Aguiar (1ºsemestre/2014).

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Método é aqui entendido, para além de sua função instrumental, como algo que

nos permite penetrar no real, objetivando não só compreender a relação

sujeito/objeto, mas a própria constituição do sujeito, produzindo um

conhecimento que se aproxime do concreto, síntese de múltiplas determinações

(pp.300-301).

Assim, o método não se reduz à sua função instrumental. A escolha do método, na

perspectiva sócio-histórica, requer que o pesquisador vá além da aparência e da mera

descrição dos fatos e exige uma compreensão da constituição do objeto estudado em seu

processo histórico.

3.3 Procedimentos

Para investigar o processo de constituição identitária das professoras de educação

infantil, optamos por um estudo qualitativo, a partir da entrevista de três profissionais que

atuam nesse segmento da educação básica, que não apenas atuam acompanharam o

movimento da creche no Brasil, como também foram protagonistas desta história marcada

por lutas, contradições e esperança.

Elegeu-se como critério para escolha das participantes o tempo de exercício no

magistério infantil. Interessava-nos entrevistar profissionais que iniciaram na função de

pajem, lactarista, auxiliar de desenvolvimento infantil e que ainda desenvolvem suas

atividades em sala de aula.

Para a obtenção das informações necessárias aos interesses da pesquisa, optou-se

por utilizar a entrevista não diretiva, com foco na história de vida, como instrumento para

coletar as histórias de vida de três professoras de educação infantil que atuam numa creche

pública municipal, localizada numa região periférica da cidade de São Paulo.

Escolheu-se essa técnica, pois, segundo Lüdke e André (1986, p. 33), esse tipo de

entrevista permite ao “entrevistado discorrer sobre o tema proposto com base nas

informações que ele detém e que no fundo são a verdadeira razão da entrevista”. Ainda

segundo as autoras, essa técnica possui grande vantagem sobre as demais, pois “permite a

captação imediata e corrente da informação desejada, praticamente com qualquer tipo de

informante e sobre os mais variados tópicos” (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 34).

Me conte a sua história de vida foi a frase precedida aos relatos das histórias

vivenciadas pelas educadoras e, de acordo com Oliveira et. al (2006, p. 549), esta é “uma

forma de trazer à tona como fomos construídos ou como estamos continuamente nos

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reconstruindo no próprio ato de relatar histórias para diferentes interlocutores em outros

momentos e espaços.

Pretendíamos, além da compreensão do significado por elas atribuído à função

desempenhada, compreender como o ofício e os percursos da vida pessoal e profissional

contribuíram e afetaram a constituição de sua identidade docente.

Os relatos das educadoras foram coletados e gravados mediante expressa

autorização das mesmas. Adotou-se esse tipo de entrevista por acreditarmos que uma

pesquisa que se pretenda histórica e social deve ir além do discurso aparente. Assim, a

entrevista aberta nos colocaria “face a face” com nossas participantes. Interessava-nos

observar suas expressões, apreender o que pensam e sentem; desse modo, foram poucas as

intervenções realizadas pela pesquisadora.

Anterior à coleta das entrevistas fez-se necessário explicar às participantes os

objetivos e interesses da pesquisa. Foi acordado, mediante assinatura de termo de

consentimento livre e esclarecido (TCLE), que as participantes poderiam se retirar da

pesquisa a qualquer momento e sem qualquer tipo de prejuízo.

Após a leitura e aceitação do TCLE, nos colocamos à disposição das professoras.

Os dias, horários e o local foram agendados conforme as possibilidades de cada uma.

Procedemos de igual maneira quanto ao conteúdo das entrevistas; não queríamos, de forma

alguma, deixá-las constrangidas ou enfadá-las com perguntas.

Em seguida, nos dedicamos à transcrição dos relatos com a preocupação de

mantermos a essência de cada uma das histórias a nós confiadas. Diversas leituras do

material transcrito foram realizadas. Nessas leituras, grifamos os trechos mais

significativos da fala de cada sujeito. Buscávamos, segundo Aguiar e Ozella (2013, pp.

308-309):

(...) a partir do que foi dito pelo sujeito, entender aquilo que não foi dito:

apreender a fala interior do professor, o seu pensamento, o processo (e as contradições presentes nesse processo) de constituição dos sentidos que ele

atribui à atividade de docência.

Nesse sentido, Cardoso (2014), salienta que a análise deve estar articulada com a

realidade sócio-histórica, política e econômica a que o sujeito está pertence, pois isso nos

permite apreender o sujeito em sua totalidade.

No próximo capítulo tratamos da análise das entrevistas a partir do levantamento

dos seguintes eixos:

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I. A origem humilde e as marcas da infância das educadoras de creche, constituído

por seis indicadores, quais sejam: origem, escolarização, trabalho infantil,

violência, brincadeiras e projetos de futuro.

II. Trajetórias pessoais e de profissionalização. Aqui apresentamos os percursos

pessoais e profissionais trilhados pelas educadoras e que contribuíram para a

constituição das suas identidades.

III. Dimensão afetiva da prática pedagógica. Abordamos nesse tema o papel do outro, a

relação mãe-professora e a maneira como as educadoras percebem a dimensão

afetiva de sua prática.

Ao longo do capítulo também serão contempladas questões relacionadas às

condições de trabalho, hierarquização, rotina e desvalorização profissional.

Devemos confessar que essa organização não elimina outras formas de

interpretação, bem como não é capaz de dar conta da infinidade de temas que emergem das

narrativas. Contudo, visando responder às indagações colocadas pela pesquisa é que foram

levantadas, pois, expressam os elementos centrais e mais representativos para a

constituição dos sujeitos entrevistados.

3.3.1 O cenário da pesquisa

As entrevistas aconteceram dentro da unidade escolar onde as mesmas atuam. A

creche, pertencente ao sistema público de ensino, está localizada num bairro periférico do

município de São Paulo. A escolha por essa unidade se deu pelo fato da mesma ser uma

das mais antigas da região. Fundado no ano de 1982, o Centro de Educação Infantil “Arco-

Íris” 11

atende, atualmente, em período integral, noventa crianças com idades entre 1 e 3

anos. O quadro docente é composto por vinte e seis professoras de educação infantil com

idades que variam entre vinte cinco e sessenta anos. Destas, apenas três possuem ensino

médio na modalidade normal, das quais duas são participantes da pesquisa.

Há também uma grande variação no tempo de exercício profissional, sendo que há

quatro professoras em fase inicial de carreira (três a cinco anos de docência), cinco atuam

no magistério infantil há aproximadamente dez anos e a maioria se aproxima da

aposentadoria. É o caso das entrevistadas, todas com mais de vinte e cinco anos de

11 Nome fictício.

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experiência na educação de crianças com menos de três anos. São elas: Graça, Diana e

Penélope.

Graça

Tem 62 anos, nasceu na Paraíba. Casada, tem quatro filhos adultos e duas netas. Ingressou

no magistério infantil em 1984, no cargo de pajem. Devido a sua infância pobre e pouca

escolaridade, nunca imaginou que seria professora, aliás, seu maior sonho era o de ser

costureira. Profissional da pequena infância há trinta anos, cursou suplência nos ensinos

fundamental e médio e posteriormente obteve, ao cursar ADI Magistério, formação

específica para atuar na educação infantil. Participou de diversos movimentos sociais,

sendo um deles o Grupo de Mães.

Diana

Jamais sonhou ser professora de educação infantil. Tem 58 anos, nasceu num bairro da

Zona Leste de São Paulo, é divorciada e mãe de três filhas. Atua na educação infantil desde

1985. Nessa época desenvolvia a função de lactarista. Em 1990 assumiu o cargo de auxiliar

de desenvolvimento infantil (ADI) no qual permaneceu por quinze anos até a

transformação do cargo para professora de desenvolvimento infantil (PDI). Aos trinta e

cinco anos cursou suplência nos níveis fundamental e médio, em seguida fez o ADI

Magistério. Possui formação em Pedagogia e pós-graduação em nível de especialização em

Psicopedagogia.

Penélope

Tem 60 anos, é casada e mãe de três filhos. Desde pequena gostava de cuidar de criança,

no entanto, nunca sonhou em ser professora. Sua trajetória na educação de crianças

pequenas iniciou quando tinha apenas nove anos de idade e já era responsável pelas tarefas

da casa e pelo cuidado dos irmãos menores. Ingressou na Prefeitura Municipal de São

Paulo (PMSP), em 1982, no cargo de pajem, cursou suplência nos níveis fundamental e

posteriormente se formou no ADI Magistério, não possui formação em nível superior.

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CAPÍTULO 4. APRESENTAÇÃO, ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

As narrativas que as pessoas fazem de si e de suas histórias nos revelam “um

discurso de um autor-em-obra” afirma Ciampa (2005, p. 161). Em cada história, as

personagens revelam como vão se constituindo. Os autores, atores e personagens dessas

histórias vão ganhando existência pelo agir e pelo dizer.

4.1 Conhecendo as educadoras

Apresentamos a seguir as professoras de educação infantil que participaram desta

pesquisa. Graça, Diana e Penélope, terão suas falas transcritas com tipo e cores diferentes,

para facilitar a discriminação de cada uma delas pelo leitor e, sobretudo, para dar-lhes uma

marca de individualidade.

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Graça

Sua entrevista foi realizada na sala de aula durante o período em que as crianças dormiam.

O ambiente era tranquilo, nos acomodamos em colchonetes junto aos bebês e ao som bastante

tênue de cantigas de ninar. Quando digo para que me conte sua história de vida, ela, surpresa,

indaga: “De quando eu vim da Paraíba”? Quantas vezes ela teria contado sua história? E quais

capítulos teriam mais relevância para ser revelado a outrem, estranho a essa história?

Criada sem pai, cresceu vendo o sofrimento da mãe e sonhando com uma vida melhor, uma

vida menos sofrida. Desde muito nova aprendeu a trabalhar na roça e só aos quatorze anos pôde

frequentar a escola. Um dos sonhos da menina era se casar e mudar-se para São Paulo. Aqui

chegando, enfrentou uma “vida torturosa”. De início, morava de favor na casa de parentes; pouco

depois, com o marido já empregado, conseguiram alugar uma casa. Nessa época, sacrifícios eram

necessários para garantir o pagamento do aluguel. Graça conta que o salário do marido era baixo,

por isso muitas vezes era necessário medir a comida; nenhum desperdício era tolerado.

Certo dia, o locador decidiu aumentar o valor do aluguel, mas Graça e o esposo não tinham

condições de arcar com uma despesa mais alta, senão correriam o risco de passar fome.

Participante do Clube de Mães, recebeu instruções de como proceder legalmente e ganhou, na

justiça, o direito de permanecer na casa. Pouco tempo depois conquistou sua primeira casa própria.

Envolveu-se em diversos movimentos sociais, lutando pela melhoria do bairro onde morava e, a

partir de sua militância social e política, percebeu-se como sujeito de direitos, como ser no mundo.

Foi a partir de sua inserção e atividade no Clube de Mães e nos demais movimentos que surgiu a

oportunidade de trabalhar em creche. Graça, apesar da pouca escolaridade, foi aprovada para o

cargo de pajem, pois comprovou experiência anterior no cuidado de crianças pequenas. O salário,

embora baixo, foi de grande ajuda para as despesas da casa e para a criação dos quatro filhos. No

início dos anos 1990 a exigência por escolaridade fez com que Graça retomasse os estudos. A

rotina de trabalho e estudo, além das tarefas domésticas e cuidados dos filhos, se estendeu por

alguns anos. Formou-se nos níveis fundamental e médio e na sequencia cursou o ADI Magistério,

programa que, segundo ela, foi a salvação de tudo na vida das educadoras de creche. Por não ter

formação, Graça, assim como a maioria,não se enquadrava num “padrão” de docente; contudo, o

formar-se professora somado às vivências da militante das causas sociais possibilitou-lhe a

superação de uma identidade mitificada, permitindo sua emancipação como ser no mundo, sujeito

de direitos, pessoa com voz e desejo.

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Diana

A entrevista foi concedida na sala dos professores. Assim como aconteceu com

Graça, quando lhe peço que me conte sua história de vida, ela indaga surpresa: “O que era

importante na minha vida”? Inicia sua apresentação contando, muito brevemente, onde

nasceu e como foi sua infância. Mas foi ao falar da juventude-que-não-teve, que sua

narrativa se alonga. Enfatiza em seu discurso o trabalho desenvolvido no centro de

educação infantil onde trabalha desde 1985 e a importância dos estudos em sua vida. Para

ela, ter cursado Pedagogia lhe possibilitou descortinar os olhos, abrir a mente. Em suas

palavras “toda realidade se transforma”, ela própria está se transformando...

Foi mãe aos treze anos; nessa época teve que abandonar os estudos e passou a

trabalhar exaustivamente para garantir o sustento da criança. Foi diarista, trabalhou numa

pequena fábrica. Separou-se do marido aos dezesseis anos e com mais uma filha recém-

nascida. Casou-se novamente, dessa vez para fugir da vida que levava na casa da mãe. De

tanto procurar culpados, descobriu-se doente.

Conheceu o budismo, mas questionava a doutrina, não aceitava os ensinamentos.

Conformou-se com sua vida, mesmo sendo ela tão severina. Antes levava uma vida a

“ferro e fogo”; em sua casa os filhos deveriam obedecer às suas regras. Mais tarde,

trabalhando em creche, conviveu com diferentes histórias; vendo problemas maiores que

os seus foi se transformando; aprendeu a sorrir. Mudou-se para a praia. Hoje é uma pessoa

feliz! E se antes procurava culpados por sua vida tão sofrida, pelas mágoas todas que

carregava, hoje já não os procura mais, pois se reconheceu livre, descobriu-se, ao contrário

do que acreditava, capaz de se emocionar.

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Penélope

Penélope inicia contando sobre sua infância. De origem humilde, aprendeu desde

muito nova a cuidar da casa, cozinhar e cuidar dos irmãos enquanto a mãe trabalhava fora.

Aos doze anos já era babá; cuidava de uma criança de oito meses de vida. O trabalho era

realizado com satisfação e foi por muito tempo um projeto de vida. Sempre sonhou cuidar

de crianças pequenas até que, em 1982, o sonho se concretizou; ingressou no cargo de

pajem na Prefeitura de São Paulo.

Casou-se muito jovem e logo descobriu o que era sofrer. Quando do nascimento do

primeiro filho, não tinha o enxoval e desesperava-se ao pensar como faria para sair do

hospital com a criança.

Enfrentou sérios problemas no casamento. O marido viciou-se em jogos, bebidas e,

mais tarde, tornou-se dependente químico. Conta ela que, em meio a tudo isso, descobriu

que o filho mais velho seguia o exemplo do pai. Desesperada, sem saber o que fazer,

encontrou apoio na religião.

Sua última gestação foi descoberta, talvez, no momento mais difícil de sua vida. O

marido quase não aparecia em casa, ficava dias perambulando pelas ruas, cada vez mais

entregue ao vício. A situação financeira estava seriamente comprometida, mas contava

com os sogros e a família por perto.

A pergunta que se fazia era como ter mais um filho vivendo aquela vida? Planejou

o aborto, foi até uma clinica clandestina para tirar a criança, mas desistiu. Retornou para

casa, decidiu pela vida. Ainda que fosse mais sobrevivência do que propriamente vida.

Sobre o fato de sentir-se ou não professora, ela conta que, inicialmente, por não ter

formação, não era respeitada como tal e isso, consequentemente, contribuía para uma

percepção de si como alguém que cuida de criança pequena. Percepção esta que, com a

conquista da formação foi se modificando. O tempo foi passando (...). Eu fiz o curso [ADI

Magistério]. (...) O curso ajudou a mudar nossa autoestima.

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4.2 A origem humilde e as marcas da infância

A origem humilde é um dos pontos em comum entre as profissionais de educação

infantil sujeitos deste estudo e tantas outras que atuam no segmento etário de zero a três

anos. Essa questão também já foi abordada nos estudos de Cerizara (2002) e Cota (2007) e,

aqui, dedicamos esse espaço para que nossas participantes se apresentem e nos contem de

onde vieram e como eram suas vidas.

Falar da origem pobre não nos pareceu um problema para nenhuma das professoras

entrevistadas. Aliás, Graça diz com bastante convicção que “nunca tive vergonha de dizer o

que fui, o que eu era, nem de onde vim”.

Não negando sua origem, seguiu acreditando que um dia tudo mudaria. Mas para

falar da trajetória de Graça, quem melhor do que ela? Com a palavra a menina que sonhava

ser costureira, mas cresceu e se tornou professora.

(...) Eu vim da Paraíba (...) Lá a gente tinha uma vida muito simples. Eu sempre tive o

sonho de um dia (...), quando eu crescesse e ficasse uma moça, casasse com uma pessoa que

me trouxesse para São Paulo. Meus sonhos eram tão simples, eu queria vir morar aqui,

mas uma coisa eu queria, eu queria ser costureira. De todo meu sonho, o maior era ser

costureira, porque eu via as mulheres lá que ganhavam dinheiro, que andavam mais bonitas

e mais bem vestidas, todas eram costureiras. Minhas primas, por exemplo, faziam roupas.

Então, desde pequena eu fazia roupa; catava os pedaços de retalhos da minha mãe e fazia

a roupa das minhas bonecas. (...) Os meus sonhos não eram tão altos assim não. Eu queria

morar numa casa que eu pudesse criar os meus filhos, era isso o que eu queria.

“De todo meu sonho, o maior era ser costureira”, diz Graça. Porém, diz Ciampa

(2005) que o desenvolvimento de uma identidade não depende apenas da subjetividade (do

desejo), mas também das condições objetivas. “Por isso, o homem é desejo. Por isso, o

homem é trabalho. (...) o trabalho é o dar-se, que assim transforma suas condições de

existência, ao mesmo tempo que seu desejo é transformado”(CIAMPA, 2005, p. 208).

Graça, após algum tempo morando em São Paulo, encarnou a costureira que “fazia

pequenos consertos e algumas coisinhas” para ajudar nas despesas da casa. O sonho de

menina se concretiza. Seu desejo se materializa, torna-se real.

(...) quando eu ganhei minha segunda filha, o dinheiro que eu recebi do auxílio maternidade,

(...) eu comprei uma máquina de costura. Desejo e trabalho, apesar de ser uma relação entre dois elementos distintos, são

constitutivos um do outro. Nessa relação, ao mesmo tempo em que não são idênticos, se

compõem porque cada um é constituído pelo outro. Nesse ponto, segundo Aguiar (2000),

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não existe subjetividade sem a relação com o social, ela se constitui nas relações com a

cultura, pois no momento em que indivíduo mantém práticas sociais ele mantém uma

relação que é impregnada de história, cultura, de afetividade, emoções e particularidades,

de ideologia etc.

Ao internalizar o mundo externo, o indivíduo cria uma forma particular, portanto

subjetiva, de representar o mundo externo no mundo interno (AGUIAR, 2000). Desse

modo, nega-se a dicotomia entre subjetividade e objetividade, aqui entendida como desejo-

trabalho, “que passa a ser vista em uma relação de mediação, na qual um existe por

intermédio do outro, sem que um se dilua no outro, perdendo sua identidade” (AGUIAR,

2000, p. 129). Cabe frisar, ainda segundo a autora, que é pela atividade externa que se

criam as possibilidades de reconstrução da atividade interna. Nesse sentido

(...) a atividade de cada indivíduo é determinada pela forma como a sociedade se

organiza para o trabalho, entendido nesse caso como a transformação da natureza

para a produção da existência humana, algo que só é possível na vida social.

Nesse processo, o homem estabelece relações com a natureza e com os outros

homens, determinando-se mutuamente. É nesse sentido que se afirma ser o

homem ativo e social (AGUIAR, 2000, p. 129).

O postulado marxiano atribui grande ênfase no trabalho como atividade

transformadora da natureza e mediadora das relações sociais, na história humana

(SIRGADO, 1990). Por isso, entendemos que o trabalho, na lógica marxiana, não se esgota

no conceito de trabalho partilhado pelo senso comum, muito mais próximo de ocupação,

emprego.

O trabalho, em nossa sociedade se encaixa naquilo que Marx (1848/1989 apud

ALVES, 2010, pp. 6-7) denominou de trabalho alienado, podendo ser identificado de

diferentes formas:

(...) quanto mais o trabalhador se gasta trabalhando, tão mais poderoso se torna o

mundo objetivo alheio que ele cria frente a si, tão mais pobre se torna ele

mesmo, o seu mundo interior, tanto menos coisas lhe pertencem como suas

próprias. (...) o seu trabalho não é voluntário, mas compulsório, trabalho forçado.

(...) não é satisfação de uma necessidade, mas somente um meio para satisfazer

necessidades fora dele (...).

Consideradas essas questões, encontramos na teoria vigotskiana pontos centrais

fundamentados na teoria marxiana. Afirma Vigotski (1984/2007) que o homem ao agir

sobre o meio, o modifica e cria novas condições para sua existência. O trabalho, na

perspectiva materialista histórica e dialética, é central nas relações dos homens com a

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natureza, com a sociedade e consigo mesmo, se caracteriza como ação humanizadora por

meio da qual o homem cria sua própria existência.

Trabalho infantil

O trabalho infantil ainda é uma realidade em nosso país. A Unicef estima que 150

milhões12

de crianças entre e cinco e quatorze anos estejam envolvidas em algum tipo de

trabalho inadequado para sua idade.

Sabemos que muitas crianças trabalham para ajudar no sustento da casa; no entanto,

muitas delas são forçadas a algum tipo de trabalho degradante e perigoso que violam seus

direitos, furtam-lhes o tempo de ser criança e as afasta da escola.

Retornemos à infância de Graça na Paraíba. Ela conta que quando criança

trabalhava na roça e seu sustento e da família eram garantidos pelo esforço diário no

campo.

(...) a gente trabalhava na roça, colhia o feijão e o milho e o resto Deus provia. A gente

criava galinha, então sempre tinha um ovo para comer de mistura (...). Era uma vida difícil,

(...). [Nossa] casa de taipas (...) tinha duas portas, uma na frente e outra atrás, não tinha

nenhuma janela e a gente não tinha cama para dormir. A gente dormia numa rede, dormia

minha avó numa rede, eu e minhas três irmãs dormíamos no quarto com minha mãe e minha

avó e meu irmão dormia na sala. Minha avó contava histórias para gente no escuro porque a

gente não tinha condições de comprar muito querosene, então tinha que apagar o candeeiro

cedo.

Era uma vida muito difícil, diz ela. Nós podemos imaginar o quanto. O que Graça

não diz, vamos nós nos permitindo imaginar. Trabalho árduo em dias sempre muito

quentes; roupas gastas e pés descalços. Vaidade não tinha, se alimentava de sonho. E

como sonhar, se cama também não tinha? Sonhava acordada para não perder a chance de

ver seu sonho chegar.

Costurando mais um pedaço da história de Graça, veremos que o trabalho era um

meio de garantir sua sobrevivência e uma forma de aprender algum ofício.

(...) eu tinha sete anos quando meu irmão pegou uma enxadinha e me ensinou a trabalhar.

(...) Quando eu entrei na escola já estava com treze para quatorze anos, para você ver o

quanto que eu já estava atrasada. Então, já tinha passado tudo, o tempo de infância e

talvez até hoje eu tenha dificuldade em algumas coisas por isso. Uma coisa é você estudar

12 O trabalho infantil viola o direito de milhões de crianças à saúde, à educação e ao crescimento.

Disponível em: http://unicef.org.br/

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sem ter a preocupação de trabalhar para comer e outra é você saber que tem

responsabilidades (...).

Aprendera a segurar uma enxada muito antes de aprender a desenhar as letras.

Expropriada do direito de frequentar a escola no tempo certo, traz ainda hoje as marcas de

uma infância severina.

Situação semelhante encontramos no relato de Penélope. A entrevistada conta que,

ainda menina, começou a cuidar de criança pequena. Era responsável pela organização da

casa, por fazer a comida e cuidar dos irmãos mais novos enquanto os pais trabalhavam.

Depois, foi sua vez de trabalhar para ajudar no orçamento doméstico.

Eu era a mais velha, minha mãe trabalhava e eu cuidava dos meus irmãos, já sabia

fazer comida. Eu aprendi, muito cedo, a fazer comida porque minha mãe me fazia cozinhar

(...). Eu só tinha doze anos quando comecei a cuidar de criança pequena, ela tinha oito

meses. O tempo foi passando, (...) continuei cuidando da criança.

Depois da escola eu almoçava e ia para a casa da vizinha cuidar da criança. Essa

foi a condição estabelecida pela minha mãe, de que eu continuaria cuidando da menina, mas

tinha que estudar. A [vizinha] chegava por volta das dez horas da noite e eu ficava lá, na

casa dela até essa hora.

Apenas doze anos e uma responsabilidade de “gente grande”. Segundo a

Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Unicef, o trabalho infantil doméstico se

configura como uma das formas mais comuns e potencialmente exploradoras do trabalho

infantil no mundo. Como mudar esse quadro? Clamamos por políticas seriamente

comprometidas com os diretitos sociais, com a educação, com a vida. Precisamos romper

com discursos do tipo “é melhor trabalhar do que roubar” que apenas alimentam a máquina

da exclusão social. Precisamos superar essa forma de alienação que se adianta na vida do

homem e dar mais visibilidade à infância.

Compreendemos o trabalho infantil como alienante, pois em ambas as histórias o

trabalho-atividade essencialmente humano cedeu a uma atividade estafante, um meio para

continuar sobrevivendo, privando-as da escolarização adequada e principalmente do

brincar. Essa forma de trabalho, segundo Alves (2010, p.07), “aliena o homem do seu

próprio corpo, tal como a natureza fora dele, tal como sua essência espiritual, a sua

essência humana”.

Outra marca impressa nas histórias de vida das entrevistadas é a pouca

escolaridade. Antes ouvimos de Graça que, quando chegou à escola, seu tempo de infância

já havia passado. Penélope conciliava o trabalho doméstico com os estudos, afinal essa era

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a condição colocada por sua mãe. Já Diana, teve que parar tudo aos treze anos de idade, e

partir daí; ela diz:

Trabalhei muito, trabalhei em casa de família, trabalhei numa fábrica de montar

taxímetro. (...) Parei tudo, só voltei a estudar depois de adulta, com os filhos criados.

As marcas das infâncias vividas nos ajudam a compreender o porquê dessa

escolarização tardia. Embora tenham brincado na infância, nossas participantes confessam

ter enfrentado momentos bastante difíceis. Graça não conviveu com o pai e conta que o

mesmo só passou a “tomar atitude de pai” depois que ela fugiu de casa para se casar.

Resgata na memória a idade em que segurou pela primeira vez uma enxada. Nessa época,

deveria estar na escola; no entanto, o trabalho na roça era prioridade.

Diana também comenta de sua infância:

“Eu tive uma infância gostosa; brinquei muito na rua. Tive uma infância muito

bonita; brinquei muito, porém não tive juventude”.

Fala de uma infância feliz, porém com certa brevidade nas palavras. É como se

quisesse se convencer ou, ainda, compensar a juventude-que-não teve.

“Fui mãe aos 13 anos de idade (...). Fiquei meio perdida na vida por muito tempo

(...) casei com quatorze anos, separei aos dezesseis e conheci o segundo marido aos

dezessete”.

A lembrança de uma infância feliz vem carregada de um sentimento de liberdade

quase apreensível. Sentimento este que a jovem mãe não sentia e tentou alcançar se

prendendo a um relacionamento, inicialmente, sem amor.

“Quando eu conheci esse segundo marido (...) fui logo morar com ele, mas nós logo

nos desentendemos, mas como eu fiquei grávida, decidi ficar com ele mesmo. Ele foi mais

uma fuga. Daí veio a terceira filha, continuei trabalhando e continuei com ele. Aprendi a

gostar dele”.

A fuga era uma forma da jovem mãe, que estava se tornando esposa, romper com o

medo de ter sua filha dada para outra família, afinal, essa ameaça era uma constante em sua

vida, pois:

“[eu] deixava [minha filha] com a minha mãe. Eu morria de medo dela dar minha

filha. Se eu não sustentasse, ela dava!”

Mais uma vez é possível sinalizar, no discurso da entrevistada, o trabalho numa

perspectiva de alienação. Quanto mais se dedicava ao trabalho, “Eu tinha que trabalhar

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bastante”, mais empobrecidas eram as relações com seu meio, mais “vazio” se tornava seu

mundo interior. Era a perda de si mesma.

Penélope não se queixa de sua infância marcada pelos afazeres domésticos e pela

responsabilidade de cuidar dos irmãos. Enquanto a mãe trabalhava, a menina já preparava

a comida, cuidava dos irmãos e ainda arrumava tempo para brincar, de certa forma

resistindo a se tornar adulta e insistindo em manter vivo seu ser criança.

“Quando eu era bem menina, a gente brincava. A gente brincava de casinha, fazia

comidinha e fazia nossa própria bonequinha. Não tinha tudo pronto como é hoje. (...) Não

posso dizer que não tive infância. (...) Fui muito feliz na minha infância e mesmo com toda

minha responsabilidade de cuidar da casa e dos meus irmãos eu ainda tinha um tempo para

brincar”.

Graça lembra com saudade dos tempos em que “catava os pedaços de retalhos (...)

e fazia a roupa das bonecas”. Suas brincadeiras de menina expressavam o universo adulto

do qual ela também era parte. Em ambos os casos, a brincadeira revelava a percepção que

tinham do mundo. Como declara Leontiev (1903-1979):

A brincadeira da criança não é instintiva, mas precisamente humana; atividade

objetiva, que por constituir-se a base da percepção que a criança tem do mundo

dos objetos humanos, determina o conteúdo de suas brincadeiras (LEONTIEV,

1988/2012, p. 120).

A partir da descrição das infâncias foi possível perceber que as circunstâncias

forjaram naquelas meninas, agora adultas, um amadurecimento precoce. Para validar essa

constatação damos a palavra a Penélope: “Passei por esse processo de ser adulta muito

nova.” Ainda que Diana não seja muito explícita, o mesmo é passível de ser observado

implicitamente quando ela fala da gravidez precoce, de ter que trabalhar duro para

sustentar a filha, da separação e de um novo começo (de quando aceitou casar-se sem amor

em troca de alguma liberdade).

Outro elemento que se revela a partir dos depoimentos coletados: a violência

sofrida na infância. Primeiro, queremos dizer que consideramos violência toda ação que

cause marcas físicas, psicológicas ou emocionais no indivíduo. Optamos apresentar esse

tema porque ao longo das narrativas ele aparece com grande força, seja expresso na forma

de ameaça verbal ou pela presença distante da figura paterna, ou ainda, pela imposição de

uma “educação rígida”.

Segundo Bazílio e Kramer (2011, p. 124) “a violência sempre foi usada como

marca de dominação de uma classe social sobre a outra, de um gênero, de uma idade, de

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um grupo social sobre o outro”. Talvez, por essa razão, adultos e crianças tenham

dificuldade de discutir e falar sobre o assunto em questão.

“Eu tive uma educação muito rígida”, afirma Diana, que “por qualquer motivo e, às

vezes, sem motivo” apanhava da mãe. As marcas emocionais deixadas por esse tipo de

“educação” ainda não se apagaram, é possível apreender mágoa e dor no relato que segue:

“Eu vim de uma linhagem na qual ensinamento é apanhar. (...) Por qualquer motivo,

e às vezes sem motivo, era surra. Lembro–me de um dia em que eu cheguei da escola, estava

chovendo, eu deixei o guarda-chuva na área, só que [o chão] era muito encerado, porque ela

[a mãe] tinha mania de muita limpeza. Minha mãe exigia limpeza máxima. Para ela,

pobreza e sujeira não combinavam em absolutamente nada. A área estava encerada e o

guarda-chuva escorregou; eu tirei o sapato, entrei, tirei a roupa molhada; tomei um banho.

Ela me chamou e perguntou se aqui era lugar para deixar o guarda-chuva. Eu apenas

respondi que o havia deixado ali para escorrer a água. No que eu disse isso, um cabo de

vassoura quebrou nas minhas costas. Eu tinha uns nove anos”.

As palavras de Diana “um cabo de vassoura quebrou nas minhas costas” são

chocantes. Essa história aviva em nós qualquer outra situação semelhante que muitos já

viveram, pois muitos não escaparam de uma chinelada, tapa ou beliscão na infância. Não

importa a força, as marcas permanecerão. A menina fora sentenciada sem ao menos saber

qual era seu crime.

A fim de evitar a indução de algum tipo de pré-julgamento, Diana considera

necessário explicar, mais do que isso, analisar a situação de vida da mãe para justificá-la.

Minha mãe era sozinha; somos em cinco irmãos. (...) Depois eu perdi um irmão

assassinado; então isso acabou muito com ela. Outro irmão teve câncer no intestino, superou,

mas foi muito sofrimento. Ela já tinha passado pelo câncer de garganta do meu pai. (...)

Quando ele morreu (...), eu tinha três anos, não o conheci. Então, ela já vinha de uma vida

muito sofrida (...).

Podemos observar o esforço de Diana para compreender as circunstâncias

motivadoras da violência sofrida na infância. No relato anterior, a riqueza de detalhes

revela o quanto os castigos preencheram sua memória.

Quando falamos de marcas da violência, não estamos nos detendo, obviamente,

apenas às cicatrizes deixadas na pele, falamos, sobretudo, daquelas inscritas no psiquismo,

cuja ação do tempo não pôde apagar. Cicatrizes tão fortes quanto as que Graça e Penélope

adquiriram ao longo de suas vidas. Contudo, e contraditoriamente, necessárias para torná-

las mais fortes e fazê-las ser “outra pessoa” (Professora Diana).

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Ser negligente ou omisso, deixar de prover as necessidades básicas para o

desenvolvimento global da criança também são formas de violência. No caso de Graça, ela

conta o dissabor de ter um pai que, embora, sempre por perto, fosse ausente.

“Meu pai era um homem rico, mas nunca me deu nada. Nunca ajudou em nada e

nem reconheceu a gente como filho. (...) Minha maior angústia era quando alguém me

perguntava qualquer coisa sobre meu pai. Isso era muito cruel, porque eu não podia falar

que ele era meu pai; afinal ele era casado com a outra mulher. Ele não me considerava sua

filha, meu irmão (filho desse casamento com a outra mulher) não me considerava como

irmã”.

Ainda que devesse ser herdeira, cresceu sem luxo, mas contava com o amor da avó,

talvez sua maior fortuna. “A gente não tinha roupa, calçado, nós não tínhamos luxo, mas o

amor da nossa avó, a gente tinha” (Professora Graça).

Surge nesse relato a menina ferida de morte por ter (ou não ter, embora ele fosse

tangivelmente presente) um pai e não poder revelá-lo ao mundo. Não poder desfrutar do

afago do pai, não ser carregada por ele nos braços e tantas outras coisas que pais e filhos

podem fazer juntos, também são formas brutais de violência.

Encontramos na legislação vigente a máxima: “nenhuma criança ou adolescente

será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência,

crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos

seus direitos fundamentais” (Art. 5º da Lei 8.069/1990- ECA), no entanto, os relatos aqui

apresentados e as notícias nos jornais e noticiários da TV dão conta de explicitar o quanto

essa lei necessita se concretizar efetivamente para garantir a efetivação de todos os direitos

fundamentais à vida, dos quais um é o direito de sonhar.

Sonhar com uma vida melhor, menos sofrida. Sonhar com uma vida que não seja

assim... tão severina. Uma criança que não sonha é como uma águia nascida sem asas. Não

sonhar é estar condenado a uma vida cinzenta, é mais sobrevivência do que propriamente

vida (DALLARI, 1986).

Os sonhos da infância, como vimos e veremos mais adiante, tornam-se projetos

para um futuro ainda incerto. Na fala de Penélope infante, as primeiras pedras são

colocadas para a construção da personagem que adora cuidar de crianças.

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4.3 Trajetórias pessoais e de profissionalização

Este tema tem o objetivo de discutir os percursos pelos quais as identidades de

Graça, Diana e Penélope foram sendo constituídas até a metamorfose para professora.

4.3.1 Trajetórias Pessoais

“Minha trajetória foi essa...” anuncia Graça, ao começar a narrar mais um capítulo

de sua história. Retirante, chega a São Paulo, onde, inicialmente viveu “uma vida de

miséria”, tendo sido, inclusive, “explorada por um vizinho que detinha um poste de luz”.

Mais tarde se envolveu em movimentos sociais, participou ativamente das lutas por

melhorias no bairro, integrou o Grupo de Mães e em pouco tempo começou a trabalhar em

creche.

“(...) a gente participou de tudo e a nossa primeira briga foi com a Eletropaulo, para

que viesse luz para todo mundo. Um belo dia a gente consegue ganhar e veio luz para todo

mundo, (...) até hoje (...) as pessoas (...) pagam a taxa mínima (...). Com toda essa nossa

luta, a gente conseguiu ter um Clube de Mães”.

A entrevistada salienta que foi fazendo parte de movimentos como esses que ela

começou a “crescer e (...) a ver que o mundo não era só aquele pedacinho que [ela]

conhecia”. Seu engajamento nos movimentos sociais pouco a pouco a faz perceber-se

como sujeito de direitos cuja sua voz merece ser ouvida. Descobre que existia mais espaço

e mais oportunidades para ela no mundo! Assumiu seu lugar no mundo, se autoafirmou

gente.

Com Diana, o despertar para uma nova vida começou quando da sua busca por uma

religião. Afirma ela que andou perdida por muito tempo, e que não aceitava a vida que

vivia.

“Eu olhava aquele Deus lá pendurado na cruz, eu olhava bem para ele e falava: o

que eu fiz para merecer tudo isso? Por que eu mereço tanto castigo? Sabe, era um castigo

aquilo tudo, ter que trabalhar tanto, separar tão nova, ser traída. Eu não podia fazer nada,

não podia sair, não podia fazer nada! Depois, fui andando, procurando religião, (...)

alguém que explicasse o porquê disso tudo”.

Em suas andanças, conheceu o budismo e lá aprendeu que “ninguém era culpado do

meu sofrimento a não ser eu mesma”. Foi estudando as escrituras que ela foi se

“conformando mais”. Estaria se conformando ou se transformando?

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Acreditamos que a palavra correta seja transformação. Diana, a menina que se

tornou mãe aos treze anos, e que queria lançar sobre alguém a culpa por sua infelicidade e

sofrimento, agora está se transformando na budista que aos poucos se vai aceitando sua

própria história. Movimento. Metamorfose.

A história de Penélope se assemelha em muitos aspectos às histórias de Diana e

Graça. No que difere, embora ela não o diga, nós supomos: trata-se da história de uma

mulher negra. Das semelhanças, cabe dizer que se casou jovem, enfrentou muitas

dificuldades financeiras além de problemas com o marido. Diz ela que somente depois de

casada conheceu o que é sofrer.

“Casei muito nova com esse meu marido. Foi então que descobri o que era sofrer.

Sofri e sofri muito com meu marido. Ele bebia e tinha vicio de jogo. Tudo o que ganhava

(salário) deixava no jogo. Perdia tudo (...). Eu não reclamava nem falava nada para meus

pais. Jurei eu não que contaria nada, principalmente para minha mãe, porque eles não

queriam o casamento e eu ainda me lembrava da fala do meu pai”.

Enquanto Diana “levava a vida muito a ferro e fogo” e sempre à procura de

culpados, Penélope sofria calada, pois tinha receio do que as pessoas poderiam dizer,

afinal, ela se casara contra a vontade dos pais. Até que um dia a situação fugiu do controle.

Era hora de pedir ajuda. Mas a quem recorrer?

Assim como Diana, Penélope parecia perdida, “já não sabia mais o que fazer! (...)

só me perguntava o que eu ia fazer da minha vida?” Não encontrando as respostas que

precisava, via pouco a pouco seu lar, sua família, sucumbir por causa dos vícios do marido.

A situação limite em que vivia a obrigou a trabalhar para garantir que “o pão não

faltasse à mesa”. Trabalhou em casa de amigas como diarista, como operária numa fábrica

de pequeno porte e também numa grande montadora de eletrônicos. Em 1982 tem início

sua trajetória profissional na educação de crianças pequenas. Nesse ano, seu desejo de

menina começa a se materializar.

Maternidade dilemática

Não poderíamos, mesmo incorrendo no risco de parecermos redundantes, deixar de

abrir um tópico para tratar desse tema, visto sua magnitude no processo de constituição das

identidades dos sujeitos participantes deste estudo.

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Graça conta que chegando a São Paulo viveu “uma vida torturosa”, nada

comparada com aquela que tinha na Paraíba, pois lá “a gente tinha roça, plantava e comia.

Aqui era mais difícil; (...) porque, se você tiver um trabalho, você tem o que comer e se não

tiver, você vai fazer o quê? É pior ainda!”

De início, dormiam num sofá, ela, o marido e filha, pois não tinham sua própria

casa. Morava de favor na casa de parentes, o esposo ainda não tinha conseguido emprego.

Faltava-lhe liberdade. “Se você não tem seu fogão para cozinhar, você não tem sua casa,

você não tem liberdade”.

Quando engravidou pela segunda vez, a situação era um pouco diferente. O esposo

já trabalhava, haviam conseguido alugar uma casa para morarem, conquistaram um fogão

usado e adquiriram um colchão novo.

Grávida e sem condições para montar o enxoval do bebê, trabalhou num clube de

mães, onde ganhou algumas roupinhas bem simples para a criança: “me ajudaram, [eram]

coisas bem simples, mas mesmo assim foi muito bom, graças a Deus.” Muitas coisas foram

acontecendo na vida de Graça...

“(...) Até que eu fui trabalhar [numa] firma (...). Saía 4 horas da manhã de casa e

só voltava às 10 da noite. Eu engravidei da minha quarta filha. (...) e quando estava com

seis meses de grávida me aconteceu um acidente. (...) fiquei de licença; no seguro do INPS”.

O acidente afetou gravemente a mão de Graça; até hoje ela ainda tem algumas

limitações. Devido a isso, aposentou-se muito jovem. Ainda assim continuava a participar

dos movimentos sociais e a frequentar o Clube de Mães. Foi numa dessas ocasiões que

surgiu a oportunidade de trabalhar em creche. Sua deficiência não foi impedimento para

obter o emprego. Uma das vantagens era a de poder levar a filha pequena, os outros já

eram grandinhos, já estavam frequentavam a escola.

“No começo, eu trabalhava de manhã, então dava tempo de fazer janta e cuidar de

tudo. Depois (...) tive que trabalhar à tarde. Eu (...) sempre dava um banho e penteava os

cabelos dela (filha pequena) lá na creche e vinha correndo. Eu saia 18h da creche e 19h30

tinha que entrar na escola”.

Nessa época, Graça inicia a suplência, pois já era exigido que as educadoras

completassem a educação básica.

Percebe-se na fala de Graça, em diferentes momentos, o quanto era importante para

ela alcançar a liberdade. Conquistar seu próprio fogão foi uma forma de provar esse sabor.

O fogão, para além de um bem material, item de consumo, representava liberdade e ao

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mesmo tempo sua subsistência material. Envolver-se em movimentos sociais, tornar-se

educadora infantil, retomar os estudos mesmo com tantas dificuldades a serem superadas –

e foram!- foram formas de declarar-se livre, de perceber-se como sujeito com lugar no

mundo e não à margem dele.

Diana diz que achava lindo ser menina-mãe. Quando a responsabilidade de

sustentar a própria filha falou mais alto, todo esse encanto foi perdendo espaço para uma

secura interior. Claro que não era apenas o fato de ter que trabalhar para sustentar a filha

que fez dela “uma pessoa seca”, isso decorreu da sucessão de fatos e circunstâncias pouco

felizes que viveu. Mãe aos treze anos e separada do pai de sua filha, se viu obrigada a

deixar a criança aos cuidados da mãe para trabalhar e garantir o sustento da menina, senão

corria o risco de nunca mais tê-la nos braços.

Enfrentou a vida, como ela mesma diz, sem muitos motivos para sorrir, sem ver

beleza nas coisas, sem vaidade. Criou os filhos muito rigidamente, pois foi essa a lição que

aprendera com a mãe. Imprimia nos filhos a mesma educação que recebeu da mãe.

Autoritária, nunca escutava os filhos: “Na sua casa era a sua lei”. Foi avó antes dos trinta,

e conta ela que nessa época sua “vida já estava toda virada”. A personagem “pessoa seca”

ganha espaço no palco da vida de Diana, sufocando assim a “pessoa tímida” que era. Uma

das estratégias para continuar mantendo essa nova personagem era nunca sorrir, procurar

sempre o porquê e os culpados dessa vida tão cheia de des-graça.

Penélope, emprestando o termo de Graça, também teve uma vida muito torturosa.

Com todas as adversidades, com todas as incertezas e medos, não se permitiu “secar”.

Assim, como nos casos anteriores, foi enfrentar a vida.

Recém-casada, morava numa casinha construída no quintal da sogra. Foram tempos

muito difíceis ao lado do marido; sorte que tinha os sogros para ampará-la. Quando ficou

grávida a sogra lhe fez as primeiras roupinhas para a criança. “Só descobri que estava

grávida aos cinco meses de gestação. Não fiz o pré-natal e nem fiz o enxoval do bebê”.

Grávida, trabalhava de diarista e arrumou serviço numa fábrica de fundo de quintal. Na

maternidade pensava em como contaria para a mãe aquela situação: “Eu não tinha

comprado nada. (...) Era tanta vergonha (...). Eu chorei... Como eu ia fazer para sair com o

nenê do hospital?” Penélope, tão jovem, certamente se casou cheia de sonhos, mas dia após

dia vivia a verdade dos conselhos do pai:

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“Meu pai costumava dizer que a única coisa que a mulher escolhe na vida é o

marido. Filhos, pai e mãe não se escolhem, mas o marido é escolha e se você não souber

escolher sofrerá duras penas. Mas quando se é jovem não ligamos para isso. Quando se

está apaixonada não enxergamos outra coisa”.

Toda sua história de esposa e mãe é marcada pelo infortúnio trazido pelo

casamento, pelo drama vivido ao lado do esposo e pela tentativa muitas vezes vã de

reescrita dessa história.

Quando a apresentamos, dissemos que, em determinado momento de sua história,

Penélope descobriu-se grávida e num ato de desespero e de amor, decidiu por não levar a

gestação à diante.

Penélope, mesmo já sendo mãe de outras duas crianças, se negava inicialmente a

tornar-se mãe de uma terceira, visto as condições materiais, psicológicas e afetivas às quais

estava sujeita. “Eu sofri muito (...). O [marido] em vez de ele melhorar, ele piorou muito.

Sabe o que é um homem (...) se envolver com o crack?”. Penélope se mantém em silêncio por

alguns segundos, parece sofrer com a lembrança.

Dando prosseguimento, Penélope conta que seu marido passava dias fora de casa e

quando “ele voltava, chegava num estado de calamidade. Eu nem o reconhecia. Quando ele

chegava, eu pegava um saco de lixo para colocar as roupas dele, enquanto ele ia para o

banheiro tomar banho”. Nesse momento ela baixa seu tom de voz. Na sala, onde a

entrevista foi coletada, éramos só nós duas, ainda assim ela age como se alguém mais

pudesse ouvir seu segredo. Um segredo que a mim era confiado. Diante de tais

circunstâncias “para que pôr mais um filho no mundo?”

Ao descobrir-se mãe numa sala de espera, de algum modo Penélope passou a

representar com mais força o papel de mãe, não mais da mãe que rejeitava a própria cria,

mas de mãe que decidiu, mesmo com tantas adversidades, levar a gravidez adiante e amar

a criança a quem estava gerando. Isso nos leva à compreensão de que a descoberta da

vontade de ser mãe daquela criança e sua imediata manifestação possibilita concretizar em

Penélope a materialidade de sua identidade.

Lima (2010, p. 167) traz uma importante contribuição quando afirma, a partir dos

estudos de Ciampa, que a “identidade se concretiza com base em um processo de

significações estabelecidas com outros indivíduos, no jogo do reconhecimento”. Podemos

inferir a partir daí que as histórias aqui apresentadas, são, sobretudo, histórias de luta por

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reconhecimento. Reconhecimento profissional, mas principalmente, reconhecimento como

seres humanos.

Quando teve inicio sua trajetória na educação infantil, os filhos já haviam atingindo

certa idade, apenas a mais nova era levada para a creche. Começava então a dupla jornada

de trabalho e estudo na vida daquela que já representava os papéis de mulher-mãe-dona de

casa.

Convém lembrar que o particular é síntese do universal, desse modo, entendemos

que as histórias de Graça, Diana e Penélope refletem a história do que é a vida para um

grande número de mulheres.

Quando olhamos para esse retrato social que elas nos dão, é possível perceber ao

fundo as manchas causadas pelo efeito de políticas desiguais, pautadas num ideário

neoliberal. Exemplo disso é a formação aligeirada citada pelas professoras. Note-se que em

sua fala Graça diz que saía do trabalho, deixava a filha em casa e, apressadamente, se

dirigia à escola. Obteve a formação básica necessária para garantir o emprego; entretanto,

ainda hoje, tem “dificuldade em algumas coisas”.

Diana também expressa em seu discurso a necessidade de estudar para manter o

emprego quando diz: “(...) no tempo da Erundina já existiam rumores de que não exerceria

a função a professora que não tivesse faculdade”. Outros exemplos são extraídos ao longo

das narrativas: “Fiz supletivo; era semestral”, diz Diana. Graça corrobora essa afirmação

dizendo: “tudo isso eu fiz no supletivo (...) em dois anos. Eram quatro, mas de seis em seis

meses a gente fazia uma série”.

Maciel e Shigunov Neto (2011), analisando o impacto das políticas neoliberais na

formação de professores, salientam que o processo de mercantilização atinge os serviços

sociais e os transforma em mercadorias a serem comercializadas livremente no mercado;

implicando no âmbito educacional a perda da qualidade dos serviços prestados.

Ao mesmo tempo em que as políticas públicas educacionais neoliberais

proporcionavam uma ampliação dos serviços oferecidos à população, aumentado

com o isso o acesso à educação por parte da parcela mais carente da sociedade,

até então fora do sistema escolar, não investia os recursos necessários para

melhorar os serviços prestados. (...) Em última instancia, isso está refletido na

queda dos índices de qualidade e produtividade da escola pública. Sob o ponto

de vista neoliberal seu objetivo foi atingido, pois houve um acréscimo no número

de pessoas atendidas pelo sistema escolar (MACIEL; SHIGUNOV NETO,

2011, p. 49).

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Ainda segundo os autores, essas propostas colocam em voga números, dados

estatísticos e quantificáveis, deixando de lado o princípio da qualidade. Incoerência e

contradição, pois qualidade e quantidade são coisas distintas.

A crítica dos autores é bastante pertinente, pois o modelo de formação vigente não

é suficiente nem adequado para formar os professores para atuar na educação básica, tendo

em vista os estudos de Gatti et al. (2008) e Kishimoto (2008).

O decantado discurso “educação de qualidade para todos” somente se concretizará

a partir do momento em que a escola for capaz de organizar e promover de forma eficiente

e eficaz ações educativas que sejam ao mesmo tempo competentes e flexíveis e que

considerem as necessidades de sua clientela (RAMOS, 1992).

4.3.2 Trajetórias de profissionalização

Discutimos anteriormente que, anterior à LDB, praticamente inexistia critérios para

a contratação de pessoal para atuar nas creches. Os depoimentos abaixo ilustram bem essa

afirmação.

“A entrevista foi simples, não foi coisa assim difícil, eles fizeram algumas perguntas

para mim: qual é a diferença que eu achava entre os meus filhos e os filhos da vizinha? Eu

pensei, e acho que Deus sempre põe as respostas certas na hora, da vida da gente. Eu pensei

assim: qual é a diferença dos meus filhos e os filhos da vizinha? São crianças do mesmo

jeito, respondi assim. (...) Então eles me mandaram uma cartinha para eu ir à regional (...)

que lá me encaminhariam para uma creche (...) que ficava pertinho da minha casa, lá eu

trabalharia com crianças (...) da comunidade onde eu morava” (Professora Graça).

A fala de Graça corrobora as afirmações contidas na bibliografia que compõe este

trabalho. Para “pajear” crianças não era necessário nada além de experiência anterior de

cuidado com crianças. A pouca escolaridade também não era problema, podendo ainda

justificar a baixa remuneração dessas profissionais.

“Eu tinha só a 4ª série. Acho que todo mundo tinha nessa faixa de estudo”

(Professora Penélope).

“Só tinha a 4ª serie porque também era o exigido. Bastava ter só a 4ª serie!” (Professora Graça).

“Eu tinha a 6ª série e havia parado de estudar na metade da sétima e tinha filhas

estudando, eu olhava o caderno e acompanhava na lição" (Professora Diana).

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No relato que segue, observam-se modificações na maneira de conduzir as

contratações das educadoras de creche e anunciam o início de uma “nova era” na educação

de crianças pequenas.

“Fiz concurso, a prova foi, para quem estava nervosa, difícil. Eu estava tranquila”,

lembra Diana. Nessa época, o município de São Paulo já passava a exigir maior grau de

escolaridade para atuar como educadora nas creches. Essa exigência forçou nossas

entrevistadas a buscar formação. Cursaram suplência nos níveis fundamental e médio; em

seguida obtiveram formação específica para atuar no magistério infantil.

“Na época da [prefeita] Luiza Erundina ela exigiu que a gente começasse a

estudar. (...) Ela exigiu que a gente tivesse até a 8ª série, e tudo isso eu fiz no supletivo. Em

dois anos. (...) E eu continuei tendo que estudar. A gente fez o ensino médio, também foi

supletivo” (Professora Graça).

“(...) no tempo da Erundina (...) já existiam rumores de que não exerceria a função

caso a professora não tivesse faculdade. (...) Fui estudar, fiz supletivo, era semestral. Fiz o

colegial técnico e quando veio o ADI Magistério eu fui direto para a faculdade e fiz

Pedagogia” (Professora Diana).

Vale lembrar que na época em que Luiza Erundina era prefeita de São Paulo (1989-

1991), Paulo Freire estava à frente da Secretaria de Educação do município. De acordo

com Néspoli (2013, p.30), ao longo de sua gestão, Paulo Freire provocou uma intensa

“mudança em relação à forma como se vinha gerindo a educação no país, para isso

fundamentou sua administração em uma política de participação popular”. É partir daí que

se inicia o processo efetivo de escolarização das massas populares. Esse momento político

foi o prenúncio de mudanças que entraram para a história da educação brasileira.

A história da professora de educação infantil que atua nas creches paulistas tem em

suas primeiras páginas relatos sobre a inserção dessas educadoras em cursos supletivos; no

entanto, é via ADI Magistério que suas identidades profissionais começaram a se

consolidar.

Após ter concluído o ensino médio, Graça relata que também cursou o ADI

Magistério e, segundo ela, “foi a libertação de tudo nas nossas vidas”. De que libertação

ela trata? Ou melhor, o que as aprisionava? As palavras de Penélope nos indicam um

caminho.

“O ADI Magistério deu às pajens mais dignidade, o valor e o ganho foram enormes.

(...) Antigamente a gente não se via como professora. (...) O curso ajudou a mudar isso

também, mudou nossa autoestima”.

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Não podemos ignorar que na época da creche como equipamento vinculado à

Secretaria de Assistência Social, vários cursos eram oferecidos às educadoras, contudo,

tinham caráter de treinamento. Mas, como bem lembra Graça, “a gente precisava mesmo de

formação”.

Freire et. al (2014, p. 73) considerando a formação uma demanda fundamental da

educação contemporânea, assinala que é preciso formar, e não treinar os educadores.

Há uma diferença radical entre treinar e formar. Não é somente uma questão

semântica. Formar é algo mais profundo que simplesmente treinar. Formar é uma

necessidade precisamente para transformar a consciência que temos, aumentar sua

curiosidade intuitiva, que nos caracteriza como seres humanos. (...) Do ponto de

vista da educação, uma das questões mais sérias com respeito ao presente imediato

e ao amanha é como formar pessoas de maneira que elas não se percam em meio

às mudanças que a tecnologia vai criando.

Formar professores para a educação infantil é propiciar a aquisição de

conhecimentos teórico-metodológicos e práticos que subsidiem a ação pedagógica sem

desconsiderar as etapas do desenvolvimento infantil, a unidade entre educar e cuidar e que

seja capaz de desmitificar a concepção de creche como extensão do lar, incutindo nos

educadores a consciência de que a creche é um espaço de atuação profissional onde as

relações afetivo-emocionais estão presentes e são necessárias, sobretudo para garantir que

as crianças se sintam respeitadas, seguras e protegidas.

Se no passado essas mulheres, mesmo desenvolvendo atividades de educação e

cuidado, não eram compreendidas nem se identificavam como professoras, é a partir da

formação que elas começam o intenso e contínuo processo de metamorfose profissional.

Na tentativa de garantir que essas poucas palavras que lançamos acerca desse

assunto não soem insípidas, trazemos mais um recorte da narrativa de Penélope:

“Com o tempo a gente foi se acostumando a ser professora; a sociedade passou a

valorizar mais a professora de creche”.

Notemos que a professora diz que “com o tempo, foi se acostumando a ser

professora”. A transformação que insistimos em abordar ocorreu não apenas na esfera

administrativa quando da mudança de cargos e acesso ao quadro do magistério municipal,

aconteceu também nas esferas pessoais e da coletividade.

O reconhecimento social e o prestígio de ser professora foram alcançados à medida

que as personagens centrais, isto é, as ex-pajens/ADIs que agora se transformaram em

professoras, passaram a se reconhecer como tal.

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A importância dos estudos é reconhecida também na fala de Diana, ao afirmar que

o curso de Pedagogia lhe oportunizou um novo olhar sobre o trabalho e sobre a forma de

lidar com a pequena infância.

“A partir do momento que você estuda sua vida muda em todos os sentidos. A sua

vida profissional e a sua vida particular muda em muitas outras coisas. (...) Os estudos

abrem os olhos”.

Começa-se a admitir que o trabalho voltado para crianças de zero a três anos seja

um trabalho pedagógico marcado pela tríade educação-cuidado-brincadeira, que passa a se

incorporar na prática cotidiana das inúmeras professoras de creche. Uma tarefa que une

educação e cuidado exige a aceitação do ser professora e o reconhecimento daquilo que

fazem como uma tarefa de extrema importância (FREIRE, 1993/2007).

O respeito, a valorização e as mudanças destacados nos fragmentos anteriores

reaparecem nas falas de Graça e Diana, reafirmando que agora elas possuem um espaço na

educação, que se sentem pertencentes a um grupo de professores, os que atuam na

Educação Infantil.

“Hoje, ser chamada de professora não é só por causa do dinheiro, mas é pelo

respeito, a valorização que a gente tem. Hoje é muito diferente daquilo que a gente tinha no

passado. De primeiro, quantas vezes a gente ouvia as mães falarem que a gente estava aqui

para cuidar e (...) para isso não precisava estudar” (Professora Graça).

“Ainda hoje alguns falam ‘tia’. Mas hoje percebo que tem um pouco mais de respeito

e valorização. Antes eles achavam que a gente estava aqui e não era mais que nossa

obrigação dar banho, trocar” (Professora Diana).

Mais do que simples palavras, elas expressavam no olhar a grande conquista,

símbolo de sua ‘libertação’. Marcas constitutivas de uma identidade em movimento.

Hierarquização

Tratamos em capítulos anteriores da questão da falta do sentimento de

pertencimento ao grupo de professoras de educação infantil evidenciados em educadoras

de creche (COTA, 2007) e aqui esperamos lançar argumentos que nos conduzam ao

entendimento do como e por que isso acontece. É Diana, ao falar da hierarquização do

trabalho docente na educação infantil, quem melhor explica:

“Desmereciam nosso trabalho por conta do cuidar (...). Era um trabalho menos

respeitado e menos valorizado”.

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Tomemos o início da fala de Graça como um ponto para reflexão: “Hoje, ser

chamada de professora...”; no passado (isso não quer dizer que ainda não aconteça), as

professoras eram chamadas “tias”. Segundo Freire (2007, p. 12), identificar a professora

como tia “é quase que proclamar que professoras, como boas tias, não devem brigar, não

devem rebelar-se, não devem fazer greve”. Aceitar-se como tia implicaria sufocar a

identidade da professora forjada a partir da busca por formação. Significaria permitir que

sua profissionalidade lhe fosse retirada para ser tia, parente, família. Diana explica essa

cisão entre ser professora de creche e professora da Escola municipal de educação infantil-

EMEI (pré-escola):

“Querendo ou não ainda existia um pouco de assistencialismo, foi devagar que a

gente foi largando (...), nós tínhamos vícios de assistencialismo ao vir para a educação que

elas não tinham, e isso gerava um conflito bem grande. A visão era bem diferente, a nossa

visão era bastante de cuidados. No caso delas, a parte pedagógica era o que mais as

interessava, existia essa discrepância. A gente via a criança como ser humano e as outras

professoras de EMEI viam como aluno”.

Nos discursos das professoras da creche e da pré- escola existe uma divergência.

Diana diz que na creche as crianças eram vistas como seres humanos e na EMEI eram

alunos. A base dessa afirmação está na diferença estabelecida entre e educação e ensino,

sustentada pela legislação educacional vigente que estabelece como níveis educacionais: a

educação infantil e os ensinos fundamental, médio e superior. Note-se que na primeira

etapa da educação básica atribui-se o termo educação, pois estaria mais voltado aos

aspectos de cuidados físicos e afetivo-emocionais, em detrimento dos aspectos cognitivos,

enquanto ensino ressaltaria os aspectos instrucionais.

A mesma concepção que cinde a professora e reduz o fazer docente na educação

infantil a um de seus polos é a que alimenta esse tipo de discurso que fragmenta a criança.

Como se a criança deixasse de ser como tal só porque entrou para a “escola”. Como se a

educação infantil não fosse um espaço de instrução e ensino e a escola não fosse um lugar

para o cuidado. Como se fosse possível uma educação para o corpo descolada de uma

educação para o pensar, ignorando o fato da criança ser um ser completo, total e

indivisível.

Lembramos que a palavra aluno, etimologicamente, deriva de alumni que significa

sem luz. Porém, como afirma Kramer (2011, pp. 90-91):

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(...) não nos interessa que a criança passe de uma situação onde está “sem voz”

para outra onde permanece “sem luz”, como se em ambas fosse depositária

passiva da fala do outro, da razão, do esclarecimento, tendo essas instituições a

função de dar a luz! Não podemos continuar a olhar as crianças como aqueles que não são sujeitos de direitos

Ainda segundo a autora, precisamos aprender com as crianças e isso só será

possível quando passarmos a observar seus gestos, ouvir suas falas, compreender suas

interações etc. Assim, a construção de um olhar sensível para a criança no cotidiano da

instituição de educação infantil é fundamental.

Voltemos ao depoimento de Diana, quando ela fala que o trabalho na creche era

bastante pautado pelo cuidado e que na pré-escola a parte pedagógica era o que mais

interessava. Nos capítulos anteriores apresentamos estudos e argumentações teóricas que

visam explicar a gênese dessa dicotomia, por isso não pretendemos retomá-las aqui,

contudo, não podemos nos abster de uma questão: é possível educar sem cuidar?

Ainda em tempos de “assistencialismos puro”, Diana revela que o trabalho junto às

crianças já continha a dimensão pedagógica. Portanto, embora permeado pelo cuidar, o

trabalho desenvolvido na creche também era constituído pelo educar. A entrevistada relata

que a unidade entre educação e cuidado também foi a tônica do concurso para ingresso no

cargo de auxiliar de desenvolvimento infantil, pois as perguntas eram voltadas para os

“cuidados com as crianças e (...) pedagógico também. Nessa época já tinha um olhar mais

pedagógico”.

Compreendemos que o cuidar perpassa toda a vida e as relações do homem com a

natureza e com a sociedade, portanto é um elemento essencial e indispensável à educação.

Assim sendo, “a educação infantil não pode ser compreendida como espaço onde se instrui

nem como lugar só de guarda e proteção, lugar de cuidar e assistir” (KRAMER, 2011, p.

85).

Cerisara (2002), discutindo as relações conflitivas entre auxiliares de sala e

professoras, explica que nunca houve um desvelamento explícito desses conflitos e

assinala que a dinâmica dessas relações entre as profissionais de educação infantil deve ser

analisada considerando uma hierarquização oficial entre elas. Essa hierarquização oficial

tratada pela autora pode ser evidenciada, no caso das professoras da rede municipal de São

Paulo, pela configuração da carreira do Magistério e jornada de trabalho.

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Art. 6º. A carreira do Magistério Municipal, de que trata o art. 6º da Lei nº 11.229, de

1992, e legislação subsequente, passa a ser configurada da seguinte forma:

I - Classes dos Docentes:

a) Professor de Educação Infantil;

b) Professor de Educação Infantil e Ensino Fundamental I;

c) Professor de Ensino Fundamental II e Médio;

Art. 7º. Compreende-se por Classe:

I - para os Docentes: o agrupamento de cargos de mesma natureza, denominação e

categorias diversas (LEI MUNICIPAL Nº 14.660, DE 26 de dezembro de 2007).

No quadro acima é possível perceber a distinção entre as classes dos docentes. Na

creche, as profissionais ocupam o cargo de professora de educação infantil (PEI), cuja

função compreende a educação e cuidados da criança de zero a três anos. As profissionais

que atuam na pré-escola, embora desenvolvam ações de educação e cuidado para e com as

crianças de quatro e cinco anos, ocupam o cargo de professoras de educação infantil e

fundamental (PEIF) podendo, a seu critério, transitar de um espaço para outro, como

mostra o quadro a seguir.

(...) os integrantes da carreira do Magistério Municipal atuarão nas seguintes áreas:

I - área de docência:

a) Professor de Educação Infantil: na Educação Infantil;

b) Professor de Educação Infantil e Ensino Fundamental I: na Educação Infantil e

no Ensino Fundamental I (...).

(Seção III, artigo 11 da Lei Municipal Nº14. 660/ 2007).

De acordo com a organização posta pela referida Lei Municipal, o PEIF tem

liberdade para escolher entre a escola de ensino fundamental e a instituição de educação

infantil, afora a creche.

Exceto o PEI, os demais servidores do magistério municipal (diretores,

coordenadores pedagógicos, auxiliares técnicos, assistentes de direção, agentes escolar e de

apoio, supervisores etc.) podem “circular por onde quiserem”. Quando se trata da PEI, essa

liberdade é cerceada, haja vista o que diz alínea A, inciso I, no quadro acima. Note-se,

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ainda, que nesse artigo não há nenhuma distinção entre os “níveis” de educação infantil ou

especificidades do trabalho a ser desenvolvido pelo professor em função da faixa etária dos

educandos.

Causa-nos inquietação pensar “se o diretor pode ser diretor onde ele quiser”, se a

PEIF pode optar por “educar ou ensinar”, “por que a PEI não pode ser professora onde ela

quiser?” Essa questão foi colocada pelo professor Roselei Júlio Duarte, quando do seu

discurso acalorado na cerimônia de abertura do X Congresso de Educação Infantil,

realizado em São Paulo, pelo Sindicato dos Professores de Educação Infantil do município

(Sedin) em outubro de 2014.

No discurso legal, sustenta-se uma unidade entre as diferentes instituições de

educação infantil, a integração curricular e articulação com o ensino fundamental (Portaria

Municipal 5930/13), na prática, o que ainda se evidencia são relações conflitantes, como

bem descreveu Diana.

A crítica que levantamos não desconsidera o papel precípuo das políticas

educacionais na construção da identidade da creche como espaço educativo, mas não

podemos ignorar os “deslizes” dessas políticas, pois eles acabam por reforçar

desigualdades, estabelecer hierarquias e cinde a imagem do professor de educação infantil.

Nossa crítica se sustenta na necessidade de romper com a lógica que identifica a educação

de crianças pequenas com o cuidado materno (ROSA; GOMES, 2012), lógica esta que se

mantém, porém disfarçada, nos discursos de unificação da educação infantil e valorização

dos profissionais que atuam nesse segmento.

Em São Paulo, no que diz repeito à jornada de trabalho, a Lei Municipal nº

14.660/2007 apresenta a seguinte estrutura:

I - Professor de Educação Infantil (PEI): Jornada Básica de 30 (trinta) horas de trabalho

semanais;

II - Professor de Educação Infantil e Ensino Fundamental I (PEIF) e Professor de Ensino

Fundamental II e Médio: Jornada Básica do Docente, correspondendo 30 (trinta) horas aula

de trabalho semanais; (...)

§ 1º. A Jornada Básica de 30 (trinta) horas de trabalho semanais, de que trata o inciso I

deste artigo, será cumprida exclusivamente nos Centros de Educação Infantil (Seção IV,

Artigo 12).

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O emprego dos termos horas de trabalho e horas aula surge como reforçador dessa

cisão no campo da educação infantil, uma vez que as educadoras de zero a três anos

devem, impreterivelmente, cumprir uma jornada de trinta horas relógio. Já no caso das

demais educadoras do nível básico, cada hora aula perfaz o tempo de quarenta e cinco

minutos, não podendo ultrapassar o total de dez horas aula por dia. Esses apontamentos nos

fazem refletir sobre como, efetivamente, valorizar as profissionais da educação infantil se,

legalmente, distâncias são colocados entre elas?

Rosa e Ramos (2012, p. 133) dão uma pista ao ilustrarem como se dá a estruturação

da carreira do magistério público no Recife:

(...) a professora de berçário é integrante do Grupo Ocupacional Magistério,

podendo atuar desde o berçário até o 5º ano do ensino fundamental de nove anos

e tendo as mesmas vantagens e regime de trabalho estabelecidos no plano de

cargos e carreira municipal.

Acreditamos que dar a possibilidade da professora de creche “ser professora em

outros espaços” é reconhecer a importância dessas profissionais na gestão de ações que

respeitem as especificidades do desenvolvimento infantil. É reconhecer sua identidade e

legitimar um perfil de profissional crítico, reflexivo e comprometido ética, política e

afetivamente com sua prática.

Os desafios iniciais da profissão

Aprender a ser professor é uma aprendizagem que se dá por meio de situações práticas, que sejam efetivamente problemáticas, o que exige o desenvolvimento

de uma prática reflexiva competente. Exige ainda que, para além de conceitos e

de procedimentos, sejam trabalhadas atitudes, sendo estas consideradas tão

importantes quanto aqueles (MACIEL; SHIGUNOV NETO, 2011, pp.

18-19).

Conforme explanação de Maciel e Shigunov Neto (2011), aprender a ser professor

é um processo que vai se dando. Nesse processo, o sentir-se professor também vai se

construindo e, como em toda construção, existem etapas que precisam ser seguidas. A

fundamentação teórica da prática é a primeira delas. Toda ação docente precisa estar

alicerçada, bem fundamentada, esse alicerce é a formação. Exige-se que os tijolos sejam

colocados; os tijolos representam nosso inacabamento. Dia após dia o professor vai se

constituindo professor e nesse processo dinâmico, coletivo e particular, vai atribuindo

identidade ao espaço onde atua. Com o tempo, necessitará de retoques ou que se quebrem

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algumas paredes e se levantem outras em seu lugar. Essas intervenções serão necessárias

para livrar o professor da mesmice profissional em que vive.

Falamos em outro momento do desafio enfrentado pelas entrevistadas de conciliar

casa-trabalho-estudos. Descortinam-se em suas falas dificuldades que surgiram no inicio

da profissão docente, tais como: excesso de crianças por sala, indefinição das atribuições

da pajem/ADI e solidão pedagógica.

Os recortes abaixo nos dão uma dimensão desses desafios e dificuldades

enfrentados por elas.

Chegando lá, no primeiro dia, já enfrentei um berçário com vinte e tantas crianças

para duas pessoas (Professora Graça).

Penélope confirma o quadro dado por Graça, dizendo “tinha muita criança e a gente

tinha que fazer tudo. (...) Tinha que dar banho, trocar de roupa, arrumar cabelo, tirar

piolho. Tinha que cuidar mesmo”. Ela conta que, em seu primeiro dia de trabalho, sequer

sabia o que era para fazer, pois ainda não existia uma definição das atribuições de cada

profissional contratada. Quando questionada sobre o que queria fazer, ela não teve dúvidas;

“disse que queria cuidas das crianças”.

Embora seja vasta a bibliografia que aborda as misturas dos papéis de mãe e

profissional na educação de crianças pequenas, podemos observar nesses recortes indícios

de um distanciamento entre eles. Pensamos que, se a experiência materna fosse suficiente,

então essas mulheres não encontrariam tantas dificuldades. Mas o que evidenciamos na

fala de Graça é que, ao menos inicialmente, tiveram que encarar os desafios colocados pela

profissão. Certamente deve ter sido fácil, primeiro porque tendemos a idealizações.

Idealizamos um tipo de escola, um modelo de aluno. Mas, qual deverá ser o ideal da

escola?

Choque de realidade foi o que Diana sentiu ao entrar pela primeira vez em sua sala.

Eram muitas crianças e ela teve “toda a dificuldade do mundo” e nenhuma ajuda. Teve que

se virar. “Sozinha, claro! (...) E tinha que dar conta, não podia deixar nenhuma criança se

machucar”.

Para elas, tudo aquilo era novo. Não importa se Graça já trabalhou no clube de

mães, se Penélope havia cuidado de crianças no passado ou a experiência materna de cada

uma delas, importava mesmo a acolhida, o preparo para ser professora naquela instituição;

uma palavra que inspirasse segurança, que lhes desse a certeza de que dariam conta. Tudo

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o que Penélope sabia era que queria cuidar das crianças, mas para isso precisava de que?

Não tiveram ajuda de ninguém. Foi experimentando coisas que construíram uma pedagogia

da experiência.

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4.4 Dimensão afetiva da prática pedagógica

A afetividade é um tema bastante explorado em estudos da Psicologia e da

Pedagogia, sendo um termo bastante utilizado também no campo escolar. Queremos

compreender quais as percepções que as educadoras têm sobre a dimensão afetiva de seu

trabalho e qual o significado atribuído por elas à função desempenhada.

Nosso universo participante está na faixa de 60 anos de idade, exceto Diana, são

casadas, têm filhos e já são avós de um ou mais netos. Vimos ainda que quando iniciaram

sua trajetória com educadoras infantis, por terem filhos ainda pequenos, utilizavam os

serviços da creche onde elas mesmas eram educadoras. Queremos com isso voltar a um

ponto anterior: estes “indicativos” bastam para explicitar o suposto duplo papel

desempenhado no âmbito institucional? Vimos, segundo Cota (2007) e Nascimento (2007),

que esse duplo papel é resultado de uma mistura das relações casa-creche que foi se

constituindo como premissa no âmbito das creches. Em concordância, Ongari e Molina

(2003, pp.114-15) explicam:

(...) o entrelaçamento entre a relação familiar e profissional é particularmente

acentuado tanto em relação aos próprios filhos, como em relação à divisão da

responsabilidade com os pais das crianças que lhes são entregues: a educadora

desenvolve funções de cuidado especificamente ligadas, na nossa cultura, ao

papel materno; em muitos casos tem filhos na mesma idade das crianças que

cuida (ela mesma os deixa, portanto, com outras), está, além disso,

frequentemente muito próxima das mães que utilizam a creche (pela idade, nível

de instrução, porque ela também tem filhos pequenos).

Optamos por retomar desse ponto, pois acreditamos, e nossas entrevistadas

sustentam nossa afirmação, que esse olhar sobre as educadoras já não cabe mais nos dias

atuais. Trata-se de um tabu que precisa ser rompido. Ainda que não seja da noite para o

dia, como disse Diana, as mudanças acontecem! Precisam acontecer.

Refletindo sobre a possível mistura dos papéis mãe-educadora, Diana afirma, de

forma muito clara, a heterogeneidade dos papéis mãe e educadora no trabalho

desenvolvido no ambiente institucional.

“O [filho] mais novo frequentou quando eu era lactarista. Eu o levava todos os dias,

meus netos também vieram para cá. (...) Eu nunca interferi, aqui eu não era nem a mãe nem

a avó. (...) Eu olhei os filhos de muitas [professoras] aqui e (...) elas respeitavam o meu

trabalho” (Professora Diana).

O fato de serem mães para essa profissional não interfere na natureza do trabalho a

ser desenvolvido por elas. Em nenhum momento, ao longo das entrevistas, a educadoras

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afirmaram que a experiência materna foi decisiva para a constituição de sua

profissionalidade, refutando assim um ideário mantido histórica e socialmente, partilhado

por estudiosos, seja em forma de inquietações ou de maneira conclusiva.

Mais uma justificativa que lançamos para elucidar ao leitor o motivo de tal

retomada está contida na resposta de Diana quando indagada sobre se ter sido mãe cedo ou

tido a experiência de criar três filhos a ajudou no trabalho na creche.

“Não! Aqui você tem outra postura, bem diferente do que é em casa. Lá você relaxa

mais, aqui você tem mais medo, mais tensão. Aqui eu sou uma pessoa mais tensa. Não são

meus!”

A professora não nega o quanto gostava de trabalhar no berçário menor (0-1 ano),

tanto é que trabalhou quase a vida toda nesse agrupamento. Lá, devido às especificidades

da faixa etária e os tipos de cuidado com os bebês, havia uma maior aproximação, mas

ainda assim não podemos, por causa das relações afetivas construídas nessa interação,

afirmar que a professora assume ou deseja o papel de mãe das crianças. Isso seria ignorar o

que Diana, profissional experiente nesse campo acaba diz.

Gama (2014), considerando a dimensão relacional como algo inerente à atividade

humana ressalta que o trabalho na educação infantil é uma atividade que envolve tanto o

cuidado material como o imaterial que implica um vínculo afetivo-emocional. No entanto,

a educação infantil exige da profissional uma postura diferente daquela que ela mantém em

casa. Ainda que seja de fato a mãe de um de seus alunos, a professora não poderá

negligenciar sua responsabilidade diante das demais crianças, nem abrir mão do seu fazer

profissional em detrimento de ser mãe.

Com o tempo e as experiências formativas e sociais dessas profissionais, a

afirmação de que a creche é um espaço educativo ganhou notoriedade em seus discursos.

Esse espaço de educação que também é cuidado, já que, como dissermos, o cuidado está

presente em todas as ações do homem, como afirma Diana: “O nosso trabalho aqui é

complementar ao da família e a família deve fazer o mesmo em relação ao nosso”.

Incorporando o discurso da escola, a professora revela dois pontos importantes: a

parceria com a família e o distanciamento dos papéis antes mencionados. Quanto ao

primeiro aspecto, encontramos no artigo 1º da LDB um elo de fortalecimento.

“a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida

familiar na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e

pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil nas

manifestações culturais” (Título I; Lei 9394/96).

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Educar é um ato coletivo, social, ético e político. O estabelecimento de parcerias

entre as instituições escolar e familiar precisa ser respeitado e alimentado cotidianamente.

Relações de respeito mútuo e de valorização das práticas profissionais e maternais (no caso

das mães) de cuidados com crianças, além do maior envolvimento das famílias nos

processos educativos são alguns exemplos que podem surgir dessa parceria. Nesse sentido,

a afirmação de Kramer (1995, p. 100) nos parece bastante atual:

São dois os principais objetivos da interação escola-famílias. De um lado, ela

visa propiciar o conhecimento dos pais e responsáveis sobre a proposta

pedagógica que está sendo desenvolvida, para que possam discuti-la com a

equipe. De outro lado, essa interação favorece e complementa o trabalho

realizado na escola com as crianças, na medida em que possibilita que se

conheçam seus contextos de vida, os costumes e valores culturais de suas

famílias e as diferenças ou semelhanças existentes entre elas em relação à

proposta.

Entendemos, a partir dessa citação, que a relação escola-família deve abarcar o

respeito pelos modos de ser, pensar e agir dos pais e familiares, a valorização de seus

costumes e tradições e explicitar as metas, ações e prioridades do processo educativo.

Nesse ponto, Kramer (1995) e Brasil (2009) são concordes: a interação entre escola-

famílias deve contemplar uma relação de respeito mútuo, na qual pais, responsáveis e as

crianças se sintam acolhidas.

A creche é um espaço de múltiplas vivências, experiências ricas e muitas

aprendizagens, na qual as crianças se socializam, brincam e convivem com a diversidade

humana e cultural. Por isso, a garantia do direito das famílias de acompanhar as vivências

e produções das crianças também deve ser respeitada; desse modo, a instituição de

educação infantil deverá organizar reuniões com os familiares para apresentar sua proposta

de trabalho, seu plano de metas para o ano letivo etc. Abrindo espaço para essa interação, a

creche amplia sua possibilidade de desenvolver um bom trabalho, uma vez que permite a

cooperação e a troca de conhecimentos entre familiares e educadores em relação às

crianças (BRASIL, 2009).

Assim, entendemos que a dimensão afetiva engloba, além dos processos que

contribuíram para a constituição de suas identidades, já explicitados em outros momentos,

as relações da educadora com as crianças e com as famílias. Devemos enfatizar que nos

reportaremos à concepção de afetividade desenvolvida por H. Wallon.

Como ressalta Dér (2010, p.61), a afetividade, na perspectiva walloniana, “é o

conjunto funcional que responde pelo bem-estar e mal-estar quando o homem é atingido e

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afeta o mundo que o rodeia”. Desse modo, entendemos por afetividade a capacidade

humana de afetar e ser afetado pelo mundo externo e/ou interno, por sensações que podem

ser agradáveis ou desagradáveis13

.

Segundo Wallon (1946, apud WEREBE; NADEL-BRULFERT 1986), as relações

existentes entre indivíduo e meio são mutuamente transformadoras, sendo o meio um

complemento indispensável ao ser vivo. Tomando o depoimento de Diana,

compreendemos a creche como um importante espaço de interação e de construção de

identidades. Nesse espaço, Diana conta que aprendeu ser quem hoje ela é de fato. Na

creche, convivendo com diferentes histórias, interagindo com as crianças e com os demais

sujeitos integrantes de uma “teia” de relações férteis, a professora aprendeu a sorrir.

Descobriu-se outra dentro de si mesma.

“Eu sempre fui muito tímida. Era tímida ao máximo. Essa pessoa que você vê agora,

animada, sorrindo, se desenvolveu depois de muito tempo. (...) (...) Eu não conversava, não

brincava, eu era muito séria e não achava motivo para rir. (...) Aprendi a rir faz pouco

tempo. Tem uns dez anos que eu aprendi a rir. Aprendi a rir aqui”.

Pouco a pouco a personagem tímida que não tinha motivos para rir vai se

transformando na personagem pessoa animada que aprendeu a sorrir na creche.

Convivendo com outros sorrisos e experimentando a alegria alheia se viu contagiada.

Sentiu-se afetada pelas realidades que se desnudavam diariamente diante de seus olhos.

“Eu aprendi a ser menos seca com o tempo (...), depois que entrei aqui no CEI,

convivendo com outras pessoas, vendo outras vidas, outros mundos, vendo vários sofrimentos

tão piores que os meus. Tinha umas crianças, quando comecei, antigamente dizia creche, era

assistencialismo, que eram paupérrimas. Tinha criança que vinha toda marcada. Eu me

perguntava “eu acho que eu sofro?” Tinha aquela mãe que apanhava do marido”

(Professora Diana).

Consideramos que as relações afetivo-emocionais são um dos núcleos do trabalho

desenvolvido diariamente nas unidades de educação infantil, pois essa dimensão relacional

é considerada, de acordo com a psicogenética walloniana, a base do desenvolvimento da

criança e, portanto, não pode ser ignorada ou negada por quem atua nesse campo.

É preciso lembrar que o professor também é afetado pelos alunos com quem se relaciona, e, ao propiciar um ambiente mais adequado ao desenvolvimento desse

aluno, promove, em si próprio, modificações no desempenho de seus papeis.

Professor e aluno - o eu e o outro- são sempre complementares, e a modificação

no espaço de um interfere no espaço do outro (ALMEIDA, 2010, p. 138).

13 Ideia baseada em anotação de aula, da disciplina Afetividade no Processo de Constituição e na Atuação do

Educador VI, ministrada pela Professora Drª Laurinda Ramalho de Almeida (2ºsemestre/2013).

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Essa importante contribuição nos evoca a conceituação de identidade formulada por

Ciampa, pois a ideia de que a identidade é constitutivamente social implica aceitar o papel

do outro nesse processo de constituição do eu. Professor e alunos vão se constituindo

sujeitos cujas histórias se entrelaçam, sendo que a interferência de um é vital na formação

da identidade do outro. Desse modo, as interrelações estabelecidas no contexto da creche

são fundamentais para assegurar às crianças e às educadoras um ambiente humanizador.

Humanização é necessariamente um processo que implica o sujeito em sua totalidade, o

que significa que, na relação que se estabelece com o mundo social, ele é um ser, no campo

do psiquismo, dialeticamente cognitivo e afetivo-emocional. Isto se torna evidente no

fragmento que segue:

“No berçário tinha muita retribuição, sorriso, carinho, o engatinhar, os primeiros

passos, o falar, o cantar, o bater das palminhas. Se eu falar que não me emocionava, que

não sentia... é impossível, ou não é ser humano” (Professora Diana).

A professora ensina uma importante lição: nenhum de nós é uma ilha! Pereceríamos

sem o contato com o outro e sem a possibilidade de nos emocionar, não teria havido

humanização. A emoção que brota das relações estabelecidas entre educadora-criança e

meio é a base de toda relação pedagógica.

Notamos na fala da professora que lidar com bebês exige o dar-se por inteiro. Sem

essa entrega, Diana não experimentaria o sabor da emoção e correria o risco de manter-se

“seca” e não ser humana.

Merani (1969) afirma que o conceito de humanidade é necessário e constitui a base

de uma pedagogia futura. Uma pedagogia humanizadora, deve, portanto se pautar nos

princípios da justiça e solidariedade como defendia Wallon.

Tanto para a teoria vigotskiana quanto para a walloniana o contato com o outro e

com o meio são fundamentais para o desenvolvimento do indivíduo, pois, embora

nasçamos com um equipamento próprio da espécie, que é orgânico, é o meio que orienta

nosso desenvolvimento. As relações do indivíduo com a cultura, com a sociedade, a forma

como lida com as experiências cotidianas sempre são mediadas pelo outro e permeadas

pela afetividade. Sem essa interação com o mundo físico e social, nosso organismo não

daria conta de produzir no homem sua humanização.

Diante do exposto, compreendemos que no decorrer da existência do indivíduo, o

meio ou os diferentes meios com os quais interage tem um papel primordial para seu

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desenvolvimento. No caso das crianças, o contato com diferentes educadoras e também

com outras crianças, as formas de lidar com o meio e de conhecê-lo, as diversas maneiras

que encontram para superar os desafios que o meio lhes impõe são essenciais para o

processo de individuação e para o fortalecimento do eu; ademais, esse contato lhes

propicia um sentimento de pertença. Assim, no decorrer de sua vivência na creche, a

criança passa a se sentir parte de um conjunto que para ela tem grande importância.

Esse processo é, portanto, constitutivo da identidade dessa criança e será uma das

bases para as identidades-metamorfoses ao longo de sua vida. Utilizando-nos da concepção

de Wallon sobre a educação infantil, é importante ressaltar:

A escola maternal parece perfeitamente adequada para preparar a emancipação

da criança (...). Para que a criança se sinta feliz, é necessário que exista ainda

relações de ordem pessoal, direta, quase de natureza maternal com as educadoras

(WALLON, 1952/1975, p. 212).

Na educação infantil, o estabelecimento de vínculo afetivo é essencial para o

processo de adaptação e integração da criança à instituição e para a formação de sua

identidade (SÃO PAULO, 2007), além de contribuir para o fortalecimento do ser e sentir-

se professora de educação infantil. Nesse sentido, afirma Cardoso (2014, p. 66), “a

educação infantil tem um papel fundamental na formação humana, em especial nos

primeiros anos de vida”.

A forma como as professoras deste estudo percebem a dimensão afetiva do seu

trabalho pode ser traduzida nas palavras gratificação, satisfação, realização profissional e

aprendizado. Em outro relato fica implícita a preocupação de Diana em não fragmentar a

criança e a necessidade de superar um desafio que se lança diariamente: contemplar

oportunidades para que o inesperado aconteça (SÃO PAULO, 2014).

“O [bebê], por exemplo, ele não tinha as pernas, ele tinha os joelhos que emendavam

os pés. Ele entrou aqui bebê, quando ele ficou em pé pela primeira vez, eu vibrei. Nós

vibramos! Falamos para a mãe, ela ficou perplexa “vocês estão brincando!”, ela dizia. Ele

subiu direitinho nas grades do berço, é gratificante! Você vê o valor do seu trabalho, não

precisa que ninguém fale” (Professora Diana).

Diana assegura que “uma pessoa que trabalhar no berçário e se desesperar, não

trabalha. Tem que ser centrado, tem que ter cabeça fria”. Isto, contudo, não significa não

sentir o calor que emana das relações estabelecidas com as crianças, não significa não dar-

lhes calor.

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Ao revelar ao mundo que era capaz de se emocionar, Diana transformou seus

mundos (o externo e o interno), anunciou a morte da personagem seca, rígida, daquela que

não tinha motivos para sorrir e fez surgir a pessoa humana, sensível, solidária e que se

reconhece como professora. Nutriu-se de palavras e gestos de esperança, vibrou ao ver os

primeiros passos de uma criança aparentemente sem chances de andar. Aparentemente!

Quando o bebê andou, a professora conta que vibrou e exibe um largo sorriso. Não era

vaidade. Era gratidão. Aqueles passos a fez crer na beleza da vida e a redirecionou ao

mundo humano. Mundo do qual ela se desligara quando seus sentimentos secaram.

Se sentindo privilegiada por ser educadora infantil, Diana diz: “uma pessoa

insatisfeita não consegue fazer nada de bom e nem passar nada de bom para ninguém”,

com isso revela mais um movimento na construção de sua identidade de professora que a

prendeu a vibrar e brindar a vida pelas pequeninas mãos dos bebês.

Paulo Freire em seu livro A Pedagogia da Autonomia, ressalta que ao lidar com

gente não se devia estimular sonhos impossíveis e que, no entanto não seria certo negar a

quem sonha o direito de sonhar. Não negando esse direito à criança, Diana foi

recompensada. Esvaziou-use por completo de qualquer secura ou resistência interior e

permitiu-se completar de solidariedade, de felicidade. É nesse momento da narrativa que a

professora demonstra com maior clareza o quanto seu trabalho a afetou, contribuindo para

que ela chegasse a ser outra “outra” sendo ela mesma. Percebeu nesse instante o quanto seu

trabalho é importante, e para isso não foi preciso ninguém lhe falar. Ela viveu aquele

momento. Certamente, o brilho no olhar da criança, a perplexidade da mãe impactada pela

boa notícia e a reorganização emocional que se movia bruscamente em Diana eram

suficientes para reafirmar a vida, para fazer com que todos compreendessem a importância

do estabelecimento de vínculos no ambiente da educação infantil e para realçar a

importância de um ambiente humanizador para o desenvolvimento infantil.

A solidariedade é outra marca apreendida nos discursos das entrevistadas. Elas

contam que em diferentes momentos da vida experimentaram o sentimento de

solidariedade. Algumas vezes, mesmo não tendo muito para oferecer, se dedicavam a

ajudar o próximo. Diana diz que foi se transformando à medida que convivia com pessoas

cujas histórias eram tão ou mais difíceis do que a dela e Graça, mesmo vivendo uma vida

“torturosa” não negou abrigo aos familiares. No trabalho diário com as crianças muitas

lições sobre solidariedade são partilhadas como pudemos observar no relato anterior.

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Henri Wallon (apud OLIVEIRA, 2010), desde sua juventude, sempre lutou pela

igualdade e solidariedade entre os homens. Atribuindo grande importância à escola,

defendia uma formação que possibilitasse aos educadores refletir sobre sua prática, as

relações estabelecidas no ambiente educativo e sobre o desenvolvimento do espírito de

solidariedade.

Conforme Mahoney e Almeida (2005), a “forma como o professor se relaciona com

o aluno reflete nas relações do aluno com o conhecimento e nas relações aluno-aluno”.

Nessa perspectiva, o professor é um modelo, por isso deve ser um constante observador de

si mesmo, de suas ações, da situação e, sobretudo, da criança. Observar intervindo.

Na perspectiva walloniana, observar é fazer perguntas ao real, desse modo,

portanto, cabe ao professor observar com sagacidade o comportamento do aluno.

(ALMEIDA; MAHONEY, 2011). Na educação infantil o professor é o mediador das

relações da criança com o mundo, por isso, esse profissional deve estar sempre preocupado

com sua prática, fazendo dela sua fonte de reflexão. Além disso, exige-se do professor que

seja solidário com seus alunos estimulando as crianças desde pequenas a serem solidárias

umas com as outras (MAHONEY; ALMEIDA, 2005).

Um dos princípios fundamentais para a constituição da pessoa humana é a

solidariedade, sem ela nos distanciaríamos cada vez mais da ideia de um mundo

verdadeiramente democrático e justo e não seria possível concretizar a utopia de uma

educação humanizante.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa de Mestrado que tem como tema central o processo de constituição

identitária das professoras de creche, procuramos responder às seguintes questões:

Como os percursos da vida pessoal e profissional contribuíram para a constituição

identitária das professoras de creche?

Quais os sentimentos e perspectivas das educadoras em relação ao fazer docente?

Qual o significado que essas profissionais dão à função desempenhada?

Durante o processo de análise das entrevistas, muitas leituras foram realizadas.

Grifamos trechos das entrevistas que considerávamos significativos e que, a nosso ver,

davam conta de responder às questões colocadas. Um desafio que surgia a cada nova

leitura era a infinidade de temas abordados pelas entrevistadas. As professoras nos

ensinavam em suas histórias de vida importantes lições de esperança, solidariedade, de

políticas públicas, encorajamento, fé e sonhos.

Nos atrevemos dizer que foram os sonhos que permitiram a essas mulheres

continuar existindo como pessoa humana e como profissionais. Os sonhos da menina

Graça materializados anos depois, recompensa por ter sobrevivido a uma vida “torturosa”.

Por não ter desanimado, por não ter desistido de persegui-los. O sonho de Diana, que ainda

não se materializou, mas como ela mesma diz: “só guardei um pouquinho na gaveta para

mais tarde”. Projeto de menina que a mulher já avó ainda alimenta. E os sonhos que não

sonharam, mas viram acontecer. Ou melhor, fizeram acontecer!

Dos sonhos que não sonharam, mas que viram concretizar está a profissão. Nossas

entrevistadas relataram que nunca pensaram que seriam professoras, contudo, Diana

desejou um dia ser professora de inglês e Penélope, desde criança afirmava que cuidaria de

crianças pequenas. Embora tivessem o desejo, as condições materiais às quais estavam

sujeitas não eram favoráveis. Mas, devido às muitas voltas que a vida dá acabaram se

tornando professoras.

Emergiam das entrevistas diferentes aspectos que nos permitiam responder à

primeira questão colocada. Primeiro, porque não se pode falar de identidade sem

contemplar o homem e a história como elementos que se dão dialeticamente, pois não

existe homem fora da história, fora de um espaço-tempo. Não existe história sem

movimento (CIAMPA, 2005; 2012). Segundo, porque não existe identidade imutável.

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Ninguém nasce programado para ser o que está sendo agora. Se afirmássemos o contrário,

estaríamos negando nosso inacabamento, negaríamos a historicidade contida em cada ser

humano.

Portanto, ao refletirmos sobre esses dois pontos, compreendemos que cada

experiência vivida é fundamental para a construção de uma identidade. Pautamos nosso

argumento nas falas de Graça, quando relata a participação em movimentos sociais e como

esses espaços contribuíram para solidificar nela a concepção de gente com lugar no mundo

e não à margem dele. Diana corrobora nosso pensamento relatando sua metamorfose. Sua

religião, o trabalho na creche e as histórias com as quais conviveu, tudo isso contribuiu

para o resgate de si mesma. Desse modo, consideramos que os percursos da vida pessoal e

profissional forjam nos indivíduos uma identidade que passa por um constante processo de

metamorfose.

No que diz respeito ao sentimento e perspectivas das professoras em relação ao

fazer docente, observamos que as entrevistadas sentem-se pertencentes ao grupo de

professores de Educação infantil e que, apesar de ainda aceitarem ser chamadas de “tias”,

percebem com clareza a diferença entre o profissional e o doméstico na creche. Tais

argumentações são extraídas das falas de Diana, que sabiamente nos lembra que nenhuma

mudança acontece da noite para o dia.

As narrativas analisadas nos conduziam a um distanciamento da concepção de

mulher naturalmente apta para cuidar de crianças. Entretanto, observou-se que permanece,

no âmbito da escola, uma hierarquização, reforçada legalmente, entre os docentes dos

diferentes níveis, na qual a professora da educação infantil, sobretudo aquela responsável

pelas crianças de zero a três anos, é considerada menos “educadora” que as demais,

reforçando a ideia da prevalência do cuidado em detrimento da educação e o não

reconhecimento da indissociabilidade entre essas atividades. Com isso, defendemos que a

valorização profissional e do trabalho educativo, o respeito à categoria que atua em creches

e a insistência por condições dignas de trabalho (aí inclusa a não hierarquização do quadro

docente) são pilares fundamentais para a construção de uma identidade profissional para as

trabalhadoras desse segmento, além de corroborar para a identificação creche como um

espaço educativo.

O trabalho educativo, mesmo em tempo de “assistencialismo puro”, como disse

Diana, unia educação e cuidado; corpo e psiquismo. As atividades de pintura, as

brincadeiras no parque, as histórias, a hora do banho, a troca e a alimentação etc., toda a

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rotina da creche contemplava os cuidados com as crianças e também o aspecto pedagógico.

Isso significa que existia por parte das educadoras uma proposta de trabalho com objetivos

definidos, dos quais, o principal era contemplar a criança em sua totalidade, criando na

creche um ambiente humanizador, estimulante e rico de interações, portanto, propício ao

desenvolvimento infantil.

A formação foi um dos fatores que contribuíram para construção da identidade das

professoras que atuam em creches. Formar-se é construir a própria identidade, é

transformar-se e perceber-se membro de um grupo de professores (PROENÇA, 2009), isto

é, desenvolver o sentimento de pertença.

Afirmar a formação inicial e contínua como elemento constitutivo das identidades

das professoras de creche nos pareceu possível graças aos relatos de Diana, Graça e

Penélope. Cada uma, a sua maneira, revelou o quanto os estudos foram importantes para

conquistarem respeito, dignidade e reconhecimento profissional.

Em consonância com Gomes (2004), investir na promoção de relações

interpessoais, pautadas pelo respeito e pelo reconhecimento profissional pode abrir

caminhos que possibilitem um maior desenvolvimento e aprendizagem das crianças. Sem

professores bem formados e capacitados, sem uma boa infraestrutura e sem uma política

viva de educação infantil não obteremos ambientes de qualidade para o atendimento e

formação das nossas crianças.

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ANEXOS

I. Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)

II. Entrevistas

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ANEXO I. TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Caro (a) Professor (a)

Sou aluna de Mestrado do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia da

Educação – Educação, da PUC-SP e estou em processo de elaboração de minha

dissertação, cujo objetivo é investigar o processo de constituição identitária das professoras

de educação infantil que atuam em centros de educação infantil e creches públicas. Para

tanto, estamos utilizando como procedimento de coleta de dados entrevistas abertas que

focalizam a história de vida.

Estou entrando em contato com profissionais que ingressaram no magistério

infantil como pajens e/ou auxiliares de desenvolvimento infantil e que ainda desenvolvem

atividades em sala de aula. Gostaria de contar com sua colaboração, que será de grande

importância na construção de conhecimentos e contribuirá para o desenvolvimento dos

estudos sobre a educação infantil de zero a três anos com ênfase na identidade profissional

e formação de professores.

Esclarecemos que os dados coletados nesse trabalho serão utilizados respeitando a

identidade do sujeito da pesquisa.

Para facilitar nossa conversa e garantir um registro fiel da mesma, farei uso do

gravador.

Agradeço, desde já, sua colaboração.

Dilma Antunes Silva

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DECLARAÇÃO DE CONSENTIMENTO

Fui esclarecido que:

Não poderei esperar benefícios pessoais advindos desta entrevista;

Não existem possíveis desconfortos e riscos decorrentes da participação;

Minha privacidade será respeitada, ou seja, qualquer dado ou elemento que possa,

de qualquer forma, me identificar será mantido em sigilo;

Posso me recusar a ser entrevistada e a retirar meu consentimento a qualquer

momento, sem precisar justificar-me, e não sofrerei qualquer prejuízo;

Tenho livre acesso a todas as informações e esclarecimentos adicionais sobre o

estudo e suas consequências durante a pesquisa; enfim, tudo o que eu queira saber

antes, durante e depois da minha participação.

Finalmente, tendo sido orientado quanto ao teor do projeto e compreendido o

objetivo da entrevista, manifesto meu livre consentimento em participar.

Nome:_______________________________________________

RG:_________________________________________________

CPF:________________________________________________

São Paulo ____/_____/_______

_________________________________

Professor (a) Participante

__________________________________

Dilma Antunes Silva.

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ANEXO II. ENTREVISTAS

Entrevista com Graça.

Graça, eu vou pedir para você me contar um pouco da história da sua vida.

Graça: Minha história de vida inteira? De quando eu vim da Paraíba, por exemplo?

A sua história. Por exemplo: de como era lá...

Ah, lá a gente tinha uma vida muito simples. A vida de sonhar em viajar e fazer,

enfim... Eu sempre tive esse sonho de um dia é... Como a gente foi criada sem pai, por

exemplo, no meu caso, eu fui criada sem pai, então eu via o sofrimento que minha mãe

passava, aí eu pensava, desde eu garotinha que escutava as histórias, eu queria que quando

eu crescesse e ficasse uma moça, casasse com uma pessoa que me trouxesse para São

Paulo. Meus sonhos eram tão simples, eu queria vir morar aqui, mas uma coisa eu queria.

Eu queria ser costureira.

E foi alguma vez, por algum tempo?

De todo meu sonho, o maior era ser costureira porque eu via as mulheres lá que

ganhavam dinheiro, que andavam mais bonitas e mais bem vestidas, todas eram

costureiras. Minhas primas, por exemplo, faziam roupas. Então, desde pequena eu fazia

roupa; catava os pedaços de retalhos da minha mãe e fazia a roupa das minhas bonecas. Aí

eu fiquei noiva pela primeira vez, não deu certo. O cara pensava em me levar embora para

Goiânia, aí a gente terminou o noivado mesmo, estava de aliança no dedo e tudo. Depois

eu fiquei noiva desse que foi o meu marido; a gente teve nossos quatro filhos, mas, nós

ficamos lá só dois anos e pouco.

Na Paraíba?

[Graça confirma com a cabeça].

Depois que gente casou, a gente ficou só dois anos e pouco. Aí teve uns problemas

lá e a gente teve que vir embora; ele veio embora para São Paulo antes de mim. Ele veio

um mês antes de mim. Fiquei lá com a minha mãe para vender as coisas e ele veio para a

casa da avó dele. Depois viemos eu, minha sogra e meu cunhado. Chegando aqui, a gente

passou uma vida que só Deus!... Eu tinha uma filha já, eu tinha minha primeira filha com

seis meses, a gente ficou na casa de uma tia dele por seis meses. Era uma vida “torturosa”,

porque eu ficava na casa dos outros. Se você não tem seu fogão para cozinhar, você não

tem sua casa, você não tem liberdade. Dormia eu, ele e a criança num sofá.

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Num sofá?

Num sofá!

Nossa Graça...

Mas depois, ele já estava trabalhando, aí ele conseguiu um dinheiro e a gente

comprou um fogão usado, uma cama usada, só o colchão é que foi novo.

Só ele quem trabalhava na época?

Só ele trabalhava na época e a gente já conseguiu alugar uma casa e foi morar. Mas

aí eu tinha que levar minha sogra e meu cunhado, que é deficiente, e a minha filha que era

pequena. A vida era bem, bem cruel mesmo! O que ele ganhava era pouco, era de quinze

em quinze dias e eu tinha que medir a comida, o feijão, o arroz, e a mistura era quando ele

tinha condições de comprar, e assim foi, um sufoco danado mesmo que a gente passou

nessa época. Pagava o aluguel tudo certinho, aí quando foi um dia, o senhor dono da casa

de aluguel queria aumentar o aluguel.

E vocês não tinham condições de arcar com mais essa despesa?

Nós não tínhamos condições de pagar mais do que aquilo, senão nós íamos

literalmente passar fome, porque necessidade já passava, e ai foi aonde toda nossa história

de vida começou mais sério ainda. Mas aí a gente com mais experiência, está aqui em São

Paulo; não, vou resolver assim e assim, e a gente não, e aí, eu não tinha vergonha, nunca

tive vergonha de dizer o que eu sou nem de onde eu sou, nem o que eu fazia, como eu não

tenho até hoje. O velhinho pôs lá no advogado, falou que queria um aumento, eu fui num

advogado, conversei com ele, ele falou: não; você passa a depositar esse dinheiro do

aluguel todo mês, pois não havia vencido o contrato, o contrato era de um ano. A gente

começou a juntar esse dinheiro numa caderneta de poupança que o juiz mandou.

Então ele chegou a te processar?

O juiz deu a causa ganha para a gente. A gente não estava se negando a pagar, a

gente só queria que vencesse o contrato e ele queria a casa para poder alugar. O advogado

combinou como o dono da casa para que ele recebesse o dinheiro em um ano para frente,

pois o dinheiro que a gente tinha, a gente ia usar esse dinheiro para fazer alguma coisa e

mudar dali. A gente morava em frente a uma favela, a Imperatriz Dona Amélia. Aí ele (o

marido) falou “o que nos resta agora é pegar esse dinheiro e comprar um barraco na favela.

Você quer morar?".

E você concordou?

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Nossa, eu não achava nada de difícil ali porque eu morava na casa do velho onde eu

pagava aluguel, mas eu tinha que carregar água na cabeça quando secava o poço que tinha

lá, não tinha agua encanada, não tinha água no banheiro que a gente pudesse tomar um

banho.

Era parecido com a vida que você tinha na Paraíba?

Era mais ou menos; na Paraíba a gente tinha roça, plantava e comia. Aqui era mais

difícil porque aqui se você tiver um trabalho você tem o que comer e se não tiver você vai

fazer o que? É pior ainda. E no meio de estranho, eu não tinha ninguém da minha família

mesmo, tinha a família do meu marido que são parentes, mas, é diferente de você ter

irmão, pai, mãe, essas pessoas da família da gente. Eu me sentia muito sozinha. Muitas

noites ele me pegava de noite chorando, sonhando com a minha mãe. Eu chorava e, ainda,

com tudo isso, eu engravidei da segunda filha.

Com toda essa dificuldade...

[Graça balança a cabeça afirmativamente].

Aí, não tinha enxoval para a minha filha. Eu trabalhei num clube de mães e foi

aonde eles me deram um pouco de roupinha, me ajudaram. Deram-me essas roupinhas bem

simples, igual às que a Prefeitura agora dá. Coisas bem simples, mas mesmo assim foi

muito bom, graças a Deus! Eu estava falando para minha filha que a gente comprou tanta

coisa para a nenezinha dela e que quando ela nasceu não tinha nada daquilo.

Quando ela nasceu você já morava no barraco?

Não. Nós ainda morávamos naquela casa e esse foi um dos motivos de eu ter

ganhado a causa; eu estava grávida e não tinha condições de me mudar dali. Mas mesmo

assim a gente juntou dinheiro; aí ele (o marido) pediu para ser mandado embora da firma e

continuar trabalhando. Eles (os patrões) foram muito legais com a gente. Mandaram ele

embora, mas ele continuou como se fosse um funcionário novo. Juntou esse dinheiro e a

gente comprou o barraco. Aí, a gente dizia: ai meu Deus, isso aqui é nosso, a gente não vai

mais pagar aluguel! Aí, nossa, lá era feio. Não tinha água, não tinha luz.

Como fazia com duas crianças pequenas?

A gente tinha um vizinho que tinha um poste. Ele morava na frente da rua e desse

poste, e explorava meio mundo, explorava a gente mesmo. Então ele emprestava um bico

de luz e uma tomada se você fosse usar uma televisão ou um rádio velho, então era isso

que a gente tinha. Nós não tínhamos televisão ainda nessa época. Começamos a pensar

depois que a gente entrou nesse barraco: “oba, a gente precisa fazer alguma coisa”. Tinha

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um rapaz que a gente conhecia e que estava começando uma luta pela melhoria das favelas,

e isso foi muito gostoso. Foi muito gratificante essa luta da gente.

Você participou do movimento?

Participei de tudo! Foi muito legal, a gente participou de tudo e a nossa primeira

briga foi com a Eletropaulo, para que viesse luz para todo mundo. Um belo dia a gente

consegue ganhar e veio luz para todo mundo, que até hoje a luz lá é meio, assim, as

pessoas têm luz, mas pagam a taxa mínima, inclusive minhas duas filhas ainda moram lá,

só que não é mais um barraco, hoje é uma casa feita de tijolo; as pessoas tem documentos,

hoje é legalizado.

Lá era um bairro violento, quando você mudou?

Era. Morria muito gente ali.

Mexiam nas casas?

Bom, mexer na nossa não, mas a gente via violência ali, morte, roubo. A nossa luta

nossa era para que não catassem as coisas que a gente conseguiu. Com toda essa nossa luta,

a gente conseguiu ter um clube de mães lá dentro. A primeira historia minha, foi o clube de

mães, porque eu já tinha participado, então eu já tinha um pouquinho de experiência e

através disso a gente fez um movimento legal.

Como que era o clube de mães, como funcionava?

O clube de mães, vinha sempre uma pessoa voluntária que dava aula para aquelas

mães e essas mães davam uma orientação para a gente. E também, no meio dessas

orientações a gente participava na igreja e no meio de tudo isso entrou gente da política. É

muito interessante você ajudar alguém quando está no meio de uma situação dessas porque

você vai ganhar o quê? Eles vão ganhar muitos votos. E foi o que aconteceu, e a gente

começou pelo PMDB. Tinha o diretório do PMDB, então lá teve muita gente legal, muita

gente boa, muito, muito mesmo. No sentido de, tinha advogado que ajudava a fazer as

reivindicações nossas , as propostas que a gente tinha, tinha sempre um advogado ou dois

para resolver as coisas, então isso foi fazendo a gente crescer e eu comecei a ver que o

mundo não era só aquele pedacinho que eu conhecia e que as coisas eram mais, tinha mais

lugar para gente sair.

Que você tinha muito mais oportunidade...

Que tinha muito mais oportunidade e numa dessas oportunidades, foi apesar de que

eu já tinha trabalhado, aí tudo aconteceu, porque aconteceu esse acidente com a minha

mão.

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[mostra a palma da mão com uma grande cicatriz.]

Como que foi esse acidente?

Eu estava trabalhando numa firma, nesse tempo trabalhava numa firma, meu

marido me deixou trabalhar numa firma, porque antes ele não deixava. E assim... aí vai

ficar ruim... porque é muita coisa!

Imagina, a gente tem tempo! E quando você quiser me contar... (risos) a gente

senta aqui, para mim, vai ser maravilhoso!

(risos). Nessa época, minha cunhada se separou do marido e veio morar com a

gente naquele barraquinho apertado. Ela veio com três filhos e grávida de outro.

Então, já estava você, sua sogra, seu marido, o cunhado deficiente, as meninas

e ainda veio uma cunhada. E o barraco pequenininho para toda essa gente?

É! E mais três filhos. Nessa época minha sogra tinha recebido herança dos pais dela

e havia comprado um barraco do lado, que a gente aumentou mais um cômodo e abriu uma

porta para o outro lado. Então, tinha melhorado nesse sentido. Eu fui trabalhar e não tinha

terceira filha, só... O meu filho tinha vários problemas de saúde porque era pequeno e teve

problema de alergia a úmido, tinha mofo lá, sabe? E ele ficava muito doente. Até que eu

fui trabalhar nessa firma, a gente começou a trabalhar, eu e ele (o marido). A gente saía 4

horas da manhã de casa e só voltava às 10 da noite. Eu engravidei da minha quarta filha.

Nossa Graça!

É! Aí fiquei lá, e quando estava com seis meses de grávida me aconteceu um

acidente. Minha mão entrou na máquina de passar roupa e queimou toda. Eu estava grávida

de seis meses, fiquei de licença; no seguro do INPS e dois meses depois minha filha nasceu

e eu fui para um centro de reabilitação no Ipiranga. Mas a gente não parava de participar

dos movimentos. Minha mãe veio ficar comigo um tempo para ajudar a cuidar da minha

filha.

O tempo que eu fiquei nessa situação, a firma, depois de três anos tinha que resolver meu

problema: ou me aposentar com 80% do salário mínimo da época ou saía de lá com todos

os meus direitos. Esse foi o acordo que foi feito. Eles pagaram os meus direitos: férias, 13º,

tempo de casa, tudo e eu saía. Só que nisso, tinha muitos assistentes sociais no hospital que

me deram muitos conselhos e uma delas me aconselhou a receber apenas 40% do salário

mínimo, pois assim resolveria meu problema e eu teria algum dinheiro. E eu poderia

trabalhar em outro serviço. Eu estava liberada para ter outro serviço. É tipo uma

aposentadoria, miserável, mas ajudava pelo menos para comprar o leite da pequena. E

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nisso, eu fiquei desesperada porque meu marido, nesse intervalo foi mandado embora

também e o dinheiro que ele recebeu foi acabando porque a gente comia daquilo ali. Eu e

ele não recebíamos, né? Numa das nossas reuniões lá no PMDB tinha umas amigas que

trabalhavam para a prefeitura e que perguntaram: se a gente conseguir alguma coisa para

vocês lá na prefeitura? Então, já tinha eu, minha comadre e o compadre José que conseguiu

emprego no metrô, para mim e para ela que já tínhamos filhos, seria legal se a gente

conseguisse numa creche porque a gente levaria os filhos. Então nós dissemos que

queríamos. Até hoje eu não me lembro o nome da pessoa que me deu esse emprego. Que

bendita seja, que Deus a abençoe, de coração. Mais tarde mandaram uma cartinha para

irmos lá fazer a entrevista e passar no médico, para ver se tinha alguma deficiência. Graças

a Deus, nem a deficiência da minha mão eles viram.

Eles não viram?

Não, assim pelo menos não...

Não consideraram como algo que fosse atrapalhar o trabalho?

Não viram ou não quiseram considerar porque eu fazia tudo, como faço até hoje.

Aí você entrou para a Prefeitura no cargo de pajem?

Aí foi minha trajetória, comecei no cargo de pajem em 1984. No dia 21 de julho,

era para eu ter começado no dia 20, eu não pude porque eu não consegui passar no exame

de vista. Aí o que aconteceu? Eu fui correndo para fazer os óculos e no dia 21 eu voltei

com os óculos.

E na entrevista, como foi?

A entrevista foi simples, não foi coisa assim difícil, eles fizeram algumas perguntas

para mim: qual é a diferença que eu achava entre os meus filhos e os filhos da vizinha? Eu

pensei, e acho que Deus sempre põe as respostas certas na hora, da vida da gente. Eu

pensei assim: qual é a diferença dos meus filhos e os filhos da vizinha? São crianças do

mesmo jeito, respondi assim. E ela respondeu: “Ah é? E você já cuidou de criança alguma

vez?”. E eu já tinha cuidado também de um filho de uma prima minha desde pequeninha,

então falei que já tinha cuidado dele. Eles pediram que eu levasse uma cartinha de próprio

punho da mãe, para atestar que eu já tinha trabalhado cuidando e criança. E hoje ele já é

um homem, é pai (risos). Então foi isso, eu passei e já me deram os papéis todos para

assinar. Eu não tinha nem dado baixa ainda na minha carteira, desde 1980 que trabalho

certinho. Então eles me mandaram uma cartinha para eu ir na regional do Butantã que lá

me encaminhariam para uma creche que se chamava Vila Alba, que ficava pertinho da

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minha casa, lá eu trabalharia com crianças que eu já conhecia, que era da comunidade onde

eu morava. Mas não deu certo!

Não deu certo, por quê?

Porque lá não estavam precisando e onde estava precisando era no Educandário,

que tinha problemas de meningite lá. Já tinha morrido uma criança e outra estava doente.

Então eu fui lá rapidinho, eu fiquei lá uma semana na regional só organizando os remédios

que tinha. Vendo os remédios que estavam vencidos e fazendo fichário, cumpri minhas

horas fazendo isso. Quando aconteceu esse problema lá (no Educandário), rapidinho me

botaram para lá. Chegando lá, no primeiro dia, já enfrentei um berçário com vinte e tantas

crianças para duas pessoas. Você tinha que dar banho, trocar, ensinar, fazer tudo. E para

mim, tudo era novo, pois estudo eu não tinha, eu tinha a quarta série e daquelas lá que eu ia

uma vez por semana e no resto dos dias eu trabalhava na roça, no tempo que eu estudei.

Você trabalhou desde cedo na roça então?

Desde cedo, acho que eu tinha uns sete anos quando meu irmão pegou uma

enxadinha e me ensinou a trabalhar (risos). Trabalhei três anos nessa creche e depois

trabalhei na creche que eu queria.

E você pôde levar seus filhos quando você começou?

Pude levar a pequena, os outros já eram grandinhos, já estavam indo para escola.

Desde cedo eles foram para a escola com os amiguinhos. A gente trabalhava na

comunidade; então, todo mundo era amigo de todo mundo e uma mãe levava uma

montoeira de crianças “tudo da favela” como era falado, então todos iam junto. E assim

foi. Na época da Luiza Erundina (prefeita) ela exigiu que a gente começasse a estudar.

Você só tinha a quarta série?

Só tinha a 4ª serie porque também era o exigido. Bastava ter só a 4ª serie!

Então não foi concurso? Foi só a entrevista e você já entrou?

Isso, naquele tempo ninguém era efetivo. Depois dessa época é que nós passamos a

ser efetivas. Ela (a prefeita Luiza Erundina) exigiu que a agente tivesse até a 8ª série, e

tudo isso eu fiz no supletivo.

Em quanto tempo?

Em dois anos. Eram quatro, mas de seis em seis meses a gente fazia uma série.

Foi ai que vocês mudaram de cargo, ou não?

Na época da Luiza a gente passou a ser efetiva.

Mas ainda continuava sendo pajem?

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Continuava.

Não tinha mudado para ADI ainda?

Não, acho que mudou em (19)91, (19)92, acho que foi isso. Não tenho lembrança

das datas certas, Teve concurso em (19)90, nós prestamos e passamos. Quem passou foi

efetiva e graças a Deus eu fui efetiva e ficou a luta do estudo.

Como conciliar o trabalho, quatro filhos pequenos e os estudos?

Eu ia trabalhar de manhã, fazia as coisas. No começo eu trabalhava de manhã e

meio dia eu vinha para casa e dava tempo de fazer janta e cuidar de tudo. Só que depois me

mudaram para a tarde, tive que trabalhar a tarde. E eu tinha que chegar em casa deixar a

pequena, sempre dava um banho e penteava o cabelos dela lá na creche e vinha correndo.

Eu saia 6hrs da creche e 7h30 tinha que entrar na escola. Eu trabalhava no educandário que

era bem para lá, já próximo de Cotia e eu tinha que estudar no colégio Bonfiglioli, que era

bem no centro, ali perto da USP. Então era muito corrido e só tinha a passagem de um

ônibus, sendo que a gente precisava de duas passagens. Mas graças a Deus eu tinha um

diretor maravilhoso e sempre que ele podia ele dava carona para mim e para minha

comadre, porque a gente tinha criança pequena. Ela tinha duas e eu tinha a minha pequena

também. Uma ajudava a outra, uma ficava lá dentro enquanto a outra entrava com a

criançada. Ai meu Deus! (risos) Mas, era muito bom! A gente começou a estudar junto

também, íamos para a escola juntas. A gente fazia tudo junto. Quantas vezes sobrava sopa

na creche e não tinha essa miséria de comida, se sobrava sopa e se você tinha vasilha, você

podia levar para casa. Isso ajudava muito. Muito porque até então o salário não era aquele

salário que a gente podia comprar de tudo para os filhos. Ai, foi muita coisa! E eu

continuei tendo que estudar. A gente fez o ensino médio, também foi supletivo. Depois do

ensino médio foi a época que a gente já entrou para a educação que acho que foi no

começo de (19) 90. Foi na época da Marta, daí teve o ADI-Magistério. Que graças a Deus,

foi a libertação de tudo nas nossas vidas.

Então mudou muito na sua vida sair da assistência social e ir para a

educação?

Mudou muito, a Claudete (atual presidente do Sindicato dos trabalhadores nas

unidades de educação Infantil- Sedin; ex- pajem e mestre em Educação) foi uma pedrinha

fundamental no sentido de...

Então foi uma mudança principalmente no patamar de vida?

É, foi uma mudança assim, bem... grande.

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Isso influenciou na vida que você levava, né?

Isso influenciou bastante, muito mesmo.

Você acha que ter mudado de nomenclatura, as vezes que foram mudadas,

isso muda alguma coisa para você enquanto pessoa e não só no sentido financeiro?

Ah muda muito né, porque cada coisa que muda na sua vida para melhor, é claro,

você tem orgulho de dizer “eu batalhei para isso e cheguei aqui”. Aí depois, as coisas

mudam de novo. Aí você fala, olha a gente mudou até aqui. Estamos aqui. Hoje, ser

chamada de professora não é só por causa do dinheiro, mas é pelo respeito, a valorização

que a gente tem. Hoje é muito diferente daquilo que a gente tinha no passado. De

primeiro, quantas vezes a gente ouvia as mães falarem que a gente estava aqui para cuidar

e para limpar cocô de nenê não precisava estudar.

E isso foi logo quando você começou?

Durante toda aquela época;

E isso mudou?

Agora mudou. O respeito que a gente tem dos pais hoje é muito maior que do era

antes. Tem mais exigência em relação ao que você é hoje, tem mais exigência, mas

estamos aí. A gente já falou uns dias aí, que a gente tinha uns cursos na época da

assistência social, tinha mesmo uns cursos e a gente precisava mesmo de formação e era

tudo gratuito e a gente tinha pontuação, cada centavo que vinha a mais era uma vitória.

Era comemorado então?

Era comemorado; e hoje, graças a Deus eu posso dizer que em vista do que eu

comecei, eu posso dizer que eu sou rica.

Que benção!

No sentindo de que hoje eu tenho uma casa para morar, própria. Estou pagando

meu carro, mas tenho um carro. Imagina, isso nunca me passou pela cabeça. Que nem eu

falei no começo, do sonho de ser costureira, quando eu ganhei minha segunda filha, o

dinheiro que eu recebi do auxílio maternidade, do lugar onde eu trabalhava, eu comprei

uma máquina de costura.

Para se realizar?

Para me realizar e isso me ajudou muito, muito porque eu fazia concerto de

roupas e fazia algumas coisinhas assim e isso ajudava nas despesas da casa, pagar

contas... Essa máquina foi tão engraçada que eu nem sabia onde enfiar a agulha; foi uma

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vizinha quem me ensinou. E no dia que eu fui ganhar minha filha, eu estava lá fazendo

umas roupinhas dela e não deu tempo, eu comecei a sentir muitas dores e tive que ir para

o hospital. (risos) Mas tudo isso eu vou, eu nossa... é benção, é muita vitória, muitas,

muitas. (Risos) Já ajudei os meus filhos né, pouco, mas ajudei. Hoje eu vejo que os meus

filhos, os dois que têm filhos não moram num barraco, nunca precisaram morar.

E não passaram pelo que você passou.

Não precisaram passar fome, não precisaram medir a comida para pôr no fogo,

mas é assim, eu agradeço de coração, só tenho que ajoelhar e agradecer ao Senhor.

Desculpa te perguntar; você falou que foi o seu primeiro marido que passou

esses momentos difíceis com você, em que momento vocês decidiram cada um viver

sua vida?

(único instante que parece desconfortável) Ele era muito ciumento, muito, muito.

Só porque ele é mais velho do que eu seis anos.

Você se casou com quantos anos?

Eu casei com de 19 anos, tive a primeira filha ia fazer vinte e um. Minha última

filha eu tinha vinte e sete, que foi quando eu engravidei dela eu já estava trabalhando,

mas é só benção e vitórias. Até ter uma casa na praia agora eu tenho.

Você nunca imaginou ter uma casa na praia?

Imagina! Os meus sonhos não eram tão altos assim não. Eu queria morar numa

casa que eu pudesse criar os meus filhos e era isso o que eu queria.

Quando você era menina na Paraíba, você falou que ia uma vez por semana

para a escola porque tinha que trabalhar na roça; quando você estava na escola,

você imaginava que um dia seria professora?

Não. Eu pensava diferente. Os sonhos das meninas lá, naquela época eram muito

diferentes dos das meninas de hoje. Eu queria estudar para eu pegar num livro. Eu via

meu irmão ler livros. Quando eu entrei na escola já estava com treze para quatorze anos,

para você ver o quanto que eu já estava atrasada. Então, já tinha passado tudo, o tempo de

infância e talvez até hoje eu tenha dificuldade em algumas coisas por isso. Uma coisa é

você estudar sem ter a preocupação de trabalhar para comer e outra é você saber que tem

responsabilidades, pensar num futuro, lá na frente poder fazer uma faculdade, porque

você pensa no que vai acontecer de bom lá na frente. A gente não tinha pensamentos

assim não. As meninas pensavam mesmo era em casar,ter uma casa, era o meu caso né?

Ter filhos, uma vida comum?

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É uma vida comum como as mulheres lá. Então, quem me ensinou as primeiras

letras foi a minha avó. Eu ganhei uma carta de ABC, era assim que falava. Tinha vários

jeitos de escrever as letras, mas era só o ABC. Minha avó era cega e a primeira folhinha,

ela se lembrava, ela começou a ensinar ABC, de memória, e ela me mandava pôr o dedo

em cada letra, que assim eu aprenderia. Então devo isso também a minha avó. A gente

tinha uma vida tão simples, a gente trabalhava na roça, colhia o feijão e o milho e o resto

Deus provia. A gente criava galinha, então sempre tinha um ovo para comer de mistura,

quando matava uma para gente comer tinha mistura. Era uma vida difícil, mas era

gostoso porque tinha tanto amor dentro de casa. Eu costumo dizer para minha irmã,

embora ela diga assim: você sente saudade de ser pobre. Mas não é de ser pobre.

Podíamos até ser pobre, porque a gente não tinha roupa, calçado, nós não tínhamos luxo,

mas o amor que a gente tinha da nossa avó era (pausa: choro).

Você ficou emocionada... (acaricio sua mão).

Era maravilhoso! As histórias que ela nos contava... Hoje nós estávamos falando

de casa grande e, naquela época (na infância), tinha três cômodos na nossa casinha. Lá, a

gente chama de casa de taipas porque é feita de madeira e joga o barro, nossa casa era

daquela. Tinha duas portas, uma na frente e outra atrás, não tinha nenhuma janela e a

gente não tinha cama para dormir. A gente dormia numa rede, dormia minha avó numa

rede, eu e minhas três irmãs dormíamos no quarto com minha mãe e minha avó, e meu

irmão dormia na sala. Minha avó contava história para gente no escuro porque a gente

não tinha condições de comprar muito querosene, então tinha que apagar o candeeiro

cedo. Depois ela balançava nossa rede, contava história balançando a primeira rede, que

batia na minha que era a última. As meninas dormiam entre eu e minha avó, ela

balançava nossa rede e a gente dormia ouvindo as histórias. Até hoje eu me lembro de

algumas historinhas que ela contava, música que ela cantava para a gente. Era

maravilhoso. Nossa que delícia! E seu pai? Faleceu cedo?

Meu pai era um homem rico, mas nunca me deu nada. Nunca ajudou em nada e

nem reconheceu a gente como filho. No meu caso, não me reconhecia como filha.

Vocês eram em quantos?

Nós somos em quatro, três meninas e meu irmão. Ele era o mais velho, era o

paizão. Era aquele irmão que terminou sendo um pai de três meninas que não eram filhas

dele. Ele tem como filhas mesmo, apesar de que hoje ele fala que eu sou como mãe para

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ele. Nós dois somos os mais velhos, perdemos pai e mãe,então, somos nós quem dá

conselho às mais novas.

Vocês não tinham contato frequente com o seu pai?

Tinha, a gente ia à casa dele, mas não como filho. Minha mãe andava na casa

dele, normal, não tinha inimizade com ninguém, mas ninguém era tratado como filho,

ninguém falava nesse assunto. Minha mãe nunca abriu a boca para dizer “teu pai é

fulano”. Só depois, eu não me lembro com qual idade, eu sei que um dia ele deu um

tecido para minha tia mandar fazer um vestido para mim, não sei por que ele deu. Mas

mandou minha tia me dar. Foi quando minha tia começou a falar dele para mim. Ela

dizia: “ó filha, esse tecido aqui foi o seu pai quem comprou”; e eu tenho pai tia? (risos) A

curiosidade veio. Quem é o meu pai? Ela falou: “eu não queria dizer não, sua mãe não

quer dizer, mas o seu pai é o senhor (nome)”. Nossa... Minha maior angústia era quando

alguém me perguntava qualquer coisa sobre meu pai. Isso era muito cruel porque eu não

podia falar que ele era meu pai; afinal ele era casado com a outra mulher. Ele não me

considerava sua filha, meu irmão (filho desse casamento com a outra mulher) não me

considerava como irmã. E como a gente vai crescendo, as histórias vão acontecendo, e

todo mundo morando no mesmo lugar, a turma começava a falar “fulano é teu irmão”, eu

tenho muitos irmãos da parte do meu pai. E da parte da minha mãe, nós somos quatro.

Mas a gente só se considerava irmão nós quatro. Não tinha outros irmãos e os outros não

nos reconheciam. Eu fui crescendo e meu pai foi tomando atitude de pai, mas de longe e

do jeito dele, ele era muito fechado. Eu pedia benção sempre para ele, eu o chamava de

Seu (nome). Sempre tive muito carinho, muito carinho mesmo pelo meu pai. Quando eu

fiquei noiva desse com quem me casei, meu irmão me fez terminar o casamento, então eu

fugi de casa, fui para a casa da minha madrinha e lá eu fiquei um mês e casamos. A gente

casou.

Seu irmão impediu o casamento e você fugiu?

Fugi daquela situação, eu não aguentava mais! Eu casei, quando a gente se casou

nós não tínhamos nada.

Por que ele não queria esse casamento?

Por que a minha sogra tinha uma língua muito grande e um dia ela xingou minha

irmã, ela falou um palavrão com a minha irmã e ele (o irmão) falou que se ela falava

aquilo para uma menina pequena, imagina o que ela faria comigo se eu me casasse com o

filho dela.

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Daí vocês fugiram?

Primeiro a gente conversou, decidimos casar no mesmo dia que minha irmã se

casaria, só que escondido. Mas, decidimos depois não fazer mais isso. Num outro dia, eu

estava na escola quando ele me mandou um bilhetinho dizendo que se eu quisesse fugir,

ele me buscaria. Quando eu mandei a aliança para ele, eu mandei dizer que se ele

gostasse de mim, de verdade, e me quisesse, então eu fugiria com ele. Passados uns dias,

ele tomou uma decisão e foi me buscar. Ele, minha madrinha, meu padrinho (risos), um

monte de gente foi me buscar (risos).

Um monte de testemunhas do amor de vocês.

(risos) Compramos o vestido do casamento, tudo muito simples até porque nós

não tínhamos muitas condições mesmo. Meu pai foi lá, foi na verdade, tomar atitude de

pai, perguntou se precisávamos de alguma coisa para o casamento, mas meu marido disse

que não precisávamos de nada. A gente comprou tudo, graças a Deus! Mas na verdade, a

gente foi morar na casa da avó dele e a mãe também morava no mesmo quintal.

(A entrevista é interrompida pelo choro do bebê).

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Entrevista com Diana

Bom, Diana, eu quero que você comece contando um pouco da história da sua

vida.

De onde?

Do começo, o que você considerar importante me contar.

Desde quando eu era pequena?

Sim, desde quando você era pequena.

Assim....o que era importante na minha vida?

O que te vem à mente?

Eu tive uma infância muito gostosa, brinquei muito na rua.

Você é daqui de São Paulo mesmo?

Nasci no bairro do Tatuapé. Tive uma infância muito bonita, brinquei muito, porém

não tive juventude. Fui mãe aos 13 anos de idade. Não tive orientação porque minha mãe

era muito rígida. Fiquei meio perdida na vida por muito tempo. Trabalhei muito, trabalhei

em casa de família, trabalhei numa fábrica de montar taxímetro.

Tudo isso depois que você teve sua filha?

É, separei. Uma mulher chegou lá com um filho no braço e perdi o contato com ele.

Depois veio o segundo marido.

Quantos anos você tinha?

Bom... do primeiro casamento para o segundo marido, casei com 14 anos, separei

aos dezesseis e conhecei o segundo marido aos dezessete e aos dezenove anos já estava

grávida da terceira filha.

Como foi ser mãe aos treze anos?

Para mim, foi bom! Eu achava lindo. Meu medo era o da minha mãe dar minha

filha.

Ela dizia isso?

Falava; então, eu morria de medo dela dar minha filha.

E o seu pai? Ele já era falecido?

Falecido, não conheci meu pai. Quando ele morreu com câncer de garganta, eu

tinha três anos, então não o conheci. Meus irmãos já eram todos casados.

Então você parou a escola, parou tudo por conta da gravidez?

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Tudo. Parei tudo, só voltei a estudar depois de adulta, com os filhos criados.

Quando voltei a estudar eu tinha trinta e dois anos.

E sua menina, da sua primeira gravidez, você deixava em casa para ir

trabalhar? A deixava com sua mãe?

Deixava com a minha mãe.

Então por isso que você tinha tanto medo?

Eu morria de medo dela dar minha filha.

Mas, alguma vez ela chegou a dizer que faria isso?

Se eu não sustentasse, ela dava! Se não sustentasse, ela dava! Eu tinha que trabalhar

bastante, trabalhava de diarista, tanto é que eu não tenho registro na carteira. Eu trabalhava

como diarista porque dava muito dinheiro. Eu tinha casas mensais, trabalhei num

consultório médico que eu limpava aos sábados, que era mensal e tinha casas que eram

todos os dias, então eu sempre tinha dinheiro.

E isso ajudava a sustentar a menina? E o pai, ele não te ajudava?

Não. Quando eu me separei dele, eu estava na dieta da minha segunda filha. Eu não

quis mais contato nenhum, nem para pedir, nem para receber nada.

Ele era mais velho ou tinha a mesma idade que você?

Ele era mais velho, eu tinha 13 e ele 18 anos. Eu me separei com 16 e ele já tinha

vinte anos. Quando eu me separei, me separei de vez. Então eu fui trabalhar e enfrentar a

vida. Trabalhei de diarista.

E como eram os patrões?

Eu sempre fui muito tímida. Era tímida ao máximo. Essa pessoa que você vê agora,

animada, sorrindo, se desenvolveu depois de muito tempo.

Com as experiências da vida?

Exato. Eu não conversava, não brincava, eu era muito séria e não achava motivo

para rir.

Te entendo. Tão jovem e com uma responsabilidade tão grande.

Não fui uma pessoa que ria à toa. Aprendi a rir faz pouco tempo. Tem uns dez anos

que eu aprendi a rir. Aprendi a rir aqui. Antes eu levava a vida muito a ferro e fogo e a

minha mãe era muito católica, fazia a gente ir à missa. Eu olhava aquele Deus lá pendurado

na cruz, eu olhava bem para ele e falava “o que eu fiz para merecer tudo isso?” Por que eu

mereço tanto castigo? Sabe, era um castigo aquilo tudo, ter que trabalhar tanto, separar tão

nova, ser traída. Eu não podia fazer nada, não podia sair, não podia fazer nada!

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Era do trabalho para casa?

E de casa para o trabalho. Minha mãe não admitia. Quando eu conheci esse

segundo marido foi através de ir e voltar do trabalho. Fui logo morar com ele rapidamente,

mas nós dois já logo nos desentendemos, mas como eu fiquei grávida, decidi ficar com ele

mesmo. Ele foi mais uma fuga.

Para você sentir um pouco mais de liberdade?

Eu não aguentava mais a pressão da minha mãe. Daí veio a terceira filha, continuei

trabalhando e continuei com ele. Aprendi a gostar dele. Depois, fui andando, procurando

religião, isso e aquilo, alguém que explicasse o porquê. Sou uma pessoa, eu sou leonina e

os leoninos gostam muito dos porquês da vida. Eu sou mandona, tudo eu quero saber e se

eu quero... Fui indo até que eu achei o budismo, que no começo eu não gostava muito. Ela

falou tudo tinha que sido escolha minha. Eu fiz isso para mim?

Por que você não gostava? Como que era?

No budismo eles falavam assim: “se você está sofrendo é porque fez alguém

sofrer”. Se você está sofrendo é porque você escolheu esse caminho. Ninguém faz você

sofrer!”

No budismo tem alguém que orienta?

Tem o presidente Ikeda, ele escreve e tem as pessoas que estudam. Eu estou no

grau médio, então já posso orientar. Você tem que estudar escrituras de Nitiren Daishonin

para poder entender alguma coisa.

E a pessoa que te orientava; você não aceitava muito?

Não. Ela falava que eu estava mexendo num copo e que a sujeira estava embaixo e

a água por cima e que quanto mais eu rezava, mexia mais a sujeira. A sujeira subia;

ninguém era culpado do meu sofrimento a não ser eu mesma. Não existia um deus que

castigava e que o certo e o errado eu sabia, eram resquícios do passado. Eu disse: “Quem

falou que eu vivi no passado?” Ela me explicou que todo ato tem uma consequência e que

elas retornam. No budismo não existe aquela pessoa que é coitada. Cada um tem o que

merece. Eu tenho um neto que teve leucemia aos cinco anos e usa muletas, mas tudo isso é

consequência de uma vida passada. Você pode dizer: “mas ele só tem cinco anos!” Mas é o

ato que ele trouxe da existência passada. Ele carrega isso! O que você pode fazer por ele

diminui, mas ninguém pode tirar, pode apenas diminuir. A minha filha é católica, ela (a

orientadora) falou que não faz mal e que era para eu deixá-la rezar, pois toda reza para o

bem é bem vinda. Por isso que eu sempre falo “gente, entra em oração”, principalmente

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quando minha mãe estava no hospital. Tem gente que me pergunta “ué, você não é

budista?” A oração do bem, vai para o universo, eu tenho certeza que aquela pessoa que

está orando, de coração, o universo pega, então vai dar no mesmo. O universo capta o

coração, a força do bem, a sinceridade. Aí que fui me conformando mais, estudando.

Você se perguntava o que você tinha feito no passado? Você não aceitava tudo

aquilo?

Eu me perguntava muito. Então, eu dizia, “nossa eu fui ruim hein.” Eu fui muito

ruim! Minha dirigente me perguntava: “será que você ainda não é? Você já se analisou?

Sente-se na frente do oratório, junta suas mãos, se autoanalisa e veja como você é. Você

manda muito, Diana. Na sua casa é a sua lei. Você ouve suas filhas? Você tem uma filha

que ficou grávida aos dezesseis anos, será que você a escutava? Você vai culpar a aquém?

Ela ou você, pois não a escutou? Não existem culpados, pare de procurar culpados.”

Você sempre procurava culpados?

Queria sempre. Queria pôr a culpa nas costas de alguém. Eu não queria ser a

culpada. Eu sempre queria mandar, eu sempre queria acusar.

Então você era meio rígida?

Eu era muito rígida. Eu tive uma educação muito rígida. Minha mãe era sozinha.

E você era filha única?

Não. Somos em cinco irmãos.

Sua mãe era sozinha, ela precisava dessa postura rígida.

É, precisava. Depois eu perdi um irmão assassinado; então isso acabou muito com

ela. Outro irmão teve câncer no intestino, superou, mas foi muito sofrimento. Ela já tinha

passado pelo câncer de garganta do meu pai, que trouxeram para casa e ele acabou

morrendo. Então, ela já vinha de uma vida muito sofrida; lavadeira, então ela já era como

eu: seca. Eu aprendi a ser através dela. Ela era seca. Ela falava que beijo era falsidade.

Hoje em dia a gente não se abraça e dá beijinho? (assenti com a cabeça) Se fizessem isso

com ela, ela falava que a pessoa era falsa.

Até com vocês, filhos, ela tinha essa resistência?

Sim. Não podia beijar de jeito nenhum, era no máximo na mão. “A benção mãe” e

nada de carinho, nenhum. Eu aprendi a ser menos seca com o tempo, com a religião,

estudando, trabalhando, depois que entrei aqui no CEI, convivendo com outras pessoas,

vendo outras vidas, outros mundos, vendo vários sofrimentos tão piores que os meus.

Tinha umas crianças, quando comecei, antigamente dizia creche, era assistencialismo, que

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eram paupérrimas, umas mães bem pobres e cheias de filhos. Tinha aquela mãe que vivia

bêbada, que vinha drogada, você sabe o que é isso? Tinha criança que vinha toda marcada.

Eu me perguntava “eu acho que eu sofro?” Tinha aquela mãe que apanhava do marido. Foi

a partir disso que eu comecei a abrir minha mente. Mas eu ainda era rígida. A Pedagogia

abriu melhor minha cabeça.

Posso dizer que você já se sensibilizava?

É. Muito.

Aquelas mulheres, aquelas crianças te sensibilizavam. Então você não era tão

rígida assim, você queria se esconder atrás de uma máscara e essa, de pessoa rígida,

era a que você usava. Você falou que seu segundo casamento era uma fuga, então

talvez esse perfil também fosse, né?

Talvez. Acho que foi uma fuga para eu não me machucar de novo. Não deixar as

pessoas me atingirem. Na realidade, como meus filhos eram mais próximos de mim (em

relação ao pai, principalmente as meninas), eles apanhavam muito. Eu vim de uma

linhagem na qual ensinamento é apanhar.

Então sua mãe te batia?

Bastante e por qualquer coisa! Por qualquer motivo e às vezes sem motivo, era

surra. Lembro–me de um dia em que eu cheguei da escola, estava chovendo, eu deixei o

guarda-chuva na área, só que era muito encerado, porque ela tinha mania de muita limpeza.

Minha mãe exigia limpeza máxima. Para ela pobreza e sujeira não combinavam em

absolutamente nada. A área estava encerada e o guarda-chuva escorregou, eu tirei o sapato,

entrei tirei a roupa molhada; tomei um banho. Ela me chamou e perguntou se “aqui era

lugar para deixar o guarda-chuva?” Eu apenas respondi que o havia deixado ali para

escorrer a água. No que eu disse isso, um cabo de vassoura quebrou nas minhas costas.

(fiquei muito chocada! Lembrei-me dos castigos que recebi na infância.) Nossa

Diana! Você era pequena?

(Balançava a cabeça afirmativamente enquanto falava:) Sem falar nada!, Eu tinha

uns nove anos. Tem muita coisa que, assim, tem gente que fala que se lembra da infância

aos quatro ou cinco anos, eu não lembro e nem quero lembrar. (risos).

Era constante?

Era muito constante, com meus irmãos também. Eles falam ainda hoje que comigo

era ela “pegava leve”; pois com eles era mil vezes pior.

Nossa! Você era a mais nova?

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Eu era caçula.

Está explicado, então. As caçulas sempre têm uma colher de chá, eu percebo

isso lá em casa. (risos).

É!, Minha irmã sempre fala que eu tive mordomias. Se eu tive, nem imagino como

foi na época deles. (risos). Certamente era bem mais pesado! Então, eu pegava pesado

com as minhas filhas. Eu batia muito nas minhas filhas. Quando eu entrei na creche

comecei a ver as outras vidas, quando comecei a estudar e quando fiz Pedagogia, eu dizia:

“quanta burrice que eu fiz!”. Mas daí já era tarde, eu já tinha feito tudo isso. Minha filha

estava grávida com dezesseis anos, as outras tão novas já casadas. Minha vida já estava

toda virada.

E quando sua filha ficou grávida, como foi para você receber a notícia que

seria avó?

Eu estava com 35 anos. A primeira engravidou com dezoito e logo casou, a outra ia

completar dezoito, mas eu não a deixei se casar. Eu achava que o rapaz não era boa coisa.

Essa, de dezesseis, foi a última. Mas eu já estava cursando contabilidade e já era mais

tranquila.

Então suas meninas cresceram e, você voltou a estudar a partir de qual série?

Quantos anos você tinha?

Comecei da 6ª série e nessa época eu já estava na prefeitura. Fiz o ADI Magistério.

Entrei em 1986 como lactarista. Lavava mamadeiras, punha as canecas no hipocloro, fazia

três tipos de sopa, os legumes não podiam ser preparados misturados para não dar alergia,

fazia três tipos de leite. Eu ficava nessa parte de preparar os alimentos dos bebês e cuidar

dos utensílios deles. Só dos bebês, cuidava dos alimentos e utensílios só dos berçários. Fui

lactarista por cinco anos.

E decidiu ser ADI, fez concurso?

Na realidade eu fiz concurso para auxiliar de limpeza e auxiliar de cozinha. Como

eu tinha uma diretora muito folgada, eu decidi fazer ADI, ela me falou que eu não tinha

capacidade para isso. Eu disse que via “a meninada” trabalhar fazia cinco anos, então eu

saberia o que fazer. Mesmo assim ela disse “tem que saber, pois no tempo em que elas

fizeram o concurso a exigência era ginásio”. Então eu falei que tinha a 6ª série e que havia

parado de estudar na metade da sétima e que tinha filhas estudando, eu olhava o caderno e

acompanhava na lição, mesmo assim ela duvidava.

E você entrou para ADI com a 7ª série, ela desacreditou de você?

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Entrei só com a 7ª série e ela desacreditou que eu conseguiria, como se alguém não

pudesse acessar um cargo melhor só por ter a 7ª série. Mas o meu interesse, na realidade,

era me efetivar. Em qual cargo? Para mim, (gesticula com as mãos, sinal de indiferença), o

que eu queria mesmo era o de auxiliar de cozinha, que era a coisa que eu mais conhecia e

tal, foi um lugar onde eu passei tão bem. Para ADI eu fui mais calma, pensava que era um

simples desafio.

Você se lembra da prova?

Não, a prova foi, para quem estava nervosa, difícil. Eu estava tranquila, pois já

tinha feito os outros dois, o de auxiliar de cozinha e de auxiliar de limpeza. Se eu passasse

ou não, eu estava tranquila. Tinha muita pegadinha na prova e como ADI tinha que ter

muita atenção, é preciso atenção com a criança, percepção.

As perguntas eram voltadas para quais aspectos?

De cuidados com as crianças, pedagógico também. Nessa época já tinha um olhar

mais pedagógico e a gente tinha também um fechamento mensal.

Como se fosse Reunião Pedagógica?

É. Mesmo a gente sendo do SAS. Também tinha reuniões pedagógicas. Tivemos

uma diretora que puxava muito essa questão do pedagógico e todos participavam. Naquela

época ela já falava que “não existe só a ADI, todos aqui são responsáveis pela criança”,

Então, ela fazia reuniões e todos, até o serviçal que fazia a limpeza participava.

Ela valorizava a figura de todos na escola?

Exato.

Tinha professoras e ADIs ou todas eram ADIs?

Eram todas ADIs, não existia essa distinção em sala. Mesmo dividindo a sala com

outra professora ou no contraturno não existia essa distinção. Era ADI, auxiliar de cozinha,

lactarista e auxiliar de limpeza. E para a reunião pedagógica ela exigia que todos

participassem. Ela falava que o olhar pedagógico todos deveriam ter.

E quando você assumiu a função de ADI, qual foi sua maior dificuldade? Você

sentiu alguma dificuldade?

Minha maior dificuldade foi entrar na sala lotada e ouvir assim: “entra, essa sala é

sua.”

Então... não entendi, você não teve dificuldade?

Tive toda a dificuldade do mundo! Eu não tive ninguém para me ajudar em nada!

Você trabalhou sozinha?

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Sozinha!

E qual foi a turma que você assumiu? Não tinha uma parceira, como é hoje em

alguns agrupamentos?

Não! Era maternal e tinha trinta crianças e simplesmente me disseram “essa sala é

sua!”

Estou chocada! Trinta crianças para cuidar você sozinha?

Exatamente, uma sala com trinta crianças de três anos de idade.

E como cabia trinta crianças dentro de uma sala de aula, por exemplo, na hora

do sono?

Você ficava no corredor. Os colchões todos na sala e você tinha que ficar no

corredor e tinha que dar banho. Então fazíamos assim, dávamos banho em quinze pela

manhã e à tarde nos outros quinze. Tinha que trocar, alimentar e tinha que dar atividade.

Isso era cobrado!

Que tipo de atividade você dava?

Fazíamos muito brinquedo com sucata, utilizávamos bastante guache e íamos muito

ao parque. Essas três coisas eram bastante trabalhadas. E a parte de cuidados também era

necessária, então dávamos banho, trocávamos, todos os dias. A professora da manhã

deixava anotado o nome das crianças em quem ela já tinha dado banho e, eu dava nos

outros quinze. A gente tinha que dar conta dos trinta! Era uma época que não tínhamos

tempo nem para respirar.

E como que vocês faziam, no caso de ter na sala uma criança com algum tipo

de deficiência?

A gente se virava sozinha, claro! Já tivemos aqui uma menina, agora eu não me

lembro o nome dela, que detectamos uma deficiência, mas a mãe não aceitava. Então, a

gente se virava.

E vocês não tinham apoio da SME, da DRE, enfim de algum órgão?

Não! Era assistencialismo puro. Não tinha, simplesmente.

Houve uma vez que uma criança com problemas mentais graves pulou o muro e

saiu correndo para a rua. Uma professora o viu e fez o mesmo, pulou o muro e saiu

correndo atrás dele. O portão era trancado com cadeado.

Então, durante muito tempo vocês trabalharam “abandonadas” por assim

dizer?

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AH, Sim! E tinha que dar conta, não podia deixar uma criança se machucar senão,

“o bicho pegava”, você apanhava dos pais.

É mesmo? Existia uma relação assim complicada?

Bem complicada. Você estava no céu se não entregasse a criança arranhada,caso

contrário, a coisa ficava feia.

Como eles se reportavam a vocês, profissionalmente?

Tia. Ainda hoje alguns falam tia. Mas hoje percebo que tem um pouco mais de

respeito e valorização. Antes eles achavam que a gente estava aqui e não era mais que

nossa obrigação dar banho, trocar. Eles queriam pegar a criança para botar na caminha e

nada mais. Achavam que além de a gente cuidar, tínhamos que educar. Educação vem de

casa, o que fazemos aqui é um complemento, mas eles queriam que alimentássemos,

ensinássemos e educássemos. O nosso trabalho aqui é complementar ao da família e a

família deve fazer o mesmo em relação ao nosso. De que adiantaria uma educação se em

casa não existisse uma ação complementar? O que eles queriam era que a gente educasse

aqui, e quando não tinha uma complementação em casa, eles reclamavam dizendo que a

criança estava ficando malcriada. Mas, claro!, ensinávamos uma coisa aqui e quando as

crianças chegavam em casa faziam outra totalmente diferente. Então não tinha como.

Você acha que ter sido mãe cedo, ter tido a experiência de criar três meninas te

ajudou no trabalho na creche?

Não. Aqui você tem outra postura, bem diferente do que é em casa. Lá você relaxa

mais, aqui você tem mais medo, mais tensão. Aqui eu sou uma pessoa mais tensa. Não são

meus! (em relação às crianças, responsabilidade de cuidá-las).

A experiência dos cuidados maternais, eu falo, isso te ajudou, por exemplo,

você trabalhou em berçarinho?

Eu amo berçarinho! Trabalhei, praticamente, a vida toda no berçário.

E isso te ajudou?

Com certeza! Bastante. Eu amava bebê.

Isso (os sentimentos e experiências de mãe e professora) se misturava? A

relação maternal e profissional se misturava?

No berçário sim. Fora dele, não.

Por que nos outros não?

Eu tinha medo! Os pais eram, sei lá, a criança podia chegar em casa falando alguma

coisa e te complicar ou ir ralada. O bebê não, era só trocar; o bebê te devolve muito, em

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termos de afeto e devolutiva do trabalho. Você pega um bebê de três meses, se bem que já

tivemos um de sete dias. A mãe precisava trabalhar, o marido estava preso, eu apenas exigi

que deixasse o umbigo cair. Aí é o que eu te falei, era assistencialismo puro. Ela era

diarista e tinha outros três filhos; precisava sair para ganhar dinheiro ou os filhos passariam

fome. A diretora me perguntou na época se eu ficaria com a criança, eu disse que sim, mas

tinha que esperar o umbigo cair. Eu não cuidei dos umbigos dos meus filhos, não

conseguiria tratar desse.

No berçário tinha muita retribuição, sorriso, carinho, o engatinhar, os primeiros

passos, o falar, o cantar, o bater das palminhas, se eu falar que não me emocionava, que

não sentia, é impossível ou não é ser humano.

O (bebê), por exemplo, ele não tinha as pernas, ele tinha os joelhos que

emendavam os pés. Ele entrou aqui bebê, quando ele ficou em pé pela primeira vez, eu

vibrei. Nós vibramos! Falamos para a mãe, ela ficou perplexa “vocês estão brincando!”, ela

dizia. Ele subiu direitinho nas grades do berço, é gratificante! Você vê o valor do seu

trabalho, não precisa que ninguém fale.

Você se preenchia com isso?

Isso é a sua satisfação, sua realização profissional, o interior satisfeito, sensação de

dever cumprido, é gostoso! Sabe, tem gente que vem trabalhar e “fazer o que”, mas lá no

berçário não, cada dia era um dia diferente, uma surpresa diferente, uma criança fazendo e

aprendendo coisas diferentes. Então era gratificante. O trabalho era pesado? Dar banho, dar

“de mamá” (mamadeira), bater nas costinhas para arrotar, dar comidinha na boca, colocar

para dormir. Era pesado, não vou negar. Mas era muito gratificante, tem mais recompensa,

você se satisfaz mais como profissional. Na sua vida profissional você se sente mais

realizada.

Você pode dizer que isso te ajudou também na vida pessoal? Você disse que

queria arrumar culpados, se sentia prejudicada. Isso foi saindo?

É, isso acabou!

Os bebês te transformaram?

A inocência me mostrou, os bebês me mostraram a vida como ela é, eles me

ensinaram isso. O bebê com deficiência, o (bebê) com síndrome de Down.

Realmente, problemas bem maiores, que no caso deles não teriam como

contornar. Já os seus poderiam ser contornados, de acordo com os caminhos que você

escolhesse né?

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E os meus eram fáceis de serem resolvidos. Quando meu neto teve leucemia, eu

tive todo tipo de apoio dos meus companheiros de trabalho. Então, eu pensava assim, ele

vai vencer! Eu vi tanta coisa pior lá dentro daquele CEI, eu sei que ele vai vencer e venceu.

Que bom!

Ele te 15 anos (risos)

Você ficou quanto tempo de ADI até transformar seu cargo?

Foi de 1990 até 2005. Depois passei para PDI, precisava fazer o ADI Magistério, eu

trabalhava aqui e à noite ia para a faculdade.

Então você fez o supletivo do 7º ao 3º ano?

Isso eu fiz no tempo da Erundina, pois já existia rumores de que não exerceria a

função caso a professora não tivesse faculdade. Se não me engano foi a “época da

educação”. Fui estudar, fiz supletivo, era semestral. Fiz o colegial técnico e quando veio o

ADI Magistério eu fui direto para a faculdade e fiz Pedagogia.

O que mudou, para você, ter feito Pedagogia, ter concluído os estudos?

Passei a ter outra visão.

Em termos financeiros, mudou bastante, e na vida profissional?

Também. Mil por cento! Antigamente, não tínhamos nenhum suporte. Quando se

comprava um brinquedo, a gente dizia: “a criança destruiu” e agora falamos que a criança

“explorou”. Brinquedo não é eterno, é feito para brincar e a criança quer ver o que tem

dentro, ótimo!, ela está explorando, mostra o quanto é inteligente. Antigamente taxavam as

professoras de “relaxadas” (desleixadas) e as crianças de destruidoras. Então, tínhamos que

cuidar até disso. Eu tinha uma raiva de ir para a brinquedoteca, eu não gostava de ir. As

crianças não podiam brincar à vontade, as coisas precisavam permanecer inteiras.

Brinquedos desgastam, quebram, uma criança mais curiosa quer saber o que está fazendo

barulho dentro do objeto. E você não vai conseguir olhar todas. Então, antigamente não

havia um suporte. Mas eu não vou ser hipócrita, eu também achava que a criança destruía

brinquedos, hoje em dia isso é diferente, não se trata apenas de destruir, ela quer construir

o novo. Minha visão mudou. A relação com os pais também foi beneficiada, hoje em dia

eu os compreendo mais.

Quando vocês passaram por essa transformação, de ADI para PDI e agora

PEI, o comportamento dos pais para falar e abordar vocês, isso mudou?

Não, foi aos pouquinhos. E ainda hoje muitos nos veem como tias. Estamos

engatinhando, acho que no futuro vão encarar melhor.

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Você aceitava ser “tia”? Era natural?

Para mim, que entrei lá atrás, era natural. Eu aceitava, mas muitas professoras que

vinham da EMEI, elas achavam uma aberração. Eu dizia: “gente, calma, aqui é outra

realidade”. Realidade que está se transformando e isso não acontece da noite para o dia.

Leva-se tempo.

E muitas lutas!

Exato. No meu tempo de criança eram poucas as crianças que entravam numa

EMEI; hoje em dia, é direito, é para todos. Creche era raríssimo, hoje em dia é um direito,

tudo é uma questão de transformação.

Quando você entrou aqui devia ter poucas creches na região, considerando a

superlotação das salas.

Tinha. Essa foi inaugurada em 1985 junto com o conjunto. (Conjunto

Habitacional).

Seus filhos chegaram a frequentar?

Sim, o mais novo, frequentou quando eu era lactarista. Eu o levava todos os dias,

meus nove netos também vieram para cá.

E como era ser professora e avó ao mesmo tempo?

Eu nunca interferi, aqui eu não em mãe nem avó. Algumas vezes até me virava para

não ver. Nunca tive nenhuma discussão quando cuidaram dos meus netos. Eu olhei os

filhos de muitas aqui e nunca tive nenhum tipo de bate-boca, elas respeitavam o meu

trabalho.

Ocorreu-me uma coisa agora, voltando lá para as adolescência um pouco

conturbada, você disse que não podia sair, não podia nada, que era da casa para o

trabalho e do trabalho para casa. Você tinha sonhos?

Tinha. (seu tom de voz muda) Tinha muitos sonhos.

Ser professora era um sonho?

(estampa um largo sorriso) Era! Ser professora era um sonho. Mas você não vai

acreditar, sabe qual era meu sonho? Ser professora de inglês, uma coisa na qual eu sou

péssima (risos) e a minha filha é ótima. Teve um tempo que estudamos juntas e ela me

passava cola da disciplina. Até hoje ela é boa em inglês. Mas o sonho dela também foi

interrompido, ela queria ser médica. Então eu digo “nunca é tarde”. Eu realizei meu sonho

com 36 anos de idade.

Você só o atrasou um pouquinho, não o impediu.

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Não. Só guardei um pouquinho na gaveta para mais tarde. E a vida foi uma

sucessão de coisas para eu vir a ser professora. Todo mundo falava: “mas não cansa?” Eu

estudava no período da manhã, pegava ao meio dia e ia até às seis da tarde. Era pesado,

mas era para correr atrás de um sonho, né?

O normal era 36 crianças na sala e quando vinham todas era uma tragédia. Tinha

que pôr colchão até no corredor. Era um grudado no outro, respirando o chulé do outro

porque eu colocava “pé- prá- lá e pé- prá- cá”, um trocando bactéria com o outro...

Por falar em bactéria uma professora comentou comigo que quando ela

ingressou na rede houve um caso de morte. Uma criança morreu de meningite. Era

comum as crianças ficarem doentes e morrerem nessa época?

Bastante comum. Aqui também chegou a morrer uma criança. Morreu por falta de

cuidados, a gente avisou tanto a mãe. A criança estava com pneumonia, falamos com a

mãe, ela só precisava trazer a criança, aqui nós medicávamos. Ela sempre perdia a hora da

medicação, tinha dias que se esquecia de mandar o remédio, a criança foi ficando fraca, foi

passando para o outro pulmão, ficou internada e morreu. Foi revoltante! Uma vontade de

“catar” essa mãe, mas infelizmente, não pude. Ter que olhar para ela e ouvi-la dizer “Deus

quis assim”, coitado de Deus viu!

Será que ela já tinha perdido outro?

Nem quis entrar em detalhes, minha revolta era tanta. A gente batalhou tanto para

que a criança sobrevivesse.

Você se viu ali como mãe?

Me vi como um parente, mas quem tomava conta dela (a criança), saiu. Não soube

lidar com isso, pediu a conta e foi embora. (pausa).

Deixa eu te perguntar outra coisa. Você falou que tinha sonhos e que ser

professora era um sonho que você conseguiu realizar, teve algum outro?

Morar na praia. (risos)

Verdade! (Risos) por isso que você faz essa viagem e não reclama?

Não reclamo, é minha verdadeira paixão.

Quando você olha para trás e fala assim “nossa tudo aquilo que eu vivi; tudo o

que passei”, valeu a pena?

Valeu, valeu muito a pena. Aprendi muito, eu sou outra pessoa!

E no que você se difere tanto dessa outra pessoa que foi um dia?

Em tudo!

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E sua religião te ajudou nisso?

A minha religião me ajudou muito a enxergar. Eu era uma pessoa doente e não

sabia. Na minha família há casos de bipolaridade, minha mãe era bipolar, eu sou bipolar e

minha filha é bipolar mais grave. Ela tem um grau a mais de bipolaridade. E naquela época

eu não compreendia nada disso. Eu explodia, eu chorava, e ria. A pessoa bipolar muda

muito e rapidamente de humor.

A minha religião fez com que eu me enxergasse. Fez, primeiramente, com que eu

olhasse para dentro de mim e me transformar. Você nunca poderá ajudar ninguém nem

nunca verá nada de diferente se não estiver transformada interiormente. Se você não se vê

interiormente como pessoa transformada, nunca conseguirá fazer nada por ninguém.

O primeiro olhar, então, é para dentro, né?

Eu não gostava de mim. Eu trabalhava tanto, vivia feito louca. Vivia a vida dos

meus filhos, a vida do marido, a do vizinho, as das pessoas aqui da creche e das crianças;

eu não vivia a minha vida.

Não vivia para você, não se cuidava, não se dava um presente?

Exatamente. Hoje em dia não, as pessoas falam que eu sou a “dona das bijuterias”.

Eu sou!

Você é bem vaidosa?

Eu sou! Antigamente bastava apenas um chinelo de dedo e uma blusa, hoje em dia,

não. Primeiro eu vejo se preciso de alguma coisa, só depois é que penso em ajudar. A

viagem daqui até a praia é longa, mas me satisfaz.

Só de chegar e ver o mar da janela... (Risos)

(risos) Exatamente, sentir aquela calmaria é maravilhoso. Então, eu me ponho em

primeiro lugar. Uma pessoa insatisfeita não consegue fazer nada de bom e nem passar nada

de bom para ninguém.

Ainda mais atuando na educação infantil, né? Você precisa estar satisfeita e se

sentir realizada em algum ponto.

Se você não está realizada... (deixa algo subentendido)

Eu tenho uma professora que fala que a emoção é contagiosa e ela é mesmo. Se

você está num clima ruim, sempre para baixo, não terá condições de enxergar as

coisas boas da vida e as outras pessoas vão te olhar com essa mesma negatividade, né?

Exatamente, os problemas de hoje não serão os mesmos amanhã. E se você parar

para pensar, quem trabalha com crianças é privilegiado.

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Quando te perguntavam o que você fazia, você dizia que trabalhava em

creche?

Sempre! Eu tinha orgulho de dizer isso. E se me perguntavam o que era creche eu

dizia que era um lugar onde ficavam os bebês, eu cuido de bebê até quatro anos de idade.

Tinha muita gente que não conhecia, não era muito divulgado. Agora se você falar em CEI,

todo mundo sabe o que é Centro de Educação Infantil. Antigamente, creche se chamava

depósito de crianças, CEI é uma coisa mais recente.

Você acha que essa mudança trouxe valorização para o professor?

Trouxe. Bastante! As pessoas entendem melhor o que fazemos aqui dentro. Deixou

de ser um depósito. Antigamente, todo cuidado era pouco. A gente era muito ligada,

tínhamos que estar sempre muito atentas a qualquer risco iminente. Tinha que ter esses

cuidados, por exemplo, no berçário, depois de alimentar a criança eu tinha que esperar

arrotar, pôr no berço mesmo que tivesse outro chorando. Você tinha que ter paciência, eu

não poderia colocar a vida de um em risco porque o outro estava chorando. Ele choraria

cinco minutos e depois seria saciado, mas em cinco minutos um bebê poderia perder sua

vida. Até para trabalhar no berçário é necessário jogo de cintura.

E nesse ponto, você acha que as personagens mãe e profissional se misturam?

Não. A mãe certamente pegaria no colo, ainda que fossem gêmeos ela pegaria os

dois no colo e o profissional tem que ter cabeça fria. Uma pessoa que trabalhar no berçário

e se desesperar, não trabalha. Tem que ser centrado, tem que ter cabeça fria. Tem que dar

comida, esperar arrotar, deitar a criança de lado, tem que ter vários cuidados e tem que ter

paciência, não se incomodar com grito e ter sensibilidade para escutar o choro, na hora do

banho tem que deixá-lo brincar um pouquinho na água.

(Pausa para atender uma ligação. Faço uma anotação: “contradição; as mães

também fazem isso”).

Nessa época do assistencial, além das mães que necessitavam ou porque eram

muito pobres e seus maridos estavam presos, ainda tinham aquelas que precisavam

do equipamento porque não tinha com que deixar a criança para poder trabalhar.

Tinha, cansei de fazer sabe o quê? Eu e outra professora comprávamos pente fino,

com nosso próprio dinheiro e tirávamos os piolhos, mas tudo no mais absoluto segredo.

Era nossa obrigação? Não, mas enfim.

Você se sentia na obrigação de fazer isso?

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Eu me sentia na obrigação, eu não achava certo por causa do descaso de uma mãe

prejudicar outras que trabalhavam, que davam tudo de si. E tinha mãe que até ajudava, ela

trazia um remedinho para passar na cabeça do filho, eu passava na cabeça dele e na do

vizinho também.

A década de (19)90 foi muito importante para a educação, em termos de

políticas públicas, a creche estava se tornando CEI, tivemos o RCNEI e tratava do

educador numa visão mais humanista, um profissional com qualificação, que até

então isso não existia no SAS. Você comentou que começou a trabalhar na creche com

a 7ª série e deveria ter outras com menos escolaridade que você.

Tinha, até com a 4ª série.

Aí começou a exigir um pouco mais, você acha que isso foi bom?

Ótimo. A partir do momento que você estuda, sua vida muda em todos os sentidos.

A sua vida profissional e a sua vida particular muda em muitas outras coisas. Quando eu

disse que os estudos abrem os olhos, é verdade! Até mesmo a política, você aprende a ver a

política com outros olhos. Acho que é importantíssimo.

Você falou que vinham professoras da EMEI para cá. Existia essa distinção

entre professora da creche e professora da EMEI? Como era lidar com isso? Tinha

algum tipo de discriminação, ou não.

Tinha! Elas não gostavam muito. Querendo ou não ainda existia um pouco de

assistencialismo, foi devagar que a gente foi largando, foram anos de assistencialismo;

então, nós tínhamos vícios de assistencialismo ao vir para a educação que elas não tinham,

e isso gerava um conflito bem grande.

A visão era bem diferente, a nossa visão era bastante de cuidados. No caso delas, a

parte pedagógica era o que mais as interessava, existia essa discrepância. A gente via a

criança como ser humano e as outras professoras de EMEI viam como aluno.

Essa diferença que existe em relação ao olhar do professor de educação

infantil em relação a vocês, você acha que era devido ao salário, a escolaridade?

Tinha mesmo essa diferença salarial e de formação?

Tinha. Falava-se muito que a gente ganhava para limpar “bunda e catarro”.

Desmereciam nosso trabalho por conta do cuidar, mas que continha também o pedagógico.

Era um trabalho menos respeitado e menos valorizado.

Mas o principal era a criança?

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A gente punha o pedagógico, sempre tivemos. Se você buscar o nosso passado vai

ver o pedagógico sempre. No assistencialismo, como também nos dias de hoje, tem o

pedagógico. Tanto é que quando tem essas coisas que o povo fala que é novo, nós olhamos

uma para a cara da outra e pensamos “que há de novo nisso?”

(risos).

Teve uma pedagoga, que tudo para ela era lindo e novo, para nós aquilo tudo era

cansativo, nós já estávamos carecas de ver isso.

Tinha muito curso na época de ADI?

Tinha. Muito focados no pedagógico, pois para o cuidar nós já éramos bem

preparadas.

Depois da Pedagogia você tem alguma outra formação?

Tenho várias (risos), fiz pós- graduação em Psicopedagogia, Arte- Educação. Fiz

bastante cursos para evolução funcional.

Depois disso tudo, você algum plano em mente? Já que seu outro desejo você

acabou de realizar.

Eu acho que vou trabalhar como psicopedagoga. Foi um curso que eu fiz por acaso

e me interessei.

Diana, estou muito feliz com a sua entrevista. Tem mais alguma coisa que você

deseja me contar?

Não. Estou solteira, estou feliz.

Se eu precisar...

Fique à vontade, a gente conversa sobre a vida, que é muito bom, a hora que você

quiser.

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Entrevista com Penélope

Bom dia Penélope, essa entrevista tem como tema a constituição identitária da

profissional de creche. Eu vou pedir para você me contar a sua história de vida.

Mas o que você quer que eu fale?

A sua história, desde pequena até hoje. Como e quais foram os seus passos

para você ser quem você é hoje: a professora, a mãe, a avó, a esposa.

Ave Maria! Tem que começar do começo? (risos) Primeiro quando eu era menina...

Vou começar contando de quando eu era bem menina. A gente brincava. Hoje eu sinto

falta disso A gente brincava de casinha, fazia comidinha e fazia nossa própria bonequinha.

Não tinha tudo pronto como é hoje. Quando eu tinha aproximadamente doze anos a vizinha

da minha mãe ficou doente e ela tinha uma filha pequena. A vizinha não sabia o que fazer

para cuidar menina já que estava muito doente, então pediu para minha cuidar. Só que

minha mãe disse que não tinha paciência e por isso não poderia cuidar da menina e me

incumbiu dessa responsabilidade. A minha disse assim: eu não vou cuidar não, mas vou

deixar a Penélope com você, ela cuida direitinho e vai te ajudar. Eu só tinha doze anos

quando comecei a cuidar de criança pequena, ela tinhas uns oito meses. O tempo foi

passando, a (vizinha) melhorou e decidiu procurar emprego. Continuei cuidando da criança

e estudava de manhã. Depois da escola eu almoçava e ia para a casa da vizinha cuidar da

criança. Essa foi a condição estabelecida pela minha mãe, de que eu continuaria cuidando

da menina, mas tinha que estudar. A (vizinha/patroa) chegava por volta das dez horas da

noite e eu ficava lá, na casa dela até essa hora.

Naquele tempo a gente era mais responsável com as coisas. Eu era a mais velha,

minha mãe trabalhava e eu cuidava dos meus irmãos, já sabia fazer comida. Eu aprendi

muito cedo a fazer comida porque minha mãe me fazia cozinhar. Um dia a (vizinha/patroa)

me perguntou se eu me importava de fazer a comida para ela. Eu disse que não afinal e já

sabia fazer comida. Comecei a cozinhar e a vizinha/patroa gostou muito. Chegou a dizer

que eu deveria ser cozinheira, mas eu disse que não, pois “quando eu crescer vou cuidar de

criança.” Eu nem imaginava que eu seria professora hoje, eu queria cuidar de criança. Eu

gostava, adorava cuidar de criança.

Passei por esse processo de ser adulta muito nova. Meu pai perdeu o emprego e

minha mãe passou a trabalhar fora para ajudar nas despesas da casa e me deixou

responsável por cuidar dos meus irmãos. Aos doze anos eu já tinha toda essa

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responsabilidade, mas não posso dizer que não tive infância. Fui muito feliz na minha

infância e mesmo com toda minha responsabilidade de cuidar da casa e dos meus irmãos

eu ainda tinha um tempo para brincar.

Eu namorei, tive alguns namoricos e me casei muito nova com esse meu marido.

Você tinha quantos anos?

Dezessete e ele vinte e quatro. Eu era novinha, novinha. Ninguém queria que a

gente se casasse porque eu era muito nove e ele não tinha muito juízo. Ninguém queria que

a gente se cassasse. Minha mãe mesmo não queria de jeito nenhum. Mesmo assim nos

casamos. Passamos por muitas dificuldades. Meu pai costumava dizer que a única coisa

que a mulher escolhe na vida é o marido. Filhos, pai e mãe não se escolhem, mas o marido

é escolha e, se você não souber escolher sofrerá duras penas. Mas quando se é jovem não

ligamos para isso. Quando se está apaixonada não enxergamos outra coisa. Casei. Foi

então que descobri o que era sofrer. Sofri e sofri muito com meu marido. Ele bebia e tinha

vicio de jogo. Tudo o que ganhava (salário) deixava no jogo. Perdia tudo, sabe?

Vocês se casaram e foram morar longe da sua família?

Fomos morar no quintal da mãe dele. Era bem perto da casa da minha mãe.

Morando no quintal da mãe dele, ao invés de ele vir para casa com o dinheiro; eu ficava

esperando- o para pagar as contas, fazer compras; cadê? Esse homem não aparecia. E

quando aparecia era no outro dia, cansado tanto é que nem conseguia trabalhar, pois tinha

jogado e bebido a noite inteira.

Ele trabalhava numa estamparia. Um dia eu pensei: quando eu era menina eu já me

virava, agora que eu casei não vou trabalhar? Não, eu tenho que fazer alguma coisa.

Trabalhei em casa de amigas minhas como diarista. Eu não tinha vergonha de oferecer meu

serviço. Eu falava: olha fulana se você precisar de alguém para fazer uma faxina, eu venho

fazer para você e cobro baratinho.

E sua sogra, o que ela falava sobre o vício do seu marido e o fato de você sair

para trabalhar?

Eu morava no quintal da minha sogra, mas eu tinha o meu canto e ela o dela. Sobre

isso ela e o meu sogro até brigavam com ele. Ele (o marido) era muito rebelde, não

adiantava ninguém lhe falar nada, continuava a fazer tudo errado. Sempre vi meus sogros

como pais. Hoje estão mortos, mas sempre foram para mim como verdadeiros pais. Eu

tinha muita consideração por eles. Ai se não fossem eles. Meus sogros me socorriam

quando eu precisava de alguma coisa e estavam sempre por perto. Viam tudo o que eu

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passava com o meu marido. Eu não reclamava nem falava nada para meus pais. Jurei eu

não contaria nada, principalmente para minha mãe porque eles não queriam o casamento e

eu ainda me lembrava da fala do meu pai.

Você tinha medo de eles dizerem “eu não te avisei”?

Medo e orgulho. Muito orgulho! Naquele tempo eu era muito orgulhosa, hoje não

sou muito. Por isso não falei nada. Sofria com meu esposo e ficava quieta. Minha mãe

quando ia à minha casa, eu não demonstrava de maneira nenhuma. Eu sempre tinha um

cafezinho para servir. Morava num cômodo que fazia de quarto e cozinha, mas você se

enxergava no meu chão. Fazia questão de deixar tudo bem limpinho.

Minha mãe só soube da minha dificuldade quando fui ter meu primeiro filho. Eu já

não aguentava mais aquela situação. Esperando nenê, trabalhava de diarista e arrumei

serviço numa fabrica de fundo de quintal. A patroa pagava direitinho fiquei algum tempo

ali.

Quando você é jovem e sem recurso não se atenta para algumas coisas. Só descobri

que estava grávida aos cinco meses de gestação. Não fiz o pré- natal e nem fiz o enxoval

do bebê. Fui ter o nenê, minha mãe não sabia que eu não tinha nada. Eu não tinha

comprado nada. A minha sogra é quem fez uns cueiros. Nesse dia a minha mãe foi até a

minha casa para buscar a bolsa para levar ao hospital e eu, sem jeito pensava: como vou

falar para ela que não tenho bolsa, não tenho nada? Era tanta vergonha, sabe? Naquela

época a mulher ficava uns dias no hospital, quando meu marido veio me visitar eu

perguntei se ele não ia comprar as roupas do nenê. Ele me disse “’Nega’, me perdoa. Eu

perdi todo o dinheiro”. Eu chorei, chorei, chorei. Perguntei se ele não sabia que tinha que

comprar o enxoval. Como eu ia fazer para sair com o nenê do hospital agora? Eu perguntei

para ele.

Eu fiquei com raiva. Foi a primeira vez que eu fiquei com raiva dele. Quando

minha mãe veio me visitar eu pedi para voltar para a casa dela. Por um momento minha

mãe ficou sem saber o que me responder. Em seguida disse se era aquilo que eu queria,

então tudo bem. Mas quis saber se estava acontecendo alguma coisa. Eu não falei nada a

não ser que o nenê não tinha nenhuma roupa. Eu não sei como vou fazer. Só tenho algumas

fraldas que a Dona (sogra) fez, mas roupas, cobertor etc., isso eu não tenho. Minha mãe

não acreditava, se eu tivesse contado o que estava acontecendo ela teria comprado o

enxoval. Ela ficou brava, xingava meu marido e disse que iria me buscar e que meu marido

nunca mais ia me ver. Minha mãe foi numa loja e comprou no crediário tudo o que o nenê

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precisava, comprou até um carrinho. Quando eu cheguei à casa da minha mãe, ela tinha

preparado um quarto (que antes era meu e da minha irmã) para eu ficar com o meu filho.

Mais tarde meu marido bateu lá na casa da minha mãe. Ele tinha ido me buscar no hospital

só que eu já tinha saído. Esse homem ficou louco. Ele gritava: Por que você não quis ir

para nossa casa? O que eu te fiz? Eu estava decidida, não queria mais viver daquele jeito.

Falei “se você mudar, podemos voltar”, mas, daquele jeito, eu não queria mais. Meu

marido não aceitou essa separação e decidiu conversar com meus pais, ele queria morar lá

na casa junto comigo e meu filho. Eu amava demais ele, mas voltaria a viver com ele só se

ele mudasse e deixasse o vício do jogo. Ele disse aos meus pais que gostava de mim, que

iria mudar... E veio. Moramos lá com pouco tempo. Ele jurou que deixaria com o jogo e

com a bebida, e não fez nada. Foi até pior. Ele não ajudava na despesa da casa. Meu filho

nasceu em abril; e no dia de finados, minha mãe e minha tia costumavam ir ao cemitério

nessa data. Elas visitavam túmulos de parentes, assistiam a missa de finados. Nesse dia,

meu marido ficou dormindo, deixei o bebê com meu pai no outro quarto e eu fui com elas.

Demorou um pouco. Quando chegamos, ele estava bravo, me xingou, xingou minha tia.

Foi a gota d’água. Eu disse: arruma suas coisas e vai embora!Eu tinha uns dezenove anos

nessa época. Ele não acreditou que eu estava falando sério, eu repeti: arrumas suas coisas e

vai embora! Eu peguei as roupas dele, enfiei num saco e joguei lá no quintal. Meus pais

ficaram quietos; eu estava decidida. Eles viram que estava certa e preferiram não inflamar

mais a situação. O (marido) recolheu suas coisas no quintal e voltou para a casa dos pais.

Depois de algum tempo eu arrumei emprego na Philco, trabalhava lá até as dez da

noite e continuava separada do meu marido. Fazia um ano e meio que eu trabalhava nessa

empresa e esse homem me perturbando, sempre ia atrás de mim, querendo voltar. Eu

sempre falava que não queria voltar com ele não. Quando foi um dia, lembro como se fosse

hoje, era um sábado, meu cunhado estava me esperando na porta da firma. Eu estranhei,

senti uma sensação estranha. Achei que tinha acontecido alguma coisa. Eram dez horas da

noite, é claro que alguma coisa aconteceu. Meu marido tinha se envolvido numa briga e

tinha levado muitas facadas, estava em coma. Minha sogra foi quem pediu a esse meu

cunhado para me avisar. Como já era de noite, eu não podia visitá-lo. Fui para casa

chorando, nervosa. No outro dia, bem cedo fui ao hospital. Lá o medico disse que o estado

era muito grave e me perguntou se eu tinha alguma crença, se eu acreditava em Deus ou

em algum santo. O médico falou que já haviam feito tudo o que podiam. Meu marido ficou

em estado grave, perdeu a metade do fígado por causa de uma das facadas. Foi muito sério

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o que aconteceu com ele. Eu entrei numa capela e comecei a pedir para Deus pela vida

dele. Se Deus achasse que nós merecíamos uma segunda chance, que livrasse meu marido

dessa situação difícil. Eu sentia culpa, sabe? A primeira coisa que a minha sogra me disse

quando me viu no hospital é que eu era culpada. Eu achei mesmo, porque toda vez que ele

bebia toda vez que ele saia e voltava revoltado, era por minha causa. Ele vivia atrás de

mim e eu não queria voltar. Ele ficava revoltado e chorava e dizia que queria sua mulher de

volta. Então minha sogra achava que eu era a responsável pela piora dele e pelo que havia

acontecido. Ela (a sogra) dizia que se eu ainda estivesse casada com ele isso não teria

acontecido. Ajoelhada eu só pedia isso a Deus. Depois de um tempo que estava orando, o

médico chamou a família e eu pude entrar para vê-lo, eu achei que seria a despedida. Juro

por Deus, eu não achei que meu marido sairia daquela. No instante em que olhei para ele,

temi que já estivesse morto. Ali eu pensei que minha sogra estava com a razão. Se eu

estivesse ao lado dele, isso talvez não tivesse acontecido. Como foi de madrugada, talvez

ele estivesse em casa comigo. Foi isso o que ela quis dizer. Naquele instante eu pensei que

talvez pudesse ter evitado tudo isso. Aproximei-me, segurei em sua mão e fui pedindo a ele

que pelo amor de Deus se levantasse daquela cama. Ele precisava melhorar para cuidar do

filho. Nisso, senti que ele apertou minha mão e vi que uma lágrima escorria no canto do

olho dele. Ali eu acreditei que ele sobreviveria. Antes ele não tinha demonstrado nenhuma

reação, o médico nos deu um pouco mais de esperança, mas disse que, se ele sobrevivesse

poderia ficar com sequelas. Fui embora e só voltei no outro dia, fiquei aliviada quando

soube que ele tinha saído do como, a enfermeira disse que ele estava bem. Eu havia

prometido que se ele melhorasse, voltaria para nossa casa. Eu disse isso a ele e também

quando eu estava orando. E isso foi o que eu fiz. Quando ele recebeu alta e foi para casa eu

voltei junto.

Foi só lua de mel?

Não, ainda demorou um pouco. Ele ainda estava muito debilitado e demorou a se

recuperar. Ainda hoje ele tem as marcas no corpo. Como eu havia prometido nunca mais

me separar dele; nunca mais tive coragem de deixá-lo. E passei muitas situações difíceis.

Sério? Seu marido continuava com o vício do jogo?

Continuava com vício da bebida e do jogo só que nessa época ele mudou um pouco

e passou a ser mais responsável, pois tinha medo que eu fosse embora. Eu trabalhava na

Philco ainda, engravidei do meu segundo filho. Fui demitida da firma. A vida já estava um

pouco melhor com ele. Meu marido continuava bebendo, mas pelo menos cumpria com as

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obrigações dele. Foi um avanço, só que ele não conseguia deixar a bebida. O tempo foi

passando, meu filho nasceu depois fiquei grávida novamente e esse filho morreu porque eu

tenho pressão alta, daí o nenê morreu. O cordão umbilical enroscou por causa da pressão

alta. Só depois de dez anos é que engravidei de novo. Tive minha filha. Mas, quando

descobri que estava grávida, eu não a queria. Meu marido não mudava de jeito nenhum e

eu não tinha coragem de me separar mais dele, afinal eu havia prometido isso. E passei

por poucas e boas com ele.

Valia a pena levar a promessa à diante?

Valia. Se fosse hoje eu não faria. Eu achava que valia a pena. Ele tinha melhorado

um pouco eu achava que ele melhoraria e, eu tinha os meninos pequenos.

Quando eu engravidei da minha filha eu quis tirar, eu já estava trabalhando na

prefeitura, meu marido não tinha nenhum juízo, eu já com dois filhos.

Você mudou de ideia? Como foi isso?

Quando eu descobri que estava esperando ela, eu não queria de maneira nenhuma.

Nova de emprego; estava começando a ter minhas coisas. Meu apartamento tinha saído na

COHAB, esse homem não melhorava então para quê eu iria por mais um filho no mundo?

Falei com uma amiga minha e ela me arrumou o dinheiro para fazer o aborto. Levou-me

até a clinica, eu estava decidida. Tinha três pessoas lá. Quando chegou a minha vez eu me

arrependi. Era uma clínica clandestina, eu pedi meu dinheiro de volta e disse bem segura

que não faria aquele aborto. Voltei para casa, chorado e passando a mão pela barriga, pedi

perdão. Eu nem sabia se era menino ou menina. Passei na casa da minha amiga e devolvi o

dinheiro que ela havia me emprestado. A (amiga) disse que me emprestou o dinheiro

porque viu meu desespero, mas ficou pedindo para Deus me iluminar. Cheguei a minha

casa, arrependida, chorei, chorei,chorei.

Você contou isso para alguém?

Não! Só contei muito depois. Tivemos três meninos (cotando com o que morreu) e

nenhuma menina. Meu marido era doido para ter uma filha. Foi passando o tempo, fiz o

pré- natal e fiquei sabendo que era uma menina. Chorei muito e pedi perdão a Deus, só ai

que eu falei para ele (o marido) o que fiz. Nessa hora ele ficou preocupado e demonstrou

que queria mudar, só que ele não conseguia. Quando minha filha nasceu, ‘Nossa Senhora’,

foi uma felicidade!A felicidade dele era inexplicável. Quando os outros nasceram nós

ficamos felizes, mas o nascimento dela... Foi especial. Hoje ela é meu anjo da guarda. Para

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tudo eu conto com ela. Ela sabe da burrada que eu ia fazer. Tudo é ela. Eu convivi muito

tempo com essa culpa.

Como foi quando você chegou à clínica? Você observou as pessoas, obsevou se

o lugar era limpo? Você observou algum detalhe? Qualquer coisa que te fizesse

mudar de ideia?

Não. Não vi nada! Eu estava focada.

Você pensou que poderia morrer durante o procedimento?

Não. Não, não. Não pensei em nada disso. Eu só queria tirar a criança. Meu

arrependimento veio na hora em que a enfermeira me chamou. Deu-me aquele estalo “o

que eu estou fazendo?” e eu comecei a chorar e decidida, não fiz. Graças a Deus, porque

senão... Embora eu tenha um pouco de remorso por causa disso; ela está aí. Já me deu dois

netos maravilhosos, que são meus xodós. Ela faz 31 anos em setembro.

Eu sofri muito e ela sofreu muito comigo. O (marido) em vez de ele melhorar, ele

piorou. (fala isso com um pesar). Quando ela estava na adolescência, ele piorou muito.

Naquela época ele começou a onda do crack. Ele se envolveu. Sabe o que é um homem

com mais de cinquenta anos se envolver com o crack? (nesse momento nós duas nos

silenciamos. Foi um silencio de profundo que durou alguns segundos. P3 parece sofrer

com a lembrança, ainda assim se esforça para extrair da memória aquilo que considera

importante para revelar sua identidade de guerreira).

A bebida, tudo bem. Mas... a droga...

E, você se mantinha ali, forte, por causa daquela promessa?

Eu tinha jurado que não o deixaria mais. Ele piorava cada vez mais. Eu, até então

não sabia e me perguntava “o que esse homem está fazendo da vida dele?” Só comecei a

desconfiar porque ele pegava o pagamento e não vinha para casa. Quando ele voltava,

chegava num estado de calamidade. Eu nem o reconhecia. Quando ele chegava, eu pegava

um saco de lixo para colocar as roupas dele, enquanto ele ia para o banheiro tomar banho.

(nesse momento ela baixa seu tom de voz. Na sala, onde coletei a entrevista, éramos só nós

duas, ainda assim ela age como se alguém mais pudesse ouvir seu segredo. Um segredo

que a mim era confiado.).

Você fazia isso porque as roupas estavam muito sujas?

Ele fedia. Era um mendigo. Ele ficava dias sem voltar para casa. Enquanto ele

tivesse dinheiro ficava lá no lugar usando droga e se transformando num mendigo. E eu só

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sofrendo, sofrendo, sofrendo. Nessa época eu já morava na Cidade Tiradentes, meus filhos

já eram crescidos. Eles foram crescendo com esse exemplo.

Foram crescendo com esse exemplo de mãe batalhadora.

E de pai cada vez mais...

Foi indo... e eu sofrendo. Eu não tinha me atentando que poderia ser a droga. Só

depois que eu comecei a perceber. Via na televisão, ouvia pessoas falando uma coisa ou

outra que eu comecei a pensar que isso estivesse acontecendo lá em casa. Quando eu

estava com esse problema, demorei a perceber porque tinha os filhos, o trabalho. Nessa

época eu já estava fazendo ADI magistério. Isso faz pouco tempo. Era tudo junto. Aí

quando foi um dia, eu estava na casa da minha mãe e ela comentou que “o (marido) passou

por aqui e eu fiquei com dó. Você tem que fazer alguma coisa”. O meu marido não é uma

pessoa ruim, é uma é uma pessoa que todo mundo gosta. Ele é bom de coração. Ela (a

mãe) falou assim: “você tem que fazer alguma coisa por aquele homem”. Mas o que eu

poderia fazer? Já conversei, já falei. Teve um dia que eu passei a Mao na mala dele e o

levei a casa do pai nessa época sua mãe já tinha falecido e falei para meu sogro “olha Seu

(sogro) eu não aguento mais”. Passado um tempo meu filho foi pai precoce. Aos dezoito

anos já foi pai.

(Penélope se silencia por um instante, eu apenas a observo e digo: Conte-me apenas

aquilo que considera importante que eu saiba. Ela e me olha e decide continuar.).

A menina também era muito nova. Eles não se ajustavam e ele trabalhava, mas não

tinha um bom emprego. Essa mulher teve outro filho e eu sempre ali, ajudando. E com

tudo isso, esqueci um pouco do (marido). Ele (o marido) foi se afundando mais. Quando eu

pensei que não, esse meu filho começou a me dar trabalho também. Eu já não sabia mais o

que fazer! Agora eram dois. Eu pensava assim: a pessoa convive com o exemplo do pai a

tendência era essa. Era o exemplo. Só me perguntava o que eu ia fazer da minha vida.

O meu filho do meio tinha o sonho de ir para a aeronáutica. Ele fez de tudo para

conseguir realizar esse sonho. Foi admitido e ficou cinco anos. Durante esse tempo meu

marido, né... ?

Durante todo esse tempo você nunca procurou tratamento para seu marido?

Não. Eu comecei a ir para a igreja evangélica. Eu não estava aguentando mais

aquela situação. Eu não olhava mais na cara dele. Eu fiquei separada dele por dez anos; eu

só não sai de casa, mas ficamos separados de corpos. Eu estava muito magoada.

Você achava que era culpa dele o que aconteceu com seu filho mais velho?

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Sempre foi!

Vocês brigavam por causa disso?

Não. Mas, ele e o filho brigavam muito.

O tempo foi passando, eu estava na igreja e o pastor estava pregando sobre a

mulher sabia. A palavra dizia que a mulher sábia edifica sua casa. A mulher tinha que

cuidar da casa, do marido e dos seus filhos. Quando o pregador disse você que está

passando por isso, isso e isso (lutas familiares por causa da bebida, das drogas). Parecia

que estava falando comigo; nunca vou esquecer!

(Pastor:) “Mulher você que está passando por essa situação; ore por aquela pessoa

que está na sua casa. Converse com aquela pessoa”. Eu tinha certeza que o pastor estava

falando comigo.

Você nunca falou sobre isso na igreja?

Nunca. Você sabe como é a Igreja? Uma multidão, pelo menos naquela época era

uma multidão. Eu acredito que certas coisas sejam de Deus. Aquela palavra falava comigo.

Era simplesmente um homem falando para uma multidão. Tem coisa que não têm

explicação. É sobrenatural. No final do culto, ele falou para que erguêssemos as mãos em

direção a casa e orasse para que quando eu chegássemos lá as coisas estivessem do jeito

que gostaríamos que fossem. Eu ergui a mão desacreditada. Pensei “imagina que eu vou

chegar em casa e encontrar meu marido; vou chegar lá e encontrar tudo do mesmo jeito.”

Mesmo assim eu fiz.

Menina; eu falo, é coisa de Deus! Quando cheguei em casa, meu marido não estava

ainda, fazia dois dias que ele estava fora de casa. Tomei meu banho e fui dormi. Não

demorou muito ouvi baterem à porta bem forte. Eu estranhei, devia ser mais de meia noite,

nem pensei que pudesse ser o (marido) afinal ele nunca chegava a essa hora. Quando abri a

porta, era ele. O (marido) foi direto para o banheiro e como só fazia dois dias eu nem

peguei saco de lixo, enquanto eu pegava uma roupa limpa ele me chamou. Minha casa tava

um silêncio, ele estava calmo, minha casa estava (sorri) do jeito que eu gostaria que ela

estivesse. Você vê que coisa interessante? É de Deus! Claro que é de Deus! Ele (o marido)

se ajoelhou e disse “filha, pelo amor de Deus, só você pode me ajudar”. Eu perguntei

como eu poderia ajudá-lo foi quando ele me disse que queria se internar.

Minha filha já era casada, eu já tinha meus netinhos e meu genro me ajudou muito.

Na realidade ele começou a beber e a fumar muito cedo. Meu genro arrumou uma clínica

que fica lá na Vila Alpina. Vimos o anúncio no jornal e estava bem explicito no anúncio

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que se tivesse interesse já era para levar o paciente para internar. Nós fomos. Chegando lá,

o dono da clinica acolheu meu marido. Disse que ele (o marido), a partir daquele dia seria

outra pessoa. Explicar o procedimento não tocou no assunto de dinheiro nada. Meu marido

foi bem acolhido pelo Doutor. Meu marido queria mesmo o tratamento, era uma tábua de

salvação. Lá ele ficou cinco meses. O tratamento ficou em dez parcelas de seiscentos reais

fora os medicamentos. Desde que ele saiu de lá, graças à Deus, ele é outro homem. A

minha casa ficou do jeito que eu gostaria que fosse. Sossegada. A gente conversa, a gente

ri e briga também.

E seu filho? Ele aceitou fazer tratamento?

Fez, ele mora em Mongaguá e cuida das coisas lá pra mim. Ele era uma pessoa que

você não podia deixar um real que ele pegava para tomar pinga e usar droga. Se visse uma

coisa dessa (apontando para o gravador) e se pudesse, ele pegava para vender e usar as

coisas. Hoje ele cuida das minhas coisas, tem uma poupança, paga as contas, trabalha.

E seu esposo, ele também foi para a Igreja?

Meu marido? Não. Ele é católico roxo, daquele que sempre vai à Aparecida do

Norte. Quando ele vai e me chama eu vou também. A gente nunca disse que não. Eu

prefiro a minha igreja, foi a minha igreja que me tirou disso.

O pessoal fala do Apóstolo, que o apóstolo é isso, é aquilo; eu não estou vendo o

(apóstolo) homem. Eu vou atrás de Cristo. Sigo a Cristo e não o homem. Eu vou atrás da

minha paz. Eu tenho a minha fé. Não discuto com ninguém e também não sou de ficar

falando não, estou falando porque é para os seu trabalho.

Não sou de ficar falando de religião não. Cada um tem a sua e essas coisas sempre

geram algum tipo de conflito. Eu acho assim, quando você quer alguma coisa você vai

atrás, não fica esperando por ninguém não.

É verdade! Eu também sou muito assim. Não gosto de esperar pelos outros. Eu

mesmo gosto de resolver minhas coisas. Luto pelo que acredito e me esforço para

realizar meus sonhos, por isso estou aqui, conversando com você sobre a vida.

Isso mesmo.

Quando você entrou na PMSP, você ingressou como pajem, certo? Como era

esse período? Você tinha que administrar casa, trabalho, o curso e viver toda essa

turbulência.

O curso foi há pouco tempo. Eu fiz o curso em 2002 e terminei em 2004 e em 2005

é que teve a transformação (de cargo para PDI.). Mas, antes disso, aconteceu muita coisa.

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Quando eu era pajem pegaram um monte de mulher, muitas sem estudo.

Quando você entrou, você tinha que série?

Eu tinha só a 4ª série. Acho que todo mundo tinha nessa faixa de estudo. Era um

monte de mulher, de várias regiões: da Penha, São Miguel; de vários lugares e fizeram uma

prova de seleção para que as que passassem fossem trabalhar em creche.

Você se lembra de como era essa prova?

A prova foi de conhecimentos gerais e as quatro operações, se não me engano. Não

teve entrevista. A gente tinha que esperar a chamada. Não tinha muitas creches prontas, a

prefeitura ia chamando conforme fossem ficando prontas. Passaram-se dois anos e não fui

chamada. Em 82 chegou uma carta lá em casa tinha uma carta da prefeitura informando

que eu deveria comparecer e levar os documentos pessoais. Eu não acreditei, eu pulava e

gritava de tão feliz. Eu nem sabia o que ia fazer, quando cheguei; no começo, como te falei

ainda não tinha creche pronta então fui para a Regional. Nessa época teve um surto de

hepatite e rubéola na creche São Pedro, então fui para essa creche e fiquei trabalhando até

a creche que eu ia definitivamente ficasse pronta. Não tinha uma definição de quem seria

pajem, auxiliar de lavanderia, lactarista ou da cozinha ou limpeza. A diretora de lá é quem

distribuía os cargos. Ela perguntava quem queria fazer o que e eu disse que queria cuidar

das crianças.

Tinha muita criança e a gente tinha que fazer tudo. Naquele tempo a gente tinha que

entregar a criança impecável. Tinha que dar banho, trocar de roupa, arrumar cabelo, tirar

piolho. Tinha que cuidar mesmo.

Tinha enfermeira nas creches, elas verificavam quem tinha piolho e

providenciavam o remédio para lavarmos as cabeças das crianças.

Seus filhos já não tinham idade para frequentar a creche, correto? Como você

fazia; com quem eles ficavam enquanto você trabalhava?

Meus filhos já estavam grandes, não tinham mais idade de creche. Como eu morava

no quintal da minha sogra, ela cuidava deles para mim. Depois eu me mudei para o

apartamento, nessa época eu tive minha filha. Quando acabou a licença maternidade eu a

levei para a creche comigo. Ela vinha comigo e os meninos ficavam lá sozinhos.

Para você, o que mudou após ter feito o curso?

Mudou muito financeiramente. Mudou também a questão de não termos mais que

fazer tudo, como era antes. Antes cuidava da criança, fazia faxina no banheiro da sala,

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arrumava e higienizava os colchonetes. Depois do almoço das crianças “ai se deixasse a

mesa suja”. A gente tinha que limpar tudo.

Antigamente a gente não se via como professora. O curso ajudou a mudar isso

também, mudou nossa autoestima.

Se você fosse comparar o tempo em que você era pajem e hoje, qual é a maior

diferença que você vê?

Quando a gente era pajem, fazíamos muita coia mesmo sem saber, afinal não

tínhamos formação; hoje temos alguma formação. Nós não achávamos que dar atividade

era importante, mas fazíamos. Eu não pensava que aquilo era importante para o

desenvolvimento de alguma habilidade na criança. Fazia porque as professoras falavam

para fazer. Tinha professoras e pajens. As professoras bolavam as atividades e as pajens

executavam.

O que você observava em relação ao fazer docente; era muito mais o cuidado

ou o pedagógico?

Era muito mais o cuidado. Hoje não tem essa separação.

Antes de ser professora tive que fazer o ADI Magistério, isso foi em 2002. Comecei

a fazer o curso, passava por todos aqueles problemas com o meu marido e para completar

minha filha engravidou. No final do curso eu passei por uma fase muito difícil da minha

vida. Eu passei muitas fases difíceis, mas essa foi a que mais me marcou.

Meu filho do meio, aquele que serviu à Aeronáutica, comprou um apartamento e se

mudou para outro bairro, afastado de mim. Depois que ele se mudou, ficou uma semana

sem dar notícia. Fiquei preocupada.

Num sábado eu fui dormir, já não tinha passado bem naquele dia. Eu estava com

diabete, mas não sabia ainda. Naquela noite eu não conseguia dormir, estava muito

preocupada porque não recebia notícia do meu filho. Era tarde da noite quando recebi um

telefonema pedindo para eu comparecer no Hospital da Zona Leste. A pessoa não quis me

falar o que tinha acontecido com o meu filho. Eu passei mal então, meu filho mais velho

foi ao hospital. Ao chegar lá ficou sabendo qual era o estado do meu filho.

O que tinha acontecido?

Tudo que ele lembra é que ele tinha parado num mercado para comprar cerveja.

Quando fui visitá-lo eu não acreditei no que vi. O rosto do meu filho estava

deformado. Tinham batido muito nele. O médico não deu esperança nenhuma. Eu fiquei

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desesperada! Ele exala um cheiro forte, ruim. Os médicos já tinham feito de tudo, mas

meu filho não reagia. Ele ficou dias sem reagir.

Os dias passavam e eu orando. Pedia a Deus para salvar meu filho e todos os dias

eu ficava ao lado da cama falando com ele. Eu achava que ele podia me ouvir. Foi assim

durante mais de duas semanas. Quando ele saiu do côma... Não era o meu filho. Tiveram

que amarrá-lo, ele era um louco. Ele nos reconhecia, mas devido as pancadas que ele levou

na cabeça ele não estava mais bem da cabeça. Teve que ficar mais de um mês amarrado,

tomando medicamento forte. Ele deixou de ser aquela pessoa alegre. Agora era um rapaz

agressivo. Por causa disso tudo minha doença foi se agravando e um dia acordei sem

enxergar nada. Você não imagina o desespero que é você não enxergar nada de repente.

Não enxergar nada é horrível. Nessa época eu estava concluindo o ADI Magistério, eu

fiquei seis meses sem enxergar absolutamente nada. Eu sofria com essa situação. Eu

chorava com medo de não voltar a enxergar.

Hoje eu sou feliz, muito feliz. Graças a Deus hoje a gente está muito bem.

Tudo isso fez de você uma pessoa mais forte?

Com certeza! Tudo na vida é aprendizado. Sempre pensei assim: “claro que minha

situação é difícil, mas tem muita gente em situação pior que a minha”.

Você se define em uma palavra?

Sim. Agradecida. Sou muito grata a Deus, pois é ele que me fortalece. Não importa

como foi meu dia, ao me deitar eu agradeço a Ele.

O que, em sua opinião, determina a escolha profissional? O que leva alguém

desejar ser professora?

No meu caso, foi por ter tomado conta de outras crianças. Na época em que eu

comecei como pajem, não pensava em ser professora, eu queria tomar conta das crianças.

Eu não pensava em ser professora, eu não tinha estudado. Tinha apenas o primeiro grau. Se

hoje somos professora é devido a muita luta, naquele tempo existiam muitos movimentos

sociais e um deles era pela luta por creches. A atual presidente do Sindicato de Educação

Infantil liderava os movimentos de greve. Ela era uma de nós, mas estudou, foi à luta e

conseguiu muita coisa para a categoria.

Nunca tive esse sonho de ser professora, eu queria cuidar de criança. Durante muito

tempo o cuidar era o mais importante. Quando eu comecei não tinha curso preparatório, eu

comecei com uma sala com sete bebês, alguns com quatro meses. Eu não tive medo algum.

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Eu gostava de cuidar dos bebês. Você, por ser negra, sofreu algum tipo de

discriminação ao longo da carreira?

Sim. Por ser negra. Mas essa situação não me abalou, eu tirei muito proveito disso.

A mãe dizia que eu maltratava a filha dela, ela sempre inventava alguma coisa para me

prejudicar. Ela me olhava com um jeito estranho e não me cumprimentava.

Para você, o que significa trabalhar na creche?

Hoje o trabalho na creche está sendo mais valorizado tanto pela população como na

lei. As professoras são mais valorizadas, se sentem mais confiantes e gostam mais do

trabalho do que antigamente. Hoje, por exemplo, temos fraldas descartáveis, no passado

eram de pano e tínhamos que lavar à mão.

Você acha que essa valorização veio porque vocês fizeram o ADI Magistério?

Foi através da luta. A Erundina foi uma prefeita boa que valorizou muito as

creches. O ADI magistério deu às pajens mais dignidade, o valor e o ganho foram enormes.

Com o tempo a gente foi se acostumando a ser professora, a sociedade passou a valorizar

mais a professora da creche.