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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Eli Gomes Castanho A construção de uma imagem do caipira: cenas de enunciação e ethos discursivo em causos de Cornélio Pires MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA SÃO PAULO 2009

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Eli Gomes Castanho

A construção de uma imagem do caipira:

cenas de enunciação e ethos discursivo em causos de Cornélio Pires

MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA

SÃO PAULO

2009

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Eli Gomes Castanho

A construção de uma imagem do caipira:

cenas de enunciação e ethos discursivo em causos de Cornélio Pires

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Língua Portuguesa, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação do Professor Doutor Jarbas Vargas Nascimento.

SÃO PAULO

2009

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Banca Examinadora

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As árvores velhas quase todas foram preparadas para exílio das cigarras.

Salustiano, um índio guató, me ensinou isso. E me ensinou mais: Que as cigarras do exílio

são os únicos seres que sabem de cor quando a noite está coberta de abandono.

Acho que a gente deveria dar mais espaço para esse tipo de saber.

O saber que tem força de fontes.

Manoel de Barros

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AGRADEÇO...

À minha família – legitimadora deste dizer, bastidores – cabem, nesse núcleo familiar:

- meus primos que sonharam comigo esta conquista e ajudaram a dar a ela seu devido valor.

- aos meus tios, em especial a dois deles: a tia Zezinha - por me conduzir a paratopias

culinárias, durante os intervalos de estudo no sítio; ao tio Renato por transmitir muita

motivação com o orgulho que demonstra sentir pelo sobrinho e o diálogo lítero-artístico e

bem-humorado que sempre soube estabelecer.

- minha vó Natália por me fazer lembrar das minhas origens com os causos de seu tempo,

dando mais sentido ainda a este trabalho.

- meus irmãos de sangue e de sonhos: David e Priscila. Eles tiveram paciência de ouvir e

escutar muito do que é este trabalho, mesmo, algumas vezes, escutando por um ouvindo e

soltando pelo outro. Ele, por ser meu orientador para assuntos desta vida, amigo ouvinte

dos meus anseios e frustrações, fonte de motivação para seguir na realização de sonhos,

parâmetro para equilíbrio. Ela, nossa futura economista, orgulho e prova maior de que

apropriar-se do conhecimento é a possibilidade de mudar os rumos da nossa história.

- meu pai, Silvino, Sirvino, Vino... junto a minha mãe, por ter sabido me educar nos

princípios caipiras. É co-autor de muita coisa aqui, por seu saber que vai além de uma

dissertação, pelos diálogos estabelecidos com músicas caipiras, causos e caipiragens afins

que aparecem no rádio e na TV e, principalmente, por suas experiências e conversas pelas

veredas de nosso sertão.

- minha doce mãe, Maria José, a Dona Mazé, por me ensinar a ler, transcendendo aquela

cartilha que foi meu primeiro livro, antes de entrar para a escola. Seus gestos deram

alicerce necessário à construção de tudo até aqui, desde o cafezinho carinhosamente

preparado nas madrugadas de ida a São Paulo, à escuta atenta dos sonhos e dos projetos.

Minha gratidão não cabe aqui e nem caberá em todas as linhas deste trabalho, bem como de

trabalhos vindouros.

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Ao Jarbas, cuja vivência, amizade e cumplicidade fizeram perder todos os pronomes de

tratamento e títulos que, teoricamente, acompanhariam o nome de meu orientador; mas,

para não quebrar de vez o protocolo, escrevo aqui: ao Professor Doutor Jarbas Vargas

Nascimento. Recepção amiga na PUC-SP. Sabiamente soube me orientar, fazendo-me

perceber, desde a especialização, temas que dialogassem com o sujeito que me constituí e

tenho me constituído. Serenidade que deixa os impasses da vida acadêmica fáceis de serem

transpostos. Companheiro de viagens, de Sul a Nordeste, que marcaram de forma especial

os anos de estudo. Conselheiro amigo, semeador de sonhos, inspiração.

Aos demais professores do programa que me fizeram transcender o olhar, dar relevância e

revestir de significado objetos de estudo: Prof. Dr. Dino Preti, Profª Drª. Jeni Turazza,

Profª. Drª. Dieli Vessaro Palma, Profª. Drª. Vanda Elias e Profª. Drª. Leonor Lopes

Fávero.

À Profª. Drª. Cecília Perez Souza-e-Silva e ao Prof. Dr. Inácio Rodrigues de Oliveira por

terem aceitado fazer parte da banca, durante o exame de qualificação, convertendo aquele

espaço-tempo em oportunidade de significativo aprendizado. Ela, por suas contribuições

teóricas e analíticas. Ele, por seu envolvimento com o gênero causo. Agradeço novamente

por continuarem na banca da defesa.

À minha melhor amiga dos dias de PUC-SP e agora da vida inteira, Edinéia. Chocolate

meio amargo: com sua doçura me cativou e me fez ver um pouco do lado amargo que a

vida tem. Ainda bem que o doce predomina e supera os dissabores. Obrigado pelo

companheirismo e cumplicidade; doçura predominante que dominou os meus melhores dias

em São Paulo.

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A outros personagens, colegas e amigos da PUC-SP: a Maria Rita pelos constantes

diálogos, inspirações e caronas até a Dr. Arnaldo; a Cristiane, conversa caipira, moda de

viola e caronas até São Roque; meninas e menino da Ana Rosa: Marcinha, Maísa,

Patrícia, Losana e Luiz, parceiros de ansiedades; o Adriano Mesquita que também fazia

parte do grupo anteriormente mencionado e parceiro na abertura desta estrada [o mestrado]

que trilhamos; a Heidy, pela bibliografia via sedex.

Ao Zaqueo, ao Josimar e à Nice que baratearam e tornaram um barato minhas idas e

vindas a São Paulo, com as vagas que sobravam no ônibus da secretaria da saúde de Salto

de Pirapora. Facilitadores, minha gratidão.

Aos parceiros da EMEF Professor José Marcello, ex-alunos, atuais alunos, funcionários,

professores e, em especial: ao professor Rogério por compartilhar do mesmo sonho de se

tornar mestre, só que em Educação Matemática, e por poder realizá-lo juntamente comigo;

a Elizete, amiga incentivadora desde a graduação; a Enedi, Ziquinha, pelas pedaladas e

caminhas, movidas a muita conversa e apoio acadêmico; a Solange, minha professora de

Educação Moral e História, agora colega-amiga, sempre conselheira e presente na partilha

dos anseios.

Aos professores, alunos e funcionários da EE Jd. Daniel David Haddad pela compreensão e

credibilidade a mim confiada.

Aos meus novos colegas-amigos da Oficina Pedagógica da Diretoria de Ensino de

Votorantim que parecem ser conhecidos há muito tempo: Fátima, companheira de muitos

saberes; Cleonice por alimentar minha motivação; Nazira e Edimilson por estabelecerem

um diálogo gostoso com as práticas de apropriação de leitura e escrita; o Antonio (abre esse

corpo, loco!!!) por apresentar-me mais a fundo o poeta Manoel de Barros e pela amizade

regada a tereré; Lúcia (thanks! Just you know how make me laught so much! Cê que tem

medu dji chuuuuva...), Márcia Magali (valeu, titia! Besos... ¡hasta!), Celso (o químico e

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suas químicas), Adriana (no silêncio, uma catedral... Será que chove?), Regiane (Branca de

Neve, Snow, quanta alegria!), Eliã (bom dia, sem tipão!) e a respectiva Virgínia, Sara

(histórias do Sul, CTG, bocha, mãe orgulhosa...), Eduardo (ou Eduarte, valeu pelas práticas

intersemióticas), Ana Célia (“Oi, pri...”. “Que pri?”. Princesa!). E outros mais: Patrícia,

Tato, Cecília, Sandra, Jacira, Claudete, Diego, Neto, Gabi, Cristiane... Conviver com

todos vocês me deu muita força para chegar até aqui. Obrigado mesmo.

Às Supervisoras de Ensino, Sandra e Cleide, responsáveis competentes pelo programa

Bolsa Mestrado; às funcionárias do Setor de Finanças: Neuci, Bete e Mari , pela simpatia

com que recebiam os documentos mensais da bolsa.

À Secretaria de Educação do Estado de São Paulo por garantir meu direito à formação

continuada.

A DEUS que, de graça, colocou toda essa gente no meu caminho e criou condições

favoráveis à produção deste trabalho.

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RESUMO

Esta dissertação examina a construção do ethos do caipira a partir do gênero de discurso

causo. A amostra que integrou o trabalho é composta de três causos publicados na obra "As

estrambóticas aventuras de Joaquim Bentinho, o queima-campo" (1924), de Cornélio Pires,

escritor do interior paulista, de Tietê-SP, do início do século XX. Nosso objetivo geral foi

examinar as cenas da enunciação e a construção do ethos caipira. Foram nossos objetivos

específicos: verificar a construção das cenas englobante e genérica caracterizadoras,

respectivamente, do tipo de discurso e do gênero; descrever as cenografias construídas

pelos causos; e, a partir desse movimento analítico, observar como se dá a construção do

ethos caipira nessas cenografias construídas. O caipira foi historicamente reconstruído por

vários meios midiáticos. Essa reconstrução constante trouxe, no bojo de seus discursos,

diferentes representações do paulista da zona rural, que vão desde o matuto preguiçoso e

alienado a questões minimamente necessárias à sua inserção no mundo econômico, ao

homem bucólico em paz com a natureza e desapegado dos valores urbanos. Logo, foi-nos

interessante perceber a imagem que se construía do caipira, no gênero discursivo causo.

Para fundamentar as análises, recorremos ao arcabouço teórico-metodológico da Análise do

Discurso, na perspectiva de Dominique Maingueneau (2005, 2006c, 2008). Optamos por

trabalhar com os seguintes planos da Semântica Global, proposta pelo teórico francês:

cenas de enunciação, ethos discursivo e o código linguageiro. Apreendemos o causo como

pertencente ao campo literário, a partir da construção de uma cena englobante que o

legitima; bem como o caracterizamos, pela apreensão da cena genérica, como um gênero de

discurso; e, pela análise dos três causos, observamos a construção de suas respectivas

cenografias, da qual percebemos a criação de um espaço de acolhimento, de interação entre

os roceiros, na noite fria da fazenda, tempo para distrair-se após o dia árduo e lançar-se a

outros espaços criados pela enunciação. Uma vez estudada a natureza enunciativa dos

causos, procedemos ao modo de construção do ethos caipira, nos três textos selecionados,

cujas temáticas são saúde pública, avanço tecnológico-científico e política. Da leitura que

fizemos, pudemos perceber que a construção do ethos se dá pela auto-afirmação em

oposição ao homem da cidade e a discursos que pintavam o caipira como um anti-herói. A

imagem construída ostenta um camponês caracterizado pela resistência e imunidade ante a

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adversidade decorrente do abandono às políticas de saúde pública, por um saber que lhe é

particular e não menos importante do que a do homem da cidade e por um posicionamento

político ante a realidade de seu país. Tais facetas construídas são, também, corroboradas

por mecanismos da variante caipira, configurando um código linguageiro próprio.

Consideramos, por fim, que os causos procuram construir um ethos caipira capaz de

subvertê-lo de anti-herói a herói, não acatando, pelo humor, um estereótipo negativo e

polêmico, desde aquela época até os dias de hoje.

Palavras-chave:

1.Causo 2. Análise do Discurso 3. Ethos Discursivo 4. Cornélio Pires

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ABSTRACT

This dissertation examines the ethos construction of the “caipira” through the discursive

genre tale-story. The corpus of this work is composed by three tales-stories from the book

“As estrambóticas aventuras de Joaquim Bentinho, o queima-campo” (1924), of Cornélio

Pires, writer and story-teller from Tietê-SP, who lived in the beginning of twenty century.

Our general objective was to examine the scenes of the enunciation and the construction of

ethos of the “caipira”. Our specifics objectives were: to verify the construction of global

and generics scenes, characterizers of a type of discourse and genre, respectively; to

describe scenographies constructed by the stories-tales; and, through this analytic

movement, to observe how is created an image of the “caipira”, in those scenographies. The

“caipira’s” images were historically reconstructed by different medium means. These

constants reconstructions brought, in its discourses, different representations of the rural

man, since the lazy and alienated man about the economic world, until the bucolic man who

lives in peace with the nature and far way the urbans values. Then, it was interesting to us,

to notice how the caipira’s image was created in that discursive genre. The theorist base of

our analysis was upon D. Maingueneau’s (2005, 2006c, 2008) perspective. We chose to

work with his Global Semantic plans: scenes of the enunciation, ethos and language code.

We apprehended in the tale-story as belongs to the literary camp, trough the construction of

a global scene that legitimates its; by the generic scene, we understood the story-tale as a

discoursive genre; and, according to the scenographics analyses of the three tales-stories,

we realized the creation of a relaxing and interaction moment among the planters, in the

cold night, in the farm, time to rest after a hard day and enter in other places created by the

utterance. After that, we have studied the utterance of the story-tales, we proceeded the

study of the caipira’s ethos construction kind, in the three texts chosen, that they have as

theme: public health, technology and scientific progress and politic. We understood that the

construction of the ethos is made by the opposition between the man of the city and the

discourses that present the “caipira” like an antihero. The image constructed presents a

countryman characterized by: the resistant and the immunity in the presence of the

adversity resultant of the abandonanment of the politics public health; by a particular

knowledge that is not less important than the city habitant; and a politic posture. The faces

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constructed are also confirmed by mechanism of the “caipira” variant spelling, configuring

an own language code. We considered, finally, that the tales-stories draw a countryman

ethos that exchanges the antihero for the hero, not accepting, by the humor, a negative and

polemic stereotype, since that time until nowadays.

Key-words:

1.Tales-stories 2. Discourse Analysis 3. Discursive ethos 4.Cornélio Pires

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO....................................................................................................................01

CAPÍTULO I – A ANÁLISE DO DISCURSO

1.0 Introdução.......................................................................................................................05

1.1 Percursos da Análise do Discurso...................................................................................05

1.1.1 Um movimento fundador: A Análise Automática do Discurso....................08

1.1.2 Quando as máquinas param: um segundo momento da AD..........................11

1.1.3 Tendências atuais da Análise do Discurso: por uma análise da Semântica

Global....................................................................................................................................13

1.2 As noções de enunciado, texto, discurso e interdiscurso................................................18

1.3 Discurso literário.............................................................................................................23

1.3.1 O contexto do discurso literário e o conceito de paratopia..............................24

1.4 Gênero do discurso..........................................................................................................26

1.4.1 O conceito fundador de gênero discursivo em Bakhtin...................................26

1.4.2 Maingueneau e o conceito de gênero de discurso............................................29

1.4.3 O oral e o escrito nos gêneros de discurso.......................................................32

1.5 Cenas de enunciação.......................................................................................................34

1.6 Do ethos retórico ao ethos discursivo.............................................................................37

1.6.1 Antecedentes da noção de ethos discursivo.....................................................37

1.6.2 Abordagens lingüísticas (ou nem tanto) sobre ethos........................................40

1.6.2 Ethos para a Análise do Discurso de D. Maingueneau....................................47

1.7 Código Linguageiro........................................................................................................54

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CAPÍTULO II – CULTURA CAIPIRA, CORNÉLIO PIRES E SEUS CAUSOS.

2.0 Introdução.......................................................................................................................56

2.1 A formação histórico-cultural do Brasil Caipira.............................................................56

2.2 Literatura Paulista...........................................................................................................62

2.3 Cornélio Pires e o maior de todos os causos: a sua vida.................................................71

2.4 As estrambóticas aventuras de Joaquim Bentinho, o queima-campo.............................74

2.5 O dialeto caipira, de Amadeu Amaral............................................................................78

CAPÍTULO III – CENAS DA ENUNCIAÇÃO E ETHOS DISCURSIVO NO GÊNERO

CAUSO

3.0 Introdução.......................................................................................................................82

3.1 Cornélio Pires e a construção do causo...........................................................................85

3.2 O causo como um gênero de discurso: a cena genérica..................................................90

3.3 A cenografia no gênero causo: espaço e tempo empíricos e discursivos........................94

3.4 Um caboclinho mirradinho... A construção do sujeito no causo....................................99

3.5 Cá estou eu na fazenda velha... A construção das cenas..............................................104

3.5.1 CAUSO 1: Joaquim Bentinho frente a um problema de saúde pública.........104

3.5.2 CAUSO 3: Joaquim Bentinho e um caso de cirurgia plástica........................108

3.5.3 CAUSO 15: Joaquim Bentinho e a República...............................................112

3.6 A construção do ethos nos causos.................................................................................117

3.6.1 Pessoas do discurso do “dialeto” caipira: um índice......................................117

3.6.2 O ethos efetivo de Joaquim Bentinho.............................................................121

3.7 Algumas considerações sobre o código linguageiro.....................................................126

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CONSIDERAÇÕES FINAIS..............................................................................................129

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................131

ANEXOS.............................................................................................................................135

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INTRODUÇÃO

Foram quase quatro anos de idas e vindas do interior de São Paulo para a capital,

para estudos de pós-graduação em níveis lato e stricto sensu, na PUC-SP. Nessas viagens,

as diferenças se escancaravam a cada interlocução travada; a viagem de quase duas horas

era espaço para autoconhecimento na diluição paulistana. O impacto da diferença nos fez

optar pelo estudo de uma literatura pouco conhecida, embora com temática voltada a um

modo familiar de vida, às origens paulistas, em suma, ao universo caipira.

Esse sentimento de estrangeiro no próprio país é que nos motivou à investigação de

uma manifestação literária produzida no interior paulista. Assim, esta dissertação tem como

tema o estudo das cenas de enunciação e a construção do ethos discursivo nos causos de

Cornélio Pires, escritor do interior paulista, autor da obra As estrambóticas aventuras de

Joaquim Bentinho, o queima-campo. Dela, elegemos os causos que compõem nossa

amostra. Para darmos conta do tema escolhido, optamos pelos pressupostos teórico-

metodológicos da Análise do Discurso, na perspectiva de Maingueneau (2005, 2006c,

2008).

O impulso à realização deste trabalho é justificado pelo desejo de mergulhar fundo

nesse universo pouco explorado, capaz de nos remeter à historicidade do interior paulista,

por meio de sua literatura, produzida no início do século passado, em suas três primeiras

décadas. Desse campo, recortamos a construção da imagem do homem do campo, haja vista

que tal imagem se configurava num terreno polêmico provocado, principalmente, por

Monteiro Lobato e as imagens do caipira nos artigos escritos e publicados no ano de 1914.

Sentimos necessidade de perceber, no interior dos espaços discursivos, os movimentos de

retaliação ao jeca de Lobato por meio dos causos de Cornélio Pires, embora esse ainda não

seja o objetivo de nossa pesquisa; no entanto, um diálogo com a obra lobatiana é possível e

válida para nossa discussão. Até mesmo porque Monteiro Lobato encenara o caipira como

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anti-herói; enquanto que Pires nos pinta um jeca heróico, bom selvagem, à moda do índio

para os românticos.

Outra justificativa se dá pelo fato de que há alguma tendência, no âmbito das Letras,

em valorizar manifestações literárias populares orais ou escritas, como a poesia de cordel,

por exemplo; no entanto, muito pouco se sabe e se tem pesquisado sobre as práticas

literárias paulistas, em sua vertente popular. Talvez, ainda que também não seja esse nosso

objeto de discussão, o esquecimento da literatura popular paulista tenha ocorrido em razão

de São Paulo ter sido o ícone modernista dos anos 20 e, com isso, o foco voltou-se mais ao

cânone literário, mesmo este tendo vertente popular. É, pois, como tentativa de rememorar

esse patrimônio imaterial paulista que este trabalho surge.

Além disso, o estereótipo do caipira paulista é, historicamente, reconstruído por

tipos que vão desde o Jeca Tatu a Chico Bento, pelos vários meios midiáticos. Essa

reconstrução constante traz no bojo de seu discurso diferentes imagens do paulista da zona

rural; tais representações vão desde o matuto preguiçoso e alienado a questões

minimamente necessárias a sua inserção no mundo econômico ao homem bucólico em paz

com a natureza e desapegado dos valores urbanos. Daí decorre nosso interesse em perceber

imagem que se constrói do caipira nesse gênero discursivo: o causo.

Assim, pelo estudo das cenas de enunciação, pudemos delimitar a forma como o

autor se legitima num campo discursivo, por meio da construção da cena englobante para,

por conseguinte, construir, com a cena genérica, o gênero de discurso causo. Optamos pelo

uso da terminologia causo em vez de caso, uma vez que o primeiro parece sugerir maior

proximidade à cultura caipira; já que o termo caso é de uso mais recorrente em norma culta.

O próprio autor da amostra dessa pesquisa oscila entre o termo ‘caso’, nas falas de narrador

e ‘causo’ quando o caipira é o locutor. Segundo o dicionário Houaiss (2005), a etimologia

de ‘causo’ provém do hibridismo de ‘caso’ e ‘causa’ e é de uso freqüente no português

popular brasileiro. Genericamente, podemos dizer que causos são narrativas comuns à

esfera discursiva caipira, tendo temáticas variadas, mas sempre caracterizadas pela variante

regional, o que aqui temos chamado de código linguageiro.

Essas construções remetem-nos à arquitetura da cenografia construída pelo discurso

para legitimá-lo e se legitimar também. Pelo estudo das cenas é que chegamos a uma

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construção do ethos discursivo, entendendo-o como uma imagem construída pelo e no

discurso; logo, justificamos por não tê-lo tomado separadamente como objeto autônomo de

análise, mas sim, como parte das cenas de enunciação que dita regras sobre o como dizer e

sobre o conjunto de fatores do ritual enunciativo. O estudo do ethos discursivo compreende

a apreensão de um caráter, de uma corporalidade e de um tom, que serão objeto de nossa

investigação.

A amostra da dissertação é composta de três causos, da já citada obra. O critério de

escolha deles pautou-se pela temática neles presente, a saber, saúde pública, avanço

científico e situação política. Desse modo, tornou-se possível apreender, pelas pistas

deixadas no gênero e na língua, a relação entre o homem do campo e a sociedade da década

de 20, do século passado. Assim, o trabalho concentra-se no discurso apreendido pela

tríade: língua, homem e sociedade.

Sobre o autor dos textos, temos a dizer que Cornélio Pires era autodidata e exerceu

várias profissões, a maioria delas ligada à comunicação. Dentre suas atividades, na década

de 20 e metade da década de 30, realizou alguns shows de humor, abordando a temática

caipira. Escreveu cerca de vinte obras entre causos, contos, poemas e, no fim de sua

carreira, algumas obras de cunho espírita. Em seu currículo, não se pode deixar de

mencionar o fato de, mesmo tendo poucos recursos financeiros, haver sido mecenas de

algumas duplas de moda de viola, inaugurando a produção fonográfica desse gênero

musical. Acrescente-se à sua produção, freqüentes colaborações em meios periódicos de

humor comuns à época, como a revista O Pirralho e Almanaque d’O Sacy.

A dissertação tem por objetivo geral examinar as cenas da enunciação e a

construção do ethos caipira, a partir do gênero de discurso causo. São objetivos específicos

deste trabalho: verificar a construção das cenas englobante e genérica caracterizadoras,

respectivamente, do tipo de discurso e do gênero; descrever as cenografias construídas

pelos causos; e observar como se dá a construção do ethos caipira nessas cenografias

construídas, bem como o uso de um código linguageiro próprio ao discurso. Entendemos

que essas categorias – cenas de enunciação, ethos e código linguageiro – são alguns planos

da semântica global do discurso que analisamos e, por conseguinte, configuram-se como

critérios para nossa análise.

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Portanto, queremos responder à seguinte questão de pesquisa: que imagem do

caipira é construída a partir dos causos, nas primeiras décadas do século XX? Para isso,

procedemos à análise dos três causos da obra. Os textos têm como temática as mentiras de

Joaquim Bentinho e, nessa inventiva, o enunciador deixa transparecer um ethos do homem

do campo, construído a partir da negação/reafirmação de estereótipos, bem como de uma

prática intersemiótica, compreendendo imagens e descrição indumentária.

A organização da dissertação conta com esta Introdução e mais três capítulos.

No Capítulo I, Análise do Discurso, tratamos dos pressupostos que norteiam a

pesquisa; apresentamos um percurso da disciplina desde seu surgimento, na década de 60,

às novas tendências preconizadas por Maingueneau; também centramos nossa atenção nos

conceitos de texto, enunciado e discurso, gênero de discurso, cenas de enunciação, ethos e

código linguageiro.

No Capítulo II, Literatura Paulista, Cornélio Pires e seus causos, fizemos uma

contextualização que acreditamos ser necessária, dado o pouco conhecimento sobre autor e

sua obra. Assim, o leitor pode localizar-se no campo discursivo a que temos chamado de

literatura paulista.

Por fim, no Capítulo III, Cenas de Enunciação e Ethos no Gênero Causo fazemos a

análise propriamente dita, em que buscamos entender os meios pelos quais o enunciador

lança mão de recursos lingüístico-discursivos para construção das cenas de enunciação e,

conseqüentemente, do ethos que faz parte da cenografia.

Ao final, são apresentadas as Considerações Finais, seguidas das Referências

Bibliográficas e dos Anexos.

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CAPÍTULO I

A ANÁLISE DO DISCURSO

1.0 Introdução

Neste capítulo, apresentamos a base teórico-metodológica que norteia este trabalho.

Fizemos, primeiramente, um breve percurso da Análise do Discurso, desde seu surgimento

até as tendências apresentadas por Maingueneau (2005, 2006c, 2008), na

contemporaneidade. Bem sabemos que a disciplina passou por grande variabilidade e,

revistar os caminhos por ela percorridos, nos auxiliará no entendimento de sua

configuração mais recente.

Discutimos as noções de texto, enunciado e discurso, para tratarmos de mais outros

tópicos teóricos: a noção de discurso literário e a importância de se considerar seu contexto

de produção. Por concebermos o causo como um gênero discursivo, o conceituamos de

acordo com a base teórica deste trabalho. Já que a noção de gênero é complementada pelas

cenas da enunciação de que trata o teórico privilegiado na análise, não pudemos deixar de

definir cena englobante, cena genérica e cenografia. Por fim, mereceu um tópico especial o

conceito de ethos para a Análise do Discurso.

1.1 Percursos da Análise do Discurso

A Análise do Discurso (doravante AD), especificamente a fundada pelos

francófonos, vêm apresentando várias facetas desde seu surgimento na década de 60, do

século passado, tendo em vista os debates sobre sua epistemologia e sua divulgação pelo

mundo.

Para melhor entendermos como se deu a construção dos conceitos que nortearão

nosso fazer acadêmico, fez-se necessário revisitar essas facetas com o objetivo de

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sistematizar como se configurou a disciplina ao longo do tempo. Além disso, tal revistar

fazemos com certo tom didático com vistas a registrar um saber construído ao longo de

nossa formação.

Grosso modo, podemos dizer que o itinerário da AD passou por, pelo menos, três

momentos marcados por rupturas, nada estanques, no seio da própria disciplina. Fato

natural às ciências, as quais buscam novos paradigmas, quando os antigos não lhes dão as

respostas buscadas. Pela observação da totalidade da AD, podemos perceber movimentos

de continuidade versus descontinuidade históricas, ao longo de sua trajetória.

Os pares opostos mencionados anteriormente surgem em Kuhn [1962] (2006:29),

que postula a noção de paradigma e nos permite aplicá-la em diferentes áreas de

conhecimento. O conceito de paradigma é chave para o entendimento da proposta de Kuhn.

Para ele, o termo está atrelado à concepção de ciência normal, a qual precede seu

entendimento. Desse modo, para o autor, ciência normal

significa a pesquisa firmemente baseada em

uma ou mais realizações científicas passadas.

Essas realizações são reconhecidas durante

algum tempo por alguma comunidade

científica específica como proporcionando os

fundamentos para sua prática posterior.

Tendo, pois, a pesquisa, que caracteriza a ciência normal, como base de realizações

científicas passadas, paradigma nada mais é do que essas realizações partilhadas e

consolidadas entre uma comunidade. Para ilustrar a conceituação, o filósofo da ciência cita

a Física aristotélica, como exemplo de um paradigma. Esses paradigmas são legitimados

pelos manuais científicos e apreendê-los constitui tarefa de todo iniciante numa ciência

normal. Portanto, podemos dizer que o Curso de Lingüística Geral, de Saussure [1916]

(2002), é um manual que legitima um paradigma científico; no caso, o estruturalismo

lingüístico.

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Do mesmo modo que os paradigmas são construídos pelo fazer científico, são,

também, dinamitados por ele. Isso porque, segundo Kuhn (op. cit.: 93) algumas crenças ou

procedimentos anteriormente aceitos foram descartados e, simultaneamente substituídos

por outros. Logo, em meio às crises de uma teoria, novas teorias emergem. Assim, a

resposta a essa crise leva a uma transição de paradigmas e a esse movimento é que Khun

nomeia revolução científica.

O surgimento da AD, nos anos 60, deu-se revolucionariamente em resposta à

constatação de paradigmas do estruturalismo lingüístico que não atendiam aos novos

objetivos de pesquisa que surgiam àquele tempo, sobretudo, nas correntes formais e

funcionalistas, já que essas excluíam a fala dos estudos do campo lingüístico. O cenário

para o surgimento dessa revolução foi uma França humilhada pela Segunda Grande Guerra,

lançada num continente dividido por modelos sócio-econômicos díspares: o capitalismo e o

socialismo, representados, respectivamente, pelos Estados Unidos e pela União Soviética.

Logo, percebemos que a AD foi um movimento de descontinuidade ao

estruturalismo. Embora a corrente teórica do lingüista genebrino gozasse de seu período

áureo, na Europa, pelo menos até o final dos anos 60.

Assim, os paradigmas constituem-se e dinamitam-se por movimentos de

continuidade e descontinuidade históricas, já que as revoluções não se dão abruptamente,

mas, lenta e gradualmente. Para Possenti (2004:355), o saber científico apresenta rupturas

e, no caso das teorias do discurso, apresenta múltiplas rupturas:

O conhecimento não se produz por

acumulação, mas por saltos e mudanças de

rumo em relação às etapas anteriores. As

novas teorias não são vistas como

desenvolvimento e sofisticação das anteriores,

mas como efeito, em boa medida, de seu

abandono, seja por estarem “esgotadas”, seja

porque novas problemáticas, novas vontades

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de verdade tomam seu lugar, tanto teórica

quanto politicamente.

A AD, mesmo revolucionando um paradigma no contexto de sua aparição,

apresenta em seu interior vicissitudes que comprovam os movimentos contínuo e

descontínuo que a constituem sob perspectivas diferentes. Sobre elas, buscaremos perceber

esses movimentos.

1.1.1 Um movimento fundador: a Análise Automática do Discurso

Conforme já mencionamos, a AD nasceu num contexto de contestação de projetos

totalizantes como foi o estruturalismo. Embora pareça um movimento de ruptura total com

aquela fase áurea da Lingüística, é possível perceber, nessa primeira fase, um movimento

de continuidade. Cabe-nos, anteriormente, entender de que trata esse ramo da Lingüística.

A disciplina tem o discurso como seu objeto de estudos, conforme a própria

nomenclatura já sugere. Logo, é necessário compreender esse objeto. Fernandes (2007)

define-o por exclusões e começa pela distinção entre o que vem a chamar discurso e o que

o senso comum o categoriza. Desse modo, discurso não compreende uma fala formal,

longa, com protocolos próprios. Tampouco discurso é sinônimo de texto, de língua, de fala.

Discurso é, para a disciplina, a exterioridade à língua; é o terreno em que o ideológico e o

social se fundem e se concretizam na língua. Nessa perspectiva, o discurso é agasalhado na

língua. E, embora aspectos de ordem lingüística não entrem em sua constituição, a língua é,

em relação ao discurso, o seu suporte. Então, para a AD, são privilegiadas duas interfaces

de um mesmo objeto de estudo: a textualidade (materializada pela língua) e o lugar social, a

exterioridade (apreendida pelo contexto sócio-histórico-social).

Sendo assim, a partir da materialidade lingüística, aspectos sócio-ideológicos podem

ser apreendidos em decorrência da posição dos sujeitos que se apropriam da língua. Em

razão disso, segundo Orlandi (2001), o embasamento epistemológico da Análise

Automática do Discurso tem sua origem nas teorias da sintaxe e enunciação, da ideologia e

do discurso, atravessados por uma orientação Psicanalítica de sujeito. É, portanto, do

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diálogo entre a Lingüística Estrutural, o Marxismo e a Psicanálise que surge o constructo

teórico-metodológico da AAD-69, com vistas à compreensão (esta definida em oposição à

inteligibilidade e interpretação) sobre como um objeto simbólico produz sentidos para e por

sujeitos.

A constatação, no paradigma estruturalista, de objetivos distantes das novas

questões que surgiam, levou, paulatinamente, os estudiosos franceses, do final da década de

60, a rupturas com o sistema. Uma das principais pulsões para isso se deu em razão do

questionamento da forma pela qual se estudavam textos, àquela época. Para Pêcheux

(1993:62):

... o deslocamento conceptual introduzido por

Saussure consiste basicamente em separar a

homogeneidade cúmplice entre prática e teoria

da linguagem: a partir do momento em que a

língua deve ser pensada como sistema, deixa

de ser compreendida como tendo a função de

exprimir sentido; ela torna-se objeto da qual

uma ciência pode descrever seu funcionamento

(...) A conseqüência desse deslocamento é,

como se sabe, a seguinte: o “texto”, de modo

algum, pode ser objeto pertinente para a

ciência lingüística pois ele não funciona; o que

funciona é a língua, isto é, um conjunto de

sistemas que autorizam combinações e

substituições reguladas por elementos

definidos, cujos mecanismos colocados em

causa são de dimensão inferior ao texto: a

língua, como objeto de ciência se opõe à fala,

como resíduo não científico de análise.

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Para dar conta desse impasse, Pêcheux propõe uma análise em dois níveis: um

lingüístico e outro discursivo. Para isso, propunha o uso da gramática gerativa, pela análise

transfrástica, o que, de certa forma, sugeria um movimento de continuidade histórica dos

padrões estruturalistas, embora caminhasse, antiteticamente, num movimento de

descontinuidade.

Mussalim (2001) descreve os passos dessa análise preconizada por Pêucheux. A

primeira etapa tem seu início pela escolha do corpus. Eram preferíveis discursos

estabilizados, produzidos em condições estáveis e homogêneas. Não que não fossem

discursos polêmicos, mas eram marcadamente de um grupo específico. Por exemplo, no

Manifesto Comunista, nota-se, explicitamente, o locutor assujeitado a uma ideologia, no

caso, a das tendências políticas de esquerda. Assim, o texto é fechado numa instituição e ele

representa parte de seus interlocutores inscritos nela. A seguir, a análise contempla, ainda, o

campo lingüístico; uma vez que o analista se ocupará das relações sintáticas entre os

enunciados, bem como do léxico que compõe o discurso. O passo seguinte já é de uma

dimensão discursiva: o analista empregará estratégias de substituição e de paráfrase. Por

fim, em última estância de análise, ao analista caberá reconhecer, pelas relações de

sinonímia e paráfrases, se oriundas de uma mesma estrutura geradora do processo

discursivo.

A partir desses passos analíticos, concluía Pêcheux (op.cit.:118) pela existência de

uma máquina discursiva, numa metáfora industrial. Esse conceito corresponderia a

uma estrutura (condições de produção

estáveis) responsável pela geração de um

processo discursivo (o processo de construção

do manifesto comunista, por exemplo) a partir

de um conjunto de argumentos e operadores

responsáveis pela construção e transformação

das proposições, concebidas como princípios

semânticos que definem, delimitam um

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discurso (o comunista, para tomá-lo como

exemplo).

Como se vê, a escolha do discurso para o corpus já implica, nessa perspectiva,

eleger uma estrutura de condições em que um processo discursivo é gerado. Para perceber a

máquina discursiva por detrás desse corpus, é necessária uma análise lingüística (de cunho

gerativo, como vimos), prosseguida de uma discursiva. A esse procedimento teórico-

analítico, Pêcheux nomeou Análise Automática do Discurso (AAD-69).

1.1.2 Quando as máquinas param: um segundo momento da Análise do

Discurso

Esta fase tem como principal diferencial, nesse período, a agregação de conceitos

advindos da Filosofia de Foucault, sobretudo, o conceito de formação discursiva (daqui

para frente, FD). Pela FD é que se pode dizer que tais palavras somente fazem sentido se

relacionadas às condições sócio-históricas de seu uso. É por esse conceito foucaultiano que

se regula o que deve e o que não deve ser dito em uma situação sócio-histórico-ideológica

dada. Atrelado ao conceito de FD permeia a noção de formação ideológica (daqui para

frente, FI), que é exatamente o espaço sócio-histórico em que o sujeito se encontra. Por isso

é que Brandão (1997:38) diz que são as formações discursivas que, em uma formação

ideológica específica e levando em conta uma relação de classe, determinam “o que pode e

deve ser dito” a partir de uma posição dada, em uma conjuntura dada.

O próprio Pêcheux [1983] (1996:314), pai da AAD-69, reconhece a ruína da

máquina discursiva, como superação de um paradigma:

a noção de formação discursiva (...) começa a

fazer explodir a noção de máquina estrutural

fechada na medida em que o dispositivo da FD

está em relação paradoxal com seu “exterior”:

uma FD não é um espaço estrutural fechado,

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pois é constitutivamente “invadida” por

elementos que vêm de outro lugar (isto é, de

outras FD) que se repetem nelas, fornecendo-

lhe suas evidências discursivas fundamentais

(por exemplo, sob a forma de “pré-

construídos” e “discursos transversos”.

Ao contrário da primeira fase em que as máquinas discursivas são estruturas

justapostas, fechadas sobre si mesmas, este outro momento trabalha com a obrigatoriedade

de o analista perceber as zonas “invadidas” por outras formações. Assim, o processo

discursivo não é mais gerado por uma máquina, conforme a metáfora, mas se constrói pelo

embate ou pela proximidade, pela disputa de espaço das diferentes FDs.

Em decorrência desses novos modos de perceber o discurso, a noção de sujeito é

alterada. Na perspectiva anterior, o sujeito era entendido como assujeitado pela maquinaria

discursiva; nesta, vem à baila a noção de sujeito em dispersão. Essa concepção resulta da

filiação a determinadas e distintas FDs, que vinculam saberes e que, por sua vez, são

articulados a interesses sociais. O sujeito não é mais, portanto, marcado pela unidade.

Todavia, isso não lhe dá o status de livre. Como o sujeito se constitui em detrimento das

muitas funções, dos muitos papéis que exerce em diferentes espaços discursivos, ele tem

sua enunciação regulada pelas coerções oriundas das FDs, pertencentes às respectivas

instituições de que ele faz parte.

Portanto, o principal diferencial entre esta perspectiva e a anterior é a inserção da

noção de FD, indicando a possibilidade de assujeitamento a várias FDs, que se

presentificam nos interstícios do discurso e não somente a uma máquina discursiva. Não

obstante, tal novidade teórica parece ainda ter certa continuidade, nesse aparente

descontínuo histórico. Em termos teóricos, o que inova é a relação limítrofe entre as FDs;

nega-se a idéia de uma estrutura fechada. Constata-se que não há formação única para uma

única linguagem e para todos. Segundo Courtine e Marandin (apud Brandão (1997:40)):

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Uma FD é, portanto, heterogênea a ela

própria: o fechamento de uma FD é um

fundamentalmente instável, ela não consiste em

um limite traçado de forma definitiva,

separando um exterior e um interior, mas se

inscreve entre diversas FDs como fronteira que

se desloca em função dos embates da luta

ideológica.

E, em conseqüência e aperfeiçoamento dessa natureza heteróclita do discurso, é que

o modelo paradigmático proposto por este segundo momento foi, aos poucos, sendo

substituído pelas novas tendências, paralisando, de uma vez por todas, as máquinas

discursivas.

1.1.3 Tendências atuais da Análise do Discurso: por uma análise da Semântica

Global

Conceber o discurso numa perspectiva polifônica ditava a necessidade de lançar-se

à busca de novos paradigmas. Assim, os estudos nessa vertente muito influenciaram uma

nova configuração na AD, desde os princípios bakhtinianos, passando pelos estudos da

enunciação e os estudos de semântica discursiva.

Os estudos de Bakhtin, embasados no princípio dialógico da linguagem,

favoreceram àquele pesquisador russo a construção do conceito de polifonia, a partir da

análise de obras de Dostoievski, de acordo com Bezerra (2006). Desse mesmo conceito,

Ducrot apropriou-se mais tarde e o aperfeiçoou, dando a ele, segundo Mainguenau

(2006:109), um trato lingüístico, afirmando que aquele que produz materialmente seu

enunciado não se encarrega dele, não se apresenta como seu responsável.

Essa assertiva fez com que Ducrot postulasse a diferença entre sujeito falante (o

sujeito empírico ou instituição que “assina” o discurso materializado em forma de texto);

locutor (o sujeito que detém, porta os vários discursos, que são materializados em texto

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pelo sujeito falante) e enunciador (ao contrário do locutor, o enunciador não se

responsabiliza pelas palavras do enunciado, mas pelo ponto de vista sobre ele; possibilita,

por exemplo, lançar olhar irônico sobre dada situação discursiva).

Como o locutor não é o dono de sua voz, mas o templo de muitas outras vozes,

perpassam por esse conceito as noções de polifonia e de heterogeneidade. A primeira,

conforme já mencionamos, é condição essencial para que se constitua o discurso, já que ele

se faz das muitas vozes (poli/fonia), que circulam no espaço de convivência do sujeito

empírico. A segunda, preconizada por Authier-Revuz, a partir das noções de dialogia e

polifonia, refere-se à materialização dessas outras vozes no discurso. Ela pode ser

classificada sob duas formas: a heterogeneidade constitutiva que torna implícita a voz do

sujeito; e a heterogeneidade mostrada, como sendo aquela que deixa transparecer a voz do

outro, que é parte constitutiva do discurso, são exemplos desse tipo de heterogeneidade as

citações, as referências a outros dizeres.

Maingueneau (2007:21), na esteira dos estudos semânticos de Ducrot, avança sobre

novas considerações acerca da aplicabilidade do conceito foucaultiano de FD, culminando

no primado do interdiscurso. Logo, a unidade de análise não é o discurso, mas um espaço

de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos. A construção do conceito de

interdiscurso decorre do fato de que a heterogeneidade constitutiva não é tão fácil de ser

apreendida em uma abordagem lingüística stricto sensu, como seria a heterogeneidade

explícita. Logo, para o Maingueneau (op. cit.:33): a hipótese do primado do interdiscurso

inscreve-se nessa perspectiva de uma heterogeneidade constitutiva, que amarra, em uma

relação inextricável, o Mesmo do discurso e seu Outro.

O entendimento desse termo-chave [interdiscurso] à nova tendência da AD

pressupõe a recorrência a outros três termos complementares, a saber: universo, campo e

espaço discursivos. O primeiro diz respeito a toda infinidade de FDs existentes, cuja

apreensão torna-se impossível para o campo da AD. O campo discursivo refere-se a

conjuntos de FDs concorrentes, as quais se delimitam entre si em regiões do universo

discursivo. Já o espaço discursivo concerne a subconjuntos do campo discursivo em que

pelo menos duas FDs dialogam entre si, mantendo relações privilegiadas e cruciais para a

compreensão dos discursos. Nesse recorte, essencialmente, se instalaria o primado do

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interdiscurso, possibilitando a análise do texto, entendido como a materialização de uma

rede semântica de discursos, do qual a AD se ocuparia da apreensão desse espaço de trocas.

Por outro lado, cabe ressaltar que em trabalhos recentes, Maingueneau (2006c)

começa a repensar o conceito de FD. Para ele, o termo foucaultiano-pechetiano, de dupla

paternidade, não é dotado de muita clareza. Ao referir-se à FD como aquilo que pode e

deve ser dito, articulado sob alguma forma, há a implicação de dois termos caros à AD, o

conceito faz menção ao posicionamento (aquilo que pode e deve ser dito) e ao gênero (o

que é dito é articulado sob uma forma). Maingueneau (op cit.:14-15) reconhece o uso

embaraçoso do termo:

quando redigi o verbete “Formação

Discursiva” para o Dictionnarie d’analyse du

discours, co-dirigido com P. Chauraudeau, eu

mesmo substituí “formação discursiva” por

“posicionamento”, devido à incapacidade em

que me encontrava de atribuir-lhe um estatuto

bem claro.

Com vistas a desembaraçar os nós que se formam ao redor da terminologia,

Maingueneau propõe a nomeação de duas grandes unidades, as unidades tópicas e unidades

não-tópicas. As unidades tópicas dizem respeito a um recorte de um fluxo de palavras que

circulam em certos setores da sociedade: discurso administrativo, publicitário, políticos,

judiciários e, como privilegiamos neste trabalho, o discurso literário. Esses tipos,

diferentemente da noção de tipos textuais, albergam os variados gêneros de discurso,

entendidos por Maingueneau (op. cit.:15) como dispositivos sócio-históricos de

comunicação, como instituições de palavras socialmente reconhecidas. Assim, as

fronteiras são visíveis, já que os discursos fazem parte de espaços pré-delineados pela

sociedade.

As unidades não-tópicas, por sua vez, são delineadas pelos pesquisadores e

independe de fronteiras pré-estabelecidas pela sociedade, embora agrupem enunciados

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inscritos na história. Nesse caso, Maingueneau reconhece certo valor à terminologia FD,

pois permitirá ao analista um recorte de determinada FD para um estudo plurifocal em

relação às demais ou para simples comparação. Como ilustração, remete à sua própria

pesquisa acerca do discurso religioso (Maingueneau: 2007), em que compara dois

posicionamentos num mesmo campo religioso: o discurso do humanismo devoto e o

jansenismo, com intuito não de compará-los, mas de construir uma unidade bifocal.

Desse modo, a esta altura da AD proposta por Maingueneau (op. cit: 19),

É necessário ressaltar o caráter dinâmico e

agentivo do termo “formação” em “ formação

discursiva”. Em vez de considerá-lo em uma

perspectiva puramente estática como

referindo-se a uma entidade já existente, o

analista, em função de sua pesquisa, dá forma

a uma configuração original.

Como visto, a AD nesta perspectiva, pretende afastar-se ao máximo daquela que via

as FDs como ilhas justapostas. Antes, quer investigar as aproximações dessas ilhas

movediças, formadoras de fractais que se materializam em textos, em que parte dela remete

a um todo e o todo remete a uma parte. Portanto, o conceito de interdiscurso é ponto fulcral

para sua teoria.

Mas o que permitiria ou regularia a adesão de novos discursos/posicionamentos

num dado espaço discursivo? Maingueneau, valendo do termo de Chomsky de

competência, preconiza a existência de uma competência discursiva dos sujeitos, a qual o

torna capaz de aceitar ou refutar determinados discursos, a partir de uma rede de restrições

semânticas, a qual funciona como um filtro que fixa critérios na seleção de textos que

pertenceriam a outra formação discursiva.

Uma vez considerada essa gênese rizomática do interdiscurso, Maingueneau propõe

um modelo teórico-metodológico que fosse capaz de integrar, na análise, os seus vários

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planos, tanto na ordem do enunciado, da materialidade lingüística, como da enunciação, das

condições sócio-históricas de produção da prática discursiva. São alguns desses planos: o

vocabulário, a temática, o ethos, as cenas de enunciação, o gênero discursivo, os recursos

coesivos, os modos de encadeamento, entre outros. Centrar-se somente no vocabulário, por

exemplo, sem considerar a globalidade dos discursos, poder-se-ia correr o risco de uma

análise pouco profunda, reducionista.

Para esta pesquisa, optamos por trabalhar com os seguintes planos da Semântica

Global: cenas de enunciação, ethos discursivo e código linguageiro. Isso com vistas a

apreender pelo estudo do gênero (cena genérica) e do ethos, a imagem que se construía do

caipira paulista, no século XX, por Cornélio Pires.

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1.2 As noções de enunciação, texto, discurso e interdiscurso

Conforme vimos nesse percurso pelas tendências principais da disciplina AD,

pudemos perceber que seu desenvolvimento se deu por movimentos de continuidade e

descontinuidade históricas, já que conceitos novos foram sendo agregados, à medida que

outros foram sendo ressignificados em meio às condições sócio-histórico-culturais.

É aparente que cada fase da AD apóia-se num conceito-chave para sua respectiva

época, assinalando o movimento de descontinuidade. A primeira fase recorre ao conceito de

máquina discursiva, como estrutura única, geradora dos processos discursivos. Aos poucos,

o segundo momento pluraliza e abre-se para outras estruturas, a partir da incorporação das

formações de Foucault, possibilitando-se, pela análise, o confronto e as aproximações entre

as diferentes FDs justapostas. Já as tendências recentes, aproximam-se ainda mais de um

olhar heterogêneo sobre os fenômenos da linguagem, fazendo uso do termo interdiscurso,

em que as FDs não se apresentam mais como justapostas, mas sim, imbricadas, “invadidas”

entre si. É esta última tendência da AD que elegemos como mais adequada para nossa

reflexão. Por isso, é necessário tornar claros os conceitos dados às produções verbais

variadas, a saber: enunciado, texto, discurso e interdiscurso.

Segundo Maingueneau (2008a:56-57), o enunciado está para o produto, assim como

a enunciação está para a produção. O enunciado é a marca verbal de um acontecimento e

sua extensão é variável, desde uma frase a um livro. Para alguns estudiosos da linguagem, o

enunciado é uma expressão verbal elementar com sentido completo. Já outros, o definem

em oposição à frase, por ser esta desprovida de um contexto; sob essa ótica, podemos

exemplificar a distinção entre enunciado e frase, a partir do seguinte enunciado: “a porta

está aberta”. Tal proposição poderá ter diferentes significações se dita por um empregador

quando o empregado estava pedindo um aumento salarial; bem como seria completamente

diferente se um locutor dissesse o enunciado ao locutário, com gestualidade que indicasse

estar sentido frio. Há, também, lingüistas que entendem o enunciado como uma seqüência

verbal que é parte formadora de uma unidade dotada de um sentido completo, de um gênero

discursivo. Nessa perspectiva, enunciado tem grande proximidade com ‘texto’.

E o que é o texto? É concebido, sobretudo na Lingüística Textual, como uma

totalidade coerente. Esse todo coerente pode manifestar-se tanto pela modalidade oral como

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pela modalidade escrita da língua, com uma intencionalidade, estruturado especificamente

para o sucesso nas interações verbais específicas. Os textos podem ser produzidos tanto por

um como por vários locutores, até mesmo porque que a heterogeneidade dos textos – marca

constitutiva deles e do discurso - traz consigo novas vozes que são levadas em conta no

processo de sua constituição.

Para esta pesquisa, faremos como Maingueneau (op. cit.:57):

utilizaremos freqüentemente “enunciado” com

valor de frase inscrita em contexto particular,

e falaremos preferencialmente de “texto”

quando se tratar de unidades verbais

pertencentes a um gênero de discurso. Mas

quando tal distinção não tiver importância,

utilizaremos indiferentemente os dois termos.

Conforme vimos, ao apresentarmos as tendências mais recentes da AD, o discurso é

somente apreensível no interior do interdiscurso, sendo que ambos se materializam em

textos. Aquele é entendido como uma dispersão de textos cujo modo de inscrição histórica

permite definir como um espaço de regularidades enunciativas, de acordo com

Maingueneau (2007:15). Isso porque os discursos se constituem na heterogeneidade, logo,

sua apreensão somente se torna possível pelo confronto estabelecido com outros discursos.

Então, para entendermos melhor a constituição do discurso é necessário compreender sua

gênese, que se dá no interdiscurso.

O referido termo é composto pelas três instâncias já citadas, mas que ora trataremos

com maior especificidade: o universo, o campo e o espaço discursivos. O universo

discursivo diz respeito à infinidade de formações discursivas existentes. São muitas as

formações existentes e impossível seria ao pesquisador privilegiá-las todas numa análise, já

que seu número é infinito, compondo um amplo universo discursivo.

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Há, porém, o campo discursivo que é certo agrupamento de FDs que nos permite

inferir, a partir de textos e do conhecimento do analista, acerca da existência de um

determinado campo discursivo. Como exemplo, podemos citar os discursos jansenista e o

humanismo devoto, freqüentemente retomados por Maingueneau, os quais embora

apresentem concordâncias e/ou discordâncias pertencem a um mesmo campo discursivo: o

religioso. O campo discursivo é um afunilamento de média restrição em relação ao

interdiscurso, uma vez que se restringe a um grupo de FDs que permite certa dispersão de

textos com certa regularidade entre eles, já que pertence a um mesmo campo. Maingueneau

(op. cit.:36) diz que

É no interior do campo discursivo que se

constitui um discurso e fazemos a hipótese de

que essa constituição pode deixar-se descrever

em termos de operações regulares sobre

formações discursivas já existentes.

Contudo, o campo discursivo é ainda um terreno de grande amplitude ao analista, é

necessário um afunilamento ainda maior para se conceber o corpus. Há de se isolar espaços

discursivos, explica Maingueneau (op. cit.:37): subconjuntos de formações discursivas que

o analista julga resultar apenas de hipóteses fundadas sobre um conhecimento dos textos e

de um saber histórico, que serão em seguida confirmados ou infirmados quando a pesquisa

progredir.

Como visto, o espaço discursivo como o lugar de interstícios de FDs, perceptível

num determinado campo discursivo, o qual se encontra num terreno ainda maior: o

interdiscurso. Daí o motivo pelo qual o teórico francês assegura ao termo sua primazia em

detrimento do discurso.

Mas o que determina a regularidade num espaço discursivo? Maingueneau define a

competência discursiva como a faculdade do sujeito de reconhecer ou refutar textos que

não condizem com a FD inerente a seu discurso. Tal competência permite esclarecer um

pouco a articulação do discurso e da capacidade dos Sujeitos de interpretar e produzir

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enunciados que decorrem dele (op. cit.: 54). No entanto, é preciso deixar claro que os

Sujeitos não são puros, estáveis quanto à FD que “assujeitam”; eles podem, sim, deslizar

por outras competências discursivas que possam garantir o sucesso na sua interação verbal.

O conceito interacionista de máscaras, proposto por Goffman (2005) pode ser

relacionado com essa variação de competências. O indivíduo pode recorrer a outras

competências discursivas, outras máscaras, de acordo com a imagem que queria passar a

seu destinatário. Daí a necessidade de renomear essa competência como competência

interdiscursiva, já que permite aos Sujeitos recorrer a infinidade de FDs que compõem seu

universo discursivo.

A vastidão da interdiscursividade, demanda ao pesquisador uma análise que integre

múltiplas dimensões textuais que possibilitam, em razão do diálogo entre os espaços ou

campos discursivos, a identificação da alteridade nos textos. Pensando nisso, Maingueneau

alerta quanto ao equívoco analítico de considerar somente planos de análise, sendo que o

teórico sugere ir além do enunciado e da enunciação. Convoca, pois, ao estudo da sua

globalidade, tanto que propõe uma Semântica Global para o estudo dos textos. Segundo sua

propositura, há de haver uma integração entre todos os planos do enunciado e da

enunciação.

Para sua Semântica Global, são caros conceito como o de intertextualidade que são

as relações intertextuais julgadas possíveis pela competência discursiva, diferentemente do

intertexto que é o conjunto de fragmentos citados pelo sujeito. A intertextualidade pode se

dar pelos empréstimos de textos de outras FDs, dum mesmo espaço discursivo, a que

Maingueneau chama de intertextualidade interna; ou, então, a partir de empréstimos

textuais de FDs que pertencem a outros campos discursivos, denominada intertextualidade

externa. O vocabulário, nessa semântica global, deve ser considerado como um sistema de

restrições do espaço discursivo, uma vez que a restrição do universo lexical é inseparável

da constituição de um território de conivência (op. cit.:85).

O próprio conceito de discurso passa a ganhar mais dinamicidade ao ser tratado

como prática discursiva. O discurso é uma profusão de textos, ativados na órbita textual,

retirados das “bibliotecas” que as FDs permitem a existência de sistemas de relações

textuais, garantidos pela competência discursiva do enunciador.

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Como visto, o espaço discursivo é a unidade de análise proposta por Maingueneau.

O texto é apenas a materialização do discurso; seus aspectos formais e histórico-sociais do

texto são explicáveis pelo sistema de restrições que o permite constituir-se como nos é

apresentado. A tarefa do analista é, portanto, a de investigar como esses sistemas de

restrições tornam possível a leitura de determinado enunciado e não de outro, ou seja, pela

globalidade do texto, entender o funcionamento das relações interdiscursivas.

É importante a delimitação do campo discursivo que se enquadra nossa amostra, os

causos, que entendemos como um gênero do discurso literário. Portanto, vimo-nos diante

da necessidade precedente de entender em que instituição se situa o discurso literário.

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1.3 Discurso literário

Jakobson (1969), que trabalhou numa perspectiva funcionalista (portanto, diferente

da que aqui estamos abordando) com a seguinte questão: “que é que faz de uma mensagem

verbal uma obra de arte?”. A resposta seria a função poética da linguagem, isto é, a maneira

como se diz, utilizando-se de recursos estilísticos que diferem da linguagem referencial, a

convencional dos usos cotidianos. Mas para a AD, o que viria a ser a discurso literário? Ou

reformulando a pergunta do funcionalista: “o que é que faz de um discurso um discurso

literário?”.

A AD trabalha com a noção sociológica de instituições; de maneira que todo

discurso se instaura numa determinada instituição discursiva, no caso, a literária. Por

instituição literária, entendemos com Maingueneau, ser aquela capaz de designar a vida

literária, isto é, os escritores, os prêmios, os editores, as representações coletivas sobre os

escritores, a legislação que norteia os trâmites literários, as instâncias que legitimam e

premiam as obras, os usos etc. Esta limita o dizer e as formas de dizer. Desse modo,

entendemos a noção de discurso literário como discurso constituinte, legitimado por

práticas sociais do campo literário. Maingueneau (2006b:61) define discursos constituintes

como aqueles que conferem sentido aos atos da coletividade, sendo em verdade os

garantes de múltiplos gêneros do discurso.

O discurso literário surge, então, de um lugar social que o institucionaliza e o

legitima através das práticas anteriormente citadas; sendo que cada época tem seus lugares

instituídos, assim como foram os salões no século XVII e XVIII e os cafés para o século

XIX, espaços que albergavam os artistas e, por esse pertencimento, eram investidos por

ethos de escritores. Em contrapartida, é também motor gerador de sua existência a criação

de um outro lugar não-institucionalizado, um não-lugar onde os textos surgem; lugares

criados pelo escritor para fazer dialogar com aqueles lugares institucionalizados.

Assim, numa perspectiva discursiva, o que delimita um texto e nos faz dizer ser ou

não ser literário é o pertencimento a uma instituição literária que, com suas práticas o

legitima. Ao contrário do que possa propor um quadro teórico de orientação mais

estruturalista em que a própria literatura abonaria e reconheceria suas formas de expressão,

mediante a taxionomia de escolas literárias e estilos de época. Por fim, segundo

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Maingueneau (op.cit.:89) para produzir enunciados reconhecidos como literários, é

preciso apresentar-se como escritor, definir-se com relação às representações e aos

comportamentos associados a essa condição.

Outro ponto importante que decorre da noção maingueneauniana de discurso

literário é o conceito de paratopia. A literatura, enquanto um discurso institucional, possui

um lugar na sociedade; no entanto, ela remete a outros lugares que não são exatamente

aqueles nos quais ela se insere. O discurso literário tem o poder de ser onipresente, já que

pode estar dentro e fora da sociedade. Para Maingueneau (op. cit.: 92), pelo discurso

literário se tece uma rede de lugares na sociedade, mas não pode encerrar-se

verdadeiramente em nenhum território. Daí a necessidade de atermos ao conceito de

paratopia, como uma das marcas do discurso literário.

1.3.1 O contexto da obra literária: contribuições a partir do conceito de

paratopia

O conceito de paratopia foi introduzido por Maingueneau (2001, 2006a), a fim de

tratar da questão problemática acerca da pertinência de um escritor ao campo literário e à

sociedade. Essa problemática não pode ser comparada ao centauro em que parte do corpo

estaria imersa na sociedade e a outra parte voltada para as estrelas, para a criação. Embora o

campo literário se inscreva na sociedade, é a própria enunciação literária que abala a

estabilidade da representação convencional daquilo que se entende por lugar, onde fora e

dentro encontram-se delimitados. O espaço discursivo da literatura se constitui na fronteira,

isto é, não se localiza nem dentro, posto que a literatura não se confunde com a sociedade

comum como tantos outros campos da atividade social, nem fora, porquanto não se fecha

em si mesma, muito menos vive apartada da realidade. Como bem salienta Maingueneau

(2001:28), a pertinência ao campo literário não é, portanto, a ausência de qualquer lugar,

mas antes uma negociação difícil entre o lugar e o não-lugar, uma localização parasitária,

que vive da própria impossibilidade de se estabilizar.

É importante ressaltar o motivo pelo qual Maingueneau postula o conceito de

paratopia. Isso foi em razão de preencher uma lacuna deixada pelos tradicionais analistas da

literatura que procediam à análise de uma obra literária sob dois enfoques: ou se

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considerava a história literária, numa perspectiva filológica, isto é, a obra seria a expressão

e a representação de seu tempo; ou se considerava a clausura literária, numa perspectiva

estilística, ou seja, tomada como um universo fechado, traduziria o espírito, a consciência

criadora do autor.

Essas visões foram bem marcadas pela Filologia, pelo Estruturalismo e, embora

tenham se prolongado por muito tempo, não impediu que uma nova abordagem e

concepção do fato literário se instaurassem. Assim, correntes que viam a obra literária sob

um novo olhar, um olhar com empréstimos da Pragmática, passam a concebê-la como um

ato de comunicação no qual o dito e o dizer, o texto e seu contexto são indissociáveis.

A partir disso, Maingueneau (2001) preconiza dois tipos de paratopia: a paratopia

espacial – que corresponde ao não-lugar criado pelo autor, a “Passárgada” de Manuel

Bandeira, fugidia à realidade que o faz produzir versos de sangue; e a paratopia social, que

compreende o lugar em que o autor de encontra, de onde ele enuncia e se legitima no

campo literário, no caso do citado autor, o Modernismo Brasileiro. Em se tratando dos

causos que temos estudado, sua paratopia social é o campo literário da Literatura do

Interior Paulista, consumida pelos novos cosmopolitas que surgiam na década de vinte; a

obra, no entanto, se remetia ao interior, aos “jecas” que ainda não haviam habitado aquele

espaço da bela época paulistana.

A paratopia não pode ser entendida enquanto uma noção sociológica, sob esse

aspecto, nos referiríamos ao inexplorado interior paulista da década do início do século XX,

às favelas do nosso século, aos garimpos... como lugares paratópicos. No entanto, a

paratopia é uma noção discursiva que é embasada por um paradoxo. Isto significa ocupar

um lugar, sem ocupá-lo, de fato; estar num determinado lugar, sem estar realmente lá. Um

texto que exemplifica a noção de paratopia é dado por Maingueneau1 e que está no início

do Evangelho de São João: Cristo (o verbo) estava no mundo, fez o mundo, mas o mundo

não o conhecia; daí o motivo do verbo fazer carne e habitar no meio de nós. Maingueneau

cita protótipos de seres paratópicos como o judeu, que está num país e não pertence a ele. A

noção de paratopia é fundamental ao se tratar de discurso literário, pois se torna perceptível

a posição paradoxal do discurso constituinte e também dos seus produtores. 1 O exemplo foi dado por Dominique Maingueneau no curso de extensão “A Análise do Discurso por Dominique Maingueneau”, ministrado entre 25 e 29 de agosto de 2008, na Universidade Federal da Bahia.

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1.4 Gênero do discurso

A noção de gênero torna-se cara ao trabalho não por uma questão de tipologia, de

reconhecimento de estruturas que o caracterizam como gênero causo, mas por uma

necessidade preliminar para entender as relações sociais que implicam na sua constituição.

Para aprofundarmos essa noção sob olhar da AD, pareceu-nos conveniente entender como

esse conceito de originou com Bakhtin.

1.4.1 O conceito fundador de gênero em Bakhtin

A discussão sobre gênero do discurso preconizada por Mikhail Bakhtin (2000) tem

reformulado a ciência da linguagem e aberto caminho para uma lingüística do enunciado.

Apesar de ter sua edição em ano não tão distante do Curso de Saussure, sua influência nos

estudos lingüísticos só veio a ocorrer na década de 60, em razão do difícil acesso à

produção científica soviética pelo Ocidente, principalmente por impasses políticos.

O autor define gênero discursivo como tipos relativamente estáveis de enunciado e

acrescenta que a natureza desses tipos está na esfera da atividade humana a que eles

pertencem. Essas esferas fazem uso da língua a partir de enunciados concretos e únicos,

com condições e finalidades específicas. Logo, o gênero do discurso é um enunciado

concreto, no qual funde-se em sua composição: conteúdo temático, estilo e construção

composicional. Ele pode apresentar-se em variedades infinitas, desde de um diálogo

cotidiano a um romance. Toda essa diversidade funcional dos gêneros deve-se à

flexibilidade que os enunciados adquirem para dar conta das mais diversas esferas sociais

de comunicação.

Para Bakhtin, os estudos da Retórica e até mesmo da Lingüística Geral não

privilegiaram o gênero enquanto produto da língua (sistema), além de que tais áreas haviam

trabalhado somente com discursos a que ele chamou de secundários, ignorando, assim, a

globalidade dos usos língua.

O lingüista define gêneros primários (simples) e gêneros secundários (complexos).

Os primários residem no cotidiano, são espontâneos, mormente concretizados na

modalidade falada da língua. Já os secundários — como o romance, o discurso científico, o

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filosófico, entre outros — são produtos de trabalho em circunstância de comunicação

cultural, utilizando-se da tecnologia da escrita. Assim que os define, observa que os gêneros

primários, ao serem transformados em secundários (como na reprodução de um diálogo

num romance, por exemplo) muito perdem de sua relação com o mundo. Sobre esse

processo, Bakhtin (2000.: 281) diz:

transformam-se dentro destes [os gêneros

secundários] e adquirem uma característica

particular: perde sua relação imediata com o

mundo existente e com a realidade dos

enunciados alheios.

Considera que uma análise eficiente deve tomar como ponto de partida a inter-

relação entre as duas modalidades de gênero e seu processo histórico, uma vez que aí se

encontra a natureza do enunciado. Aliás, a historicidade é a característica constitutiva de

todo enunciado. Além de que, a partir de sua análise, permite-se a apreensão de ideologias e

visões de mundo.

Bakhtin (op. cit.: 282) justifica o estudo da natureza da linguagem, a partir de

enunciados concretos, a que ele denominou gêneros, pelo fato de que:

Ignorar a natureza do enunciado e as

particularidades de gênero que assinalam a

variedade do discurso em qualquer área do

estudo lingüístico leva ao formalismo e à

abstração, desvirtua a historicidade do estudo,

enfraquece o vínculo existente entre a língua e

a vida. A língua penetra na vida através dos

enunciados concretos que a realizam, e é

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também através dos enunciados concretos que

a vida penetra na língua.

Pela citação acima, podemos inferir a sinonímia entre gênero discursivo e prática

social. Os gêneros são, antes tudo, práticas sociais.

Mais adiante, trata da questão do estilo. Defende que a sua apreensão dá-se somente

por meio do estudo dos gêneros. Acrescenta que os estilos individuais são mais visíveis em

gêneros da esfera literária; enquanto que em outros, como documentos oficiais, o próprio

gênero determina o seu estilo geral. Portanto, o estudo do estilo deve preceder o estudo do

gênero, o que a Estilística mostrou não haver feito. O autor vai mais além, salientando que

qualquer que seja novo fenômeno lingüístico, em qualquer que seja seu nível gramatical

(fonético, morfológico, sintático, semântico...) passa ou deveria passar, antes, pela

definição de gênero do discurso.

Ao Bakhtin (op. cit.:320) dizer, repetitivamente, que os gêneros são elo da cadeia

muito complexa de outros enunciados, deixa entrever a noção de dialogia como marca

norteadora de seu pensamento. Dessa forma o dito já-aqui, contém parte do dito antes, isto

é, de outros enunciados concretos utilizados para a interação humana. O dito já-aqui

pressupõe uma resposta do outro, que a fará em seu momento.

Considerando esse princípio dialógico da linguagem, o lingüista soviético critica os

estudos de Saussure e outros estruturalistas, behavioristas, uma vez que esses consideravam

o outro como passivo na interação verbal. O momento do outro interagir com a linguagem

dá-se pela alternância dos sujeitos falantes e essa alternância só ocorre pelo fato de que o

enunciado concreto pressupõe um sujeito falante, um destinatário dotado do que o autor

chamou de compreensão responsiva ativa.

Portanto, a marca definitiva do enunciado concreto, do gênero discursivo é a sua

incompletude, a sua possibilidade de resposta. Esse princípio dialógico é que prende o

enunciado a outros elos de uma rede complexa de comunicação, logo, é inalienável de sua

historicidade, marca que o constitui.

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1.4.2 Maingueneau e o conceito de gênero de discurso

Seguindo a noção bakhtiniana, as reflexões de Maingueneau (2008:61) apontam

para novas considerações acerca do gênero e sua categorização. O lingüista define gêneros

de discurso como dispositivos de comunicação que só podem aparecer quando certas

condições sócio-históricas estão presentes. Somente justificará a necessidade da

emergência de um gênero, se houver atores sociais e condições que promovam o seu uso.

Daí, a necessidade de incorporar à noção de gênero, o ethos e as cenas da enunciação, isto

é, os termos anteriores referem-se, respectivamente a atores sociais e tempo-espaço, como

veremos mais à diante.

Implicitamente, o autor parece retomar o conceito de FD atrelada ao seu conceito de

gênero, já que é um dispositivo de comunicação (o dito articulado sob uma forma) que só

pode aparecer numa dada situação sócio-histórica (aquilo que pode e deve ser dito). Ao nos

depararmos com um determinado gênero, podemos reformular aquela pergunta de

Foucault: “por que esse gênero foi parar aí e não outro?”

Portanto, as condições sócio-históricas justificam o uso de uma estrutura textual, de

um dispositivo enunciativo e esses fatores devem ser levados em conta na produção de

efeitos de sentidos, no processo de intercompreensão. Isso ilustra a importância que o status

gênero ocupa na AD. A disciplina lingüística tem de ser capaz de analisar as regularidades

lingüísticas do texto e, concomitantemente, formular hipóteses sobre ele. Todavia, com

certo equilíbrio para que não haja predominância das condições sócio-históricas em

detrimento da textualidade ou vice-versa.

Tanto é que os gêneros estão impregnados das condições histórico-sociais, que

Mainguenau (op. cit.:61) sugere certa efemeridade aos gêneros. Eles não são eternos como

podem ser as tipologias comunicacionais (funções da linguagem e funções sociais). Essas

sempre existiram e existirão em menor ou maior graus em alguns gêneros; no entanto, um

gênero como o talk show ou o editorial nada têm de eterno. Poderíamos, assim,

caracterizar uma sociedade pelos gêneros de discurso que ela torna possível e que a

tornam possível.

Há de se distinguir gênero e tipo. Tal distinção faz-se necessária, uma vez que

complementa a própria noção de gênero. O estudo da generecidade dos textos, por vertentes

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cognitivistas, como as de Marcuschi (2005), apontam para uma infinidade de gêneros que

circulam na sociedade e cerca de quase meia dúzia de tipos que perpassam por essa

infinidade. Segundo aquele autor, os gêneros são atravessados por tipos predominantes,

sendo eles: a narração, a descrição, a argumentação, a exposição e a injunção. Os tipos

textuais têm subsidiado muitos trabalhos, sobretudo na Lingüística Textual, e suas relações

com o ensino.

A AD de Mainguenau (op. cit.: 61) propõe uma separação por tipo um pouco mais

variável e flexível. Para ele, os gêneros de discurso são pertencentes a vários tipos, não

apenas quase meia dúzia, pois os tipos de discurso são associados a vastos setores de

atividade social. Como exemplo, cita novamente o talkshow que é um gênero pertencente

ao tipo de discurso “televisivo”, o qual faz parte de um conjunto ainda mais vasto, o tipo de

discurso “midiático”, em que podemos identificar os discursos radiofônico e os da imprensa

escrita. Além da tipologia do discurso orientada pelo setor de atividade social,

Maingueneau propõe a classificação de tipos por: lugar institucional, como a escola, o

hospital, a família, a empresa etc; estatuto de parceiros, como o discurso do idoso, da

criança, da mulher; ou posicionamento de natureza ideológica, como o discurso católico, o

discurso socialista.

Podemos acrescentar aos critérios de tipologias os discursos que deixam entrever

terrenos de posicionamentos diversos, criando, para o pesquisador, unidades que

apresentam difícil reconhecimento de uma demarcação ideológica, dando origem ao que

mencionamos de unidades não-tópicas; assim, poderá se falar de discurso racista, discurso

homofóbico, discurso motivacional etc.

Não obstante o trabalho científico de enquadrar textos em gêneros e tipos de

discurso, tal atividade requer um aprofundamento nas questões de ordem histórico-social

que perpassam sobre o uso dessas categorias. As pessoas somente se comunicam porque

reconhecem gêneros na fala do outro. O conhecimento acerca dos gêneros permite ao co-

enunciador poder selecionar num texto, aquilo que lhe apetece. Trabalhar com gêneros

implica, pois, uma economia cognitiva, motriz da interação social, justamente por trabalhar

com estruturas pertencentes a um saber coletivo. Bazerman (2006:31) diz que se pode

chegar a uma compreensão mais profunda de gêneros como fenômeno de reconhecimento

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psicossocial que são parte de processo de atividades socialmente organizadas. O lingüista

norte-americano reforça ainda que os gêneros tipificam muitas coisas além da forma

textual.

Segundo Maingueneau (op. cit.:66), para conceber um gênero e sua tipologia de

discurso há de se levar conta: uma finalidade reconhecida, o que justifica a necessidade de

se optar por determinado gênero e não outro; um estatuto de parceiros legítimos, isto é, o

papel que os enunciadores e co-enunciadores desempenham na interação verbal; o momento

e o lugar legítimos, a enunciação se dá num aqui e agora, o qual deve ser levado em conta

ao conceber determinado gênero; um suporte material, o que vale questionar através de que

mídia um texto será transmitido a um interlocutor; além de que, entre as necessidades já

citadas, entender que o texto apresenta uma organização textual que é (ou deve ser)

reconhecível ao co-enunciador.

Além do mais, o lingüista aponta três metáforas com o intuito de esclarecer como

caracterizar um gênero. Tais metáforas são o contrato, o papel e o jogo, respectivamente

dos seguintes campos o jurídico, o teatral e o lúdico.

O contrato caracterizador do gênero diz respeito a regras de sua sistematização que,

utilizadas pelo locutor e, por serem (re)conhecidas pelo interlocutor-destinário, é por este

aceito como um gênero “x”. É possível, também, que haja alguma transgressão desse

contrato; quando houver, o interlocutor-destinatário deverá perceber o motivo pelo qual seu

interlocutor optou por fazê-la.

A metáfora teatral do papel refere-se ao fato de que os interlocutores assumem

papéis sociais múltiplos em detrimento das situações. Por exemplo, um homem pode ser

um professor e comportar-se como tal numa instituição de ensino, porém, ao chegar em

casa exercerá papéis diversos como de pai ou marido. Assim também os alunos desse

professor poderão exercer múltiplos papéis fora dessa instituição.

O jogo é a simbiose das duas metáforas anteriores. Há um contrato (regras) e há

papéis (jogadores), o não atendimento a essas regras compartilhadas por coletivo,

implicaria o banimento do transgressor. A respeito do discurso, Maingueneau (op. cit.:70)

contrapõe:

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Mas, contrariamente às regras do jogo, as

regras do discurso nada têm de rígido: elas

possuem zonas de variação, os gênero podem

se transformar. Além disso, o gênero de

discurso raramente é gratuito, ao passo que

um jogo exclui as finalidades práticas, visando

apenas o lazer.

Ademais desses elementos caracterizadores, há de se levar em conta o suporte onde

um discurso é materializado. Tal dimensão é essencial no tratamento do gênero, uma vez

que o efeito de sentido capaz de um texto produzir pode ser alterado se apresentado em

suportes diferentes. Desse modo, o causo contado por meio da modalidade oral é diferente

daquele que se materializa pela modalidade escrita. Então, é necessário perceber como

essas modalidades dicotômicas podem interferir na caracterização de um gênero.

1.4.3 O oral e o escrito nos gêneros de discurso

Maingueneau (2001, 2006a e 2008a) aponta que à manifestação material dos

discursos merece ser reservado um lugar importante. Durante muito tempo, principalmente

no discurso literário, considerou-se o texto como seqüência de frases dotada de sentido,

sem preocupar-se com o midium a que tal seqüência estaria veiculada. Nos dias atuais,

dados os diferentes suportes em que os textos se materializam, estamos cada vez mais

conscientes de que o midium não é simplesmente um meio de transmissão de discurso, mas

ele imprime certo aspecto a seus conteúdos e comanda os usos que podemos fazer dele.

Como vimos, Bakhtin classifica gêneros primários e secundários, Maingueneau

(2008a:72-83) faz algo parecido ao tratar do discurso e sua relação com o midium. O

teórico da AD diz que há enunciados com estilo escrito e de estilo falado, embora a

materialização desses textos não seja a mesma do estilo. Desse modo, existem textos

escritos, mas com estilo falado, ou seja, que emprega formas comuns à modalidade falada.

O contrário também pode ser verdadeiro.

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Por seu turno, acerca do oral e do escrito, Marcuschi (2003) postula não haver

oposição entre eles, mas sim, uma relação que se funda num continuum entre as

modalidades e não numa dicotomia polarizada. Desse modo, fazendo coro a Maingueneau,

um texto ainda que se materialize pela escrita poderá conter marcas de um texto falado; o

contrário também pode ser verdadeiro.

Essa premissa é proposta por Marcuschi a partir da noção de gêneros textuais e das

atividades de retextualização. Por essas últimas, entende-se que é uma atividade corriqueira

na sociedade, como exemplo da transposição de gêneros da modalidade oral para a escrita,

temos a atividade de um jornalista, ao fazer uma entrevista. Ele transpõe um texto da

modalidade oral para a escrita. Essa atividade não é tão simples e requer conhecimento de

características próprias da fala e da escrita, sendo que, nessa atividade em especial, o

jornalista deverá eliminar as marcas de oralidade na produção de seu texto escrito; todavia,

algumas características próprias à fala permanecerão, considerando-se as condições de

produção do texto. A retextualiação poderá ocorrer, também, de forma inversa a nosso

exemplo, a partir de um texto escrito, poderão surgir novos textos na modalidade falada.

Também é possível a retextualização entre enunciados de mesma modalidade, por exemplo,

a resenha é uma escrita sobre outro texto também escrito. Portanto, os textos devem ser

vistos num continuum em que seu ponto de localização será determinado pelos critérios de

afastamento e proximidade em relação às modalidades escrita e oral.

Considerado o continuum, Marcuschi trata ainda dos gêneros chamados híbridos,

isto é, aqueles que apresentam tanto características do oral como do escrito. Hipotetizamos

que o causo situa-se entre os gêneros híbridos por dois motivos: primeiro porque embora o

tenhamos tomado em materialidade escrita, o gênero apresenta usos comuns a modalidade

falada, sobretudo fazendo uso da variante caipira; segundo, pois o causo é tradicionalmente

oral, o que nos faz crer que seu autor os teria retextualizado da fala para a escrita. Ou, nos

termos de Maingueneau, o causo parece ser um enunciado escrito com estilo de falado,

dada a possibilidade de retextualização do gênero.

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1.5 Cenas de enunciação

O conceito de cenas de enunciação foi apresentado, inicialmente, sob outros rótulos

por Maingueneau, conforme recupera Rocha (1997:93-95). O conceito é primeiramente

apresentado em Gênese do Discurso como dêixis enunciativa. Essa se constituiria sob o

duplo registro de uma dimensão espacial (aqui) e uma dimensão temporal (agora),

nomeadas, respectivamente por cena e cronologia.

Dois anos mais tarde, conforme lembra Rocha, o conceito é reformulado em

Elementos de Lingüística para o Texto Literário, a partir do acréscimo de concepções de

Benveniste, culminando em situação de enunciação, por apresentar um tempo, um espaço e,

por outro lado, seguindo a orientação enunciativa, um enunciador e um destinatário. Essa

situação de enunciação seria tratada, ainda na mesma obra, como “sinônimo” de cena

enunciativa. Com essa nomenclatura é que o conceito reaparece em Novas Tendências em

Análise do Discurso.

Já em obras mais recentes, Maingueneau (2006c, 2008a) trata, respectivamente de

cena de enunciação e cenas da enunciação, a última, inclusive, se configura como título da

tradução brasileira. Não obstante a variação da nomenclatura, sua acepção continuou quase

que inalterada em comparação a cena enunciativa.

Ao usar o discurso, o enunciador sempre encena sua fala, num contexto capaz de

enredar a si e a seu co-enunciador, colocando ambos os interlocutores numa rede de

sentidos. Desse modo, a enunciação cria espaços, cenas, onde as partes interessadas no que

veicula um discurso se negociam num espaço-tempo, por meio de construções textuais

próprias, com propósito e público-alvo também próprios. A essas cenas, Maingueneau

nomeia cena englobante, cena genérica e cenografia.

A cena englobante delimita o espaço de origem de uma fala; percebê-la em um texto

implica o reconhecimento do lugar social, da instituição de onde ele emana. É por esse tipo

de cena que o analista torna-se capaz de dizer que determinado texto pertencente ao

discurso político, literário, religioso etc. Ao assim fazer, reconhece-se a cena englobante do

texto, ou seja, o tipo de discurso a que ele pertence.

Já a cena genérica alude aos traços composicionais, temáticos e estilísticos que

restringem uma estrutura textual. Esse tipo de cena diz respeito ao gênero de discurso

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utilizado. Algumas cenas possuem certa estabilidade estrutural como uma carta comercial,

um relatório pericial, uma prescrição médica, uma receita culinária. No entanto, uma cena

genérica pode ser arquitetada com outros propósitos, além daqueles que já lhes são

ontológicos. Tal recurso é muito usado nos gêneros pertencentes a uma cena englobante

publicitária. É comum vermos anúncios sob diferentes estruturas genéricas: receitas,

telefonema, bilhete, e-mail entre muitas outras formas que compõe a diversidade genérica

de uma língua.

Os dois tipos de cenas mencionadas definem o que Maingueneau (2008a.:87) vem

chamando, conjuntamente, de quadro cênico do texto, o qual define o espaço estável no

interior do qual o enunciado adquire sentido – o espaço do tipo e do gênero de discurso.

Por seu caráter estável, o leitor não se confronta diretamente com o quadro cênico. O

contato destinatário-texto se dá pela cenografia, isto é, pelas artimanhas do texto capazes de

envolver o leitor numa espécie de armadilha que o transporta para um segundo plano.

A cenografia não pode ser entendida simplesmente como um quadro empírico, um

cenário. Esse pensamento equivocado traz em seu bojo a idéia de que o discurso surge

espontaneamente no interior de um espaço pré-construído. Na verdade, a cenografia é dada

e também construída por meio da enunciação. É a enunciação que, ao se desenvolver,

esforça-se para constituir progressivamente o seu próprio dispositivo de fala. Vista desta

forma, a cenografia é o próprio ato de enunciação, é o colocar em prática o discurso.

Vale ressaltar, também, que a cenografia pode apoiar-se no que Maingueneau (op.

cit. 92) tem chamado de cenas validadas. Para ilustrar esse conceito, o lingüista recorre a

uma propaganda política francesa em que o candidato à presidência, numa carta aos

franceses, refere-se a seus compatriotas para uma espécie de reflexão em comum, como

acontece quando a família se reúne à noite, em volta da mesa. Esse costume da reflexão em

família, à hora do jantar, é consolidado entre os hábitos culturais na França. Desse modo,

Maingueneau vê na fala do candidato o uso de uma situação já consolidada entre os

franceses e a essa estratégia para a composição da cenografia dá o nome de cena validada.

Maingueneau (2006c:47), acerca do sufixo –grafia, na palavra cenografia, define

como

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legitimante que traça um círculo: o discurso

implica uma certa situação de enunciação, um

ethos e um “código linguageiro”através do

qual se configura um mundo que, em retorno,

os valida por seu próprio desenvolvimento. O

“conteúdo” aparece assim inseparável da

cenografia que o porta.

Pela construção da cenografia, onde nasce a fala, é que se constroem condições para

enunciar como convém (uma cena genérica), considerando os lugares sociais de onde se

fala (uma cena englobante). Para além dos lugares sociais e dos dispositivos lingüísticos do

dizer, é pela cenografia que se torna possível apreender uma imagem do falante e um

código linguageiro apropriado e validado por ela.

Portanto, definamos, a seguir, os conceitos de ethos discursivo e código linguageiro,

os quais serão contemplados em nossa análise dos causos, entendidos como parte de uma

cenografia e planos de uma semântica global.

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1.6 Do ethos retórico ao ethos discursivo

Como observamos anteriormente, o ethos é um dos planos de uma Semântica

Global, portanto, não se deve tomá-lo separadamente, como um objeto autônomo de

análise. Precede à sua apreensão o estudo das cenas, por essa razão, incluímos o termo

nesse tópico teórico.

Estudar o ethos implica considerar uma figura pessoal por de trás de um discurso.

Sempre que alguém fala, podemos perceber o lugar social de onde esse alguém fala, as

cenas da enunciação em que surge tal dizer; e, segundo a competência discursiva do

interlocutor, haverá ou não adesão ao discurso que é dito. Então, percebemos que apreender

o ethos tem relação, ainda que indireta, com os estudos acerca da manifestação da

subjetividade na linguagem.

O conceito de ethos remonta a Retórica aristotélica, no entanto, Maingueneau (op.

cit.:2005) aponta alguns problemas ao uso clássico para propor sua própria concepção do

ethos. Desse modo, pareceu-nos pertinente uma breve exposição sobre as noções anteriores

à noção discursiva de ethos, a fim de que o entendimento desta última possa contribuir para

a análise a qual nos dispusemos. Como nosso interesse é observar como se dá a construção

da imagem do homem do campo no gênero causo, a partir do modo como ele narra e é

apresentado, ater-nos-emos, portanto, à concepção de ethos discursivo proposta por

Maingueneau.

1.6.1 Antecedentes da noção de ethos discursivo

Para recuperarmos a noção de ethos desde os gregos, é necessário evocar o

desenvolvimento dos primeiros estudos a partir da palavra. Gusdorf (1952), ao propor um

estudo ético da palavra, faz um percurso sobre as abordagens que a humanidade deu ao

estudo da linguagem. Recupera nos gregos, a busca pela essência subjacente na palavra,

questionando o perigoso uso que os sofistas faziam dela, ao facultar-lhes o poder de

manipular a sua verdade sobre o outro.

A partir dessa controvérsia, a linguagem, em Sócrates, passa a ser terreno fértil para

a reflexão; uma vez que se buscava a chegar à essência dela, transpondo-se o terreno das

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aparências. Aquele filósofo grego, na busca pela verdade, visava à definição divina das

palavras. Mais tarde, seus discípulos, Platão e Aristóteles, avançaram o pensamento do

mestre a partir da dialética, o que facultava ao homem invocar, pelos movimentos de

análise e síntese, o terreno divino.

No entanto, foi com Aristóteles que surgiu uma sistematização da teoria da

argumentação, organizada numa obra intitulada Retórica. Dois componentes são bem

marcados nesse tratado: um de natureza formal, ligado à construção da argumentatividade;

o outro de caráter mais técnico, entendido como a arte de bem falar – o elocutio. Esse

último componente veio, com o passar dos tempos, a assumir-se como a essência da própria

retórica. Essa concepção de retórica é ainda, nos dias de hoje, bastante recorrente no senso

comum. Entretanto, Aristóteles propunha um equilíbrio entre esses dois componentes, o

que caracteriza a própria constituição da arte retórica como uma técnica para bem falar e

para orientar o uso do argumento lógico com destreza na produção do discurso eficaz do

ponto de vista argumentativo-persuasivo.

Da Retórica antiga advém o conceito de ethos. Para ela, trata-se de uma das provas

que compõem um triângulo comunicativo do tratado aristotélico. Segundo Meyer

(1998:26), Aristóteles apresenta as três provas que constituem, em linhas gerais, a sua

retórica, a saber: ethos, pathos e logos. Nas duas primeiras provas estariam associados,

respectivamente, o orador e auditório, o qual é persuadido via uma linguagem (logos).

Desse modo, estaria completo o triângulo das provas de persuasão fornecidas pelo discurso:

Para tanto, um discurso é apoiado num orador que, ao falar, revela uma imagem sua

ao seu auditório, e este é tocado por emoções e paixões movidas por aquele. Assim, temos a

adesão do auditório ao que se propôs o orador, logo, o discurso foi eficiente.

Discurso (logos)

Orador (ethos) Auditório (pathos)

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Como o foco do nosso trabalho é questão do ethos discursivo, fiquemos com esse

vértice do triângulo. Eggs (2005:29-56) conta que Aristóteles inovou em sua Retórica,

exatamente por incluir o ethos entre as provas, já que seus antecessores não o incluíam

como uma possibilidade persuasiva. E mais: o ethos foi entendido, por algum tempo, como

a imagem moral apresentada pelo orador2; mas, em outras passagens da Retórica, o termo

ethos não tem mais um sentido moral, mas antes um sentido neutro. Neste sentido, o ethos

vai se revelando no momento em que se fala pelas escolhas que fez o orador. Para que o

sujeito falante se revele positivamente ao seu auditório, Aristóteles (apud Maingueneau:

2008b) ensina que ele poderá se valer de três qualidades: a prudência, isto é, um parecer

ponderado (phronesis); a benevolência, o que implica transmitir uma imagem agradável de

si (eunóia); e a apresentação como um homem simples e sincero, virtuoso (areté).

É importante considerar que, segundo Barthes (apud Maingueneau: 2008b:13)

São os traços de caráter que o orador deve

mostrar ao auditório (pouco importa sua

sinceridade) para dar boa impressão (...) O

orador enuncia uma informação e, ao mesmo

tempo, diz: eu sou isto aqui, não aquilo lá.

E diz ainda mais: o que torna o ethos eficaz é o fato de ele se imiscuir numa

enunciação sem ser explicitado.

Como visto, a noção retórica de ethos, assim como a própria Retórica, parece ser um

embrião dos estudos da subjetividade na linguagem. A esse respeito, Meyer (1998:19) diz

que resta à Retórica uma

2 A retórica latina tinha como um de seus objetivos reconhecer o homem de bem que se pronunciava. Para os romanos, o bem-dizer deveria estar articulado com a justiça. Assim nos ensina Meyer (1998:17-18) e, para isso, cita Quintiliano: “Aquilo que melhor caracteriza [a retórica] é ter sido definida como a ciência do bem-dizer, porque isso abrange simultaneamente todas as perfeições do discurso e a própria moralidade do orador, uma vez que não se pode falar verdadeiramente se não formos homem de bem.”

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especificidade que a modernidade soube

explorar: a subjectividade. Certamente que os

Gregos não a chamavam assim, mas apesar de

tudo podemos determinar a suam marca e a

sua presença através da contingência de

opiniões, da livre expressão das crenças e

oposições entre os homens, que procuram

sempre afirmar as suas diferenças ou, pelo

contrário, superá-las para libertar um

consenso.

É, pois, a Retórica fundamentada na subjetividade. É ela

o encontro dos homens e da linguagem na

exposição das suas diferenças e das suas

identidades. Eles afirmam-se aí para se

encontrarem, para se repelirem, para

encontrarem um momento de comunhão ou,

pelo contrário, para evocarem essa

impossibilidade e verificarem o muro que os

separa.

1.6.2 Abordagens lingüísticas (ou nem tanto) anteriores à noção de ethos

discursivo

A preocupação sobre a imagem do falante é algo novo somente para a Lingüística,

os gregos e os romanos já tinham essa preocupação. Na Lingüística, ela tardou a aparecer e,

principalmente, a reaparecer sob o rótulo de ethos.

Os estudos pré-saussurianos tinham preocupação apenas com a historicidade

imanente às línguas, logo, não havia espaço para questões ligadas aos usuários dela. Na era

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de Saussure, feito o corte sincrônico que anulava o estudo diacrônico, tampouco houve

espaço para tratar de aspectos ligados à parole, uma vez que a preocupação, naquele

momento, era a de sistematizar a língua como um fato social, mensurável, para então

fundar a Lingüística como uma ciência positiva. Nascia o estruturalismo lingüístico e

esqueciam-se, de uma vez por todas, os estudos acerca do uso individual da língua.

Mas não foi bem isso o que aconteceu. Na década de 60, começa a surgir uma

lingüística da fala, mais especificamente com os estudos de Benveniste [1902- 1976]

(1988:284-293). Para aquele teórico, era impossível conceber o homem sem a linguagem,

bem como o inverso. É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como

sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser,

o conceito de “ego”. Concebendo a linguagem sob essa ótica, Benveniste propõe a

apreensão da subjetividade na linguagem a partir dos pronomes pessoais de uma língua, já

que ela é uma classe gramatical que funciona como marca de um “eu” que fala a um “tu”.

Ademais das marcas pronominais reveladoras da subjetividade, os dêiticos

(demonstrativos, advérbios, adjetivos) são indícios capazes de remeter o “tu” da enunciação

a um tempo-espaço de onde fala o “eu”. Neste sentido, ainda para Benveniste (op. cit.:289)

A linguagem é, pois, a possibilidade da

subjetividade, pelo fato de conter sempre

formas lingüísticas apropriadas à sua

expressão; e o discurso provoca a emergência

da subjetividade, pelo fato de consistir de

instâncias discretas. A linguagem de algum

modo propõe formas “vazias” das quais cada

locutor em exercício de discurso se apropria e

às quais se refere à sua “pessoa”, definindo-se

ao mesmo tempo a si como eu e a um parceiro

tu. A instância do discurso é assim constitutiva

de todas as coordenadas que definem o sujeito

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e das quais apenas designamos sumariamente

as mais aparentes. [grifos nossos]

Pela referência anterior, podemos perceber que só os pronomes pessoais não

apontam para a subjetividade na linguagem, há de se considerar outras formas lingüísticas,

os dêiticos, que também são eficientes para indicar a existência de um “eu” num

determinado discurso. É notório, na teoria proposta, um ranço ainda estruturalista, preso a

questões sistêmicas da língua, haja vista a tendência formalista que ainda imperava àquela

época embora se trate de uma ruptura3; note-se essa concepção lingüística no trecho: A

linguagem de algum modo propõe formas “vazias” das quais cada locutor em exercício de

discurso se apropria...

O estudo da subjetividade na linguagem mereceria ser revisitado e foi o que fez

Kerbrat-Orecchioni (1980:91-92). Para ela, a própria natureza da linguagem é

fundamentada na subjetividade, quando deixa claro que toda unidade léxica é, em certo

sentido, subjetiva, dado que as palavras da língua não são outra coisa que símbolos

substitutos e interpretativos das coisas [tradução nossa]4. A autora corrobora, em partes, o

legado de Benveniste, dizendo haver uma subjetividade que é dêitica, manifestada, como

dissemos anteriormente, por pronomes pessoais e outros dêiticos. Por outro lado, há

também uma subjetividade que se manifesta pela apropriação da língua pelo sujeito, essa

apropriação não se dá maneira única, mas sim, variável, dinâmica, como é a própria

humanidade. Assim, a subjetividade se revelaria não só pelos dêiticos, mas por toda

unidade léxica que se refere às coisas do mundo. Essas referências às coisas [a que ela

chama de referenciação] trazem no seu bojo marcas subjetivas, possíveis de serem

mensuradas. Ao enunciar, o falante faz o uso de um sistema comum do qual se apropriou e

deixa entrever em seu enunciado lexias de ordem avaliativa ou afetiva. Para ilustrar,

Kerbrat-Oreccheoni se vale do seguinte título em um livro didático: “Nossa doce França”.

Torna-se perceptível que o autor da frase é francês, isto em razão de empregar o dêitico

3 Conforme mencionamos neste capítulo, em ciência, nada é estanque, há movimentos de continuidade e descontinuidade. A reflexão de Khun (2006) é bem concretizada neste momento a que estamos nos referindo. 4 Toda unidad léxica es, en un cierto sentido, subjetiva, dado que las palabras no son jamás otra cosa que símbolos sustitutivos y interpretativos de las “cosas”.

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‘nosso’ e quer transmitir um sentimento ufânico, patriota aos pequenos franceses a quem o

livro destina, em razão da lexia avaliativa ‘doce’.

A lingüista avança um pouco mais sobre as idéias de seu antecessor – Benveniste –

exatamente por considerar além dos dêiticos como reveladores de uma subjetividade. A

autora começava a negar a presença da subjetividade somente pelas formas lingüísticas,

conforme preconizara Benveniste, ao tratar da descrição axiológica da palavra (como em

‘nosso’) e perceber o traço avaliativo (como em ‘doce’). Ela pressupõe a imagem de um

locutor que é mostrada em maior ou menor grau, considerando-se as condições de

enunciação. Seguindo esse viés, podemos corroborar o dizer de Kerbrat-Orecchioni, para

quem “toda unidade léxica é, de certo modo, subjetiva”, já que o locutor se inscreve nas

entrelinhas do seu dizer e não somente a partir de marcas pronominais e dos dêiticos.

Segundo Amossy (2005), uma aproximação à noção retórica de ethos também foi

feita pelo sociólogo Erving Goffman, cuja obra possui um título bastante sugestivo a essa

proximidade – A representação do eu na vida cotidiana. O autor teve considerável

repercussão nos estudos de análise da conversação, justamente por tratar da construção das

imagens nas interações sociais. A teoria tem como base uma metáfora com o teatro,

considera-se que os interlocutores exercem papéis sociais com fim de manterem

determinado status, o que dita determinado comportamento, dada a situação social dos

interactantes. Esse status dos falantes é assegurado por faces que as rotinas sociais

demandam, a que o autor chama de face-work. Assim, as conversações são constantes

“lutas” para a manutenção da face intencionada. Kerbrat-Orecchioni (apud Amossy,

2005:13) incorpora a sua teoria sobre interação social, o conceito goffmaniano de face e

redefine a noção como o conjunto das imagens valorizantes que, durante a interação,

tentamos construir de nós mesmos e impor aos outros.

Embora Benveniste, Kerbrat-Orecchioni e Goffman tenham apresentado conceitos

que, em maior ou menor grau, se aproximam da noção aristotélica de ethos, como imagem

de si ao falar, todos eles ainda não utilizaram o termo em questão. Amossy (op cit.:14)

remete a Ducrot como sendo o primeiro a integrar o termo ethos às ciências da linguagem.

Ducrot (1984:161-218) ao propor sua teoria polifônica da enunciação traz à baila o

termo aristotélico, mas ainda seria um primeiro momento em que o termo apareceria nas

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ciências da linguagem; ali, ainda pouco explorado. Um longo percurso teórico precedeu a

primeira aparição do termo em Lingüística, Ducrot estava preocupado em fazer crítica à

tendência da “lingüística moderna” em considerar a unicidade do sujeito falante. Para ele,

haveria outras vozes presentes no quadro da enunciação e não que cada enunciado possui

um, e somente um autor.

A fim de comprovar sua tese, ele define a disciplina que cria, a qual chama de

“pragmática semântica” ou “pragmática lingüística”. O percurso argumentativo apresentado

pelo autor inicia-se pela distinção rigorosa entre frase e enunciado5. Além desses dois

conceitos, Ducrot (op.cit.:168) ainda deixa claro o que entende por enunciação:

A realização de um enunciado é de fato um

acontecimento histórico: é dado existência a

uma coisa que não existia antes de se falar e

que não existirá mais depois. É esta aparição

momentânea que chamo de enunciação.

Considera ainda, em termos metodológicos para sua pragmática semântica, a

existência de duas expressões: a significação e o sentido. A primeira está para a frase e a

segunda para a caracterização semântica do enunciado. Esta distinção aproxima-se

bastante do que Maingueneau quer para sua AD, buscar um equilíbrio na análise entre a

textualidade e a discursividade. Considerar o significado implica perceber a estrutura frasal,

enquanto que o sentido está para os efeitos da enunciação presentificados na frase. Ducrot

(op. cit.:170) parece buscar, também, o mesmo equilíbrio analítico:

Para dar conta de modo sistemático da

associação “observada” entre os “sentidos” e

“enunciados”, escolho associar as frases

realizadas pelo enunciado um objeto teórico

5 Tal distinção já a fizemos no item 1.2..

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etiquetado “significação”. A manobra me

parece interessante na medida em que suponho

possível formular leis, de um lado para

calcular a significação das frases a partir de

suas estruturas léxico-gramatical, e de outro

lado para prever, a partir desta significação,

os sentidos dos enunciados.

Uma vez apresentado, ainda que muito sumariamente, o quadro teórico geral da

polifonia da enunciação, partamos para que o que Ducrot (op. cit.:178) reconhece como o

tema próprio do capítulo de sua obra, já que buscar atender ao objetivo geral de sua

epistemologia, que é criticar e substituir a teoria da unicidade do sujeito da enunciação. O

sujeito da enunciação, por sua unicidade que apontam os lingüistas modernos6, tem de ser

capaz de apresentar as seguintes propriedades. Primeiro, ser uma entidade psico-fisiológica,

dotada de faculdades para produzir enunciados, o que se pressupõe um lugar de onde se

fala, um esforço muscular, um processamento audível; segundo, ser responsável pelos atos

ilocutórios presentes nos enunciados; e, em terceiro lugar, revelar-se nos enunciados pelas

marcas de primeira pessoa.

A problemática, no entanto, reside no fato de atribuir essas três propriedades a um

único sujeito. A sustentação da tese da unicidade torna-se falha quando aplicada a um

enunciado, mesmo que simples. A fim de ilustrar isso, Ducrot oferece-nos o seguinte

exemplo: um locutor responde a uma censura da seguinte maneira: “Ah, sou um imbecil?

Muito bem, você não perde por esperar”. O “eu” do enunciado é o locutor, mas a

responsabilidade pela afirmação não é do locutor, mas do seu interlocutor, que crê na

imbelicialidade do locutor. Por conta disso, Ducrot vê a necessidade de distinguir

enunciador de locutor.

Para tornar mais concreta essa distinção, Ducrot (op. cit.:182) ilustra, muito

didaticamente, com o seguinte exemplo. Ao receber em casa, de um filho, o seguinte

6 Entenda-se aqueles que praticam a “lingüística moderna”, o que Ducrot (op. cit.: 161) sugere ser desde o comparativismo, o estruturalismo e a gramática gerativa.

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enunciado: “Eu abaixo-assinado, autorizo meu filho a [...]. Assinado:”; e, ao assiná-lo, será

responsável pelo enunciado, ainda que não seja o autor dele. O mesmo exemplo podemos

aplicar a abaixo-assinados, cheques, atas de reuniões, notas promissórias, tíquete de um

cartão de crédito... Assinamos um texto que não é nosso e nos tornamos responsáveis pelo

que está dito nele. Somos responsáveis por ações como pagar algo, tomar ciência de fatos

tratados numa reunião... Os autores desses textos, como o exemplo do gênero escolar,

poderiam ser a diretoria da escola, a secretaria; todavia, a responsabilidade passa a ser de

quem o assinou. Assim sendo, aquele que assina passa a ser locutor (ser discursivo),

enquanto que aquele que enuncia, o autor empírico, é o enunciador (ser empírico).

Após a diferenciação anterior, Ducrot propõe um desdobramento da noção de

locutor, ela estaria bipartida: uma que chama de “locutor enquanto tal” (locutor L) e outra a

quem chama de “locutor enquanto ser no mundo” (locutor λ). Tanto L quanto λ são seres

discursivos, construídos no sentido do enunciado, porém, o que os diferencia é o estatuto

metodológico em relação ao sujeito falante; este último tem a função de ser apenas uma

representação “externa” à enunciação. Ambos os locutores são dotados de propriedades

diferentes: L é designado como o responsável pela enunciação, é considerado unicamente

enquanto tendo essa propriedade (Ducrot: op.cit.:188); já λ, é a origem do enunciado, uma

pessoa ‘completa’, psico e fisiologicamente, que possui, entre outras propriedades, a de

enunciar a sua tristeza ou sua alegria (de um modo geral o ser que o pronome eu é sempre

λ, mesmo se a identidade deste λ só fosse acessível através de seu aparecimento como L.

(idem)

Por fim, para exemplificar a distinção entre λ – L, Ducrot recorre à retórica

aristotélica e chegamos, então, à noção de ethos, tratada, de maneira inédita, nas ciências da

linguagem. Nela, uma das formas de construir a persuasão, é através da construção de uma

imagem do orador, que seja favorável de si mesmo, conforme já explicamos nos tópicos

anteriores, ao tratarmos do ethos retórico. Para Ducrot (op. cit.:189), o ethos está ligado a

L, pois este é dotado de certo caracteres que tornarão a enunciação agradável ou não,

seduzindo o público pela benevolência que o orador veicula por sua imagem. Aquilo que o

orador poderia dizer sobre si (...), diz respeito a λ, o ser no mundo, e não é este que está

em questão na parte da retórica.

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Essa referência ao ethos, bem como a própria pragmática semântica (ou lingüística)

é que será a mola propulsora aos estudos de Maingueneau, motivo pelo qual aqui a

recuperamos sumariamente, a fim de clarear o arcabouço teórico que escolhemos para

perceber ethos dos sujeitos que se fazem presentes no gênero causo. Passemos, portanto, à

noção discursiva de ethos.

1.6.3 Ethos para a Análise do Discurso de Dominique Maingueneau

A concepção de ethos discursivo proposta por Maingueneau (2005, 2008b) é

radicada em dois momentos dos estudos da subjetividade que citamos anteriormente,

conforme corrobora Amossy (op. cit. 16):

vê-se que a análise do discurso segundo

Maingueneau retoma as noções de quadro

figurativo apresentadas por Benveniste e de

ethos, por Ducrot, dando-lhe uma expansão

significativa. A maneira de dizer autoriza a

construção de uma verdadeira imagem de si e,

na medida que o locutário se vê obrigado a

depreendê-la a partir de novos índices

discursivos, ela contribui para o

estabelecimento de uma inter-relação entre o

locutor e seu parceiro.

Desse modo, o ethos discursivo implica a imagem estabelecida nessa inter-relação

entre o enunciador e o co-enunciador, considerando-se a eficácia da palavra com o intuito

de causar impacto e suscitar adesão. Além disso, o ethos discursivo está ligado ao estatuto

do enunciador e à questão do processo de legitimação por meio de seu discurso. No

entanto, é preciso deixar claro que a noção discursiva de ethos, segundo Maingueneau

(2005:69), trabalha com direções que ultrapassam bastante o quadro da argumentação.

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Comumente, desde Aristóteles e até os novos estudiosos da argumentação, interessa a

noção de ethos em gêneros da tipologia argumentativa ou com predominância desse

tipo/seqüência textual7. Neste ponto, Maingueneau inova ao propor sua percepção em

outros textos, de outras tipologias, que pressupõe um público, o qual tem o direito de

ignorar ou recusar os textos a ele apresentado.

A dimensão discursiva da etividade trabalha, portanto, com dois eixos constituintes

da teoria: a reflexividade enunciativa e a relação entre discurso e corpo. Sobre a primeira,

implica dizer que, ao se tomar o ethos discursivo como objeto de análise, há de se

considerar o texto não simplesmente como um objeto de contemplação, antes, conforme

Maingueneau (op. cit.:73) como enunciação voltada para o co-enunciador que é

necessário mobilizar para fazer aderi-lo “fisicamente” a um universo de sentido. O termo

entre aspas na citação, já nos remete ao outro eixo a ser considerado, de forma inovadora,

pelo autor em questão: a corporalidade. O lingüista amplia a noção que tinham os gregos

romanos sobre o ethos, como elucidamos no início deste item, era muito freqüente

relacionar a imagem de si ao caráter de quem fala, sobretudo entre os romanos que

utilizavam, em vez de ethos, o termo mores, dada a preocupação com a moralidade que o

orador deveria ter ao falar. Maingueneau considera que não só essas características

reveladas pelo enunciador são eficientes para suscitar a adesão do co-enunciador; há se

levar em conta, também, o tom com que se diz o discurso e o caráter e a corporalidade de

quem diz.

O tom, que, grosso modo, seria imanente ao discurso oral, é concebido também no

discurso escrito, pois para o autor, independentemente da inscrição material de um

discurso, há sempre uma vocalidade associada a uma corporalidade e um caráter,

percebidos pelo co-enunciador. Essa vocalidade é também variável em relação aos gêneros

de discurso em que o ethos se manifesta; tem ligação intrínseca com o código linguageiro

construído na cenografia, como ilustramos no item anterior. Já o caráter e corporalidade

devem ser entendidos como aspectos ligados a concepções historicamente atribuídas ao

comportamento global do enunciador, quer sejam indumentária, compleição corporal, a

forma como se move no espaço social, enfim, os estereótipos dos enunciadores.

7 A referência a tipos textuais é feita por Maingueneau, que o faz na perspectiva de Adam.

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Considerados tom, caráter e corporalidade associados ao ethos discursivo,

entendemos que sua constituição é de natureza híbrida. Entram na composição híbrida da

natureza do ethos os seguintes fatores: psicossocial, plurissemiótico e histórico. Pelo fato de

considerarmos o ethos discursivo como ativação de estereótipos, esses não são tem natureza

lingüística, mas sim, psicossocial; embora seja constituído por marcas lingüísticas. A

plurissemioticidade do ethos é justificada pelo fato de considerarmos outros sistemas

semânticos que contribuem para a construção da imagem do enunciador, são eles: roupas,

gestos, mímicas, imagens associadas. A faceta histórica do ethos também não pode ser

ignorada, uma vez que estereótipos variam de época para época. Por fim, é necessário

atentar para a natureza híbrida do ethos a fim de olhá-los a partir de suas múltiplas facetas,

capazes de darem conta de comportamentos verbais e não-verbais do enunciador. Segundo

Maingueneau (2006c:58): o ethos, por natureza, é um comportamento que, enquanto tal,

articula verbal e não-verbal para provocar no destinatário efeitos que não decorrem

apenas das palavras.

Outro ponto importante acerca do ethos discursivo é o seu caráter assimétrico. O

enunciador, ao falar, intenta passar uma imagem de si ao co-enunciador, porém, essa

imagem nem sempre coincide com aquela construída pelo outro. Pensando nisso,

Maingueneau começa a questionar como se dá a adesão da imagem, num dado momento de

enunciação, pelo co-enunciador, o que o faz preconizar o conceito de fiador. Tal conceito é

definido por Maingueneau (2005:72) como a figura que o leitor deve construir com base em

indícios de diversas ordens, o qual também é investido de um caráter, um tom e uma

corporalidade.

Para que haja uma imagem construída pelo co-enunciador (um fiador), é preciso

haver um processo que Maingueneau tem chamado de incorporação. O destinatário

incorpora, com base em indícios lingüísticos fornecidos pelo enunciador, uma imagem,

temos, então, o ethos construído. À AD interessa como o enunciador lança mão de recursos

lingüísticos para sua construção ethos. A incorporação somente ocorre porque há

estereótipos que são partilhados, o que permite associar a ele um tom, um caráter e uma

corporalidade.

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A incorporação não se atém simplesmente à identificação de uma personagem

fiadora. Ela implica, também, de acordo com Maingueneau (2008b:62),

um mundo ético do qual o fiador é parte

pregnante e ao qual ele dá acesso. Esse mundo

ético, ativado por meio da leitura, é um

estereótipo cultural que subsume um certo

número de posições estereotípicas associadas

a comportamentos: a publicidade

contemporânea apóia-se maciçamente no

mundo ético em tais estereótipos (o mundo

ético dos executivos, dos esnobes, das estrelas

de cinema etc)

É, pois, o mundo ético um mundo associado à maneira psicológica de ser, de vestir-

se, de falar fazendo uso de determinado tom; enfim, um grupo de estereótipos comuns a um

lugar social reconhecível para os atores envolvidos na situação de enunciação. Como

observado, o ethos é parasitado por problemas de ordem de avaliação social e sua

construção se dá somente pela interação verbal entre os envolvidos, articulados a elementos

de natureza não-verbal.

Em suma, acerca da incorporação, o lingüista entende-a como Maingueneu

(2006c:62)

A maneira pela qual o destinatário em posição

de intérprete – ouvinte ou leitor se apropria

desse ethos. Fazendo um uso pouco ortodoxo

da etimologia, pode-se, de fato, fazer jogar

essa “incorporação” em três registros:

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- a enunciação da obra confere

uma corporalidade ao fiador, ela lhe dá corpo;

- o destinatário incorpora,

assimila um conjunto de esquemas que

correspondem a uma maneira específica de

relacionar-se com o mundo habitando seu

próprio corpo;

- essas duas primeiras

incorporações permitem a constituição de um

corpo, da comunidade imaginária daqueles

que aderem ao mesmo discurso.

É necessário frisar que, em AD, o que importa é o ethos construído, mas não

somente como meio de persuasão, como quereria a retórica tradicional. Importa ao ethos os

possíveis efeitos de adesão pretendidos ao destinatário. No entanto, compete para esse

movimento não apenas o papel exercido pelo ethos, ele é parte pregnante da cena de

enunciação; desse modo, convém considerá-la como a motriz geradora daquela, motivo

pelo qual o estudo do ethos não deve ser tomado separadamente. É por meio dele que o

destinatário está convocado a um lugar e a um tempo, inscritos na cena de enunciação que o

texto implica. A cena de enunciação, como já vimos, comporta outros três planos: a

englobante, a genérica e a cenografia.

Maingueneau diz que o ethos e a cenografia participam de um processo de

enlaçamento, já que desde a emergência de um discurso, a fala já é carregada de um certo

ethos, o qual é progressivamente validado pelos conteúdos veiculados pelo discurso, bem

como pela própria enunciação. É a cena de enunciação, ao mesmo tempo, origem e espaço

onde se engendra o discurso.

Por fim, o processo de construção, de efetivação do ethos resulta da interação de

outro fatores: ethos pré-discursivo, ethos discursivo (mostrado e dito). O prefixo –pré no

primeiro dos termos nos permite inferir sobre uma imagem pré-concebida que se tem do

enunciador; o destinatário tem introjetado uma série de estereótipos, que o permite

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hipotetizar sobre a imagem de quem fala; todavia, essa imagem é confirmada ou

reconstruída pela situação de enunciação. Assim, caminhamos para uma construção do

ethos discursivo, o qual estreita relações interativas com o ethos pré-discursivo. O

discursivo manifesta-se via ethos dito e ethos mostrado. Esses subconjuntos do ethos

discursivo, apóiam-se, respectivamente, no dizer/mostrar preconizados pela pragmática.

Para Maingueneau (1996:13), tais conceitos decorrem da premissa de que qualquer

enunciado esconde uma dimensão ilocutória. Esse componente semântico, porém, não se

apresenta da mesma maneira que seu conteúdo proposicional. Para ilustrar, o autor

exemplifica que quando se emprega um imperativo para dar uma ordem, não se diz no

enunciado que é uma ordem, mas mostra-se dizendo. Assim, o ethos dito é aquele que o

locutor diz, na expressão lingüística do enunciado, ser algo; o ethos mostrado é o que ele

mostra ser, a partir de indícios lingüísticos e extralingüísticos, como o caráter e a

corporalidade.

No entanto, o ethos efetivo, construído pelo destinatário, resulta da interação entre

essas diversas instâncias, sendo que a predominância delas variará, segundo o gênero de

discurso; por exemplo, num texto político será comum ao locutor mostrar mais como um

político, com base em estereótipos de uma coletividade. Maingueneau (2006c.:69)

representa a construção do ethos efetivo pelo seguinte esquema, considerando que as

flechas duplas indicam interação:

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Ethos efetivo

Ethos prévio8 Ethos discursivo

Estereótipos ligados ao mundo ético caipira

8 Optamos por “ethos prévio” em vez de “ethos pré-discursivo”. Maingueneau (2005:71) sugere sinonímia entre os termos, sendo que o primeiro fora usado por Amossy e Haddad, em mesma obra. O adjetivo “prévio” nos é mais viável por considerar estereótipos socialmente partilhados que entram na configuração de um ethos discursivo efetivo e, exatamente por serem partilhados socialmente, são ativados pelos leitores. Já ethos pré-discursivo pode abrir margem para interpretação de uma imagem que não faz parte da construção discursiva do ethos. No entanto, entendemos que há um ethos prévio, do mundo exterior, que integra a efetivação de uma imagem construída pelo discurso.

ethos dito ethos mostrado

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1.7 Código Linguageiro

Para percebermos como se construía a imagem do caipira no século XX, nos causos de

Cornélio Pires, não só os planos das cenas da enunciação, bem como ethos discursivo

servirão para reconstruirmos tal imagem. Partimos do pressuposto de que a configuração de

uma imagem do caipira paulista perpassa, além dos planos já mencionados, pelo uso de

uma variante lingüística capaz de até mesmo reforçar a cena genérica que configura o

causo. O uso dessa variante é o código linguageiro que deixa pistas nas cenas de

enunciação, de modo a nos fornecer indícios reveladores de uma imagem.

De acordo com Maingueneau (2001:143), é possível e necessário um diálogo entre

ethos e código:

Não se poderia portanto estabelecer uma

separação entre o etos e o código de

linguagem próprio a uma posição no campo

literário. O código de linguagem só é eficiente

associado ao etos que lhe corresponde. Não

surpreende ser a ele atribuída também uma

corporalidade e um caráter.

Quando entendemos que a construção da cenografia é que permite uma forma de ser e

de usar a linguagem concernente à situação enunciativa, pressupomos, nessa premissa, um

ethos e um código linguageiro. Pelo código é que podemos, também, perceber inclusive

certo posicionamento do enunciador. Ao considerarmos o código linguageiro, fazemos uma

opção por concepção de língua num bloco heterogêneo, cuja variabilidade assume formas

sugeridas pelas situações enunciativas. Uma vez que, segundo Maingueneau (2006a:182) o

escritor não fabrica seu estilo a partir de sua língua, mas antes impõe a si, quando deseja

produzir literatura, uma língua e códigos coletivos apropriados a gêneros de textos

determinados.

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Nessa perspectiva, a matéria prima do escritor não seria a língua, mas a interlíngua,

entendida como uma interação de língua e usos. Tal conceito apóia-se no princípio

dialógico da linguagem, de modo que a interlíngua trabalharia com um plurilingüismo

capaz de dialogar com sua própria diversidade lingüística – plurilingüismo interno -, bem

como com a diversidade de outras línguas, de outros tempos e outras obras literárias –

plurilinguismo externo. Sobre esse último, bem fazia Guimarães Rosa; só para exemplificar

o título de sua obra Sagarana, busca elementos do germânico, ‘saga’ – canto heróico – e

‘rana’, do tupi – à maneira de.

Atemo-nos, no entanto, ao plurilingüismo interno, uma vez que mais nos interessa neste

trabalho. A respeito dessa modalidade, lembra Rocha (1997:128) que variáveis de

diferentes ordens são consideradas: variáveis geográficas (dialetos, regionalismos),

elementos de estratificação social (popular, aristocrática, ...), especificidade das situações

de comunicação (jurídica, médica, ...) e diferenças ligadas aos níveis de língua (familiar,

oratório, etc).

Cabe esclarecer que optamos pelo uso da terminologia código linguageiro

(Maingueneau, 2008a), no entanto, há usos como código de linguagem (Maingueneau,

2001, 2006a) e vocabulário (Maingueneau, 2007).

Antes de partirmos à análise propriamente das cenas, do ethos discursivo e tecermos

algumas considerações sobre o código linguageiro, façamos uma contextualização acerca

do campo discursivo que temos chamado de literatura paulista, bem como alguns tópicos

biográficos sobre nosso autor e sua obra.

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CAPÍTULO II

LITERATURA PAULISTA, CORNÉLIO PIRES E SEUS CAUSOS

2.0 Introdução

Trataremos, a seguir, de uma contextualização da vida e da obra de Cornélio Pires,

situada no campo da Literatura Paulista. Esse olhar contextualizador nos parece eficiente,

neste momento, a fim de situarmo-nos acerca da amostra escolhida para análise desta

dissertação. Os tópicos a serem tratados dizem respeito à formação histórico-cultural do

Brasil Caipira, conforme leituras de Cândido (2003) e Ribeiro (2006), desde os primórdios

de século XVI até a década de 20, do século passado; a seguir, faremos um percurso sobre

as produções literárias que privilegiavam a temática caipira, pertencentes ao campo a que

temos chamado de Literatura Paulista, seguida de uma breve biografia de Cornélio Pires e

uma explanação sobre o que Amadeu Amaral (1920) entendia sobre o que ele chamava de

“dialeto” caipira. Por fim, trataremos da obra As estrambóticas aventuras de Joaquim

Bentinho, o queima-campo, a qual será nosso objeto de análise no capítulo III.

2.1 Formação histórico-cultural do Brasil Caipira

Ser caipira está longe de ser um grupo étnico é, antes de tudo, um modo de vida.

Além dessa concepção errônea, o termo “caipira” é usualmente empregado no senso

comum como um adjetivo, passível de ser substituído pelo termo “tímido”, “vergonhoso”,

“inibido”. A fim de ilustrar essa acepção, citamos a fala do ator interiorano Paulo Betti que,

em uma entrevista ao Jornal da Tarde, de 18/11/2008, a propósito da dificuldade de fazer

cenas de nudez, disse: Eu era muito caipira, vim de Sorocaba, e até beijar no rosto era

estranho. Mas logo foi ficando claro que como ator a gente usa o corpo.

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Entender o caipira no contexto histórico do Brasil implica voltar nosso olhar ao final

do século XVI, perpassando pelos ciclos econômicos que atravessam os séculos

subseqüentes. O percurso histórico da formação da cultura caipira é longo e exauri-lo seria

quase que impossível, resta-nos, portanto, traçar um panorama geral da moldagem desse

agrupamento. Antes, porém, é necessário o esclarecimento do conceito de cultura caipira.

Temos recorrido a Cândido (2003:45), o qual assim a define:

...certas porções do grande território

devassado pelas bandeiras e entradas — já

denominado significativamente Paulistânia —

as características iniciais do vicentino se

desdobram numa variedade subcultural do

tronco português, que se pode chamar de

“cultura caipira” .

A Paulistânia era a junção das capitanias de São Vicente com a de Santo Amaro e os

originais caipiras eram justamente esses que ali viviam. Trata-se, pois, de dois grupos

separados pela serra do mar, mas com afinidades no modus vivendi: os de serra abaixo

(litoral) e os de serra acima (interior). Ambos falantes de língua do tronco tupi-guarani, que

mais tarde seriam gramatizadas pelos jesuítas e a denominariam língua geral. Francisco

(2003:28) explica como, na língua indígena, aqueles dois grupos eram diferenciados: todo

morador do litoral como ‘kai-ñ-çara’ e o do interior ‘kai-ñ-pira’. Eis as designações

primitivas dos termos caiçara e caipira.

Ribeiro (2006), após compor vasta teoria da história do Brasil, também cônscio do

caldeamento de raças formadora do povo brasileiro e da necessidade da criação de uma

antropologia [do povo brasileiro], acha conveniente a divisão do país em Brasis. Desse

modo, o antropólogo vê o processo de gestação da etnia brasileira marcada por períodos

históricos e ciclos econômicos que trazem consigo novos núcleos que se aglutinam, cujo

fruto é a unidade sociocultural básica de todos os brasileiros.

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As ilhas-Brasil que admite são, exatamente nesta ordem: o Brasil Crioulo; o Brasil

Caboclo; o Brasil Sertanejo; o que mais aqui nos interessa, o Brasil Caipira; e o Brasil

Sulino. A divisão é possível pela adoção de critérios econômicos, geográficos e ecológicos.

Em certo ponto de sua explanação, Ribeiro diz que a identidade do brasileiro se concretiza

ante a perenidade e os fracassos dos ciclos econômicos.

O Brasil Crioulo compreende a formação étnica construída ao trabalho dos

engenhos de açúcar, que aglomerou portugueses, índios aculturados e negros escravizados,

nos territórios que vão desde o Rio Grande do Norte até o norte da Bahia. Já o Caboclo

refere-se ao povo que se forma aos pés dos seringais da Amazônia, que desmata a floresta

para fazer gerir o capital; parece ser um Brasil mais novo, cujos primeiros contatos se

deram por via jesuítica e por implantação de igrejas, frutos do ciclo do ouro. Já o Sertanejo,

estende-se à margem do rio São Francisco e ao cerrado, frutificando um povo para a lida

com o gado e outras práticas agropecuárias; é o brasileiro contado por Guimarães Rosa. Os

sulinos têm como diferencial a incorporação do que o Ribeiro chama de gringos, ou seja, os

imigrantes (alemães, italianos, poloneses entre outros) aos gaúchos e matutos, estes últimos

sobreviventes de um povo dizimado por interesses políticos entre Espanha e Portugal.

Separadamente, centramo-nos no Brasil Caipira, que teve como principal território o

atual estado de São Paulo. Os paulistas antigos, da São Paulo quinhentista, viviam em

situação de pobreza. O sucesso da cana-de-açúcar no nordeste centralizara a economia

naquela região, logo, os paulistas, nem brancos, nem índios, tentavam driblar a pobreza

com práticas rudes de sobrevivência. Quanto à indefinição racial desse núcleo, Ribeiro (op.

cit.:331) diz:

Esse modo de vida, rude e pobre, era o

resultado das regressões sociais do processo

deculturativo. Do tronco português, o paulista

perdera a vida comunitária da vila, a

disciplina patriarcal das sociedades agrárias

tradicionais, o arado e a dieta baseada no

trigo, no azeite e no vinho. Do tronco indígena

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perdera a autonomia da aldeia igualitária,

toda voltada para o provimento da própria

subsistência, a igualdade do trato social de

sociedades não estratificadas em classes, a

solidariedade da família extensa, o virtuosismo

de artesãos.

Mamelucos, portanto, aperfeiçoaram o desbravar das matas e aterrorizaram índios,

sendo seus algozes, incansáveis, por torná-los escravos e mão-de-obra nos engenhos

prósperos do Nordeste. Esse caráter desbravador prosseguiu ao Sul, dizimando índios

missioneiros e, ao sabor da história, instituindo uma das principais marcas paulistas: as

bandeiras.

Conta Ribeiro (op. cit.:336) que a ambição dos bandeirantes teve seu sucesso com a

descoberta das primeiras lavras de ouro, primeiramente nos sertões Taubaté em garimpos

pobres; depois em aluviões prodigiosamente ricos das morrarias de Minas Gerais. O

achado modificou a estrutura da região Sudeste, a começar pela transferência da capital de

Salvador ao Rio de Janeiro, um período próspero e de revoltas, como a dos Emboabas,

começaria. Os prósperos, antigos mineradores, passam a fazendeiros; e a população rural,

agora cidatinos, apossam-se de glebas devolutas e vão selecionando suas terras, não mais

em busca do ouro, mas sim, de terra para cultivá-la e fixar moradia. Desse modo, ainda

segundo Ribeiro (op. cit.:346) a população se dispersa e se sedentariza, esforçando-se por

atingir níveis mínimos de satisfação de suas necessidades.

O convite ao êxodo se intensifica com a queda da economia aurífera. Famílias

falidas também deixam a antiga e rica Minas Gerais, para viverem em sesmarias, levando

consigo os escravos que ainda restam. Esses redutos que se apossaram de terras do Centro-

Sul, estabelecendo limites ao Sul com o Paraná, passaram a viver à moda paulista do século

XVI, porém, com as forças debilitadas dos antigos bandeirantes. A dispersão da população

gerou nela sedentarismo, tornando-a ambiciosa somente para o sustento próprio,

retrocedendo às práticas indígenas de subsistência, esforçando-se por alcançar níveis

mínimos para o suprimento de suas necessidades. Ressurgem também ações solidárias

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herdadas da matriz indígena, um exemplo dessas ações é o que as populações caipiras

denominaram “mutirão” ou “muchirão”, uma vez que a mata virgem teria de ser devastada

para o plantio da roça.

Contudo, esse modo de vida um tanto solidário e bestial encontraria obstáculos em

razão das mudanças econômicas. A agroexportação inicia suas atividades e a questão da

terra passa a ser discutível. O caipira vai deixando de ser bestial a partir do momento em

que passa a conviver com o Estado, que lhe impõe leis sobre a terra. A luta pela posse da

terra passa a ser negociada e, como alternativa de subsistência, o caipira apela à condição

de meeiro de suas terras, sendo explorado por um “fazendeiro” ou grileiro dominante.

Os problemas decorrentes dessa reordenação social proposta pelo Estado, sobretudo

com a Lei das Terras, em 1850, ganham mais força no final do século XIX com a explosão

da cultura do café. De lavrador de seu próprio sustento, o homem do campo passa a figurar

como assalariado, muitas vezes nem recebendo salário pecuniário, mas em troca de comida

e moradia; desse modo, apesar de se ter já abolido a escravidão e fechado os mares para o

tráfico negreiro, o camponês submete-se a uma nova forma de administração escravocrata.

Para dar conta da imensa demanda de mão-de-obra, os cafeicultores recorreram à

importação do trabalho imigrante, a mão-de-obra estrangeira é conhecedora de um sistema

produtivo capitalista e com aspirações a uma quantia de terra para expansão de seu

agronegócio. O colono converte-se, então, em novo obstáculo ao caipira e aos ex-escravos,

sem chances de competição contra o imigrante, por não conhecer o funcionamento da

estrutura capitalista que lhes apresenta a economia do café, bem como as novas habilidades

exigidas na faina com a terra. Conseqüentemente, o caipira trilhará, penosa e

paulatinamente, uma nova estrada: a marginalização. Tal condição humana devia-se ao fato

de que não havia mais espaços para o modo de vida caipira, dentro do sistema de fazendas,

o que lhes acarretou dificuldade na manutenção de seus hábitos tradicionais, suas crenças,

sua economia familiar. Os latifúndios ocuparam com pastos e gado suas áreas de caça,

alterando seu ecossistema.

Portanto, o Brasil caipira que teve sua gênese num contexto miserável, conquistou

certo apogeu econômico no ciclo do ouro, teve suas riquezas extraviadas nos ciclos

econômicos posteriores, regressando à condição miserável inicial do período colonial, mas,

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lutando contra um inimigo ainda mais forte: a modernização. Esse período em que São

Paulo experimentou das tendências modernas em todas as áreas, recebeu, como imitação e

resquício de uma cultura galicista, o nome de Belle Époque Paulista. E é na década de 20 e

seus entornos que a literatura com marcas do interior paulista começa a pipocar, cujos

nomes mais lembrados são Monteiro Lobato, Valdomiro Silveira, Paulo Setúbal e Cornélio

Pires.

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2.2 Literatura Paulista

O campo discursivo que aqui temos chamado de Literatura Paulista compreende o

Pré-Modernismo da Literatura Brasileira. No entanto, esse marco divisor entre as

tendências realistas e naturalistas e a Semana de Arte Moderna, cujo espaço temporal é

primeiro vitênio do século XX, ainda é um terreno movediço e genericamente situado. Para

Bosi (s.d.:11) prefixo “–pré” ante modernismo possibilita duas leituras: 1. como uma

delimitação temporal de movimento literário anterior ao Modernismo; 2. como um sentido

de forte precedência temática e formal em relação à literatura modernista.

Ao optarmos pela nomeação do período estético como Literatura Paulista, a

entendemos não só como sendo as manifestações literárias produzidas no estado de São

Paulo e por escritores necessariamente aqui nascidos, antes como manifestações que

apresentam a temática sobre o estado de São Paulo, conforme Leite (op. cit.:46) uma

literatura

cujos temas tocam a paisagem física e social

do Estado, voltando-se para o homem da

região, mesmo que tomado na impessoalidade

e indiferenciação do espaços das grandes

cidades.

A citada autora atenta para o fato de que, quando se fala em região paulista no

começo do século passado, há, em grande parte, uma correspondência com o Estado de São

Paulo. No entanto, lembra que há escritores cuja produção trabalhou com a temática do

universo caipira – como é o caso de Cornélio Pires, Monteiro Lobato – e, ao tratar de

universo caipira, a territorialidade geográfica é extensa, não cabendo somente o estado de

São Paulo, mas como vimos com Ribeiro (2006), o Brasil Caipira compreende outros

estados como Minas Gerais, Rio de Janeiro, norte do Paraná e Mato Grosso.

Vale dizer que a literatura paulista surge num Estado de São Paulo que sente

necessidade de se auto-afirmar, dado o momento exitoso que vive, graças à lavoura

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cafeeira. Em conseqüência do poderio econômico, os paulistas detinham também a

hegemonia política, haja vista que o Partido Republicano Paulista tivera importante papel

desde os primórdios da República. O 15 de novembro de 1889 estimulou os paulistas a um

sentimento ufânico regional, em que o caipira, à moda dos românticos em relação ao índio,

era a representação rosseauniana do bom selvagem. Não obstante a presença dos paulistas

na configuração da República, o advento dela favorecia o federalismo republicano que, em

outras palavras significava a autonomia dos estados, de acordo com Leite (op. cit.: 50).

Com a Primeira Grande Guerra, o sentimento nacionalista é retomado.

Produzir livros neste país não era algo fácil (e ainda não é), o que se tornava um

obstáculo para construir uma pátria de homens e de livros, como quereria Monteiro Lobato.

Este desempenhou papel revolucionário frente a ações de circulação e divulgação da

literatura, sobretudo a partir de 1918, publicando textos que se enquadravam num

regionalismo paulista. Assim como fazia Cornélio Pires com a música caipira, sendo

mecenas de algumas duplas, divulgando o gênero pelo país. As ações de ambos, embora de

sistemas semióticos diferentes – literatura e música – contribuíram em grande parte para

promover imagens do homem do campo paulista; ainda que o primeiro tenha retratado o

caipira do Vale do Paraíba e o segundo o do sul de São Paulo, mais precisamente da sua

terra natal, Tietê. Cornélio Pires também enfrentou as deficiências do mercado editorial

brasileiro de sua época e valeu-se das ações lobatianas para superá-las.

Outra forma de ultrapassar o abismo que a falta de editoras produzia entre os

autores e seu público, era a publicação de textos em periódicos da época. Lobato, após

vender a fazenda de seu avô e voltar para a capital paulista, fundou a Revista do Brasil que,

além de divulgar os escritos paulistas, mantinha a sede do periódico como um ponto de

encontro de escritores, artistas, jornalistas, poetas e pensadores afins. Segundo Vaz

(1948:57-58 apud Leite:op. cit.:59-60), lá se reuniam os mais

variados, heterogêneos e desencontrados

espécimes intelectuais: Martim Francisco,

Artur Neiva, Manequinho Lopes, Plínio

Barreto, Felinho Lopes, Paulo Setúbal, Hilário

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Tácito, Raul Freitas, Quinzinho Correia,

Indalécio Aguiar, Armando Rodrigues, Júlio

César da Silva, Wasth Rodrigues, Roberto

Moreira, Ricardo Cipicchia, Voltolino,

Cornélio Pires, Sílvio Floreal, Amadeu

Amaral, Simões Pinto, Cândico Fontoura,

Gelásio Pimenta, Oswald de Andrade, Jairo de

Góes, Mario Pinto Serva, Moacir Piza, Reé

Thiollier, Rebouças, Pinheiro Junior, Assis

Cintra, Antônio Figueiredo, Jacomino Define,

Adalgiso Pereira etc. Do interior, do Rio, de

outros estados, intelectuais e artistas que

vinham a São Paulo sempre passavam pela

redação da Revista. [destaque nosso]

Temos acima uma lista de nomes – uns conhecidos, outros nem tanto - que

escreveram a história da literatura paulista. A Revista, esse espaço paratópico dos escritores

das duas primeiras décadas do século passado, seguiu até o ano de 1924 quando a editora

“Monteiro Lobato & Cia” declarou falência. Outros periódicos, também, ajudaram a

circular as letras paulistas, conforme lembra Saliba (2002:179)

Esta época, marcada pela estética de

transição, coincide com um momento de

grande incremento do jornalismo e das revistas

semanais – os principais campos de atuação

desses humoristas9 na Belle Époque.

9 Os humoristas a que se refere Saliba são principalmente Cornélio Pires e Juó Bananére. Esse retratou um novo ethos que aparecera na Paulicéia: o imigrante italiano; porém, numa versão urbana e operária. Sua obra é caracterizada pelas paródias dos poemas das estéticas anteriores, a qual fazia numa variante lingüística que era uma mescla do falar caipira com elementos do italiano.

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Dentre as revistas que eram suporte para a diversidade literária e gráfica da Belle

Époque, destacam-se “O Pirralho” (1911 a 1917), a qual, inclusive, contou com a direção

de Oswald de Andrade e a contribuição de Cornélio Pires em vários artigos; “O Malho”, do

Rio de Janeiro, cuja primeira publicação de Cornélio nela se deu, em 1910, dando

repercusão nacional ao poeta caipira; houve, também, uma revista fundada por Cornélio

Pires, em 1926, o “Almanaque d’O Sacy”, a qual contava com ilustrações do famoso

caricaturista Voltolino; mas o empreendimento falhou com a morte de Voltolino, em agosto

daquele ano. Outra forma de disseminar a literatura com os periódicos era a partir de

patrocinadores, como o fez Monteiro Lobato com seu almanaque do Jeca Tatuzinho,

custeado pelo fármaco Biotônico Fontoura.

Além do suporte inovador – almanaques, revistas, jornais – a literatura paulista

apresentava, do ponto de vista temático, duas grandes vertentes. A primeira é um

regionalismo eminentemente paulista que, segundo Leite (op. cit.: 47-48) apresentava

possíveis resquícios do realismo-naturalismo, ao tratar da reprodução mimética da natureza

e do homem;

associados a certa sedução do pitoresco,

provável resquício do sertanismo romântico,

evidente no exotismo das descrições de

aspectos da natureza, de hábitos e costumes

locais, da atitude peculiar de personagens

tipificadas, flagradas em episódios

superficiais; daí, com certeza, a proeminência

de contos-casos, narrativas mais rápidas e

sintéticas.

Esse regionalismo é construído pela oposição entre campo e cidade, sendo o

primeiro o espaço de encontro entre o homem e a natureza. A segunda vertente é a satírica,

rincipalmente nas obras de periódicos, mais especificamente as de Juó Bananére, em

mordazes sátiras políticas à crise da oligarquia paulista e aos costumes.

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Convém também destacar o uso da variante caipira, a qual oscila nas trocas de turno

entre os narradores e os personagens. O uso dessa variante inspirou Amadeu Amaral a

escrever, em 1920, seu livro “O dialeto caipira”. Sobre essa obra trataremos mais adiante.

Ademais, o “caipirês” - quase um pidgin criado pelos imigrantes que viviam a

efervescência paulista - também ganhava seu espaço no campo da literatura.

Havia uma tendência em valorizar o campo, o caipira. Dantas (1976:75) dizia que

na década de 1910, o sertão estava bem na moda (...) Havia cansaço da cultura francesa

que há um século comandava o nosso pensamento, nosso processo artístico. Essa tendência

prosseguiu, gradativamente, pela primeira década daquele século que se iniciava, conforme

ressalta Saliba (op. cit.: 175)

O “caipirismo” ou “nativismo” tornara-se

uma espécie de moda intelectual, sobretudo

depois de 1919, quando foi encenada no Teatro

Municipal a peça “O contratador de

diamantes”, de Afonso Arinos, desencadeando

uma série de “saraus regionalistas” em que se

cantavam canções sertanejas ou escritores

famosos liam seus poemas de tendências

caipiras.

Mas não só de cores românticas, bucólicas e rousseaunianas pintaram o caipira.

Monteiro Lobato, incomodado com a louvação caipira, decide esquentar o debate com seu

artigo Urupês e Velha praga, publicados em 1914 no jornal O Estado de São Paulo e

reeditados na obra homônima ao primeiro artigo, em 1918. Segundo Lajolo (1983),

Monteiro Lobato foi uma personalidade que pôde percorrer diferentes posições ideológicas

para um intelectual de seu tempo. Em razão dessas múltiplas filiações, foram surgindo

diferentes olhares sobre um mesmo objeto: o homem do campo. Lajolo aponta pelo menos

três jecas na obra lobatiana.

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O primeiro deles é o Jeca Tatu, de 1914, de Urupês e Velha Praga. Neste momento,

Monteiro Lobato (1984:XXX) vê o caipira pelas lentes de um fazendeiro que era àquela

época. Para ele, no artigo Velha Praga10, o caboclo era um

funesto parasita da terra (...) especie de

homem baldio, semi-nomade, inadaptavel á

civilização, mas que vive á beira dela na

penumbra de zonas fronteiriças. Á medida que

o progresso vem chegando com a via férrea, o

italiano, o arado, a valorização da

propriedade, vai ele refugindo em silencio,

com o seu cachorro, o seu pilão, a picapau e o

isqueiro, de modo a sempre conservar-se

fronteiriço, mudo e sorna. Escocorado numa

rotina de pedra, recua para não adaptar-se.

Esse olhar sobre o caipira foi corroborado no outro artigo escrito publicado em

mesmo ano. Em Urupês, Lobato critica exatamente a retomada do bom selvagem pelos

escritores do seu tempo não mais do índio; agora, do caipira, do caboclo. Diz o fazendeiro

Lobato: Pobre Jéca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade!

A verdade é que esse primeiro jeca foi sucesso de vendagem, ao final da primeira

década do século passado. Duas razões justificam o êxito: a primeira pelo fato de ser um

tratamento polêmico dado ao camponês, suscitando debates sobre sua condição social; a

segunda porque Lobato foi citado por Rui Barbosa, em plena segunda campanha

presidencial civilista, aos 20 de março de 1919, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro. Lobato

em carta a Rangel (apud Leite (op. cit.:75)) diz que a menção à obra feita por Rui foi um pé

de Vento que deu nos Urupês. Não ficou um pra remédio dos sete mil!

10 Conservamos a ortografia da publicação utilizada, a saber: LOBATO, Monteiro. Urupês. 30ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1984.

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Dez anos mais tarde, um segundo jeca é apresentado: o Jeca Tatuzinho. Como já

mencionamos, este personagem foi difundido pelo Brasil graças à publicação de um

almanaque publicitário dos Laboratórios Fontoura. Este jeca não se diferencia do primeiro

apenas pelo diminutivo, o que conforme lembra Lajolo (op.cit.: 101) – o que em nossa

prática lingüística supõe certa afetividade entre nomeador e nomeado – mas,

principalmente, porque este jeca é criação de um Lobato preocupado com a saúde pública

do sitiante. O Jeca Tatuzinho é uma criação higienista com fins didáticos, é apresentado um

caipira que calça botinas para conviver entre os porcos. Importante lembrar que o segundo

jeca é contemporâneo do Joaquim Bentinho, de Cornélio Pires.

O terceiro tipo criado por Lobato, já em 1947 (só para aqui citar, já que é situado

numa época que estende-se ao período que dispomos a analisar) é a figura do Zé Brasil.

Uma versão civilizada, politizada do jeca. Fruto da criação de um Lobato que viajou para

os Estados Unidos, engajado na exploração de petróleo em terras tupiniquins e envolvido

com o Partido Comunista. Registra Lajolo (op. cit.:103) que Monteiro Lobato agora não é

agora patrocinado por empresas privadas, como no momento anterior; agora, seus livros são

publicados pela editora Vitória, que possui uma orientação marxista.

A maneira de perceber o caipira era, portanto, controversa naquele contexto. Há

biógrafos que apontam para uma relação conflituosa entre o ícone pré-modernista e o poeta

caipira, ainda que os ataques entre eles tenham sido sutis. Luzzi (1988:20-21) conta que

Monteiro Lobato havia reconhecido o talento de Cornélio, disse o escritor:

Tu, Cornélio, és um dos pouquíssimos que vão

ficar. Há tanta verdade nos teus tipos; tanta

vida; tanto humanismo em tua obra; tanta

beleza e originalidade em seu estilo, que estás

garantido. Estás à prova do tempo – que varre,

impiedosamente, tudo o que é medíocre.

Noutra ocasião, a do lançamento de obra que vamos analisar, portanto em 1924,

Lobato corroborou sua admiração, deixando um bilhete a Pires, na redação d’O Estado de

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São Paulo, onde o interiorano trabalhava como revisor, que dizia o seguinte: Vim para dar-

te um abraço e, ao mesmo tempo, confirmar a minha imensa admiração por sua obra,

ainda não bem compreendida.

Por outro lado, em correspondência com seu amigo Godofredo Rangel11, no ano da

publicação de Urupês, Lobato deixa entrever uma contradição sobre Cornélio Pires,

conforme apotam Saliba (op. cit.: 176) e Luzzi (op. cit.:20):

Aquilo [o caboclismo] foi fabricação histórica

para bulir com Cornélio Pires, que anda

convencido de ter descoberto o caboclo. [...] O

caboclo de Cornélio é uma bela estilização,

sentimental, poética, ultra-romântica,

fulgurante de piadas – e rendosa. O Cornélio

vive, e passa bem, ganha dinheiro gordo, com

as exibições que faz do “seu caboclo”. Dá

caboclo em conferências a 5 mil-réis a cadeira

e o público mija de tanto rir. E anda ele agora

por aqui, Santos, a dar caboclo no Miramar e

no Guarani. Ora, o meu Urupês veio estragar

o caboclo do Cornélio – estragar o

caboclismo.

Tantos são os “lobatos” quanto são os “jecas”. A citação anterior põe em xeque o

clima amistoso evidenciado pelos elogios. O Lobato fazendeiro, militante de uma saúde

pública no país e o simpatizante pelo Partido Comunista tinha outros olhares sobre o

caipira, para ser mais específico, três formas de olhá-lo, de acordo com Lajolo. Exatamente

pela diversidade de olhares ao velho paulista interiorano e ao novo paulista cosmopolita, é

11 As cartas de Lobato e Rangel foram publicadas em 1943, pela Editora Nacional. Foi a última obra publicada pela editora, cujo título e subtítulo eram “A Barca de Gleyre: quarenta anos de correspondência literária entre Monteiro Lobato e Godofredo Rangel.”

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que podemos falar de uma literatura paulista, sobre o estado de São Paulo, bastante

difundida neste período pré-modernista, mas pouco lembrada entre os cânones, com

exceção de Monteiro Lobato.

Por fim, as produções literárias paulistas do início do século passado traduzem em

suas linhas uma fusão, de forma multifacetada, no dizer de Bosi (apud Marinho (2004:57))

de uma cultura citadina e letrada com matéria bruta do Brasil rural, provinciano e

arcaico. Nesse embate entre o registro culto e popular, cidade versus campo é que surgem

essas manifestações literárias. O escritor é convocado a registrar sob sua pena o folclore de

um estado, desbravando como os bandeirantes, sertões de histórias por conhecer. Acerca da

literatura interiorana paulista, Marinho (op. cit.: 58) aponta como seu grande problema, o

fato de ainda não ter se firmado como arte coletiva, no sentido de somar diversas vozes e

faces numa expressão de grupo com ideário, estilos, ritmos capazes de lograr representar

o modo de ser caipira, bem como seu momento histórico e sua geografia, atendendo ao

ideal de a que aspira toda literatura: ser universal.

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2.3 Cornélio Pires e o maior de todos os seus causos: sua vida

Cornélio Pires nasceu no bairro de Sapopemba, em Tietê — local onde hoje se

localiza o Parque Ecológico e Museu Histórico-pedagógico que leva seu nome — no dia 13

de julho de 1884. Sua origem é de família bandeirante e monçoneiros e seus pais são

naturais da cidade de Capivari; o pai era agrimensor e a mãe do lar. Viveu toda sua infância

aprendendo a conviver e a respeitar a singeleza do homem do campo, escutando as histórias

contadas por seu pai que, talvez (in)conscientemente forjava o caráter do contador de

causos.

Já sua vida adulta foi pitoresca, conforme adjetiva um de seus maiores biógrafos,

Jofre Martins Veiga (1960), em seu livro A vida pitoresca de Cornélio Pires. O poeta

caipira, como foi chamado, viveu em várias cidades do país. Autodidata, exerceu várias

profissões dentre elas as de: aprendiz de tipógrafo; auxiliar em loja síria de tecidos, em

Laranjal Paulista; repórter do jornal O Comércio de São Paulo, na capital; colaborador do

jornal O Tietê, onde, inclusive, estréia como poeta em 1905; professor de ginástica, durante

sua estadia em Botucatu, já que fugira de São Paulo, onde opositores queriam destruir a

redação do jornal em que trabalhava; foi também radialista; trabalhou — conforme vem se

chamando em estudos anteriores — como conferencista em teatros e cinemas, uma espécie

de showman, principalmente durante a década de 20 e metade da década de 30, pois essas

conferências eram, na verdade, shows de humor, abordando a temática caipira; além, é

claro, de escritor de 23 obras.

O último tipo de trabalho realizado por Cornélio – conferencista, showman – foi

decisivo para caracterizar o tipo de literatura que ele fazia, conforme nos diz Antonio

Cândido, em prefácio à obra de Dantas (1976:11-12):

a sua maior obra foi ação nos palcos, nas

palestras, na literatura falada, que perde

bastante quando é lida. Como os oradores,

como certo tipo de poetas, como repentistas e

velhos glosadores de mote, a dele foi uma

literatura de ação e comunhão, feita para o

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calor do momento e a comunicação direta,

eletrizante, com o público.

Em menino e moço, li muito os livros

que ele publicou, bastante correntes nas

cidades do Sul de Minas onde me criei. Posso,

com um esforço de memória, reconstituir o

impacto que tinham na vida cotidiana,

contribuindo para um bom humor que ajudava

os adultos e os meninos a viverem melhor

alguns momentos.

Em seu currículo, não se pode deixar de mencionar o fato de, mesmo tendo poucos

recursos financeiros, haver sido mecenas de algumas duplas de moda de viola,

possibilitando a essas o lançamento de discos. Por esse feito, Cornélio Pires tornou

difundida a música caipira, tendo sido freqüentemente lembrado na história do gênero

musical no país. Ainda no fim de sua carreira, vencido pela mídia da sétima arte, tentou

juntar-se a ela, gravando alguns filmes.

Sua produção literária é bem eclética ademais dos contos e causos, produziu

também poemas e, nos anos 40, escreveu alguns livros de cunho espírita, haja vista sua

adesão ao espiritismo. Acrescente-se à sua produção, freqüentes colaborações em meios

periódicos de humor comuns à época, como a revista O Pirralho e Almanaque d’O Sacy, do

próprio Cornélio.

Com certeza, muito de seu êxito deveu-se à ida a São Paulo e os contatos que

manteve na capital, a começar pela pensão em que se hospedava quase que gratuitamente,

uma vez que a proprietária era sua tia, Dona Belisária, viúva do filólogo Júlio Ribeiro. Na

capital, conviveu com os jornalistas Amadeu e Rubens do Amaral, os quais além de amigos

e incentivadores de Cornélio, eram seus primos.

A obra que escolhemos para este trabalho, As estrambóticas aventuras de Joaquim

Bentinho (o Queima campo) foi sucesso de vendagem nos anos 20. Tamanho foi o êxito

que os leitores, ávidos por mais causos do Joaquim Bentinho, motivaram o autor à

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publicação de mais um novo volume, que viria a ser publicado em 1929. Até mesmo o

modernista Mário de Andrade (apud Dantas (op. cit.:297)), também folclorista, não deixou

de reconhecer o tipo criado pelo tieteense:

Porém é contigo que imagino e escrevo/ O

rodapé do meu sonhar, romance/ Em que o

Joaquim Bentinho dos desejos/Mente, mente,

remente impávido essa/Mentirada gentil do

que me falta.

Como dito anteriormente, os anos 40 foram marcados por uma produção espírita;

envolvido pela doutrina, iniciou trabalhos sociais em sua terra natal, inaugurando um abrigo

para crianças. No final de sua vida, menos atuava como conferencista, até porque o cinema

ia tomando seu lugar nos teatros.

Aos 74 anos incompletos, morria Cornélio Pires no Hospital das Clínicas, em São

Paulo, vítima de câncer na laringe, aos sete dias do mês de fevereiro de 1958.

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2.4 As estrambóticas aventuras de Joaquim Bentinho, o queima-campo

A obra que escolhemos como objeto de análise – As estrambóticas aventuras de

Joaquim Bentinho (o queima-campo) - foi publicada em 1924 pela Imprensa Methodista de

São Paulo. Para este trabalho utilizamos uma terceira edição da obra, relançada pela mesma

editora, no ano de 1927. Tal foi o sucesso que Cornélio Pires teve de lançar uma

continuação das estrambóticas aventuras. As duas obras conseguiram uma tiragem de

cinqüenta mil exemplares e, como foi reconhecido por escritores como Mário de Andrade,

Monteiro Lobato e jornalista da época, podemos dizer que a obra foi chave capaz de abrir-

lhe as portas das editoras; uma vez que chegou a vender, segundo Dantas (op. cit.:126)

quinze mil exemplares de As estrambóticas aventuras... em apenas quinze dias.

A Continuação das estrambóticas aventuras de Joaquim Bentinho foi publicada em

1929, pela Editora Nacional, uma tiragem de 15.000 exemplares, o que seria muita ousadia

exatamente no da crise mundial, seguida da Revoluções de 30 e 32. Salienta Dantas que a

produção bibliográfica corneliana foi fortemente abalada em razão daqueles

acontecimentos políticos.

A diferença entre esses dois volumes é que o primeiro trata do caipira com um olhar

mais romântico, vendo-o como o bom selvagem. Já no segundo momento, ainda de acordo

com Dantas (op. cit.:132), há na prosa de 29, um tom melancólico, saudosista,

de tristeza, em face da progressiva dissolução

da sociedade caipira, do avanço do progresso,

da técnica, das derrubadas de matas para

cederem lugar a lavouras importantes. Entre

1924 e 1929, o colono italiano, inteligente,

enérgico, empreendedor, tinha imprimido

características novas à economia rural

paulista. O rei do Café havia desalojado

também os Bentinhos sem terra ou enriquecido

seus parentes já remediados.

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Em ambos os livros há a predominância do gênero causo, cuja composição

estrutural se dá por meio das trocas de turnos entre o homem da cidade (o próprio narrador)

e o personagem título, o homem do campo. A própria forma composicional do causo já

sugere a presença de variantes lingüísticas usadas por seus respectivos falantes, o que já

impõe um estilo próprio ao gênero, fato que faz Dantas apontar para a existência de uma

língua dual. A temática comum é a mentira que os sitiantes pregam no “estrangeiro”,

produzindo, a partir daí, o humor. O narrador da cidade, um verdadeiro “caipirólogo”, nos

explica sobre a temática do causo, de acordo com Pires (1927:14):

Entre os caipiras a mentira, quasi sempre, é

um jogo de espírito. Mentem por passa-tempo,

para empulhar o próximo, principalmente se

esse próximo é da cidade. Depois de pregar

meia dúzia de mentiras a um cidadão (homem

da cidade) o caipira, no sitio, em festas, goza!

Ri gostosamente, contando aos companheiros...

Dessas mentiras é que trata o livro. O narrador, em conversa ao pé do fogo, conta

causos variados, mentiras que fazem rir e passar o tempo na fazenda. O protagonista desses

causos é Joaquim Bentinho que, no diálogo que mantém com o narrador, demais caipiras e

o leitor, segue com as histórias. No total são 15 causos contados pelo caipira, a maioria

deles tem os títulos iniciados com a expressão De como... Para fins metodológicos, assim o

numeramos:

Causo 1 De como Joaquim Bentinho não morreu á mingua, vivendo

sozinho no sitio, atacado de maleita, bexigas, e febre-amarella, ao

mesmo tempo.

Causo 2 De como Joaquim Bentinho mata perdizes “que é um destrago”.

Causo 3 De como Joaquim Bentinho apára o nariz do cunhado e

desastrosamente realiza uma operação de plástica cirurgica.

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Causo 4 De como o Queima Campo descobre um bando de macacos

“águias”.

Causo 5 De como, apicultor, Joaquim Bentinho conseguem abelhas que

produzem o dobro das abelhas communs.

Causo 6 De como um homem assustado escapa de ser devorado por uma

onça pintada em plena matta...

Causo 7 De como Nho Joaquim Bentinho virou submarino e conseguiu,

alfim, matar um gigantesco Jahú.

Causo 8 De como Joaquim Bentinho cavalgou uma anta, pescou outra e

fez curiosa viagem terrestre em canoa.

Causo 9 De como o Queima Campo, fazendo duas operações, produziu

dois aleijões.

Causo 10 De como um tio de Joaquim Bentinho faz um tiro assombroso.

Causo 11 De como o Joaquim Bentinho mata um veado a bala, a um

quarto de légua de distancia, com sua pica-pau.

Causo 12 De como Joaquim Bentinho, interrompendo o meu extase,

demonstra como se podem matar marrecos selvagens, de dia, sem

esconderijo, numa lagoa, em terreno limpo de arbustos.

Causo 13 De como Joaquim Bentinho resolve o importante problema de

engordar porco sem milho ou outro alimento, barateando o custo do

toicinho.

Causo 14 A opinião de Bentinho sobre o matrimonio.

Causo 15 A republica, na opinião de Joaquim Bentinho.

Toda essa mentirada, contada ao pé do fogo, vai revelando uma série de saberes que

o camponês detém acerca da fauna e da flora paulista, modos e costumes, da paisagem,

visões de mundo... Precede as histórias uma contextualização por parte do narrador,

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situando o leitor em seu espaço – a fazenda velha – e descrevendo detalhadamente o

personagem que irá conduzir todos os causos.

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2.5 O dialeto caipira, de Amadeu Amaral

A obra de Cornélio Pires serviu, de alguma forma, para uma tentativa de

gramatização do português caipira. A partir dela, é que a Amadeu Amaral (1920) — que,

como já dissemos era primo de Cornélio — pôde subsidiar seus estudos dialetológicos, nas

primeiras décadas do século XX. O diálogo entre o poeta caipira e seu primo favoreceu a

publicação de O Dialeto Caipira, sendo que, inclusive, a obra é dedicada a “Cornélio Pires,

o poeta caipira”. Para Cardoso (1999:236), Amaral, com essa obra, dá início ao que

classifica como sendo o segundo período do estudo da Dialetologia no Brasil, em que o

nível léxico-semântico expande aos níveis fonético-fonológico e morfossintático; e junto

com outros dois pesquisadores — Marroquim e Nascentes — voltados para o cunho

variacionista do Português do Brasil, imprimem uma nova ótica ao exame da realidade

lingüística brasileira.

A obra de Amaral é de suma importância para este trabalho, bem como para o

cenário geral da história das idéias lingüísticas do país. Essa assertiva justifica-se pelo fato

de que, certamente, Amaral, “pescou os regionalismos de verdade”, no dizer corneliano.

Buscamos, pois, nesse estudo pioneiro da dialetologia, algumas pressuposições sobre o que

Amaral entendeu por dialeto caipira.

O estudo de Amaral já apresenta a variante caipira num tom apocalíptico: Tivemos,

até cerca de vinte e cinco anos atrás, um dialeto bem pronunciado, no território da antiga

província de São Paulo. Com a modernização dos anos 20, torna-se evidente pela citação

acima, que o estudo parece ser quase que diacrônico. Essa diacronia não está ligada

somente ao tempo, mas também, ao espaço, haja vista que em época contemporânea o

primo Cornélio Pires, incentivado pelo próprio Amaral, publica sua série de livros, que

servirão de corpus para a compilação do dialeto sobrevivente em redutos afastados dos

grandes centros populacionais.

Tanto a obra de Cornélio — que apresentava um glossário ao final de seus livros —

como a de seu primo parecem ser uma tentativa de gramatização (conforme termo de

Auroux (1992)) do português caipira. Para Auroux, gramatização é a tendência em se

estruturar a língua em dois grandes pilares da tecnologia escrita: a gramática e o dicionário.

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O referido estudo sobre o dialeto caipira aponta aspectos fonéticos, fonológicos,

morfossintáticos e um vasto estudo lexicográfico.

No rol de palavras catalogadas por Amaral é freqüente a aparição de termos

indígenas e, ao tentarmos perceber a formação dessa variante regional no percurso

histórico-cultural esboçado no tópico anterior, inferiremos que são naturais marcas de

tupinismos nela, tendo em vista a matriz mameluca do caipira; portanto, falantes da língua

geral. O português foi se incorporando à língua geral, dando origem ao “dialeto caipira”,

registrado por Amaral. Interessante o registro epistolar de um bispo de Recife, escrito em

1697, sobre o falar do paulista primitivo, em que se tem como referência dos dêiticos o

bandeirante Domingos Jorge Velho (apud Basso & Ilari (2006:78))

Este homem é um dos maiores selvagens com

que tenho topado: quando se avistou comigo

trouxe consigo língua, porque nem falar sabe,

nem se diferencia do mais bárbaro Tapuya

mais que em dizer que é cristão. Metido pelos

matos, à caça de índios e índias, estas para os

exercícios de suas torpezas e aqueles para os

granjeios de seus interesses [...] nem sabe falar

[o português] [...] nem se diferencia do mais

bárbaro tapuia mais do em que dizer que é

cristão e não obstante o haver se casado de

pouco lhe assistem sete índias concubinas [...]

Para nosso trabalho, pareceu-nos conveniente um estudo acerca dos pronomes de

tratamento nO dialeto caipira. A escolha deste tópico se justifica como ilustração de trecho

da obra e também porque nos servirá como referencial na análise do ethos dos sujeitos

envolvidos nos causos, já que podem ser indícios reveladores da subjetividade manifestada

no gênero em questão.

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Segundo Amaral (op. cit.:170), o pronome mais utilizado na variante são os

derivados de vossa mercê, ou seja, vossuncê, vassuncê, vamicê, vancê, vacê, ocê, mecê. O

uso de mecê denota mais distanciamento que vacê ou vancê, os quais denotam ainda menos

solidariedade que ocê. Sobre essa última forma, o estudioso diz que se reserva para

crianças e íntimos, sendo, porém, mais usado pelos pretos que por qualquer outra gente. É

interessante notar que não se faz referência alguma quanto ao uso de você; pois, para o

autor, restringe-se somente ao uso culto.

Já sobre o uso das outras formas pronominalizadas ‘o senhor’ ou ‘a senhora’, aponta

variações em seu uso e as diferencia pelo emprego proclítico e enclítico. No caso de ‘o

senhor’ e ‘a senhora’ variam, respectivamente em: nhô, seo, seu, siô, sô e nhá, seá, sea, sia,

sá. A forma seu e suas variantes usam-se antepostos a prenomes e ocupações: por exemplo,

Seu Joaquim, Nhô Joaquim, Nhá Maria, seu padre. O uso enclítico aparece como sinhor e

sinhô são usadas como em: “Sim, sinhor” ou “Quero fala co’sinhô”. Mais uma vez, Amaral

(op. cit.:209) faz apontamentos sobre a influência africana na formação do dialeto:

Essas fórmulas, tais como se acham grafadas,

se devem aos antigos escravos negros (cuja

fonética especial, como já assinalamos em

outro lugar, diferia, em mais de um ponto, da

fonética popular dominante, ou capira) e

foram adotadas geralmente para designar os

senhores em relação aos cativo: “Vá dize pra

seu sinhô-moço que eu espero ele”. É claro

que o emprego de tal expressão é hoje raro, e

mais raro se torna a medida que se afasta no

passado a época da escravidão.

Como se vê, ficam claros na totalidade dessa “gramática do caipirês”, os muitos

empréstimos lingüísticos que compõem a constituição do “dialeto” caipira: elementos

europeus, indígenas e africanos. Hoje, a partir estudos sociolingüísticos, sabemos que não

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se trata, de fato, de um dialeto, mas de uma variante não estandartizada do Português. No

entanto, naquele tempo o termo dialeto era usado para mostrar essa variante falada pelos

caipiras. À época, a obra significa um grande salto nos estudos lingüísticos brasileiros e um

dos poucos, quiçá o único trabalho específico com a variante caipira.

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CAPÍTULO III

CENAS DA ENUNCIAÇÃO E ETHOS DISCURSIVO NO GÊNERO CAUSO

3.0 Introdução

Após termos apresentado aspectos da vida e obra de Cornélio Pires no contexto das

produções lingüístico-literárias paulistas e o discurso objeto de nossa análise, é chegado o

momento de investigarmos como se constroem as cenas da enunciação e o ethos do homem

do campo, no gênero de discurso causo.

Para isso, procedemos à observação da maneira pela qual o narrador se apresenta a

seu interlocutor como autor e organiza seu discurso, construindo cenas onde os atores

desempenham seus papéis sociais e, conseqüentemente, possibilitam a construção de

imagens dos falantes, a partir do discurso.

Como vimos no capítulo II, a imagem do homem do campo, durante o início século

XX, foi controversa e multifacetada, sobretudo, com Monteiro Lobato que, inclusive,

chegou a deixar claro — em carta a Godofredo Rangel — acerca de seu posicionamento

polêmico sobre o caboclismo que tinha intenção de bulir com Cornélio Pires.

Por isso, do ponto de vista discursivo, As estrambóticas aventuras de Joaquim

Bentinho, o queima-campo, tornam-se terreno fértil para reflexões acerca da construção do

ethos discursivo do caipira, tornando possível detectar alguma retaliação às críticas

lobatianas, embora ainda não seja este o foco de nossa pesquisa. Apesar de, à primeira vista

não parecer, o causo apresenta certa orientação argumentativa que, no dizer caipira,

“pagam a pena” serem discutidos. A polêmica no causo se instaura pelo espaço discursivo

construído por zonas de confluência entre o discurso do campo e o discurso da cidade; além

do mais, é velado nos causos cornelianos alguma defesa a seu “jeca” em oposição ao

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“primeiro jeca” encenado por Monteiro Lobato, razão pela qual perceber esse diálogo nos é

interessante.

Recortamos, então, como critérios para nossa análise, as estratégias lingüístico-

discursivas de que o enunciador lança mão para legitimar seu dizer no campo literário,

considerando alguns planos que integram sua semântica global. Esse questionamento nos

remete à busca sobre como o enunciador constrói as cenas que funcionam como

legitimantes de uma situação de enunciação, um código linguageiro e um ethos discursivo

(Maingueneau, 2006:47). Dentre essas estratégias próprias do código, optamos por

examinar o funcionamento das pessoas do discurso na variante caipira, as quais são capazes

de nos oferecerem pistas sobre a construção dos sujeitos envolvidos na cena.

Como analisar a obra em sua totalidade não seria viável para este trabalho,

escolhemos três causos que julgamos pertinentes por apresentarem questões bem marcadas

referentes ao contexto da República Velha. Trata-se dos causos 1, 3 e 15. Além desses,

foram também tomados como objeto de análise os capítulos que precedem os causos

propriamente ditos, que apresentam o autor e sua obra. Uma ou outra referência aos outros

causos também faremos durante a análise, todavia centrar-nos-emos nos três selecionados.

O causo 1, De como Joaquim Bentinho não morreu á mingua, vivendo sozinho no

sitio, atacado de maleita, bexigas, e febre-amarella, ao mesmo tempo, traz problemas de

saúde pública enfrentados naquele tempo e a forma humorística que o enunciador apresenta

para resolvê-los.

O terceiro causo — De como o Joaquim Bentinho apára o nariz do cunhado e

desastrosamente realiza uma operação de plástica cirúrgica — brinca com a modernidade

ao tratar de um assunto novo para aquele também novo século: a cirurgia plástica. Fica

evidente nesse causo, o embate entre cidade e campo, evidenciado pela presença da

tecnologia e do desenvolvimento da ciência.

Já o causo 15 — A Republica, na opinião Joaquim Bentinho — apresenta estrutura

diferente dos outros dois por não fazer menção a um tempo transcorrido, dando margem à

narração de fatos passados. Nesse discurso, o risível, repleto de argumentatividade, é

construído no diálogo entre o narrador e o caipira, por meio de metáforas que este último

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faz, utilizando elementos de seu universo para sustentar seu posicionamento em relação à

República.

Parafraseando nosso autor que, ao início de alguns textos utiliza a comanda “vamos

ao caso”; dizemos, então, vamos à análise.

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3.1 Cornélio Pires e a construção do causo

Fazer uso de um discurso literário implica, segundo Maingueneau (2006a:151-152),

assumir posicionamentos, isto é, escolas, doutrinas, movimentos... Tais posicionamentos

não são apenas doutrinas estéticas a serem seguidas; são indissociáveis dos lugares sociais

de que os escritores fazem parte, o estatuto de seus autores e as práticas que eles investem e

pelas quais eles são investidos.

Da mesma forma que um médico é revestido de autoridade para prescrever algum

medicamento12, o escritor tem de revestir-se de um posicionamento capaz de legitimar o

seu discurso como sendo literário. A diferença entre o médico e o escritor é que o primeiro

pode comprovar sua autoridade com um diploma, já o escritor, para determinar quem tem o

direito de enunciar, um posicionamento literário define à sua própria maneira quem é um

autor legítimo.

As estrambóticas aventuras de Joaquim Bentinho são escritas num momento em que

Cornélio Pires já conta com representatividade no meio literário paulista, sobretudo por

meio dos seus shows que dava pelo Brasil e por conta dos seus sete livros que lançara:

Musa caipira (1910), O Montouro (1911), Versos (1912), Tragédia cabocla (1914), Quem

conta um conto (1916), Cenas e paisagem da minha terra (1921) e Conversas ao pé do

fogo (1921). A oitava obra, As estrambóticas aventuras..., viria três anos depois. Veiga

(1960:109) conta-nos a emergência dessa obra num período áureo do já consagrado autor:

Em princípios de 1924, Cornélio Pires esteve

em Tietê para descansar da longa viagem que

fizera. A ociosidade e o interesse do público

por suas obras, que já estavam todas

esgotadas, levaram-no a preparar outro livro.

Desta vez ele aproveitou as histórias contadas

por Joaquim Bentinho, o caipira mais

mentiroso da zona Sorocabana. Segundo

depoimento de respeitáveis tieteenses, o 12 De acordo com Foucault, a propósito da fala médica em Arqueologia do Saber.

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personagem de Cornélio existiu realmente e

viveu bom tempo em Tietê.

“Joaquim Bentinho, o Queima Campo”, era

título primitivo do livro, mas Amadeu Amaral,

ao folhar os originais, mudou-o para “As

estrambóticas aventuras de Joaquim Bentinho

(o Queima Campo)”

Como se não bastasse a popularidade de Cornélio Pires, cujos modestos volumes do

bardo matuto esgotavam-se em trinta dias (Veiga, op. cit.:109), o escritor sentia a

necessidade de auto-afirmação como autor. Como demonstraremos pela leitura analítica da

introdução de seu livro:

Excerto 1

Escrevendo para a “minha gente”, para os “meus caipiras”, quer da sejam da

cidade quer dos sítios, desde 1910 me dedico ao regionalismo, e não procuro “fazer

literatura” para a alta critica...

A pretesto de narrar casos e mentiras, registo o linguajar roceiro, expendo

considerações ligeiras sobre as necessidades dos nossos caipiras e procuro dar uma

pallida ideia da nossa gente, da vida rustica e da nossa paizagem.

Talvez a obra não sáia ao sabor de certos leitores...

Paciencia... Quem dá o que tem....

O que posso asseverar é que mestre da estatura de Candido Figueiredo, Leite

Vasconcellos, Carolina Michaelis e notaveis lexicographos brasileiros, podem “pescar”

regionalismos de verdade nas paginas que se seguem.

E é só...

O AUTOR.

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A primeira palavra do autor é de estabelecer, logo de início, contato com seus

interlocutores. Esses, a quem chama de “minha gente”, devem ser os caipiras; no entanto, o

termo é expandido a caipiras da cidade e do sítio. Mas o que será que o autor quis nos dizer

com “caipiras da cidade”? Duas leituras nos são possíveis: 1) aqueles que praticaram o

êxodo rural e passaram a viver nas cidades; 2) aqueles que mesmo não sendo moradores

dos sítios, admiram e gostam desse modo de vida.

Estabelecido esse contato com sua gente, o enunciador apresenta seu

posicionamento: desde de 1910 me dedico ao regionalismo, e não procuro “fazer

literatura” para a alta crítica. Paradoxalmente, o enunciador assume um posicionamento

literário – o regionalismo – mas nega seu pertencimento a um grupo que faz literatura para

ser alvo de crítica. Desse modo, o enunciador tenta se isentar das críticas literárias, já que

sua obra tem outros dois objetivos: registrar o linguajar roceiro e expor sobre as

necessidades dos caipiras e dar uma pallida ideia da nossa gente, da vida rústica e da

nossa paisagem. Os causos e as mentiras contadas são apenas pretextos para isso. Temos,

então, uma literatura como um meio para falar dos caipiras e não com um fim nela mesma.

Aqui o possessivo em primeira pessoa, do primeiro parágrafo, passa de singular a plural

nesse trecho; isso sugere que o autor conquistou a adesão de seu público que, juntamente

com ele, envolvidos num sentimento de pertencimento à gente, à vida rústica e à paisagem.

A introdução à obra é atravessada por uma questão polêmica e são dadas respostas a

essa questão, na materialidade lingüística. Ainda segundo Veiga, o biógrafo corneliano, em

continuação à citação anterior, diz:

o autor respondeu às críticas que certas

figuras do alto coturno da literatura faziam

aos seus livros, quer do ponto de vista

estilístico, quer a respeito dos temas. Está

claro que as críticas partiam de autores sem

público, cujas obras apodreciam nas

prateleiras ou depósito das livrarias...

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Apodrecerem nas livrarias não era o caso das aventuras de Joaquim Bentinho, dado

o sucesso de vendagem na época. Em resposta aos críticos, o enunciador pede paciência e

deixa por completar o dito popular “quem dá o que tem...”

Se Cornélio Pires já estava consagrado como autor, por que ainda apresentava sua

obra num tom de auto-afirmação? Essa necessidade parece decorrer da justificativa acerca

do emprego da variante caipira. Sua obra não serviria somente para contar casos e mentiras;

serviria como corpus, para que competentes lingüistas de seu tempo – Cândido Figueiredo,

Leite de Vasconcellos, Carolina Michaelis, entre outros – pudessem “pescar” ali, naquela

obra, usos lingüísticos da genuína variante caipira, no dizer do enunciador: regionalismos

de verdade. O enunciador faz, implicitamente, um convite aos estudiosos para que sigam o

que já havia feito Amadeu Amaral, em 1920. Ao enunciar “regionalismos de verdade”,

deixa entrever que sua obra não é retrato estereotipado do caipira, é realmente uma

fotografia lingüística do homem do campo que habita na zona Sorocabana, que é legitimado

pelo uso de um código linguageiro.

Nessa introdução à obra, fica clara a vocação enunciativa de Cornélio Pires. Essa

vocação é entendida, nos termos de Maingueneau (op. cit.: 152), como o processo através

do qual um sujeito se “sente” chamado a produzir literatura. Na República Velha em que

vivia Cornélio, o sentimento ufanista e regionalista, associados à “moda caipira” da Belle

Époque, os encontros na Revista do Brasil, às imagens polêmicas do Jeca Tatu de Monteiro

Lobato, às palestras que dava pelo Brasil... Tudo isso fez com o que o autor se sentisse

“chamado” a produzir literatura, investindo, no caso da obra em questão, no gênero de

discurso causo.

O excerto introdutório à obra também funciona como meio de construção discursiva

da cena englobante, isto é, o enunciador marca o território do tipo de discurso a que

pertence sua obra, no caso o discurso literário. Essa cena englobante torna-se possível em

razão, principalmente, da marca de regionalismo, que reforça um posicionamento literário.

Por outro lado, há uma negação do discurso literário, quando o enunciador diz não “fazer

literatura” para a alta crítica e que os casos e mentiras narrados são apenas pretextos. Ainda

que o enunciador negue “fazer literatura”, sugerindo certa marginalização aos cânones

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literários de sua época, ele se apresenta como autor, inclusive assinando a introdução como

“o autor”. Esse ato vem a reforçar o posicionamento regionalista, juntamente com o gênero

investido na obra, instituindo seu discurso no campo literário.

A apresentação do autor é, pois, uma forma de Cornélio Pires se legitimar como

autor e legitimar seu próprio discurso, construindo uma cena englobante capaz de

caracterizar seu discurso no tipo literário. Esse movimento faz-se necessário, uma vez que,

conforme Maingueneau (2006.:89), para produzir enunciados reconhecidos como

literários, é preciso apresentar-se como escritor, definir-se com relação às representações

e aos comportamentos associados a essa condição.

Além da construção da cena englobante, outra cena é construída pelo discurso: a

cena genérica. Isso compreende a apresentação do gênero de discurso sobre qual irá

investir.

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3.2 O causo como um gênero de discurso: a cena genérica

Os causos podem apresentar temáticas variadas, estruturas composicionais

relativamente fixas e uma variante comum à região de origem. Os temas, segundo Oliveira

(2006:113), podem se enquadrar em quatro tipologias: lúdica, crítica, de revide e

aterrorizante. Para este trabalho, escolhemos dois causos lúdicos e um com temática crítica.

Quanto à estrutura, os causos da amostra são apresentados a partir da conversa ao pé do

fogo; desse modo, se estruturam pelas trocas de turno entre aqueles que participam da

dêixis enunciativa: um narrador (homem da cidade) e os caipiras, dentre eles o

protagonista. A variante lingüística empregada é um dos fatores que diferem o gênero de

uma simples piada, por exemplo, marcando um estilo próprio e posicionamento

regionalista.

A primeira pista que o enunciador nos dá sobre o gênero predominante na obra

encontra-se no seguinte trecho do excerto de apresentação: A pretesto de narrar casos e

mentiras, registo o linguajar roceiro... A partir da citação, percebemos que o gênero mais

investido na obra será a narrativa de casos e mentiras. Os dois termos acabam apresentando

certa redundância, já que mentiras poderiam ser incorporadas a casos, havendo uma relação

de pressuposição entre os termos; no entanto, o uso de “mentiras” acaba se justificando até

mesmo para legitimar o estatuto do protagonista da obra, Joaquim Bentinho, que é

“queima-campo”, ou seja, “mentiroso”, na variante caipira, o qual contará fatos ocorridos

com ele ou dos quais foi testemunha.

O emprego da mentira é explicada pelo enunciador, conforme o excerto 2:

Excerto 2

Entre os caipiras a mentira, quase sempre, é um jogo de espírito.

Mentem por passa-tempo, para empulhar o proximo, principalmente se esse

proximo é da cidade.

Depois de pregar meia duzia de mentiras a um cidadão, (homem da cidade) o

caipira, no sitio, em festas, goza! Ri gostosamente, contando aos companheiros:

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— Ah! Impuiei um bobo da villa... Contei pr’ele um deluvio de puía e o bocó

aquerditô!

Ha mentiras de troça e há mentiras de verdade...

Ha caipiras mentirosos de uma fecundidade de imaginação assombrosa! Não

sabendo escrever, não podendo escrever suas novellas e romances, criações próprias, o

caipira desanda a mentir.

Mas o Joaquim Queima-Campo mente de verdade! Quer e faz questão de ser

acreditado!

A mentira é aí apresentada como uma prática social comum entre os caipiras.

Mentir é um recurso para passar o tempo, enganando o próximo. Para Oliveira (2006:102),

o contador do causo tem de usar vocabulário que dê cunho de verdade ao causo, por mais

fantástico, insólito ou inacreditável que pareça.

Fica evidente, no excerto, a relação polêmica entre campo e cidade: mentir torna-se

prazeroso principalmente se esse proximo é da cidade. Torna-se perceptível aí que o

“cidadão” é um estrangeiro que, embora apresente supremacia sobre o homem do campo,

não sabe tanto quanto ele, sendo capaz de ser enganado pela astúcia do camponês. Eis aí

uma contra-imagem do jeca tatu doente, passivo, de Monteiro Lobato. Esse caipira tem, na

mentira, um poderoso recurso para o entretenimento: enganar os homens da vila. O

enunciador ainda especifica dois tipos de mentira: as de troça, ditas somente para fazer rir;

e as de verdade, que não podem ser contrariadas por quem conta, já que são ditas para

serem aceitas como verdadeiras. A mentirada de seu personagem, o Bentinho, é exatamente

essa última. E, para dar à mentira o estatuto de verdade, o tipo criado faz uso de estratégias

que veremos mais adiante.

E mais: a mentira nos é apresentada como um gênero oral, substituto da literatura

escrita que há na cidade, de acordo com o penúltimo parágrafo de excerto. Como não há,

nas comunidades caipiras, o domínio ou práticas de letramento, as histórias orais são

formas de registrar os costumes, a paisagem da gente roceira. Daí, inferimos pela existência

de uma instância retextualizadora (do oral para escrito) que é inerente ao gênero, sobretudo

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se considerarmos, conforme já apontou Veiga (1960), que Joaquim Bentinho, de fato,

existiu.

Assim, a mentira com pretensões de parecer verdade é que estabelece o “jogo de

espírito” entre os caipiras que, reunidos ao pé do fogo, ficam:

Excerto 3

Contanto histórias de assombrações e casos de almas de outro mundo, ou

narrando episódios e casos engraçados da vida roceira...

Eis no excerto 3, os gêneros orais que circulam ao pé do fogo. Os causos de mentira

são específicos às Estrambóticas Aventuras de Joaquim Bentinho... Sobre os dois primeiros

gêneros – histórias de assombrações e casos de alma de outro mundo – o autor, em sua 3ª

edição, acrescenta uma nota de rodapé, contando que esse tipo de narrativas já foram

contemplados em seu outro livro, Conversas ao pé do fogo. Dentre as mentiras de

Bentinho, poderíamos incluir os casos engraçados da vida roceira.

O que nos motiva a chamar as mentiras de causos são as expressões do narrador ou

do personagem, que indicam previamente o gênero ao interlocutor. Oliveira (op. cit.:103)

diz que ocorre uma espécie de “chamamento” de atenção à escuta, capazes de remeter para

o discurso de um eu/aqui/agora. Listamos os seguintes “chamamentos” na obra, conforme o

quadro a seguir:

CAUSO MARCA LINGÜÍSTICA INDICADORA DO GÊNERO QUEM ENUNCIA

Causo 3 Vamos ao caso!

O causo da carne pega é o seguinte:

Narrador

Causo 5 Mas, vamos ao caso... Narrador

Causo 6 Há desses casos.

— O mió vô ie conta!

Narrador e Joaquim

Bentinho

Causo 8 — Puis ta ahi um causo verdadero, taliquá, e que Joaquim Bentinho

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iê vô conta.

Causo 9 O Queima campo narrou mais um caso de plástica

cirurgica...

Narrador

Causo 11 Eis um dos casos. Narrador

Vale ressaltar que o causo opera uma transformação do anti-herói para herói, em se

tratando do caipira. Como vimos, o caipira apresenta-se como o superado que se supera no

desenvolver da narrativa. Isso faz com que papéis antitéticos sejam, de alguma forma,

sugeridos na constituição da história, conforme lembra Oliveira (op. cit.:103), destacam-se

aqueles que se mostram como antítese, como o interiorano e o cidatino, o poderoso e o

fraco, o dominador e o dominado, mas no paralelismo desenvolvem-se mais os defeitos do

mais forte para destacar o valor do mais fraco.

É evidente o uso da variante caipira até mesmo para nomear o gênero em questão:

para o narrador, caso; para o personagem, causo. Evidentes também se tornam os atores

envolvidos na cena genérica: um mentiroso que conta seus causos ao homem da cidade e os

demais caipiras que ali se aglomeram ao pé do fogo.

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3.3 A cenografia no gênero causo: espaço e tempo empíricos e discursivos

Ademais das cenas englobante e genérica, o enunciador dos causos cria outros

espaços que enredam o leitor num outro espaço (topografia), num outro tempo

(cronografia), criando uma nova dêixis empírica e discursiva. Tais espaços dizem respeito a

quem Maingueneau (2006a.:252) tem chamado de cenografia, conforme:

o leitor vê atribuído a si um lugar e uma cena

narrativa construída pelo texto, uma

“cenografia”. O leitor se vê, assim, apanhado

num espécie de armadilha, porque o texto lhe

chega em primeiro lugar por meio de sua

cenografia, não de sua cena englobante ou de

sua cena genérica.

Tanto é que o texto literário começa enredando o leitor em sua armadilha, que As

estrambóticas aventuras... começam pelo narrador, situando a topografia e cronografia em

que se encontra:

Excerto 4

Cá estou de novo na “Fazenda Velha”, onde ouvi, ha tempos, as “Conversas ao pé

do fogo”.

Estamos em pleno inverno, o “ tempo de friu”, na expressão da boa gente roceira.

No sul de S. Paulo, nesta época, os dias são mais curtos, e o caipira, ao contrario

do que certos escriptores asseveram, provando não ser vadio, diariamente lamenta a

curteza do dia, que “não dá pra nada... Malemá se começa o serviço, dia cabo, e a noite

chega de sopetão”.

É entre os bons roceiros que venho passar o inverno.

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Na sala sem forro, de paredes negras, carcomidas aqui e alli , mostrando as ripas

de taquara, quaes estranhas e luzidias costelas, crepita o fogo desde a madrugada, ora

fumarento, enegrecendo tecto e paredes, ora alegre, em labaredas vivas e irrequietas. No

meio do dia, entre o almoço e o jantar, só fumega o “guarda fogo”, grande tição que

reanimará a fogueira ao entardecer.

Ao redor desse ponto de reunião, emquanto os mais moços vão á roça, ficam os

velhos caboclos e pretos, estes restos da escravidão, pacientes e asmáticos esperando o fim

da vida.

O frio força-me a dar um descanso á velha rede, em que ora só me deito na força

do sol, nos silencio do “sitio”, a observar os picumans pendentes de velhos caibros de

palmito e ripas esfiapadas, pingentes de fuligem baloiçantes ao ventinho impertinente do

sul, que tudo regela e irrita.

Ao entardecer, á hora da merenda, a pobre sala se anima.

Cada roceiro que chega do serviço, arria num canto o seu feixe de lenha, catada na

tigüera onde há poucos existiam roças que foram colhidas.

E a noite desce. Eis-nos, emfim, reunidos ao pé do fogo, contando historias de

assombrações e casos de almas do outro mundo, ou narrando episódios e casos

engraçados da vida roceira, entremeados de hun-huns de negros velhos e negras

cadeirudas e pimponas, e chiis de caboclos vizinhos, que vêm “bater taquara” até tarde ou

“filar prosa” do moço da cidade que sabe coisa “cumo quê...”

O pessoal está reunido.

Lá fora o vento uiva e resminga no beiral da casa velha, emquanto grunhem e

choram os porcos no chiqueiro, amontoados, procurando, os magros, quente aconchego

entre os rotundos cevado, que protestam em bufos similhantes a tosses roucas.

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Cá dentro, ao pé do fogo, estão os velhos pretos, “tios” Romualdo, Militão,

Ponciano, o bôa e pesadona tia Policena; as sacudidas Zabé, Flora, Gertrudes; os guapos

Misael, Terenciano e Ignácio; as crias, o bom velho, caipira branco, Nho Thomé,

veneravel chefe da Fazenda Velha, e os caboclos da vizinhança que vêm “lavar

cachorro...”

Do povo que se reúne ao pé do fogo, tiro por conta o Joaquim Bentinho, o rei dos

caipiras mentirosos, apellidado o....

QUEIMA-CAMPO.

O excerto acima é propriamente o primeiro capítulo do livro. Percebemos como o

enunciador, com seu discurso, constrói uma cenografia, uma dêixis empírica. A topografia

criada pelo enunciador é inicialmente materializada pelos dêiticos Cá, estou na Fazenda

Velha. Essa topografia é um lugar discursivo propício para a colheita de histórias, é o

mesmo lugar onde o enunciador – mais uma vez se legitimando como autor e dando a

entender como já consagrado pelo público – faz referência à outra obra sua, as “Conversas

ao pé do fogo”.

A topografia da fazenda é ainda mais especificada a um cômodo da velha casa,

onde estão os caipiras: a sala sem forro, de paredes negras... Nesse lugar é que os sitiantes

se escondem do frio e se reúnem para contar causos. A menção ao inverno, tempo de friu

nos remete a uma cronografia empírica da cena, o inverno. Até uma sonoridade é sugerida

pela descrição, a sala é o lugar interno e quente; os únicos sons possíveis naquele lugar são

os das histórias contadas, das tosses, dos pedidos de silêncio e dos porcos que roncam no

chiqueiro.

A cenografia criada pelo discurso nos mostra um hábito roceiro nos dias de inverno.

Isso nos permite dizer que ela se apóia em cenas validadas, isto é, cenas já instaladas na

memória coletiva, seja a título de modelos que se rejeitam, seja a títulos de modelos que se

valorizam, de acordo com Maingueneu (2008a:52). A conversa ao pé do fogo é uma cena

validada, instalada positivamente na cultura caipira.

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Percebemos uma seqüência do dia que é curto demais para tantos afazeres. O fogo é

o companheiro de todos os momentos do dia, ele acaba funcionando como um relógio ao

modo de vida rústico do camponês; por ser acesso todos os dias é que as paredes estão

enegrecidas sempre. O fogo se acende pela madrugada, quando o roceiro já levanta; entre o

almoço e o jantar, só fumega um “guarda fogo”, um pedaço de lenha de grandes dimensões

que se mantém acesso, um tição que sustentará a fogueira da noite; ao entardecer, os

trabalhadores rurais trazem os feixes que animarão o “guarda fogo”; à noite, fogo e sala

estarão animados, ouvindo as histórias dos caipiras.

A cenografia é, portanto, fundadora da obra literária e motor de seu funcionamento.

No dizer de Maingueneau (2006a: 253)

a cenografia é ao mesmo tempo origem do

discurso e aquilo que engendra esse mesmo

discurso; ela legitima um enunciado que, em

troca, deve legitimá-la, estabelecer que essa

cenografia de onde vem a fala é precisamente

a cenografia necessária para enunciar como

convém.

A partir da cenografia é que o uso da variante caipira torna-se justificado e

adequado a ela. É pela cenografia que atores são apresentados ao leitor, tornando possível

os efeitos de sentido de um texto. Em troca, uma situação de enunciação é construída,

tornando-se possível a emergência de discursos. Desse modo é que, dentre os caipiras

reunidos na sala ao pé do fogo, o enunciador destaca Joaquim Bentinho, o queima-campo,

com quem, na cenografia criada, irá alternar seu turno conversacional, dando-lhe a palavra

para contar seus causos. Essa troca de turnos só se faz possível porque uma cenografia foi

criada. E, uma vez criadas as cenas da enunciação, os causos narrados poderão remeter a

outros espaços e a outros tempos, criando uma nova cenografia, remetendo o leitor a

paratopias, embora permaneça ancorado à cenografia inicial, a fazenda.

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Para além de um espaço físico (a fazenda) e um tempo cronológico (a noite de

inverno), a cenografia criada nos envia a um outro espaço e a um outro tempo. Um espaço

discursivo da confraternização entre os roceiros, após um árduo dia de trabalho, é nesse

espaço que reinam as histórias que povoam o livro e o imaginário dos sitiantes. O novo

tempo é o tempo do lazer, da descontração, após o curto dia passado, em razão dos afazeres

no campo.

Vamos, então, ao estudo da construção do sujeito Joaquim Bentinho como

protagonista da cenografia criada, percebendo ali pistas para a construção do ethos do

caipira, na Primeira República.

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3.4 Um caboclinho mirradinho... A construção do sujeito no causo

A divisão dos capítulos de As estrambóticas aventuras de Joaquim Bentinho, o

queima-campo é disposta por reticências ao início do título do novo capítulo, de modo a

sugerir uma continuidade ao que já foi dito no capítulo anterior. Como no excerto 4, em que

o narrador enuncia: tiro por conta o Joaquim Bentinho, o rei dos caipiras mentirosos,

appellidado o... Em seguida, o título do capítulo seguinte é QUEIMA-CAMPO. Essa

estrutura sugere-nos uma conversação, sem interrupção para capítulo, uma conversa ao pé

do fogo. Nos capítulos seguintes, é apresentado ao leitor o protagonista da obra.

A apresentação começa por um esclarecimento acerca do apelido e considerações

sobre o hábito de mentir entre os roceiros. Sobre a mentira, já tratamos no tópico anterior,

ao descrevermos a cena genérica. Sobre o mentiroso, trataremos agora. Aquele que mente,

no campo, é conhecido por duas expressões: queima-campo e pegador de irara.

Excerto 5

“Queima-Campo”, entre os caipiras, é o individuo que, a propósito de tudo, e até

fóra de proposito, tem um caso a contar, uma mentira engatilhada.

A origem do cognome é o caso de um individuo que, após a descripção de um

incêndio de mata, em que o fogo pulou um rio e começou a queimar um campo, deixou a

coisa nesse pé e pegou uma variante, descambando para outros casos noutros terrenos...

Cada vez que o interrompiam perguntando pelo fogo, respondia elle: “o campo tá

queimano” e assim varou a tarde, a noite, e , já noutro dia... “o campo tava queimano”, e

talvez, para elle, até hoje o fogo não tenha sido cercado.

Como se vê, a justificativa ao apelido se faz por uma história e por uma história que

desobedece, para usar um termo da Lingüística Textual [segundo Charrolles (1978) apud

Costa Val (1994)], ao requisito da não-contradição. Charrolles considera que um texto

coeso e coerente deva satisfazer a quatro requisitos básicos: repetição, progressão, não-

contradição e relação. A meta-regra da não-contradição volta-se para o princípio textual da

coerência e diz respeito ao que deve ser observado tanto no âmbito interno quanto no

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âmbito das relações do texto com o mundo a que se refere, evitando contradições

comprometedoras da coerência textual. No caso dos causos, como as histórias contadas são

passíveis de contradição e não obedecem, portanto, àquela meta-regra, o sujeito contador é

rotulado como mentiroso, queima-campo.

O outro apelido também é justificado a partir de uma história que contraria a meta-

regra da não-contradição, uma vez que não há a observação de um diálogo com questões

ligadas ao âmbito das relações do texto com o mundo caipira. A irara é um animal de

hábitos solitários e, segundo causo do mentiroso, diz ter visto um bando delas. O

enunciador apresenta o contador de causo como esse mentiroso, que atrai público nas

situações da vida rural, como o muchirão sobre o qual já tecemos algumas considerações no

capítulo II.

Após caracterizar esses tipos existentes nas comunidades rurais, o enunciador

apresenta o seu personagem:

Excerto 6

... JOAQUIM QUEIMA CAMPO

É um caboclinho mirradinho, olhinhos vivos, barbica em tres capões: os dois de

banda e um no queixo; bigodes podados a dente, desiguaes e sarrentos; nariz de bodoque,

aquilinom recurvo, fino, entre bochechinhas chupadas; dois dentões amarellos, os caninos,

que só apparecem quando ri, quaes velhos moirões de porteira abandonados; rosto em

longo triangulo; cabeçudinho; cabelos emaranhados; orelhinhas cabanas, cada qual

suportando o seu toco de cigarro amarellentos e babados.

De camiza, de algodão riscado, aberta ao peito, deixa ver pendurada no magro

pescoço de cordeveias salientes, uma penca de “bentinhos”, favas de Sto. Ignácio e patuás

com rezas que servem para “fechar” o corpo e evitar mordedura de cobras.

Baixinho, miudinho, desnalgado, perninhas finas e canellas luzidias, brilhantes aos

reflexos do fogo, ao pé do qual nos reunimos todas as noites, o Joaquim Bentinho é um

cerelépe, espertinho e perereca...

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Observei que, como os outros roceiros, traz uma das pernas da calça arregaçada

mais alta que a outra. Porque será? Depois de muito matutar, descobri que é para evitar

que o enrodilhado de uma perna se esfregue no outro, ao ser mudado o passo, rustindo e

estragando a roupa...

A seqüência anterior é, predominantemente, descritiva. Ali temos um retrato feito

com palavras, muitas próprias do código linguageiro pertencente ao caipira; retrato, por

sinal, com traços de afetividade, dados os recorrentes usos do diminutivo como em:

caboclinho, mirradinho, olhinhos, barbica, bochechinhas, cabeçudinho, orelhinhas,

baixinho, muidinho, perninhas. O discurso aponta para uma corporalidade e uma

indumentária do sujeito e essa descrição faz com que tenhamos uma imagem do falante,

antes mesmo que ele comece a falar, trata-se do que Maingueneau (2008) tem chamado de

ethos pré-discursivo. No primeiro e no terceiro parágrafos, predomina-se uma descrição da

corporalidade, já o segundo e quarto remetem a indumentária. Esse ethos pré-discursivo é

reforçado por um texto não-verbal, constante na folha de rosto da obra, um desenho do

caricaturista Voltolino, em que temos o caipira na posição de cócoras, descalço, toco de

cigarro à boca, chapéu de palha, possivelmente picando um fumo. À sua frente, um homem

com as características de Cornélio Pires, de terno, um possível chapéu de panamá, calçados,

sentado a um tronco, com um caderno ou resma a mão como alguém que registra as

histórias do caipira de cócoras.

Sobre essa posição, cócoras, acreditamos ser bem estereotipada em relação ao

caipira. Monteiro Lobato (1984:147), em seu polêmico artigo Urupês [1918] também

revelara um retrato do caipira nessa posição:

...entre as raças de variado matiz, formadoras

da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro

recente e o aborigene de tabuinha no beiço,

uma existe a vegetar de cócoras.

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E segue retomando a posição do jeca:

Quando Pedro I lança aos ecos o seu grito

histórico e o país desperta estrovinhado á crise

duma mudança de dono, o caboclo ergue-se,

espia e acocora-se de novo.

Vejamos a folha de rosto da 3ª edição, de 1927; capa da 1ª edição de 1924.

Imagem 01

Ao considerarmos a imagem e o diálogo que ela estabelece com o texto, fazemos

isso por compreender o texto como uma prática intersemiótica do discurso, em que outros

códigos, pertencentes a outros sistemas semióticos, são levados em conta no processo de

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produção de efeitos de sentidos possíveis, comandados por uma semântica global, segundo

propõe Maingueneau (2007).

Tanto a descrição de Cornélio quanto o desenho de Voltolino ativam no leitor

estereótipos sobre o ser caipira. A prática intersemiótica remete o leitor a um mundo ético

construído pela cenografia. No entanto, esses índices lingüísticos não são suficientes para

construir um ethos efetivo; esse se dará pelo diálogo entre o ethos pré-discursivo (ou

prévio) e o discursivo (ethos dito e mostrado), os quais funcionam como links a estereótipos

ligados a mundo éticos. Para chegarmos ao ethos discursivo e suas instâncias, temos de

buscar elementos lingüísticos reveladores do “dito”, sugerido e do “mostrado” pelo

discurso em relação à imagem do caipira, por meio dos causos que Joaquim Bentinho nos

contará. É importante lembrar que não só a corporalidade, o caráter e a indumentária do

personagem devem ser levados em contas, mas também, o tom com que ele se enunciará.

Para tal, há a necessidade de estudar cada causo, percebendo como o caipira é apresentado.

Então, vamos aos causos.

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3.5 Cá estou eu na fazenda velha... A construção da cenografia de três causos

Como dissemos, o narrador está na fazenda, ao pé do fogo com outros caipiras. Os

causos de Joaquim Bentinho vão surgindo à medida que insights surgem e o mentiroso não

deixa de contar mais uma das suas. Escolhemos aqui três causos, a fim de depreender de

sua semântica global, a construção das cenografias novas que emergem do gênero; para

depois, observarmos marcas que possam “dizer” ou nos “mostrar” uma imagem do caipira.

Os causos selecionados para análise são os seguintes:

CAUSO 1: De como Joaquim Bentinho não morreu á míngua, vivendo sozinho no sitio,

atacado de maleita, bexigas, e febre amarella, ao mesmo tempo.

CAUSO 3: De como Joaquim Bentinho apara o nariz do cunhado e desastrosamente

realiza uma operação de plástica cirúrgica.

CAUSO 15: A República, na opinião de Joaquim Bentinho

Vamos a eles.

3.5.1 CAUSO 1: Joaquim Bentinho frente a um problema de saúde pública

As condições de produção do causo 1 são elucidadas se relacionarmos à

necessidade constatada de sanitarização e higienização rural, como uma das questões mais

provocantes na Velha República. A luta pelo saneamento ganhou as páginas dos jornais da

época, denunciando problemas de saúde pública ainda irresolutos no país.

Durante esse período, sobretudo após a primeira grande guerra, a produção literária

tinha, como vimos no capítulo II, marcas de um nacionalismo e um sentimento de

construção de uma identidade nacional. Segundo Santos (1985:194),

Havia duas correntes de pensamento

nacionalista. Uma sonhava com um Brasil

“moderno” e atraía intelectuais que viam no

crescimento e progresso das cidades

brasileiras os sinais da conquista da

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civilização. A outra corrente preocupava-se em

recuperar no interior do país as raízes da

nacionalidade, e buscava integrar o sertanejo

ao projeto de construção nacional.

Na virada do século passado, o incentivo político à imigração era grande no país, o

que, inclusive, colaborou para o processo de marginalização do caipira e do negro, cuja

mão-de-obra fora substituída pelo colono, favorecendo um processo de branqueamento da

população. No entanto, o surto de febre amarela nos portos afastava os imigrantes europeus

do sonho de “fazer a América”. Pensando nisso, é que brasileiros, como Oswaldo Cruz,

iniciaram uma campanha sanitarista por volta dos primeiros anos de 1900. Essa fase é

conhecida como uma primeira – a fase Oswaldo Cruz – a próxima viria com grandes

expedições médicas sertão a dentro. Essas expedições, iniciadas por Arthur Neiva,

contavam com simpatizantes que viam no interior do país a força maior da nacionalidade,

conforme Santos (op. cit.:195). Pertenciam a esse núcleo, engenheiros, sanitaristas, médicos

e escritores brasileiros tais como Saturnino de Brito, Belisario Penna, Carlos Chagas,

Monteiro Lobato que identificaram um dos problemas mais graves que afetavam as cidades

brasileiras e sua população em geral ao longo da República Velha: a falta de abastecimento

de água potável e, principalmente, de uma rede de esgotos sanitários.

Monteiro Lobato começa sua segunda fase “jeca”. Agora ele vê o roceiro como

abandonado pelo Estado e julga que somente com medidas profiláticas com vistas à saúde e

à educação do povo é que poder-se-ia alcançar o ideal de ordem e progresso.

O longo título dado ao causo – De como Joaquim Bentinho não morreu á míngua,

vivendo sózinho no sitio, atacado de maleita, bexigas, e febre-amarella, ao mesmo tempo –

por meio das lexias “míngua” e “sozinho” reforçam a idéia de abandono do Estado, em

relação ao caipira. Desse modo, o discurso emerge no espaço interdiscursivo estabelecido

pela relação polêmica entre “progresso do país versus abandono do interior”. O tratamento

a essa questão é dado, pelo enunciador, pelo viés humorístico.

A epidemia de “maleite”, no dizer caipira, atinge a todos os seres, animados e até

inanimados:

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Excerto 7

Vacê vê, alli pro meio dia, a cachorrada garra reuni perto do fogo, tudo ripiado, e

garra treme: é maleite!

Vacê vai no terreno, chega perto do chiquero, vê a porcada tudo muntuado um riba

d’outro, gemeno que nem gente: é maleite!

Vacê óve de repente uma búia de ramaiada chacuaiada no mato, vacê cuida que é

caça u é vento, vai vê; são as arve que tão tremeno... é maleite! Inté ninho de passarinho

car do gaio!

Tudo soffre maleite, cumo é que eu havéra de escapá?

Um dia eu tava borrecido da vida, sentando no terreno, na pedra de afia... A bixiga

tava pipocano na villa e a febre marella tava lavrano nua toada... Eu já num tinha mais

mantimento in casa...

Além desse cenário contaminado pela maleita, outras doenças são trazidas à cena: a

bexiga e a febre amarela; e, mais uma vez, o abandono é sugerido pela lexia “borrecido” e o

último período, aponta para outro problema, conseqüência do primeiro: a fome. Na

seqüência, o queima-campo conta, de maneira fantástica, como acaba contraindo as

enfermidades das quais não haveria de escapar. O inevitável contágio se dá por dois

micróbe, moço! Dois microbão, dos ligite! A descrição dos dois vetores traz marcas

lingüísticas que revelam as duas doenças já mencionadas, além da maleita:

Excerto 8

Um, era bem marello, verde no encontro das aza, barriga pelluda, listrada; co as

unha vorteada... Otro era cor de mardade, co a cacunda tudo pipocado...

Digo: to morto! Já num chegava os arrepiu que já tava sintino, da sezão...

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O enunciador deixa implícito pelas marcas em negrito que o primeiro microbe era o

causador da febre amarela e o segundo é que fazia pipocar as bexigas. Mesmo já estando

com a maleita e agora com as duas novas doenças, o caipira sobrevive. Apresenta os

sintomas da febre amarela: tive um febrão e gumitei preto e, ao ouvir um barulho como

pipoca na panela, queimada na mata, descobre: era bixiga que tava rebentando! Sozinho no

mato, à míngua, o Bentinho fica sete semanas na cama.

Essa situação calamitosa é ainda revertida pelo capiau, gerando o humor que

desfecha o causo. Ao ser perguntado se morreu de fome, responde contrariamente: inté

ingordei. A razão está no fato de Bentinho possuir umas galinhas de raça, imunes ao

microbe em virtude das penas que cobrem sua pele das picadas. Como se não bastasse a

imunidade, as galinhas devoram o inxame de microbe que saiam do quarto do doente, como

se eles fossem gafanhotos. Desse modo, as galinhas se alimentavam e punham ovos, os

salvadores ovos:

Excerto 9

As gallinha, na hora de ponha ovo, vinha ua, devagarzinho, pra não me incomodá,

trepava nos pé da cama, aninhava in riba da cuberta, botava o ovo e sahia, desfarçano, e

só no chega no terreno é que garrava grita: — “Já ponhei... já ponhei!” Vinha ótra e ótra

e, ansim, era tudo duzia e meia...

— Bebia ovos crus?

— Nhor não... Tava coa febre tão arta que ponhava um ovo in baxo do de sovaco e:

um minuto, bebia ovo quente... dois minuto, cumia ovo cuzido...

O final inesperado garante o humor do causo. Para confirmar que não se trata de

mentira, o queima-campo apela a testemunha, um cúmplice difícil de ser encontrado:

Defunto Fidencio pode conta pra vassuncê, se num aquerditá. Elle ia me vê tudo o dia...

Torna-se evidente neste causo, ainda que pelo veio cômico, uma crítica à condição

do homem do campo, durante a primeira República, à margem de condições básicas de

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saneamento. Assim, faz-se coro à campanha sanitarista, tornando o causo risível dado o

contexto de luta pela sanitarização do meio rural, tão em voga nos anos 20. Há um reforço

ao clamor para que se voltem os olhos ao homem do interior, assim como pediam os

sanitaristas. Nega-se, portanto, o posicionamento nacionalista sem preocupação com as

condições básicas de saneamento.

3.5.2 CAUSO 3: Joaquim Bentinho e um caso de cirurgia plástica

No terceiro causo da obra, podemos constatar o conflito estabelecido entre o modo

de vida caipira, rústico, e o modo de vida que se impõe pela modernidade. Isso leva o

caipira a uma tentativa de transpor essa conjuntura conflituosa, gerando a partir disso o

humor. Esse recurso não se caracteriza somente pela incompreensão da modernidade, mas

também, pelo uso da linguagem que toma forma avessa ao sistema lingüístico em uso no

novo paradigma.

Logo nos primeiros parágrafos do causo 3, o autor contextualiza sua época, dando-

nos pistas sobre o clima da belle époque paulista, notadamente favorecido pelo êxito na

cultura, comercialização e exportação do café. É transparente a consciência e o orgulho do

autor sobre a modernidade, quando se refere ao sucesso dos brasileiros em muitas áreas,

projetando seu ideal nacionalista. O destaque dado à engenharia resulta do mega

empreendimento que rasgou o interior com vistas ao transporte do precioso produto

nacional: a estrada de ferro sorocabana. O ufanismo do narrador se estende a outras áreas

como o direito, as artes e, enfim, a medicina. A alusão feita a uma cirurgia plástica, ponto

de extrema novidade, causa inquietude no jeca corneliano.

Tal inquietude será o início de uma discussão que permeará toda a narrativa, uma

vez que a atitude da medicina moderna opõe-se ao modo de vida caipira, pelo seguinte: a

vida nesse tipo de sociedade é à mercê da decisão da natureza é, portanto, resposta a um

modo de vida que espera a organização do caos pelas reações orgânicas e automáticas da

natureza; e mais: a ação humana só fará sentido para atender às necessidades humanas.

Assim, de acordo com Cândido (2003:29), o equilíbrio social depende em grande parte da

correlação entre as necessidades e sua satisfação. Esse princípio nos permitirá

entendermos que as ações humanas, no universo caipira, são sempre premeditadas para

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atender a uma necessidade de subsistência. Então, o sitiante dará resposta à modernidade,

numa tentativa inútil de vencê-la, baseando-se nas necessidades que a vida cotidiana e

afastada da modernidade oferece.

Cabe aqui um parêntesis acerca da variante no causo. No causo 1, após uma

apresentação do autor acerca dos causos, dos sujeitos, da vida roceira, o narrador passa o

turno ao protagonista, que conduzirá a uma nova cenografia. Já no causo 3, fica mais

evidente certa estratificação social entre o narrador e o personagem, marcada pela variante

lingüística: Joaquim Bentinho não pode e jamais inicia a narrativa, é a imagem do matuto

analfabeto, impossibilitado de alcançar sozinho os cidadãos de cultura letrada para ensinar-

lhes o que sabe. É preciso que o narrador, revestido do ethos de nível maior de letramento,

passe-lhe o turno. Fecham-se os parêntesis.

O causo 3, propriamente dito, custa a começar em razão de que o próprio narrador

justifica: as digressões dos mentirosos são communs, e, como quero ser fiel, deixei que o

Bentinho tomasse essa instrutiva variante, cheia de ensinamentos... Para Fávero et alli

(2005:43)

... digressão, ocorrência freqüente na língua falada.

Para que se instaure uma digressão, é preciso que

haja a seguinte movimentação tópica: retirada de um

tópico (A), introdução de um tópico (B), retirada do

tópico (B), reintrodução do tópico (A).

Ao receber o turno, Joaquim Bentinho inicia com o causo da carne quente e faz uma

digressão e, nessa instrutiva variante, mostra o conhecimento do camponês sobre os

mistérios da natureza, mais precisamente acerca da colheita de mel. Em seguida, retoma o

tópico inicial, o causo da carne quente. Torna-se evidente, principalmente ao assumir o

compromisso de fidelidade com a história narrada por Bentinho, que o narrador deixa

entrever o caráter de retextualizador do gênero causo, uma vez que sua emergência se dá

numa cultura oral, portanto, nos termos de Maingueneau trata-se, neste caso, de gênero

escrito com estilo de gênero oral. A digressão presente no causo 3 é uma marca contumaz

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da oralidade presente no gênero, conforme também salientou Fávero et alli na citação

anterior.

Ainda sobre a digressão, uma característica interessante a ressaltar é a resistência

dos tupinismos ao nomear as espécies de abelhas e o conhecimento do homem do campo

sobre a natureza, o que confirma a presença de um código linguageiro que dialoga com a

base mameluca que o português caipira, sobretudo, no tocante à fauna e à flora:

Excerto 10

Vacê sabe: os pai de mé, abeinha do mato, tem de tudas qualidade: manda-saia,

mandaguary, tuvuna, jetahy, que é me bão pró peito; guirupú, mumbuca, irapuã, lôco pra

inleá nos cabello da gente; mé de cachorro, que dá no chão, na frôr da terra, e cachorro de

caipira, que num é bobo cumo os da cidade, cavóca e tira pra lambê; caga-fogo, bespinha

escamungada que larga ua urininha que quêma que nem fogo; sonharão, o mais brabo de

tudo; mandury, aranxim, de mé muito gostoso, com gosto de foia de limão; móra-longe,

que fais o canudinho de cêra quage no pé do pau e vae ponha os favo no oco do úrtimo

gaio; mé de anta, é um mé dannado! Vacê chupa elle co só quente, elle sobe na cabeça que

nem pinga, e dexa a gente chucro. Tem tamêm outro mé que num me alembro o nome, que

os inseto tira mé de estrume e de carniça... tem um fedô inseportave...

Após essa aula de Joaquim Bentinho, dada possivelmente ao narrador, a demais

caipiras e a pessoas da cidade que lerão os causos retextualizados, o tópico principal da

narrativa é retomado e o causo se inicia. Como dissemos anteriormente, a necessidade é a

mola propulsora das ações caipiras. Assim que ouve o relato de um caso de cirurgia

plástica, Joaquim Bentinho, movido pela necessidade de vencer a experiência moderna e de

contar como resolveu um problema imediato, inicia sua história.

A nova cenografia instalada pelo causo, lugar em que se encontra com os demais

personagens, nos remete a outra necessidade caipira, a de explorar a mata virgem, quer seja

em busca de caça, quer seja em busca de novas terras para as roças de subsistência ou

simplesmente para chupar as jabuticabas e coletar mel silvestre. Abrindo picadas na mata,

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desastrosamente, apara o nariz de seu cunhado e, detentor de conhecimento previamente

instituído ao do homem da cidade — o de que carne quente pega — Bentinho põe de volta

no lugar o nariz do cunhado e o ata. Vemos aí a tendência caipira em esperar da natureza e

do tempo as respostas para suas necessidades; a carne quente pega por razão orgânica, não

porque o homem é capaz de reconstruir, na visão caipira.

A mentira é outra vez o artifício usado pelo personagem para convencer os citadinos

de que as questões “modernas” não são nada novas para o homem do campo. Com isso, o

enunciador caipira, envolve o leitor numa cenografia onde as necessidades são supridas

naturalmente, ao sabor do tempo. Um exemplo de como a mentira é reforçada no texto está

na fala do nhô pai que diz “— Ocês num sabe campeá nari, disse o véio: ocês vão vê.”. O

tratamento com naturalidade sobre a questão – saber procurar nariz - gera também o humor,

pois parece que procurar nariz é algo muito normal. O uso do rapé para fazê-lo espirrar fecha,

com muito humor, o episódio hilário e fantástico. Além do mais, há novamente o

envolvimento de cúmplices, as quais não sabemos se ainda são acessíveis: — Puis vae lá!

Cumo ia dizeno, Nho pai, eu, meu ermão, o Gabrié, compadre Caria, Dito de Nhanna, Chico

de Nhã Angérca, e meu cunhado Sarafim, fomo chupá fruito no mato e porveitá pra fura

uas veiêra

Através do humor, o caipira se auto-afirma ante o homem da cidade, como alguém

que também detém conhecimento, capaz de fazer cirurgia plástica antes do “cidadão”. O

problema é que, apesar de conhecer técnicas, alguma atrapalhada há para garantir o humor.

Ao tirar a atadura do nariz recolocado:

Excerto 11

No afriçuramento que eu fiquei, afrito, foi que assucedeu o desastre... Ponhei o nari

ás canha...

— Como é ás canha?

— Ponhei revirado, cos buraco das venta pra riba!

— Que horror!

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— O povre do Sarafim, num sae mais de casa... Quãno elle tá pitano, vacê vê: sorta

aquela fumacêra pra riba, pró nari, que nem chaminér... Inté já criô picuman na aba do

chapéu.

— Que coisa!

— E quando elle taca um espirro, fais vuá o chapéu da cabeça!

A roda se dispersou, ás gargalhadas, emquanto o próprio mentiroso, rindo, ateava

fogo ao sarrento e babado tôco de cigarro.

3.5.3 CAUSO 15: Joaquim Bentinho e a República

O causo 15 difere-se dos outros dois anteriores por não apresentar uma seqüência

narrativa de Joaquim Bentinho. Agora é o autor quem conta uma experiência sua vivida

com o contador de causos. Num diálogo com ele, Joaquim Bentinho expõe seu pensamento

sobre a República com uma interessante metáfora.

O jeca corneliano apresenta um posicionamento que contraria a passividade caipira,

conforme argumenta o Lobato (op. cit.:147) de Urupês:

A 15 de novembro troca-se um trono vitalício

pela cadeira quadrienal. O país bestifica-se

ante o inopinado da mudança. O caboclo não

dá pela coisa.

Vem Floriano; estouram as granadas de

Custodio; Gumercindo bate ás portas de

Roma; Incitatus derranca o país. O caboclo

continua de cocoras, a modorrar...

O ideal nacionalista do enunciador autor é manifestado no excerto a seguir, como

um sujeito que acredita na capacidade do interiorano de contribuir para a construção de

uma nação de votantes, capaz de incluir nela também a população rural.

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Excerto 12

Num acesso de sonho e de ingenuidade, julguei que seria possível o reerguimento

do brio e da vergonha política do Brasil, alistando quanto mais eleitores ignorantes ou não

e tratei de lançar a ideia entre os roceiros.

— Vocês precisam se alistar; precisamos metter o peito na politica... Quem sabe se

lavradores e operarios não endireitariam esta Republica de bachareis...

— Quá... Num deanta sê votante...

— Só serve pra quem qué ganhá...

— Despois, a gente se apura: vae vota cum, otro zanga... Num paga a pena ranja

nimigo...

— Mas a Republica...

— Quá... Interviu o Joaquim Bentinho. O meió é mecê larga mão disso... O’i, eu já

fui monacrista... virei repurbicano; desvirei... revirei... E hoje nem num sei o que sô!

O posicionamento do enunciador se justifica pela onda de descontentamento que

havia no início dos anos 20. Esse descontentamento era o estopim de uma série de revoltas

ocorridas nos anos anteriores como a da vacina, no governo de Rodrigues Alves (1902-

1906); a da Chibata, iniciada a 22 de novembro de 1910. Isso tudo culminaria no

Tenentismo de 1920, um movimento político-militar que pretendia, pelas armas, tomar o

poder da oligarquia, destituindo Artur Bernardes, e iniciar reformas que eram necessárias.

De acordo com Fausto (1994:314)

os tenentes pretendiam dotar o país de um

poder centralizado, com o objetivo de educar o

povo e seguir uma política vagamente

nacionalista. Tratava-se de reconstruir o

Estado para construir a nação. Embora não

chegasse nessa época a formar um programa

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antiliberal, os “tenentes” não acreditavam que

o “liberalismo autêntico” fosse o caminho

para a recuperação do país. Faziam restrições

às eleições diretas, ao sufrágio universal,

insinuando uma via autoritária para a reforma

do Estado e da sociedade.

Portanto, ao enunciar: Num acesso de sonho e de ingenuidade, julguei que seria

possível o reerguimento do brio e da vergonha política do Brasil. O enunciador revela

descontentamento com a situação política, o que não nos garante dizer que fica evidente

apoio ao tenentismo, mas uma necessidade de restabelecer a ordem, para garantir o

progresso, recuperando o brio e a vergonha perdida pelos governantes da época. Para isso,

acredita na força de voto dos caipiras que, não sendo cabresto, poderá colaborar com

sucesso para a troca da cadeira quadrienal, como dizia Lobato.

Mas o caipira não crê na mudança possível. O acocorar-se que Lobato aponta é, de

alguma forma, corroborado por Cornélio Pires, mas com uma justificativa que se opõe a

modorra de que falara o primeiro. Tal justificativa é feita pela seguinte metáfora:

Excerto 13

Negocio de guverno, pra mim, é a merma coisa que criação de porco!

— Ora... o senhor é pessimista...

— Isso que mecê falô eu num sei o que é: mais isso eu num sô! Puis vacê veja: —

vacê recóie um capado magro no chiquero: pincha um jacá de mio de minhã: vai simbora;

otro jacá de mio de meio dia: vai simbora; otro na bocca da noite: de minhan cedo tá

puido? O chão, tá impo...

O porco vae cumeno, vae cumeno, e vae ingordano, inté num podê mais, de gordo:

oreia caida, zóio impapuçado, buchechão estufado... Tá gordo; qué só durmi, roncá...

Vancê pincha uma espiguinha de mio cateto elle esprementa e larga; inda sobra mio na

espiga pras gallinha pinicá... Já cumeu muito... tá gordo, tá infarado; parô de cumê...

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Esse é o imperadô... Incheu, parô de cumê... Mais coa Repurbica!... Mecê recoie

um; ante desse um ingordá, sae, entra otro...

Num hai mio que chegue...

Como se vê, a justificativa pelo acocorar-se do jeca está no fato de que, para ele, a

monarquia explora os recursos de um povo até certo limite; enquanto que o sistema

republicano favorece uma troca de representantes do povo que exploram tudo quanto

podem, já que ao findarem os quatro anos de mandato, outro entrará em seu lugar. Desse

modo, ao caipira não importa o nacionalismo que quer inclui-lo como eleitor, tampouco o

que contribui para sua marginalização; a ele o que importa é a coroa. Para sustentar seu

ponto de vista, recorre à metáfora anterior. Cândido (1993:250), contando de suas andanças

pelo interior, também nos fala de um caipira alheio à política:

Quem esteve em contacto com ele sabe, por

exemplo, o quanto é impreciso sobre a própria

idade e como ele não consegue pôr datas na

lembrança, além de não saber o que se passa

na sociedade maior, cujos sinais podem estar

ao seu lado sob a forma de jornal que ele não

lê, de cinema que não vê, de rádio que não

escuta, de trem que não toma. “Como vai o

imperdador?”, perguntou-me em 1948 o

nonagenário Nhô Samuel Antônio de Camargo,

nascido no rio Feio, atual Porangaba. “Vai

bem”, respondi. E ele, com uma dúvida: “Mas

não é mais aquele veião de barba?”. E eu:

“Não, é outro chamado Dutra”.

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Já no causo 15, o humor se dá especialmente porque o Joaquim Bentinho tem uma

opinião formada sobre a conjuntura política e faz a sustentação de sua tese por uma

metáfora inusitada. Assim, há um caipira apresentado com um posicionamento político, que

se omite à República por nutrir maior simpatia pela Monarquia.

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3.6 A construção do ethos discursivo nos causos

A fim de percebermos como os interlocutores se vêem na interação da cenografia

criada pelo causo, fizemos um estudo das formas de tratamento utilizadas nos causos, como

uma prévia à análise da construção discursiva do ethos. Em seguida, buscaremos entender

como se dá a construção efetiva do ethos caipira a partir da relação entre as cenas do gênero

escolhido e os efeitos de sentido pretendidos na construção de uma imagem do homem do

campo.

3.6.1 Pessoas do discurso do “dialeto” caipira: um índice

Do diálogo que se estabelece entre o narrador e o personagem, com intervenções de

outros caipiras que estão ao pé do fogo, são apreensíveis algumas formas cuja variação é

justificada pelo contexto. Nesse sentido, estamos de acordo com Benveniste (1988) e

Kerbrat-Orecchioni (1980) para quem a subjetividade é revelada por meio de dêiticos e,

assim sendo, as pessoas do discurso (pronomes de tratamento) funcionariam como

primeiros índices da revelação do “eu” e do “tu” no discurso, pelo qual podemos extrair

dados que nos auxiliarão a entender a construção do ethos discursivo na interação.

Comecemos pela abordagem do narrador a Joaquim Bentinho:

Excerto 14 (Causo 3)

— Bom, Nho Joaquim... Já vi que o senhor é “truco-flecha” em paes de mel...

Vamos ao caso!!

— Esse Nho Joaquim... interrompeu um dos caipiras: larga a estrada, garra as

incruziada, passa pros amassado, segue os trio, entra no carreado, erra o ataio e num tem

fim!

— Puis váe lá! Cumo ia dizeno, Nho Pae, eu, meu ermão, o Gabrié, compadre

Caria, Dito de Nhana, Chico de Nhá Angérca, e meu cunhado Sarafim fomo chupa fruito

no mato e porveitá pra fura as veiêra.

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Pelo trecho acima podemos observar que o narrador tenta passar, por seu turno, uma

imagem de si que se assemelha ao caipira, isso com vistas a manter a interação e ouvir o

causo que espera poder registrar. Esse ethos de caipira é perceptível pela apropriação da

forma de tratamento Nho, incomum ao código de linguagem que afirmaria um

posicionamento de cidatino, de homem culto da cidade. Em seguida, o mesmo narrador usa

a forma o senhor, o que demonstra certo distanciamento do contador de causo e, em

momento algum, o tratará de você. Outro caipira que estava ao pé do fogo, também faz uso

de Nho.

Já o protagonista, ao referir a seu pai, utiliza a mesma forma, certamente um sinal de

respeito ao status de pai. Esse uso, no entanto, nos remete a forma registrada por Amaral

(1920), o qual aponta para a influência de falares africanos, como em sinhô-moço,

conforme expusemos anteriormente.

Em outro momento, ainda no causo 3, o cunhado de Bentinho, ao ter seu nariz aparado

por um facão, assim o trata:

Excerto 15

— Num ande, rapais, ocê piza no meu nari, masgaia o nari... o meu nari de

tanta estimação!

Temos aí um exemplo do ponto máximo de afinidade, de solidariedade, concretizado no

uso do termo ocê, conforme assegurou o estudioso do dialeto caipira. Considerando que o

personagem é o cunhado de Bentinho e que este havia ‘decepado’ seu nariz, nada mais

lógico que o tratar na maior das informalidades. Ao Joaquim é permitida a construção de

uma imagem de seu cunhado como alguém que está numa mesma hierarquia social,

compadre, companheiro de caçadas.

O caipira para o homem da cidade não hesita em usar informalmente vacê para o

narrador, porém, essa forma aparenta um pouco mais de distanciamento que a forma ocê.

Vejamos um exemplo desse uso no causo 3:

Excerto 16

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Vacê sabe: os pai de mé, abeinha do mato, tem de tudas qualidade: manda-saia,

mandaguary, tuvuna, jetahy...

Vacê chupa elle co só quente, elle sobe na cabeça que nem pinga, e dexa a

gente chucro.

Vacê sabe. . . no mato tem esses matinho mai miúdo; guainxúma, unha de

gato...

Ara. . . Vacê num magina a trapêra que conteceu!

Quãno elle tá pitano, vacê vê: sorta aquela fumacêra pra riba, pró nari, que

nem chaminér...

Note-se a permanência dessa forma de tratamento em várias falas, num mesmo causo.

Isso evidencia a freqüência do uso, quase desconhecida na fala popular atual.

Outra forma também utilizada de maneira mais formal do que as até aqui mencionadas

é o mecê, sugere um distanciamento ainda maior que ocê, vacê, vancê. Retiramos um trecho

em que o narrador faz uso de mecê, novamente com o intuito de passar uma imagem de

também caipira. O excerto é retirado de um causo 8, em que Bentinho cavalgou (se assim

podemos dizer) numa anta, por vários dias:

Excerto 17

— E mecê?

— Eu no piloto... Imbico e nua corrida loca, co’a dor do anzó, garro barranco a

riba c’a canôa e tudo...

— E mecê?

— Eu no piloto!

O uso de mecê nos permite a inferência de que Bentinho era mais velho que o

narrador. Por três motivos. O primeiro é em razão do uso da forma anteriormente mostrada

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no excerto 15, o senhor. O segundo, pela forma que agora expusemos. E terceiro, pela

forma pronominalizada que o homem do campo usa para com o homem da cidade em:

Excerto 18

— Ocês são burro... baxem as orêia imquanto eu c’o moço cumberso...

Desse modo, o status etário dos falantes também justifica a variação.

Concluímos, pela análise do uso dos pronomes de tratamento, que o homem da

cidade faz uso dos recursos de polidez disponíveis no “dialeto” caipira, a fim de construir

nos interlocutores que estão ao pé do fogo, uma proximidade maior e manter certo

distanciamento em razão da faixa etária mais avançada do seu interlocutor. O “cidadão”

para revestir-se de um ethos discursivo capaz de promover uma interação de sucesso com o

caipira, isso pode ser explicado por Maingueneau (2007:49), pois o falante da cidade

encontra-se preso a um sistema de restrições semânticas como um filtro que fixa critérios

em virtude dos quais certos textos se distinguem do conjunto de textos possíveis como

pertencendo a uma formação discursiva determinada.

Por seu turno, o caipira vê no homem da cidade um sujeito mais novo com quem

interage, fazendo uso de formas adequadas à interação com mais novos, não importando a

titulação que o outro possa ter, diferenciando-se do tratamento aos demais caipiras pelo uso

das formas vacê e vancê. O ethos mostrado pelos dêiticos nos leva a presumir certo

distanciamento do homem da cidade por ele não pertencer à comunidade rural e estar ali na

condição de visitante.

Por fim, podemos sistematizar as pessoas do discurso utilizadas na variante,

considerando o ethos dos interlocutores que sugerem solidariedade e distanciamento, pelo

seguinte continuum:

Senhor Nhô/Nhá Mecê Vancê/Vacê Ocê

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3.6.2 O ethos efetivo de Joaquim Bentinho

Fica evidente, no terceiro parágrafo do primeiro capítulo das aventuras, a réplica à

crítica que faziam escritores que eram da mesma opinião de Monteiro Lobato, durante a

primeira fase do Jeca Tatu: provando o contrario do que certos escritores asseveram,

provando não ser vadio, diariamente lamenta a curteza do dia...

O termo em destaque faz menção ao discurso de Monteiro Lobato em Urupês que

caracterizava o caipira justamente com esse termo: vadio. O sentido do discurso lobatiano

sobre o caipira se funda no interdiscurso nacionalista/pessimismo determinista biológico,

uma vez que o caipira é vadio e atrasa o progresso da nação e tal vadiagem justifica-se por

sua miscigenação de nem branco, nem índio.

Assim, temos uma construção inicial do ethos caipira feita a partir da contraposição

a um outro discurso, essa construção se baseia na desconstrução de estereótipos já lançados

sobre homem do campo, sugerindo a ele um novo caráter. Isso nos faz repetir o dizer de

Barthes (apud Maingueneau, 2008b:13) e relacionar à apresentação de Bentinho, ao

apresenta-lo em oposição ao discurso lobatiano, o sujeito enunciador nos diz: eu sou isto

aqui, não aquilo lá. Está instaurado, então, um caráter que somado a um tom e uma

corporalidade assegurará a construção de um ethos caipira. O ethos do jeca corneliano é um

homem bucólico, trabalhador e comunicativo com seus pares, nas horas vagas. Esse fiador

nos é possível construir pelo seguinte excerto:

Excerto 19

Cada roceiro que chega do serviço, arria num canto o seu feixe de lenha, catada na

tigüera onde há pouco existiam as roças que foram colhidas.

E a noite desce. Eis-nos, emfim, reunidos ao pé do fogo, contando histórias...

A cenografia criada, o uso da variante lingüística nos permite dizer que o homem é

bucólico; os trechos sublinhados tornam possível a inferência de que se trata de sujeitos

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trabalhadores; a parte negritada confirma o hábito de interagir a partir de histórias, o que

nos permite dizer serem homens comunicativos.

Como vimos no início deste capítulo, o enunciador constrói uma cenografia em que

o tempo é marcado pelo fogo constante no dia frio da fazenda. Há um tom de monótono de

repetição, de mesmice. Sempre o fogo a arder, o trabalho na roça, a feitura das refeições e a

roda, à noite, ao pé do fogo. Talvez esse ritmo lento, repetitivo é que tenha feito Lobato

usar o termo modorra ao jeca passivo e acocorado.

A cenografia acrescenta ao caráter do personagem o ethos de mentiroso, mas num

sentido daquele que mente para entreter, para passar o tempo, como arte de contar. Mente

para criar histórias fantásticas que deverão ser contadas num tom de verdade e a tenta de

dar verossimilhança ao fantástico é que produz o humor. Assim, o homem do campo é

divertido e imaginativo. Ou, no dizer de Leite (1996:131), a quem fazemos coro:

...Joaquim Bentinho não deixa de ser cômico e

pitoresco, a sua apresentação não é

depreciativa, não visa a rebaixá-lo ou

desdenhá-lo. Quem descreve o caricaturado

identifica-se com ele, e visa despertar a

simpatia e a solidariedade em que lê...

Provoca o riso de regozijo, gratuito e

distensionador de ânimos; não visa ao riso

como corretivo satírico. [destaques nossos]

Após dar indícios do caráter do caipira, a construção do ethos se volta para a

corporalidade e a indumentária. Nesse ponto, Cornélio corrobora o modo de trajar-se dos

tipos criados por Lobato e tal construção é reforçada por uma prática intersemiótica, a

ilustração da contracapa, conforme imagem 01. Ativam-se, então, estereótipos que fazem

links a mundo ético socialmente construído sobre a cultura caipira. A partir da cenografia

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criada nos causos é mostrado outro ethos discursivo que, associados a um ethos prévio,

permitem a construção do ethos discursivo efetivo do caipira.

No causo 1, nos é apresentado um caipira abandonado pela saúde pública, distante

das condições básicas de saneamento. Esse sujeito se mostra pelo tom de desalento,

sozinho, doente, desanimado com a vida, o que dá ao discurso um tom melancólico e de

lentidão. É acrescentado a esse tom uma corporalidade, uma postura de quem está

minguando. E mais por um código linguageiro que contribui para essa construção: um dia

eu tava borrecido da vida, sentado no terreno, na pedra de afia... (...) Eu já num tinha

mantimento em casa... Nesse ponto, Joaquim Bentinho converge com o Jeca Tatuzinho da

segunda fase de Monteiro Lobato que, segundo Lajolo (1983:101) é:

Apresentado como vítima com a qual se

solidariza o Lobato de agora: opilado pela

verminose, fraco, anêmico, os males deste Jeca

dos anos vinte não começam na preguiça nem

na falta de disposição para o trabalho: a

desnutrição e a precariedade de seu estado de

saúde é que desembocam na pouca

produtividade do camponês itinerante.

Não obstante o abandono, a doença, o caipira mostra-se como um sujeito forte,

resistente às adversidades da vida no campo, capaz de fazer piada com a própria desgraça.

A isotopia do causo 1 poderia ser resumida pela paráfrase do célebre frase de Euclides da

Cunha: o caipira é, antes de tudo, um forte.

No causo da cirurgia plástica nos é mostrado um caipira sábio, detentor de um

conhecimento não menos importante que do homem da cidade. Esse fiador é possível de ser

mostrado para o destinatário a partir da digressão que há no causo, que o faz mostrar o

conhecimento caboclo das espécies de abelhas, da fauna e da flora de sua paisagem. Esse

saber é ratificado, agora pelo viés humorístico, com medicina alternativa que domina o

capiau, naquele contexto moderno, civilizatório, em que os avanços tecnológicos causam

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espantos nos cidatinos. Desse modo, é dito aos da cidade que o camponês já sabia das

descobertas do mundo moderno, como o fato de que carne quente pega. O causo confirma

uma faceta sábia do caipira, opondo-se ao discurso de Lobato que o vê como ignorante.

Novamente, as palavras de Leite (op. cit.:123), que tratam-se de teses cornelianas sobre o

caipira, identificadas pela autora em estudo de Conversas ao pé do fogo, confirmam a

imagem construída pelo sujeito enunciador:

O caipira não se reduz à figura do Jeca Tatu; o

caipira detém um tipo de saber que é diferente,

mas pode e deve ser valorizado; a vida no

campo tem encantos que o cidatino

desconhece, e perde com isso.

Neste sentido, o causo 3 acaba servindo como argumento de exemplificação para a

tese de Cornélio Pires, identificada por Leite em outra obra. O “caipira sapiens” aqui

sugerido é também perceptível pelo tom de certeza e didatismo do caipira em tratar de

nomear a natureza, ele fala num tom de biólogo que tem catalogada cada espécie do cosmos

caipira. Pelo tom de sabido, é que Bentinho interrompe o “cidadão” no momento em que

este fala do sucesso das cirurgias plásticas.

Já o causo 15 vai de encontro ao ethos de homem despolitizado, acocorado ante o

15 de novembro que encenou Monteiro Lobato. No último causo aqui analisado nos é

mostrado um caipira que se omite da política por não acreditar no sistema de governo,

preferindo a monarquia ou uma reformulação do sistema vigente. É uma justificativa à

passividade atribuída pelo criador do Jeca. O seu tom é político, de mestre que fala por

parábolas: Negocio de guverno, pra mim, é a merma coisa que criação de porco! Temos

nesse causo um caipira que sabe argumentar e se nega a ser eleitor, rompendo com o

posicionamento nacionalista do narrador que, acreditando poder contar com mais eleitores,

poderia reerguer o brio e a vergonha política do Brasil.

A partir dos indícios “pescados” nos regionalismos de verdade de Cornélio Pires,

em contraponto com uma visão já consolidada do Jeca Tatu de Monteiro Lobato, pudemos

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perceber como o escritor de Tietê constrói o ethos caipira. Essa construção pode ser

representada pelo seguinte diagrama:

Ethos efetivo do caipira

Ethos prévio Ethos discursivo

Estereótipos ligados ao mundo ético caipira

Desse modo, o ethos efetivo do caipira é construído pela ativação de estereótipos de

um mundo ético, por meio de dois caminhos: um ethos prévio, ativado por uma prática

intersemiótica (a caricatura da contra capa), uma corporalidade e indumentária socialmente

partilhada; o outro caminho se dá pelo ethos discursivo que, pela análise das cenografias

construídas, nos é mostrado, dito ou sugerido por uma imagem do caipira como um

homem: resistente, sábio e com uma consciência política.

ethos dito ethos mostrado

- resistente; - sábio; - com consciência política.

Prática intersemiótica: caricatura, corporalidade, indumentária.

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3.7 Algumas considerações sobre o código linguageiro

É bem visível que uma das marcas lingüísticas que constituem a cena genérica do

causo é o emprego da variante caipira ou, nos termos de Amaral (1920), do dialeto caipira.

A variedade lexical da obra convoca o autor, inclusive, à elaboração de um glossário para o

leitor com pouca fluência em caipirês. Nossas considerações que seguem não têm o

objetivo de gramati(cali)zar a variante caipira, como já o fizeram Amaral e o próprio

Cornélio Pires, mas perceber como o uso da variante pode contribuir para uma

configuração das cenas de enunciação e do ethos discursivo do caipira.

A primeira observação que fazemos é quanto ao emprego da variante e suas marcas

de oralidade na constituição da cena genérica. Como vimos, os causos chegam ao leitor por

uma cena validada, a conversa ao pé do fogo, e os causos surgem dessa prática rotineira na

fazenda velha. Então, a troca de turnos conversacionais é que permite a ativação de insights

provocadores de novos causos. Essa troca de turnos se faz pelo uso exclusivo da variante,

marcando a fala do homem do campo.

No causo 1, assim que o título apresenta ao leitor o histórico de sobrevivência às

muitas doenças sofridas por Joaquim Bentinho, a fala do narrador “E ainda está vivo?”, é o

que desencadeia o uso da variante e o desenvolver do causo.

Excerto 20

P’ra vacê vê! Quano Deus qué, inté o cadave de um defunto revive e perobera é capais de

dá bacaxi...

Eu moro sózinho no sitio, ua capuava na vorta do riu, na invernada, lugá que, in certos

anno, dá maleite in tudo!

É notório o uso da variante que “domina” o resto do texto, dispensando até mesmo o

uso verbos dicendi e até sinais de pontuação para indicar a fala em alguns momentos. É

pelo código linguageiro, essa variante do plurilingüismo interno da interlíngua, que essa

ruptura se torna possível. Ruptura com a cenografia outrora instalada, a cena validada.

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Percebe-se pela fala do personagem a instalação de outra dêixis empírica, bem marcada

pela variante: capuava na vorta do riu, invernada, lugá, in certos anno... Isso tudo para

criar um lugar discursivo do caos, do abandono, da distância das políticas de saúde pública;

mas, como o caipira é, antes de tudo um forte; ele resiste às doenças e adversidades, citadas

pelo código linguageiro: maleite, bixiga pipocano, micróbe, febre marella, febre arta... A

seleção lexical exagerada reforça a imunidade do caipira frente às adversidades e o

tratamento bem humorado dado a elas.

Já o causo 3 evidencia, além do código linguageiro caipira, recursos comuns ao

texto falado. Há uma apresentação do tópico ‘progresso’, do qual é recortado o campo

‘medicina: cirgurgia plástica’, que servirá de mote para o caipira demonstrar seu

conhecimento popular sobre saúde, fauna e flora. Esta última por digressões que o

personagem faz. Evidenciam-se termos de etimologia indígena, acerca das muitas espécies

de abelha: manda-saia, madaguary, tuvuna, jetehy, guirupu, mumbaca, irapuá, caga-fogo,

sanharão, mandury, aranxim, mora-longe... Com a seleção de termos como esses, o

enunciador traz-nos uma imagem do caipira, como aquele que detém um conhecimento

ímpar sobre a natureza. Esse saber é uma tese defendida pelo enunciador, acerca de que o

homem do campo tem muito a ensinar ao homem da cidade, o caipira sabe muito. Tal

assertiva pode estabelecer um diálogo com um trecho do conto Minha Gente, de Guimarães

Rosa (1984:191), que também parecia defender a mesma tese:

Quando vim, nessa viagem, ficar uns tempos

na fazenda do meu tio Emílio, não era a

primeira vez. Já sabia que das moitas de beira

de estrada trafegam para a roupa da gente

umas bolas de centenas de carrapatinhos, de

dispersão rápida, picadas milmalditas e difícil

catação; que a fruta mal madura da cagaiteira,

comida com sol quente, tonteia como cachaça;

que não valia a pena pedir e nem querer tomar

beijos às primas; que uma cilha bem apertada

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poupa dissabor na caminhada; que parar à

sombra da aroeirinha é ficar com o corpo

empipocado de coceira vermelha; que, quando

um cavalo começa a parecer mais comprido, é

que o arreio está saindo para trás, com o

respectivo cavaleiro; e, assim, longe outras

coisas. Mas muitas mais outras eu ainda tinha

que aprender.

Muitas outras coisas também sabe o caipira! Esse ethos da sapiência camponesa é

também construído pelo conhecimento de que ele é proprietário. O código linguageiro,

assim, reforça o valor do saber popular.

O causo 15 possui orientação mais argumentativa que narrativa, diferentemente dos

demais. Esse texto corrobora a tese de que o camponês tem uma visão política, não é o jeca

alienado. Para isso, vale-se de metáforas que se apóiam em práticas do mundo rural,

deixando, na superfície textual, um código comum.

Para Joaquim Bentinho, negócio de governo é a merma coisa que criação de porco!

A comparação é sustentada por termos ligados à suinocultura camponesa. Ter um

representante do povo no poder seria o mesmo que recolher um capado magro no chiquero;

o povo, pagando os impostos, estaria tratando do porco com os jacá de mio, de minhã, de

tarde e na boca da noite. Quando o porco não quer mais comer, fica enfarado, não devora

um cateto lançado, deixando as migalhas para as galinhas pinicarem; temos aí o imperador

que se farta de tanto comer às custas do povo. Já quanto ao representante da República, o

caipira sustenta o seguinte posicionamento, sustentado por exemplificação de práticas

rotineiras de seu mundo: recolhe-se um capado e, antes mesmo de ele ingordá, sae, entra

otro... Num hai mio que chegue.

Percebemos, também, que o código linguageiro utilizado pelo enunciador possui

uma gramática que lhe é própria, sobretudo, no tocante ao uso das pessoas do discurso.

Ficou evidente que o uso delas denota certa variação de acordo com o status social dos

falantes, conforme análise que fizemos anteriormente.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

É chegado o momento de avaliarmos o percurso feito até aqui. Para isso,

ressaltaremos pontos positivos alcançados, considerando os objetivos da nossa pesquisa e

reconheceremos aqueles que, até este momento, não puderam ser contemplados.

Cabe ressaltar que a pesquisa contribuiu para um outro olhar sobre o ethos caipira

no contexto da literatura brasileira, construído a partir de uma amostra pouco conhecida e

trabalhada no meio acadêmico. Além da novidade da amostra, foi-nos muito prazeroso

perceber o contexto sócio-histórico em que os causos emergiram, possibilitando um diálogo

instigante entre presente e passado.

Por meio de uma literatura até então distante da academia e do cânone literário nos

fez muito sentido o processo de legitimação do discurso literário através das cenas da

enunciação e a construção do ethos caipira. A verificação de como se deu a construção das

cenas englobante e genérica, permitiu-nos reconhecer o tipo de discurso literário e a

construção do gênero causo.

Pela descrição das cenografias construídas tornou possível identificar como se

mostra o ethos caipira em seu tempo e espaço, fazendo uso de código linguageiro marcado

pela variante. Inclusive, o código linguageiro nos forneceu pistas para um mapeamento do

uso das pessoas do discurso e a relação delas com as imagens que os interlocutores

constroem de si e do outro na interação geradora do causo. Vimos que o enunciador faz uso

de uma língua dual, oscilando entre o emprego da norma culta, dita num tom didático, e a

variante caipira que, assume tons variados, conforme as cenografias construídas.

O ethos caipira é construído pela ativação lingüística de estereótipos, notadamente

acerca da corporalidade e de sua indumentária, via uma prática discursiva intersemiótica, já

que a descrição de Joaquim Bentinho é feita por palavras e complementada pela imagem de

Voltolino. Assim, confirmamos o pensamento de Maingueneau, para quem o ethos

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discursivo apresenta uma natureza social (pela ativação de estereótipos) e plurissemiótica

(ativados por língua e imagens).

A cenografia construída pelos causos nos permitiu ainda depreender a construção de

um ethos caipira em contraponto ao tipo criado por Monteiro Lobato, o que nos permite

dizer que essa construção se dá por meio de uma relação polêmica. O jeca de Cornélio Pires

se mostra trabalhador, comunicativo, resistente às adversidades em decorrência do

abandono pelo Estado, detentor de um conhecimento ímpar e dono de um posicionamento

político ante à realidade de seu país. Negando, portanto, o sitiante criticado em Urupês e

Velha Praga. Em consonância com as cenas e o ethos caipira a ser mostrado, variam-se os

tons empregados desde um tom melancólico, passando por um tom cômico, didático e até

político.

Temos de reconhecer outras imagens do caipira poderiam ser examinadas em

outros causos d’As estrambóticas aventuras de Joaquim Bentinho, bem como de qualquer

outra obra do autor. É também conveniente ressaltar que, em outros trabalhos, Cornélio

Pires encena vários caipiras, classificados por um critério étnico (ainda que sem rigor

científico); o que nos revela um escritor assujeitado a um pessimismo determinista e

biológico, em razão de uma taxonomia biologicizante, resquício do pensamento que mais

imperou em finais do século XIX. Em contrapartida, neste trabalho, ficamos com a visão

romântica do caipira semelhante ao mito do bom selvagem.

A verdade é que o universo caipira é uma esfera discursiva ampla, rica e polêmica

que convém ser explorada. Nosso percurso aqui traçado é somente uma ínfima amostra de

um terreno muito fecundo e instigante. Mais perguntas poderão ser feitas e a AD pode

muito ajudar a respondê-las.

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