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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP ELIZABETH KASUE OSHIRO KOBASHIGAWA PESQUISA-AÇÃO SOBRE A AÇÃO DOCENTE NA CONSTRUÇÃO DE UMA PRÁTICA DIALÓGICA DE LEITURA MESTRADO EM LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM SÃO PAULO 2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

ELIZABETH KASUE OSHIRO KOBASHIGAWA

PESQUISA-AÇÃO SOBRE A AÇÃO DOCENTE NA CONSTRUÇÃO DE UMA

PRÁTICA DIALÓGICA DE LEITURA

MESTRADO EM LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM

SÃO PAULO

2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

ELIZABETH KASUE OSHIRO KOBASHIGAWA

PESQUISA-AÇÃO SOBRE A AÇÃO DOCENTE NA CONSTRUÇÃO DE UMA

PRÁTICA DIALÓGICA DE LEITURA

MESTRADO EM LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para a obtenção

do título de Mestre em Linguística Aplicada e

Estudos da Linguagem, sob orientação da

Profa. Dra. Mara Sophia Zanotto

SÃO PAULO

2011

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E R R A T A:

Vygotsky – o interacionismo página 47 - 4º parágrafo, excluir nas 3ª e 4ª linhas “Em seus estudos, Vygotsky deixa muito clara a influência decisiva das relações sociais no desenvolvimento intelectual”. Paradigma Qualitativo página 67 - citação de Barbier (2007, p.29), na 1ª linha, a tradução da expressão “Action-Research” é “Pesquisa-Ação”. O Contexto da pesquisa página 68 - 3º paragráfo, 9ª linha, a sigla “ETE” significa “Escola Técnica Estadual”. O Contexto da Pesquisa página 69 - 1º parágrafo, 2ª linha, a sigla “EM” significa “Ensino Médio”. Participantes da vivência página 69 - incluir no 2º parágrafo, na 3ª linha, “Grupo focal, segundo Gatti (2005), refere-se a um grupo com um número de seis a 12 pessoas, no caso específico desta pesquisa alunos, para se realizar a vivência de leitura. Segundo a mesma autora: ”grupos maiores limitam a participação, as oportunidades de trocas de ideias e aprofundamento no tratamento do tema” (2005, p. 22). Além disso, a vivência de leitura com pequenos grupos facilita a gravação do evento em áudio. Participantes da vivência página 69 - incluir no 1º parágrafo: Os alunos participantes da vivência de leitura são jovens entre 17 e 19 anos de idade. Alguns trabalham, outros cursam a ETE (Escola Técnica Estadual) ou cursos do Senai durante o dia. Todos moram com a família e têm o apoio e o incentivo familiar no que se refere aos estudos e aos planos para o futuro. Pensar Alto em Grupo página 72 - 4º parágrafo, 3ª linha, onde se lê “protocolo verbal”, leia-se “pensar alto em grupo”. Referência Bibliográfica: página 141 - incluir: MOITA LOPES, Luis Paulo (1998) Discursos de Identidade na sala de aula de leitura em língua materna: a construção da diferença. In Signorini, I. (Org.) Lingua(gem) e Identidade. Campinas:Mercado de Letras.

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BANCA EXAMINADORA

______________________________

Profa. Dra. Helena Gordon Silva Leme

______________________________

Profa. Dra. Dieli Vesaro Palma

______________________________

Profa. Dra. Mara Sophia Zanotto

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Dedico este trabalho ao meu marido, Renato,

companheiro de todas as horas, aos meus filhos, Ruy,

Rafael e Bruno, amores da minha vida, e à memória

dos meus irmãos, Jorge e Luis que partiram durante

esta minha jornada.

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“Como posso dialogar, se alieno a ignorância, isto é,

se a vejo sempre nos outros, nunca em mim”

Paulo Freire

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, a Deus, pela proteção e luz infinita.

Aos meus pais, cujas lembranças são sempre motivo de conforto e amparo.

Ao meu marido, Renato, amigo e amor da minha vida, pelo apoio e carinho

constantes.

Aos meus filhos, amores da minha vida, Ruy, Rafael e Bruno, por

compreenderem meus silêncios e principalmente por entenderem que vencer esta

etapa era muito importante para mim.

À minha orientadora, Profª Drª Mara Sophia Zanotto, por orientar-me de forma

tão sábia e humana, iluminando meus caminhos acadêmicos, pelas palavras de

conforto e incentivo durante a construção desta pesquisa.

À Profª Drª Rosinda de Castro Ramos, pela convivência nos tempos do

Projeto Reflexão.

À Profª Drª Dieli Vesaro Palma e à Profª Drª Helena Gordon Silva Leme, por

aceitarem participar da minha banca e pelas valiosas contribuições para o

aprimoramento deste trabalho.

À Profª Drª. Sueli Fidalgo pela leitura atenta e pelas contribuições feitas

durante a conclusão desta pesquisa.

Aos colegas do seminário de orientação, por compartilharem reflexões e pelas

discussões sempre muito proveitosas.

Aos meus alunos, com os quais procuro manter uma relação de amizade e

ensino/aprendizagem, razão da minha existência como professora.

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RESUMO

Esta pesquisa se insere na Linguística Aplicada (Celani, 1998/2004; Moita Lopes,

2006) e faz parte de um projeto maior, desenvolvido pelo grupo de pesquisa GEIM

(Grupo de Estudos da Indeterminação e da Metáfora), sob a coordenação da Profa.

Dra. Mara Sophia Zanotto, cujos pesquisadores investigam uma prática dialógica de

letramento, em um contexto real de uso da linguagem com leitores reais. A

metodologia utilizada foi a qualitativa, de natureza Interpretativista (Bortoni-Ricardo,

2008), por meio da qual foi desenvolvida uma pesquisa-ação, cujo objetivo é

investigar a minha prática pedagógica em eventos de leitura vivenciados pelo grupo

focal. A prática dialógica investigada é o Pensar Alto em Grupo (Zanotto, 1998), que

é ao mesmo tempo vivência pedagógica e técnica de pesquisa, que valoriza a

subjetividade dos leitores e a construção das múltiplas leituras. A discussão teórica

abrangeu: a leitura no contexto escolar, as concepções tradicionais de leitura e os

modelos cognitivos. Além disso, tratei sobre a concepção de leitura como evento e

prática social (Bloome, 1983; Moita Lopes, 1996) e os estudos do letramento

(Soares, 1998). Foram também abordadas as contribuições de Vygotsky (1934),

Bakhtin (1992) e Freire (1970), no âmbito da educação. A geração de dados foi

realizada com um grupo Focal (Gatti, 2005), formado por 9 alunos dos segundos

anos do Ensino Médio de uma Escola Estadual. A análise dos dados, gerados nas

vivências de leitura, apontaram os seguintes resultados: 1. A minha postura em sala

de aula teve mudanças significativas, pois assumi o papel de mediadora e agente de

letramento e passei a ouvir mais meus alunos, criando condições para que eles

interagissem entre eles; 2. O Pensar Alto em Grupo possibilitou a construção e

negociação das leituras na interação social entre os participantes. Além disso, os

participantes tiveram uma atitude responsiva efetiva durante o evento de leitura.

Palavras-chave: Leitura, Letramento, Mediação, Interação, Interpretativismo.

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ABSTRACT

This investigation is carried out in the area of Applied Linguistics (Celani, 1998/2004;

Moita Lopes, 2006) and is part of a larger Project developed by a research group

called GEIM (Study Group of Indeterminacy and Metaphor), under the supervision of

Dr. Mara Sophia Zanotto, and whose researchers investigate a dialogic practice of

critical literacy in an actual context of language use with actual readers. The

methodology employed was that of qualitative, interpretive nature (Bortoni-Ricardo,

2008), by means of which an action research was carried out, aiming at investigating

my own pedagogic practice in reading events experienced by the focal group. The

dialogic practice which is investigated is the Group Think Aloud (Zanotto,1998), at

one time a pedagogic experience and a research technique that values readers‟

subjectivities and allows for the construction of multiple readings. The theoretical

discussion covered: the actual reading tradition in school contexts; traditional reading

constructs as well as cognitive models. Furthermore, I also dealt with the notion of

reading as an event and social practice (Bloome, 1983; Moita Lopes, 1996) and

literacy studies (Soares, 1998). Also the contributions of Vygotsky (1934), Bakhtin

(1992) and Freire (1970) in the field of education were discussed. Data generation

was completed with a focal group (Gatti, 2005), composed of 9 students of the

second year of High School, studying in a Public School. Data analysis indicates the

following results: 1. My attitude in the classroom underwent some meaningful

changes since I took on the role of a mediator and of an agent of literacy, listening to

my students and providing the conditions for them to interact among themselves; 2.

The Group Think Aloud allowed for the construction and negotiation of readings in

students‟ social interactions. Besides, participants had a responsive attitude during

the reading events.

Keywords: Reading, Literacy, Mediation, Interaction, Interpretivism.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 11

CAPÍTULO 1 - LEITURA E LETRAMENTO ......................................................................... 18

1.1 - Leitura e o contexto escolar ..................................................................................... 18

1.2 - Prática tradicional de leitura ..................................................................................... 21

1.3 - Diferentes Concepções de Leituras .......................................................................... 29

1.3.1 - Modelos Cognitivos ........................................................................................... 29

1.3.1.1 - Modelo bottom-up ....................................................................................... 30

1.3.1.2 - Modelo top-down ......................................................................................... 31

1.3.1.3 - Modelo Interativo ......................................................................................... 32

1.3.2 - Abordagem interacionista .................................................................................. 33

1.3.3 - Leitura inferencial .............................................................................................. 35

1.3.4 - Concepção de leitura como prática social .......................................................... 37

1.3.4.1 - Pensar Alto em Grupo – a prática social de letramento ............................... 41

1.3.4.2 - Letramento e o contexto educacional brasileiro ........................................... 43

1.4 - Os autores e seus pressupostos teóricos: Vygotsky, Bakhtin e Freire. ..................... 47

1.4.1 - Vygotsky – o interacionismo .............................................................................. 47

1.4.2 - Bakhtin e o dialogismo ...................................................................................... 50

1.4.3 - Paulo Freire – A educação é um ato político ..................................................... 55

CAPÍTULO 2 - METODOLOGIA DE PESQUISA ................................................................. 60

2.1 - Breve histórico – Transição Paradigma Quantitativo para o Paradigma Qualitativo . 60

2.2 - Paradigma Qualitativo .............................................................................................. 62

2.3 - Pesquisa Interpretativista ......................................................................................... 64

2.4 - Pesquisa-Ação ......................................................................................................... 66

2.5 - O Contexto da pesquisa ........................................................................................... 68

2.5.1 - Participantes da vivência ................................................................................... 69

2.5.2 - Geração de dados na Pesquisa Interpretativista ................................................ 71

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2.5.2.1 - Pensar Alto em Grupo ................................................................................. 72

2.5.2.1.1 - Textos lidos nas vivências .................................................................... 73

CAPÍTULO 3 - ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS ...................................................... 79

3.1 - Análise da primeira vivência – Texto “O Meu Guri” .................................................. 79

3.1.1 - Gráficos – Participações nos turnos de fala da 1ª vivência – “O Meu Guri” ...... 108

3.1.2 - Reflexões sobre a primeira vivência ................................................................ 110

3.2 - Análise da segunda vivência – Texto “Roda-Viva” ................................................. 112

3.2.1 - Gráficos – Participações nos turnos de fala da 2ª vivência – “Roda-Viva” ....... 125

3.2.2 - Reflexões sobre a segunda vivência ................................................................ 127

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 130

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 135

ANEXOS ............................................................................................................................ 146

Transcrição da 1ª Vivência de leitura – texto “O Meu Guri” ............................................ 146

Transcrição da 2ª Vivência de leitura – texto “Roda-Viva” .............................................. 160

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INTRODUÇÃO

Esta pesquisa está inserida na área da Linguística Aplicada, doravante LA,

que faz parte das Ciências Sociais e Humanas e se atém na discussão sobre o

aspecto social, centrada no discurso do contexto social (Moita Lopes, 1996), tendo

como uma das características a investigação dos problemas do uso da linguagem.

Ao ampliar estas questões, a LA “considera as vozes daqueles que vivem as

práticas sociais que queremos estudar” (Moita Lopes, 1998/2004, p.133). Além

disso, a LA tem um caráter transdisciplinar, por privilegiar a interação com as

diversas áreas do saber humano, (Celani, 1998/2004, p.129), enfatizando a

participação ativa dessas áreas e não somente a contribuição pura e simplesmente.

Rojo (2006, p.258) afirma que, nas pesquisas da LA, constroem conhecimento a

partir das investigações da solução dos problemas, isto é, teoriza a partir da prática

e da vivência, “a resolução do problema gerará conhecimento útil para um

participante do mundo social e que seus interesses e perspectivas são considerados

na investigação”.

Nesse sentido, minha pesquisa faz parte de um projeto maior, cujo

referencial é encontrado no grupo de pesquisa GEIM (Grupo de Estudos da

Indeterminação e da Metáfora), sob a coordenação da Profa. Dra. Mara Sophia

Zanotto.

Esse grupo de pesquisa tem como foco o estudo da indeterminação do

sentido na construção de múltiplas leituras, em um contexto real de uso da

linguagem. Mais especificamente, esse grupo tem se especializado e desenvolvido

significativos estudos acerca da metáfora. Além disso, tem feito interessantes

estudos sobre temas relacionados à leitura, como por exemplo, as práticas do

letramento, assim como, as reflexões sobre a prática de leitura em sala de aula

também tem sido a tônica da investigação do grupo.

Como parte integrante desse projeto, minha pesquisa tem como foco a

leitura, mais especificamente as práticas de leitura em sala de aula e como meta, a

construção de sentidos em um evento de leitura, utilizando como instrumento

pedagógico o Pensar Alto em Grupo (Zanotto, 1998). E o sustentáculo dessa prática

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de leitura é a interação social entre os participantes do evento, com o objetivo de

observar a negociação do sentido do texto. Nesse sentido, a concepção de leitura

como evento social (Bloome, 1983;1993) é a visão adotada nessa pesquisa.

A metodologia utilizada nesta pesquisa é a qualitativa, de natureza

Interpretativista (Bortoni-Ricardo, 2008), por meio da qual desenvolvo uma

pesquisa-ação, cujo objetivo é investigar a minha prática pedagógica em eventos de

leitura vivenciados pelo grupo focal (Gatti, 2005).

Situei-me como pesquisadora e o contexto em que minha pesquisa está

inserida, passo agora a discorrer sobre o meu contexto de prática pedagógica.

Sou professora de Língua Portuguesa, da Secretaria da Educação do

Estado de São Paulo. Lecionei cinco anos na mesma escola, sendo que por três

desses anos dei aulas para alunos do Ensino Fundamental, mais precisamente para

as turmas de 5ª e 6ª séries, em uma Unidade Escolar de um bairro da cidade de São

Paulo, local onde os dados foram gerados para esta pesquisa. As aulas ocorriam no

período da tarde e quando eu propunha alguma atividade de leitura, os alunos não

se motivavam muito. No início até que tentavam, mas logo em seguida, se

desconcentravam.

Depois de três anos, fui transferida para o período da noite. O meu contexto

de sala de aula era outro, alunos do 2º ano do Ensino Médio que trabalhavam

durante o dia todo e à noite frequentavam a escola, com o objetivo de se formar e

vislumbrar um futuro melhor. E novamente, na atividade de leitura em sala de aula,

os alunos não se motivavam muito. Embora fizessem as atividades, visavam única e

exclusivamente à nota e este era um comportamento de ambos os grupos, tanto dos

alunos do ensino fundamental (EF), quanto dos alunos do ensino médio (EM).

Concordo que o sistema é atrelado às notas e que vivemos em uma

sociedade altamente competitiva, que premia os melhores, obedecendo alguns

critérios que podem ser, muitas vezes, passíveis de discussão. Mas, o que eu

questiono é: se o aluno não quer ler, não gosta de ler, qual é o motivo, o que eu,

como professora posso fazer para modificar essa situação?

É importante esclarecer contudo, que a mudança de período não interferiu

no desenvolvimento da minha pesquisa, pois a minha reflexão tinha como objetivo

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rever a atuação do professor em sala de aula. Em vista disso, convém salientar, que

a mudança foi benéfica, pois pude comparar minha atuação nos dois contextos, isto

é, tanto com os alunos do EF como com os alunos do EM.

Retomando o tema da leitura, minha preocupação se exacerbava ainda

mais, uma vez que, na sociedade pós-moderna, da tecnologia digital, em que

proliferam múltiplas linguagens, mídias e suportes, a leitura conquistou um papel

ainda mais relevante nos últimos anos. Sobretudo, se pensarmos em termos de

inclusão social, isto é, ler para exercer uma cidadania plena, aprender a aprender,

posto que a leitura propicia as práticas sociais de linguagem.

O letramento digital, hoje em dia, é uma realidade, uma exigência tanto para

a vida profissional como para o lazer: seja navegando na internet para se comunicar

com os amigos, para resolver problemas de ordem profissional, para ler um gibi,

uma revista, um livro ou complicadas tabelas, gráficos ou mapas. Nesse sentido, a

leitura é imprescindível para se movimentar na sociedade pós-moderna, para se

situar e para se localizar como ser social.

Nesse sentido, a leitura e a sua compreensão passaram a ter grande

importância em todas as instâncias da vida, principalmente no âmbito escolar,

quando se referem às avaliações institucionais como SARESP, ENEM, e

vestibulares. Nesses exames, a atuação do aluno na prova de leitura e interpretação

passa a ser determinante para seu sucesso. No entanto, os resultados auferidos

pelos alunos têm demonstrado que, em termos de leitura, ainda há muito que

melhorar como um todo no contexto educacional. Esses escores nos remetem aos

alunos da rede pública, indicando então, que precisamos dar uma atenção maior

para esses alunos, principalmente porque pertencem à camada mais desfavorecida

da sociedade.

A competência leitora é, sobretudo, uma arquicompetência, ou seja, ela

permeia todas as áreas do conhecimento. Por conseguinte, para que os alunos se

saiam bem em todas as disciplinas escolares, terão de saber ler e compreender o

que estão lendo.

Nesse sentido, os resultados das avaliações apontam para a necessidade

de refletir sobre as práticas de leitura no âmbito escolar, visto que essa instituição

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ainda é a guardiã da formação cultural do indivíduo e a principal agência de

letramento.

Conforme podemos observar nas palavras de Kleiman (1992/2004, p.7),

O ensino de leitura é fundamental para dar solução a problemas relacionados ao pouco aproveitamento escolar: ao fracasso na formação de leitores podemos atribuir o fracasso geral do aluno no primeiro e segundo graus.

Ainda hoje, nas aulas de Língua Portuguesa, persistem alguns equívocos,

principalmente em virtude da formação do professor. Como exemplo, o texto ainda

é considerado como um pretexto para se ensinar gramática, bem como um depósito

de informações. Segundo Kleiman (1992/2004, p.16), isso acontece em função das

“concepções erradas sobre a natureza do texto e da leitura, e, portanto, da

linguagem”.

De acordo com os PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais da Língua

Portuguesa, um dos objetivos da escola é proporcionar aos alunos conhecimentos

suficientes que os façam ter domínio da Língua Materna, tanto na expressão oral

como na escrita.

Esses conhecimentos propiciarão ao aluno sua efetiva inserção social, isto

é, sua participação por meio da comunicação, para se informar e, dessa forma,

expressar e defender seus pontos de vista, posicionando-se de forma reflexiva e

crítica nas diversas situações sociais que enfrentará no decorrer de sua vida.

Portanto, terá uma atitude que utilizará o diálogo para mediar os conflitos,

compartilhar ou construir visões de mundo e de conhecimento.

Em outras palavras, a responsabilidade da escola é garantir a todos os

alunos acesso aos saberes linguísticos, necessários para o pleno exercício da

cidadania.

Convém salientar que, essa responsabilidade da escola torna-se ainda maior

por alunos menos letrados. Em vista disso, deverá ter uma intervenção mais

cuidadosa, no sentido de superar os fracassos escolares, bem como uma possível

evasão escolar e consequentes mazelas sociais que advenham desse processo.

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Um outro aspecto a ser considerado, os altos índices da taxa de

escolarização e o aumento de alunos matriculados em escolas de nível fundamental,

médio e superior são dados que ironicamente se contrapõem à precária qualidade

do ensino oferecido, principalmente na rede pública no Brasil.

Consciente desse problema que tem assolado a educação básica e das

orientações dos PCNs, minhas inquietações só aumentaram. Principalmente, ao me

deparar com os alunos que diziam não gostar e não querer ler. Enfatizo, porém que,

esse rechaço refere-se à leitura em sala de aula, à atividade de leitura no âmbito

escolar.

Diante desse cenário, senti a necessidade premente de reorganizar minhas

práticas pedagógicas em sala de aula e buscar aporte teórico para refletir sobre a

minha atuação em sala de aula.

Este trabalho surgiu, tendo como objetivo promover mudanças em minha

postura nas práticas pedagógicas em sala de aula e, consequentemente, propiciar

aos meus alunos que passassem a ver um sentido nas leituras em sala de aula,

sendo mais participativos nessas ocasiões. Em meu entendimento, tais mudanças

implicavam entender e pesquisar os processos da leitura e municiar-me de teorias

para me dar suporte que permitissem reelaborar minha prática em sala de aula. Em

suma, poder conduzir minhas aulas de leitura de forma mais dinâmica, atraente e,

decididamente, mais proveitosa para meus alunos e menos conflituosa para mim, ao

mesmo tempo que fosse ao encontro das orientações dos PCN‟s.

Atualmente, são muitos os professores que realizam pesquisas objetivando

uma mudança nas práticas de leitura em sala de aula. Um destaque especial pode

ser dado ao GEIM (Grupo de Estudos da Indeterminação e da Metáfora), sob a

coordenação da Profª Drª Mara Sophia Zanotto, que tem feito vários estudos sobre o

assunto, objetivando a difusão do método Pensar Alto em Grupo e negociação dos

sentidos do texto e construção das múltiplas leituras. Procurei manter uma relação

dialógica com alguns pesquisadores do grupo: Lemos (2005) buscou elucidar

processos de co-construção de sentidos de leitura em grupo, e também novas

formas de atuação do professor em aulas de leitura; Pozetti (2007) analisou a

formação do professor de leitura em videoconferência; Queiróz (2009) preocupou-se

com o papel do professor como orquestrador das práticas de leitura em sala de aula;

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Reis (2009) ateve-se ao papel do professor como agente de letramento; Santos

(2010), por sua vez, ateve-se à formação do aluno como leitor crítico e Vilas Boas

(2010) ocupou-se da formação de alunos de Letras. Além disso, os pesquisadores

citados têm feito uma investigação e reflexão sobre a própria atuação em sala de

aula, no que diz respeito à utilização do Pensar Alto em Grupo e à leitura como

evento de interação social.

Como podemos ver, há pesquisas de grande valor para a formação do

professor e para o trabalho com a prática de leitura. A minha pesquisa além de se

ater às questões acima, também se preocupa com o papel do aluno como cidadão

atuante, responsável pelos seus atos, cônscio da sua cidadania, muito além dos

muros escolares. Apoiando-me em Moita Lopes (2009, p.18), quando se refere à

pesquisa como práxis humana, “a resolução de problemas da prática de uso da

linguagem dentro e fora da sala de aula, ou seja, a preocupação (é) com problemas

de uso da linguagem situado na práxis humana, para além da sala de aula”.

Sendo assim, nesta pesquisa procurei buscar uma visão de leitura como

prática social, ou seja, a leitura como um evento social com vistas à compreensão e

à comunicação de idéias, emoções (Bloome, 1993), bem como debrucei-me sobre

aportes teóricos de Vygotsky (1896/1934), Bakhtin (1992/2000) e Freire (1970/2005).

Esta visão propicia mudanças no processo ensino-aprendizagem da leitura e

faz o professor adquirir uma postura crítica e reflexiva em relação a e sobre suas

ações.

Minhas inquietações suscitaram algumas perguntas que norteiam minha

pesquisa:

1. Como a minha postura, como mediadora nas aulas de leitura, pode favorecer

a interação social entre meus alunos e, desta forma, possibilitar a construção

e negociação de sentidos do texto?

2 Em que medida a utilização do Pensar Alto em Grupo pode propiciar aos

alunos a construção de sentidos do texto e, consequentemente, que eles

tenham uma atitude responsiva durante o evento de leitura?

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Ao responder essas perguntas, retomo e re-elaboro os objetivos citados

anteriormente, da seguinte forma:

1. Refletir sobre e transformar minhas ações na construção de uma prática de

leitura em sala de aula, com o objetivo de promover a interação social entre

os alunos e criar condições para a construção e negociação dos sentidos do

texto.

2. Criar condições para que meu aluno seja um leitor participativo e tenha uma

atitude responsiva ativa, em um evento social de leitura, por meio da

utilização do Pensar Alto em Grupo.

Este trabalho está estruturado em três capítulos. No primeiro deles

apresento as fundamentações teóricas sobre leitura, a concepção de letramento,

bem como O Pensar Alto em Grupo, que norteia meu trabalho.

No segundo capítulo, trato da metodologia Qualitativa que adotei, discorro

também acerca do Pensar Alto em Grupo como instrumento de geração de dados,

bem como sobre o contexto, participantes e material utilizados nesta pesquisa.

O terceiro capítulo é composto pela análise de dados gerados pela prática

do Pensar Alto em Grupo e, finalmente, teço algumas considerações finais e

reflexões sobre a minha prática em sala de aula.

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CAPÍTULO 1 - LEITURA E LETRAMENTO

Neste primeiro capítulo, abordo inicialmente a leitura e o contexto escolar,

fazendo uma breve descrição da visão tradicional da leitura em sala de aula. Em

seguida, abordo as diferentes concepções de leitura, ou seja, os modelos cognitivos

que apresentam três faces: Modelo ascendente (bottom-up), Modelo descendente

(top-down) e Modelo interativo, que é a síntese dos dois anteriores. Posteriormente,

faço um breve relato do Modelo interacionista, que prega o ato de ler como um ato

cognitivo e social, por apresentar a interação autor e leitor via texto. Em seguida,

abordo a concepção de leitura como prática social - que se alinha com a minha

pesquisa – e apresento o Pensar Alto em Grupo que é, ao mesmo tempo, um

instrumento pedagógico e de geração de dados. Além disso, discorro sobre práticas

de letramento. Finalizando, exponho os pressupostos teóricos de Vygotsky e o

interacionismo, Bakhtin e o dialogismo e por último Paulo Freire e a educação como

um ato político.

1.1 - Leitura e o contexto escolar

No contexto educacional brasileiro, a escola é o lugar em que

primordialmente se aprende a ler e a escrever (Martins, 1982/1994, p.25). O ato de

ler está diretamente ligado a preservação dos conhecimentos culturais da

humanidade, assim como, comumente está relacionado ao poder, ou seja, quem

tem o domínio da leitura conquista uma autonomia: não depende de outras pessoas

para se movimentar no mundo social. Nesse sentido, a pessoa alarga os seus

horizontes e, portanto, aumenta também sua responsabilidade e seu

comprometimento diante dos fatos, porque, à medida que lê se inteira dos fatos e

dos acontecimentos, não podendo se esquivar e se esconder na ignorância. No

entanto, Ribeiro (2004, p.16) ressalta:

A leitura não é a única forma de informação e participação social, mas, frequentemente, a impossibilidade de ler está associada a outras formas

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de exclusão cultural, econômica e política. Não que a falta de leitura em si seja a causa das outras formas de exclusão, ela é apenas uma das dimensões na qual as desigualdades sociais se manifestam e se reproduzem.

Contudo, é importante ter em vista que o fato da pessoa ser alfabetizada,

isto é, conhecer o alfabeto e os códigos linguísticos, não é suficiente para ser um

leitor proficiente, pois segundo Freire (2003, p.11), a leitura “não se esgota na

decodificação pura da palavra”. Embora esta seja uma condição necessária para o

processo da leitura, o ato de ler vai além: “a leitura do mundo precede a leitura da

palavra, da mesma maneira que o ato de ler palavras implica necessariamente uma

contínua releitura do mundo” (Freire/Macedo: 2006). Em outras palavras, ao lermos

um texto, só conseguimos dar sentido à nossa leitura quando a relacionamos com o

nosso cotidiano, nossas experiências e nosso conhecimento prévio. Rojo (2009,

p.11) acrescenta mais algumas habilidades necessárias para que o leitor construa

sentidos:

... acionar o conhecimento de mundo para relacioná-lo com os temas do texto, inclusive o conhecimento de outros textos/discursos (intertextualizar), prever, hipotetizar, criticar, dialogar com o texto; contrapor a ele seu próprio ponto de vista, detectando o ponto de vista e a ideologia do autor, situando o texto em seu contexto.

De acordo com a Matriz de Referência para o Exame Nacional do Ensino

Médio (Enem), localizado no site http://www.enem.inep.gov.br, o documento básico

2000 considera a leitura como uma arquicompetência, pois ela permeia todas as

disciplinas do currículo escolar, não se atendo, exclusivamente, à Língua

Portuguesa. Abaixo apresento o que está descrito no referido documento, cujo texto

ainda permanece vigente:

A Matriz pressupõe, ainda, que a competência de ler, compreender, interpretar e produzir textos, no sentido amplo do termo, não se desenvolve unicamente na aprendizagem da Língua Portuguesa, mas em todas as áreas e disciplinas que estruturam as atividades pedagógicas na escola. O aluno deve, portanto, demonstrar, concomitantemente, possuir instrumental de comunicação e expressão adequado tanto para a compreensão de um problema matemático quanto para a descrição de um

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processo físico, químico ou biológico e, mesmo, para a percepção das transformações de espaço/tempo da história, da geografia e da literatura.

De acordo com Bortoni-Ricardo (2010, p.16), a leitura tem como

característica um ”processo sintetizador”, na medida em que ela propicia o

entendimento de todas as matérias na escola. Nesse sentido, a declaração de

Ribeiro, vai ao encontro da de Bortoni-Ricardo (2010), “o domínio da leitura e da

escrita é fator determinante da própria escolarização, pois dela dependem em

grande medida, as aprendizagens escolares e os métodos para avaliá-las” (Ribeiro,

2004, p. 13).

Pode-se então concluir, em outras palavras, que a responsabilidade dos

baixos índices obtidos nos exames institucionais como SARESP e ENEM referem-se

às falhas na competência leitora como instrumento de aquisição de informação. Por

este motivo, o desenvolvimento da leitura não deve ser trabalhado somente nas

aulas de Língua Portuguesa, como normalmente acontece no cotidiano escolar,

pois, nesse caso, o professor de Língua Portuguesa fica com a responsabilidade

total pela competência leitora do aluno. Já de acordo com Silva (2005, p. 34) “Assim,

se o aluno não aprender a ler e se existe uma crise de leitura na escola brasileira, a

culpa não é do corpo docente como um todo, mas somente dos professores de

Português”. No que se refere às práticas dos professores, Lajolo (2004, p.46)

considera “os professores e professoras heróis”, pois procuram fazer o melhor que

podem, levando em conta a precariedade do contexto educacional e também por

causa dos “modismos epistemológicos e metodológicos de vida curta”.

Essas questões referentes à leitura foram detectadas a partir dos anos 1990.

“A sociedade brasileira desconhecia o fato de que seus estudantes apresentavam

grandes problemas em compreender o que liam” (Bortoni-Ricardo, 2010, p.11) e, por

conseguinte, demonstravam um desempenho escolar muito aquém do desejado.

Desde então, objetivando reverter essa situação, as pesquisas sobre o

assunto se intensificaram. “A leitura entrou definitivamente no mapa das questões

educacionais” (Lajolo, 2004, p.47). Logo, políticas de incentivo à leitura vêm sendo

implementadas por todas as instâncias governamentais, bem como ONGs,

instituições de ensino e universidades; professores mostram-se preocupados com o

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quadro que se evidenciou com as avaliações. Como resultado, notamos a realização

de vários cursos, congressos, mesas redondas, workshops e pesquisas versando

sobre o assunto. Com essas ações, pode-se notar a preocupação em melhorar a

qualidade do ensino, principalmente nas escolas públicas que têm auferido escores

negativos nas citadas avaliações. Observamos também outra preocupação: a

diminuição da desigualdade e da exclusão sociais, em virtude de os alunos da

escola pública serem, na sua maioria, provenientes das camadas mais

desfavorecidas socialmente. A educação ainda é considerada um dos caminhos

para se ter melhores condições de vida. Vale ressaltar as palavras de Bandeira

(2004, p.22):

Muito se tem falado, nos últimos tempos sobre o fracasso escolar – e o ministro Cristovam Buarque tem declarado publicamente a falência da educação brasileira -, mas nunca é demais repetir que os altos índices da evasão escolar e de repetência, apontados como indicadores do fracasso da educação no Brasil, se referem principalmente às escolas públicas. E, na busca de culpados para esse fracasso, é comum penalizar os professores ou centrar a discussão nos métodos, quando a questão central se situa no campo das políticas.

1.2 - Prática tradicional de leitura

No âmbito da educação, ainda podemos ver práticas em sala de aula tendo

como referência as teorias de ensino-aprendizagem e de linguagem que se

desenvolveram apoiadas na visão positivista. Ou seja, em termos de ensino-

aprendizagem, em uma visão que centra as ações no professor, isto é, a

transmissão do conhecimento e o professor como autoridade máxima e este como

detentor de todo o conhecimento. Segundo Moraes (1997/2006, p.51), “em nome da

transmissão do conhecimento, continua vendo o aprendiz como uma tábula rasa,

produzindo seres subservientes, obedientes, castrados em sua capacidade criativa,

destituídos de outras formas de expressão e solidariedade”. Dessa forma, ao final, o

aluno sai da escola e aprendeu a reproduzir o que o professor diz, tornando-se um

porta-voz do professor. De acordo com Demo (2002, p.124):

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A escola reprodutiva considera conhecimento processo linear. Por isso, aposta em uma simples transmissão. O professor fala, o aluno escuta, toma nota e devolve na prova. Chega-se no máximo ao domínio reprodutivo de conhecimentos. Mesmo com os aportes extraordinários de Piaget e de tantos outros que vieram depois, sobretudo da atual biologia da aprendizagem, a escola continua instrucionista ao extremo.

Na era da informação, do letramento digital e da disseminação das redes

sociais, a área da educação ainda caminha a passos de tartaruga; o conhecimento

ainda é todo fragmentado, o ensino é dividido em disciplinas, “uma abordagem de

ensino que é ativamente contrária a uma abordagem global, significativa, baseada

no uso da língua” (Kleiman, 2004, p.16). O aluno permanece sentado em fileiras e

seu espaço se restringe a sua carteira e respectiva cadeira, tolhendo muitas vezes o

seu movimento, o livre pensar e a sua criatividade. Ainda segundo Moraes

(1997/2006, p.50):

Apesar de todas as correntes filosóficas que continuam disputando o espaço pedagógico, o que observamos é que a escola atual continua influenciada pelo universo estável e mecanicista de Newton, pelas regras metodológicas de Descartes, pelo determinismo mensurável, pela visão fechada de um universo linearmente concebido.

Consequentemente, é uma escola submetida a um controle rígido, a um sistema paternalista, hierárquico, autoritário, dogmático, não percebendo as mudanças ao seu redor e, na maioria das vezes, resistindo a elas.

Nesse sentido, o processo de construção do conhecimento é totalmente

desprezado, por serem privilegiados: o conteúdo, a memorização, a assimilação e a

repetição. Em suma, o produto, como verificamos nas palavras de Demo (2002,

p.125):

A aula reprodutiva é basicamente jogo de poder de cima para baixo, no contexto da definição weberiana de obediência. Conhecimento é tratado como mercadoria que se adquire (“aquisição de conhecimento” continua expressão corriqueira), é repassado por meio de processos instrucionistas ostensivos, dificilmente é reconstruído, tornando-se o diploma o reconhecimento oficial de que o aluno assimilou a carga curricular prevista.

Ao final, não sabe manejar conhecimento com mão própria, não sabe pensar, não sabe inovar seu próprio conhecimento. Foi treinado para “porta-voz”, literalmente.

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Paralelamente a esse contexto, na prática tradicional de leitura, o texto é

considerado como um pretexto para se ensinar gramática, ou como um depósito de

informações. Segundo Kleiman (2004, p.16), isso acontece como consequência das

“concepções erradas sobre a natureza do texto e da leitura, e, portanto, da

linguagem”.

Nessa concepção, por exemplo, o ensino da gramática é o pré-requisito para

que possamos ler um texto e, posteriormente processar o entendimento deste. A

prática de leitura, nesse caso, resume-se a extrair as informações e captar o sentido,

ou seja, o que o autor quis dizer. O texto se torna engessado, isto é, só existe uma

leitura e, consequentemente, o leitor torna-se um sujeito passivo porque seu

contexto sócio-histórico-cultural e a subjetividade são totalmente desprezados, não

havendo, portanto, diálogo e muito menos, a negociação dos sentidos do texto.

Em outras palavras, o professor assume o papel de detentor do saber. Neste

caso, existe a possibilidade de uma única interpretação ou resposta para a pergunta.

Por conseguinte, não há espaço para interação entre os alunos e o professor, visto

que todas as concepções e conhecimentos prévios do aluno não são considerados.

O sentido do texto, portanto, não é negociado nem construído conjuntamente como

se pretende nas pesquisas do GEIM (Grupo de Estudos da Indeterminação e da

Metáfora).

Na prática em sala de aula, quando se valoriza uma única leitura, a

subjetividade do aluno é desprezada e ”o trabalho do professor é facilitado e o texto

é um objeto determinado e a leitura consiste na análise e decodificação desse

objeto” (Cavalcanti, 1992, p.223).

Solé (2007, p.80) afirma ainda que, de acordo com Palincsar e Brown

(1984), quando o aluno assume um papel de passividade, não aprende

significativamente, portanto, “essa aprendizagem não será funcional”.

Ao analisarmos o procedimento acima, citado à luz de Orlandi (1996/2001),

o discurso pedagógico é extremamente autoritário, o aluno fica à mercê do

professor, restando a ele uma atitude de passividade e submissão, caso não queira

comprar uma briga com o professor e correr o risco até de ser reprovado. Com

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relação à passividade, Freire (1970/2005, p.68), apregoa que “Quanto mais se lhes

imponha passividade, tanto mais ingenuamente, em lugar de transformar, tendem a

adaptar-se ao mundo, à realidade parcializada nos depósitos recebidos”.

Somente a interpretação do professor é valorizada, alinhada com as

respostas do livro didático. Nesse sentido, a leitura torna-se uma atividade mecânica

e enfadonha.

A prática de leitura nas salas de aula tem se apoiado quase que

exclusivamente no livro didático (Coracini, 1999, p.17), ocasião em que, não raro, é

a única fonte de conhecimento para o professor e o aluno. As palavras de Souza

(1999, p.27) corroboram com o exposto acima:

O caráter de autoridade do livro didático encontra sua legitimidade na crença de que ele é depositário de um saber a ser decifrado, pois supõe-se que o livro didático contenha uma verdade sacramentada a ser transmitida e compartilhada. Verdade já dada que o professor, legitimado e institucionalmente autorizado a manejar o livro didático, deve apenas reproduzir, cabendo ao aluno assimilá-la.

Sobre este assunto, Coracini (1999, p.11) ressalta “A importância da

temática se intensifica quando se constata que os livros didáticos constituem muitas

vezes o único material de acesso ao conhecimento tanto por parte de alunos quanto

por parte de professores que neles buscam legitimação e apoio para suas aulas”. As

palavras de Silva (2003, p.12) estão em consonância com o que foi mencionado

acima:

Se não se estriba na muleta, chamada livro didático, não sabe o que fazer em sala de aula. Se não repete sempre as mesmas ladainhas ou mazelas pedagógicas, as gramatiquices, as fichas padronizadas de leitura, as interpretações cristalizadas no tempo, os protocolos autoritários da leitura escolar, não sabe o que colocar no lugar.

Muitas vezes a opção do livro didático ocorre pela falta de tempo do professor

que, para completar o salário, é obrigado a ter uma carga horária desumana. Outras

vezes, é por comodismo ou porque teve uma formação precária. Neste caso, o livro

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didático acaba suprindo a falha do professor. E é interessante notar que os alunos

diante de um questionário sobre a compreensão de um texto em sala de aula,

simplesmente têm como objetivo responder as perguntas e não praticar o exercício

de entendimento do texto. Essas palavras estão em sintonia com o que afirma

Geraldi (2002, p.170):

Não há perguntas prévias para se ler. Há perguntas que se fazem porque se leu. É muito frequente os alunos lerem primeiro as perguntas que se seguem ao texto de leitura do livro didático para encontrar alguma razão para o esforço que farão. Mais frequentemente ainda, como tais perguntas podem não exigir qualquer esforço, de posse delas, o aluno passeia pelo texto e sua superfície em busca das respostas que satisfarão não a si, mas à aferição de leitura que livro didático e professor podem vir a fazer.

Dessa forma, as práticas pedagógicas referentes à leitura em sala de aula

não têm colaborado para que se formem alunos leitores, que tenham prazer em ler e

realmente construam, e não simplesmente reconheçam, o sentido do texto.

Outro aspecto a ser considerado é que o professor é o responsável pelo

planejamento e o desenvolvimento da aula, isto é, ele faz a seleção do que deve ou

não ser feito em sala de aula. A sua presença e o seu trabalho são imprescindíveis

para a formação de alunos leitores. Porém, pesquisas têm demonstrado que o

repertório de leitura do professor fica aquém do desejado. Conforme Silva (2003,

p.19):

as mesmas indicações e práticas de leitura junto a seus alunos. Em certas regiões brasileiras, os textos conhecidos pelos professores se restringem quase exclusivamente àqueles inseridos nos livros didáticos e nos manuais de ensino. A expropriação das condições de trabalho, ocorrida ao longo da história e acentuada nos últimos tempos, e a consequente luta pela sobrevivência bloqueiam a atualização dos professores, dificultando ou até impedindo o acompanhamento da literatura em sua área de atuação profissional.Vários estudos nos mostram que o repertório de leitura do professor de língua portuguesa é limitado e está estagnado, o que leva a reproduzir mecanicamente sempre.

Podemos relacionar as práticas tradicionais de leitura com o que Freire

(1970/2005, p.66) considera como educação bancária. De acordo com essa

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concepção, o professor assume o papel de detentor do saber e irá depositar todo o

conteúdo no aluno. Portanto, considera o aluno uma caixa vazia, sem conhecimento,

aquele que só recebe passivamente o conhecimento, sem se manifestar e sequer

fazer qualquer tipo de questionamento. Essa concepção de ensino é monológica: o

professor e o livro de um lado com o conhecimento; e o aluno de outro recebendo o

conhecimento passivamente. Enfim, é uma educação “domesticadora” (Freire,

1970/2005, p.66), que somente o professor dirige a ação de ensinar. Sobre o

exposto acima, as palavras de Rego (2001, p.94), apoiadas nos pressupostos de

Vygotsky, vem corroborar o pensamento de Freire:

O indivíduo não é resultado de um determinismo cultural, ou seja, não é um receptáculo vazio, um ser passivo, que so reage frente às pressões do meio, e sim um sujeito que realiza uma atividade organizadora na sua interação com o mundo, capaz inclusive de renovar a sua própria cultura.

De acordo com o pensamento de Vygotsky, o professor também exerce um

papel fundamental. Não se trata, então, de tirá-lo de cena, porque ele é o par

privilegiado. Porém, a prática pedagógica afinada com a educação bancária não traz

benefícios para uma educação que se pretende significativa. Nesse sentido, ao

invés de depositar o conhecimento no aluno, o professor terá que ter uma atitude

que considere o aluno um ser social, para construir conhecimento na interação com

ele. Como afirma Rego (2001, p.110):

Todavia, a atividade espontânea e individual da criança, apesar de importante, não é suficiente para a apropriação dos conhecimentos acumulados pela humanidade. Portanto, deverá considerar também a importância da intervenção do professor (entendido como alguém mais experiente da cultura) e, finalmente de trocas afetivas entre as crianças (que também contribuem para os desenvolvimentos individuais).

Se a leitura é considerada um processo que permeia todas as disciplinas na

escola, então, a competência leitora tem que propiciar aos alunos a compreensão de

forma global de todas essas disciplinas. Em outras palavras, em cada disciplina, o

respectivo professor deve ensinar a ler os textos, tabelas, gráficos, mapas,

estatísticas, filmes, pinturas, direcionados para a especificidade de sua disciplina e,

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dessa forma, aprimorar as habilidades específicas de leitura. Além disso, a partir

dessa leitura, criar condições para que os alunos possam relacionar o que está

lendo com seus conhecimentos prévios. Só assim será possível ao aluno inferir,

relacionar, associar e construir sentido para a sua leitura. Somente dessa forma,

realmente, o aluno terá uma boa formação e bom aproveitamento no seu percurso

escolar.

No entanto, se o desenvolvimento das práticas de leitura for trabalhado nos

moldes de uma educação que privilegie o objetivismo e, por conseguinte, negue

todas essas possibilidades mencionadas acima, tornando o aluno passivo,

poderemos dizer que ela o manterá em um estado de alienação e

consequentemente, excluído socialmente. Nesse sentido, impossibilitado de exercer

a sua cidadania. Apoiando-me, novamente, em Freire (1970/2005) que diz ser a

educação um ato político, por ela nunca ser neutra e além disso, é um ato de

transformação. Então, pode-se concluir que a educação atrelada ao objetivismo é

totalmente contrária à educação libertadora que proporciona a emancipação;

portanto, castradora.

Essa situação me faz refletir: se vivemos em uma sociedade, cujo regime

político é o democrático, logo, as práticas educativas tradicionais vão de encontro ao

ideal político vigente. Destarte, vislumbramos uma situação em que a prática não

está coerente com a teoria, portanto, não é uma democracia.

Se todos os homens têm deveres e direitos iguais perante a Constituição

Federal, todos, indiscriminadamente, devem ser tratados de forma igualitária,

principalmente no que tange aos direitos sociais. E, mais especificadamente, no

âmbito da educação, todos devem ter uma educação libertadora, devem ser

integrados na sociedade e devem participar da aquisição, produção e utilização de

bens culturais. Muitas vezes, algumas medidas são implementadas visando a um

compromisso com uma sociedade democrática e mais justa. Porém, as práticas se

distanciam totalmente, reforçando ainda mais a desigualdade, a discriminação e a

exclusão social.

Em minhas pesquisas, me deparei com o GEIM (Grupo de Estudos e

Indeterminação da Metáfora), sob a coordenação da Profª Dra. Mara Sophia

Zanotto, cujos pesquisadores tem como um dos objetivos investigar as práticas de

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leitura em sala de aula, em uma louvável tentativa de reverter a situação acima

exposta, com a utilização do Pensar Alto em Grupo como instrumento pedagógico.

Este instrumento tem os pensamentos freireanos como inspiração e no bojo da sua

concepção, o mérito maior da utilização do Pensar Alto em Grupo tem sido a

construção do sentido do texto, dando voz ao aluno e legitimando-a, por meio da

interação social entre os participantes em um evento de leitura. Dessa forma, os

sentidos do texto são negociados com a participação de todos. Os resultados da

pesquisa têm comprovado que se trata de uma nova possibilidade de prática de

letramento dialógica e democrática.

No Brasil, na área da educação, sempre houve entraves e dificuldades para

o acesso à educação para todos. Hoje em dia, no entanto, existe uma preocupação

em buscar uma universalização no ensino público. Contudo, é imprescindível que o

acesso seja acompanhado por uma educação de boa qualidade, libertadora e

comprometida com a formação integral do homem. Sobre essa reflexão, recorro

novamente a Freire (1970/2005, p.80):

Assim é que, enquanto a prática bancária, como enfatizamos, implica uma espécie de anestesia, inibindo o poder criador dos educandos, a educação problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica um constante ato de desvelamento da realidade. A primeira pretende manter a imersão; a segunda, pelo contrário, busca a emersão das consciências, de que resulte sua inserção crítica na realidade.

Somando ao que já foi exposto, Rego (2001, p.110) afirma, referindo-se aos

pensamentos de Vygotsky, quando menciona a educação e o comportamento do

aluno na construção do conhecimento:

A noção de constituição do homem como ser histórico traz implícita a concepção de que não há uma essência humana dada e imutável, pelo contrário, supõe um homem ativo no processo contínuo e infinito de construção de si mesmo, da natureza e da história. Esse processo não é linear e unidirecional pois está intimamente relacionado à evolução histórica das necessidades e dos interesses culturais.

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Com base nas considerações feitas até aqui, conclui-se que na visão

tradicional de leitura, o leitor mantém uma postura passiva diante do texto, atitude

que Paulo Freire (1970/2005) atribui ao produto de uma educação bancária.

Contudo, a pesquisa aponta que é imprescindível uma mudança, isto é, um leitor

com um perfil diferente, que tenha uma atitude ativa, participativa, condizente com

uma educação libertadora.

Nesse sentido, com uma visão contrária à tradicional, os modelos cognitivos

mostram um leitor ativo na compreensão do texto. Por esse motivo, a seguir discorro

sobre o modelo cognitivo de leitura. O objetivo, então, é verificar como se

desenvolvem processos cognitivos e inferenciais na mente de um leitor, isto é, como

se processam os mecanismos cognitivos no ato da leitura.

1.3 - Diferentes Concepções de Leituras

Como vimos anteriormente, a visão tradicional de leitura não atende mais a

uma educação que se pretenda libertadora, em que o aluno se torna sujeito de seu

conhecimento e opine com autonomia sobre o que se passa em sua mente.

Enquanto o professor passa então, a ter possibilidades de uma intervenção

pedagógica mais desafiadora, diferente daquela que possuía, com a visão

tradicional de leitura, sempre atrelada ao livro didático ou sendo a autoridade

interpretativa. Desta forma, entendo ser importante, discorrer sobre os modelos

cognitivos de leitura, que enfocam a interação leitor/texto.

1.3.1 - Modelos Cognitivos

O cognitivismo teve sua origem na Psicologia Cognitiva e, utilizando-se de

métodos introspectivos, tem por objetivo analisar os processos cognitivos no

momento em que uma pessoa está executando uma determinada atividade ou

tarefa. Marcuschi (2007, p.33) assim define a cognição:

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A cognição diz respeito ao conhecimento, suas formas de produção e processamento e hoje vem tratada numa área que se chama de Ciência Cognitiva ou então, Filosofia da Mente a depender de onde nos encontremos. Reporta-se à natureza e aos tipos de operações mentais que realizamos no ato de conhecer ou de dar a conhecer. No nosso caso particular, diz respeito aos meios de produção e transmissão do conhecimento linguisticamente.

As pesquisas cognitivistas tem se preocupado em estudar os processos

cognitivos de forma autônoma, isto é, sem se ater aos aspectos sociais. A relevância

dessas pesquisas liga-se à explicação desses processos que ocorrem no momento

da construção de sentido no ato da leitura, enfocando a interação leitor e o texto.

Como resultado, de acordo com Kleimam (1989/2004a, p.9):

O desvendamento do processo torna possível o planejamento de medidas de ensino adequadas, de base informada, bem fundamentadas; por outro lado, e como um passo decorrente do primeiro objetivo, visamos ao aprimoramento da própria capacidade de leitura do leitor deste livro, pois ao tornarmos o processo conhecido estaremos construindo as bases para uma atividade de metacognição, isto é, de reflexão sobre o próprio saber, o que pode tornar esse saber mais acessível a mudanças. Refletir sobre o conhecimento e controlar os nossos processos cognitivos são passos certos no caminho que leva à formaçao de um leitor que percebe relações, e que forma relações com um contexto maior, que descobre e infere informações e significados mediante estratégias cada vez mais flexíveis e originais.

Os modelos cognitivos têm três faces distintas: o modelo ascendente (bottom-

up) que privilegia o texto, o modelo descendente (top-down) que enfatiza o

conhecimento prévio do leitor e o terceiro é o modelo interativo em que os dois

processos anteriores se alternam.

1.3.1.1 - Modelo bottom-up

O modelo ascendente (bottom-up) é aquele que depende do texto, é linear,

com base estruturalista. A compreensão processa-se a partir do texto e das

informações nele contidas, sendo tarefa do leitor sua decodificação. O texto torna-se

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relevante e de acordo com Solé “não pode explicar fenômenos tão correntes como o

fato de que continuamente inferimos informações” (Solé, 1998/2007, p. 23).

A leitura nesse modelo é considerada um processo sequencial e indutivo de

processamento do input visual, indo da palavra para a sentença, das partes menores

para as maiores (Kato, 1985/2007, p.50). Ele é muito utilizado por leitores iniciantes

e inexperientes, pois, o processamento inicia-se pelas letras, palavras, frases, tendo

como referência única os dados do texto. A decodificação é muito valorizada, “o

leitor pode compreender o texto porque ele pode decodificá-lo totalmente” (Solé,

1998/2007, p.23).

Nessa abordagem, muito utilizada por leitores iniciantes, a leitura torna-se

mecânica, pois privilegia-se a decodificação e as informações são processadas

lentamente até fazerem sentido. O leitor não tem uma participação ativa e o seu

papel é decodificar as informações visuais. Em outras palavras, o leitor assume um

papel passivo e consequentemente “faz pouca leitura nas entrelinhas” (Kato,

1985/2007, p.51).

1.3.1.2 - Modelo top-down

Em oposição ao modelo ascendente (bottom-up), que enfatiza o texto, o

modelo descendente (top-down) tem como característica a valorização do leitor, isto

é, parte do conhecimento prévio que este tem sobre o assunto tratado no texto. Esse

conhecimento prévio serve para fundamentar a interpretação do leitor. Dessa forma,

a leitura se processa do leitor para o texto: é preditiva, não linear, dedutiva, pois

parte ”da macro para a microestrutura, da função para a forma”, isto é, do

conhecimento de mundo para o nível de decodificação da palavra (Kato, 1985/ 2007,

p.50).

Segundo a mesma autora, os leitores que utilizam o modelo descendente

(top-down) são mais experientes e fazem uma leitura mais rápida e geral do texto.

No entanto, esses leitores, muitas vezes, exageram nas deduções, sem se

preocupar em confrontar sua leitura com o que está escrito no texto (Kato,

1985/2007, p.50).

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Como a leitura parte do leitor para o texto, quanto mais conhecimento o leitor

tiver do assunto que está sendo tratado, menos ele irá se dirigir ao texto, para

construir sentido. Em decorrência desse fato, Solé (1998/2007, p.24) acrescenta:

As propostas de ensino geradas por este modelo enfatizaram o reconhecimento global de palavras em detrimento das habilidades de decodificação, que nas concepções mais radicais são consideradas perniciosas para a leitura eficaz.

Convém aqui salientar que o conhecimento prévio ou enciclopédico refere-se

a todo e qualquer conhecimento, informação ou crença que adquirimos no decorrer

da vida, tanto de maneira formal como informalmente − na escola, frequentando

cursos, ou nas experiências pelas quais passamos, nas diversas interações sociais

em que nos envolvemos.

Pode-se concluir então, que há leitores com uma tendência a usar mais o

modelo ascendente: apoiam-se totalmente no texto, construindo significados levando

em consideração os dados do texto. Há outros que tendem a usar mais o modelo

descendente, ativando o seu conhecimento prévio ou seu conhecimento de mundo,

fazendo inferências, valorizando com isso sua subjetividade.

Assim, para concluir os modelos cognitivos, atenho-me na descrição do

modelo interativo, que é a combinação dos modelos descendente e ascendente.

1.3.1.3 - Modelo Interativo

De acordo com Solé (1998/2007, p.23), ”o modelo interativo pressupõe uma

síntese e uma integração hierarquizada entre os dois tipos de processamento

(bottom-up e top-down)”. De forma interativa, o leitor faz uso dos dois processos,

efetuando um movimento entre o conhecimento prévio e a decodificação do texto, de

acordo com as necessidades. Em outras palavras, os dois processos interagem

entre si visando a compreensão do texto.

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Segundo Kato (1985/2007, p.51), o modelo interativo normalmente é usado

por um leitor maduro, que sabe quando tem que acionar seus conhecimentos

prévios e quando precisa se ater ao texto: ”um leitor que tem um controle consciente

e ativo de seu comportamento”.

A leitura interativa é um avanço na pesquisa sobre a leitura, porque não

apresenta a leitura como uma atividade mecânica, conforme registrado no modelo

ascendente, nem enfoca o texto de forma tão globalizada e vaga como no modelo

descendente.

A seguir, discorro sobre a abordagem interacionista que trata da interação

leitor-autor mediados pelo texto.

1.3.2 - Abordagem interacionista

Kleiman (1989/2004a, p.10) apregoa que não devemos considerar o ato de

ler apenas como um ato cognitivo; a leitura é também um ato social. Ela acrescenta

ainda, que a interação ultrapassa a relação entre leitor e texto, pois nessa relação

estão presentes “dois sujeitos”, com conhecimentos diferentes, o leitor e o autor.

Estes interagem entre si mediados pelo texto e obedecem a objetivos e

necessidades socialmente determinados.

Mas, quando levamos em consideração o conhecimento prévio dos leitores

em todos os níveis, a leitura pode não ser única, isto é, cada leitor pode ter uma

compreensão diferente para um mesmo texto. Então, o sentido está além do próprio

texto. A autora afirma ainda que a responsabilidade para que essa relação seja

preservada é de ambos, a despeito das possíveis diferenças de opinião, ideologia e

outras divergências. Na medida em que o leitor se engaja para construir o sentido do

texto, faz inferências, ativa seu conhecimento de mundo, levanta hipóteses e

procura as pistas deixadas pelo autor. Por outro lado, este quer ser compreendido e

para tanto, deixa pistas formais para facilitar a construção de sentido pelo leitor.

A consideração, da interação entre leitor e autor via texto no ato da leitura,

tem suas origens nas teorias da pragmática. Nessa abordagem, as intenções do

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autor são enfatizadas ao invés do conteúdo proposicional do texto. Em seus estudos

Kato (1985/2007, p.69) afirma o seguinte:

Em sua versão ingênua, a leitura é definida como um ato de adivinhação das intenções do autor, e, na versão mais elaborada, como um ato de comunicação regido por regras conversacionais, isto é, um contrato de cooperativismo. Assim, o escritor é regulado para ser: a) informativo na medida certa, b) sincero, c) relevante e d) claro. O leitor, por sua vez, deverá compreender o objetivo do autor, acreditar em sua sinceridade, procurar a relevância dos subjetivos ao objetivo central e esperar que os objetivos venham codificados através de recursos linguísticos mais simples.

Em outros termos, de acordo com esta autora o leitor mune-se do princípio

da cooperação, então, se o autor não obedecer a alguns dos princípios, o leitor

deverá pensar que a violação foi proposital e que indiretamente o escritor está

tentando dizer alguma coisa. A leitura, desse modo, precisaria ser inferida, gerando

com isso, uma inferência pragmática. No que se refere ao leitor e ao autor, durante a

leitura, Kleiman (1989/2004a, p.66) diz:

o autor que detém a palavra por assim dizer, por um turno extenso, como num monólogo, deve ser informativo, claro e relevante. Ele deve deixar suficientes pistas no seu texto a fim de possibilitar ao leitor a reconstrução do caminho que ele percorreu. Isto não quer dizer que haja necessidade de explicitação, mas que o implícito possa ser inferido, ou por apelo ao texto ou por apelo a outras fontes de conhecimento. Já o leitor deve acreditar que o autor tem algo relevante a dizer no texto, e que o dirá clara e coerentemente.

O leitor nessa perspectiva desempenha papel importante, pois encontrará os

indícios significativos no texto. No entanto, quando se deparar no texto com

“obscuridades e inconsistências” (Kleiman, 1989/2004a, p.66), o leitor deverá

acionar o seu conhecimento de mundo, linguístico e textual.

A seguir farei algumas observações sobre a leitura inferencial, tão

importante na construção de sentido do texto, pois o leitor exerce um papel ativo no

processo.

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1.3.3 - Leitura inferencial

Quando lemos, a finalidade é sempre construir o sentido, isto é, o texto tem

que ter uma lógica, uma coerência para o leitor. Muitas vezes, porém, os textos não

trazem explicitamente as pistas. Eles podem ter várias lacunas, implícitos e

subentendidos, por isso são um grande desafio para o leitor. Nesse sentido, a

inferência tem como objetivo, “resolver um problema de continuidade de sentido”, de

acordo com Beaugrande e Dressler (1981), citado por Koch e Travaglia (2003, p.70).

Compete ao leitor procurar estratégias para ler nas entrelinhas e construir sentido,

valendo-se de uma leitura inferencial. Dell‟Isola (2001, p.44) assim define inferência:

A inferência é, pois, uma operação mental em que o leitor constrói novas proposições a partir de outras já dadas. Não ocorre apenas quando o leitor estabelece elos lexicais, organiza redes conceituais no interior do texto, mas também quando o leitor busca extratexto, informações e conhecimentos adquiridos pela experiência de vida, com os quais preenche os “vazios” textuais. O leitor traz para o universo individual que interfere na sua leitura, uma vez que extrai inferências determinadas por contextos psicológico, social, cultural, situacional, dentre outros.

O leitor mantém um diálogo com o texto, ao ligar as informações explícitas

com o seu conhecimento prévio, seu contexto sócio cultural e, a partir daí, explicita o

que estava implícito. Assim, de acordo com Brown e Yule (1983), citado por Koch e

Travaglia, “inferência é sempre vista como uma “assunção ligadora”, isto é, que

estabelece uma relação entre idéias do discurso “(2003, p.70).

Marcuschi (2007, p.88) diz que “é impossível não inferir quando se quer

produzir significações”. As associações acontecem de forma espontânea quando se

encontra alguma parte do texto obscura e a inferência é feita, então, para explicitar,

o que no primeiro momento da leitura estava implícito. A inferência surge como uma

resposta − durante a construção de sentido na leitura −, como a conclusão de um

raciocínio, para se elaborar um pensamento, como uma expectativa (Dell‟Isola,

2001). O leitor procura uma coerência e acaba fazendo as associações com o seu

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conhecimento de mundo. Sobre esse aspecto, Koch e Travaglia (2003, p.71)

afirmam, citando Charolles (1987a):

o processo de interpretação e reinterpretação é comandado pelo princípio da coerência, que leva aquele que interpreta o texto a construir relações que não estão expressas nos dados do texto: essas relações são as inferências que podem ser ou não lingüisticamente fundadas.

Pode-se dizer, então, que o bom leitor é aquele capaz: de construir uma

representação mental do significado do texto, estabelecendo as relações entre as

partes deste, e de relacioná-lo com os conhecimentos previamente adquiridos

(Coscareli, 2003).

O contexto exerce, de alguma maneira, uma influência muito grande no grau

de complexidade de uma inferência. Dell‟Isola (2001, p.90) esclarece que os

processos inferenciais se relacionam com as informações anteriores e estas se

apóiam nos aspectos contextuais. Coracini (2005, p.27) pontua que “é o momento

histórico-social que aponta para a leitura a ser realizada, ou melhor para as leituras

possíveis para um dado texto, e não o texto em si”. Nesse sentido, o nível cultural, o

estado emocional, o ambiente em que ocorre a leitura − com várias pessoas em

volta −, enfim todos esses aspectos são levados em consideração, quando se trata

de contexto. E ainda, são preponderantes para influenciar nosso ponto de vista,

nossa visão de mundo e também para elaborarmos uma inferência, como Marcuschi

(2007a, p.88) aponta, “Inferir torna-se, pois uma atividade discursiva de inserção

contextual e não um processo de encaixes lógicos. É impossível não inferir quando

se quer produzir significações”.

No que tange ao conhecimento prévio, pode-se dizer que é impossível fazer

inferência se o descartarmos. Para sustentar essa afirmação, recorro a Kleiman

(1989/2004a, p.25):

A ativação do conhecimento prévio é, então, essencial à compreensão, pois é o conhecimento que o leitor tem sobre o assunto que lhe permite fazer as inferências necessárias para relacionar diferentes partes discretas do texto num todo coerente. Este tipo de inferência, que se dá como decorrência do conhecimento de mundo e que é motivado pelos itens

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lexicais no texto é um processo inconsciente do leitor proficiente. Há evidências experimentais que mostram com clareza que o que lembramos mais tarde, após a leitura, são as inferências que fizemos durante a leitura; não lembramos o que o texto dizia literalmente.

Vale ressaltar a importância das inferências na compreensão de um texto,

posto que ao decorarmos palavra por palavra de um texto, sem que tenhamos feito

uma relação com o nosso conhecimento prévio, depois de certo tempo, não

lembramos de mais nada. Neste caso, de acordo com Kleiman (1989/2004a, p.26),

“sem tentar procurar um sentido global, isto é, sem fazer as inferências necessárias,

esquecemos o conteúdo imediatamente, evidenciando que não houve compreensão,

apenas um passar de olhos superficial, sem que o material percebido sequer pareça

ter entrado na consciência”.

Dessa forma, feitas as considerações sobre a leitura inferencial. Tendo em

vista que a minha pesquisa tem como base teórica o pressuposto de que a

construção de sentidos de um texto ocorre na interação social e dialógica na e pela

linguagem, a seguir, discorro sobre a leitura como prática social, que se alinha com

a LA no mundo pós-moderno. Convém salientar que, o processo interacional, abre

caminho para a proposta de leitura como evento e prática social, por ressaltar o

aspecto social da interação como parte do processo de leitura, favorecendo espaço

para a negociação do sentido e para a intersubjetividade entre os leitores.

1.3.4 - Concepção de leitura como prática social

A leitura como evento social, segundo Bloome (1983), consiste na negociação

de sentidos do texto, por meio da interação social entre participantes no momento

em que se realiza a leitura, admitindo com isso, diferentes leituras para o mesmo

texto. Este fato se deve, principalmente, aos envolvidos na leitura terem visões de

mundo diversos e serem histórico e sócio-culturalmente diferentes, fatores

considerados relevantes na construção de sentidos. Nessa perspectiva, o leitor é

alçado à condição de co-produtor de sentido, na interação com seus companheiros.

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O mesmo autor acrescenta ainda que, na leitura como evento social haverá

um compartilhamento de saberes e conhecimentos prévios, com o objetivo de

construção e negociação do sentido do texto. Neste caso, os participantes

constroem o significado do texto com visão própria: contexto essencial para a

construção dos significados da leitura.

É neste contexto do evento de leitura que ocorrem a interação e a negociação

de sentidos. Então, o significado de um evento de leitura é ao mesmo tempo

específico e geral: a linguagem usada pelos participantes relaciona o significado

específico da leitura com os significados sociais.

A concepção de leitura como evento social (Bloome, 1983) e prática social

(Moita Lopes, 1996) considera todo vasto e complexo contexto sócio-histórico-

cultural em que os leitores, o autor e o texto estão inseridos. Ela traz em seu bojo a

ideia de que em um texto podemos construir outros sentidos, porque existem outros

significados no texto, além daqueles expressa pelo autor. Nesse movimento, os

leitores se empenham nas leituras e nas interações sociais: cada qual com seu

pensamento, visão de mundo, crenças e ideias interagem entre si, possibilitando

uma mescla de leituras que se entrecruzam ou se tornam distintas umas da outras.

Corroborando com o exposto acima, de acordo com Zanotto (1997, p.13):

Por isso faço a analogia de que um evento social de leitura desse tipo é como abrir a caixa de Pandora, não no sentido negativo de ser uma caixa que contém todos os males, mas sim as subjetividades ( que ficaram reprimidas pela ciência objetivista porque elas poderiam ser-lhes fatais ). Se eu descarto a leitura autorizada – nem a minha, nem a do autor do livro didático – e abro minha mente para as diferentes vozes – o resultado é um produto complexo mas riquíssimo..

Vygotsky, em seus postulados (Rego, 1994/2001), afirma que a mente

humana tem sua construção social, pois sua gênese é social. Em outros termos, o

homem se reconhece como pessoa, um ser humano nas e pelas relações sociais.

Bloome (1983,1993) afirma que a leitura individual também é considerada

prática social e cultural e Kleiman (1989/2004b, p.33) acrescenta que se estabelece

uma relação “não entre o objeto e o leitor, mas entre o leitor e o autor, sujeitos

sociais, num processo que será necessariamente dinâmico e mutável”.

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Procurando ser coerente com as teorias que embasam a leitura como prática

social, apoio-me em Zanotto (1998) e nas pesquisas do GEIM (Grupo de estudos da

Indeterminação e da Metáfora) que investigam a prática do “Pensar Alto em Grupo”

como instrumento pedagógico na prática de leitura. Essa técnica possibilita aos

leitores interagirem face-a-face, partilharem, compartilharem os significados

individuais, negociarem, construírem e avaliarem diferentes leituras. O Pensar Alto

em Grupo, além de ser um instrumento pedagógico que valoriza a subjetividade,

promovendo a intersubjetividade, é também considerado um instrumento de

pesquisa para geração de dados.

A importância do professor, nessa perspectiva, é fundamental, porque ele

pode criar condições para a construção de sentidos, dando voz aos alunos, ao

enfatizar as inter-relações nas interações entre os participantes e promover, com

isso, um trabalho colaborativo.

Se na prática tradicional de leitura o “interlocutor” é tão somente o “professor

e o livro didático” (Coracini, 1999) e o aluno é unicamente um repositório,

desempenhando um papel passivo, na leitura como evento social, o aluno tem uma

atitude responsiva ativa, interagindo com seus colegas e o professor à medida que

partilha, compartilha e negocia os sentidos do texto.

Se de um lado temos a concepção tradicional da leitura que se coaduna com

a visão bancária de educação (Freire,1970/2005), situação esta em que o aluno é

considerado uma “tábula rasa”, de outro, vislumbramos a leitura como evento social

que resgata a voz do aluno, por considerá-lo um cidadão atuante, por valorizar a

interação social, a subjetividade e a intersubjetividade. Esta prática de leitura como

evento social se alinha com a pedagogia problematizadora e libertadora,

preconizada por Freire. Para ilustrar minhas palavras, apoio-me nas palavras desse

mesmo autor (1970/2005, p.8):

prática da liberdade só encontrará adequada expressão numa pedagogia em que o A oprimido tenha condições de, reflexivamente, descobrir e conquistar-se como sujeito de sua própria destinação histórica.

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O mesmo autor afirma ainda que toda educação é política, na medida em

que educar é transformar e mudar. Se o professor, ao analisar a sua prática em sala

de aula e, consequentemente, fizer uma reflexão, poderá saber qual a teoria

subjacente à sua prática: se ela está atrelada à concepção tradicional, que abafa a

voz do aluno, e que lhe confere uma condição de passividade e alienação, ou se ela

se alinha à educação libertadora, que propicia condições para que o aluno reflita,

interaja e tenha oportunidade de se inserir em uma prática pedagógica que privilegie

a interação social e dialógica. Nesse último caso, ele se torna o sujeito do seu

aprendizado e fortalece o seu senso crítico. Por esse motivo a natureza da

educação nunca é neutra, e sim, política. Atentemos para as afirmações de Brandão

(2005/2008, p.273)

Numa sociedade letrada, a escrita adquire função de suma importância, porque, além de seu papel documental de guardiã da tradição, ela é instância instauradora de diálogos, nas várias dimensões espaciais e temporais.

Da mesma forma, a leitura na cultura escrita passa a ser uma prática social de alcance político, por ser atividade constitutiva de sujeitos capazes de inteligir o mundo e nele atuar, exercendo a cidadania.

Minha pesquisa tem como foco a leitura como evento social (Bloome, 1983).

Para embasar esta prática, utilizo neste trabalho o Pensar Alto em Grupo (Zanotto,

1995) como instrumento pedagógico, que propicia a negociação e construção de

sentido por meio da interação social, da valorização da subjetividade, levando em

consideração o contexto sócio-cultural do aluno e, consequentemente, privilegiando

as múltiplas leituras de um texto.

Coracini (2005, p. 25) acrescenta que ler, compreender ou produzir sentidos

é uma questão de ângulo, de percepção, ou de posição enunciativa. Nesse sentido,

a leitura está atrelada ao momento sócio-histórico do leitor, por permitir várias

leituras e inferências. Essas diferentes leituras de um mesmo texto não se anulam;

em decorrência desse fato, um mesmo texto transforma-se em vários textos, não só

para um mesmo leitor em situações diferentes, como também para diferentes

leitores e, é óbvio em situações também diferentes.

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Podemos notar diferenças significativas em relação à concepção de leituras,

principalmente no que se refere às praticas em sala de aula. No pós-moderno, a

leitura é vista como emancipadora, um ato que leva em consideração o leitor sócio-

histórico-cultural, privilegia, então a subjetividade.

No que tange às práticas em sala de aula, é importante o professor ter

noção dos pressupostos teóricos que estão norteando seu fazer pedagógico, pois

isso possibilita um encaminhamento mais coerente de sua prática. Segundo Coracini

(2005, p. 22), hoje em dia, a leitura como decodificação, aquela que admite leitura

única, ainda é praticada nas salas de aula e está atrelada a uma educação bancária

e alienante.

Nesse sentido, o GEIM (Grupo de Estudos da Indeterminação da Metáfora)

sob a coordenação da Profª Dra. Mara Sophia Zanotto, vem desenvolvendo

pesquisas no que diz respeito à leitura e à sua prática em sala de aula, com o

objetivo de reverter esse quadro. A utilização do Pensar Alto em Grupo, como

instrumento pedagógico, vem difundindo a concepção de leitura como evento social,

prática que está alinhada aos ditames da leitura na LA no mundo pós-moderno,

Zanotto & Palma (2005), Pozzeti (2007), Ferling (2005), Lemos (2005), Queiróz

(2009), Santos (2010), Vilas Boas (2010).

A seguir, farei uma apresentação do Pensar Alto em Grupo, como um

instrumento que permite a leitura como prática social.

1.3.4.1 - Pensar Alto em Grupo – a prática social de letramento

O Pensar Alto em Grupo é um instrumento pedagógico que, como já foi dito,

está sendo investigado pelo GEIM (Grupo de Estudos da Indeterminação da

metáfora) sob a coordenação da Profa. Drª Mara Sophia Zanotto. Esta técnica, além

de ser um instrumento pedagógico, também é um instrumento de geração de dados.

A utilização do Pensar Alto em Grupo nas práticas de leitura está alinhada à

concepção de leitura como evento social (Bloome, 1983,1993); isso ocorre porque

esta técnica está permeada pela interação social entre os participantes do evento

da leitura. Desse modo, eles partilham, compartilham e negociam os sentidos do

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texto e consequentemente, observa-se a valorização da subjetividade e da

intersubjetividade. A difusão do uso dessa técnica, por parte dos pesquisadores

vinculados ao GEIM (Grupo de Estudos da Indeterminação da Metáfora), tem

propiciado uma prática mais condizente com as concepções de leitura na LA pós-

moderna, na qual minha pesquisa está inserida.

Zanotto (1998) enfatiza a importância da utilização do Pensar Alto em Grupo

nas práticas de leitura em sala de aula. Seguramente, um dos maiores benefícios da

utilização dessa prática é o engajamento do leitor na construção de sentidos do

texto, bem como, o fato de o professor dar voz ao aluno, retirá-lo da passividade,

propicia a interação entre os alunos e o professor.

Por um lado, quando a professor dá voz ao aluno, cria condições para que

todos, inclusive o próprio professor, possam concordar ou não da opinião do aluno e

este, por sua vez, também pode se manifestar positiva ou negativamente.

Outra estratégia discursiva utilizada é o revozeamento da voz do aluno

(O‟Connor & Michaels, 1996), situação na qual o professor inclui o aluno na

discussão que está em andamento.De acordo com as autoras, revozeamento

acontece quando as palavras ou a fala de alguém é reelaborada por outro alguém,

objetivando com isso, além de questionar ou complementar o que foi dito, ouvir um

ao outro.

De acordo com Lemos (2005, p.43), o professor em sua prática em sala de

aula, deve revozear o aluno de forma intencional, tendo como objetivo a participação

do aluno durante as interações sociais que ocorrem em sala de aula. Quando o

professor revozeia a voz do aluno, na realidade ele está valorizando a sua

participação. Em outras palavras, ao ouvir e entender como o aluno se expressa e

articula seus pensamentos, o professor cria uma situação muito rica e produtiva

durante uma aula de leitura. O aluno então se sente valorizado e motivado a

participar, aumentando com isso sua responsabilidade e também seu senso de

colaboração. Além disso, cria-se um ambiente afetivo que, a meu ver, é muito

positivo, na medida em que ele passa a ser o sujeito da produção do conhecimento

e faz com que os demais também tenham a mesma atitude responsiva. Isso

fortalece o sentimento de pertencimento do grupo no qual está inserido.

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Podemos notar que, nessa perspectiva, o Pensar Alto em Grupo é uma

prática dialógica e democrática de letramento, porque cria condições para uma

interlocução entre os leitores, visando a uma interação social. Os leitores participam,

tornam-se sujeitos que pensam e se expõem com suas idéias e pensamentos.

Nesse sentido, considero apropriado explanar sobre as práticas do letramento, seu

significado e a relação entre este e a utilização do Pensar Alto em Grupo, bem como

suas implicações em ler a palavra e ler o mundo. Assim, propiciar uma participação

social relevante para si próprio como cidadão por levar em consideração o contexto

sócio-histórico-cultural de cada indivíduo e desta feita, possibilitar o exercício pleno

da cidadania de cada pessoa.

A seguir, discuto o letramento e sua entrada no contexto educacional

brasileiro, ao demonstrar as modificações que a visão de leitura sofreu com o

surgimento desses conceitos – que na realidade, aproximam a visão de leitura de

uma visão de prática social.

1.3.4.2 - Letramento e o contexto educacional brasileiro

A palavra letramento, cuja origem vem do inglês “literacy”, refere-se ao estado

ou condição daquele que é educado e tem habilidade para ler e escrever; segundo

Ribeiro (2003/2004, p.12), nos meios acadêmicos e entre os educadores, o termo é

amplamente conhecido, assim como o seu significado. Porém, a população de modo

geral demonstra pouca familiaridade em relação ao seu sentido, muitas vezes

fazendo confusão entre letramento e alfabetismo.

As duas palavras muitas vezes são usadas indistintamente, uma em lugar da

outra, em decorrência de apresentarem o mesmo campo semântico. Contudo, existe

uma diferença entre ambas. De acordo com Rojo (2009, p.96), a palavra alfabetismo

tem uma conotação individual “bastante ditado pelas capacidades e competências

(cognitivas e linguísticas) escolares e valorizadas de leitura e escrita”; por outro lado,

a palavra letramento tem um cunho mais social, referindo-se “ao estado ou condição

que adquire um grupo social ou individuo, como consequência de ter-se apropriado

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da escrita e de se envolver nas práticas sociais de leitura e de escrita” (Soares,

1998/2006, p.39).

Os estudos sobre letramento (Soares, 1998/2006, p.15) surgiram na

segunda metade dos anos 80. A autora define letramento como sendo a condição

que uma pessoa adquire, ao apropriar-se da leitura e da escrita e suas respectivas

funções sociais, o que possibilita a ela adquirir habilidades essenciais para que se

torne cidadã atuante e que tenha autonomia para interagir na sociedade. Nesse

sentido, (Ribeiro, 2003/2004, p.12) acrescenta ainda que “letramento procura

compreender a leitura e a escrita como práticas sociais complexas, desvendando

sua diversidade, suas dimensões políticas e implicações ideológicas”.

Somando ao que foi exposto, Soares (1998/2006, p. 16) define alfabetizado,

como “aquele que apenas aprendeu a ler e a escrever, e não aquele que adquiriu o

estado ou a condição de quem se apropriou da leitura e da escrita, incorporando as

práticas sociais que as demandam”. No que tange a essa questão, Kleiman

(1995/2006, p.20) afirma:

O fenômeno do letramento, então, extrapola o mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas instituições que se encarregam de introduzir formalmente os sujeitos no mundo da escrita. Pode-se afirmar que a escola, a mais importante das agências de letramento, preocupa-se, não com o letramento, mas com apenas um tipo de prática de letramento, a alfabetização, o processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico), processo geralmente concebido em termos de uma competência individual necessária para o sucesso e promoção na escola. Já outras agências de letramento, como a família, a igreja, a rua como lugar de trabalho, mostram orientações de letramento muito diferentes.

É importante então, salientar o aspecto social do letramento. Por conseguinte,

destacar o que a pessoa faz com a leitura, como a leitura facilita e a auxilia no seu

contexto social. Em outras palavras, como a leitura se relaciona com as suas

práticas sociais, conforme podemos observar nas palavras de Soares (1998/2006,

p.75):

O que o letramento é depende essencialmente de como a leitura e a escrita são concebidas e praticadas em determinado contexto social;

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letramento é um conjunto de práticas de leitura e escrita que resultam de uma concepção de o quê, como, quando e por que ler e escrever.

Kleiman (1995/2006, p.20) discorre sobre os novos estudos de letramento

propostos por Street (1984): o letramento autônomo e o letramento ideológico. O

letramento autônomo refere-se as teorias cognitivas que procuravam explicar os

processos cognitivos da leitura e da escrita, de forma independente da dimensão

social.De acordo com as palavras de Kleiman (1995/2006):

A característica de “autonomia” refere-se ao fato de que a escrita seria, nesse modelo, um produto completo em si mesmo, que não estaria preso ao contexto de sua produção para ser interpretado; o processo de interpretação estaria determinado pelo funcionamento lógico interno ao texto escrito, não dependente das (nem refletindo, portanto) reformulações estratégicas que caracterizam a oralidade, pois , nela, em função do interlocutor, mudam-se rumos, improvisa-se, enfim, utilizam-se outros princípios que os regidos pela lógica, a racionalidade, ou consistência interna, que acabam influenciando a forma da mensagem.

O letramento autônomo tem sido criticado por não levar em consideração a

dimensão social do letramento. E segundo Kleiman (1995/2006, p. 44), citando

Heath, o modelo autônomo considera a “aquisição da escrita neutra e determina as

práticas escolares”, pois os textos utilizados são abstratos e independentes do

contexto.

O letramento ideológico refere-se às “ práticas de letramento, no plural, são

social e culturalmente determinadas, e, como tal, os significados específicos que a

escrita assume para um grupo social dependem dos contextos e instituições em que

ela foi adquirida” ( Kleiman, 1995/2006, p.21).

Em oposição ao modelo autônomo de letramento, o modelo ideológico tem

como característica apropriar-se da escrita e da leitura como prática social. Além

disso, segundo Soares (2006, p.75), “letramento tem um significado político e

ideológico de que não pode ser separado e não pode ser tratado como se fosse

fenômeno „autônomo‟”. A mesma autora ainda afirma (1998/2006, p.74),

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...letramento não pode ser considerado um “instrumento” neutro a ser usado em práticas sociais quando exigido, mas essencialmente um conjunto de práticas socialmente construídas que envolvem a leitura e a escrita guiadas por processos sociais mais amplos, e responsáveis por reforçar ou questionar valores, tradições e formas de distribuição de poder nos contextos sociais.

Paulo Freire foi um dos autores que mencionaram que o letramento e seu

desempenho no papel de libertação ou domesticação. Dessa forma,o letramento,

segundo Freire, dependendo do contexto ideológico em que ocorre, assume um

papel político e seu principal objetivo é propiciar a mudança social. Soares

(1998/2006, p.77) assim se refere a Freire,

Paulo Freire (1967, 1970a, 1970b, 1976) foi um dos primeiros educadores a realçar esse poder “revolucionário” do letramento, ao afirmar que ser alfabetizado é tornar-se capaz de usar a leitura e a escrita como um meio de tomar consciência da realidade e de transformá-la. Freire concebe o papel do letramento como sendo ou de libertação do homem ou de “domesticação”, dependendo do contexto ideológico em que ocorre, e alerta para a natureza inerentemente política, defendendo que seu principal objetivo deveria ser o de promover a mudança social (Soares, 1998/2006, p.77).

Feitas essas considerações, pode-se concluir que, à medida que uma pessoa

se torna letrada, ao adquirir a condição de uma pessoa que se apropria da leitura e

da escrita e suas respectivas funções sociais, ela assume uma outra postura social e

cultural. Em outras palavras, ela terá uma atuação diferenciada na sociedade, posto

que a sua inserção social será de uma pessoa que terá condições de participar

socialmente, terá acesso aos bens culturais, poderá opinar, entender os discursos

que permeiam o jogo social. Nesse sentido, refletirá de forma crítica, entenderá e

poderá transformar as situações mais adversas nas quais estiver envolvida.

Podemos apreender então, que a prática da leitura como evento social

encaminha o leitor à inserção no âmbito do letramento, ou seja, ele poderá ser um

cidadão que reflita de forma crítica sobre si mesmo e a sociedade onde está

inserido. Nesse sentido, tem a possibilidade de transformar o seu contexto social,

bem como a sua visão de mundo. No primeiro estágio no letramento autônomo, em

um nível individual, valendo-se da leitura face às demandas sociais do dia a dia.

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Posteriormente, de forma mais ampla, com vistas à coletividade, por meio do

letramento ideológico, como forma de ter consciência, a pessoa letrada mudará as

mínimas coisas que achar que estão erradas a sua volta, intervindo, como diz Freire,

como um ser político.

1.4 - Os autores e seus pressupostos teóricos: Vygotsky, Bakhtin e Freire.

A seguir, apresento alguns autores, cujas teorias estão em consonância com

a minha pesquisa, porque discutem uma visão de ensino-aprendizagem e de

linguagem embasadas nas práticas sociais, bem como as práticas de letramento que

pretendo investigar.

1.4.1 - Vygotsky – o interacionismo

Lev Semyonivich Vygotsky (1896-1934), autor russo, viveu no início do

século XX, e se dedicou aos estudos relacionados à Psicologia, Educação e à

Linguagem. A despeito de ter vivido muito pouco, a sua obra é extensa. Enfatizarei,

especificamente, o desenvolvimento da mente humana e a produção do

conhecimento, no contexto educacional.

Seus pressupostos, tendo como referência o materialismo histórico-dialético,

defendem que o homem (Rego, 1994/2001, p.95) “constitui-se como tal através de

suas interações sociais”. Em seus estudos, Vygotsky deixa muito clara a influência

decisiva das relações sociais no desenvolvimento intelectual. A concepção

pedagógica interacionista ou sociointeracionista surgiu a partir de seus

pensamentos, com ênfase nas interações sociais. De acordo com as palavras de

Rego (1994/2001, p. 93):

Segundo ele, organismo e o meio exercem influência recíproca, portanto o biológico e o social não estão dissociados. Nesta perspectiva, a premissa é de que o homem constitui-se como tal através de suas interações sociais, portanto, é visto como alguém que transforma e é transformado nas

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relações produzidas em uma determinada cultura. É por isso que seu pensamento costuma ser chamado de sociointeracionismo.

Outro conceito central de Vygotsky sobre o funcionamento psicológico é o

da mediação. Entende-se por mediação, a intermediação que um determinado

instrumento faz em uma relação. Portanto, a relação deixa de se direta e passa a ser

mediada. (Oliveira, 2010, p.28)

Para Vygotsky a relação do homem com o mundo é sempre mediada por um

instrumento ou signo. A linguagem é o sistema simbólico mediador das relações

entre o homem e o conhecimento. Ela desempenha um papel muito importante na

comunicação entre as pessoas, isto é, na interação social. Além disso, também

serve para conceituar os objetos do mundo real, o que Vygotsky chamou de

pensamento generalizante.Em outras palavras, a linguagem serve para as pessoas

fazerem abstrações e generalizações.(Oliveira, 1992, p.27)

Nesse sentido, podemos dizer que a linguagem é um importante instrumento

para o homem, na medida em que é na e pela linguagem que o homem se

reconhece como ser social. Além disso, por meio da linguagem o homem interage

com o seu semelhante, por conseguinte, por meio dela o homem pode argumentar,

convencer, manipular, influenciar tanto de uma forma positiva como negativa.

Quando transporta o conceito de mediação para uma sala de aula, o

professor nessa visão poderá exercer um papel de extrema relevância como

mediador do conhecimento, por ser o par mais privilegiado (Vygotsky). Nesse

sentido, poderá dialogar e mediar a interação social entre os alunos, deixando de

lado aquela posição de detentor do saber. Ele saberá ouvir, construir o

conhecimento juntamente com os alunos de forma democrática e dialógica. Saberá

também a hora mais adequada de intervir para problematizar ou buscar soluções

para os conflitos de vozes durante a aula. Paralelamente, o aluno se tornará mais

participativo em sala de aula, tornando-se dessa forma um par mais colaborativo e

mediador.

Vygotsky preconiza que a aprendizagem sempre acontece antes do

desenvolvimento, isto é, o ensino deve vir antes, se antecipar ao conhecimento que

o aluno ainda não tem e nem consegue aprender sozinho. Este fato está relacionado

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com a zona de desenvolvimento proximal, que corresponde à distância entre o

desenvolvimento real de uma criança e aquele conhecimento que ela tem potencial

de aprender, ou seja, o potencial que ela tem para desenvolver uma competência

com a ajuda de um adulto, no caso o professor. Nesse sentido, temos o

desenvolvimento real que se refere ao conhecimento já adquirido ou formado, −

aquele que diz o que a criança já é capaz de fazer sozinha − e o outro nível é

desenvolvimento do potencial, isto é, a capacidade que a criança tem de aprender

com o par privilegiado.

Quando ocorre a aprendizagem, produz-se uma abertura nas zonas de

desenvolvimento proximal (distância entre aquilo que a criança faz sozinha e o que

ela é capaz de fazer com a intervenção de um adulto ou par privilegiado), isto é, a

distância entre o nível de desenvolvimento real e o potencial. Essa abertura refere-

se à potencialidade que a criança tem para aprender, ressaltando que essa

potencialidade varia de pessoa para pessoa. Assim, Freitas (2007, p.104) pontua,

Vygotsky elaborou o conceito de zona de desenvolvimento proximal, que tem importantes implicações educacionais. De acordo com esse conceito, todo bom ensino é aquele que se direciona para as funções psicológicas emergentes. Desta forma, o ensino deve incidir sobre a zona de desenvolvimento proximal, estimulando processos internos maturacionais que terminam por se efetivar, passando a constituir a base para novas aprendizagens. Ao atender a esse princípio, a escola estará dirigindo a criança para aquilo que ela ainda não é capaz de fazer, centrando-se na direção das potencialidades a serem desenvolvidas.

Esse é o grande desafio do professor: atuar na zona de desenvolvimento

proximal e criar condições para que o aluno dê um passo adiante no seu

desenvolvimento. Desse modo, a linguagem e as interações sociais com um adulto

ou companheiro privilegiado é fundamental para a aprendizagem e para o

desenvolvimento da criança. Quando acontece a internalização e a apropriação do

conhecimento, podemos dizer que as funções psicológicas humanas foram

formadas e construídas e com isso, acontece o crescimento e o desenvolvimento da

criança.

Freire (1996/2005, p.23) compartilha com esse conceito, em relação à

construção do conhecimento. Suas palavras ilustram e corroboram o exposto acima,

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“não há docência sem discência”; quem ensina, ensina alguma coisa a alguém. O

autor completa “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao

aprender”.

Em outros termos, em uma sala de aula, ao mesmo tempo em que o

professor ensina, − sendo o par mais privilegiado −, em outro momento, ele passa a

aprender com o aluno um determinado assunto que este domina mais do que ele.

Nesse caso, o aluno passa a ser o par mais privilegiado naquele momento. Assim,

ocorre uma troca de conhecimento e experiência, por meio da interação social.

Esse tipo de situação só é possível, na medida em que o professor dá voz

ao aluno, revozeia a sua voz e, o mais importante, legitima essa voz, ou seja, escuta

o aluno e em seguida responde o aluno, valorizando o que ele disse.

Os pressupostos teóricos de Vygotsky, a meu ver, apontam para uma escola

que privilegia a interação social, o diálogo, a dúvida, o questionamento e a

construção e negociação do conhecimento envolvendo todos os participantes. Essa

pesquisa trata a prática de leitura sob essa perspectiva, enfatizando o diálogo, de

acordo com Bakhtin temos que ouvir as “diferentes vozes” Este é, portanto, o

assunto que trato a seguir, Bakhtin e o dialogismo.

1.4.2 - Bakhtin e o dialogismo

Mikhail Mikahailovitch Bakhtin nasceu em Moscou em 1895 e viveu na

Rússia durante o período revolucionário. Sua obra é vasta, composta de mais ou

menos 33 livros e de vários artigos, abordando assuntos de diversas áreas do

conhecimento, desde literatura, arte, linguística, psicologia, até filosofia. Porém, a

autoria de algumas obras é cercada de enigma, pois algumas são atribuídas a

Volochinov e outros de Medviediev, integrantes do círculo onde Bakhtin também era

um dos participantes e mantinha um convívio intelectual. O assunto referente à

autoria tem sido motivo de celeumas e, ainda, é um assunto inconcluso.

O meu propósito não é investigar a autoria dos textos de Bakhtin, mas

discutir alguns conceitos atribuídos e difundidos por Bakhtin e seu Circulo, que se

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relacionam ao meu trabalho. Sobre a variedade de assuntos nos estudos de Bakhtin,

as palavras de Freitas (2007, p.117), reforçam minhas palavras,

... Bakhtin, um teórico da Literatura, um filósofo da Linguagem. Sua especialidade nesses campos constitui justamente em não ser um especialista. Sua incursão em outras áreas proporcionou-lhe uma visão unitária das ciências humanas, tornando-se um dos maiores pensadores.

No que tange a sua obra, é importante esclarecer que é difícil analisá-la

separadamente (Freitas, 2007), pois há entre os textos uma imbricação muito bem

arquitetada, formando um todo cujas partes se amalgamam. Podemos notar, nesse

sentido, que sua obra está atravessada por uma concepção dialógica da linguagem,

sendo este um dos principais temas nela recorrentes. Freitas (2007, p.118) comenta

que “a ele interessa todas as vozes, inclusive a do leitor, no momento em que

apreende e reconstitui seu pensamento numa nova síntese”.

O pensamento de Bakhtin fundamenta-se no materialismo dialético de Marx,

que tem a visão do homem como ser histórico e social e que se manifesta nas

relações sociais. A metodologia bakhtiniana é, portanto, segundo Freitas (2007)

“baseada no diálogo, que supõe o outro, a interação”.

Nessa esteira, podemos dizer que Bakhtin era totalmente avesso à visão

monológica, à explicação pura e simples, sem argumentação das partes envolvidas

e, por extensão, contrário a uma leitura única, unilateral, sem considerar o que o

outro pensa ou entende, enfim contrário a uma concepção de leitura nos moldes

tradicionais, cujas características já foram mencionadas. Bakhtin concebia o homem

como um sujeito social da e na história. As palavras de Freitas (2007, p.153),

ilustram essa visão:

... deu destaque ao sujeito em sua perspectiva dialética, valorizando a sua interação com o outro. Enfim, reconheceu o sujeito enquanto voz e texto. Em seu método não há lugar para a explicação, que considerou monológica. O importante para ele é a compreensão que implica na presença de duas consciências, no encontro de dois sujeitos imersos no diálogo.

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Nesse sentido, a compreensão implica na negociação, uma postura

dialógica, e não passiva diante de qualquer texto ou explicação. Ao ler um texto ou

ouvir uma explicação, de acordo com Bakhtin, adotamos uma atitude responsiva,

isto é, aceitamos, concordamos ou discordamos total ou parcialmente:

O ouvinte que recebe e compreende a significação (linguística) de um discurso adota simultaneamente, para esse discurso, uma atitude responsiva ativa: ele concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para executar, etc., e esta atitude do ouvinte está em elaboração constante durante todo processo de audição e de compreensão desde o início do discurso, às vezes já nas primeiras palavras emitidas pelo locutor. (Bakhtin,1992/2000, p.290)

Em outras palavras, sempre que lemos, conversamos com alguém ou

ouvimos uma explicação, o nosso interlocutor espera uma resposta, e a

compreensão responsiva é justamente essa fase, isto é, o locutor almeja uma

compreensão responsiva ativa, − uma resposta − e rejeita uma compreensão

passiva, ou seja, a ausência de uma resposta, para o que foi falado ou explicado:

A compreensão responsiva nada mais é senão a fase inicial e preparatória para uma resposta (seja qual for a forma de sua realização). O locutor postula esta compreensão responsiva ativa: o que ele espera, não é uma compreensão passiva que, por assim dizer, apenas duplicaria seu pensamento no espírito do outro, o que espera é uma resposta, uma concordância, de uma adesão, uma objeção, uma execução,etc.(Bakhtin, 1992/2006, p.291)

Os fundamentos teóricos de Bakhtin têm como base o dialogismo. Para

Bakthtin, a linguagem permeia toda a produção cultural. Nesse sentido a teoria

bakhtiniana é de natureza interativa da linguagem, ou seja, dialógica,

consequentemente, o dialogismo atravessa os processos mentais e sociais do

homem. Sobre esse assunto, Brait (2005/2008, p.88) observa,

A natureza dialógica da linguagem é um conceito que desempenha papel fundamental no conjunto das obras de Mikhail Bakhtin, funcionando como célula geradora dos diversos aspectos que singularizam e mantêm vivo o pensamento desse produtivo teórico.

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Vale salientar contudo, no que concerne à linguagem, que para Bakhtin ela

está relacionada com a visão de mundo da pessoa, assim, de acordo, com Brait

(2005/2008, p.88),

O conceito de linguagem que emana dos trabalhos desse pensador está comprometido não com uma tendência linguística ou uma teoria literária, mas com uma visão de mundo que, justamente na busca das formas de construção e instauração de sentido, resvala pela abordagem linguístico-discursiva, pela teoria da literatura, pela filosofia, pela teologia, por uma semiótica da cultura, por um conjunto de dimensões entretecidas e ainda não decifradas.

A noção de dialogismo, segundo Bakhtin, ultrapassa as fronteiras do

significado do diálogo, isto é, da interação verbal entre duas ou mais pessoas. Desta

forma, o conceito de diálogo de acordo com Bakhtin/Volochínov (1992/2006, p.127)

é o seguinte:

O diálogo, no sentido estrito do termo, não constitui, é claro senão uma das formas, é verdade que das mais importantes, da interação verbal. Mas pode-se compreender a palavra “diálogo” num sentido mais amplo, isto é, não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja.

Segundo o mesmo autor (1992/2006), a interação social que ocorre com as

enunciações é o elemento absolutamente essencial que constitui a língua. E a

função da interação social é justamente a comunicação:“A língua vive e evolui

historicamente na comunicação verbal concreta” (Bakhtin/Volochínov, 1992/2006).

Relacionados os conceitos de Bakhtin com uma aula de leitura, podemos

dizer que a leitura como evento social vai ao encontro dos aportes teóricos de

Bakhtin, pois de acordo com essa concepção de leitura, privilegiam-se a interação

social e os diálogos entre os participantes do evento. O sentido do texto é

negociado, partilhado e favorece as múltiplas leituras, pois o aluno é considerado um

ser social. Nesse sentido, cada aluno pensa e reage de forma diferente do outro,

ocorrendo aí uma heterogeneidade de pensamentos e opiniões.

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Abaixo reproduzo as palavras de (Bahktin/Volochínov, 1992/2006, p.127)

que ilustram o acima exposto,

O livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui igualmente um elemento da comunicação verbal. Ele é objeto de discussões ativas sob a forma de diálogo e, além disso, é feito para ser apreendido de maneira ativa, para ser estudado a fundo, comentado e criticado no quadro do discurso interior, que se encontram nas diferentes esferas da comunicação verbal (crítica, resenhas, que exercem influência sobre os trabalhos posteriores, etc).

Em outras palavras, para entender um texto, ocorre o que Bakhtin

(1992/2006) considera como “discussões ativas sob a forma de diálogo”, são vozes

diferentes que se alternam: a fala de um aluno, suscita a de outro, ocorre com isso a

atitude responsiva. Durante a negociação, à medida que os alunos vão construindo

o sentido do texto, ocorre o que Bakhtin denomina de compreensão responsiva

ativa. No que concerne ao aspecto acima, Fiorin (2006/2008, p.6) afirma:

Toda compreensão de um texto, tenha ele a dimensão que tiver, implica, segundo Bakhtin uma responsividade e, por conseguinte, um juízo de valor. O ouvinte ou o leitor, ao receber e compreender a significação linguística de um texto, adota, ao mesmo tempo, em relação a ele uma atitude responsiva ativa: concorda ou discorda, total ou parcialmente; completa; adapta; etc. Toda compreensão é carregada de resposta. Isso quer dizer que a compreensão passiva da significação é apenas parte do processo global de compreensão. O todo é a compreensão ativa, que se expressa num ato real de resposta.

Convém salientar contudo, que a palavra diálogo, normalmente nos remete a

uma situação de acordo, “chegar a uma conclusão”, ao inferir que pode nos levar a

uma situação de consenso, de convergência, mas também, muitas vezes, cada

participante do diálogo pode manter uma posição contrária em relação ao outro.

Situação idêntica acontece em um evento de leitura. Muitas vezes temos

leituras diferentes, levando-se em consideração as idiossincrasias dos participantes.

A expressão usada por Bakhtin que ilustra o que foi dito acima é ”um tenso combate

dialógico ocorrer nas fronteiras”, lembrando que as relações dialógicas também

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suscitam tensões no seu transcorrer. As palavras de Faraco (2009, p.69) corroboram

as palavras acima:

... que qualquer enunciado é uma unidade contraditória e tensa de duas tendências opostas da vida verbal, as forças centrípetas e as forças centrífugas.

Assim, o diálogo, no sentido amplo do termo (“o simpósio universal‟), deve ser entendido como um vasto espaço de luta entre as vozes sociais (uma espécie de guerra dos discursos), no qual atuam forças centrípetas (aquelas que buscam impor certa centralização verboaxiológica por sobre o plurilinguismo real) e forças centrífugas (aquelas que corroem continuamente as tendências centralizadoras, por meio de vários processos dialógicos tais como a paródia e o riso de qualquer natureza, a ironia, a polêmica explícita ou velada, a hibridização ou a reavaliação, a sobreposição de vozes etc)

Pelo exposto acima, percebe-se que o pensamento bakhtiniamo é contrário

ao discurso monológico, por extensão, é contrário também à educação bancária,

assim como à explicação pura e simples, sem que haja argumentação, construção

de um conhecimento, em outras palavras a uma leitura única. Sendo coerente com a

visão de leitura como prática social, não poderia deixar de mencionar os

pensamentos de Freire que trato a seguir.

1.4.3 - Paulo Freire – A educação é um ato político

Paulo Freire - educador brasileiro de renome internacional - idealizador do

método de alfabetização de adultos, autor de inúmeros livros, dentre os quais

podemos destacar “Pedagogia do Oprimido”, no qual critica a educação que ele

denomina de bancária. De acordo com o autor, o professor em uma visão bem

tradicional de ensino, considera-se como o detentor do saber e deposita o

conhecimento no aluno passivo e dócil.

Em outros termos, o ato de ensinar é considerado como uma doação do

conhecimento, pois o professor, nessa visão, é o detentor de todo o saber. Esse tipo

de ensino, segundo o autor, tem o poder de alienar, pois o aluno desempenha o

papel de receptor do conhecimento.

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Contrariamente ao que prega a educação bancária, que representa o ensino

como transmissão, Freire (1970/2005) apregoa que o ensino deve propiciar

condições para a produção do conhecimento e retira do professor essa

característica de detentor do saber. Além disso, o autor diz que “os homens se

educam entre si mediados pelo mundo”, originando uma das bases do seu

pensamento: em sala de aula, ambos os lados aprendem juntos, um com o outro.

Para que isso ocorra é imprescindível que as relações entre professor e aluno sejam

permeadas pela afetividade e democracia, propiciam com isso, uma atmosfera de

confiança mútua e consequentemente, a possibilidade de ambos expressarem

livremente seus pensamentos. Destaco com esse conceito a idéia da construção do

conhecimento tendo como referência o lado social, e a interação entre professor e

aluno, as palavras dele (Freire, 1970/2005, p.79) ilustram esse pensamento:

Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa.Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os “argumentos de autoridade” já não valem. Em que, para ser-se, funcionalmente, autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas.

Com relação ao pensamento acima exposto, tanto Vygotsky, como Bakhtin

e Freire compartilham que o conhecimento é uma construção social, cada um a seu

modo. Além disso, outro aspecto salientado por Freire é o respeito à cultura do

aluno, a que ele já tinha antes de entrar na escola, tanto que seu método tem como

característica as chamadas palavras geradoras, que são as palavras significativas

do cotidiano do aluno. Vygotsky também valoriza o conhecimento prévio do aluno.

É importante salientar também que, um dos pensamentos basilares da obra

de Freire refere-se à educação como ato político, no sentido de que a educação é

um ato que transforma, e que o professor não deve ter como prática a educação

bancária, que mantém o aluno passivo, alienado. A educação deve ser

emancipadora, uma educação para a libertação do aluno. Nesse sentido, segundo

Palmer (2010, p.163) discorrendo sobre Freire,

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... a educação é sempre um ato político. Essa idéia não foi um mero slogan para ele. De fato, é central para a compreensão da teoria de educação de Freire. Para ele, a educação envolve sempre relações sociais e, portanto, necessariamente escolhas políticas.

O autor alerta também para o fato, das políticas e as práticas pedagógicas

estarem sempre atreladas a uma ideologia, nunca são neutras. Nesse sentido, elas

podem manter uma situação que favoreça as mazelas sociais, bem como podem se

encaminhar para uma educação democrática, indicando com isso, uma

transformação social.

Com relação a esse assunto, muitos autores concordam com essa visão de

educar e produzir conhecimento: Moita Lopes (2009, p.20) cita Boaventura Santos

(2006) que concorda que “produzir conhecimento é uma forma de politizar a vida

social:“ um paradoxo para muitos que ainda acreditam em ciência como produção de

verdade”. Além desse autor, muitos outros no campo da sociologia, da geografia e

nos estudos culturais, têm pensamentos semelhantes, no que diz respeito à

temática, como podemos verificar nas palavras de Moita Lopes (2009, p.21):

... têm chamado a atenção para a necessidade de ouvir as vozes das periferias ou daqueles que foram alijados dos benefícios da modernidade (os negros, os homossexuais, as mulheres, os povos colonizados etc), não só como uma forma de produzir conhecimento sobre eles, mas principalmente pelo interesse em entender como suas epistemes, desejos e vivências podem apresentar alternativas para o nosso mundo.

Aliado ao que foi exposto acima, o mesmo autor (2009, p.22) nos alerta que

devemos nos ater à inteligibilidade quando se refere aos nossos estudos, quando

problematizamos “a produção do conhecimento e o poder por trás de tal prática”. O

autor ainda acrescenta a relação entre a pesquisa e seu aspecto político, em suas

palavras abaixo:

Em um mundo atravessado pelo poder de forma multidirecionada e que apresenta desafios para uma série de significados sobre quem somos, que constituíram o cerne da modernidade, é crucial pensar formas de fazer pesquisa que sejam também modos de fazer política ao tematizar o que

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não é tematizado e ao dar a voz a quem não tem.(Moita Lopes, 2009, p. 22)

Freire prega que o homem é um ser social, produto da sua cultura e da sua

história. Então, para entendê-lo é imprescindível saber sobre o contexto social em

que está inserido.

Vygotsky, Bakhtin e Freire, cada um a sua maneira, embasam teoricamente

a minha pesquisa. Os três assumidamente levam em consideração o lado social do

ser humano. Nesse sentido a interação social, o diálogo, dar voz ao aluno, retirá-lo

da passividade, fazê-lo participar, importar-se com a sua opinião e, a partir dessa

perspectiva, construir o conhecimento com os alunos.

Os três autores travaram uma luta contra a alienação do ser humano: Freire,

reivindicando educação para os que não tiveram chances, com um ensino de boa

qualidade, conscientização do aluno por meio da educação; Bahtin por sua vez, no

uso da concepção dialógica da linguagem e Vygotsky pregava que o homem

constituía-se como sujeito nas relações sociais por meio da linguagem.

Segundo Freitas (2007), embora os estudos de Vygotsky e Bakhtin tenham

pontos em comum e, − a despeito de terem nascidos na Rússia e serem

contemporâneos −, não se tem conhecimento de um encontro entre os dois.

Com relação aos seus estudos, pode-se destacar, por exemplo, que ambos

se preocuparam em “encontrar a dialética do subjetivo e do objetivo”, tendo como fio

condutor a linguagem A linguagem, na visão dos dois autores, é que dá sentido às

coisas, isto é, Bakhtin com o dialogismo e as questões ideológicas e Vygotsky, por

seu lado, com a teoria social do conhecimento. Para Vygotsky, nas relações sociais

e utilizando-se da linguagem, o homem se constitui como sujeito.Era preocupação

de ambos a luta contra a alienação e as questões sociais.

Nesse sentido, suas teorias reforçam a prática da leitura como evento social,

na medida em que essa prática requer a construção do sentido do texto por meio da

interação social, do diálogo. Resgata a autonomia do aluno e ele assume ser o

sujeito da construção do seu conhecimento. Além disso, requer uma atitude e

compreensão responsiva ativa por parte do aluno. De acordo com Zanotto (1995),

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ao aluno é dado o direito de ter voz na sala de aula e, o mais importante, o professor

na construção do sentido do texto, legitima a voz do aluno.

Por conseguinte, nós professores, com essa prática, ao mesmo tempo em

que estamos ensinando, também aprendemos e muito com os alunos, na interação,

no diálogo. Estamos transformando nossa prática, valorizando o aluno, tirando-o da

passividade, e fortalecendo-o para que essa característica ultrapasse os muros

escolares, ou seja, que ele seja um ser humano participativo, consciente e que da

mesma forma que é respeitado, ouvido, também saiba respeitar, ouvir, enfim saiba

construir saberes conjuntamente e a partir daí ser um cidadão melhor em uma

sociedade também melhor e mais justa.

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CAPÍTULO 2 - METODOLOGIA DE PESQUISA

Neste capítulo, atenho-me à explicação de minhas escolhas, quanto à

metodologia de pesquisa utilizada para geração de dados: o paradigma qualitativo

de pesquisa. Esta corrente de pesquisa surge em oposição ao paradigma

quantitativo de pesquisa. Nesse sentido, considero apropriado tecer comentários

sobre as diferenças entre ambos e fazer um breve histórico da transição de um

paradigma para outro. Além disso, discorro sobre a Pesquisa Interpretativista e a

Pesquisa-Ação, sobre o contexto e os participantes da pesquisa. Finalizando,

discuto sobre a geração de dados, em que utilizei o Pensar Alto em Grupo, bem

como, teço comentários sobre os textos trabalhados nas vivências de leitura.

2.1 - Breve histórico – Transição Paradigma Quantitativo para o Paradigma

Qualitativo

As pesquisas nas áreas de Linguística Aplicada, Educação e Ciências

Sociais estão atreladas basicamente a dois paradigmas: o Quantitativo (embasado

no Positivismo e, por isso, também tratado como paradigma positivista) e o

Qualitativo.

O paradigma positivista, que teve como precursor Comte, predominou por

várias décadas nas ciências humanas, mais precisamente a partir de meados do

século XIX, até início do século XX. O positivismo teve seu início nas Ciências

Exatas e depois foi utilizado pelas Ciências Sociais. Este paradigma se caracteriza

pela objetividade, pelo rigor dos conhecimentos científicos, pela ausência da

subjetividade, pela negação da investigação e da valorização exacerbada da teoria.

Essa corrente teve fortes influências no Brasil e tem como sua

representação máxima, o emprego da frase positivista “Ordem e Progresso”, − em

plena bandeira brasileira −, extraída da fórmula máxima do Positivismo: "O amor por

princípio, a ordem por base, o progresso por fim”. A frase tenta passar a imagem de

que cada coisa em seu devido lugar conduziria para a perfeita orientação ética da

vida social.

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De acordo com Bortoni-Ricardo (2008, p.31), no início de século XX, o

positivismo vai perdendo espaço para o paradigma qualitativo, em decorrência da

valorização do contexto sócio-histórico que propicia o entendimento dos fatos das

Ciências Sociais.

Contudo, os pesquisadores qualitativos são alvo de críticas por parte dos

positivistas. Segundo as afirmações de Denzin & Lincoln (2006/2008, p.22) “os

novos pesquisadores qualitativos escrevem ficção, e não ciência, e que tais

pesquisadores não dispõem de nenhum método para verificar o que é declarado

como verdade”. As acusações desta natureza tinham por objetivo sobrepor-se ao

pensamento do outro, evidenciando uma grande resistência ao qualitativo (Denzin &

Lincoln), originou, com isso, um conflito entre as duas vertentes.

Enquanto a pesquisa quantitativa tem o foco na medição e relaciona as

causas com as variáveis, nota-se que os processos e os valores não são

enfatizados. Desse modo, percebe-se uma relação diametralmente oposta em

relação à pesquisa qualitativa. A própria denominação nos remete à valorização das

qualidades dos envolvidos, dos processos e dos significados. Denzin & Lincoln

afirmam que os “significados não são examinados ou medidos experimentalmente”.

Na realidade, é questionada a possibilidade desse fato acontecer, ou seja, a

medição dos significados, em termos de quantidade, volume, intensidade ou

frequência.

Na pesquisa qualitativa, a natureza social da realidade e os valores da

investigação, assim como a relação entre o pesquisador e o que é estudado são

relevantes. Outro ponto a se ressaltar, em relação à pesquisa qualitativa, é a

preocupação em intensificar o modo como as experiências sociais são

desenvolvidas e como elas assumem seus significados (Denzin & Lincoln,

2006/2008, p.23).

O século XX foi considerado um século de grandes avanços nas Ciências

Humanas e Sociais, bem como nas pesquisas e o paradigma qualitativo teve seu

espaço consolidado (Chizzotti, 2006, p.57).

Feitas as considerações sobre a transição do paradigma quantitativo para o

qualitativo, passo agora a discorrer sobre o Paradigma Qualitativo.

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2.2 - Paradigma Qualitativo

O paradigma Qualitativo teve sua origem na Antropologia e na Sociologia. É

uma abordagem com uma perspectiva diferente da adotada pelo Positivismo. Dentre

outros aspectos, cito um que merece destaque: ela se preocupa em entender os

significados dos fatos e não precisamente em quantificá-los e mensurá-los (Minayo,

1993/1994, p.21). Podemos observar a ratificação do exposto acima, nas palavras

de Celani:

O paradigma qualitativo, ao contrário, particularmente quando de natureza interpretativista, nos remete ao campo da hermenêutica, no qual a questão da intersubjetividade é bastante forte.(Linguagem & Ensino, Vol.8, n 1, 2005, p.101-122).

Segundo André (1995/2008, p.16), a hermenêutica refere-se a “uma

abordagem metodológica que se preocupa com a interpretação dos significados

contidos num texto”, sugerida por Dilthey para as pesquisas nas Ciências Sociais.

Sua natureza é contrária ao objetivismo e a interpretação se daria na compreensão

da realidade vivida socialmente, tendo como base a construção de significados nas

relações intersubjetivas. Chizzotti (2006, p.46) assim define,

a hermenêutica e as categorias do mundo histórico foram reunidas, no ano de 1910, em O mundo histórico (1944). O autor, em suma, propõe duas orientações epistemológicas autônomas: a compreensão (Verstehen) em ciências humanas, que envolve o diagnóstico interpretativo e reflexivo sobre o significado dos eventos à qual contrapõe a explanação ou explicação (Erklaren) em ciências naturais, que busca a descrição da coisa em si, independente da consciência. Esta distinção bipolar das ciências tornou-se um mote antipositivista, trabalhada e difundida por ele.

Nesse sentido, a relevância da metodologia qualitativa de pesquisa prende-

se ao fato da ênfase que ela dá às relações sociais (Chizzotti, 1991/2009, p.80), que

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permeiam os acontecimentos pesquisados como um todo, relações cujo significado

não é passível de ser apreendido objetivamente como dado matemático.

Dito de outra forma, se por um lado, no quantitativo, a linguagem

característica é o rigor científico e matemático, no qualitativo a linguagem tem como

referência o contexto sócio-histórico-cultural em que estão inseridos os sujeitos

pesquisados e pesquisadores. A interpretação, do sentido das interações sociais e

dos fatos que as suscitam não são efetuados de forma artificial e isolada do seu

contexto. Muito pelo contrário, todos os aspectos relacionados são muito

valorizados.

Por esse motivo, podemos observar que nas últimas décadas tem havido um

enorme interesse na utilização dessa metodologia, principalmente por causa da

observância das desigualdades sociais, culturais e fatores como localização, tempo

e situação, ou “pluralização de estilos de vida”, como denomina Flick (2009). Nesse

sentido, em decorrência da enorme variedade de situações sociais que

presenciamos hoje em dia, as pesquisas necessitam utilizar-se de estratégias

indutivas, isto é, as pesquisas não podem se ater a simples aplicação da teoria à

situação, mas ao contrário, as teorias seriam desenvolvidas a partir dos estudos

empíricos.

Bortoni-Ricardo (2008), por sua vez, diz que a pesquisa qualitativa substitui

a pesquisa quantitativa, pois nas Ciências Sociais não se poderiam desprezar o

contexto sócio-histórico.

De acordo com Minayo (1993/1994), a pesquisa qualitativa tem como

objetivo as questões não mensuráveis, que não podem ser quantificadas,

relacionadas com os significados, valores, crenças e atitudes das ações e relações

humanas. Em consonância com essa afirmação, Minayo afirma:

Essa corrente teórica, como o próprio nome indica, coloca como tarefa central das Ciências Sociais a compreensão da realidade humana vivida socialmente. Em suas diferentes manifestações, como na Fenomenologia, na Etnometodologia, no Interacionismo simbólico, o significado é o conceito central de investigação. (1993/1994, p.23)

Corroborando com o exposto acima, Chizzoti (1991/2009) afirma:

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A abordagem qualitativa parte do fundamento de que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, uma interdependência viva entre o sujeito e o objeto, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito. O conhecimento não se reduz a um rol de dados isolados, conectados por uma teoria explicativa: o sujeito-observador é parte integrante do processo de conhecimento e interpreta os fenômenos, atribuindo-lhes um significado. O objeto não é um dado inerte e neutro; está possuído de significados e relações que sujeitos concretos criam em suas ações. (1991/2009, p.79)

A seguir, discuto sobre a Pesquisa Interpretativista, procurando entender

como poderei fazer a análise dos dados gerados.

2.3 - Pesquisa Interpretativista

A metodologia que utilizei na minha pesquisa encontra referencial teórico no

Paradigma Qualitativo. Segundo Bortoni-Ricardo (2008), o microcosmo de uma sala

de aula é o lugar onde favorece a pesquisa qualitativa de base intepretativista.

A pesquisa interpretativista surge com o advento da pesquisa qualitativa no

início do século XX. Seu cerne são as práticas sociais e seus significados,pois, nas

Ciências Sociais não se concebe a pesquisa sem se ater à presença do homem na

sociedade e suas relações com os outros homens.

Em outros termos, na pesquisa interpretativista, a concepção subjacente à

produção de conhecimento considera que o acesso ao fato ou objeto a ser

pesquisado deve levar em conta a visão de mundo do pesquisado. Só a partir dessa

idéia é possível fazer uma interpretação dos vários significados que formam o

contexto a ser analisado. Entende-se então por visão de mundo as crenças, as

questões relativas ao poder, a ideologia, a história e a subjetividade do homem. O

homem se constitui como ser social pela sua visão de mundo, então, pode-se dizer

que existe uma relação estreita entre o homem e o mundo social.

Nesse sentido, a padronização e a generalização tornam-se muito difíceis

para a pesquisa qualitativa, pois se lida com seres humanos, imersos em sua

multiplicidade de significados. Dessa forma, a subjetividade e a intersubjetividade

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são as características que fomentam os significados atribuídos pelo ser social ao

mundo. De acordo com Moita Lopes (1994, p.332),

E é justamente a intersubjetividade que possibilita chegarmos mais próximo da realidade que é constituída pelos atores sociais – ao contrapormos os significados construídos pelos participantes do mundo social. O foco é, então, colocado em aspectos processuais do mundo social em vez do foco em um produto padronizado.

A pesquisa interpretativista considera a “complexidade e as contradições de

fenômenos singulares, a imprevisibilidade e a originalidade criadora das relações

interpessoais e sociais” (Chizotti, 1991/2009, p.78), intensificando as qualidades dos

fenômenos e desvelando os significados ocultos da vida social.

Em outras palavras, a realidade depende de cada olhar, por conseguinte, o

entendimento da realidade é individual. Como diz Moita Lopes (1994, p.331): “O que

é específico, no mundo social, é o fato de os significados que caracterizam serem

construídos pelo homem, que interpreta e re-interpreta o mundo a sua volta, fazendo

assim, com que não haja uma realidade única, mas várias realidades”.

Nesse sentido, o que realmente interessa não é o que a pessoa diz, mas o

quê e como o seu interlocutor entende e interpreta, o jogo social permeado pela

linguagem. Esse jogo está relacionado com o poder, ideologia, história e

subjetividade. De acordo com as palavras de Moita Lopes (1994), “o significado não

é o resultado da intenção individual, mas da inteligibilidade inter-individual”. Dito de

outra forma, o significado é construído pela intersubjetividade dos interlocutores.

Contrariamente à Positivista, de acordo com André (1995/2008), a pesquisa

Interpretativista “busca a interpretação em lugar da mensuração, a descoberta em

lugar da constatação, valoriza a indução e assume que fatos e valores estão

intimamente relacionados, tornando-se inaceitável uma postura neutra do

pesquisador”.

No que tange aos valores, ao poder de transformação e à natureza de não

neutralidade da ciência, Denzin & Lincoln (2006/2008, p.17) afirmam que no início do

século XXI, as pesquisas qualitativas devem ter uma preocupação mais humana,

interligando-se com a esperança, visando a uma sociedade democrática e livre.

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Nesse sentido, todo conhecimento gerado nas pesquisas tem implicações políticas e

repletas de valores, apontando para uma “ciência social cívica baseada em uma

política da esperança”.

Em consonância com esse pensamento, Moita Lopes (2009, p.22) também

tem uma preocupação em criar inteligibilidade nas pesquisas. Assim ele se expressa

sobre o assunto,

Em um mundo atravessado pelo poder de forma multidirecionada e que apresenta desafios para uma série de signficados sobre quem somos, que constituíram o cerne da modernidade, é crucial pensar formas de fazer pesquisas que sejam também modos de fazer política ao tematizar o que não é tematizado e ao dar a voz a quem não tem.

Com a discussão da Pesquisa Interpretatista, ficou claro que eu tenho que

levar em consideração todo o contexto sócio-histórico-cultural da minha pesquisa.

Então, para poder fazer uma análise global dos dados gerados, tenho que levar em

consideração esse contexto e ter uma postura democrática. Passo agora a discorrer

sobre a Pesquisa-Ação.

2.4 - Pesquisa-Ação

Ao pesquisar as teorias que permeiam as concepções de leitura, tinha como

objetivo investigar a minha prática em sala de aula, mais especificamente, as aulas

de leitura, isto é, qual era o motivo dos alunos não gostarem de ler.

Percebi então, que queria que houvesse uma transformação nas minhas

práticas pedagógicas e também no comportamento dos meus alunos, no que se

refere ao tema leitura.

Optei pela Pesquisa-Ação porque esta metodologia de pesquisa, dentre

outras características, possibilita ao pesquisador uma reflexão, visando a uma

transformação no seu proceder. Apoio-me então, nas palavras de André (1995/2008,

p.31) que assim se refere a Pesquisa-Ação:

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Já em 1944 Lewin descrevia o processo de Pesquisa-Ação, indicando como seus traços essenciais: análise, coleta de dados e conceituação dos problemas; planejamento da ação, execução e nova coleta de dados para avaliá-la; repetição desse ciclo de atividades.

A mesma autora cita que ”um exemplo clássico é o professor que decide

fazer uma mudança na sua prática docente e a acompanha com um processo de

pesquisa, ou seja com um planejamento de intervenção” (André, 1995/2008, p.31),

processo semelhante ao meu proceder, durante o transcorrer da minha pesquisa.

Endossando as palavras acima, Barbier (2007, p.35) citando Wilfred Car e

Stephen Kemmis (1983) define a Pesquisa-Ação “como uma forma de pesquisa

efetuada pelos técnicos a partir de sua própria prática”, André (1995/2008, p.32)

completa “devem ser sistematicamente submetidas a observação, reflexão e

mudança”.

Nesse sentido, entendo que a metodologia da Pesquisa-Ação possibilita um

olhar mais atento para a minha própria prática em sala de aula e, consequentemente

uma reflexão que irá me indicar um caminho para as mudanças, para um ensino de

melhor qualidade.

Outro aspecto a ser considerado, diz respeito às mudanças que queremos

efetuar em nossas vidas, pois estas só acontecem se realmente as quisermos, se

refletirmos e tivermos uma autocrítica em relação à nossa postura. Barbier (2007,

p.29) citando Kurt Lewin, afirma,

Quando nós falamos de pesquisa, subentendemos Action-Research, quer dizer, uma ação em um nível realista sempre seguida por uma reflexão autocrítica objetiva e uma avaliação dos resultados. Uma vez que o nosso objetivo é aprender rapidamente, nunca teremos medo de enfrentar nossas deficiências. Não queremos ação sem pesquisa, nem pesquisa sem ação (citado por Marrow, 1972)

Dessa discussão pude perceber que antes de agir tenho que refletir sobre

meus atos, meus equívocos, meus acertos e agir de forma a buscar uma mudança

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nas minhas práticas em sala de aula. Isso posto, faço uma explanação do contexto

da minha pesquisa.

2.5 - O Contexto da pesquisa

As vivências do Pensar Alto em Grupo para geração de dados foram

realizadas em uma Unidade Escolar da Secretaria da Educação do Estado de São

Paulo, situada em um bairro da cidade de São Paulo.

A Unidade Escolar atende alunos do Ensino Fundamental e Médio em 13

salas, em todos os períodos ( manhã, tarde e noite ). Localiza-se em uma avenida

muito movimentada do bairro, tanto em termos de trânsito, como pelo grande

número de casas comerciais existentes. A população do bairro em sua maioria é

composta de trabalhadores do comércio local, muitos deles migrantes da região

norte e nordeste e alguns de outras regiões do país, ou mesmo de outras cidades do

estado.

É muito comum a escola receber alunos, no decorrer do ano, provenientes

de outros estados ou cidades. Muitas vezes, no entanto, devido a problemas

pessoais, esses mesmos alunos retornam para suas cidades ou estados de origem

antes do término do ano letivo. Às vezes oficializam na escola seu retorno, quando

não o fazem, é caracterizado como abandono, evasão, pois não se manifestam junto

à secretaria da Unidade Escolar. Além disso, no período noturno, os alunos

priorizam o trabalho: caso tenham que optar entre trabalhar e frequentar a escola,

sempre ficam com a primeira opção. Alguns alunos frequentam os cursos do Senai e

ETE, vislumbrando uma formação técnica para exercer uma profissão. Muitos deles

já trabalham em áreas relacionadas aos cursos técnicos, como por exemplo:

mecânica, eletrônica, impressão gráfica, torneio mecânico, etc.

A gravidez também é muito comum nessa fase. Presenciei algumas meninas

grávidas no Ensino Fundamental, algumas jovens no Ensino Médio já com filhos,

meninas precoces em vários aspectos.

Nota-se também, que muitas vezes os alunos frequentam a escola por

causa da merenda e a escola, cumprindo seu papel social, muitas vezes acaba

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sendo um ponto de encontro. Percebi uma carência muito grande dos alunos por

querer conversar com os professores, contar seus problemas, manter uma amizade,

algum conselho, uma opinião.

De maneira geral, os alunos iniciam seus estudos na 5a série do EF

permanecendo até o 3º ano do EM na Unidade Escolar. Além disso, eles se

conhecem, muitos são irmãos, primos, vizinhos, tios. Enfim, sempre tem uma

relação anterior à escola entre eles.

Apresento a seguir os participantes da minha pesquisa.

2.5.1 - Participantes da vivência

Participaram desta pesquisa alunos dos 2ºs anos do Ensino Médio do

período noturno. Todos eles, alunos de uma mesma Unidade Escolar, já descrita

acima e eu, professora-pesquisadora participante da pesquisa.

Resolvi trabalhar com os alunos, formando grupo focal (Gatti, 2005), porque

facilitaria o desenvolvimento da pesquisa, na medida em que as vivências seriam

gravadas em áudio. O grupo formado era composto de alunos dos 2ºs anos do

Ensino Médio do período noturno. Todos eles se conheciam, então não tive

problemas em relação a um entrosamento entre eles. Muitos já tinham estudado na

mesma sala, outros já se conheciam do Ensino Fundamental.

Falei sobre a pesquisa e os alunos concordaram em participar por livre e

espontânea vontade. Enfatizei o acordo ético, dizendo que seus nomes não seriam

mencionados, preservando tanto os alunos como a escola. De acordo com Bortoni-

Ricardo (2008, p.57), “a pesquisa tem de ser regida por rígidos princípios de ética”,

mantendo um respeito com todos os participantes, tranquilizando-os quanto às

criticas ou quaisquer observações negativas, pautando pelo sigilo. Celani (2005,

p.106) citando Warwick (1982) afirma o seguinte: “O que se pretende evitar são

danos e prejuízos para os participantes de pesquisas, para os próprios

pesquisadores, para a profissão e para a sociedade em geral”. A mesma autora

acrescenta:

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É preciso ter claro que pessoas não são objetos e, portanto, não devem ser tratadas como tal; não devem ser expostas indevidamente. Devem sentir-se seguras quanto a garantias de preservação da dignidade humana. Pode haver danos e prejuízos, também para os pesquisadores, em suas interações com colegas, com alunos de pós-graduação e com jovens iniciantes de iniciação científica. Para a profissão e a sociedade em geral, a perda de confiança na pesquisa e nos pesquisadores pode representar danos irreparáveis. (Celani, 2005, p.107)

Os encontros foram realizados no período da noite, uma vez que eles

trabalham durante o dia e muitos deles também aos sábados. O tempo de cada

vivência foi de aproximadamente 1 hora e 30 minutos, antes do início da aula. Foi-

lhes esclarecido que o encontro e a vivência estão sendo empregados com o

mesmo significado, ou seja, um evento de leitura no qual alunos participantes e

professora-pesquisadora interagem entre si, para a construção de sentidos do texto

com a utilização do Pensar Alto em Grupo.

Nesse sentido, na primeira vivência com a letra da canção “Meu Guri”,

estavam presentes 6 alunos, sendo 4 meninas e 2 meninos. São eles:

1. Maria

2. Joana

3. Claudia

4. Cristina

5. João

6. José

Com relação à segunda vivência com a letra da canção “Roda-Viva”,

também estavam presentes 6 alunos. Somente Cristina, João e José participaram

das duas vivências.

1. Sonia

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2. Vera

3. Lucia

4. Cristina

5. João

6. José

De acordo com os documentos do comitê de ética, os nomes dos

participantes foram trocados, para preservar tanto os alunos como a escola,

evitando dessa forma, quaisquer constrangimentos e exposição e possíveis críticas

negativas que por ventura os dados coletados pudessem suscitar, tanto no presente

momento, como no futuro. De acordo com as palavras de Bortoni-Ricardo (2008):

... que todos os dados coletados terão caráter sigiloso e que qualquer divulgação, na forma de relatórios, tese, monografias etc., será discutida previamente com os professores envolvidos.Eles também terão de informar se desejam que seus nomes apareçam nos relatórios de pesquisa ou se preferem permancer anônimos.Em suma, a pesquisa tem de ser regida por rígidos princípios de ética, que preservem os colaboradores que dela se dispuserem a participar. (Bortoni-Ricardo, p.57)

Apresentados os participantes da pesquisa, a seguir discorro sobre como

será a geração de dados.

2.5.2 - Geração de dados na Pesquisa Interpretativista

Minha pesquisa se ajusta na pesquisa qualitativa, cujos fundamentos estão

em consonância com a Linguística Aplicada, Ciências Social e Humana, em que

meus estudos estão inseridos.

Na Pesquisa Qualitativa, a geração de dados deve ser feita por um

pesquisador/observador que esteja ligado ao contexto a ser analisado e não por um

observador passivo e estranho. Então, privilegia o desvelamento do sentido social

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que os indivíduos constroem em suas interações cotidianas e preocupa-se com a

compreensão que esses mesmos indivíduos têm dos acontecimentos

cotidianos.(Chizzoti, 1991/2009, p.80). Além disso, de acordo com mesmo autor: “O

pesquisador é um ativo descobridor do significado das ações e das relações que se

ocultam nas estruturas sociais”. (p.80).

Apresento a seguir o Pensar Alto em Grupo, instrumento de pesquisa da

geração de dados.

2.5.2.1 - Pensar Alto em Grupo

O Pensar Alto em Grupo (Zanotto, 1995), além de ser um instrumento de

pesquisa, é também um instrumento pedagógico, utilizado em eventos de leitura

como prática social, que se pauta na valorização da subjetividade do leitor. Dessa

forma a construção de sentido da leitura é negociada entre os participantes do

evento e tem como ponto de partida o conhecimento e a visão de mundo dos

leitores. A construção de sentidos então é efetuada na interação entre os

participantes, tendo como princípio as múltiplas leituras e as inferências possíveis

que o texto permite.

Esta técnica é investigada pelo GEIM (Grupo de Estudos da Indeterminação

da Metáfora) que está inserido na Linguística Aplicada, sob a coordenação da Profa.

Drª Mara Sophia Zanotto, grupo em que minha pesquisa está inserida.

É importante salientar que, com a utilização do Pensar Alto em Grupo, como

instrumento pedagógico, além de encorajar a participação do aluno nas aulas,

motiva-o a ser uma pessoa participativa e consequentemente fortalece o exercício

da sua cidadania, desde os bancos escolares até além dos muros da escola.

Na introdução deste trabalho, mencionei que minha pesquisa se iniciou com

os alunos das 6ªs séries, porém, fui transferida para o período da noite. Fiz uma

experiência com as 6ªs séries, utilizando a vivência do protocolo verbal com a sala

toda, além de já ter trabalhado com eles, obviamente, com grupo focal. Tal

experiência deveu-se ao fato de eu querer saber, como seria uma aula utilizando-se

o Pensar Alto em Grupo nessas circunstâncias.

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Porém, pude perceber que não foi uma experiência muito fácil.

Principalmente porque as turmas são numerosas, temos um tempo determinado

para começar e terminar a aula, ocorrem interrupções durante a aula, − um inspetor

de aluno para dar um aviso, ou um aluno que chega atrasado, enfim uma série de

acontecimentos que são comuns no cotidiano de uma sala de aula − que acabam

desviando a atenção tanto do aluno, como da professora pesquisadora.

Devo também creditar uma parcela de culpa a mim mesma, pois tinha pouca

experiência na utilização do Pensar Alto em Grupo durante as aulas. Mas não é

impossível sua utilização cotidianamente com as turmas. Acredito que precisamos

nos familiarizar com a técnica, tanto professores, como alunos. No início, as

inovações tendem a desestabilizar, principalmente para o aluno que está habituado

a uma prática pedagógica tradicional.

Finalizando, apresento os textos trabalhados nas vivências de leitura.

2.5.2.1.1 - Textos lidos nas vivências

Muitas vezes, trabalhando com crianças e adolescentes, eu os ouvia

cantarolando algumas músicas e os questionava sobre o significado e o que tinham

entendido da letra da música. Às vezes, ouvia como resposta que não entendiam

muito bem, ou cada um tinha uma resposta diferente para a mesma letra.

As letras de música que normalmente suscitam múltiplas leituras ou mesmo

dúvidas são as composições de Chico Buarque de Hollanda. Muitos alunos quando

as ouvem, cantam ou mesmo quando lêem a letra dessas músicas nos livros

didáticos, não sabem exatamente o significado delas.

Nesse sentido, resolvi trabalhar com algumas dessas letras de música com

os meus alunos.

Convém salientar que pretendo trabalhar a leitura da letra da canção e seus

múltiplos significados. O foco portanto, será a construção de sentidos do texto,

porém, sabemos que música e letra compõem um todo inseparável e analisar

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somente a letra pode comprometer a qualidade de uma música ou obra. Sobre esse

aspecto, compartilho com as palavras de Meneses (2001, p.15):

Quando se fala em “poesia” em Chico Buarque”, alude-se a mais do que a “poema”. No entanto, suas composições serão encaradas aqui somente enquanto letras. Na Canção popular, palavra cantada, letra e melodia formam um todo único. Separá-lo, privilegiando um dos elementos, como farei, significará, num certo sentido, uma mutilação,sobretudo porque a música é produtora de significado. No entanto parto do pressuposto de que, dada a sua grande penetração, as canções de Chico já fazem parte integrante da sensibilidade musical do brasileiro contemporâneo, tornando-se, assim, na maioria dos casos, simplesmente “ler” tais letras, sem cantá-las mentalmente”

Chico Buarque de Holanda notabilizou-se por escrever letras de músicas

que abordam os problemas que assolam o país, muitas vezes políticos, de forma

velada, como na época da ditadura militar. Nesse caso, podemos citar “Roda-Viva”;

outras vezes os problemas sociais, como no caso de “O Meu Guri”, outras vezes o

cotidiano das pessoas, como por exemplo “Cotidiano”.

O texto lido na 1ª vivência foi “O Meu Guri”, de Chico Buarque de Holanda,

que reproduzo abaixo para facilitar a compreensão da análise de dados que será

feita posteriormente.

O Meu Guri

Quando, seu moço, nasceu meu rebento

Não era o momento dele rebentar

Já foi nascendo com cara de fome

E eu não tinha nem nome pra lhe dar

Como fui levando, não sei lhe explicar

Fui assim levando ele a me levar

E na sua meninice ele um dia me disse

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Que chegava lá

Olha aí

Olha aí

Olha aí, ai o meu guri, olha aí

Olha aí, é o meu guri

E ele chega

Chega suado e veloz do batente

E traz sempre um presente pra me encabular

Tanta corrente de ouro, seu moço

Que haja pescoço pra enfiar

Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro

Chave, caderneta, terço e patuá

Um lenço e uma penca de documentos

Pra finalmente eu me identificar, olha aí

Olha aí, ai o meu guri, olha aí

Olha aí, é o meu guri

E ele chega

Chega no morro com o carregamento

Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador

Rezo até ele chegar cá no alto

Essa onda de assaltos tá um horror

Eu consolo ele, ele me consola

Boto ele no colo pra ele me ninar

De repente acordo, olho pro lado

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E o danado já foi trabalhar, olha aí

Olha aí, ai o meu guri, olha aí

Olha aí, é o meu guri

E ele chega

Chega estampado, manchete, retrato

Com venda nos olhos, legenda e as iniciais

Eu não entendo essa gente, seu moço

Fazendo alvoroço demais

O guri no mato, acho que tá rindo

Acho que tá lindo de papo pro ar

Desde o começo, eu não disse, seu moço

Ele disse que chegava lá

Olha aí, olha aí

Olha aí, ai o meu guri, olha aí

Olha aí, é o meu guri

Com o mesmo propósito, reproduzo abaixo o texto lido na segunda vivência

foi “Roda-Viva”, também de Chico Buarque de Holanda.

Roda-Viva

Tem dias que a gente se sente

Como quem partiu ou morreu

A gente estancou de repente

Ou foi o mundo então que cresceu

A gente quer ter voz ativa

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No nosso destino mandar

Mas eis que chega a roda-viva

E carrega o destino pra lá

Roda mundo, roda-gigante

Roda-moinho, roda pião

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coração

A gente vai contra a corrente

Até não poder resistir

Na volta do barco é que sente

O quanto deixou de cumprir

Faz tempo que a gente cultiva

A mais linda roseira que há

Mas eis que chega a roda-viva

E carrega a roseira pra lá

Roda mundo (etc.)

A roda da saia, a mulata

Não quer mais rodar, não senhor

Não posso fazer serenata

A roda de samba acabou

A gente toma a iniciativa

Viola na rua, a cantar

Mas eis que chega a roda-viva

E carrega a viola pra lá

Roda mundo (etc.)

O samba, a viola, a roseira

Um dia a fogueira queimou

Foi tudo ilusão passageira

Que a brisa primeira levou

No peito a saudade cativa

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Faz força pro tempo parar

Mas eis que chega a roda-viva

E carrega a saudade pra lá

Roda mundo (etc.)

As vivências foram gravadas em áudio e, em seguida, foram feitas

transcrições, com os turnos devidamente numerados, possibilitando dessa forma, a

análise dos dados.

Feita a apresentação da metodologia para a geração dos dados e do

contexto, participantes e material trabalhados, passo, no capítulo seguinte, à

análise e interpretação dos dados, procurando responder as perguntas que

suscitaram a minha pesquisa. Além disso, teço considerações finais sobre a minha

trajetória durante a pesquisa.

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CAPÍTULO 3 - ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

O objetivo deste capítulo é apresentar a análise de dados gerados nas

vivências do Pensar Alto em Grupo (Zanotto, 1995), utilizado nesta pesquisa como

instrumento de geração de dados e como vivência pedagógica, para a prática de

leitura em sala de aula. Para isso, atenho-me aos referenciais teóricos apresentados

no capítulo 1.

Antes de iniciar a análise dos dados gerados, é oportuno relembrar as

perguntas que norteiam a minha pesquisa:

1. Como a minha postura como mediadora nas aulas de leitura pode

favorecer a interação social entre os meus alunos e, desta forma, possibilitar a

construção e negociação de sentidos do texto?

2. Em que medida a utilização do Pensar Alto em Grupo pode propiciar

aos meus alunos a construção de sentidos do texto e, consequentemente, que eles

tenham uma atitude responsiva durante o evento de leitura?

Convém salientar que farei uma análise comparativa de duas vivências feitas

com os alunos do 2º ano do Ensino Médio, para investigar as mudanças na minha

postura como professora mediadora e propiciar uma reflexão crítica sobre a minha

ação. Desse modo, pretendo verificar as diferenças na minha prática pedagógica, se

houve ou não a participação efetiva dos alunos, se houve uma construção coletiva

dos sentidos dos textos.

3.1 - Análise da primeira vivência – Texto “O Meu Guri”

Nesta 1ª vivência estavam presentes 6 alunos do 2º ano do Ensino Médio:

Maria, Joana, Cristina, Cláudia, João, José e eu, professora pesquisadora. Os

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nomes foram trocados, preservando dessa forma a identidade dos alunos. Da minha

parte, confesso que estava um pouco preocupada, por se tratar da utilização de um

instrumento pedagógico que não estava habituada a utilizar, visto que, tanto aluno

como professor, tendem a ter uma atitude de preocupação, pois o novo causa

instabilidade na rotina, dada a sua natureza de inovação e novidade.

Eu já havia falado com os alunos sobre a minha pesquisa e o que pretendia,

ou seja, a utilização do Pensar Alto em Grupo como instrumento pedagógico, com o

objetivo de construir sentido do texto pela interação social. Antes de começar a

leitura, falei com eles que deveríamos ter uma atitude de respeito em relação às

opiniões emitidas e com as falas de cada um.

Sentados em círculo, inicialmente solicitei aos alunos que fizessem uma

leitura silenciosa do texto. No início, os alunos ficaram um pouco apreensivos com o

gravador. Eu também estava muito preocupada, porque era uma situação inusitada

para todos. Além disso, eu sabia de antemão que os turnos de fala seriam

posteriormente analisados. Outro fato que me deixava preocupada era se o

gravador, por algum motivo, deixasse de funcionar, pois, tratava-se de uma atividade

a ser realizada extra sala de aula, isto é, fora do horário em que aulas normalmente

aconteciam. Para repeti-la teria de solicitar que eles viessem novamente fora do

horário de aula, o que muitas vezes traz complicações, por serem alunos que

estudam no período noturno e trabalham o dia inteiro. Embora, todos tenham

participado de livre e espontânea vontade, sei que isso traz algumas alterações em

suas rotinas.

Iniciei a vivência perguntando aos alunos se já conheciam o texto a ser lido –

O Meu Guri - e falei sobre o autor. Então vamos à análise propriamente dita.

1º recorte - Tentando acertar o passo...

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1 Professora

Bem... então, a vivência de leitura é o seguinte: a gente vai

conversar tentar ,entender esse texto. Então...vocês leram o

texto silenciosamente...uma vez, tiveram um contato prévio

com o texto ... gostaria que vocês conversassem entre vocês.

Eu vou participar muito pouco do evento, tá? A participação

maior será de vocês, bem...agora é com vocês...

2 Maria

Bom, pra mim, ele fala de um pai que não consegue sustentar

o filho e vai suando a camisa pra sustentar ele. E no final do

texto, fala que o filho dele se esforçou muito e chega lá. Ta

dizendo aqui, “E na meninice ele um dia me disse Que

chegava lá”. E ele chegou.

3 Professora ... chegou aonde?Maria!

4 Maria Acho que ele conseguiu vencer, assim...é trabalhando,neh?

5 Professora trabalhando?

6 Maria trabalhando... e ele deu orgulho pra esse pai dele. Era essa a

intenção, porque ele não tinha nada e o seu filho,

7 Professora Ele não tinha nome,como?

8 Maria O pai dele não tinha nem nome pra dar pra ele.

9 Joana

Um nome importante, no caso, né? Da sociedade, um nome

conhecido. O pai dele era... apenas digamos ... uma pessoa...

da favela, humilde, que não tinha como dá comida, quanto

mais um nome importante pro filho.

10 Professora ah...

11 Joana

... esse filho cresceu, se desenvolveu e no caso, ele

trabalhou... aqui, e futuramente ele vai ter um nome pra pro

filho dele

12 Professora E onde que você leu no texto... que ta dizendo que é o pai...

que ta falando?Onde especificamente?

13 Maria Então, não especifica que é o pai, neh? Mas especifica uma

pessoa contando uma história de um menino.

14 Professora E quem é essa pessoa?

15 Maria Eu acho que seria o ... o Chico Buarque ...ou uma pessoa

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pobre, né?

16 Professora pessoa pobre... Por que uma pessoa pobre?

17 Maria

Porque, a pessoa que tá contando diz que... a criança já

nasceu com cara de fome e “eu não tinha nem nome para lhe

dar”.

18 Professora E quem que é esse “eu”?

19 Cristina Pode ser a mãe ou o pai também.

Um aspecto que me chamou a atenção para esse início de vivência de

leitura foi a minha postura. Observe que, logo no início no 1º turno eu disse: “Eu vou

participar muito pouco do evento, tá?” e ainda reforcei “A participação maior

será de vocês”. Um leitor atento, no mínimo iria pensar que eu estivesse sendo

totalmente incoerente, pois, falava uma coisa e fazia o oposto.

Em termos quantitativos, de 19 turnos, eu falei em 9 com 3 interlocutores.

Maria teve 7 turnos, Cristina 2 e Silvia falou somente uma vez. Isso significa que

logo no início, minha atuação no que se refere a tomar a palavra foi de mais ou

menos 50%. Um aspecto muito interessante foi o fato de que nenhum dos alunos se

manifestou em relação a minha postura, uma vez que logo no começo eu disse “Eu

vou participar muito pouco do evento, tá?” A participação maior será de vocês,

bem...agora é com vocês...”. Isso me fez refletir e só consegui ver o que havia

ocorrido quando comecei a analisar os dados. No entanto, é muito importante

esclarecer que, embora eu tivesse falado em um número maior de turnos em relação

aos meus alunos, acredito que tenha sido necessário para criar condições para que

houvesse interação entre os alunos e os motivasse a falar e construir sentido do

texto. Contudo, é importante salientar que ao implementar uma nova prática em sala

de aula, muitas vezes os alunos estranham também a inovação. Mesmo eu tendo

explicado no início da vivência do Pensar Alto em Grupo, que gostaria que

conversassem entre si para construir sentido no texto, logo no começo da vivência,

não aconteceu da forma esperada. Como eles ficaram inibidos com a gravação da

vivência, comecei a fazer perguntas com o intuito de incentivá-los a falar. Então, há

que se considerar que a intervenção do professor teve o propósito de fomentar uma

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interação entre os alunos. No turno 16, por exemplo, faço a pergunta “pessoa

pobre... Por que uma pessoa pobre?” que cria um conflito sobre uma fala da

aluna Maria. Os alunos então, têm que repensar o sentido do texto a partir do

significado que estão dando para a palavra “pobre”.

Para Freire, o professor “faz comunicados”, quando deveria “comunicar-se”.

Essa atitude de “fazer comunicados” é o princípio e o erro da educação bancária. Na

realidade eu estava me comunicando com eles, fazendo perguntas, na tentativa de

promover um diálogo, uma vez que eles demonstravam certa timidez e não estavam

falando entre si. Convém enfatizar que não devemos confundir um diálogo com

possíveis respostas, com um diálogo com respostas prontas − como as atividades

que constam nos livros didáticos, por exemplo, onde normalmente, só basta seguir o

texto e responder as perguntas de forma linear. Além disso, o professor não deve

simplesmente explicar e considerar que o aluno tenha entendido o que foi explicado,

sem ao menos dialogar, porque nesse caso seria um monólogo e portanto um

comunicado na visão de Freire.

Para Bakhtin, essa situação denomina-se uma explicação monológica,

situação em que o professor já vem com a pergunta e a resposta pronta e

simplesmente “despeja” ou faz um comunicado (Freire,1970) para o aluno e este

aceita de forma passiva o que o professor fala. Quanto ao meu questionamento no

turno 16, convém esclarecer que eu tive uma atitude responsiva em relação a um

conceito que para mim não havia ficado claro. Eu estava querendo entender como a

aluna chegou àquela conclusão.

Com relação às leituras feitas neste 1º recorte, pode-se dizer que nos turnos

2, 4 e 6 Maria faz uma leitura descendente “top-down”, isto é, levou em

consideração a sua visão de mundo para ler. No entanto, no turno 13, ela já começa

a prestar atenção no que o texto diz, bem como no turno 17, sendo sua leitura

nesses dois turnos ascendente ou “bottom-up”.

Nos turnos 09 e 11 Joana e Cristina no turno 19 tiveram uma leitura

descendente ou “top-down”, levando em consideração seus conhecimentos prévios.

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Com relação às minhas perguntas nos turnos 14 e 16 a intenção era, como

já mencionei anteriormente, além de dialogar, incentivá-los a falar. Além do mais, eu

tinha como objetivo que os alunos fizessem uma leitura em que se apoiassem mais

no texto. Em outras palavras, eu estava questionando a leitura que eles estavam

fazendo e criando condições para que eles pudessem verificar se esta leitura era

pertinente ou adequada ao texto, por meio de um processamento ascendente ou

“bottom-up”. Procedi assim, apesar de saber que às vezes, fazer muitas perguntas

aos alunos pode inibi-los ou fazer com que eles não participem.

Feitas essas considerações referentes ao primeiro recorte, poderia dizer que

eu não estava tendo uma atitude como a pregada pela educação bancária e nem

uma atitude condizente com o Pensar Alto em Grupo. Eu diria que estou em fase de

transição. A meu ver, minha postura em sala de aula já representa um passo inicial e

significativo para mudanças. Mas, vamos analisar mais um recorte.

No 1º recorte ficou a dúvida se quem estava falando na letra da canção era

o pai ou a mãe. Inicio este 2º recorte questionando os alunos sobre este aspecto.

2º recorte - Continuando a tropeçar

20 Professora uma mãe ou um pai, Cristina?

21 Cláudia

porque... vamos supor assim... no começo do texto, fala:

“Quando seu moço nasceu meu rebento”, aí já tira a idéia que

era um pai.

22 Professora Rebento é o quê?

23 Cláudia Como se fosse um ventre, assim ... falando de uma mãe...

mas é o pai que tá contando a história... relatando.

24 Cristina Pode ser um pai ou uma mãe também.

25 Cláudia é...

26 Professora Por quê que pode ser um pai ou uma mãe?

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27 Cristina

Porque não ta falando que... é um homem ou uma mulher...tá

contando uma história.. prum moço... quando seu moço... tá

contando prum moço ...essa história do filho...

28 Professora e alguém pode me dizer, se é pai ou mãe... o que seria

rebento?

29 Cláudia como se fosse um ventre, sei lá...

30 Maria Rebento... acho que seria um lar, nasceu meu lar...

31 Professora pelo contexto,contexto é o que, pela história, o que vocês

acham que poderia ser rebento?

32 Maria Ah...

33 Joana Seria o próprio moço... seria o rebento

34 Professora Fala Joana.. o que é...

35 Joana O próprio moço seria o rebento... porque... como você falou

Maria?

36 Maria porque... a pessoa que está contando...

37 Joana

isso... não era o momento dele rebentar...já foi nascendo com

cara de fome... é seria o nascimento... o próprio

desenvolvimento ...

38 Maria como que dizendo... ele nasceu de mim mas não era o

momento dele nascer.

39 Professora Quem é que nasce da gente?

40 Joana Nosso filho.No caso é uma mãe e não um pai.

41 Professora Então o que seria rebento?

42 Cristina A criança que nasceu.

43 Joana mas não era o momento dele nascer...

Neste segundo recorte, percebo que ainda estou fazendo perguntas aos

alunos no sentido de buscar uma resposta, isto é, se se tratava de uma mãe ou pai

que estava falando na letra da canção. Contudo, posso observar que as alunas já

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começam a interagir entre si, de forma bem tímida, apresentando um progresso. De

forma tímida, porque eu ainda estou bem presente nos diálogos, como, por exemplo,

nos turnos 23, 24 e 25 notamos que houve uma interação entre as duas alunas, isto

é, Cláudia fala: “Como se fosse um ventre, assim ... falando de uma mãe... mas

é o pai que tá contando a história... relatando”, logo em seguida Cristina diz:

“Pode ser um pai ou uma mãe também” e Cláudia responde, no turno 25: “é”.

Nos turnos anteriores, posso observar que elas estavam lendo, mas se

reportavam a mim. Nos turnos 26 e 28 voltei a fazer mais duas perguntas, com o

intuito de ajudá-los a construir a leitura de que seria uma mãe que estava contando

a história na letra da canção, se bem que a leitura de um pai também fosse possível

no início da letra. Podemos, porém ver mais adiante que o autor deixa algumas

pistas, mostrando tratar-se de uma mãe, como por exemplo: quando fala “Me trouxe

uma bolsa já com tudo dentro” ou quando fala “ Boto ele no colo pra ele me

ninar”.

Como eles desconheciam o significado da palavra rebento, para deixar clara

a acepção da palavra rebento, no turno 31 perguntei a eles “pelo contexto,

contexto é o que, pela história, o que vocês acham que poderia ser rebento?”

No turno 33 Joana respondeu: “Seria o próprio moço... seria o rebento” e

continuando em seus pensamentos no turno 37 completa: “isso... não era o

momento dele rebentar...já foi nascendo com cara de fome... é seria o

nascimento... o próprio desenvolvimento ...”, no turno 38 Maria continua: “como

que dizendo... ele nasceu de mim mas não era o momento dele nascer”.

É importante ressaltar que, ao mesmo tempo em que elas ficam sabendo a

acepção da palavra rebento, fica claro para elas que se trata de uma mãe que está

contando a história. Nesse caso, elas fizeram uma leitura que levou em

consideração o conhecimento prévio que tinham e também se apoiaram no texto,

pois no início o verbo nascer ocorre duas vezes. Pode-se dizer que, de certa forma,

nesse 2º turno minhas perguntas foram no sentido de buscar uma resposta única:a

letra da canção se referia a uma mãe e não a um pai.

Ao analisar o turno 39, quando eu pergunto: “Quem é que nasce da

gente?” e 41: “Então o quê seria rebento?”, avalio que foram perguntas

totalmente inúteis, pois as alunas já tinhas entendido o significado de rebento e de

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que se tratava de uma mãe, acho que ainda são resquícios da minha visão

tradicional de leitura. Eu queria confirmar e verificar se elas realmente tinham

entendido.

Passo agora a analisar o 3º recorte, que fala da gravidez indesejada. O que

me levou a recortar esses turnos foi o assunto tratado aqui, no caso a gravidez

indesejada ou o nascimento de um filho que não se espera e de repente nasce ou

aconteceu a gravidez, isto é, não foi planejada. Por isso coloquei o título do recorte

como relacionado à realidade.

Então, neste próximo recorte, podemos verificar que os alunos relacionam o

texto às situações de suas próprias vidas.

3º recorte - Relacionando com a realidade

56 Cláudia Que não era momento de nascer.

57 Cristina

Nasceu prematuro, nasceu antes do tempo que ela

esperava...eles aguardavam ou não, essa criança mas num

outro tempo, não pra esse tempo que nasceu

58 Maria Pode ser gravidez indesejada, neh?

59 Cristina Também

60 Professora E isso é comum?

61 Cláudia muito...

62 Maria Muito. Principalmente entre os jovens,neh?

63 Professora Em classes altas, baixas ou em geral?

64 Maria Classes baixas.

65 Joana

Depende... o caso da fome... assim vem da classe baixa... tipo

uma adolescente de 15 anos não tem uma estrutura de vida

pra dar prum filho,né?agora... tem...na classe alta também

você vê...crianças ... temor ao pai, a mãe, ou então ah... vai

acabar meu corpo... ou já era minha juventude... então dá pra

ver dois lados.

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Nesse recorte nota-se que os alunos relacionaram a letra da música com a

realidade: o problema da gravidez precoce, fato muito comum hoje em dia,

principalmente no contexto em que a escola está inserida. Lá presenciei alunas de

5ª, 6ª séries grávidas e, no Ensino Médio, também vi várias jovens que já são mães

ou algumas grávidas. Cabe ressaltar que só pela leitura da letra da canção não se

conclui que Chico Buarque esteja se referindo à gravidez de adolescentes ou de

mulheres adultas. Porém, noto que elas estão lendo de acordo com o contexto em

que estão inseridas, ou seja, a presença de grande número de adolescentes que

engravidam precocemente no entorno da escola, acarretando com isso, um

problema social. Então, é a realidade retratada na letra da canção, que os alunos

sabem muito bem como é.

De acordo com a fala da Joana no turno 65, ela diferencia até a extensão do

problema para cada extrato social, indo desde os problemas financeiros, enfrentados

pelas meninas das classes sociais menos favorecidas, − no caso da letra da canção

−, até a preocupação com relação à estética do corpo, comumente relacionadas às

meninas de maior poder aquisitivo.

No turno 57, Cristina faz uma leitura “bottom up”, pois no texto está escrito

“Não era o momento dele rebentar”, então ela diz :“Nasceu prematuro, nasceu

antes do tempo que ela esperava...eles aguardavam ou não, essa criança mas

num outro tempo, não pra esse tempo que nasceu” e Joana no turno 58 faz uma

leitura “top-down”, ela acrescenta: “Pode ser gravidez indesejada, neh?”, talvez

referindo-se a casos de meninas que engravidam sem um planejamento, hoje em

dia tão comum. Essa leitura é confirmada pela Maria, que também faz uma leitura

“top-down” quando diz, no turno 62: “Muito. Principalmente entre os jovens,

neh?”

De acordo com Kleiman (1989/2004, p. 25), “conhecimento prévio é, então

essencial à compreensão, pois o conhecimento que o leitor tem sobre o assunto lhe

permite fazer as inferências necessárias para relacionar diferentes partes discretas

do texto num todo coerente”. Nesse recorte, também é possível verificar que as

alunas estão interagindo entre si, concordando ou complementando o que a outra

falou, como podemos observar nos turnos 61 e 62, ou mesmo para contrariar e

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acrescentar novas informações, como fez Joana no turno 65. Nesse sentido,

mudanças já estão ocorrendo. Passemos, então, à análise do 4º recorte.

O recorte seguinte refere-se à empatia que as alunas sentem em relação ao

guri.

4º recorte - Acertando o passo, percebendo empatia...

66 Maria

Aqui onde tá escrito: “Chega no morro com o carregamento

Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador Rezo até ele chegar

cá no alto”?

67 Professora O que é isso?

68 Maria

Pra mim, deu a entender que ele mora numa favela,né? e até

ele chegar lá em cima ele vai passar por muita coisa, ou seja,

pelos traficantes que ficam lá embaixo na favela,ou os

policiais,né? como é o caso do Rio de Janeiro, e toda mãe

reza até o filho chegar na... em casa,né?

69 Professora Então ele carrega tudo isso. Mas, o que que seria tudo isso?

70 Maria

Num sei se ele vende, vende...

pulseira,relógio,gravador...pneu... para chegar onde ele queria

chegar.

71 Cláudia Ele tenta se virar...

72 Cristina

Acho que... ele falou pra mãe,um dia... no caso...que um dia

ele chegava lá...eu acredito que seja um... é na profissão

dele,assim...

73 Cláudia Algo que ele queira conquistar...

74 Cristina

que ele queria...ele queria sair de onde ele veio... dessa

pobreza... como elas disseram... e ir prum lugar... melhor e

poder ganhar mais... do que daquele lugar que ele estava

vivendo, ali, entendeu? E isso é... da onde ele

trabalhava...podia ser com que ele trabalhava... né?

75 Maria “Chega estampado, manchete, retrato Com venda nos olhos,

legenda e as iniciais Eu não entendo essa gente, seu moço

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Fazendo alvoroço de mais”.Essa parte que tá assim...

76 Cláudia

Por ela ter relatado violência, tem uma parte que indica isso.

“Essa onda de assaltos tá um terror”.Eu consolo ele, ele me

consola. É como se eles vivessem num lugar ruim,como elas

estavam falando de um morro...lá já estava mostrando pra

eles o sofrimento... como eles eram pobres, queriam

conquistar algo melhor para suas vidas... então... é isso que

eu entendi dessas duas linhas, que mostra a violência.

77 Professora Então o medo dela é a violência?

78 Maria

É a violência de você acordar num dia e falar “hoje eu tô vivo,

mas... e amanhã?”né? E amanhã, será que o meu filho vai tá

aqui? será que eu vou tá aqui?

79 Cláudia

Vai ver que é por isso que ela não queria que o filho nascesse

naquele momento, por ele não ter uma vida boa ou digna de

um filho ter nascido.

80 Maria ... é por ele morar naquele lugar...

81 Professora Ele quem?

82 Cláudia

A pessoa que tá contando a história.Vamos supor que fosse

um pai ou uma mãe, obviamente, mas não queria que o filho

nascesse ali, por ela morar em lugar ruim, mostrar que tem

tanta violência, ela não queria que o filho ou a filha visse

aquilo tudo.

83 Maria vivesse, né?

84 Cláudia vivesse aquilo.

Nesse recorte, as alunas interagiram entre si, objetivando a construção de

sentido do texto. Refiro-me, contudo, às alunas, porque só elas até o momento estão

participando ativamente e o grupo é composto de meninos também.

As meninas tentam compreender ou justificar o comportamento do guri. Essa

afirmação fica evidente no turno 71, quando a Cláudia diz “Ele tenta se virar...”,

falando imediatamente, após a Maria no turno 70, dizer, “Não sei se ele vende,

vende... pulseira, relógio, gravador...pneu... para chegar onde ele queria

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chegar”. De acordo com a leitura de Cláudia, o guri vende as mercadorias com o

objetivo de se sustentar. Percebe-se que as meninas estão justificando as ações do

guri. Se ele por acaso estiver fazendo alguma coisa ilícita, com certeza é por causa

das precárias condições em que vive. Não interessa saber se as mercadorias são

roubadas ou não, o que mais importa é a sobrevivência: lutar para viver, ter o que

comer e sustentar a si e a sua mãe. Lembrando que a escola está localizada em um

bairro que, de acordo com o que os alunos falam, tem muitas favelas. Nesse

sentido, vale aqui, lembrar uma citação de Freire (1970/2005: p.80),

Como educador preciso de ir “lendo” cada vez melhor a leitura do mundo que os grupos populares com quem trabalho fazem de seu contexto imediato e do maior de que o seu é parte. O que quero dizer é o seguinte: não posso de maneira alguma, nas minhas relações político-pedagógicas com os grupos populares, desconsiderar seu saber de experiência feito. Sua explicação do mundo de que faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo. E isso tudo vem explicitado ou sugerido ou escondido no que chamo “leitura do mundo”que precede sempre a “leitura da palavra” Se, de um lado, não posso me adaptar ou me “converter” ao saber ingênuo dos grupos populares, de outro, não posso, se realmente progressista, impôr-lhes arrogantemente o meu saber como verdadeiro.

Creio que não me caberia dizer ou perguntar a elas, “olha, vocês não estão

percebendo, o que está escrito aqui no texto”, “como ele consegue toda essa

mercadoria, se ele é pobre?”. A proposta do Pensar Alto em Grupo tem como

objetivo a construção do sentido do texto, por meio da interação social. Nesse

sentido, eu as deixei construir o sentido dessa forma. Além disso, não me pareceu

que elas estivessem dissimulando, isto é, pensando uma coisa e falando outra. Elas

realmente enxergavam que o guri era inocente e não estava fazendo nada de

errado.

Na realidade, ficou essa incógnita: como ele consegue essas mercadorias?

Mas, lá no turno 67, eu perguntei “O que é isso?”, respondendo Maria, quando ela

se referiu ao carregamento. Ela então, disse que se tratava das mercadorias que o

guri vendia. Achei que seria melhor deixá-las interagir entre si, para ver qual leitura

fariam. Se fosse em outros tempos, acho que ficaria perguntando até obter uma

resposta. A palavra carregamento, normalmente é relacionada a alguma coisa ilícita,

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como, por exemplo, carregamento de produtos contrabandeados, carregamento de

drogas, como maconha, cocaína, carregamento de produtos roubados, etc.

Outra evidência de que elas estavam tentando justificar e entender o guri, foi

o fato delas ignorarem quando Maria, no turno 75, lê um fragmento na tentativa de

achar alguma pista no texto, isto é, faz uma leitura com respaldo no texto, mas no

turno 76, Cláudia relata a pobreza, o sofrimento e o desejo de se conquistar algo

melhor para a vida e também da violência que assola o lugar onde o guri e a mãe

vivem. Ela faz, no caso, uma leitura “top-down”, isto é, de acordo com a sua visão de

mundo.

Maria fez uma leitura inferencial, no turno 78, e Cláudia também usou da

inferência, nos turnos 76 e 79. Maria quando se refere à violência e Cláudia quando

fala da violência e também quando menciona que o guri e a mãe moram num lugar

ruim e fala do sofrimento da mãe por não querer que o filho nascesse naquele

momento, porque não teria condições de criá-lo. A inferência por parte das alunas

implica no fato de elas levarem em consideração o conhecimento prévio e a visão de

mundo que elas têm. Além disso, significa que está sendo respeitado o ser sócio-

histórico-cultural, pois, de acordo com os pressupostos de Vygotsky , o sujeito se

reconhece como tal na e pela linguagem.

Segundo Dell‟Isola (2002, p. 44), a inferência é uma operação em que o

leitor constrói novas proposições, a partir de outras já dadas, pois o texto refere-se a

uma mãe dizendo que não era o momento do filho dela nascer. Aliado a esse

aspecto, a mesma autora refere-se ao contexto no qual o leitor está inserido, a visão

de mundo, o conhecimento prévio do leitor. Devemos também considerar a

coerência, pois o leitor precisa reconhecer uma coerência entre o que está lendo e o

que pensa, de acordo com o seu contexto sócio-histórico-cultural.

Nesse recorte houve interação entre as alunas. De acordo com Vygotsky,

essa é uma condição para que o conhecimento seja construído. Também houve por

parte delas uma atitude responsiva ativa. Na medida em que iam dialogando,

concordavam, discordavam e o que uma falava a outra complementava. O mais

importante disso tudo, dessa interação, é que houve respeito pelo aspecto sócio-

histórico-cultural das alunas durante a aula.

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Vygotsky em seus postulados (Rego,1994/2001), afirma que a mente

humana tem sua construção social, pois sua gênese é social, então o homem se

reconhece como pessoa pela suas relações sociais. Assim, a interação social e o

diálogo são aspectos importantes para a prática social, de acordo com os postulados

de Vygotsky, nas palavras de Rego (1994/2001),

Vygotsky, inspirado nos princípios do materialismo dialético, considera o desenvolvimento da complexidade da estrutura humana como um processo de apropriação pelo homem da experiência histórica e cultural. Segundo ele, o organismo e o meio exercem influência recíproca, portanto o biológico e o social não estão dissociados. Nesta perspectiva, a premissa é de que o homem constitui-se como tal através de suas interações sociais, portanto, é visto como alguém que transforma e é transformado nas relações produzidas em uma determinada cultura. É por isso que seu pensamento costuma ser chamado de sócio-interacionismo.

Assim, as alunas vão construindo o sentido do texto, defendendo o guri,

dizendo que “ele tenta se virar” de acordo com o turno 71 de Cláudia, em uma

tentativa de justificar e defender o guri, não se importando em saber, como ele

consegue todas aquelas mercadorias. Como o entorno da escola, conforme já foi

mencionado, é um lugar muito pobre, com favelas e consequentemente, com todas

as mazelas que podem advir desse fato, existem muitos guris iguais ao retratado na

letra da canção, produtos de uma sociedade injusta.

Passemos a analisar o 5º recorte, quando as alunas começam a rever suas

opiniões sobre o guri.

5º recorte - A realidade nua e crua...

85 Professora

A gente tem assim... clareza, aqui... depois de tudo aquilo

que a gente viu, que a gente conversou, de qual seria a

profissão , a atividade que esse guri exerce?

86 Maria

Acho que ele seria um... vendedor ambulante,né? que...

vende pulseira, relógio, pneu, gravador... eu acho que ele

seria camelô,né?

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87 Cláudia

Então vamo supor... ele não era um criminal, mesmo ele

vendo toda a violência, ele não era criminal, ele queria ganhar

a vida de uma maneira.. por ele ser pobre.

88 Maria ... então... isso mesmo.

89 Joana

Ele cresceu nesse rumo, mesmo sendo camelô,

provavelmente, ele cresceu, no final... não entrou na vida do

crime. Também, o orgulho pode ser não só pelo... nossa ele

chegou lá... ele criou dinheiro tal... mas ele não é essa pessoa

que tem orgulho... que ele não entrou na vida do crime,

entendeu? ele sobreviveu aos terrorismos da cidade, do dia a

dia ...(???)

90 Maria

Porque o menino que nasce na favela,né? O futuro dele,o

que muitos dizem,né? ele vai ser ladrão.Vai crescer e vai ser

ladrão Será que ele vai viver até os 20? O que muitas pessoas

dizem,né?

91 Cláudia As pessoas não pensam no melhor, já pensa no pior.

92 Joana Com certeza...

93 Cláudia

Óoo! Só por nascer num lugar ruim, não quer dizer que a

pessoa não vai ter futuro. Mas nem sempre é assim... as

pessoas muitas vezes moram naquele lugar porque não tem

condições... muitas vezes por ninguém abrir a porta, falar:

vou te ajudar! Já pensa... ruim...

94 Maria

Quando a pessoa é esforçada, né? Ela consegue vencer... é

muito interessante, a gente vê isso...dentro de um morro,

dentro de uma favela, onde só a violência acontece, só...

coisa que não presta, né? Porque é droga...

95 Cláudia Mas mesmo assim tem pessoas que se destacam...

96 Professora

Agora, deixa eu fazer uma pergunta pra vocês... o que eu fico

intrigada, é o seguinte, no texto fala assim: “... trouxe uma

bolsa já com tudo dentro chave, caderneta, terço e patuá, um

lenço e uma penca de documentos”. O que vocês acham

disso?

(as alunas ficaram pensativas)

97 Cláudia Agora... essa parte...parece... que é mais... falando da

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violência... vamo supor roubos...

98 Maria hhaaamm...

99 Cláudia ... exatamente nessa parte...

100 Maria

... fala... “Chega suado e veloz do batente E traz sempre um

presente pra me encabular”,né? Aqui já passa uma idéia de

que ele ta roubando pra dar de presente pra essa pessoa,né?

Tanta corrente de ouro seu moço, que haja pescoço pra

enfiar.. e ele chega lá.

Analisando agora esse recorte, fico impressionada como elas tentam

justificar e defender o guri. A empatia é muito grande, como se elas estivessem

dizendo, “olha ele é uma vítima, ele pode estar fazendo isso, mas não é porque ele

quer, foram as circunstâncias que o levaram a fazer alguma coisa errada, ele queria

só viver e ser grato à mãe”. Podemos verificar isso no turno 87 de Cláudia “Então

vamos supor... ele não era um criminal, mesmo ele vendo toda a violência, ele

não era criminal, ele queria ganhar a vida de uma maneira.. por ele ser pobre” ,

ou mesmo no turno 93, quando Cláudia se refere ao preconceito e à falta de

oportunidade que as pessoas têm: “Óoo!Só por nascer num lugar ruim, não quer

dizer que a pessoa não vai ter futuro. Mas nem sempre é assim... as pessoas

muitas vezes moram naquele lugar porque não tem condições... muitas vezes

por ninguém abrir a porta, falar: vou te ajudar! Já pensa... ruim...”. Na

realidade, elas estão fazendo uma leitura “top-down”. De acordo com as conversas

de alunos, muitos meninos são atraídos para repassar as drogas e,

consequentemente, também muito precoces passam a ser usuários.

Nesse sentido, as alunas já ouviram histórias reais ou conheceram

pessoas que vivem ou viveram um drama semelhante ao do guri da letra da canção.

Casos de vizinhos, amigos, colegas de escola, mas apesar de todos os percalços e

a despeito das mazelas sociais reinantes há muitos que conseguem sobreviver à

tamanha violência e miséria, de acordo com o turno 94 de Maria: “Quando a

pessoa é esforçada, né? Ela consegue vencer... é muito interessante, a gente

vê isso...dentro de um morro, dentro de uma favela, onde só a violência

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acontece, só... coisa que não presta, né? Porque é droga...”. E, no turno 95, de

Cláudia, “Mas mesmo assim tem pessoas que se destacam...”.

No entanto, no turno 96, faço uma mediação, questionando-as, tendo como

referência as pistas deixadas no texto pelo autor, nesse caso estimulando-as a

fazerem uma leitura “bottom-up”: “Agora, deixa eu fazer uma pergunta pra

vocês... o que eu fico intrigada, é o seguinte, no texto fala assim:“... trouxe

uma bolsa já com tudo dentro chave, caderneta, terço e patuá, um lenço e uma

penca de documentos”. O que vocês acham disso?” As alunas ficam pensativas,

afirmam e argumentam, re-estruturando o pensamento anterior quando tinham

explicitado, que alguma coisa de ilícita o guri fazia, como podemos comprovar nos

turnos 97, 98, 99 e 100. Esse posicionamento acontece a partir do questionamento

que fiz no turno 96.

O recorte seguinte, refere-se a um momento em que Joana fala sobre sua

experiência de vida, projetando com isso a sua subjetividade, durante a vivência de

leitura.

6º recorte - Um momento de emoção durante a leitura...

101 Joana

... ou seja, ele sai de casa,mas com a responsabilidade de

trazer alguma coisa pro, no caso a mãe, né? aqui...tipo uma

corrente,alguma coisa pra agradar, porque ele sabe, tudo... o

que ela sofreu... pra chegar nesse ponto.

102 Professora Bem, aqui todo mundo tem pai... mãe... vocês têm a

obrigação, sente a obrigação de levar uma corrente ...

103 Joana

Olha, quando eu trabalhava,digamos assim... eu levava. Eu ia

numa banquinha e sempre comprava brinco todo dia na hora

do almoço. Eu comprava um pra mim e um pra minha mãe. Eu

acho... porque eu que vim de uma família... é que meu pai

morreu quando eu tinha dois anos... morreu de HIV... então

minha mãe me criou sozinha... teve que cuidar do meu pai, ele

ficou dois anos doente, teve que cuidar de mim. Ele ficava

doente eu também ficava. Então, acho que eu tenho esse

orgulho da minha mãe... o que ela fez por mim , sendo assim

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que eu não possa ... mesmo retribuir, como ela me deu, mas

eu tento um pouquinho. Acho que no caso , é isso que ele tá

querendo demonstrar, mesmo fazendo um negócio errado...

104 Maria ... ele tá fazendo pra agradar...

105 Cláudia

Acho que a gente tem que pensar no nosso dia a dia, vamos

supor...todos nós já passamos por uma situação difícil, não

importa a nossa idade, mas todo mundo já teve uma história,

vamo supor, um lado ruim e como a professora tava dizendo e

vocês mesmas disseram, vamo supor,a gente... nossa mãe e

nosso pai faz de tudo pra agradar a gente, pra dar o melhor

pra nós,então eles nunca querem ver a gente no mundo do

crime ... num lugar ruim, a gente tenta... pelo menos, com

poucas coisas, mesmo às vezes não tendo condições de dar

alguma coisa, mas sempre agradar, não importa o que seja,

seja um abraço, seja falando pra ela que você ama ela... eu

penso assim.

106 Professora

Agora, Joana... eu como mãe, acho que só pelo fato de você

ter esse amor, dar um abraço nela, reconhecer todo o valor

dela já é um presente muito grande, você concorda comigo?

107 Joana

(risos) Nossa... bastante... agora que eu trabalho...então... dar

um abraço (risos), agradar, por mais que a gente

trabalhe....(risos) (a aluna demonstrando emoção)...

108 Cláudia Agora que já está pertinho do Natal... dar um presentinho pra

ela...

109 Joana

... coisas básicas, coisas que podem parecer até mínimas,

mas que tem um... representação muito forte na cabeça de

um pai e de uma mãe que sofreu tanto pra te criar, pra você tá

ali, pra você se formar...

110 Cláudia ... ou seja o valor emocional e não o valor material.

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Nesse recorte, podemos ver um momento de muita emoção, pois a aluna

Joana conta-nos sobre a doença e a morte do seu pai, assim como, as dificuldades

pelas quais a mãe passou para criá-la, no turno 103. De certa forma, Joana

identificou uma semelhança entre o que sente pela mãe e o que acha que o guri da

letra da canção sente pela mãe dele, ou seja, ao amor e à gratidão que ambos

Joana e o guri sentem pela mãe. No caso da Joana o sentimento é real e a própria

aluna diz isso, com relação ao sentimento do guri, podemos notar que houve uma

inferência por parte das alunas, pelo conhecimento prévio que elas têm sobre as

circunstâncias ocorridas. Num certo sentido, pode-se afirmar que Joana procurou

algum sinal de semelhança entre sua vida e a do guri em projeções de subjetividade,

como podemos ver no turno 103.

Em outras palavras, as alunas estão dizendo que entendem porque o guri

age dessa forma, ou seja, comete atos ilícitos: porque ele está inserido em uma

realidade de pobreza, de exclusão e de violência. Como diz Gentili (2001/2007,

p.30):

A exclusão se normaliza e, quando isso acontece acaba se naturalizando. Deixa de ser um “problema” para ser apenas um “dado”. Um dado que, em sua trivialidade, faz com que produz uma indignação tão efêmera quanto a recordação da estatística que informa a porcentagem de indivíduos que vivem abaixo da “linha da pobreza”.

As alunas fizeram uma leitura levando em consideração sua visão de

mundo, isto é, uma construção de sentido, tendo como referência o contexto sócio

cultural em que estão inseridas. Em outras palavras, como foi citado anteriormente,

o entorno da escola é caracterizado pela pobreza, miséria e a presença de muitas

favelas. Enfim, uma população vulnerável socialmente e com muitos guris

semelhantes ao da letra da canção. Gentili (2001/2007, p.31) afirma que “a

normalização da exclusão começa a acontecer quando descobrimos que, no final

das contas, em uma boa parte do mundo, há mais excluídos do que incluídos” o

autor ainda completa: “E ser maioria tem seu custo: a transparência”. Além disso,

pode-se afirmar que as condições de vida do guri se apresentam dessa forma

justamente em função dos seus dramas pessoais, das mazelas sociais. Recorro

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novamente a Gentili quando se refere à exclusão produzida em nossa sociedade,

(2001/2007, p.29),

Para dizer sem muitos rodeios, o que pretendo afirmar é que hoje, em nossa sociedade dualizada, a exclusão é invisível aos nossos olhos. Certamente, a invisibilidade é a marca mais visível dos processos de exclusão neste milênio que começa. A exclusão e seus efeitos estão aí.

Na realidade, o guri representa um dos grupos excluídos e o efeito dessa

exclusão é exatamente as atividades que ele pratica. Esse cenário todo acima

apresentado, me faz refletir sobre a dimensão política da educação, “a escola deve

contribuir para tornar visível o que o olhar normalizador oculta” (Gentili, 2001/2007,

p.42), nas transformações que ela deveria promover nas vidas das pessoas, das

populações mais carentes. Na realidade ao me deparar com essa realidade tão

sofrida e doída, me vem à mente as palavras de Freire (1996/2005, p.111),

Para que a educação fosse neutra era preciso que não houvesse discordância nenhuma entre as pessoas com relação aos modos de vida individual e social, com relação ao estilo político a ser posto em prática, aos valores a serem encarnados. Era preciso que não houvesse, em nosso caso, por exemplo, nenhuma divergência em face da fome e da miséria no Brasil e no mundo; era necessário que toda a população nacional aceitasse mesmo que elas, miséria e fome, aqui e fora daqui, são uma fatalidade do fim do século. Era preciso também que houvesse unanimidade na forma de enfrentá-las para superá-las.

Nesse sentido, a educação tem que servir para todos, só a busca da

universalização da escola pública é muito pouco, ela tem de vir acompanhada de

qualidade, da verdadeira educação, como bem afirma Gentili (2001/2007, p. 41): “

que a igualdade, os direitos e a justiça social são meros artifícios discursivos em

uma sociedade na qual não há lugar para todos. Escola para todos, sim. Mas direito

à educação para poucos”.

Com relação à leitura das alunas, de acordo com os pressupostos de

Vygotsky − e também de Paulo Freire −, o conhecimento deve ser construído na

interação, no diálogo, em outras palavras: ”o conhecimento é considerado como

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uma construção contínua e, em certa medida, a invenção e a descoberta são

pertinentes a cada ato de compreensão” (Mizukami 1986/2006, p.3).

Já de acordo com Piaget, é muito importante nas relações com nossos

alunos, levarmos em consideração suas experiências anteriores. Nesse sentido,

toda a aprendizagem será significativa para o aluno, pois terá uma relação com a

própria vida dele. De acordo os pensamentos de Rogers, que são descritos nas

palavras de Mizukami (1986/2006, p.45):

Uma situação formal de educação seria entendida, na proposta rogeriana, como um encontro deliberado e intencional entre pessoas que objetivam experiências significativas, crescimento, atualização e mudança, que devem caracterizar um processo buscado, escolhido e não obrigado ou imposto. As características inerentes a este processo são a auto-descoberta e a auto-determinação.

Então, podemos dizer que o conhecimento não será estanque e artificial,

pois além de fazer sentido, será também significativo para o aluno. No turno 106

procurei demonstrar um carinho e compreensão para com Joana. As colegas

também fizeram o mesmo, como podemos verificar nos turnos 108 e 110 em que

Cláudia se manifesta. Podemos verificar nesse recorte momentos de interação entre

as alunas, numa relação de amizade e compreensão. Raras vezes, para não dizer

nunca, nesses onze anos como professora, vivi ou senti uma emoção igual a que

experimentei durante essa aula. Sempre soube que as condições de alguns alunos

não eram tão confortáveis, beirando a miséria. Muitas vezes, conversando com eles

ficava sabendo de situações muito tristes, que eu interpretava como uma resposta e

justificativa para algumas ações de indisciplina, rebeldia ou para algum outro ato não

adequado para o contexto escolar. Freire (1996/2005, p.113) comenta sobre escutar

o outro,

Se na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima pra baixo, sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que, em certas condições, precise de falar a ele. O que jamais faz quem aprende a escutar para poder falar com é falar impositivamente. Até quando,

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necessariamente, fala contra posições ou concepções do outro, fala com ele como sujeito da escuta de sua fala crítica e não como o objeto de seu discurso. O educador que escuta aprende a difícil lição de transformar o seu discurso, às vezes necessário, ao aluno, em uma fala com ele.

Nesse recorte, pude realmente perceber a dimensão e o alcance da

utilização do Pensar Alto em Grupo em um evento de leitura e suas implicações para

o ensino. Fica muito evidente aqui minha posição de mediadora, por criar condições

para que as alunas interajam entre si, na busca de um sentindo para o texto lido.

Pode-se notar também, que a Joana percebe uma certa semelhança com o guri da

letra da canção no que se refere aos seus sentimentos em relação a sua mãe, que a

faz relembrar alguns fatos de sua vida e expô-los para o grupo. Esse fato demonstra

que o sentido do texto extrapola muitas vezes o próprio texto, que o contexto sócio-

histórico-cultural também é relevante na construção da leitura, tendo em mente o

pensamento freireano, “a leitura do mundo precede a leitura da palavra, da mesma

maneira que o ato de ler palavras implica necessariamente uma contínua releitura

do mundo” (Freire/Macedo, 1990/2006). Aliado ao exposto acima, citando Pereira

(2003, p. 29) quando se refere a Moita Lopes (1998):

a leitura pode ser vista como um processo social porque o modo como as pessoas lêem será sempre afetado pela forma como o texto atua em suas vidas sociais, já que lêem a partir de um lugar social, cultural e historicamente marcado. Isto é, os significados construídos pelos sujeitos-leitores podem ser diferentes, pois a forma como cada indivíduo concebe a leitura de um texto está diretamente relacionada à maneira como enfrentam suas realidades sociais como homens ou mulheres, brancos ou negros, da classe socias baixa ou alta e muito mais.

Complementando, houve a meu ver, uma interação entre professora e

alunas. Além disso, pude a partir desse evento conhecer um pouco mais do perfil do

meu aluno, partilhar e compartilhar com eles alguns saberes, valores e também

manter com eles uma relação de amizade, de afetividade, tão importantes para o

processo ensino-aprendizagem, sem esquecer, contudo, o nosso objetivo principal

que era o de construção de sentido do texto.

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Em outras palavras, para finalizar as considerações desse recorte, pude

sentir aqui o efeito do que é verdadeiramente escutar o outro.

No próximo recorte, abordo o que poderia pensar a mãe do guri e assim,

tentamos entender o que acontecia com ela, como as alunas construíram sentido em

relação às atitudes da mãe.

7º recorte - Afinal, a mãe sabia ou não sabia?

159 Cláudia Então... chega ao ponto, que a gente tava conversando que

ela não sabia...

160 Joana

ou que ela poderia não saber...mas que ela ficou sabendo no

final... pode ser também... de qualquer jeito aqui...ela mostra

um orgulho pelo filho.

161 Professora

Mas... normalmente a mãe não se orgulha do filho fazendo

coisa errada. Eu, como mãe, não gostaria... que meu filho...

me decepcionaria muito Mas também existe aquele filtro, né?

162 Joana

tipo... ele fez pra me agradar... ele errou... ela no caso poderia

ter brigado...ter dado uma lição de moral nele... ele errou

tudo.... mas ele tentou me agradar ... querendo ou não por ser

mãe... ela não iria criticar ele, como todo mundo faria... ela ia

pensar, mesmo do jeito ruim dele... ele tentou...entendeu? do

jeito dele...mas ele tentou... por ser mãe

Durante toda a leitura, as alunas se mantiveram na mesma posição de

defesa do guri, por justificarem seus atos pelo fato do contexto social não

proporcionar a ele uma chance de melhores condições de vida, de mudança. Como

também fica a dúvida se a mãe realmente sabia ou fingia que não sabia das

atividades do filho, ou não sabia, como podemos ver no turno 159, no qual Cláudia

diz: “Então... chega ao ponto, que a gente tava conversando que ela não

sabia...”. Porém, no turno 160, Joana aventa a possibilidade da mãe não saber,

mas que no final ficou sabendo. No entanto, segundo Joana a mãe tinha muito

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orgulho do guri, pois mesmo ele tendo agido de forma errada, ele fez para agradá-la,

de acordo com os turnos 161 e 162.

Recortei o trecho abaixo, pois nele podemos verificar os meninos se

manifestando, pois até então, eles estavam só ouvindo.

8º recorte - A constatação da realidade...

163 Maria uma coisa que mais me chamou atenção foi essa “Um lenço

e uma penca de documentos Pra finalmente eu me identificar”.

164 Professora O que quer dizer isso,Maria?

165 Maria Então um lenço e uma penca de documentos pra finalmente

eu me identificar ...

166 Professora realmente é estranho,né? onde tá?

167 Maria na terceira...

168 Professora mas onde estava isso?

169 Maria tava na bolsa... na bolsa que ele trouxe ...

170 Joana

é no caso pode ser sim...ele roubou... talvez ele deve ter feito

uma falsificação ou coisa assim... com nome...porque desde

o começo ela relata que não tinha nome pra dar pra ele...

então pode ser assim ... alguma coisa assim parecida.

171 Professora então, quando você vai comprar alguma bolsa, ela vem vazia,

né?

172 Joana com certeza... então é verdade...

173 Cláudia vamos supor... ele encontrou uma mulher na rua, pegou a

bolsa ... tava tudo ali dentro da bolsa da mulher

174 Joana e deu esse presente... deve ter explicado outra coisa pra mãe,

se não ela não teria falado, que legal, que ele me deu...

175 Maria

como diz assim... nessa parte ... e eu não tinha nem nome

para lhe dar...uma mãe solteira,né?... uma mãe que não tinha

sobrenome pra dar, porque não tem um pai,pro filho dela, né?

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176 João

Acho que ele roubou, devido ao fato dela ter falado do lenço e

uma penca de documentos, né? porque os documentos os

documentos na bolsa? Porque se ele tivesse comprado a

bolsa, não teria vindo com documento.

177 Cláudia então ele roubou de alguém

178 João com certeza

179 José ele tá roubando mesmo... no fato dele chegar em casa com

é...carregando pulseira,relógio,pneu, gravador...

180 Professora e isso é um indício...

181 José é um indício

182 Professora a gente também pode até trazer alguma coisa da rua e ter

trabalhado honestamente, né?

183 Cláudia na minha opinião...eu tenho certeza que ele roubou...porque

ela fala assim... chega no morro com carregamento.

184 Joana

e o carregamento, então pode ser uma gíria... das

mercadorias... das assaltos que eles pegaram,né?pode ser

também...

185 Cláudia ninguém dá, eu vou ver um menininho na rua.. toma minha

bolsa...com meus documentos...

186 Maria chega manchete, estampado,retrato, com venda nos olhos,

acho que foi tudo, pra falar que ele roubou

É interessante notar que nós já havíamos passado por esse trecho a que

Maria se refere no turno 163 e agora, na análise, dá a impressão de que ela está

lendo este trecho pela primeira vez. A partir da leitura da Maria, no turno 163, leitura

“bottom-up”, refere-se às pistas deixadas pelo autor no texto. Os meninos começam

a ter uma atitude responsiva, digo isso porque até aqui eles não tinham se

manifestado, mas no turno 176 João diz: “Acho que ele roubou, devido ao fato

dela ter falado do lenço e uma penca de documentos, né? por que os

documentos, os documentos na bolsa? Porque se ele tivesse comprado a

bolsa, não teria vindo com documento”. A partir do turno 170 em que Joana fala

“é no caso pode ser sim...ele roubou...” vai ocorrendo um encadeamento de

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idéias, os fatos relatados pelos alunos vão se encaixando, um completa a fala do

outro. Até os meninos que se mantiveram quietos, começaram a falar como

podemos ver nos turnos 176, 178 e 181. Eles falam bem pouco, é verdade, mas

falam.

Com relação aos meninos podemos dizer que eles falaram pouco, mas na

realidade estavam prestando atenção na discussão das meninas. Porém, se

manifestaram de forma bem categórica e foram enfáticos, como podemos ver,

quando João se reporta à fala de Cláudia, como ilustro a seguir, turno 177 de

Cláudia: “então ele roubou de alguém” e João no turno 178: “com certeza” ou

mesmo no turno 178 quando José, assim se manifesta: “ele tá roubando mesmo...

no fato dele chegar em casa com é...carregando pulseira,relógio,pneu,

gravador...”.

Pensei bastante na atitude dos meninos. Talvez as falas deles tenham sido

decisivas para a construção de outro sentido do texto, pois até então, as meninas

estavam ressaltando a relação entre mãe e filho, se o guri vendia as mercadorias

como camelô e com o dinheiro comprava os presentes para a mãe. Mesmo depois

de eu ter me manifestado no turno 96; “Agora, deixa eu fazer uma pergunta pra

vocês... o que eu fico intrigada, é o seguinte, no texto fala assim: “... trouxe

uma bolsa já com tudo dentro chave, caderneta, terço e patuá, um lenço e uma

penca de documentos”. O que vocês acham disso?”. Depois desse turno,

percebi que constataram haver algo de errado, mas posteriormente o enfoque foi as

declarações da Joana e seu histórico de vida: desviaram do assunto. No 161 eu falo:

” Mas... normalmente a mãe não se orgulha do filho fazendo coisa errada. Eu,

como mãe, não gostaria... que meu filho... me decepcionaria muito Mas

também existe aquele filtro, né?”, deixando claro que havia algo de errado nas

ações do guri. Ao analisar agora, percebo que as meninas tinham uma visão mais

idealizada, enxergavam o guri que vivia em péssimas condições, morava em uma

favela ou morro, mas apesar de toda violência a sua volta, ele não fazia nada de

errado. Na visão delas, um fato muito importante a ser evidenciado, ele amava e era

muito grato à sua mãe.

Por outro lado, os meninos têm uma visão mais realista dos fatos,

enxergando e construindo sentido de uma forma totalmente diferente das meninas.

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Então, posso dizer que eles estavam calados, porém estavam prestando atenção no

que estava acontecendo, isto é, estavam processando para poder participar. Em

outras palavras, podemos dizer que estavam tendo uma atitude responsiva. Muitas

vezes em sala de aula, nos deparamos com alunos que ficam quietos, não se

manifestam no calor de uma determinada discussão, mas posteriormente emitem

suas opiniões de forma coerente e sensata. Estes fatos mostram o quanto lidamos

com uma diversidade muito grande de alunos, tanto no que se refere às

características da personalidade, como nas condições sociais e culturais.

No que se refere à construção de sentidos, a compreensão implica na

negociação: uma postura dialógica e não passiva diante de qualquer texto ou

explicação. Ao ler um texto ou ouvir uma explicação, de acordo com Bakhtin,

adotamos uma atitude responsiva, isto é, aceitamos, concordamos ou discordamos

total ou parcialmente.

O ouvinte que recebe e compreende a significação (linguística) de um discurso adota simultaneamente, para esse discurso, uma atitude responsiva ativa: ele concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para executar, etc., e esta atitude do ouvinte está em elaboração constante durante todo processo de audição e de compreensão desde o início do discurso, às vezes já nas primeiras palavras emitidas pelo locutor. (Bakhtin, 1992/2000, p.290)

Podemos notar então, que o leitor atento está em constante elaboração, isto

é, ao ler um texto, ele pode fazer uma leitura do tipo “top-down”, depois de verificar

que não era a mais adequada, depois de fazer uma do tipo “bottom-up”, depois

inferir, retornar. Da mesma forma que ocorreu na leitura do texto “O Meu Guri”, o

grupo começou por um processo “top-down”, levantando hipóteses de interpretação

que no final foram revistas.

Nesse último recorte, as alunas falam sobre o que acharam do evento de

leitura.

9º recorte - Finalizando, sentindo necessidade de mudanças...

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203 Professora E no caso, esse “chegou lá” significa o quê? Que ele se deu

mal ou bem?

204 Cláudia na nossa opinião, da Cláudia e da Maria, a mãe dele viu que

ele chegou num lugar que ela não queria...

205 Maria

Ela queria que ele se tornasse uma pessoa trabalhadora,

honesta... mas muito pelo contrário, ele se tornou um

ladrão,né? E chegou em algum lugar mas... não onde a mãe

dele queria...

206 Cláudia Ela queria que ele se tornasse uma pessoa trabalhadora,

honesta, mas ele se tornou um ladrão.

207 Maria Essa é a graça do Chico Buarque. Ele nos faz pensar em

como interpretar esse texto. Cada um tem a sua opinião.

208 Joana Agora... No caso ... A gente batendo papo... a gente consegue

...

209 Professora

Então, deixa eu fazer uma última pergunta. No começo,

quando vocês leram sozinhos, vocês tinham entendido tudo

isso?

210 Todos Não.

211 Cláudia Foi uma idéia se juntando com a outra...

212 Maria E a gente conversando e interpretando, a gente conseguiu

chegar a alguma coisa.

213 Professora Aí, é interessante, porque essa é uma proposta de ensino.

Vocês concordam comigo que seria muito positiva?

214 Cláudia Acho que ia ser melhor. Porque você sozinho não chega a

uma conclusão...

215 Joana

Sozinho você chega em uma parte... por exemplo... ela

chegou em uma, eu cheguei em outra e ela em outra...e todos

unidos... chegamos a uma conclusão...

216 Professora

Isso que nós fizemos aqui... foi uma leitura e houve interação

entre vocês, socializamos as idéias e tentamos entender as

coisas.Obviamente que o professor tem que ter o domínio,

mas o aluno também tem. Existe a crença que o aluno não

sabe nada. Mas vocês construíram o sentido do texto

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sozinhos, praticamente...

217 Cláudia

Seria ótimo se todos os professores sentassem e

conversassem. Porque não adianta só sentar e copiar. Acho

que a gente tem que discutir o que a gente leu.

218 Professora Muito obrigada. Agradeço a vocês pela disposição em

colaborar!

No final, verificamos que é possível ter mais de uma leitura do texto,

dependendo do histórico sócio-cultural do leitor, a partir de suas experiências,

pontos de vista. O leitor fica propenso a ter uma leitura própria do texto que lê e o

sentido do texto passa a ser particular. Os próprios alunos chegaram à conclusão de

que a interação social no ato da leitura é importante na construção de sentido, como

podemos notar no turno 211, quando Cláudia diz, “Foi uma idéia se juntando com

a outra...”.

Foi possível também constatar que os alunos sentem a necessidade de

mudanças nas práticas pedagógicas de leitura em sala de aula. Eles sentem a

necessidade do diálogo, de poderem expressar suas opiniões, de serem sujeitos da

construção do conhecimento e não simplesmente se sujeitarem e manterem uma

relação subserviente, característica de uma educação bancária, que Paulo Freire

sempre abominou na educação.

3.1.1 - Gráficos – Participações nos turnos de fala da 1ª vivência – “O Meu

Guri”

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Gráfico 1

O gráfico 1 demonstra o total de 218 turnos de fala.Desse total, 161 turnos

de fala pertencem a todos os alunos e 57 turnos de fala da professora.

Gráfico 2

O gráfico 2 refere-se a distribuição dos turnos de fala da 1ª vivência

referente ao texto “O Meu Guri”. Podemos verificar que na vivência tivemos 218

turnos de fala, assim distribuidos: Professora – 57 turnos; Maria – 50 turnos; Cláudia

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– 48 turnos; Joana – 47 turnos; Cristina – 11 turnos; José – 2 turnos; João 2 turnos e

todos se manifestaram juntos – 1 turno.

O gráfico nos mostra que a participação maior foi da Maria – 50 turnos

seguida de Cláudia – 48 turnos e Joana - 47 turnos e a professora com 57 turnos.

Notamos que, embora pequena, a participaçao dos meninos, João e José,

foi muito interessante, pois, enquanto as meninas ficaram um bom tempo com a

leitura top-down, em uma visão idealizada do texto, os meninos se manifestaram

com segurança construindo uma leitura mais realista.

Gráfico 3

A leitura desse gráfico pode demonstrar que em termos quantitativos os

alunos tiveram maior participação, ou seja, 74% ou 161 turnos, comparando com a

professora que teve 26% ou 57 turnos de fala durante a 1ª vivência.

Em outras palavras, significa que os alunos participaram de forma

expressiva na 1ª vivência.

3.1.2 - Reflexões sobre a primeira vivência

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Ao refletir sobre a primeira vivência, posso dizer que, quando se tem contato

somente com a teoria, parece que é fácil colocá-la em prática. Ledo engano, pois, ao

tentar implementá-la, pude verificar que no desenrolar da atividade, encontrei

algumas dificuldades.

Em primeiro lugar, por se tratar de uma prática pedagógica diferente da que

eu vinha desenvolvendo em sala de aula, então tive de me apropriar dela, para

enfim colocá-la em prática. A conscientização em relação à necessidade da

mudança é importante, porém, como as práticas tradicionais estavam entranhadas

no meu proceder, é difícil me desfazer dessa visão antiga. É como se estivesse

incrustada em mim. É muito interessante, pois, apesar da convicção da

necessidade de mudança, a implementação é custosa, como aconteceu logo no

início e, às vezes, ao longo da vivência também.

Por outro lado, é notório que os alunos também estão habituados a um

formato de aula, mesmo que muitas vezes reclamem e queiram a mudança da

metodologia. Quando isso é proposto e há uma tentativa de se colocar em prática

um novo proceder, verificamos que ainda persiste a repetição da forma anterior, eles

não se dão conta imediatamente. Assim aconteceu logo no início da primeira

vivência. Eles estão acostumados à relação ensino/aprendizagem de forma vertical,

isto é, a última palavra sempre é a do professor, numa situação em que o professor

impõe: uma educação bancária.

Percebo que tenho de melhorar muito ainda as minhas intervenções e

propiciar momentos de reflexão para meus alunos. Desta forma, preciso desenvolver

a formulação de perguntas que façam o aluno pensar, refletir; enfim, que promova o

diálogo. Preciso formular perguntas que levem o aluno a perceber e aproveitar os

momentos, para suscitar novas formas para a negociação de sentido do texto.

É notável que estou em processo de mudança. E percebo também que já

houve uma mudança e um avanço nas minhas ações na vivência do Pensar Alto em

Grupo, o que fica evidente na análise. Por exemplo, procuro deixar os alunos

interagirem entre si, assim como não imponho a minha opinião, isto é, não faço

comunicados, ao contrário disto, tento me comunicar com meus alunos.

No início das vivências, assim como eu professora-pesquisadora, os alunos,

estavam apreensivos, visto que exagerei em fazer muitas perguntas. Mas depois

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eles começaram a interagir entre si. Porém, ainda existe um longo caminho a

percorrer. Acredito até que esses equívocos contribuem para que eu possa refletir e

mudar minha prática em sala de aula. Dessa forma, passo a analisar a segunda

vivência e fazer uma comparação entre as duas.

3.2 - Análise da segunda vivência – Texto “Roda-Viva”

Nesta segunda vivência, estavam presentes 6 alunos do 2º ano do Ensino

Médio, sendo: quatro meninas, Sônia, Vera, Lúcia e Cristina, e 2 meninos, José e

João, e eu professora-pesquisadora. Do grupo focal da primeira vivência só estão

presentes Cristina, José e João; as três meninas que haviam participado da primeira

vivência não puderam comparecer nesta segunda. Isso ocorreu, pelo fato de tratar-

se de alunos do período noturno, que trabalham e estudam. Muitas vezes por eles

dependerem de condução, como também por vários outros fatores que acabaram

impossibilitando a participação nas duas vivências. Da mesma forma como

aconteceu na primeira vivência, os nomes verdadeiros foram substituídos por outros

fictícios, preservando dessa maneira, a identidade dos alunos. O texto a ser lido

nessa vivência é a letra da canção “Roda-Viva”, composição de Chico Buarque de

Holanda, para a peça teatral Roda-Viva, escrita em 1967.

Como foi feito na vivência anterior, estávamos sentados em círculo.

Inicialmente, falei sobre o texto a ser lido e sobre o autor. Tanto a professora quanto

os alunos estavam meio apreensivos, em parte por causa do uso do gravador.

Solicitei aos alunos que lessem o texto silenciosamente. Após a leitura, começamos

a vivência do Pensar Alto em Grupo. Podemos perceber que as alunas já começam

a falar sobre o tema da música, no caso a ditadura, não foi preciso eu fazer qualquer

tipo de pergunta.

1º recorte - Duas leituras...

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1 Professora

Então eu vou passar a palavra a vocês e gostaria que vocês

interagissem e construíssem uma leitura... uma interpretação

desse texto.

2 Sônia

Bom, o título do texto já diz tudo, né? Roda-Viva. Você lendo o

texto, por exemplo, nessa estrofe: “A gente vai contra a

corrente até não poder resistir”. Então a gente tá sempre

assim, lutando contra alguma coisa. “A mais linda roseira que

há Mas eis que chega a roda-viva E carrega a roseira prá lá”.

Ou seja, você constroi alguma coisa na sua vida, dá uma volta

e perde aquilo que você tinha construído. Ele cultivou a

roseira mais linda que existia, só que veio a roda-viva, da vida

mesmo, e por exemplo, tem um ditado que diz “O mundo dá

voltas, um dia você tá em cima e no outro você ta embaixo”. E

a base do texto tá praticamente nisso.

3 Professora Muito bem...

4 Vera

Ah, que ele é voltado pra ditadura militar, né? Então ele fala

que na época eles não tinham liberdade de se expressar.

Porque qualquer coisa que eles fizessem, vinham os militares

e derrubavam eles pra eles não ter o direito de expressar suas

próprias opiniões sobre o que eles achavam da ditadura. E o

Chico Buarque, no caso, expressava isso nas músicas,

mesmo essas músicas sendo proibidas na época. Era o que

ele tava tentando expressar, que mesmo você construindo as

coisas com o maior amor que fosse, sempre tem alguém mais

forte que você e se ela não gostar ela vem e te derruba

5 José Como se a autoridade fosse a roda-viva, certo?

6 Professora Como poderia ser a roda-viva?

7 José

A roda-viva, eu acredito que seria o seguinte: é... a

autoridade. Vamos supor, eles tavam querendo lutar por

alguma coisa, por exemplo, “A gente queria ter voz ativa pro

destino mandar”. Eu acredito que nessa parte ele tá falando

que eles queriam... o povo queria mais... ter a voz assim...

8 Sônia Uma democracia.

9 José

É... uma democracia. Que eles pudessem ver o que é melhor

pra eles. Mas autoridade, muitas vezes, não concorda, com

essas coisas.

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10 Vera

Tivessem direito a livre expressão deles. Os pensamentos, as

ações deles pudessem ser aceitas por pessoas de maior

poder, vamos dizer, político em cima daquilo da vida deles,

entendeu? Por exemplo, eu tenho uma idéia só que eu não

posso expressar pra você, num posso conversar com vocês

sobre o que eu penso. Tenho que guardar minha opinião pra

mim porque eu sei que eu não posso ser aceita ou de

qualquer forma eu não vou ser aceita, então eu nem expresso

minha opinião e eu guardo pra minhas coisas. Ou da mesma

forma que eu posso expressar e as pessoas virem me criticar

sobre a minha opinião

Nesse primeiro recorte, logo no início, já podemos ver duas leituras

construídas, que representam dois processos de contextualização diferentes. Sônia

no turno 02, fala sobre as mudanças da vida, enquanto nos turnos 04 e 10, Vera fala

que a letra da canção nos remete para os anos da ditadura, apoiada em seu

conhecimento prévio, pensando no contexto de produção do autor. O que se mostra

interessante é que a leitura que Sônia havia feito − e eu a apoiei legitimando sua

leitura −, não foi apoiada pelo grupo.

É importante apontar que as duas leituras são metafóricas. Noto que nesse

início a minha postura está bem diferente daquela, cujo texto lido era “O Meu Guri”.

Nos meus dois turnos, procurei legitimar a voz de Sônia. No turno 03 e no turno 06,

a minha intervenção foi no sentido de expandir o assunto. Percebo que os alunos

também estão interagindo, construindo sentidos do texto de acordo com seus

conhecimentos prévios, como é previsto na teoria do Pensar Alto em Grupo (Zanotto

1995). No turno 10, Vera dá a exata dimensão do que é se sujeitar a alguém, de às

vezes não poder expor seus pensamentos, uma lucidez e clareza de pensamentos

que me impressionam. Fico, agora, pensando, como nós, educadores, abafamos a

voz dos alunos, atrelados a essa visão tradicional de ensino. Percebo que eles falam

de uma forma, como se estivessem sufocados por um longo tempo, como se fosse

um alívio falar e, na realidade, é isso mesmo.

2º recorte - Mudança de rota... Necessária ou não?

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11 Sônia Naquela época já era mais...

(longo silêncio)

12 Professora Todos aqui tem noção do que foi a ditadura? Quando teve a

ditadura aqui no Brasil, digamos assim?

13 Sônia Ah, sessenta e alguma coisa, num foi?

14 Professora Quem assumiu o poder ? Como era politicamente...

15 Sônia Getúlio Vargas? Juscelino Kubistchek? Eu não lembro...

16 Professora É uma época recente, não é? o governo militar, Castelo

Branco...

17 Vera Fernando Collor...

18 Professora

Lembram-se das Diretas Já? Em termos de história, é uma

coisa recente, não é? E ditadura todo mundo sabe o que

significa?

19 Lúcia Eu sei, mas não sei explicar. Eu acho que é quando alguém

impõe aquilo pra você. Você tem que seguir aquelas regras.

20 Professora E quem no caso tava impondo alguma coisa?

21 Lúcia Os militares.

22 Professora

E aí, todos os presidentes eram militares, né? A gente não

podia ter uma aula semelhante a essa. Mas... é uma aula...

que, dependendo do que você falava, o professor era preso.

Porque era contra, era revolucionário. Chico Buarque de

Holanda foi exilado. Essa música realmente foi escrita nessa

época. Mas, a gente pode ler de outra forma, né? Então eu

gostaria que vocês também... quem não tem esse respaldo e

quisesse continuar lendo, é possível ler sobre outro aspecto

também. Por exemplo, o que essa música quer dizer pra

você?

23 Vera Na ditadura tinha os militares que impunham suas regras mas,

???????

24 Professora

... então se você for transportar pro contexto da ditadura, a

roda-viva eram os militares... digamos que um jovem de hoje

fosse ouvir essa música... o que seria a roda-viva hoje em

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dia?

Nesse recorte, centralizo a voz em mim, isso aconteceu porque houve um

silêncio muito longo, logo após Sônia falar no turno 11. Vera, com seu conhecimento

prévio sobre a música relacionada à ditadura militar, fala sobre o regime político

durante o qual os militares governaram o Brasil. Porém, somente ela tinha esse

conhecimento, ou pelo menos os demais não estavam se lembrando disso naquele

momento. Então, com algumas perguntas como no turno 12 “Todos aqui tem

noção do que foi a ditadura? Quando teve a ditadura aqui no Brasil, digamos

assim?” e no turno 16 “É uma época recente, não é? o governo militar, Castelo

Branco...”, e no turno 18 “Lembram-se das Diretas Já? Em termos de história, é

uma coisa recente, não é? E ditadura todo mundo sabe o que significa?” Eu

tentei resgatar os conhecimentos para que continuássemos a negociação de

sentido, porém, foi em vão. Então no turno 22, tornei a centralizar a voz em mim,

para finalmente, no turno 24, indicar que havia um outro caminho.

Vejamos o que aconteceu neste turno, analisando a minha pergunta no

turno 12. Agora, distante do evento, posso ver que eu deveria fazê-la de forma

diferente, pois pareceu que eu estava verificando os conhecimentos dos alunos. Na

realidade, eu estava tentando resgatar o diálogo, porque ficamos alguns minutos em

silêncio, mas as perguntas que eu utilizei são fechadas e certamente, pedem uma

resposta, que na realidade acabou não vindo, então a leitura da Vera não evoluiu.

No turno 24, mais uma vez tento restabelecer o diálogo e a negociação de

sentido, procuro trazer a leitura para a vida dos jovens hoje em dia. Só depois da

transcrição e na fase da análise, percebo o dilema pelo qual passei e concluo que

não é fácil a condução do Pensar Alto em Grupo: não podemos prever o que irá

acontecer, não temos idéia do que o aluno vai falar, por conseguinte, não dá para ter

perguntas e respostas prévias para a leitura que irá se concretizar. Talvez, se eu

tivesse feito uma mediação menos diretiva, poderíamos ter ido pelo caminho que a

leitura estava tomando. No entanto, não temos como saber, porque os alunos agora

já não são os mesmos, pois mudamos a cada experiência.

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Então, vamos ao próximo recorte, podemos verificar que os alunos

relaconam o texto à vida deles.

3º recorte - Restabelecendo o diálogo... A realidade é cruel...

25 Lúcia

É... os poderosos... porque eles pensam no dinheiro só. Como

eles têm dinheiro, aí eles vão lá e atacam o país, assaltam,

saqueiam o país por interesses próprios deles ou egoísmo

deles. A vontade de conseguir dinheiro e mais dinheiro em

cima de coisas do outros. Só que lá é um país pobre

26 João

Como o próprio chefe. O chefe... ele não quer saber como tá

sua vida fora do serviço. Ele quer você lá, vidrado no serviço

ganhando dinheiro pra ele. Ele tá pouco se lixando pra sua

família, como você se sente, sua saúde. Você tá passando

mal, você sai pra ir pro hospital, muito chefe, meu... eles não

tão aí com sua saúde.

27 Lúcia

E também acham que as pessoas são máquinas. Eles

pensam neles e acabou. Os outros, morra. Os Estados Unidos

tem um pensamento assim.

28 Professora Então, a gente tá falando de dinheiro, chefe, ditadura. Em

outras palavras,o que seria tudo isso?

29 Vera Submissão.

30 Professora Submissão, exatamente... A submissão leva a quê?

31 Vera Ao desgaste humano, da pessoa.

32 Sônia Você ser submisso, é você não ter autoridade sobre nada. Ter

alguém controlando você.

33 Vera

Você não tem autonomia. Ou seja, você não tem direito a

mandar na sua própria vida, porque tem outras pessoas

mandando nela por você. Você não tem direito à sua livre

expressão

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34 Lúcia

Na submissão, a gente não pode ter o que nós tamos tendo

agora, que é um debate e cada um expressando suas idéias.

Ser submisso é seguir o que aquela pessoa quer e você não

pode ter opinião sobre nada.

35 João

Hoje em dia o mundo gira em volta disso, basicamente, né?

Porque se você quer ter um emprego, se você quer colocar

comida dentro de casa, você tem que ser submisso a uma

pessoa.

36 Lúcia

Você não pode chegar no seu serviço a hora que você quiser,

você não pode usar a roupa que você quer...

???????????????

houve um longo silêncio

Depois da situação difícil por que passei, conseguimos restabelecer o

diálogo.Os alunos dialogaram entre si, os pensamentos e as ideias foram se

encaixando, mesmo abandonando a leitura da ditadura propriamente dita, que

reinou no Brasil no passado. Mesmo assim, o assunto está presente, pois os

diálogos giraram em torno da ditadura dos mais fortes sobre os mais fracos. Quer

seja o domínio dos americanos, quer seja do chefe capitalista, da política neoliberal,

do poder do dinheiro, que os alunos sentem tão bem os efeitos na própria pele.

No turno 28 eu fiz uma pergunta do tipo fechada, isto é, objetiva, e obtive

uma resposta monossilábica.

Embora a resposta tenha sido monossilábica, na análise percebi que foi

adequada, porque sintetizou o tema central do diálogo. Mas, no momento da

vivência achei que estava errando e, assim pensando, consciente ou

inconscientemente, fiz o revozeamento (O‟Connors & Michaels,1996) no turno 30 e

Vera e Sônia nos turnos 31 e 33 continuaram desenvolvendo a idéia.

Nesse recorte, percebe-se a visão crítica que os alunos têm da vida, das

relações relativas ao trabalho, ao poder do dinheiro, ao fato de muitas vezes termos

de nos submeter a determinadas pessoas ou situações por uma questão de

sobrevivência, do jogo social de quem pode mais chora menos, da impessoalidade

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das relações no ambiente profissional. Esse pensamento fica muito claro nos turnos

26 e 35, proferidos por João. Todos os alunos são unânimes em falar nos aspectos

referentes à submissão, à falta de autonomia, ao abafamento da voz a que são

submetidos e também à homogeneização, quando Lúcia, no turno 36, refere-se à

roupa que quer usar e ela não pode, talvez fazendo menção ao uso do uniforme,

que muitos trabalhadores são obrigados a adotar, por imposição do empregador.

Todas essas leituras possíveis são respaldadas pelo conhecimento prévio, pelo

extrato sócio-histórico-cultural do grupo em que estão inseridos.

Freire (1970/2005) refere-se justamente a essa submissão que as

classes menos favorecidas vivem e convivem no seu cotidiano e segundo o autor,

compete à educação não perpetuar esse tipo de situação. O Pensar Alto em Grupo,

como instrumento pedagógico se afina com esse pensamento, na medida em que

possibilita esse formato de prática de leitura. A leitura de um texto passa a ser

significativa, a partir do momento em que encontra respaldo nos conhecimentos

prévios dos leitores, nas suas experiências pessoais.

Como já mencionei anteriormente, parecia um desabafo, depois de falarem

ininterruptamente, houve um profundo e significativo silêncio, talvez por tomarem

consciência do que vivem.

Termino a análise desse recorte, reportando-me ao 2º recorte, mais

especificamente ao turno 19, quando Lúcia fala sobre ditadura, “Eu sei, mas não

sei explicar. Eu acho que é quando alguém impõe aquilo pra você. Você tem

que seguir aquelas regras." Naquele recorte, alguns não souberam falar sobre a

ditadura militar que houve no passado aqui no Brasil. Porém, com conhecimento de

causa eles souberam falar da ditadura de uma forma muito apropriada, de acordo

com os turnos analisados nesse recorte, pois relacionaram o tema com a vida deles.

Nesse sentido, acredito que tenha sido válido quando criei condições para

que eles pensassem em outra direção, lá no turno 24, quando eu disse: “... então se

você for transportar pro contexto da ditadura, a roda-viva eram os militares...

digamos que um jovem de hoje fosse ouvir essa música... o que seria a roda-

viva hoje em dia?”. Ao término da análise desse recorte, ou seja, o 3º recorte,

pude perceber, o quanto os alunos participaram. Então, a tentativa de mudar a

direção da conversa, desvinculando-a do contexto histórico do autor, direcionando-

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os para a recontextualização nos dias atuais e na vida deles, foi muito válida,

conforme observado acima.

Nesse próximo recorte, a discussão parte para a mudança que às vezes

temos que fazer na nossa vida, quando percebemos que alguma coisa nos

incomoda.

4º recorte - Será que é possivel reverter...

37 Professora Pessoal, e quando ele fala assim “A gente vai contra a

corrente Até não poder resistir Na volta do barco é que sente”.

38 Vera

É que muitas vezes, mesmo a gente vendo que algumas

coisas a gente tem que ser submisso, que nem no emprego

se a gente não for submisso àquele chefe a gente não vai ter

como se sustentar, não vai ter como viver. Só que muitas

vezes algumas pessoas lutam contra isso, entendeu? Se

expressam mesmo sabendo que vai bater de frente.

39 Professora Sim... sim.. lutam contra... reagem...

40 Vera

Aí ele tá nadando contra a maré, entendeu? Que nem, você

vem e impõe que quer que eu faça esse trabalho em azul e eu

vou brigar porque eu quero fazer em rosa, ou seja, to lutando

contra você, entendeu? Muitas pessoas fazem isso, só que é

sempre o mais forte que ganha. E no mundo, hoje, é sempre

quem tem mais dinheiro, quem tem mais poder que vence. Aí

a gente vai sentir as conseqüências depois porque de uma

forma ou de outra ele vai se vingar por você ter ido contra as

ideias dele.

41 Professora E esse tipo de atitude, gera ...

42 Vera

Raiva. Você se sente inferior a outra pessoa. O pior

sentimento que você pode sentir, acho que é inferioridade. É

um sentimento que acaba com qualquer um. Acho que

ninguém gostaria de se sentir inferior, porque ninguém é

melhor do que ninguém. Alguns têm mais facilidade de fazer

alguma coisa, mas ninguém é melhor do que ninguém. Todo

mundo tem a mesma capacidade de conseguir chegar a

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algum lugar, é só querer

43 Sônia

E a música também mostra que ao passar dos anos, isso não

muda, continua. E tem pessoas que acabam desistindo. “Foi

tudo uma ilusão passageira

44 Professora Então,posso dizer que isso gera uma sensação de

impotência?

45 Todos Sim.

46 José

Muitas vezes, sim. A maioria das vezes, sim. Pra algumas

pessoas, não. Pra algumas pessoas, elas vão procurar outra

forma de tentar. Algumas já desistem logo de cara. Depende

da força de vontade de cada um.

47 Professora Isso você quer dizer a subjetividade, né? As coisas batem de

forma diferente pra cada um.

48 Vera

É só você saber trabalhar a sua mente. Se ela tiver numa

situação ruim, eu consigo lidar melhor do que ela, ou vice

versa.

49 Sônia

Porque o que essas pessoas querem é que a gente se sinta

impotente, porque, quanto mais a gente se sentir impotente,

menos a gente vai lutar pelas nossas próprias vontades e vai

ter que se sujeitar a fazer a deles.

Depois de um profundo silêncio e de eles falarem, de forma enfática, sobre a

imposição dos poderosos e do cerceamento da liberdade de se expressar e de agir,

refiro-me a um trecho da letra da canção mediando a situação. E, para tentar

mostrar que é possível mudar, no turno 37 perguntei a eles, “Pessoal, e quando ele

fala assim “A gente vai contra a corrente Até não poder resistir Na volta do

barco é que sente”.. No turno 38, Vera faz uma leitura levando em consideração

sua visão de mundo e logo em seguida, no turno 39 eu a revozeio. E como se fosse

uma injeção de ânimo, ela continua a falar no turno 40, continua a ler tendo como

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base seu conhecimento de mundo, assim como faz reflexões sensatas sobre a

leitura e fala das imposições pelas quais passa e exemplifica com suas experiências,

dizendo que o mais poderoso sempre vence, mas é possível reagir, lutar, não se

deixar esmorecer. No turno 41, faço uma mediação, para que ela continue em seus

pensamentos e ela, no turno 42, faz uma leitura inferencial sobre o sentimento de

raiva e inferioridade, face aos desmandos dos poderosos. Porém, no turno 43, Sônia

fala da imutabilidade da sociedade capitalista e das mudanças, de acordo com sua

leitura “bottom-up”, pois na letra da canção diz e ela repete “Foi tudo ilusão

passageira”, isto é, tudo volta a ser como antes, nada muda, como podemos ver,

no turno 43: “E a música também mostra que ao passar dos anos, isso não

muda, continua. E tem pessoas que acabam desistindo. “Foi tudo uma ilusão

passageira”. José, porém, já tem outra visão sobre o assunto. Segundo ele, as

mudanças podem ocorrer, dependem muito de cada pessoa. No turno 46, ele fala:

“Muitas vezes, sim. A maioria das vezes, sim. Pra algumas pessoas, não. Para

algumas pessoas, elas vão procurar outra forma de tentar. Algumas já

desistem logo de cara. Depende da força de vontade de cada um“. Neste caso,

ele faz uma leitura ativando seus conhecimentos prévios.

Para finalizar, na análise dos dados, percebi que, durante a vivência, fiz uma

pergunta no turno 42 que exigia como resposta um sim ou não. Fiquei surpresa

porque todos responderam no turno 45, sim. No entanto, no turno 46, José faz uma

reflexão sobre a leitura, ativando seu conhecimento de mundo e no turno eu fiz um

revozeamento da voz de José, achando que ele iria se manifestar, mas quem se

pronunciou foi Vera seguida de Sônia. Nesse caso, houve uma interação entre os

participantes, demonstrando que eles estavam engajados na construção do

conhecimento, na troca de ideias, enfim de compartilharem seus saberes.

O motivo de ter feito o recorte abaixo foi justamente evidenciar as palavras

de Sônia, quando ela diz que, na sua vida profissional, trata as pessoas de forma

diferenciada, isto é, as pessoas não iguais, mas depois diz que todas as pessoas

são iguais.

5º recorte - O paradoxo - “não trata a pessoa da mesma forma” ... “pra mim

todas as pessoas são iguais”

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99 Sônia

Porque de qualquer forma, sempre uma pessoa mais humilde

sempre se sente mais submissa a uma pessoa que tem mais

dinheiro. O olho dela, ela já enxerga a pessoa com dinheiro de

outra forma. Uma pessoa, vai, vamos dizer pobre nunca vai se

sentir bem perto de uma pessoa muito rica, porque ela sabe

que ela não tem aquilo que a outra pessoa tem...Ela se sente

inferior, naturalmente ela se sente inferior, ela tem complexo

de inferioridade sobre a outra pessoa.

100 Cristina Mas ai que tá, muitas vezes esse preconceito vem até da

própria pessoa, né, num vem nem de fora...

101 Sônia

Da própria pessoa, uma coisa que tá dentro dela ali, guardada

no inconsciente dela, mas quando acontece a situação, se for

uma pessoa muito rica que...ela já...já tipo...ela já vai se

transforma, por exemplo, eu tô...no meu serviço, eu lido com

pessoas que têm pouco dinheiro e pessoas que têm muito

dinheiro. Só que naturalmente, mesmo que você não queira,

ah ...você trata a pessoa que tem mais dinheiro, você dá

aquela atenção mais especial, a pessoa que não tem

tanto...você já não...você já não vai trata da mesma

forma...porque você já se sente submissa à pessoa....você

fala assim: a pessoa é mais poderosa do que eu, eu não

posso tratar ela de qualquer forma, entendeu? Se você tem

um tempo pra atender uma pessoa que tem mais dinheiro e

uma que tem menos...você vai assim...dá mais atenção pra

que tem mais dinheiro porque você se sente mais submissa,

você sente uma...inferior à ela.

102 Professora Mas a gente tem que pensar...mas a gente tem que pensar

que nós somos seres humanos, né?

103 Sônia

Então, eu...eu tenho esse pensamento, somos seres

humanos, ninguém é melhor do que ninguém, nós temos as

mesmas capacidades, só que do nosso conceito uma coisa

que vem assim...

104 Cristina Que já é uma coisa habitual...

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105 Sônia

Por mais que eu não queira, por mim...pra mim todas as

pessoas são iguais, independente de classe, cor, crença, todo

mundo é igual, entendeu, nós viemos de uma...assim tem

aqueles, eu sou branco num sei o que lá. Em primeiro lugar

que no Brasil não existe branco, nós somos uma raça

totalmente misturada assim, não existe raça pura aqui. Porque

desde o princípio, nós somos um país, assim...que tem

tudo...índio, português, alemão, africano, japonês, tudo tudo

tudo tudo...e é mistura, tudo misturado...miscigenação.

106 Professora

E aí, mais alguma coisa... chegamos ao final? Então ...

Quero agradecer a vocês... a colaboração Gostei muito,

esperado que vocês tenham gostado também, tá bom?

Nesse último recorte, no turno 99, Sônia fala sobre o preconceito que existe

em relação às pessoas menos favorecidas, por parte das pessoas que têm muito

dinheiro. Em suas palavras, percebemos que ela está ativando seu conhecimento de

mundo para refletir sobre a leitura do texto. Fala também sobre o complexo de

inferioridade. No entanto, no turno 101, Cristina, apoiada na sua visão de mundo, diz

que o preconceito está justamente nas pessoas que se dizem vítimas do

preconceito, rebatendo as reflexões de Sônia.

Pelas imposições profissionais e sociais, Sônia, muitas vezes, diz que trata

melhor as pessoas com mais dinheiro, pelo fato de se sentir submissa a estas

pessoas, de acordo com o que diz no turno 101. Porém, no turno 102, faço uma

mediação no sentido de ela perceber que, muitas vezes, nós também temos que

fazer nossa parte, com relação a essa distinção tão marcante. E no turno 103, ela já

re-elabora seus pensamentos. Como consequência, no turno 105, Sônia fala que as

pessoas são todas iguais, não havendo distinção entre elas, o que me parece uma

contradição ao que disse no turno 101. Trata-se de um paradoxo de uma sociedade

injusta, que devemos procurar reverter com uma educação de melhor qualidade e

que propicie ao aluno ser sujeito da construção do conhecimento, valorizando-o

como um ser histórico e social, consequentemente fortalecendo sua auto-estima.

Essa vivência foi muito interessante, porque os alunos puderam refletir de forma

bem crítica, a partir da leitura que fizeram do texto. Notei que, apesar de serem

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muito jovens, sabem perfeitamente como é o jogo na sociedade: o poder do

dinheiro.

Nesse recorte, minha participação foi estar presente, ouvir, estar atenta,

notei que os demais alunos permaneceram quietos, prestando atenção nas palavras

de Sônia.

Sônia é uma menina muito falante, ativa, então ela polarizou a atenção de

todos os participantes. Muitas vezes, encontramos alunos com essa atitude em sala

de aula, que contrasta de forma bem acentuada com outros que falam pouco ou que

não falam praticamente nada. Compete ao professor nessas situações criar

condições para que esses outros alunos também participem.

Em outras palavras, essa situação me faz refletir, a partir da análise que

estou fazendo da vivência, que atitudes de alunos que não falam muito, ou que não

participam durante a aula, são muito frequentes no cotidiano escolar. Além disso,

alunos com o perfil semelhante ao de Sônia tendem a reforçar ainda mais a

passividade de outros alunos, aliados também a uma visão tradicional de leitura a

que eles já estão habituados.

Nesse sentido, é sempre muito oportuno que o professor esteja sempre

atento ao contexto da sala de aula como um todo, visando a uma participação mais

equilibrada dos alunos.

Nesse recorte então, no que se refere à minha postura, mesmo eu tendo

feito uma mediação, no sentido de propiciar a Sônia que re-elaborasse seus

pensamentos e refletisse sobre o que estava falando, eu não incentivei os outros

alunos a falar e sair da passividade, embora eu saiba, que o ouvinte ou o leitor estão

sempre em constante processamento de ideias e pensamentos.

3.2.1 - Gráficos – Participações nos turnos de fala da 2ª vivência – “Roda-Viva”

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Gráfico 1

O gráfico 1 demonstra o total de106 turnos de fala. Desse total, 72 turnos de

fala pertencem a todos os alunos e 34 turnos de fala da professora.

Gráfico 2

O gráfico 2 refere-se a distribuição dos turnos de fala da 2ª vivência

referente ao texto ”Roda-Viva”. Podemos verificar que na vivência tivemos 106

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turnos de fala, assim distribuidos: Professora – 34 turnos; Sonia - 28 turnos; Vera –

19 turnos; Lúcia - 13 turnos; José – 4 turnos; João – 4 turnos; Cristina – 3 turnos e

todos se manifestaram juntos – 1 turno.

O gráfico nos mostra que a participação maior foi de Sonia - 28 turnos;

seguida de Vera – 19 turnos; Lúcia – 13 turnos e a professora 34 turnos.

Notamos que, novamente João e José tiveram uma participação pequena. O

gráfico demonstra também, de forma bem acentuada a participação de Sonia.

Gráfico 3

A leitura desse gráfico pode demonstrar que em termos quantitativos os

alunos tiveram maior participação, ou seja, 68% ou 72 turnos, comparando com a

professora que teve 32% ou 34 turnos de fala durante a 2ª vivência.

Em outras palavras, significa que os alunos tiveram uma atitude responsiva

ativa durante a 2ª vivência. .

3.2.2 - Reflexões sobre a segunda vivência

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Ao término da análise da segunda vivência do texto “Roda-Viva”, alguns

pontos devem ser ressaltados. Percebo que os alunos estão tendo uma interação e

com isso, negociando o sentido do texto. Na maioria das vezes a leitura é do tipo

“top-down”, isto é, privilegia a experiência ou o conhecimento prévio do aluno, mas

também ocorre a leitura do tipo “bottom-up” e também as inferenciais.

Fica claro para mim, após a análise da vivência que os alunos gostam dessa

prática pedagógica. Eu já tinha essa impressão durante o desenrolar da atividade,

mas a análise veio confirmar meus pensamentos.

Pude perceber, após análise, que eu valorizei e legitimei a voz do aluno de

acordo com a proposta do Pensar Alto em Grupo. Observa-se esse tipo de atitude

no turno 3, quando eu digo: Muito bem..., logo após Sônia ter falado, iniciando a 2ª

vivência bem diferente do que aconteceu na 1ª vivência, − do texto “O Meu guri −

em que houve momentos que eu revoziei a voz do aluno, como no turno 30:

Submissão, exatamente... A submissão leva a quê?; no turno 39: Sim... sim..

lutam contra... reagem...

Nesse sentido, ao ouvir o aluno, ao mesmo tempo em que estão negociando

e construindo sentido do texto, o professor procura valorizá-lo como um ser humano,

sem discriminá-lo e com isso melhora a sua auto-estima, face às grandes injustiças

social presentes no dia-a-dia do aluno, quer no que se refere ao ambiente

profissional, quer no caso citado pela Sônia, no turno 99, ou no que se refere ao

aspecto social como um todo do aluno. Como diz Freire (1970/2005), tirando-o da

passividade.

Com relação à minha postura como mediadora da vivência, procurei ter uma

intervenção o menos diretiva possível. Pois, estando em processo de formação e

transformação da minha prática pedagógica, muitas vezes ocorreu de eu ter

recaídas, digamos assim, e proceder de acordo com a visão tradicional de leitura,

isto é, às vezes fiz perguntas que pareceu que eu estivesse verificando o

conhecimento do aluno, como podemos ver no turno 12: Todos aqui tem noção do

que foi a ditadura? Quando teve a ditadura aqui no Brasil, digamos assim?, no

turno 14: Quem assumiu o poder ? Como era politicamente... ou no turno 18:

Lembram-se das Diretas Já? Em termos de história, é uma coisa recente, não

é? E ditadura todo mundo sabe o que significa? Mas, ao fazer essas perguntas,

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na realidade o meu intuito sempre foi o de manter um diálogo e propiciar a interação

entre os alunos. Além disso, durante a análise, notei que, no 5º recorte, fiz uma

mediação no turno 102: Mas a gente tem que pensar...mas a gente tem que

pensar que nós somos seres humanos, né?, com o objetivo de possibilitar que

Sônia fizesse uma reflexão e re-elaborasse seus pensamentos. Avalio que fiz certo,

porém, percebi que neste recorte ela polarizou a atenção e praticamente só ela

falou, assim como os turnos dela foram longos. Durante a vivência eu não havia

identificado esse fato, só na análise percebi o meu erro. Nesse sentido, eu deveria

ter tido a iniciativa de perguntar aos demais algo referente ao que Sônia estava

falando, criar condições para que os outros alunos também falassem, mas não fiz

isso. Com a minha atitude eu favoreci para que Sônia continuasse falando, além

disso, incentivei que os outros mantivessem uma atitude passiva.Dessa forma,

eles não puderam aproveitar a oportunidade de construir sentido e serem atuantes e

sujeitos do seu conhecimento.

Mas, de modo geral, foi muito proveitosa e agradável essa segunda vivência.

Além de conhecer melhor meus alunos, notei que eles constroem uma leitura crítica

e realista do texto, tendo como respaldo suas experiências pessoais e também o

contexto em que estão inseridos. Comprovei com isso a validade da utilização do

Pensar Alto em Grupo como instrumento pedagógico.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste momento, é importante reportar-me às perguntas de pesquisas que

nortearam a análise de dados da minha pesquisa. Dessa forma, procurei respondê-

las de acordo com a análise da primeira e da segunda vivências.

1. Como a minha postura como mediadora nas aulas de leitura pode

favorecer a interação social entre os meus alunos e desta forma possibilitar a

negociação de sentidos do texto?

2. Em que medida a utilização do Pensar Alto em Grupo pode propiciar aos

alunos a construção de sentidos do texto e, consequentemente,que eles tenham

uma atitude responsiva durante o evento de leitura?

Um dos motivos que me levaram a investigar a leitura e estudar as teorias foi

a constatação de que os alunos tinham pouca ou nenhuma afinidade com essa

atividade.

Antes das vivências, eu ouvia dos meus alunos que não queriam e não

gostavam de ler. Nas aulas de leitura eles não participavam, não expressavam suas

opiniões, ideias e o que estavam pensando sobre o assunto do texto. Muitas vezes,

permaneciam quietos, apáticos, enfim, ficavam alheios à atividade da leitura,

simplesmente ficavam ouvindo. Face às minhas inquietações, resolvi mudar as

minhas práticas em sala de aula, no que diz respeito à pratica de leitura e sua

compreensão. Constatei que ela não atendia às necessidades dos meus alunos e

acredito que tenho de ter com eles uma relação de ensino aprendizagem. Eu tinha

que reorganizar minhas idéias, buscar aportes teóricos e refletir sobre a minha

prática em sala de aula.

Minhas pesquisas me levaram ao encontro do Pensar Alto em Grupo

(Zanotto 1995), instrumento pedagógico utilizado nas práticas de leitura como

evento social.

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Com o percurso teórico feito, comecei a utilizar o Pensar Alto em Grupo com

o intuito de reverter aquela situação. Gradativamente, passei a utilizá-lo em minhas

aulas, mas percebi que a sua utilização não era tão fácil como supunha no início.

Pelo fato de ter feito um estudo sobre a teoria, achava que conseguiria

praticá-la com sucesso, mas às vezes os resultados ficavam aquém do desejado.

Isto se deve ao fato de a formação contínua ser um processo e as transformações

vão ocorrendo na medida em que colocamos as teorias em prática. Assim, as ações

coerentes com a teoria só acontecem quando nos apropriamos e internalizamos

efetivamente as novas teorias.

Outro aspecto muito importante é que os alunos estão acostumados com um

formato de aula e quando optamos pela utilização de um novo instrumento

pedagógico, há por parte deles um rechaço natural.

Depois de algumas tentativas de por em prática na sala de aula, resolvi

trabalhar com grupo focal (Gatti, 2005), pois facilitaria o desenvolvimento da

pesquisa, na medida em que as vivências seriam gravadas em áudio. As duas

vivências utilizando o Pensar alto em Grupo, apresentadas nessa pesquisa, foram

gravadas com grupo focal formado por alunos do 2º ano do Ensino Médio.

As minhas primeiras tentativas em sala de aula não foram bem sucedidas,

porque ocorreram com todos os alunos de forma integral. Situação, em que havia

muita interferência, tanto no que se refere à organização da escola como um todo,

como também ao fato de os alunos não estarem acostumados com esse instrumento

pedagógico e muito menos eu, professora pesquisadora. Porém, admito que não é

impossível sua utilização em sala de aula, com todos os alunos, mas é difícil, pois é

necessário muita prática. Além disso, exige concentração dos participantes, porque

os turnos de fala devem ocorrer um de cada vez, para possibilitar uma negociação

de sentido do texto, muitas vezes, com os pensamentos encadeados.

Com a utilização do Pensar Alto em Grupo, acredito que tenha criado

condições para que os meus alunos participassem de forma efetiva no evento de

leitura. Consequentemente, criei condições para que eles pudessem construir

sentido do texto em um ambiente permeado pelo respeito e, sobretudo que vissem o

quanto é importante e interessante o ato da leitura. Consegui mostrar que a

atividade de leitura pode proporcionar momentos agradáveis, sem que para isso eles

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tenham que deixar de lado o que pensam ou o que realmente são: seres históricos e

sociais.

Com a análise, observei que cometi alguns erros ou equívocos, durante a

condução das minhas aulas, com a utilização do Pensar Alto em Grupo. Acredito

inclusive que, muitas vezes, deva ter descaracterizado este instrumento pedagógico.

Mas, entendo que a formação contínua é um processo constante e,

consequentemente, esses momentos também são uma forma de aprender e crescer

como profissional e como pessoa.

Nas análises das vivências das leituras do grupo focal, pude perceber que

as leituras foram construídas na interação do grupo. A construção da leitura dessa

maneira propicia, além de múltiplas leituras, enriquecimento delas, isto é, leituras

mais reflexivas, críticas, com mais detalhes, muitas vezes, leituras que eu não

poderia imaginar.

Nesses termos, a leitura é vista como uma forma de aproximação, de união

e também de exercício da formação crítica e reflexiva, na medida em que possibilita

adesão à leitura do outro, ou seja, a confirmação, como também a oposição sumária

ou a não concordância, dando origem a uma leitura diferente.

Quanto às respostas para as perguntas de pesquisa, no que se refere a 1ª

pergunta, devo reconhecer que a principal atitude do professor que se identifica com

pressupostos teóricos da leitura como evento social e se utiliza do Pensar Alto em

Grupo é dar a voz ao aluno. No entanto, essa atitude não é tão fácil assim como

pudemos ver na análise de dados.

Além disso, é importante, além de dar a voz, saber legitimá-la, revozeá-la, e

isso só é possível com desprendimento do papel de autoridade, daquele que dá a

última palavra. Também temos que saber fazer uma mediação das vozes dos

alunos, estar atentos àquele que falou pouco, ouvir atentamente todas as vozes.

Enfim, ter responsabilidade, pois a ideia não é simplesmente dar a voz, mas ter uma

posição de mediador das vozes.

No decorrer da análise, observei que algumas vezes tive de fazer mediações

no sentido de propiciar a participação e a interação do grupo. Algumas vezes fiz

perguntas, outras vezes valorizei o que o aluno dizia, concordando, outras vezes até

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discordando, ainda outras vezes tentando um encaminhamento para que o diálogo e

a construção do sentido do texto fossem possíveis. Mas, de forma geral procurei

deixar que os alunos interagissem entre si.

Com relação à 2ª pergunta, a utilização do Pensar Alto em Grupo pode

propiciar a construção de sentido do texto, na medida em que os participantes da

leitura dialogarem entre si, aceitando ou refutando, acrescentando, enriquecendo,

concordando parcialmente ou totalmente com o pensamento do outro participante,

como pudemos ver em vários momentos na análise de dados.

A atitude de encorajar o aluno a falar e assim, fazer com que ele seja o

sujeito da construção do conhecimento, é uma forma de termos cidadãos pensantes

em nossa sociedade, capazes de romper com a própria inércia, de tentar mudar

situações de injustiças, enfim de exercerem sua cidadania.

Além disso, formar pessoas que realmente estejam inseridas no contexto do

letramento, que tenham autonomia e não sejam submissas a determinadas

situações de opressão, como foi mencionado nos diálogos da 2ª vivência.

Obviamente que a mudança de uma forma de conduzir uma aula, pelo fato

de utilizar o Pensar alto em Grupo, não implica necessariamente na mudança do

mundo, no combate radical das injustiças sociais e da violência. No entanto,

podemos contar com pessoas mais críticas, reflexivas, que defendam seus pontos

de vistas com argumentos, com senso crítico, com bom senso e nesse sentido tornar

o mundo um pouco melhor e mais justo.

Muitos pesquisadores têm investigado a utilização do Pensar alto em Grupo.

Acredito que essas pesquisas, assim como a minha, sejam um incentivo aos

professores e futuros pesquisadores a se embrenharem nessa árdua, porém

fascinante e gratificante atividade da pesquisa.

Sobretudo, se levarmos em consideração que estaremos pesquisando para

melhorar a educação, para ajudar nossos alunos a serem pessoas melhores.

Salientando e remetendo às palavras de Freire (1996/2005), quando diz, “Não posso

estar no mundo de luvas nas mãos constatando apenas”. Se a educação no Brasil

não está tão bem como deveria, eu como professora, tenho que fazer alguma coisa

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a respeito do assunto - “mudar é difícil mas é possível”(Freire) . Acredito que ser

responsável pela minha formação contínua seja um desses aspectos.

Finalizando, esta pesquisa não tem a pretensão de esgotar o assunto e nem

de dar todas as respostas, nesse sentido, dá possibilidades a outras leituras.

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ANEXOS

Transcrição da 1ª Vivência de leitura – texto “O Meu Guri”

Grupo Focal: 2º Ano do Ensino Médio – Período Noturno.

Estavam presentes 6 alunos, são eles: Maria, Joana, Claudia, Cristina, João e

José.

De acordo com os documentos do comitê de ética, os nomes dos

participantes foram trocados, para preservar tanto os alunos como a escola,

evitando dessa forma, quaisquer constrangimentos e exposição, bem como

possíveis críticas negativas que for ventura os dados coletados pudessem suscitar,

tanto no presente momento como no futuro.

1 Professora

Bem... então, a vivência de leitura é o seguinte: a gente vai conversar tentar ,entender esse texto. Então...voces leram o texto silenciosamente...uma vez, tiveram um contato prévio como texto ... gostaria que vocês conversassem entre vocês. Eu vou participar muito pouco do evento, tá? A participação maior será de vocês, bem...agora é com vocês...

2 Maria

Bom, pra mim, ele fala de um pai que não consegue sustentar o filho e vai suando a camisa pra sustentar ele. E no final do texto, fala que o filho dele se esforçou muito e chega lá. Ta dizendo aqui, “E na meninice ele um dia me disse Que chegava lá”. E ele chegou.

3 Professora ... chegou aonde?Maria!

4 Maria Acho que ele conseguiu vencer, assim...é trabalhando,neh?

5 Professora trabalhando?

6 Maria trabalhando... e ele deu orgulho pra esse pai dele. Era essa a intenção, porque ele não tinha nada e o seu filho,

7 Professora Ele não tinha nome,como?

8 Maria O pai dele não tinha nem nome pra dar pra ele.

9 Joana

Um nome importante, no caso, né? Da sociedade, um nome conhecido. O pai dele era... apenas digamos ... uma pessoa... da favela, humilde, que não tinha como dá comida, quanto mais um nome importante pro filho.

10 Professora ah...

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11 Joana ... esse filho cresceu, se desenvolveu e no caso, ele trabalhou... aqui, e futuramente ele vai ter um nome pra pro filho dele

12 Professora E onde que você leu no texto... que ta dizendo que é o pai... que ta falando?Onde especificamente?

13 Maria Então, não especifica que é o pai, neh? Mas especifica uma pessoa contando uma história de um menino.

14 Professora E quem é essa pessoa?

15 Maria Eu acho que seria o ... o Chico Buarque ...ou uma pessoa pobre, né?

16 Professora pessoa pobre... Por quê uma pessoa pobre?

17 Maria Porque, a pessoa que ta contando diz que... a criança já nasceu com cara de fome e “eu não tinha nem nome para lhe dar”.

18 Professora E quem que é esse “eu”?

19 Cristina Pode ser a mãe ou o pai também.

20 Professora uma mãe ou um pai, Cristina.

21 Claudia porque... vamos supor assim... no começo do texto, fala: “Quando seu moço nasceu meu rebento”, aí já tira a idéia que era um pai.

22 Professora Rebento é o quê?

23 Claudia Como se fosse um ventre,assim ... falando de uma mãe... mas é o pai que ta contando a história... relatando.

24 Cristina Pode ser um pai ou uma mãe também.

25 Claudia é...

26 Professora Por quê que pode ser um pai ou uma mãe?

27 Cristina Porque não ta falando que... é um homem ou uma mulher...tá contando uma história.. prum moço... quando seu moço... ta contando prum moço ...essa história do filho...

28 Professora e alguém pode me dizer, se é pai ou mãe... o que seria rebento?

29 Claudia como se fosse um ventre, sei lá...

30 Maria Rebento... acho que seria um lar, nasceu meu lar...

31 Professora pelo contexto,contexto é o que, pela história, o que vcs acham que poderia ser rebento?

32 Maria Ah...

33 Joana Seria o próprio moço... seria o rebento?

34 Professora Fala Joana.. o que é...

35 Joana O próprio moço seria o rebento... porque... como você falou Maria?

36 Maria porque... a pessoa que está contando...

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37 Joana isso... não era o momento dele rebentar...já foi nascendo com cara de fome... é seria o nascimento... o próprio desenvolvimento ...

38 Maria como que dizendo... ele nasceu de mim mas não era o momento dele nascer.

39 Professora Quem é que nasce da gente?

40 Joana Nosso filho.No caso é uma mãe e não um pai.

41 Professora Então o quê seria rebento?

42 Cristina A criança que nasceu.

43 Joana mas não era o momento dele nascer...

44 Professora muito bem... é um pai, uma mãe,onde ta dizendo... quem conta a história? vocês sabem o quê que é eu-lírico, ne?

45 Cristina É quem conta a história, quem ta por trás da história, tipo... quem ta vivendo a história...

46 Professora então... Mas falaram aí Chico Buarque. Quem é Chico Buarque?

47 Cristina O autor, neh?

48 Professora Então existe uma diferença, né? E no caso, quem ta contando a história?

49 Cristina o eu-lirico

50 Maria

No caso quem ta vivendo a história seria a mãe,neh?. Ela ta contando sobre o filho dela. Ta contando sobre orgulho que o filho deu pra ela. Que ele nasceu pobre e chegou la. Ou seja, trabalhou bastante pra dar orgulho pro pai e pra mãe.

51 Professora E aí no caso, que tipo de orgulho que é esse?

52 Maria

Orgulho paternal ou maternal. Porque... a gente... No caso dela... ela num tinha conseguido vencer na vida, né? Ela deve ter sido muito pobre. E vê um filho trabalhando... dando orgulho pra ela .. é uma grande... vi... conquista,neh?

53 Professora Onde ta dizendo que ela é muito pobre?Maria...

54 Joana

Quando ela cita que a criança já nasceu sem nome, com cara de fome. Aí demonstra a pobreza...assim da história e no final então... ele lutou e conseguiu chegar até la. Aqui demonstra a pobreza da pessoa e o crescimento que ela teve no final.

55 Professora E o que ele quis dizer com “Não era momento dele rebentar”?

56 Claudia Que não era momento de nascer.

57 Cristina Nasceu prematuro, nasceu antes do tempo que ela esperava...eles aguardavam ou não, essa criança mas num outro tempo, não pra esse tempo que nasceu

58 Maria Pode ser gravidez indesejada, neh?

59 Cristina também

60 Professora E isso é comum?

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61 Claudia muito...

62 Maria Muito. Principalmente entre os jovens,neh?

63 Professora Em classes altas, baixas ou em geral?

64 Maria Classes baixas.

65 Joana

Depende... o caso da fome... assim vem da classe baixa... tipo uma adolescente de 15 anos não tem uma estrutura de vida pra dar prum filho,né?agora... tem...na classe alta também você vê...crianças ... temor ao pai, a mãe, ou então ah... vai acabar meu corpo... ou já era minha juventude... então dá pra ver dois lados.

66 Maria Aqui onde tá escrito: “Chega no morro o com o carregamento Pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador Rezo até ele chegar cá no alto”?

67 Professora O quê é isso?

68 Maria

Pra mim, deu a entender que ele mora numa favela,né? e até ele chegar lá em cima ele vai passar por muita coisa, ou seja, pelos traficantes que ficam lá embaixo na favela,ou os policiais,né? como é o caso do Rio de Janeiro, e toda mãe reza até o filho chegar na... em casa,né?

69 Professora Então ele carrega tudo isso. Mas, o quê que seria tudo isso?

70 Maria Num sei se ele vende, vende... pulseira,relógio,gravador...pneu... para chegar onde ele queria chegar.

71 Claudia Ele tenta se virar...

72 Cristina Acho que... ele falou pra mãe,um dia... no caso...que um dia ele chegava lá...eu acredito que seja um... é na profissão dele,assim...

73 Claudia Algo que ele queira conquistar...

74 Cristina

que ele queria...ele queria sair de onde ele veio... dessa pobreza... como elas disseram... e ir prum lugar... melhor e poder ganhar mais... do que daquele lugar que ele estava vivendo, ali, entendeu? E isso é... da onde ele trabalhava...podia ser com que ele trabalhava... né?

75 Maria “Chega estampado, manchete, retrato Com venda nos olhos, legenda e as iniciais Eu não entendo essa gente, seu moço Fazendo alvoroço de mais”.Essa parte que tá assim...

76 Claudia

Por ela ter relatado violência, tem uma parte que indica isso. “Essa onda de assaltos ta um terror”.Eu consolo ele, ele me consola. É como se eles vivessem num lugar ruim,como elas estavam falando de um morro...lá já estava mostrando pra eles o sofrimento... como eles eram pobres, queriam conquistar algo melhor para suas vidas... então... é isso que eu entendi dessas duas linhas, que mostra a violência.

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77 Professora Então o medo dela é a violência?

78 Maria É a violência de você acordar num dia e falar “hoje eu tô vivo, mas... e amanhã?”né? E amanhã, será que o meu filho vai tá aqui?será que eu vou tá aqui?

79 Claudia Vai ver que é por isso que ele não queria que o filho nascesse naquele momento, por ele não ter uma vida boa ou digna de um filho ter nascido.

80 Maria ... é por ele morar naquele lugar...

81 Professora Ele quem?

82 Claudia

A pessoa que tá contando a história.Vamos supor que fosse um pai ou uma mãe, obviamente, mas não queria que o filho nascesse ali, por ela morar em lugar ruim, mostrar que tem tanta violência, ela não queria que o filho ou a filha visse aquilo tudo.

83 Maria vivesse, né?

84 Claudia vivesse aquilo.

85 Professora A gente tem assim... clareza, aqui... depois de tudo aquilo que a gente viu, que a gente conversou, de qual seria a profissão , a atividade que esse guri exerce?

86 Maria Acho que ele seria um... vendedor ambulante,né? que... vende pulseira, relógio, pneu, gravador... eu acho que ele seria camelô,né?

87 Claudia Então vamo supor... ele não era um criminal, mesmo ele vendo toda a violência, ele não era criminal, ele queria ganhar a vida de uma maneira.. por ele ser pobre.

88 Maria ... então... isso mesmo.

89 Joana

Ele cresceu nesse rumo, mesmo sendo camelô, provavelmente,ele cresceu, no final... não entrou na vida do crime. Também, o orgulho pode ser não só pelo... nossa ele chegou lá... ele criou dinheiro tal... mas ele não é essa pessoa que tem orgulho... que ele não entrou na vida do crime, entendeu? ele sobreviveu aos terrorismos da cidade, do dia a dia ...(???)

90 Maria

Porque o menino que nasce na favela,né? O futuro dele,o que muitos dizem,né? ele vai ser ladrão.Vai crescer e vai ser ladrão Será que ele vai viver até os 20? O que muitas pessoas dizem,né?

91 Claudia As pessoas não pensam no melhor, já pensa no pior.

92 Joana Com certeza...

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93 Claudia

Óoo! Só por nascer num lugar ruim, não quer dizer que a pessoa não vai ter futuro. Mas nem sempre é assim... as pessoas muitas vezes moram naquele lugar porque não tem condições... muitas vezes por ninguém abrir a porta, falar: vou te ajudar! Já pensa... ruim...

94 Maria

Quando a pessoa é esforçada, né? Ela consegue vencer... é muito interessante, a gente vê isso...dentro de um morro, dentro de uma favela, onde só a violência acontece, só... coisa que não presta, né? Porque é droga...

95 Claudia Mas mesmo assim tem pessoas que se destacam...

96 Professora

Agora, deixa eu fazer uma pergunta pra vocês... o que eu fico intrigada, é o seguinte, no texto fala assim: “... trouxe uma bolsa já com tudo dentro chave, caderneta, terço e patuá, um lenço e uma penca de documentos”. O que vocês acham disso?

97 Claudia Agora... essa parte...parece... que é mais... falando da violência... vamo supor roubos...

98 Maria hhaaamm...

99 Claudia ... exatamente nessa parte...

100 Maria

... fala... “Chega suado e veloz do batente E traz sempre um presente pra me encabular”,né? Aqui já passa uma idéia de que ele ta roubando pra dar de presente pra essa pessoa,né? Tanta corrente de ouro seu moço, que haja pescoço pra enfiar.. e ele chega lá.

101 Joana

... ou seja, ele sai de casa,mas com a responsabilidade de trazer alguma coisa pro, no caso a mãe, né? aqui...tipo uma corrente,alguma coisa pra agradar, porque ele sabe, tudo... o que ela sofreu... pra chegar nesse ponto.

102 Professora Bem, aqui todo mundo tem pai... mãe... vocês tem a obrigação, sente a obrigação de levar uma corrente ...

103 Joana

Olha, quando eu trabalhava,digamos assim... eu levava. Eu ia numa banquinha e sempre comprava brinco todo dia na hora do almoço. Eu comprava um pra mim e um pra minha mãe. Eu acho... porque eu que vim de uma família... é que meu morreu quando eu tinha dois anos... morreu de HIV... então minha mãe me criou sozinha... teve que cuidar do meu pai, ele ficou dois anos doente, teve cuidar de mim.Ele ficava doente eu também ficava.Então, acho que eu tenho esse orgulho da minha mãe... o que ela fez por mim , sendo assim que eu não possa ... mesmo retribuir,como ela me deu, mas eu tento um pouquinho.Acho que no caso , é isso que ele tá querendo demonstrar, mesmo fazendo um negócio errado...

104 Maria ... ele ta fazendo pra agradar...

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105 Claudia

Acho que a gente tem que pensar no nosso dia a dia, vamos supor...todos nós já passamos por uma situação difícil, não importa a nossa idade, mas todo mundo já teve uma história, vamo supor, um lado ruim e como a professora tava dizendo e vocês mesmas disseram, vamo supor,a gente... nossa mãe e nosso pai faz de tudo pra agradar a gente, pra dar o melhor pra nós,então eles nunca querem ver a gente no mundo do crime ... num lugar ruim, a gente tenta... pelo menos, com poucas coisas, mesmo às vezes não tendo condições de dar alguma coisa, mas sempre agradar, não importa o que seja, seja um abraço, seja falando pra ela que você ama ela... eu penso assim.

106 Professora Agora, Joana... eu como mãe, acho que só pelo fato de você ter esse amor, dar um abraço nela, reconhecer todo o valor dela já é um presente muito grande, você concorda comigo?

107 Joana (risos) Nossa... bastante... agora que eu trabalho...então... dar um abraço (risos), agradar, por mais que a gente trabalhe....(risos) (a aluna demonstrando emoção)...

108 Claudia Agora que já está pertinho do Natal... dar um presentinho pra ela...

109 Joana

... coisas básicas,coisas que podem parecer até mínimas, mas que tem um... representação muito forte na cabeça de um pai e de uma mãe que sofreu tanto pra te criar, pra você ta ali, pra você se formar...

110 Claudia ... ou seja o valor emocional e não o valor material.

111 Professora mas no texto fala em corrente de ouro, não é um contraste muito grande...

112 Joana Como assim?

113 Maria Uma corrente de ouro,não é assim, uma coisa muito grande?

114 Joana ... demais, né?

115 Maria ... para um menino... aqui no texto parece que ele é um menino,né?será que ele vende ou ele rouba? Está é a questão... que paira no ar

116 Claudia

Na minha opinião o que ela disse... no texto todo,vendo tudo... não conta só que ele é um menino. Conta etapas da vida, desde quando ele nasceu, se desenvolveu... até chegar nesse ponto. Então pra mim ele já num é mais uma criança, quando chega nesse ponto.Ele já deve ser maior.

117 Joana

Mas será que ele roubava,porque tá escrito “Chega suado, veloz do batente e traz sempre um presente pra me encabular” Será que o batente é o assalto, que dizem que é trabalho,né? “Eu vou trabalhar” entendeu? será que é um assalto ou esforço que ele tem mesmo? um batente?

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118 Professora Pois é. Aí que você me deixou curiosa!Joana... o que acontece com a mãe ... Como é que é a atitude de uma mãe em relação aos filhos?

119 Claudia sobre esse assunto?

120 Professora ela enxerga direito o filho ... você é tal e qual

121 Maria

É, a mãe fica cega, assim, diante do filho, né? Pra ela, o filho é tudo. E mesmo se o filho tivesse roubando,se as pessoas dissesem: seu filho está roubando..mas a mãe por si, vai acreditar no filho dela, foi ela que deu o sustento, foi ela que criou, está todo dia ali com ele e acredita. Se os nossos pais não acreditarem na gente, quem vai acreditar?

122 Professora Exatamente. Agora, transportando esses conceitos todos que você falou, e muito bem colocados, o quê que vocês podem deduzir? Que leitura... vocês fazem disso?

123 Maria

Eu acho que ele não roubava. Porque... assim ... quando uma mãe fala “Olha aí ele chega lá”, essa mãe fala de um filho que conseguiu vencer na vida,né? Que não vai falar”Olha aí” pra uma pessoa que roubou. Eu acho que ele não rouba porque ela ta muito orgulhosa aqui.

124 Joana

Ou então...no caso ele pode tá sim, fazendo... roubando nas correrias dele e ela não sabe, porque aqui ela pronuncia ... como ele chega suado, veloz do batente... meu filho trabalhou muito, sabe? Se ele rouba ou não, nesse caso, ela não sabe...

125 Claudia

Na minha opinião ele rouba, sabe porque?Tá no quarto ou terceiro parágrafo fala “Chega no morro com o carregamento”, como se ele tivesse acabado de roubar e chegasse lá, levando tudo que ele roubou.Então, Pra mim é o que ela disse, a mãe ou pai não sabia que ele fazia essas coisas erradas... ela disse antes, a mãe dá tudo pelo filho, ela acredita no filho, dá valor pro filho... seu o filho falar “não fiz isso, tão falando, mas eu não fiz isso” então ela acredita , mas na minha opinião ele roubava.

126 Maria

É. Agora esse último parágrafo eu ainda não consegui entender. “Chega estampado, manchete, retrato Com venda nos olhos, legenda e as iniciais Eu não entendo essa gente, seu moço Fazendo alvoroço demais O guri no mato, acho que tá rindo Acho que tá lindo de papo pro ar Desde o começo, eu não disse, seu moço Ele disse que chegava lá”.

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127 Joana

Então, aqui eu acho que essa venda no olho é... como se fosse a manchete,entendeu?saiu no jornal ... ele fez isso...ele fez aquilo.Só que no final, ele disse que chegava lá... será que era mesmo que estava lá, ou eles estavam fazendo um fuxico...achando que era ele... olha aí... olha ele lá... aqui retrata uma coisa meio que manchete, ele saiu na manchete do jornal... que ele fez o assalto, só que aqui ele está com os olhos vendados...

128 Claudia

Na minha opinião...vamo supor assim...com venda nos olhos... vamos supor que é a mãe, que nós estamos relatando, como ela estivesse cega, e não visse que o filho fazia realmente, vocês não acham isso?

129 Maria

Eu acho assim, oh! Com venda nos olhos , legenda e as iniciais, manchete,eu já imagino uma manchete de um jornal , com um menino “de menor”com a venda nos olhos, porque ele é „de menor‟ não pode mostrar, né? o guri no mato,então já diz que ele é o guri, é uma criança, e por isso a venda nos olhos,por que não pode ser identificado. não pode mostrar.

130 Professora Então a venda nos olhos é pra não ser identificar o menor?

131 Maria Isso! Porque ele é “de menor”.

132 Joana Mas e aqui?Acho que taáaí de papo pro ar desde o começo eu disse...enfim... que eu tava lendo ...que quer dizer? ela se orgulhou, nessa parte ou não era ele?

133 Claudia Na minha opinião,esse negócio de manchete, como ele mora num lugar que é ruim, já ta relatando a violência que teve naquele lugar.

134 Joana

Então... é isso que eu tava chegando... por ser ... por ele morar ali... ele viver ali...talvez foi um mal entendido...do tipo pega muita gente enganada...só por que a gente mora na favela ... a gente é ladrão... a gente usa droga..então no caso... acharam que era ele...ta no meio da muvuca...então eles pegaram... ta passando...tá vindo da faculdade... e no final ...descobriram... ela mostrou... olha, não era meu filho, meu filho ta batalhando...lutando pra não entrar nessa vida ... foi aí... ela ... ele chegou lá...

135 Professora como é que?

136 Joana Assim... é... não talvez...era ele,aqui no caso ... na manchete era ele...só que até então... parece que ele entrou...num... como fala...num...

137 Claudia numa armadilha...

138 Joana Não... digamos nem numa armadilha... digamos que... tipo...assim... pegaram ele mesmo... só que... como que fala?

139 Claudia estava no lugar errado e na hora errada...

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140 Joana

talvez... por preconceito... eu diria, porque não é porque eu moro numa favela que que estava acontecendo um assalto... alguma coisa ou uma criminalidade que eu também... eu tô envolvida, talvez por preconceito, por ele ser dali,então eles, levaram ele, colocou ele como... uma das pessoas criminosas e aí no final descobriram que ele não estava envolvido, tanto que ela falou: olha aí, olha aí o meu guri, entendeu?

141 Claudia Então... vamos supor assim, voce acha que... a mãe se orgulhou dele ou não dele?

142 Joana se orgulhou...porque no final ele não tinha feito nada disso.

143 Claudia vamos supor que...as pessoas... os policiais prenderam ele só que por engano... e ela se orgulhou porque ele não estava envolvido..ela se orgulhou porque . não estava no meio...

144 Joana Não... com certeza ela tava passando no meio aqui, né?porque eles devem ter pegado... eles também não iam entrar na casa dele...olha, você, né?

145 Claudia Não... eu falo no meio da criminalidade

146 Joana

Não, aqui acho que não... depois de ... acho que tá lindo... de papo pro ar, enfim ... aqui... acho que eles descobriram que ele não tinha nada a ver com a história, que foi um preconceito ou até mesmo uma confusão.

147 Claudia Então... esse lindo de papo pro ar... como se estive rindo do que aconteceu com ele.

148 Joana É tipo assim, foi um preconceito, mas tudo acabou bem, porque no final ela ficou orgulhosa dele... uma mãe não ficaria orgulhosa com um filho que fizesse coisas erradas.

149 Professora onde está escrito que ela está orgulhosa, Joana?

150 Joana

É tipo assim, a gente deduz, acho que ta rindo de pago pro ar, desde o começo eu não disse seu moço, ele disse que chegava lá, olha aí, olhai aí... na hora que ela fala, olha aí meu filho chegou lá, olha aí meu filho não é criminoso, vocês confundiram.

151 Professora Mas quando a gente sai estampado... uma foto... uma manchete no jornal, a gente não fala...por exemplo uma fama por alguns minutos?

152 Joana é sim...

153 Professora

A pessoa pode ficar famosa por dois motivos, né?Concordam comigo? Pode ficar famoso fazendo uma coisa positiva ou fazendo alguma coisa negativa...vai ser manchete de jornal também.

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154 Joana

Mas a mãe não falaria com tanto orgulho se fosse alguma coisa ruim. Uma mãe não gostaria de ver um filho aparecer nas manchetes, ficando famoso por ter feito alguma coisa ruim,entendeu?

155 Professora Mas lembra que a gente falou do perfil da mãe? O olho da mãe parece que tem um filtro, né? Num poderia ser isso?

156 Maria

Poderia, pelo fato de ele trazer presentes pra ela.Ás vezes ele fala... assim ah! minha mãe me criou tal, batalhou por mim, e esse é o único jeito que eu tenho de recompensar ela ... de recompensar todo esforço, que ela já viveu por mim.Já que eu não posso trabalhar...Já que eu não vou ganhar dinheiro trabalhando.Eu vou roubar... que é a única opção que um jovem morando na favela tem ... eu vou roubar e vou dar orgulho pra ela ... pode ser pelo meio errado... mas eu vou recompensar, tudo que ela já fez por mim.

157 Claudia mas nós duas não estávamos... que ele não roubou... ou você acha que ele roubou?

158 Joana

Então... ele pode não ter roubado, mas se ele roubou ... no caso que ela falou... pode ser assim também... é ... eu que... a gente pensa que... eu não vou orgulhar minha mãe roubando ... mas cada um tem seu pensamento... se ele achou também que ia orgulhar a mãe dele assim e a mãe dele entendeu isso, tipo, meu filho entrou nisso... pra tentar me orgulhar... mesmo que ele fez de errado... ela também poderia ter orgulho também.

159 Claudia Então... chega ao ponto, que a gente tava conversando que ela não sabia...

160 Joana ou que ela poderia não saber...mas que ela ficou sabendo no final... pode ser também... de qualquer jeito aqui...ela mostra um orgulho pelo filho.

161 Professora Mas... normalemnte a mãe não se orgulha do filho fazendo coisa errada. Eu, como mãe, não gostaria... que meu filho... me decepcionaria muito Mas também existe aquele filtro, né?

162 Joana

tipo... ele fez pra me agradar... ele errou... ela no caso poderia ter brigado...ter dado uma lição de moral nele... ele errou tudo.... mas ele tentou me agradar ... querendo ou não por ser mãe... ela não iria criticar ele, como todo mundo faria... ela ia pensar, mesmo do jeito ruim dele... ele tentou...entendeu? do jeito dele...mas ele tentou... por ser mãe

163 Maria uma coisa que mais me chamou atenção foi essa “Um lenço e uma penca de documentos Pra finalmente eu me identificar”.

164 Professora O quê quer dizer isso,Maria?

165 Maria Então um lenço e uma penca de documentos pra finalmente eu me identificar ...

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166 Professora realmente é estranho,né?onde tá?

167 Maria na terceira...

168 Professora mas onde estava isso?

169 Maria tava na bolsa... na bolsa que ele trouxe ...

170 Joana

é no caso pode ser sim...ele roubou... talvez ele deve ter feito uma falsificação ou coisa assim... com nome...porque desde o começo ela relata que não tinha nome pra dar pra ele... então pode ser assim ... alguma coisa assim parecida.

171 Professora então, quando você vai comprar alguma bolsa, ela vem vazia, né?

172 Joana com certeza... então é verdade...

173 Claudia vamos supor... ele encontrou uma mulher na rua, pegou a bolsa ... tava tudo ali dentro da bolsa da mulher

174 Joana e deu esse presente... deve ter explicado outra coisa pra mãe, se não ela não teria falado, que legal, que ele me deu...

175 Maria como diz assim... nessa parte ... e eu não tinha nem nome para lhe dar...uma mãe solteira,né?... uma mãe que não tinha sobrenome pra dar, porque não tem um pai,pro filho dela,né?

176 João

Acho que ele roubou, devido ao fato dela ter falado do lenço e uma penca de documentos,né? porque os documentos os documentos na bolsa? Porque se ele tivesse comprado a bolsa, não teria vindo com documento.

177 Claudia então ele roubou de alguém

178 João com certeza

179 José ele ta roubando mesmo... no fato dele chegar em casa com é...carregando pulseira,relógio,pneu, gravador...

180 Professora e isso é um indicio...

181 José é um indicio

182 Professora a gente também pode até trazer alguma coisa da rua e ter trabalhado honestamente, né?

183 Claudia na minha opinião...eu tenho certeza que ele roubou...porque ela fala assim... chega no morro com carregamento.

184 Joana e o carregamento, então pode ser uma gíria... das mercadorias... das assaltos que eles pegaram,né?pode ser também...

185 Claudia ninguém dá, eu vou ver um menininho na rua.. toma minha bolsa...com meus documentos...

186 Maria chega manchete, estampado,retrato, com venda nos olhos, acho que foi tudo, pra falar que ele roubou

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187 Joana

É, resumindo,no caso ele roubou, fez tudo o que fez, foi preso e no final a mãe falou, fez pra me agradar, querendo ou não ele é meu filho.Eu não pude dar uma vida digna pra ele , pra esperar alguma coisa melhor,digamos assim... entre aspas... então ela ficou orgulhosa do mesmo jeito, mesmo ele fazendo errado.

188 Claudia

uma coisa, parando para pensar, E nas três últimas linhas “Desde o começo, eu não disse, seu moço Ele disse que chegava lá Olha aí, olha aí”pra mim...tem dois jeitos de se ver, como se ela tivesse realmente orgulhosa porque ele melhorou de vida ou porque ele realmente só dizia que ia ser uma coisa mas não foi.

189 Professora e na sua opinião, acha que aconteceu, o que?

190 Claudia

na minha opinião... eu tenho dois modos de ver...a que mais me chamou a atenção... é como se ela não tivesse orgulhosa dele... como ele disse... muitas vezes pra ela... que ele ia melhorar... que ele ia mudar de vida...que ia tirar ela de lá também, ele só disse pra ela...não conseguiu mudar...

191 Joana e no final porque ta escrito.. .ele disse que chegava lá. olha aí... olha aí

192 Claudia é como se ele só falasse...mas não chegou...

193 Maria ele chegou lá... mas não chegou no caminho que a mãe dele queria... chegou no caminho errado...

194 Joana ele chegou... ela disse que ele ia chegar... ele disso isso...e ela acreditou na palavra dele... ele pode ter chegado nesse sentido...fazendo as coisas erradas, orgulhou a mãe dele

195 Claudia mas agora... analisando só essas três linhas... já vendo tudo que a a gente conversou, você não acha que ela não estava orgulhosa dele?

196 Joana Qual?

197 Claudia

nas três últimas linhas. E nas três últimas linhas “Desde o começo, eu não disse, seu moço Ele disse que chegava lá Olha aí, olha aí” é como... vamos supor assim.. que ela viu aonde o filho dela chegou só que não foi no lugar exatamente onde ela queria, que ele estivesse Ele conseguiu conquistar algo, mas não foi o que ela queria.

198 Maria Realmente, pode ser também

199 Joana Pode ser também. Esse texto, digamos...que ele tem vários lados de se ver,né?

200 Professora É, então. Chico Buarque escreve de uma forma que dá margem a várias leituras.

201 Maria É,isso... vários sentidos

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202 Joana

o texto dele aqui... então cada um chegou a uma conclusão.Resumindo, a única conclusão de todo mundo chegou junto... é que ele fez um assalto... que realmente ele era um criminoso... aqui o caso.

203 Professora E no caso, esse “chegou lá” significa o quê? Que ele se deu mal ou bem?

204 Claudia na nossa opinião, da Claudia e da Maria, a mãe dele viu que ele chegou num lugar que ela não queria...

205 Maria

Ela queria que ele se tornasse uma pessoa trabalhadora, honesta... mas muito pelo contrário, ele se tornou um ladrão,né? E chegou em algum lugar mas... não onde a mãe dele queria...

206 Claudia Ela queria que ele se tornasse uma pessoa trabalhadora, honesta, mas ele se tornou um ladrão.

207 Maria Essa é a graça do Chico Buarque. Ele nos faz pensar em como interpretar esse texto. Cada um tem a sua opinião.

208 Joana Agora... No caso ... A gente batendo papo... a gente consegue ...

209 Professora Então, deixa eu fazer uma última pergunta. No começo, quando vocês leram sozinhos, vocês tinha entendido tudo isso?

210 Todos Não.

211 Claudia Foi uma idéia se juntando com a outra...

212 Maria E a gente conversando e interpretando, a gente conseguiu chegar a alguma coisa.

213 Professora Aí, é interessante, porque essa é uma proposta de ensino. Vocês concordam comigo que seria muito positiva?

214 Claudia Acho que ia ser melhor. Porque você sozinho não chega a uma conclusão...

215 Joana Sozinho você chega em uma parte... por exemplo... ela chegou e uma, eu cheguei em outra e ela em outra...e todos unidos... chegamos a uma conclusão...

216 Professora

Isso que nós fizemos aqui... foi uma leitura e houve interação entre voces, socializamos as idéias e tentamos entender as coisas.Obviamente que o professor tem que ter o domínio, mas o aluno também tem. Existe a crença que o aluno não sabe nada. Mas vocês construíram o sentido do texto sozinhos, praticamente...

217 Claudia Seria ótimo se todos os professores sentassem e conversassem. Porque não adianta só sentar e copiar. Acho que a gente tem que discutir o que a gente leu.

218 Professora Muito obrigada. Agradeço a vocês pela disposição em colaborar!

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Transcrição da 2ª Vivência de leitura – texto “Roda-Viva”

Grupo Focal: 6 alunos do 2º Ano do Ensino Médio – Período Noturno.

Estavam presentes 6 alunos, são eles: Sonia, Vera, Lúcia, Cristina, João e

José.

De acordo com os documentos do comitê de ética, os nomes dos

participantes foram trocados, para preservar tanto os alunos como a escola,

evitando dessa forma, quaisquer constrangimentos e exposição, bem como

possíveis críticas negativas que for ventura os dados coletados pudessem suscitar,

tanto no presente momento como no futuro.

1 Professora Então eu vou passar a palavra a vocês e gostaria que vocês interagissem e construíssem uma leitura... uma interpretação desse texto.

2 Sonia

Bom, o título do texto já diz tudo, né? Roda-Viva. Você lendo o texto, por exemplo, nessa estrofe: “A gente vai contra a corrente até não poder resistir”. Então a gente ta sempre assim, lutando contra alguma coisa. “A mais linda roseira que há Mas eis que chega a roda-viva E carrega a roseira prá lá”. Ou seja, você constrói alguma coisa na sua vida, dá uma volta e perde aquilo que você tinha construído. Ele cultivou a roseira mais linda que existia, só que veio a roda-viva, da vida mesmo, e por exemplo, tem um ditado que diz “O mundo dá voltas, um dia você ta em cima e no outro você ta embaixo”. E a base do texto ta praticamente nisso.

3 Professora Muito bem...

4 Vera

Ah, que ele é voltado pra ditadura militar, né? Então ele fala que na época eles não tinham liberdade de se expressar. Porque qualquer coisa que eles fizessem, vinham os militares e derrubavam eles pra eles não ter o direito de expressar suas próprias opiniões sobre o que eles achavam da ditadura. E o Chico Buarque, no caso, expressava isso nas músicas, mesmo essas músicas sendo proibidas na época. Era o que ele tava tentando expressar, que mesmo você construindo as coisas com o maior amor que fosse, sempre tem alguém mais forte que você e se ela não gostar ela vem e te derruba

5 José Como se a autoridade fosse a roda-viva, certo?

6 Professora Como poderia ser a roda-viva?

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7 José

A roda-viva, eu acredito que seria o seguinte: é... a autoridade. Vamos supor, eles tavam querendo lutar por alguma coisa, por exemplo, “A gente queria ter voz ativa pro destino mandar”. Eu acredito que nessa parte ele ta falando que eles queriam... o povo queria mais... ter a voz assim...

8 Sonia Uma democracia.

9 José É... uma democracia. Que eles pudessem ver o que é melhor pra eles. Mas autoridade, muitas vezes, não concorda, com essas coisas.

10 Vera

Tivessem direito a livre expressão deles. Os pensamentos, as ações deles pudessem ser aceitas por pessoas de maior poder, vamos dizer, político em cima daquilo da vida deles, entendeu? Por exemplo, eu tenho uma idéia só que eu não posso expressar pra você, num posso conversar com vocês sobre o que eu penso. Tenho que guardar minha opinião pra mim porque eu sei que eu não posso ser aceita ou de qualquer forma eu não vou ser aceita, então eu nem expresso minha opinião e eu guardo pra minhas coisas. Ou da mesma forma que eu posso expressar e as pessoas virem me criticar sobre a minha opinião

11 Sonia Naquela época já era mais... (longo silêncio)

12 Professora Todos aqui tem noção do que foi a ditadura? Quando teve a ditadura aqui no Brasil, digamos assim?

13 Sonia Ah, sessenta e alguma coisa, num foi?

14 Professora Quem assumiu o poder ? Como era politicamente...

15 Sonia Getúlio Vargas? Juscelino Kubistchek? Eu não lembro...

16 Professora É uma época recente, não é? o governo militar, Castelo Branco...

17 Vera Fernando Collor...

18 Professora Lembram-se das Diretas Já? Em termos de história, é uma coisa recente, não é? E ditadura todo mundo sabe o que significa?

19 Lucia Eu sei, mas não sei explicar. Eu acho que é quando alguém impõe aquilo pra você. Você tem que seguir aquelas regras.

20 Professora E quem no caso tava impondo alguma coisa?

21 Lucia Os militares.

22 Professora

E aí, todos os presidentes eram militares, né? A gente não podia ter uma aula semelhante a essa. Mas... é uma aula... que, dependendo do que você falava, o professor era preso. Porque era contra, era revolucionário. Chico Buarque de Holanda foi exilado. Essa música realmente foi escrita nessa época. Mas, a gente pode ler de outra forma, né? Então eu gostaria que vocês também... quem não tem esse respaldo e quisesse continuar lendo, é possível ler sobre outro aspecto também. Por exemplo, o que essa música quer dizer pra você?

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23 Vera Na ditadura tinha os militares que impunham suas regras mas, ???????

24 Professora

... então se você for transportar pro contexto da ditadura, a roda-viva eram os militares... digamos que um jovem de hoje fosse ouvir essa música... o que seria a roda-viva hoje em dia...

25 Lucia

É... os poderosos... porque eles pensam no dinheiro só. Como eles tem dinheiro, aí eles vão lá e atacam o país, assaltam, saqueiam o país por interesses próprios deles ou egoísmo deles. A vontade de conseguir dinheiro e mais dinheiro em cima de coisas do outros. Só que lá é um país pobre

26 João

Como o próprio chefe. O chefe... ele não quer saber como ta sua vida fora do serviço. Ele quer você lá, vidrado no serviço ganhando dinheiro pra ele. Ele ta pouco se lixando pra sua família, como você se sente, sua saúde. Você ta passando mal, você sai pra ir pro hospital, muito chefe, meu, eles num tão aí com sua saúde.

27 Lucia E também acham que as pessoas são máquinas. Eles pensam neles e acabou. Os outros, morra. Os Estados Unidos tem um pensamento assim.

28 Professora Então, a gente tá falando de dinheiro, chefe, ditadura. Em outras palavras,o que seria tudo isso?

29 Vera Submissão.

30 Professora Submissão, exatamente... A submissão leva a quê?

31 Vera Ao desgaste humano, da pessoa.

32 Sonia Você ser submisso, é você não ter autoridade sobre nada. Ter alguém controlando você.

33 Vera

Você não tem autonomia. Ou seja, você não tem direito a mandar na sua própria vida, porque tem outras pessoas mandando nela por você. Você não tem direito à sua livre expressão

34 Lucia

Na submissão, a gente não pode ter o que nós tamos tendo agora, que é um debate e cada um expressando suas idéias. Ser submisso é seguir o que aquela pessoa quer e você não pode ter opinião sobre nada.

35 João

Hoje em dia o mundo gira em volta disso, basicamente, né? Porque se você quer ter um emprego, se você quer colocar comida dentro de casa, você tem que ser submisso a uma pessoa.

36 Lucia Você não pode chegar no seu serviço a hora que você quiser, você não pode usar a roupa que você quer... ???????????????

37 Professora Pessoal, e quando ele fala assim “A gente vai contra a corrente Até não poder resistir Na volta do barco é que sente”.

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38 Vera

É que muitas vezes, mesmo a gente vendo que algumas coisas a gente tem que ser submisso, que nem no emprego se a gente não for submisso àquele chefe a gente não vai ter como se sustentar, não vai ter como viver. Só que muitas vezes algumas pessoas lutam contra isso, entendeu? Se expressam mesmo sabendo que vai bater de frente.

39 Professora Sim... sim.. lutam contra... reagem...

40 Vera

Aí ele tá nadando contra a maré, entendeu? Que nem, você vem e impõe que quer que eu faça esse trabalho em azul e eu vou brigar porque eu quero fazer em rosa, ou seja, to lutando contra você, entendeu? Muitas pessoas fazem isso, só que é sempre o mais forte que ganha. E no mundo, hoje, é sempre quem tem mais dinheiro, quem tem mais poder que vence. Aí a gente vai sentir as conseqüências depois porque de uma forma ou de outra ele vai se vingar por você ter ido contra às idéias dele.

41 Professora E esse tipo de atitude, gera ...

42 Vera

Raiva. Você se sente inferior a outra pessoa. O pior sentimento que você pode sentir, acho que é inferioridade. É um sentimento que acaba com qualquer um. Acho que ninguém gostaria de se sentir inferior, porque ninguém é melhor do que ninguém. Alguns tem mais facilidade de fazer alguma coisa, mas ninguém é melhor do que ninguém. Todo mundo tem a mesma capacidade de conseguir chegar a algum lugar, é só querer

43 Sonia E a música também mostra que ao passar dos anos, isso não muda, continua. E tem pessoas que acabam desistindo. “Foi tudo uma ilusão passageira

44 Professora Então,posso dizer que isso gera uma sensação de impotência...

45 Todos Sim.

46 José

Muitas vezes, sim. A maioria das vezes, sim. Pra algumas pessoas, não. Pra algumas pessoas, elas vão procurar outra forma de tentar. Algumas já desistem logo de cara. Depende da força de vontade de cada um.

47 Professora Isso você quer dizer a subjetividade, né? As coisas batem de forma diferente pra cada um.

48 Vera É só você saber trabalhar a sua mente. Se ela tiver numa situação ruim, eu consigo lidar melhor do que ela, ou vice versa.

49 Sonia

Porque o que essas pessoas querem é que a gente se sinta impotente, porque, quanto mais a gente se sentir impotente, menos a gente vai lutar pelas nossas próprias vontades e vai ter que se sujeitar a fazer a deles.

50 Professora A Sonia falou uma coisa interessante. Falou em tempo, né? Será que tem alguma coisa a ver?

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51 Vera Com o passar do tempo continua sempre a mesma coisa.

52 Professora Como seria à passagem do tempo para vocês?

53 Sonia

O tempo é uma coisa relativa. Suponha que eu fique sem falar com vocês por 2 meses. Dentro desses 2 meses aconteceu muita coisa na minha vida. Uma hora eu consegui chegar onde eu queria, e outra eu tava por baixo, não consegui alcançar meus objetivos. Tem uma parte do texto que fala “Roda mundo, roda gigante Roda moinho, roda pião O tempo rodou num instante Nas voltas do meu coração...”. Ou seja, no próprio trecho ele diz das voltas que a vida dá.

54 Vera

Ele quer dizer que a vida passa muito rápido. Se a gente se sujeitar a fazer tudo que outra pessoa quer e não fazer o que a gente quer da nossa própria vida, ela vai passar rápido e a gente vai morrer e num vai ter feito nada que importasse pra nós mesmos

55 Professora E como é que vocês se sentem em relação à passagem do tempo?

56 Vera

A vida passa rápido e eu acho que todo ser humano percebe isso. Tudo passa muito rápido, então se a gente não aproveitar, a gente vai sentir, no final da vida, que a gente não fez nada.

57 João Você tem que aproveitar o tempo agora e não deixar pra depois porque e depois pode num acontecer, sei lá... Você tem que viver daqui em diante.

58 Sonia Mas tem que pensar no presente, se concentrar no que você ta fazendo agora, e não ficar só pensando no futuro.

59 Vera Você tem que planejar e agir porque se você só planejar, a sua idéia daqui um tempo vai ter mudado.

60 Lucia As pessoas, geralmente, sonham demais e não tomam atitude.

61 Professora E que sensação que dá nas pessoas a passagem do tempo, as realizações pessoais que não são concretizadas?

62 Sonia Dá uma sensação de derrota, de fracasso.

63 Professora De perda, né?

64 Sonia

É, de perda. Só que o que as pessoas não enxergam é que elas mesmo fizeram essa perda, elas não foram atrás. Tem algumas coisas que você luta e não é pra ser, mas tem algumas coisas que as pessoas reclamam, mas na verdade elas que não foram atrás.

65 Vera Nós somos donos do nosso próprio destino. No nosso consciente, a gente não sabe o que vai acontecer, mas no inconsciente, já ta formado e é aquilo que vai acontecer.

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66 Lucia

É que as vezes o ser humano tem uma mente fraca. Por exemplo, o leite aumentou. Então porque não substituir por outro alimento? Deixa aqui lá no mercado. Quero ver se eles não vão abaixar o preço. E não, todo mundo continua comprando e assim vai.

67 Vera

É a mesma coisa que acontece com o governo aqui no Brasil. Um monte de gente fala que os senadores e governadores só roubam nosso dinheiro. Essa semana mesmo teve uma reportagem de pessoas que entraram lá no senado e fizeram uma passeata lá dentro ????????????????????. Mas quase ninguém no Brasil tem a coragem de fazer isso.

68 Lucia

Todo mundo sai falando mal de político. Ta, eles roubam, só que eu queria ver se fossem presidente da república então. Queria ver qual seria sua reação se alguém ia gostar do seu mandato também. Você não ia conseguir agradar a todos também. Se nem Jesus agradou a todos, quem vai ser você pra conseguir agradar a todos?

69 Vera

A maioria das pessoas são acomodadas, entendeu? Elas acham que é eleger uma pessoa pra comandar o país e pronto. Só que num é bem assim, a gente colocou uma pessoa lá pra expressar nossas idéias pra ele e decidir junto com o povo o que é melhor pro país. Se ele ta ali é porque ele foi eleito por uma maioria. Num tem como colocar 5 presidentes por causa de 5 tipos de pensamento. Mas a maioria das pessoas se acomoda, só reclama e na verdade não fazem nada de importante.

70 Lucia

Mas tem um monte de gente que reclama do governo mas será que a pessoa tem capacidade de administrar a própria vida? Tem gente que só consegue enxergar os erros dos outros.

71 Professora Pela passagem do tempo, né? se o tempo passou e a gente não fez nada, é nossa responsabilidade ...

72 Sonia Que nós comandamos a nossa vida, nosso destino. Se você não fez, você que não fez, entendeu? Por isso a gente...

73 João Você não pensou, calma...

74 Lucia

Você não mudou, você não agiu, você não pensou na hora, você não...vai, igual a gente aqui...você não expôs suas idéias, então você...você poderia ter mudado muita coisa, você não mudou

75 Professora E essa sensação de poderia ter feito, mas...que ás vezes acontece, né? A gente fica...

76 Sonia

Acontecer, acontece, só que você não pode deixar ela te abater pra sempre. Impotente à alguma coisa nós sempre fomos, nem sempre nossas idéias são bem vindas, nem sempre tudo que a gente faz a gente obtém sucesso... nós temos que saber administrar isso, fazer o equilíbrio. Se você

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não conseguiu...

77 Vera A gente tem que saber recomeçar na verdade.

78 Sonia

Óooh... que nem aqui, na...na própria letra da música, assim, você observando por um outro lado, vai, um lado pessoal seu da vida. Você gosta de uma pessoa...você é apaixonado por ela. Vocês se distanciam...você já pensa assim...já na...na...na...roda aqui ó...a gente quer ter voz ativa no nosso destino mandar, mas eis que chega a roda-viva e carrega nosso destino pra lá. Você...você gosta da pessoa...isso é alguma coisa sua. Só que por um destino a pessoa tem que mudar de lugar, você...ou você mesmo mudar, mudar de país, você pra estudar...o que acontece, é uma facada que você leva, punhalada pelas costas, assim, do...do próprio destino. É capaz de você nem encontre mais essa pessoa, e a pessoa você gostava muito dela assim. Então nem tudo a gente quer na vida vai ser da maneira que a gente espera, sonha...quando você ter um filho, cria esse filho ele entra no mundo das drogas, morre. Já é uma coisa também assim que num...isso não é uma coisa que você planejou. Tem coisas que acontecem na vida que não é de nossos planos.

79 Lucia

Mesmo a gente planejando, planejando a vida, sempre tem coisas que acontecem que você não espera, é como muitas pessoas falam, a vida é uma caixinha de surpresas, então sempre pode aparecer obstáculos no seu caminho, mas aí vai de cada um saber passar por esses obstáculos e seguir adiante.

80 Sonia

É, da mesma forma, vai que agora, se for assim, vou planejar da minha vida, suponha que hoje é sexta-feira, dessa sexta-feira, toda sexta-feira eu vou fazer um caderninho e tudo. Dezessete horas é tal coisa, dezoito tal coisa, dezoito e trinta tal coisa. Você não vai conseguir fazer aquilo, porque, é uma coisa de destino, acontecimentos, agente...por isso que eu falo pra não ficar pensando muito no futuro.

81 Professora Foge do seu controle, né?

82 Sonia

Foge do controle, por isso...por exemplo, você tava indo trabalhar seu carro quebra, então já...já vai mudar aquela sua rotina que você tava...que você tinha programado. Então você não vai chegar dezessete e trinta, você vai chega, vai, dezoito e trinta, se conseguir chegar naquilo que você tinha feito. Então já é uma hora que você já não vai poder fazer alguma coisa. E dentro de uma hora pode acontecer muita coisa no mundo, dentro de uma hora...

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83 Professora Totalmente diferente do que você tinha planejado, né?

84 Sonia Teria planejado.

85 Professora Exatamente.

86 Sonia

Você pode programar uma aula, assim, ah, vou dar tal coisa, por exemplo. ? ? ? ? ? ? ? ? ? ? com a gente. Só que, conforme vai vindo os pensamentos, expondo as idéias, então muda o rumo da aula, muda o que você tinha planejado, aí é uma coisa que vai caminhando, vai sendo planejada no momento, ali é uma coisa momentânea, vai sendo planejada no instante

87 Professora É uma questão de ser inteligente também, porque você tem que saber lidar com as incertezas, com as dúvidas, né? Porque não existe nada...

88 Sonia

Porque o ser humano é formado de dúvidas não tem ? ? ? ? ? ? tem tudo na nossa vida, nós temos dúvidas, nós somos...nós nos questionamos várias vezes durante o dia nós...nos pegamos nos questionando sobre alguma coisa

89 Professora Então eu posso dizer assim que, nós como seres humanos normais, nós temos essas fraquezas. Então, que dirá uma pessoa poderosa, que se sente poderosa, né?

90 Sonia

Ela também tem as fraquezas dela, ela pode ser poderosa na... naquilo que ela faz, por exemplo, na profissão dela ela é uma pessoa poderosa, mas no seu lado de relacionamento ela não é uma pessoa poderosa. Ao contrário de uma pessoa que não é tão rica pode ser mais poderosa que ela, sabe controlar mais...como posso dizer...seus sentimentos, sabe conversar, sabe expor, quando a pessoa, vai, poderosíssima ai, controla um monte de gente, só que ela...ela...

91 Lucia Não consegue controlar o próprio...

92 Sonia

Ela não consegue controlar o próprio eu, ela não sabe assim, é, como posso dizer...controlar sentimentos, ela não sabe entender as pessoas, ela não sabe observar, num sabe analisar, num sabe aceita os outros também. Já uma coisa que uma pessoa que não tem dinheiro tem, que isso já é um outro tipo de riqueza, já.

93 Professora Já é...posso dizer...a gente pode dizer que é uma inteligência.

94 Sonia É uma inteli...é inteligência, uma forma de inteligência.

95 Professora Até como ele sabe administrar...administrar a própria vida. Não é isso?

96 Sonia

Com certeza. A partir do momento que você consegue administra a sua vida, suas relações, sua família, sua rotina, você é uma pessoa inteligente. Qualquer pessoa inteligente que...ninguém nasceu com QI assim zerado né e continuou a resto da sua vida assim.

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97 Professora Alguém quer mais falar...falar alguma coisa, complementar...Então nós falamos da...da impotência, né, diante das...das coisas poderosas, poderiam ser traduzidas ...

98 Cristina Pela ditadura, pelos Estados Unidos, que é uma potência mundial...pelo chefe, pelo poder aquisitivo...

99 Sonia

Porque de qualquer forma, sempre uma pessoa mais humilde sempre se sente mais submissa a uma pessoa que tem mais dinheiro. O olho dela, ela já enxerga a pessoa com dinheiro de outra forma. Uma pessoa, vai, vamos dizer pobre nunca vai se sentir bem perto de uma pessoa muito rica, porque ela sabe que ela não tem aquilo que a outra pessoa tem...Ela se sente inferior, naturalmente ela se sente inferior, ela tem complexo de inferioridade sobre a outra pessoa.

100 Cristina Mas ai que tá, muitas vezes esse preconceito vem até da própria pessoa, né, num vem nem de fora...

101 Sonia

Da própria pessoa, uma coisa que tá dentro dela ali, guardada no inconsciente dela, mas quando acontece a situação, se for uma pessoa muito rica que...ela já...já tipo...ela já vai se transforma, por exemplo, eu to...no meu serviço, eu lido com pessoas que têm pouco dinheiro e pessoas que têm muito dinheiro. Só que naturalmente, mesmo que você não queira, a...você trata a pessoa que tem mais dinheiro, você dá aquela atenção mais especial, a pessoa que não tem tanto...você já num...você já num vai trata da mesma forma...porque você já se sente submissa à pessoa....você fala assim: a pessoa é mais poderosa do que eu, eu não posso tratar ela de qualquer forma, entendeu? Se você tem um tempo pra atender uma pessoa que tem mais dinheiro e uma que tem menos...você vai assim...dá mais atenção pra que tem mais dinheiro porque você se sente mais submissa, você sente uma...inferior à ela.

102 Professora Mas a gente tem que pensar...mas a gente tem que pensar que nós somos seres humanos, né?

103 Sonia

Então, eu...eu tenho esse pensamento, somos seres humanos, ninguém é melhor do que ninguém, nós temos as mesmas capacidades, só que do nosso conceito uma coisa que vem assim...

104 Cristina Que já é uma coisa habitual...

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105 Sonia

Por mais que eu não queira, por mim...pra mim todas as pessoas são iguais, independente de classe, cor, crença, todo mundo é igual, entendeu, nós viemos de uma...assim tem aqueles, eu sou branco num sei o que lá. Em primeiro lugar que no Brasil não existe branco, nós somos uma raça totalmente misturada assim, não existe raça pura aqui. Porque desde os princípios, nós somos um país, assim...que tem tudo...índio, português, alemão, africano, japonês, tudo tudo tudo tudo...e é mistura, tudo misturado...miscigenação.

106 Professora E aí, mais alguma coisa... chegamos a uma conclusão? Então ... Quero agradecer a vocês, a colaboração Gostei muito, esperado que vocês tenham gostado também, tá bom?