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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC SP Edson Douglas de Oliveira UM JUDEU BATISTA NO BRASIL Relações entre Protestantismo, Estado e Sociedade no período da Velha República Com base na narrativa do missionário batista Salomão Ginsburg (1890 1909) MESTRADO EM HISTÓRIA São Paulo 2017

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC SP

Edson Douglas de Oliveira

UM JUDEU BATISTA NO BRASIL

Relações entre Protestantismo,

Estado e Sociedade no período da Velha República

Com base na narrativa do missionário batista

Salomão Ginsburg

(1890 – 1909)

MESTRADO EM HISTÓRIA

São Paulo

2017

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC SP

Edson Douglas de Oliveira

UM JUDEU BATISTA NO BRASIL

Relações entre Protestantismo,

Estado e Sociedade no período da Velha República

Com base na narrativa do missionário batista

Salomão Ginsburg

MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre

em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Fernando Torres

Londonõ.

São Paulo

2017

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Banca examinadora

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Agradecimento especial:

Essa pesquisa só foi possível mediante o apoio da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES) pela qual sou

imensamente grato.

São Paulo, 17 de julho de 2017

Edson Douglas de Oliveira.

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Agradecimentos:

Á Fundação São Paulo (FUNDASP), pela possibilidade de realizar a

minha pós-graduação com bolsa pela PUC SP.

Aos meus pais; à minha noiva Maria Ângela da Hora; aos professores do

departamento de pós-graduação de História da PUC SP, em particular o

professor Dr. Fernando Torres Londonõ que orientou essa pesquisa; a

Alessandra Oliveira de Proença, da Fonte Editorial, que primeiro me sugeriu

estudar o protestantismo dentro da realidade brasileira; à professora Drª Sandra

Colucci, da PUC SP, que ainda na graduação, como professora de Historiografia

na UNICASTELO me incentivou a prosseguir os estudos no strictu sensu; ao

amigo Paulo Ricardo Lima, advogado e atualmente mestrando em Políticas

Públicas pela Universidade Federal do ABC (SP), e aos funcionários da

biblioteca “Dirce Kaschel” da Faculdade Teológica Batista de São Paulo por toda

a solicitude na fase de consulta às fontes e de redação da presente dissertação.

A todos os meus mais sinceros agradecimentos.

São Paulo, março de 2017.

Edson Douglas de Oliveira.

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ÍNDICE

Prefácio. 16

Introdução. 18

CAPÍTULO I: Salomão Ginsburg, o “judeu errante”: primeiros tempos e

mudança para o Brasil. (1867 – 1890). Situação do meio eclesial protestante no

Brasil e sua recepção no âmbito da sociedade brasileira. 31

1. Os primeiros anos. 31

2. Os anos na Inglaterra (1885 – 1889). A conversão de Ginsburg. 33

2.1. O significado da conversão. 36

2.2. Preparativos da Missão. 38

2.3. Atividades em Portugal (1889 – 1890). Posicionamento de Ginsburg

em relação ao Catolicismo no Brasil. 39

3. Primeiros movimentos de Ginsburg no Brasil. 45

3.1. Situação do Brasil à época da chegada de Ginsburg. 45

3.1.1. Situação política e jurídica. 46

3.1.2. Situação econômica e social. 49

3.1.3. A Igreja Católica nos primórdios da República. 50

4. Atividades de Ginsburg na IEF (1890 – 1891). 55

4.1. Missão em Pernambuco e na cidade do Rio de Janeiro. 55

4.2. Ginsburg e a hinologia: o “Cantor Cristão” (1891). 58

4.3. Transição da IEF para a Igreja Batista (1891). 59

4.4. Primeiros movimentos na Igreja Batista: proselitismo entre os

congregacionalistas. 61

5. Salomão Ginsburg na Bahia (1892). 62

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5.1. A questão do “Testemunho exterior” na PIB da Bahia. 63

5.2. Ginsburg e a questão de gênero na PIB da Bahia. 64

5.3. Proselitismo e doutrinação. 69

5.4. Ginsburg e a Maçonaria. 72

6. Estado do Rio de Janeiro no final do século XIX. 77

6.1. Ginsburg no estado do Rio (1893 – 1900). A questão da identificação

confessional e atividades de colportagem. 80

6.2. A região norte fluminense na época de Ginsburg. 82

6.3. Ginsburg em Campos (1893). 84

6.4. Ginsburg em São Fidélis (1894 – 1895). 86

6.5. Ginsburg em Macaé (1898). 92

7. Salomão Ginsburg em Pernambuco (1900 – 1909). 95

7.1. Situação geral do estado. 97

7.2. A região da zona da mata norte de Pernambuco no começo do século

XX. 102

7.3. Ginsburg e o seminário batista do Recife (1902). 104

7.4. Atividades de Salomão Ginsburg na zona da mata norte de

Pernambuco (1897 – 1909). Interlúdio em Nazaré da Mata (1897) e atividade

missionária em Bom Jardim e Limoeiro (1900 – 1909). 108

7.5. Ginsburg em Nazaré da Mata (1897). Atividade missionária em Bom

Jardim (1900). 109

7.6. A perseguição contra os batistas em Bom Jardim. 111

7.7. Polêmicas na imprensa e queima de bíblias. 117

7.8. Ginsburg e Antonio Silvino. 121

7.9. Ginsburg em Limoeiro (1909). 125

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CAPÍTULO II: Situação do meio eclesial protestante no Brasil e sua

recepção no âmbito da sociedade brasileira. 129

1. Classificação do Protestantismo Brasileiro. 129

1.1. Protestantismo de Imigração. 129

1.2. Protestantismo de Missão ou de Conversão. 130

2. O Protestantismo de Missão no Brasil. 132

2.1. Congregacionalistas. 132

2.2. Presbiterianos. 133

2.3. Metodistas. 135

2.4. Batistas. 137

3. O campo eclesial batista: questões doutrinárias. 141

3.1. Evangelismo. 142

3.2. Batismo de conversão como testemunho público de fé. 143

3.3. Landmarquismo. 145

4. O sentido da Missão. 149

4.1. O conceito da Missão. 149

4.2. Breve histórico das missões protestantes. 152

4.3. A perspectiva da Missão nas conferências missionárias de Edimburgo

(1910) e do Panamá (1916). 154

4.4. A influência dos EUA na configuração do protestantismo de missão

brasileiro. 156

5. Os missionários. 161

5.1. Agentes das sociedades bíblicas. 161

5.2. Os colportores. 163

5.3. Os missionários denominacionais. 165

6. Estratégias missionárias. 166

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6.1. A imprensa. 167

6.2. Debates polêmicos. 168

6.3. A obra educacional. 171

7. A influência do ambiente norte-americano. 177

7.1. Predominância de uma “religião civil”, sem forma denominacional,

mas enraizada na vida social e religiosa do país. 178

7.2. Intepretação alegorista da Bíblia na lógica do “destino manifesto”. 180

7.3. A “religião civil” não exclui a identidade confessional que na verdade

se insere dentro daquela. 181

7.4. As igrejas protestantes brasileiras são oriundas de um ambiente

conservador, preconceituoso e racista. 182

7.5. Essa religiosidade é profundamente anticatólica. 188

7.6. Inferências institucionais dos EUA na vida social brasileira por meio

da atividade missionária. 190

8. Grupos sociais. 197

8.1. Fazendeiros e sitiantes. 197

8.2. Camadas urbanas. 200

8.3. Operários e ex escravos. 203

84. Os “ilustres”. 205

9. O fogo das perseguições. 207

9.1. As ocorrências. 211

9.2. Tipos de perseguições. 222

9.2.1. As ocorrências contra pessoas. 222

9.2.2. As ocorrências contra propriedades. 224

9.2.3. Queima de bíblias. 224

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CAPÍTULO III: O relato de Salomão Ginsburg como um hagiógrafo e

um registro de impressões sobre o Brasil. As influências recebidas e transmitidas

por Salomão Ginsburg no âmbito da Igreja Batista. 229

1. A construção da memória simbólica. 229

2. Conceituação de hagiógrafo. 231

2.1. A literatura hagiográfica no Protestantismo Brasileiro. 235

2.2. O Hagiógrafo como construção e como documento histórico. 239

3. A narrativa de Salomão Ginsburg. 241

4. O Brasil segundo Salomão Ginsburg. 247

4.1. Grupos sociais envolvidos na pregação de Salomão Ginsburg. 248

4.2. Visão eurocêntrica. 250

4.3. A economia brasileira, segundo Ginsburg. 256

4.4. Ginsburg e a educação. 259

5. Influências de missionários norte-americanos sobre Salomão Ginsburg.

262

6. A formação dos discípulos. 265

Considerações finais. 268

Bibliografia. 275

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Abreviaturas:

AD – Assembléias de Deus

CBB – Convenção Batista Brasileira

CPAD – Casa Publicadora das Assembléias de Deus

ETC – Escola de Trabalhadoras Cristãs (Recife)

JUERP – Junta de Educação Religiosa e Publicações.

ICP – Instituto Central do Povo (Rio de Janeiro)

IEF – Igreja Evangélica Fluminense (Rio de Janeiro)

IEP – Igreja Evangélica Pernambucana (Recife)

IECLB – Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil

IMES – Igreja Metodista Episcopal do Sul (EUA)

ISER – Instituto Superior de Estudos da Religião

IPB – Igreja Presbiteriana do Brasil

IPI – Igreja Presbiteriana Independente

PIB – Primeira Igreja Batista

PCUSA – Presbyterian Church (USA). Igreja Presbiteriana dos EUA.

SAMS – Sociedade Missionária Sul-Americana (Reino Unido)

SBA – Sociedade Bíblica Americana

SBBE – Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira.

STBNB – Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil (Recife)

STBSB – Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil (Rio de Janeiro)

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Foto de Salomão Louis Ginsburg (1867 – 1927) extraído do livro “Esboço

Histórico do Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil” de David Mein, 1977, e

contracapa da edição de 1922 em inglês de “Um Judeu Errante no Brasil”, publicado pela

Junta de Escolas Dominicais da Convenção Batista do Sul dos EUA, em 1922. (Acervo

do autor)

Capas da primeira edição em português de “Um Judeu Errante no Brasil”,

publicado pela Casa Publicadora Batista em 1931, e da segunda, de 1970 editada pela

junta de Educação Religiosa e Publicações, JUERP com retrato de Salomão Ginsburg.

(Acervo da Faculdade Teológica Batista de São Paulo)

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Articular historicamente o passado não significa conhece-lo “tal como ele de

fato foi”. Significa apropriar-se de uma recordação, como ela relampeja no momento

de um perigo.

(Walter Benjamin. Sobre O Conceito de História, 6)

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Prefácio

A presente pesquisa se propõe a estudar o desenvolvimento do

protestantismo no Brasil Republicano e suas relações com os diversos extratos

da sociedade brasileira nesse período a partir do relato de um dos seus

personagens, o missionário batista Salomão Ginsburg (1867 – 1927), autor do

livro Um Judeu Errante no Brasil. O relato memorial de Ginsburg será a base

dessa pesquisa.

Publicado em inglês em 1922 e em português pela primeira vez em 1931,

passou a constar desde então em várias obras historiográficas dedicadas ao

protestantismo além de se tornar uma referência como literatura de edificação

ou hagiográfica. Ginsburg, nascido numa comunidade de judeus poloneses,

tornou-se cristão protestante na Inglaterra de onde veio para o Brasil a princípio

como missionário da Igreja Evangélica Fluminense, passando depois para o

campo batista, igreja que representou no Brasil por trinta e seis anos,

notadamente nos estados do Rio de Janeiro e Pernambuco, onde atuou de 1893

a 1909. Atuou como colportor, vendendo bíblias e literatura religiosa nas regiões

por onde passou, compôs hinos (boa parte dos hinos do hinário batista Cantor

Cristão, ainda hoje usado pela denominação são de sua lavra), escreveu em

jornais, em geral polemizando contra padres e católicos leigos, fundou igrejas e

consolidou o trabalho missionário batista no norte fluminense e na zona da mata

pernambucana. Essas polêmicas anticatólicas, bem como suas relações com os

poderes constituídos aos quais recorrerá não poucas vezes sob o pretexto da

liberdade religiosa, de consciência e de crença e, por fim, a sua filiação à

Maçonaria, irão colaborar para sua aproximação dos extratos mais influentes da

sociedade brasileira em sua época, lembrando que nesse momento histórico os

elementos componentes das igrejas protestantes brasileiras são

predominantemente brancos, letrados e situados nas camadas altas ou

intermediárias da população, ficando a base infensa a esse contato até o advento

do pentecostalismo no início do século XX.

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Essa relação de poder entre missionários e as forças político-institucionais

da sociedade brasileira, sejam eles pertencentes ao grupo dos grandes

proprietários de terra (ou mesmo proprietários de médio porte que compensam

a pouca extensão de suas terras com conexões políticas influentes ou outras

atividades econômicas de maior rentabilidade como o comércio ou a mineração)

ou a incipiente classe média de onde saem os intelectuais e boa parte da

primeira liderança protestante nacional, é um fenômeno que pode ser

identificado e atestado em praticamente toda a historiografia do Protestantismo

Brasileiro, como testificam as obras de Émile Léonard1, Antonio Gouvêia de

Mendonça2 e, mais recentemente, a pesquisa do professor Eber Ferreira de Lima

acerca da vida e do ministério do reverendo presbiteriano Eduardo Carlos

Pereira (1855 – 1923)3. Podemos ainda perceber nessas obras um largo enfoque

no período imperial, época em que a quase totalidade das igrejas protestantes

de missão se insere na vida do país, e, ao mesmo tempo, uma atenção relativa

ao período republicano que é a época em que essas igrejas estão consolidadas

e em vias de autonomia das agências missionárias estrangeiras. A publicação

de A Bíblia no Brasil República, de Luiz Antonio Giraldi (2013) pode ser

considerada um esforço para romper as lacunas que ainda encontramos sobre

a história do protestantismo brasileiro no período republicano.

Em suma, a Historiografia precisa se fazer presente nesse campo de

pesquisa para que se possa ampliar o conhecimento acerca do panorama geral

das igrejas protestantes no Brasil no alvorecer do período republicano, bem

como as relações que tais igrejas entretinham com os diversos grupos de poder.

O relato do missionário Salomão Ginsburg será o veículo por meio do qual

trilharemos esse caminho acidentado.

Edson Douglas de Oliveira.

Julho 2017.

1 LÉONARD Émile G. O Protestantismo Brasileiro, p. 106 – 116. 2 MENDONÇA Antonio Gouveia de. O Celeste Porvir, p. 81 – 82. 3 LIMA Eber Ferreira Silveira. Entre a Sacristia e o Laboratório, p. 32 – 46.

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Introdução

O Protestantismo está inserido na vida social brasileira de longa data. As

comunidades mais antigas possuem mais de um século e meio de história e seus

institutos educacionais como o presbiteriano Mackenzie, de São Paulo, e o

metodista Bennett, do Rio de Janeiro, fincaram raízes na vida cultural e social do

país. Intelectuais como Fernando Azevedo (A Cultura Brasileira, 1943, Educação

e Educadores, 1953) e Gilberto Freyre (Ordem e Progresso, 1959), também

detectaram essa presença. Contudo, o Protestantismo continua com pouca

visibilidade historiográfica. Se nos atinarmos apenas a publicações de caráter

historiográfico como a coleção História da Civilização Brasileira, a presença do

Protestantismo simplesmente não aparece. E até mesmo em publicações

especializadas no campo eclesial como a História da Igreja no Brasil, publicada

conjuntamente com o CEHILA, a presença de uma História do Protestantismo

ainda ocupa um espaço bem diminuto. Daí a necessidade de se trazer a lume

parte dessa história a partir do registro dela deixado por um dos seus principais

protagonistas, o missionário polonês radicado na Inglaterra Salomão Louis

Ginsburg, a fim de não apenas trazer esse elemento histórico constituinte de

nossa formação como também entender o seu desenvolvimento a partir das

relações de poder que tais grupos constituíram no Brasil a partir do processo

histórico de sua introdução na sociedade brasileira.

Por que estudar o protestantismo brasileiro a partir de Ginsburg? Por que

não o pesquisar a partir de elementos que se preocuparam com sua

contextualização histórica e social como Eduardo Carlos Pereira, Erasmo Braga

ou Epaminondas Melo do Amaral? Por que não o estudar tomando por base as

experiências de reforma social intentadas dentro das igrejas protestantes, quer

sejam aquelas que resultaram em ações concretas como o Instituto Central do

Povo ou o Hospital Evangélico, quer aquelas que se inserem no terreno

programático como o Manifesto dos Ministros Batistas, de 1963? Por que não

enfocar aqueles personagens comprometidos com projetos de reforma social ou

que demonstraram, já naquelas quadras remotas a consciência ecumênica,

como Hugh Clarence Tucker e John James Ramson? Será por certo pelo fato de

que o Protestantismo Brasileiro não assumiu nenhum dos parâmetros que

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mencionamos há pouco. Ele não é reformista, porque seus projetos de reforma

são abortados ainda dentro da própria denominação ou não conseguem

galvanizar a comunidade protestante como um todo, e mesmo quando o

conseguem, como no caso do ICP, tal se dá no plano das ações isoladas e de

caráter mais filantrópico do que propriamente institucional. Também não é

ecumênico haja visto que os atores acima mencionados exerceram influência

periférica na História do Protestantismo Brasileiro, mas sem conseguir eclipsar

o anticatolicismo e o discurso individualista herdado das igrejas dos EUA, país

de onde são oriundas a maioria dessas comunidades.

Por outro lado, esse protestantismo, especialmente o chamado

Protestantismo de Missão ou de Conversão, assumiu desde os seus

prolegômenos um claro viés proselitista. Quase todos os missionários desde os

pioneiros Robert Kalley (1855), congregacionalista, e Ashbel Green Simonton

(1859), presbiteriano, enfatizaram a conversão como necessidade fundamental

de transformação da sociedade e o abandono da herança ibérica personificada

pela influência da Igreja Católica na sociedade brasileira. Contudo, ambos se

encontram no Império e esse fato representou um sério obstáculo aos seus

respectivos ministérios de pregação. Ginsburg, ao invés, conta com toda a

liberdade de movimentação que é oferecida pelo regime republicano laico e

exerce suas atividades de proselitismo de modo ainda mais radical do que seus

antecessores e até mesmo em relação a outros missionários batistas que atuam

no Brasil no mesmo período como Zachary Taylor em São Paulo e R.E. Pettigrew

nas Alagoas. Ginsburg, portanto, potencializa um discurso de proselitismo de

viés anticatólico e que vê com censura a cultura brasileira, o que, do ponto de

vista histórico, sempre esteve na gênese do protestantismo de matriz

conversionista.

Uma vez que estaremos trabalhando com a história de um missionário

batista e conhecendo a ênfase dada por essa denominação ao esforço de

conversão de viés proselitista, precisamos abrir aqui um parêntese para uma

conceituação do termo “proselitismo”. De fato, para os propósitos deste estudo,

“proselitismo” não diz respeito apenas a um esforço conversionista ou de

transmissão de valores de determinada igreja ou forma de religião para um

neófito ou mero ouvinte, mas antes a reprodução de toda uma visão de mundo

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e de valores que se condensa juntamente com o discurso religioso e o sustenta.

É bem verdade que no afã proselitista a ênfase nos bens de salvação (Bourdieu)

conduz naturalmente o prosélito no caminho da nova hierocracia (Weber) onde

uma nova hierarquia e novos valores será trazida à lume como panacéia

suprema que se autolegitima no afã evangelístico. Contudo, os missionários que

desenvolveram suas atividades no Brasil não trouxeram apenas o discurso

religioso, mas também o político representado pela idealização do mundo de

matriz anglo-saxônica, como alternativa exponencial para uma sociedade recém-

emancipada e governada por uma elite de mentalidade retrograda, mas

fascinada pelo discurso progressista do liberalismo anglo-americano com a qual

se identifica em suas idéias, mas que não corrobora em suas práticas, servindo

ainda esse discurso como base de legitimação de sua própria religião, na medida

em que este apresenta o mundo anglo-saxônico como a perfeita realização de

um pretenso ethos divino. Em alguns missionários como Robert Speer, que será

bastante mencionado nesse estudo, tal ênfase é recorrente, bem como no

teólogo batista A R Crabtree4, autor de uma das primeiras histórias dos batistas

brasileiros e que não mede encômios em sua apologia ao mundo norte-

americano, chegando ao ponto de associar seu nascimento “à atividade

incansável dos batistas”5. Desse modo, o conceito de proselitismo se aplica tanto

ao discurso religioso quanto ao político, que, aliás, é um pormenor percebido

também por Tocqueville que em seu estudo sobre a democracia estadunidense

percebeu a associação entre a Religião e o Estado, um empenhado na

legitimação e na justificação do outro, embora exercendo funções rigorosamente

separadas uma da outra.

Contudo, o Protestantismo Brasileiro não nasceu com o viés proselitista.

Ao contrário: as primeiras igrejas protestantes, a anglicana e a luterana não

tinham intenção de converter o povo, funcionando uma como capelania e outra

como entidade de atendimento a comunidades de imigrantes alemães da

4 Asa Routh Crabtree (1889 – 1965). Missionário batista norte-americano enviado pela Junta de

Richmond para o Brasil, em 1921. Pastoreou a Igreja Batista da Tijuca, no Rio, concliando essa função com

a de professor no STBSB onde assumiu a direção interina de 1939 a 1940 e em caráter efetivo de 1945 a

1954, retornando aos EUA jubilado em 1958. A respeito de Crabtree, ver PEREIRA José Reis. História

dos Batistas no Brasil, p. 293. 5 CRABTREE A.R. História dos Batistas no Brasil, I, p. 37.

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Diáspora6. E quanto a Daniel Kidder, que atuou como agente da SBA no Brasil

no período regencial percorrendo o país e recolhendo impressões que mais tarde

constituiriam o material das suas recordações de viagem, publicadas após seu

retorno aos EUA, em 1840, suas idéias cogitavam na verdade uma reforma dos

costumes religiosos do país, até por conta de suas simpatias pelas idéias

reformistas do regente do Império, o padre Diogo Feijó, como observou Léonard,

ao invés de uma conversão progressiva da nação ao protestantismo7. Esse

formato conversionista só foi assumido na segunda metade do século XIX

quando da chegada do médico escocês Robert Kalley e dos missionários

presbiterianos, e a aproximação destes dos elementos ligados às instâncias de

poder, o que é facilitado pelo fato de que tanto os protestantes quanto as

camadas liberais da sociedade compartilhavam de uma mesma ideologia (o

liberalismo) e de um mesmo espaço de atuação (a maçonaria). Para exemplificar

esse fato – um exemplo apenas, dos muitos que teremos a seguir – lembramos

que os relatórios encarregados de propor melhorias no sistema de parceria,

feitos na década de 1850, com a intenção de fortalecer a imigração europeia por

meio do regime de colonização, sugeriram a contratação de pastores para

atender os colonos protestantes que fossem enviados para as lavouras de café

além do que, que se resolvesse o quanto antes o problema dos casamentos

desses colonos, o que só ocorreu em 1861 quando do reconhecimento do

casamento de acatólicos. É claro que em um contexto onde homens de alta

posição flertam com idéias que não são aquelas que moldaram a configuração

política e religiosa do Estado Brasileiro, e o liberalismo protestante não deixava

de ser uma delas, ficava mais do que evidente que de modo algum a “religião

oficial do Estado” tinha opinião predominante dentro da sociedade brasileira.8

Compreender as relações entre o chamado “Protestantismo Histórico” e os

diversos segmentos da sociedade brasileira, em particular durante o período

republicano, é a tarefa proposta por essa pesquisa.

O protestantismo conversionista brasileiro, sobre o qual nos deteremos

com mais atenção, é representado por quatro grupos citados aqui por ordem de

6 Ver o artigo sobre o Protestantismo de ABREU Martha e CARVALHO Maria Lígia Rosa. In

VAINFAS Ronaldo (diretor). Dicionário do Brasil Imperial, p. 595 – 597. 7 LÉONARD Émile G, op cit, p. 45 – 47. 8 COSTA Emília Viotti. Da Senzala à Colônia, p. 129.

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introdução em nosso país, os congregacionalistas, os presbiterianos, os

metodistas e os batistas. Os primeiros tiveram um crescimento incipiente,

pautado no proselitismo e na colportagem, mas que foi eclipsado com o retorno

do seu fundador, o missionário Robert Kalley, para a Inglaterra. A Igreja

Presbiteriana, a denominação que mais rapidamente se nacionalizou, foi

abalada pela crise que resultou em sua divisão em 1903 e do qual resultou o

surgimento da Igreja Presbiteriana Independente. Os metodistas, com atuação

destacada na educação, fundaram colégios e universidades nas principais

cidades do Centro-Sul do país, região onde também concentrou sua atividade

missionária. Quanto a Igreja Batista, esta teve o crescimento mais rápido e

avassalador, pois de acordo com o relatório Braga/Grubb, redigido pelo ministro

presbiteriano brasileiro Erasmo Braga e pelo missionário anglicano inglês

Kenneth Grubb, os batistas, que representavam 8,5% da população protestante

brasileira em 1922 passaram para 30% dez anos mais tarde,9. Contudo, a partir

desse momento, por conta dos efeitos da Questão Radical que dividiu o meio

batista brasileiro no período que vai de 1923 a 1936 e que teve sua causa

justamente na questão do financiamento da obra missionária batista e sua

dependência incômoda dos fundos estadunidenses é que se começa a perceber

o decréscimo do total de prosélitos dessa igreja tanto em números absolutos

quanto em relativos, o que sugere o acerto, em parte, da tese do pastor e

historiador batista José Reis Pereira de que a Questão Radical teve

desdobramentos e consequências para muito além do seu momento histórico10,

embora, é claro, o problema não se restrinja apenas a essa causa.

No entanto, mesmo com a progressiva queda do número de membros nos

decênios seguintes, a Igreja Batista ainda continua ocupando uma posição

destacada no meio estritamente protestante. Em 2000 eles representavam

12,07% do total de membros desse grupo, caindo para 8,81% em 2010. Já os

presbiterianos despencaram de 3,74% para 2,18%, os metodistas de 1,30% para

0,81% enquanto os congregacionalistas variaram negativamente de 0,56% para

9 Ver CAMPOS Leonildo de Oliveira. “Evangélicos de Missão: em declínio no Brasil”. In

TEIXEIRA Faustino; MENEZES Renata. Religiões em Movimento. O censo de 2010, p. 150. Sobre o

relatório Braga/Grubb, The Republic of Brazil: a Survey of the Religions Situation (1932) ver CAMPOS

Breno Martins; DOLGHIE Jacqueline Ziroldo. “Declínio Católico, Estagnação Protestante e Crescimento

Pentecostal”, in LEONEL João (org.). Novas Perspectivas do Protestantismo Brasileiro, II, p. 25. 10 PEREIRA José Reis, História dos Batistas no Brasil, p. 172.

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0,26% no mesmo período11. Dessa forma, não obstante o declínio dos

percentuais, o grupo batista ainda continua sendo não só o maior dentre os

chamados “protestantes de missão”, como também, nesse sentido, o mais

influente.

A atividade missionária batista foi exercida por missionários treinados e

enviados pela Junta de Missões de Richmond, entidade ligada à Convenção

Batista do Sul dos EUA. Esses missionários tinham algumas características

comuns que eram reflexo do seu ambiente social e cultural, como o

conservadorismo teológico, o liberalismo político, o individualismo como

fundamento ideológico e teológico, o anticatolicismo e a rejeição dos costumes

nacionais, que pode ser reflexo do ambiente racista formado em torno da

questão da escravidão e do qual resultou a Guerra Civil Americana ou da

literatura missionária que circulava no meio protestante nessa época, que

colocava os missionários em um papel predominantemente ativo no processo de

evangelização, submetendo as populações nativas à condição de meros

receptores da mensagem pregada. A transição do Império para a República

significou a ampliação dessas atividades com a vinda de mais missionários e

uma disseminação desses elementos pelas diversas regiões do país. Dentre

esses, Salomão Ginsburg constitui-se pioneiro dessa fase. Ginsburg missionou

no Brasil entre 1891 e 1927, com área de concentração principalmente nos

estados do Rio de Janeiro e Pernambuco, mas não restringiu suas atividades

apenas à pregação e ao proselitismo. Como o casal Kalley, Ginsburg também

teve uma marcante atuação na hinologia, sendo o autor do Cantor Cristão,

publicado em 1891 e depois incorporado ao patrimônio hinológico batista, e que

junto com a coleção de Salmos e Hinos, compilados por Sarah Kalley trinta anos

antes formarão por um bom tempo a base da hinódia protestante brasileira12.

Também foi um dos fundadores do seminário batista do Recife onde por algum

tempo exerceu funções docentes.

É bem verdade que outros missionários também usaram dessas relações

com os propósitos mais diversos e aqui podemos chamar a atenção para Hugh

Clarence Tucker (1857 – 1956), agente da SBA e pastor por alguns anos da

11 CAMPOS Leonildo, In TEIXEIRA Faustino; MENEZES Renata, op cit, p. 148. 12 BRAGA Henriqueta Rosa Fernandes. Música Sacra Evangélica no Brasil, p. 192 – 193.

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Igreja Metodista do Catete, no Rio. Mas Tucker estava sob a influência do

evangelho social norte-americano13 do qual constitui principal legado o ICP,

fundado por ele em 1906; e ainda consta o seu trabalho como organizador da

publicação da Tradução Brasileira, a primeira bíblia protestante publicada no

Brasil, uma produção coletiva que envolveu missionários estrangeiros e

intelectuais brasileiros, evidenciando assim seu trânsito pelos mais diversos

círculos. Sua atuação no Brasil, sem ser proselitista era claramente reformista.

Ginsburg, ao contrário, era proselitista e totalmente anticatólico. Só consegue

pensar em uma reforma da sociedade brasileira quando esta aderisse aos

“princípios batistas”, de que fala o historiador Crabtree. Proselitismo,

anticatolicismo e denominacionalismo são as tônicas da atividade missionária de

Ginsburg sendo esses três elementos os fatores constituintes da gênese do

protestantismo brasileiro.

Ginsburg é um personagem pouco estudado pela historiografia do

protestantismo brasileiro. Apenas a título de exemplo, no Departamento de

História da USP foi defendida uma tese sobre ele em 1999, de autoria de Paulo

de Souza Oliveira (Estratégias de uma Missão Salomão Ginsburg e a Construção

do Ideário Batista (1890-1927 e orientada pela professora Drª Maria Luiza Tucci

Carneiro), enfocando suas estratégias de evangelização com destaque

secundário aos aspectos propriamente políticos do seu ministério. É exatamente

esse último ponto um dos elementos centrais da presente dissertação: trazer

para o campo das discussões historiográficas as relações de poder tanto do

ponto de vista político quanto do pessoal, a partir da mesma experiência

missionária e do mesmo personagem14.

As atividades missionárias de Salomão Ginsburg foram por ele

registradas em um relato publicado nos EUA em 1922 com o nome de Um Judeu

Errante no Brasil (A Wandering Jew in Brazil). Tanto o trabalho propriamente

missionário quanto as idéias que tinha em relação ao Brasil e seu povo estão

enfeixadas nesse livro que é o material com o qual procuraremos responder as

13 Sobre o Evangelho Social, ver TILLICH Paul. Perspectivas da Teologia Protestante, séculos

XIX e XX, p. 41 e 93. Ver também REILY Duncan Alexander. História Documental do Protestantismo no

Brasil, p. 275 – 277. 14 http://www.memoriadamusica.com.br/site/index.php/historia-e-musica-na-universidade2/95-

estrategias-de-uma-missao-salomao-ginsburg-e-a-construcao-do-ideario-batista-1890-1927 acesso

17/05/17.

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questões propostas na presente pesquisa e que são as seguintes: quais os

grupos sociais com os quais Ginsburg está em diálogo em todo o seu livro? Que

poder ou influência eles tinham no âmbito nacional e local? Que tipo de

sociedade Ginsburg idealiza para o Brasil? Que influencia resultou desse vínculo

entre protestantismo e os grupos sociais com os quais ele flerta, considerando a

experiência precedente dos batistas? O protestantismo brasileiro – e aqui

estamos trabalhando a partir da experiência batista – conseguiu tornar-se uma

influência perene no Brasil ou, ao contrário, reproduziu os mesmos vícios já

encontrados nos diversos extratos da sociedade brasileira, vícios esses cujas

origens remontam ainda aos dias do regime colonial?

Desde o início fica evidente que quanto mais tempo em atividade no país,

mais profundamente vai Ginsburg se enfronhando nas entranhas do poder

político, quer no âmbito local por meio das relações com chefes políticos de

localidades interioranas – ele logo percebe que sem esses canais de

comunicação seu ministério de pregação não irá prosperar – quer no âmbito

nacional por meio de contatos com políticos e mesmo com o Congresso Nacional

quando sente que nem ele, nem seus companheiros, estão devidamente

seguros. Esse pormenor é significativo: a longa permanência de Ginsburg no

país faz com que sua intransigência quanto aos “princípios batistas” comece a

dar lugar a formas de negociação que não poucas vezes entram em colisão com

alguns aspectos fundamentais desses mesmos princípios (embora,

paradoxalmente, não em contradição com o sentido da missão em relação aos

povos por ela visitados como veremos ao longo desse estudo). Daí porque a

pesquisa se concentre nas relações institucionais com grupos influentes da

sociedade brasileira do período inicial da República e, a partir daí, examinar as

demais conexões que são estabelecidas com outros extratos sociais,

notadamente naquelas áreas onde foi possível se verificar uma expansão

significativa das igrejas protestantes, isto é, nos territórios onde a ausência de

uma presença católica, institucional ou leiga, favoreceu a ocorrência desse

evento.

O relato de Ginsburg foi publicado em inglês pela Junta de Escolas

Dominicais da Convenção Batista do Sul dos EUA dada a intenção do autor e

dos editores de fazer daquela publicação um instrumento para recrutar novos

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missionários para a obra batista que, naquele momento, experimentava uma

expansão geral pelo Brasil, além de divulgar seu trabalho e descrever a situação

do país para os futuros candidatos ao ministério. O próprio tradutor da versão

portuguesa, lançada em 1931, o pastor Manoel Avelino de Souza15, confirma que

o livro se destina a “incentivar e inspirar o espírito missionário e a consagração

de vidas à causa do Mestre no Brasil”,16 além de destacar o caráter da obra como

sendo “genuinamente brasileira” dada a intensa atividade de Ginsburg no país,17

embora os princípios doutrinários e religiosos sejam inequivocamente formados

alhures. Também T.B Ray, secretário da Junta de Missões Estrangeiras da

Convenção Batista do Sul (EUA) destaca o fato de que Ginsburg não pretende

contar a História dos Batistas no Brasil, mas fazer seu próprio relato de

impressões sobre o país, procurando despertar a vocação missionária, vindo daí

a convicção de que o livro talvez fosse mais útil em classes de missões18. O livro

é, portanto, uma mistura de hagiógrafo com publicidade.

A obra se divide em dez capítulos. No primeiro, “preparação para o

serviço”, Ginsburg descreve seu nascimento e formação na Polônia, dentro dos

conformes da cultura judaica e posterior conversão ao Protestantismo na

Inglaterra, o período em que vive na Mildmay Mission (1885 – 1890) e seu

posterior ingresso no serviço missionário. No capítulo II, “acertando meu rumo”,

fala da sua chegada ao Brasil e seu trabalho inicial no Rio de Janeiro junto aos

congregacionalistas antes de passar para a obra batista ainda nos primórdios de

seu ministério. O terceiro capítulo trata das atividades de Ginsburg na capital

baiana durante o ano de 1892 e que serve como interlúdio para o relato

missionário propriamente dito, isto é, o trabalho realizado nos estados do Rio de

Janeiro e Pernambuco, tema dos dois capítulos seguintes. O sexto capítulo é um

resumo das atividades de Ginsburg como missionário em vários estados do país

com destaque para o período em que atuou na Amazônia e outros registros de

15 (1886 – 1962), bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Sul, Rio de Janeiro

(1916), especializado em Homilética pelo Seminário Batista do Sul de Louisville (1924), presidente da

Convenção Batista Brasileira (1919, 1925, 1928 e 1929) e bacharel em Filosofia pela Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras do Rio, em 1929. De 1917 a 1962 foi pastor da Primeira Igreja Batista de

Niterói, fundada por Ginsburg no começo do seu ministério no Brasil. Compositor, escreveu 26 hinos do

Cantor Cristão, o hinário batista compilado por Ginsburg. PEREIRA José Reis, op cit, p. 210 – 211. 16 GINSBURG Salomão L. Um Judeu Errante no Brasil, p. 7. 17 Ibidem, op cit, p. 7. 18 Idem. p. 16.

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atividade no Nordeste, principalmente na Bahia. É uma coletânea de anedotas e

relatos dispersos que não tem como nos capítulos IV e V uma sistematização

orgânica, nem se prendem a um determinado universo territorial. O capítulo VII

“recrutando para o Mestre”, ao invés, é de suma importância, pois exemplifica o

processo de reprodutibilidade de valores simbólicos e religiosos na formação das

lideranças nacionais na fase de consolidação do trabalho missionário, e por isso

precisa ser analisado mais detidamente. O capítulo VIII “companheiros e amigos”

também é importante já que mostra as relações institucionais de Ginsburg dentro

da Igreja Batista e como a influência dos missionários estadunidenses

condensou e modelou o tipo de comunidade e liderança que se formou no Brasil.

No capítulo IX “O Brasil como Campo Missionário”, temos a razão de ser da obra:

é um apelo de Ginsburg para seus leitores nos EUA a fim de que venham mais

obreiros para trabalhar no Brasil, mas, ao mesmo tempo, é uma rica fonte de

informações que revela o pensamento do autor em relação ao país, sociedade,

economia e religião, sendo, portanto, um dos capítulos mais importantes do livro,

senão o mais importante. O último capítulo é na verdade um panegírico à

memória de Ginsburg onde são descritas as várias atividades deste na Igreja

Batista durante seu ministério no Brasil.

Quando pensamos na autobiografia de Salomão Ginsburg formado por

um caudal de experiências e sentimentos pessoais, é inevitável refletir sobre as

especulações de Marc Bloch com relação a validade per si do documento como

fonte histórica, ainda mais considerando que esse relato autobiográfico acabou

também exercendo a função de um hagiógrafo o que enseja uma maior

precaução quanto natureza de certas narrativas e ponderações do seu autor.

“Há muito tempo estamos alertados no sentido de não aceitar cegamente todos

os testemunhos históricos (...) nem todos os relatos são verídicos e os vestígios

materiais também podem ser falsificados”.19 Uma vez que o documento não é

plenamente a testemunha da verdade, como nos diz Sofia Boesch Gajano

acerca da tênue fronteira entre ficção e realidade nos hagiógrafos20, em que

podemos nos fiar para ter em Ginsburg uma testemunha histórica do seu tempo,

ou pelo menos uma testemunha minimamente aceitável? É bastante conhecida

19 BLOCH Marc. Apologia da História, p. 89. 20 GAJANO Sofia Boesch. “Literatura Hagiográfica”. In BERNARDINO Angelo di; FEDALTO

Giorgio; SIMONETTI Manlio (org.). Dicionário de Literatura Patrística p. 909.

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a explicação que Tulcídides fez acerca do seu método de investigação para

reproduzir os discursos que ouviu durante a guerra do Peloponeso e que revelam

bem a dificuldade do historiador, qualquer que seja, em lidar com fontes, sejam

elas quais forem: “Tais discursos”, diz Tulcídides, “são reproduzidos com as

palavras que, no meu entendimento (grifo meu), os diferentes oradores deveriam

ter usado (...) embora, ao mesmo tempo, eu tenha aderido tão estritamente

quanto possível ao sentido geral do que havia sido dito”21. Também Léonard

recomenda precaução no exame das obras produzidas dentro de ambientes

eclesiais já que nem sempre elas revelam as características do “trabalho

evangélico” do Protestantismo Brasileiro.22Em suma, a memória, nesse livro, tem

significado funcional: ela procura modificar “em bases duradouras e profundas a

prática e a visão de mundo dos leigos, impondo-lhes e inculcando-lhes um

‘habitus religioso’ particular, isto é, uma disposição duradoura, generalizada e

transferível de agir e de pensar conforme os princípios de uma visão (quase)

sistemática do mundo e da existência”.23 E isso tanto para os que já fazem parte

da comunidade da fé, como também (e principalmente) para os neófitos que

estão entrando nesse novo sistema.

Optamos por concentrar a temporalidade da pesquisa no período

republicano tanto por ser essa uma época sobre a qual a historiografia clássica

quanto a mais recente do tema tem se detido pouco, como já destacamos no

prefácio, como também para entender melhor as relações entre o protestantismo

e o catolicismo a partir da separação Igreja-Estado, estabelecida pela

Constituição de 1891 e que causou uma radical transformação nesse mesmo

catolicismo agora liberado das restrições que lhe impunha o Padroado colonial.

A partir daí o catolicismo desenvolverá um esforço para recuperar o terreno

perdido e que terá consequências diversas conforme a região do país. A inserção

do protestantismo nessas regiões se dará a partir de sua capacidade de

articulação com os velhos patriarcas do liberalismo clássico e da possibilidade

(e, sobretudo, da forma) de reação da Igreja Católica, conforme a região onde o

protestantismo se insira.

21 TULCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso, p. 14. 22 LÉONARD Émile G, op cit, p. 25. 23 BOURDIEU Pierre. A Economia das Trocas Simbólicas, p. 88.

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A presente dissertação está dividida em três capítulos. O primeiro trata da

vida de Salomão Ginsburg desde o nascimento com enfoque em sua atividade

missionária nos estados do Rio de Janeiro e de Pernambuco. O segundo procura

apresentar o chamado Protestantismo de Missão, grupo no qual a Igreja Batista

e Ginsburg em particular se insere, bem como as estratégias missionárias e o

tipo de discurso por meio do qual esse mesmo protestantismo buscou inserção

na sociedade brasileira. O terceiro capítulo é uma análise do seu relato e do tipo

de imagem do Brasil que ele construiu durante a sua passagem pelo país,

sobretudo do ponto de vista econômico, bem como as influências sofridas e

exercidas por Ginsburg, particularmente as relações por ele entretidas com os

elementos da missão norte-americana.

A instrumentalização teórica será feita, principalmente, com base nas

formulações propostas por Pierre Bourdieu acerca do campo (e, principalmente)

do trabalho religioso, e de Michel Foucault sobre a construção, reprodução e

institucionalização do discurso, em especial no que concerne à construção de

um discurso religioso. Em termos mais específicos, concentraremos a reflexão

teórica em duas obras basilares, A Economia das Trocas Simbólicas, de

Bourdieu, e A Ordem do Discurso, de Foucault. Lembremos que Um Judeu

Errante no Brasil é um relato escrito por um missionário e que o seu público é a

igreja batista do sul dos EUA, que financia seus projetos missionários sendo este

trabalho, portanto, uma prestação de contas dessas atividades. Além disso, pela

própria especificidade desse tipo de escrito que possui muitos elementos de

convergência com a literatura religiosa de edificação comumente chamada de

hagiográfica, como as narrativas de cunho edificativo, infusões místicas, relatos

de provações que tem por finalidade temperar o espírito religioso para as labutas

da vida e as provas da fé e, finalmente, a prática proselitista, recorremos também

ao estudo sobre literatura hagiográfica, da pesquisadora italiana Sofia Boesch

Gajano, medievalista e estudiosa da História da Igreja do período patrístico.

Usaremos o conceito de Igreja proposto por Max Weber dado que ele se

aproxima bastante do conceito de Denominação24, já bem arraigado nos círculos

24 No meio acadêmico brasileiro, “Igreja” e “Denominação” tornaram-se praticamente sinônimos

dada a regularidade quanto ao uso do último termo e a proximidade conceitual de ambos. Ver REILY

Duncan Alexander, op cit, p. 38 – 39.

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acadêmicos que estudam as relações sociais a partir da realidade eclesial. Para

Weber, Igreja é a hierocracia que se desenvolveu em “estamento especial” a

partir da profissionalização do corpo sacerdotal que, além disso, também possui

deveres regulamentados e uma separação do “mundo”; que manifesta

pretensões de dominação “universalistas”, isto é, quando o grupo religioso deixa

a esfera do clã ou da tribo e se insere dentro de um projeto de “nivelamento

religioso completo”; que dá racionalidade às suas práticas religiosas,

sistematizando o culto e o dogma ao mesmo tempo que fornece caráter

instrucional a seu corpo de escritos canônicos devidamente comentado e usado

como material formativo, como a literatura consumida pelas escolas dominicais;

que assume caráter institucional, bastante diverso daquele da seita, porque no

caso da igreja ela se investe daquilo que Weber chama de “carisma de cargo”

ao assumir o monopólio dos bens de salvação. Além disso, ela formula suas

exigências ao poder político e atuando junto com o mesmo, por exemplo, por

meio de intervenções no campo educacional25. Aqui também se pode destacar

como praticas institucionais normativas da Igreja-Instituição o uso da exclusão e

excomunhão contra os recalcitrantes e o boicote aos elementos excluídos do rol,

práticas que, conforme Weber são igualmente próprias de “toda hierocracia”.26

O livro de Émile G. Léonard sobre o protestantismo brasileiro, em que

pese as novas questões metodológicas que em boa parte suplantaram suas

reflexões iniciais, ainda é o manual básico para o estudo da história e das

relações sociais das igrejas protestantes brasileiras e, por isso, uma leitura

incontornável para a compreensão do papel histórico desse mesmo

protestantismo dentro da realidade brasileira. Muito do que ele escreveu nos

anos 50 foi retomado no final dos anos 70 por Antonio Gouvêia de Mendonça,

que, trabalhando no campo sociológico, irá produzir uma importante contribuição

historiográfica ao assunto, ao qual também retomaremos em alguns momentos.

25 WEBER Max. Economia e Sociedade, 2, p. 368. 26 Ibidem, p. 369.

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CAPÍTULO I

Salomão Ginsburg, o “judeu errante”: primeiros tempos e mudança para

o Brasil. (1867 – 1890). Situação do meio eclesial protestante no Brasil e

sua recepção no âmbito da sociedade brasileira

1. Os primeiros anos

Em suas memórias, Ginsburg relata ter nascido na localidade de Suwaki,

na Polônia, em 06 de agosto de 186727, filho de pais judeus, sendo o patriarca o

rabino da comunidade. Do período de infância a única coisa digna de nota é o

fato de que estudou por algum tempo na Alemanha, a pedido da mãe, nascida

naquele país “porque havia pouca oportunidade para um judeu obter educação

elevada na Polônia russa”28, o que era verdade. De fato, conforme Paul Johnson,

as restrições antissemitas adotadas na Rússia czarista cresceram em proporção

e violência nos anos imediatamente posteriores a Alexandre II, indo desde a

restrição ao acesso à escolas e universidades, até ao estabelecimento

profissional ou à proibição de determinadas profissões – mesmo aquelas

relacionadas ao trabalho na terra – e, por fim, ao próprio deslocamento pelo

Império, uma medida de controle migratório que, em tese, devia ter sido

suprimida com o fim do regime servil em 186129. Por outro lado, convém lembrar

que durante os séculos XVIII e XIX, as políticas adotadas pelos czares em

relação às comunidades judaicas tinham todas a mesma finalidade, isto é, a

assimilação dos judeus à cultura russa, ora por meio da educação (Catarina II e

Alexandre I), ora deportando-os dos campos para as cidades (Alexandre I), ou

ainda usando o recrutamento para o Exército (Nicolau I), período em que os

jovens ficariam afastados da comunidade e, por conseguinte, de suas influências

religiosas. A tentativa de suprimir os conselhos comunitários judaicos por ordem

27 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 19. 28 Idem, p. 19. 29 JOHNSON Paul. História dos Judeus, p. 369 – 377.

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de Nicolau I, em 1844, e que também não deu em nada, pode ser considerada

uma iniciativa nesse mesmo sentido30. O resultado disso é a decomposição da

vida social e intelectual das comunidades judaicas sujeitas ao regime czarista,

situação que não foi vivenciada pelos judeus da Alemanha e da Áustria, a

despeito as medidas restritivas só terem caído no curso do século XIX, bem

depois da revolução francesa, o que decerto contribuiu para que os pais de

Ginsburg se decidissem por educa-lo no estrangeiro.

Aliás, o período de estudos na Alemanha, mais precisamente em

Koenigsberg, é a única referência que ele faz à situação dos judeus poloneses

que viviam sob o domínio do czar. A inexistência de menções ao domínio russo

numa fase em que este se mostra particularmente severo pode ser, talvez,

explicada, pelas conexões familiares que sua família mantinha com a Alemanha

e o próprio fato de ter estudado nesse país reforça essa tese, embora seu relato

não nos permita concluir nada nesse sentido.

Depois de sua passagem pelo liceu de Koenigsberg e de algumas viagens

pela Europa que realizou nesse período com o avô que partilhava de idéias

liberais31, o jovem Ginsburg voltou à Polônia a fim de assumir as funções de

professor de uma escola judaica e se casar com uma moça previamente

escolhida pela família. Aquele ritual, segundo suas palavras, o encheu de

indignação, levando-o a tomar a decisão de fugir da família para não voltar mais

à sua terra natal32. Passou algum tempo errando pela Polônia, o que lhe valeu

embaraços e prisões e foi para evitar uma deportação sumária para a Sibéria

que Ginsburg acabou optando por deixar a Polônia Russa, indo para Londres

onde ficou por algum tempo albergado em casa de parentes.

30 BRENNER Michael. Breve História dos Judeus, p. 206 – 213. 31 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 20. 32 Idem, p. 20.

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33

2. Os anos na Inglaterra (1885 – 1889). A conversão de Ginsburg.

Quando já estava havia algum tempo em Londres, Ginsburg começa a ter

contato com os pregadores da Mildmay Mission, a mesma missão onde atuava

o médico João Gomes da Rocha, o filho adotivo de Robert Kalley e que exercia

seu ministério entre os judeus. O seu primeiro contato com uma pregação

evangelística despertou seu interesse porque ela era baseada em Isaías 53 que

ele já tinha lido junto com os comentários talmúdicos e a exemplo deles se

perguntava sobre o personagem incógnito mencionado pelo profeta na

passagem acima. Como seus pais e anciãos não lhe haviam esclarecido de

modo satisfatório, Ginsburg guardou para si aquele silêncio até o momento em

que ouviu novamente o texto, o que reacendeu as lembranças precedentes33. O

que se sucedeu mais tarde merece atenção minuciosa e por isso reproduziremos

o seu relato como se segue:

Este foi o ponto de partida. Eu fui ouvi-lo explicar aquele maravilhoso capítulo

profético, e ainda que não o pudesse entender inteiramente naquele dia ele ficou-me no

coração. O missionário pediu-me para ler o Novo Testamento, e quando me chamou a

atenção para as maravilhas da vida do Messias e como cada profecia se cumpriu em Jesus,

logo me convenci de que o Filho de Maria, o Crucificado, era o Filho de Deus, o Filho de

Israel, o Rejeitado do meu povo. Oh! Como eu chorei quando cheguei à leitura da cena

da crucificação, e li todas essas loucas palavras: “o seu sangue seja sobre nós e sobre os

nossos filhos”! Parecia-me que eu havia tomado parte ativa no assassínio do Inocente, e

compenetrei-me pela primeira vez da razão da História terrível dos judeus, dos

sofrimentos e das perseguições por que eles têm passado e o que ainda sofrem34.

O processo de conversão de Ginsburg que começa com a leitura de um

texto sobre o qual a tradição talmúdica não lhe ofereceu uma resolução

exegética satisfatória e que é sublinhado pelo proselitismo protestante como

33 Idem, p. 23 – 24. 34 Idem, p. 24.

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34

uma indicação da preexistência profética do Messias retratado em Jesus, revela

ainda outras coisas: o ambiente de perseguição da Rússia czarista a confrangir

e colocar os judeus em uma posição de autocomiseração; o estado de espírito

propenso a aceitar essa interpretação tendo em vista a experiência dissaborosa

de anos anteriores quando procurou por si mesmo uma explicação para o

mesmo texto; a consciência individual ditada pela idéia de uma “culpa” coletiva

que estaria sendo expiada ainda naquele momento, o qual certamente já tinha

contato mediante todo o instrumental litúrgico católico e ortodoxo que realçavam

essa condição. Nesse sentido podem-se estabelecer duas características no

processo de conversão de Salomão Ginsburg. A primeira é a de uma negação

que pode ser tanto no sentido de culpa quanto no sentido de perda de

referências. A segunda é a predisposição de se aceitar uma forma de verdade,

mesmo se essa verdade esteja baseada tão somente em um exercício de

interpretação. É a partir dessa predisposição em se aceitar algo que não se

consegue – ou não se quer – refutar, porque a proposta corresponde

satisfatoriamente às demandas existenciais daquele momento, que o processo

de conversão assume um status de verdade que é legitimada pelo discurso e

justificada por ele, que se segue então o conflito interior onde o converso é

“confrontado” com a Palavra (isto é, com a Palavra tomada como referência a

partir da perspectiva de leitura que se faça dela) tal como em outros relatos de

conversão como os de Agostinho e John Wesley (apenas para ficarmos nos

casos cujas narrativas de conversão são mais sistemáticas) e daí a conversão,

conforme segue no testemunho de Ginsburg:

Finalmente o Senhor teve piedade de mim e me deu paz, o que aconteceu dessa

maneira: como de costume eu fui ao Wellclose Square Mission, e nesse domingo à tarde

o reverendo João Wilkinson ia pregar. Tomou por base o texto de Mateus 10.37: “quem

ama o pai ou a mãe mais do que a mim, não é digno de mim”. Ele reforçou especialmente

a última frase – “não é digno de mim” – não é digno de Jesus. Tudo que o pregador disse

parecia tocar a minha alma e, quando ele pediu testemunhos, eu não podia deixar de

levantar-me e, trêmulo, disse: “eu quero ser digno de Jesus”!35.

35 Idem, p. 27.

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35

Uma vez já estando preparado para aceitar aquela verdade que se mostra

de modo mais aparente, todo o esforço mental de Ginsburg converge para a

busca de satisfação e gozo nessa verdade, ou melhor: na maneira como tal

apresentação da verdade se revela mais satisfatória. A afirmação “tudo que o

pregador disse parecia tocar a minha alma”, leva para essa idéia de pré-

aceitação do que foi colocado anteriormente e para o qual o futuro missionário

já se encontra há certo tempo predisposto. Lembremos que Ginsburg nasceu e

viveu nos seus primeiros anos numa comunidade judaica segregada dentro de

uma sociedade retrógrada e que nesse contato já havia rejeitado um dos pilares

dessa sociedade, que é o Catolicismo, mas não só o Catolicismo como todas as

tradições cristãs que dialogassem com os ícones. Daí porque ele não se

aproxima dos ortodoxos russos, nem dos anglicanos ingleses, que prosseguem

dentro da tradição católica do diálogo com as imagens. Sua relação com o

Cristianismo se dará apenas com os iconoclastas e com os que rejeitam os

sistemas institucionais moldados pelas relações com o Estado, razão pela qual

se aproximará dos movimentos independentes e manifestará simpatias por

elementos ligados a esses grupos como Charles Spurgeon.36

Em suma, pode-se dizer que Salomão Ginsburg acabou buscando para si

aquele tipo de verdade que Michel Foucault descreve como sendo uma verdade

que se apoia sob um suporte institucional, mas que apenas evidencia em sua

práxis “outros sistemas de exclusão”37. Isso se dá pelo modo como ela tende a

se reproduzir, por meio dos instrumentais que possam corroborar, legitimar e –

para o nosso caso – sacramentalizar essa mesma verdade, como livros

pedagógicos, bibliotecas, tudo com vistas à sua aplicação à uma sociedade que

se mostre disposta a possibilitar a reprodução infinita dessa verdade a respeito

do tipo de utilidade que esse tipo de verdade tende a proporcionar a essa

sociedade.38 Mais importante ainda é destacar na análise foucaultiana a criação

de instrumentos de coerção e que também podem ser facilmente detectados

aqui:

36 Idem, p. 37. Spurgeon (1832 – 1894), pastor batista inglês, foi pregador e dirigente do

Tabernáculo Metropolitano em Newigton, de 1861 até sua morte. 37 FOUCAULT Michel. A ordem do Discurso, p. 16. 38 Idem, p. 17.

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Creio que essa vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte institucional,

tende a exercer sobre os outros discursos (...) uma espécie de pressão como que um poder

de coerção. Penso na maneira como a literatura ocidental teve de buscar apoio, durante

séculos, no natural, no verossímil, na sinceridade, na ciência também – em suma, no

discurso verdadeiro. (...) o discurso verdadeiro não é, com efeito, desde os gregos, aquele

que responde ao desejo ou aquele que exerce o poder, na vontade de verdade, na vontade

de dizer esse discurso verdadeiro, o que está em jogo senão o desejo e o poder? O discurso

verdadeiro que a necessidade de sua forma liberta do desejo e liberta do poder, não pode

reconhecer a vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de verdade, essa que se

impõe a nós há bastante tempo, é tal que a verdade que ela quer não pode deixar de

mascará-la39.

2.1. O significado da conversão

É bem certo que a decisão de Ginsburg de se converter ao Cristianismo

Protestante, mostra que sua inclinação pessoal não era de modo algum uma

opção aleatória, mas sim a decorrência de um processo de tomada de decisões

que já remontava à infância, quando do seu primeiro contato com o Catolicismo

em Varsóvia40. E em sua narrativa é interessante notar que, exceto quando de

sua menção às dificuldades impostas pelos russos para um judeu adquirir

conhecimento em seu próprio país e assim subir na escada social ele

praticamente não emite nenhuma opinião nem sobre o estado russo, nem sobre

a Igreja Ortodoxa, e quando fala do Catolicismo é para destacar que ele é “pura

e plena idolatria”41. Daí a sua opinião de que evangelizar o Brasil seria estar

lutando contra a idolatria embora – e sua narrativa autobiográfica mostre isso

claramente – ele não diferenciasse em nada o catolicismo praticado no Brasil, e

mesmo em Portugal, ainda sob o regime do Padroado do catolicismo romano

39 Ibidem, p. 17 – 19. 40 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 239 - 240. 41 Ibidem, p. 239.

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tridentino42, entendendo ambas as coisas de uma única maneira. Parece claro

que sua má opinião sobre o catolicismo é mais decorrente das experiências

vividas ainda como judeu na Polônia do que do contato com a realidade brasileira

que pode ter, quando muito, apenas acentuado a sua indisposição para com o

catolicismo romano, ainda que as deficiências de sua formação o impedisse de

compreendê-lo perfeitamente.

Em Salomão Ginsburg a empatia pelo outro só existe no âmbito da

comunidade de fé, após a conversão e o batismo. Mesmo que hajam simpatias

fora dessa situação elas só se tornam mais enfáticas depois do processo de

conversão e não anulam antipatias como as que ele nutre pelo catolicismo, o

que é um impeditivo para a plena consumação de uma empatia ao ponto de ele

só poder manter diálogo com aqueles no nível da polêmica. Na verdade, pode-

se mesmo dizer que suas relações com indivíduos não-batistas são puramente

funcionais, senão oportunistas. A sua rejeição do catolicismo e de todos os seus

símbolos implica na rejeição de uma percepção de fé e de compreensão do

mundo para a qual a sua herança judaica recusa o diálogo e dos sujeitos que

participam desse grupo, criando tensões que impossibilitam qualquer

possibilidade de convívio com elementos daquele grupo. A sua própria

predisposição em criar ou incentivar confrontos com a Igreja Católica, segundo

Léonard, parece sugerir essa disposição pela negação do outro43. Só pode haver

empatia plena quando o outro é recebido na sua comunidade de fé e torna-se

parte dela mediante ao batismo e batismo dentro da comunhão batista. A

compreensão da vontade de Deus ou de Jesus só pode ser feita pela

intermediação batista o que coloca qualquer idéia de transformação do indivíduo

dentro de uma perspectiva salvacionista de viés proselitista.

42 Isto é, o Catolicismo da Contrarreforma do Concílio de Trento, cujos decretos foram

promulgados em 1563. 43 LÉONARD Émile G, op cit, p. 125.

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2.2. Preparativos da Missão

Voltando à narrativa, depois de ser excomungado pela sinagoga judaica

de Londres44 e de passar por algumas peripécias entre os judeus em seus

primeiros esforços de evangelização, nesses dias de recém-converso, Ginsburg

decide ingressar num seminário com o objetivo de se preparar para o trabalho

missionário, matriculando-se então no Regions Beyond Missionary Training

College a fim de efetivar a sua preparação para esse trabalho. Lamentavelmente

Salomão Ginsburg fala pouco dessa instituição, tal como do Harly College de

Londres, onde prosseguiu a formação semineral de três anos, mas do pouco que

fala uma passagem em especial tem muita significação. “Passei três anos da

minha vida ali, anos preciosos e inesquecíveis, aprendendo não só como

interpretar corretamente (grifo meu) a Palavra de Deus, mas também como

trabalhar de modo aceitável ao meu Mestre e Senhor”.45 O pormenor é

significativo: é ali que ele irá aprender a interpretar corretamente a Palavra de

Deus, ou seja, ele coloca a leitura bíblica sob chave congregacionalista como

única referência válida com relação ao modo como se devia ler e contextualizar

as Escrituras. A leitura bíblica dentro dessa perspectiva torna-se a sua visão de

mundo e o modo como passa a avaliar e justificar a vida e a História. Todo o

mais deve ser ajustado a essa forma de interpretação ou ser banido por ela. É

nesse momento que a verdade apresentada pela teologia dos batistas ingleses

se torna a “vontade de verdade” de Foucault, quando o discurso de um

determinado grupo se torna discurso oficial por ser instrumentalizado como tal

por meio da sua literatura institucional (e instituições que cuidam da guarda e

propagação dessas verdades) da qual a Religião e o Direito formam os exemplos

mais significativos e excepcionais.46

Logo em seguida ele começa a pesquisar sobre qual campo missionário

deveria se engajar: Índia e Jamaica pareciam propostas tentadoras, mas no final

acabou se voltando para o Brasil depois de conhecer Sarah Kalley, a esposa de

44 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 32 – 35. 45 Ibidem, p. 37. 46 FOUCAULT Michel, op cit, p. 21.

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39

Robert Kalley o pioneiro congregacionalista no Brasil que agora enfermo,

procurava alguém que lhe rendesse na missão. Depois de algumas negociações

Ginsburg aceita ir para o Brasil como missionário, segundo ele, com despesas

pagas e um subsídio de cem libras esterlinas, desde que trabalhasse no país

como missionário independente e aprendesse o quanto antes o idioma47.

Embora ele gaste um bom tempo explicando os motivos pelos quais escolheu o

Brasil como campo missionário ainda assim não deixa de chamar atenção o fato

de que ele tenha optado por uma nação sul-americana e não por uma das muitas

colônias que constituíam o Império Britânico nesse momento e onde seu trabalho

seria bem mais fácil, embora possivelmente enfrentasse a competição dos

missionários anglicanos e de outros ministérios também em atividade tanto na

Índia quanto na Jamaica ao qual ele chega a cogitar.48 O fato de optar pelo Brasil

e sua recusa de ver os católicos como cristãos decorre, certamente, da influência

do ambiente das igrejas não-conformistas que possuem proximidade teológica

com as igrejas norte-americanas no tocante ao denominacionalismo e o

anticatolicismo49.

2.3. Atividades em Portugal (1889 – 1890). Posicionamento de Ginsburg

em relação ao Catolicismo no Brasil.

Prova de que o posicionamento de Ginsburg nesse ponto refletia um

padrão bastante incisivo de sua nova vivência religiosa é a sua atitude quando

de sua chegada a Portugal, onde pretende passar um período de aprendizado e

familiarização com a língua portuguesa, antes de sua ida ao Brasil. Tão logo já

dispondo de algum domínio da língua ele começa a escrever panfletos

47 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 41. 48 Ibidem, p. 41 49 O termo “não-conformista” (por vezes substituído por “independentes” ou “separatistas”), foi

aplicado na Inglaterra a todos os grupos religiosos que recusaram a soberania de um “rei humano” e,

consequentemente, a tutela do Estado, como os batistas e os quacres. Ver HILL Christopher. O Mundo de

Ponta Cabeça, São Paulo, Companhia das letras, 2002. Ver também HILL Christopher. A Bíblia e as

Revoluções Inglesas no século XVII. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.

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40

apologéticos e o primeiro chama-se “Pedro Nunca foi Papa”, para o qual teve o

auxílio de um tal Sr. Jones, um comerciante batista independente ligado ao

tabernáculo de Charles Haddon Spurgeon cujo ministério foi, em grande parte,

marcado por violentos debates apologéticos contra os católicos e os batistas

gerais de tradição arminiana50. O panfleto seguinte, de título ainda mais

provocador – “A Religião dos Trapos, Ossos e Farinha” – lhe valeu o convite para

que se retirasse do país, encerrando-se assim sua passagem pela nação

portuguesa51, cujo desdobramento lembra bastante o que se passou com o

próprio Robert Kalley na Ilha da Madeira meio século antes. A expulsão de

Portugal parece ter contribuído para fomentar ainda mais o seu radicalismo:

O que eu mais aprendi [do período em que esteve em Portugal] foi o estudo da

religião católica em Portugal desde que ela foi transportada para a colônia e que hoje,

com mui pouca modificação, é a religião que predomina no Brasil. A maioria do clero no

Brasil é portuguesa, cujo único objetivo, parece, é juntar fortunas e então voltar à Pátria

e viver prosperamente. As mesmas superstições, a mesma ignorância, a falta de idéias

acerca da responsabilidade individual perante Deus e perante os homens. Roma arruinou

Portugal e fê-lo objeto de escárnio de outras nações. Roma está fazendo a mesma coisa

com o Brasil hoje. O Brasil, apesar de ser o país mais rico do mundo está atualmente

degradado pelas manhas e intrigas da Igreja Católica Romana, exatamente como tem sido

com todos os povos, nações e tribos que tem caído debaixo de sua funesta influência.52

Aqui há muita coisa para se dizer: Primeiro: chama atenção o fato de que

mesmo tendo conhecido os dois países e havendo passado mais de trinta anos

de sua vida no Brasil, o missionário Salomão Ginsburg não tenha conseguido

identificar significativas diferenças entre o Catolicismo Romano e o do Padroado

Ibérico e mesmo deste daquele catolicismo praticado no interior do Brasil onde

as formas episcopais nunca conseguiram se aprofundar e assim levar o regime

eclesiástico católico até as partes mais remotas do país. Como escreve Hugo

Fragoso, o padroado ibérico implantado no Brasil tornava inefetiva qualquer

50 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 45. 51 Idem, p. 47. 52 Ibidem, p. 48.

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41

intervenção romana dentro do catolicismo brasileiro53. Segundo: ele afirma, sem

citar fontes, que a maioria de religiosos no Brasil, ao menos no período em que

esteve no país, era formada por portugueses que só vinham ao país para “fazer

fortuna” e voltar a Portugal. Teria ele confundido a atitude usual de muitos

portugueses que realmente se comportavam assim e associado isso aos padres

ou teria ele apenas se baseado numa notícia que ouvira de segunda ou terceira

mão sem fonte clara?54 Terceiro: ele não faz menção alguma à influência inglesa

no processo de esfacelamento econômico da nação portuguesa, acentuado

pelas dramáticas circunstâncias do decreto da Abertura dos Portos (1808), dois

momentos nos quais a pressão da Inglaterra levou a Portugal a renunciar a

condição de produtora de bens para se limitar ao papel de consumidor de

produtos industriais ingleses, alimentado pelos rendimentos das colônias

ultramarinas55. Em suma, dessa passagem conclui-se que Ginsburg, após trinta

anos no Brasil, continuava com um conhecimento impreciso e frequentemente

distorcido do catolicismo brasileiro, lembrando ainda, o fato de que ele só teve

contato regular com o catolicismo no Nordeste e no estado do Rio, regiões de

antigo povoamento e, por conseguinte, de forte presença do catolicismo do

padroado com suas tradições já perenizadas na sociedade e no folclore locais e

que, portanto, só poderia falar do catolicismo a partir das experiências

acumuladas no contato com esses ambientes.

Afora esses dados, Ginsburg ignora completamente a influência

jansenista e galicana na formação do Catolicismo Brasileiro, fato que foi

rapidamente percebido por Kidder em bem menos tempo56. Quanto ao

jansenismo, como lembra Léonard, levando em conta que obras jansenistas

como o Catecismo de Montpellier, de 1702 (colocado no índex em 1772) e as

Instituições Teológicas para o uso Escolar, popularmente conhecida como

53 FAGUNDES João et al. História da Igreja no Brasil, tomo II. p. 237 54 Apenas para ficarmos no período e nos estados onde Ginsburg missionou, RJ e PE, (1893 –

1909) temos que na diocese (e a partir de 1897, arquidiocese) do Rio, no mesmo período, passaram três

bispos, dos quais somente um, Dom José Fernando Tiago Esberard (1893 – 1897) era estrangeiro, nascido

na Espanha. Esberard foi precedido pelo paulista Dom José Pereira da Silva Barros (1891 – 1892) e

sucedido pelo pernambucano Dom Joaquim Arcoverde (1897 – 1930). Na Diocese (e a partir de 1910,

Arquidiocese) de Olinda, passaram dois bispos nessa época, o maranhense Dom Luis Raimundo Faria Brito

(1901 – 1915) e o paulista dom Sebastião Leme (1915 – 1921). 55 Ver FAORO Raimundo, Os Donos do Poder, I, p. 281 – 282. Ver também o verbete sobre a

Abertura dos Portos de FARIA Sheila de Castro, in VAINFAS Ronaldo (direção) Dicionário do Brasil

Imperial, p. 14 – 15 e SIMONSEN Roberto. História Econômica do Brasil, p. 504 – 505. 56 KIDDER Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil, p. 246.

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Teologia de Lião (publicadas em 1780 e jogadas no índex em 1792) eram

reverenciadas por clérigos, especialmente no Norte (onde influenciou o processo

de formação e educação espiritual da Amazônia) e no Nordeste, (onde a

Teologia de Lião era lida no Seminário de Olinda), é pouco provável que não

fossem fomentar discípulos e contribuir, desse modo, para o clima tão favorável

encontrado por Kidder em sua passagem pelo Brasil no momento tumultuado da

Regência, para a disseminação do jansenismo.57

Outro detalhe ignorado por Ginsburg é a configuração particular assumida

pelo catolicismo brasileiro quando comparado com sua irmã da América

Espanhola. De fato, quanto a instituição do Padroado Ibérico, no Brasil, como

aponta Sergio Buarque de Holanda, este foi bastante favorecido pela própria

configuração psicológica e social do povo brasileiro que impedia, ou pelo menos

não favorecia, a organização de instituições sociais pautadas por uma noção

strictu sensu de disciplina e hierarquia, embora só isso não explique a demora

na organização de bispados no país, a exemplo do que se deu na América

Espanhola onde o padroado assumiu um formato mais episcopal em virtude,

segundo Mariatégui, da fusão do empreendimento missionário místico com o

militar aventureiro, o que configura um processo de conquista onde o religioso e

o militar andavam lado a lado, unidos pela mística da reforma espanhola58, bem

como ao caráter mais homogêneo proporcionado pela influência neotomista

sobre os círculos universitários espanhóis marcado pela centralização e pela

busca de um programa nacional unificado para a consolidação institucional do

Estado, o que Richard M. Morse chama sem hesitação de modernidade, pois só

o Estado Moderno que se formava no caudal desse processo poderia buscar na

teologia de síntese o sentido de sua própria conformação política e histórica.59

Embora, como aponta Morse, seja possível identificar influências desse

pensamento no ambiente universitário português, esta não se perenizou dada a

pouca ou nenhuma preocupação da metrópole lusitana em reproduzir suas

instâncias de governo e igreja nos territórios ultramarinos60. Essa preocupação

perpassa apenas o imaginário espanhol: “O espanhol do renascimento”, escreve

57 LÉONARD Émile G, op cit, p. 42 – 43. 58 MARIÁTEGUI José Carlos. Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana, p. 169 – 183. 59 MORSE Richard M, O Espelho de Próspero, p. 42. 60 Ibidem, p. 43.

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43

Maravali, citado por Morse, “está ocupado em construir um novo Estado, um

novo mundo, um novo homem”61. O Neotomismo e a mística da contrarreforma

funcionarão como elementos norteadores desse processo.

O catolicismo no Brasil segue caminho bem diverso: aqui, é a paróquia

local ou antes, a religião particular, que predominou sobre as formas

institucionais de um catolicismo nos moldes romanos ou espanhóis, e isso até o

período do Império. Como escreve Gilberto Freyre:

No Brasil a catedral ou a igreja mais poderosa que o próprio rei, seria substituída

pela casa grande e pelo engenho (...) a igreja que age na formação brasileira, articulando-

a, não é a catedral com o seu bispo a que se vão queixar os desenganados da justiça

secular, nem a igreja isolada e só, os de mosteiro ou abadia (...) é a capela de engenho.

Não chega a haver clericalismo no Brasil. Esboçou-o o dos padres da Companhia [de

Jesus] para esvair-se logo, vencido pelo oligarquismo e pelo nepotismo dos grandes

senhores de terra e escravos62.

“Daí”, ainda segundo a interpretação freyreana, “o formato físico da igreja

comunal brasileira, diminuta e acachapada, dependência de habitação

doméstica (...) com alpendre ou dos lados como qualquer casa de residência (...)

vencido o jesuíta, o senhor de engenho ficou dominando a colônia quase

sozinho. O verdadeiro dono do Brasil. Mais do que os vice-reis e os bispos”.63

Outra característica desse catolicismo brasileiro é o seu traço afetivo do

qual resulta um tipo de culto mais informal, tão informal que assume um formato

de despojamento, com a proximidade dos santos católicos dos seus devotos e

uma relativização das regras litúrgicas e dos dogmas, algo bem diferente do que

acontecia na América Espanhola onde os processos de evangelização

assumiram desde o início uma característica de empreendimento eclesiástico,

claramente institucional64. No caso brasileiro, ainda acompanhando Sergio

Buarque de Holanda:

61 Ibidem, p. 42. 62 FREYRE Gilberto. Casa Grande & Senzala, p. 271. 63 Ibidem, p. 38. 64 MARIATÉGUI José Carlos, op cit, p. 180.

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O desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma

ética de fundo emotivo representa um aspecto da vida brasileira que raros estrangeiros

chega a penetrar com facilidade (...) nosso velho catolicismo, tão característico, que

permite tratar os santos com uma intimidade quase desrespeitosa e que deve parecer

estranho às almas verdadeiramente religiosas, provém ainda dos mesmos motivos (...)

culto amável e quase fraterno, que se acomoda mal às distâncias e suprime as distâncias

(...) um culto que dispensava no fiel todo esforço, toda diligência, toda tirania sobre si

mesmo, o que corrompeu pela base o nosso sentimento religioso65.

Outro ponto importante: a afirmação de que o Brasil está “degradado pelas

manhas e intrigas da Igreja Católica Romana, exatamente como (...) todos os

povos, nações e tribos que tem caído debaixo de sua funesta influência” é

bastante elucidativa do padrão missionário que se adota a partir do século XIX.

Agora não se trata apenas de uma discussão de caráter apologético entre duas

teologias distintas, mas de duas concepções civilizatórias, das quais uma, a

protestante, está vinculada a cultura anglo-saxônica enquanto a católica se faz

porta-voz do mundo latino. Porém, como observou Lauri Emílio Wirth, na medida

em que a Grã Bretanha assume um papel político, econômico e militar de maior

proeminência nesse período, projeta-se também o seu ethos civilizatório do qual

os traços mais significativos são o discurso etno-racial e o ideário religioso. O

segundo visa unificar, por meio da promoção missionária, as diversas culturas e

sociedades sob o estandarte cristão, mas sem excluir o aspecto de subordinação

cultural já que essas sociedades e culturas devem, necessariamente, reproduzir

os elementos constitutivos do mundo social e político anglo-saxão projetado e

tornado ideal supremo por meio da pregação protestante, enquanto o

catolicismo, por representar um padrão cultural que não conseguiu cumprir o seu

papel – isto é o desenvolvimento das regiões sobre seu controle e o combate a

“idolatria”, como se entendia as antigas práticas religiosas dos povos que já

habitavam o Novo Mundo à época da conquista espanhola e os que vieram

depois com os negros escravizados – deve, necessariamente ceder espaço ao

protestantismo para que ele venha a cumprir esse papel, assumindo, daquele

65 HOLANDA Sergio Buarque de, op cit, p. 257 - 258.

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momento em diante, um papel secundário, inferiorizado66. Daí porque o discurso

de Ginsburg assume um status “civilizatório” no sentido de combater a influência

da religião católica sobre a cultura latina e não apenas a sua práxis religiosa.

Embora ele reflita muita coisa do seu estado de espírito e de sua própria opinião

pessoal do catolicismo, o discurso de Ginsburg se insere perfeitamente dentro

do pensamento missionário predominante no século XIX e no XX onde a

empresa missionária reflete em si as demandas do imperialismo e o discurso

eurocêntrico racista.

3. Primeiros movimentos de Ginsburg no Brasil

A atividade missionária inicial de Salomão Ginsburg no Brasil pode ser

assim descrita: entre 1890 e 1891 ele atua como evangelista e colportor da IEF

na cidade do Rio e no estado de Pernambuco. Na Igreja Batista, para onde vai

em 1891, seu campo de atuação se transfere primeiro para a Bahia (PIB da

Bahia, em Salvador) e depois para o interior fluminense, na região de Campos,

com alguns momentos em Pernambuco, primeiro, em 1892 quando vai ao Recife

reorganizar a igreja batista ali fundada em 1886, e em 1897 quando do seu

interregno em Nazaré da Mata substituir o missionário Willian Entzminger que

havia sido dali expulso pouco tempo antes.

3.1. Situação do Brasil à época da chegada de Ginsburg

Ginsburg chega ao Rio de Janeiro em 10 de junho de 1890 encontrando

a República recém-proclamada e o Congresso reunido para redigir uma nova

66 WIRTH Lauri Emílio, cit em LEONEL João (org.), op cit, p. 31.

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constituição que incorporasse o princípio federativo decretado pelo novo regime

(art. 7 do Decreto nº 1 de 15 de novembro de 1889 e Decreto nº 7 de 20 de

novembro de 1889). Está ciente das mudanças pelas quais o país passa e as vê

com simpatia67.

3.1.1. Situação política e jurídica

O Brasil que Ginsburg conheceu estava sob a regência da Constituição

de 1891 e que tinha como característica mais marcante a defesa de um

liberalismo laissez faire levado ao extremo por um federalismo radical. Contudo,

esse liberalismo passava ao largo das demandas populares, estabelecendo na

prática o estado oligárquico representado pelos partidos republicanos estaduais

ou, na ausência deles, por famílias oligárquicas, descartando o povo do processo

eleitoral, como nos dias do Império68. Como escreve José Ênio Casalecchi, a

República não superou a contradição de um estado pretensamente liberal, mas

oligarca de fato, que apenas na retórica pretendia suplantar o analfabetismo e o

atraso social quando, na verdade, sobrevivia por meio deles.69

De fato, a nova constituição não só transformou as antigas províncias, em

estados (art. 2º), como também lhes assegurou autonomia interna (art. 6º; 63 –

67). Contudo, mantem-se as restrições quanto ao alistamento eleitoral o que tem

por consequência uma extrema elitização do processo político, igualmente

suscetível a desmandos e fraudes, resquício do voto censitário do Império70. De

fato, conforme o artigo 72 da carta de 1891, não eram considerados eleitores (o

que os tornava, por conseguinte, também inelegíveis), os mendigos, os

analfabetos, os praças de pré – exceção feita aos alunos das escolas militares –

e “os religiosos de ordens monásticas, congregações ou companhias de

67 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 50. 68 CASALECCHI José Ênio. O Partido Republicano Paulista, p. 13. 69 Ibidem, p. 13 – 14. 70 Ver o verbete sobre as eleições no Brasil imperial de GRINBERG Keila in VAINFAS Ronaldo

(diretor), Dicionário do Brasil Imperial, op cit, p. 223 – 225.

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qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra ou estatuto, que

importe a renúncia da liberdade individual”. Mas a maior mudança veio no art. 72

que determinava a liberdade de culto, o reconhecimento do casamento civil, a

secularização dos cemitérios e a laicidade do ensino (72§ 3 a 7)71

É preciso lembrar, porém, que embora suplantasse a Constituição de

1824 no que tange a assegurar a liberdade religiosa, isto de modo algum

significava que apenas no período republicano a liberdade de culto fosse

plenamente assegurada. Lembremos que no final do século XIX quase todas as

igrejas protestantes tinham suas representações na capital do Império e que

algumas denominações como a luterana desfrutavam de relações quase

institucionais com o estado imperial. É conhecido o caso do pastor luterano

Friedrich Sauerbronn que migrou com sua comunidade da Alemanha para se

estabelecer em Nova Friburgo em 1824, tendo sido firmado em seu contrato o

direito de receber dois mil florins romanos de subsídios, o que não ocorreu na

maior parte do tempo em que ele assistiu aquela comunidade. Só em 1861 é que

o Estado lhe concedeu o pagamento devido, e mesmo assim em parte72, o que

mostra muito bem a liberalidade do Império, uma vez que mesmo a carta magna

imperial consagrando o catolicismo como sua religião oficial, não via como

demérito algum subsidiar com dinheiro público um ministro luterano

evidenciando assim a flexibilidade, para não se dizer a permissividade, com o

qual o Imperio tratava os problemas religiosos dos seus súditos. Assim, o fato de

que a carta magna de 1891 assegura plena liberdade de culto para os cidadãos

não quer dizer de forma alguma que ela fosse mais liberal que a outra nesse

ponto.

Para reforçar essa verdade lembremos mais três fatos. Primeiro: em 1858

o Dr. Robert Kalley recebeu parecer favorável de juristas do Império (Nabuco de

Araújo, Urbano Pessoa de Mello e Caetano Alberto Soares) acerca de uma série

de questões formuladas pelo missionário escocês com vistas a se respaldar

juridicamente acerca de sua atividade missionária no Brasil contra eventuais

71 CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS, II, p. 65 – 82. 72 TSCHUDI Johann Jakob. Viagem às Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo, p. 108. Ver

também REILY Duncan Alexander, op cit, p. 59 – 60 e DREHER Martin, Igreja e Germanidade, p. 61 –

62.

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perseguições religiosas73. A resposta favorável dos juristas assegurou as bases

legais para o trabalho missionário proselitista posterior de Kalley.

Segundo: o casamento de acatólicos: a lei imperial nº 1.144 reconhecia o

casamento “de pessoas que não professam a religião do Estado”74 e assegurava

com isso o reconhecimento de direitos inerentes aos não católicos dentro dos

limites do Império75. É interessante registrar aqui a fala do deputado geral baiano

Manoel Pinto de Souza Dantas (1831 – 1894) acerca do “projeto sobre

casamentos mistos”: “nunca os casamentos pertenceram aos padres: foram

regulamentados pelo direito natural ou pelo direito civil”.76

Terceiro: os templos religiosos. Graças a concessão permitida pela

constituição de 1824 que facultava aos protestantes a disposição de casas “sem

forma exterior de templo” (art. 5º), a cidade do Rio de Janeiro possuía uma

razoável variedade de templos inaugurados ainda no período imperial.

Anglicanos e luteranos tinham igrejas organizadas no Rio desde o início do

século XIX (1819 e 1827 respectivamente)77. A IEF estava organizada na corte

desde 185878. A Igreja Presbiteriana desde 186279. Em 1878 os metodistas

fundaram seu primeiro local de culto no Rio80, seguido, no ano seguinte, da

criação da Igreja Evangélica Brasileira pelo engenheiro militar e egresso do

presbiterianismo Miguel Vieira Ferreira,81 e, finalmente, em 1884, os batistas

fundam sua primeira igreja na corte82. Como aponta Hugo Fragoso, a fraqueza

institucional da Igreja Católica, submetida às disposições do padroado, é sem

dúvida uma das causas explicativas para o sucesso da propaganda protestante

no Brasil que não encontra outro paralelo na América Latina.83

73 ROCHA João Gomes da. Lembranças do Passado, I, p. 95 – 96. 74 Ibidem. I, p. 172. 75 Metódio Maranhão destaca a respeito dessa lei que seu objetivo era, de fato, “repelir a forma

puramente civil do casamento, e dar-lhe um caráter completamente religioso, mesmo quando não fosse

católico”. MARANHÃO Metódio. O Direito e a Religião, p. 46. 76 ROCHA João Gomes da, op cit, I, p. 172. 77 BRAGA Henriqueta Lopes Fernandes, op cit, p. 71 – 73 (Igreja Anglicana) e p. 88 – 89 (Igreja

Luterana). 78 ROCHA João Gomes da, I, p. 73. 79 LESSA Vicente Themudo, Annaes da Primeira Igreja Presbiteriana de S.Paulo, p. 19 – 20. 80 ROCHA Isnard, Pioneiros e Bandeirantes do Metodismo no Brasil, p. 37. 81 LÉONARD Émile G, op cit, p. 77. 82 CRABTREE A.R, op cit, I, p. 93 – 94. 83 HAUK João Fagundes et al, op cit, II, p. 237.

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2.1.2. Situação econômica e social

O Brasil do final do século XIX é um país em crescimento populacional,

crescimento este fomentado, sobretudo, pela política de incentivo à imigração,

(impulsionada pela abolição da escravidão) mas ainda muito dependente da

economia agroexportadora. Em 1872 contavam-se 10.112.061 habitantes

(sendo 5.5% escrava) ao passo que em 1890 esse número sobe para

14.333.915. Contudo, o crescimento, impulsionado pela imigração, não se reflete

de igual modo em todas as regiões do país. Assim, enquanto o estado do Rio vê

saltar sua população de 819.604 habitantes para 876.884 no mesmo período e

Pernambuco passa de 841.539 para 1.030.224 habitantes, São Paulo, por sua

vez, vai de 837.354 habitantes para 1.384.753 pessoas nessa época,84. O fato

de São Paulo ultrapassar Pernambuco nesse quesito, embora na ocasião não

se configurasse como um estado populoso (Minas e Bahia ainda conservam

nesse momento tal condição) já é um reflexo do deslocamento da renda e do

eixo econômico do país, processo esse iniciado no meio do século XIX quando

o café começa a substituir a cana-de-açúcar na pauta de exportações.

É bastante significativo que uma das heranças do regime imperial

recebidas pela República, a Lei de Terras de 1850, tenha sido incorporada ao

patrimônio jurídico do novo regime praticamente sem nenhuma contestação.

Concebida como um meio de forçar o produtor rural a explorar a terra e, ao

mesmo tempo, dar término ao falido sistema de sesmarias que predominou na

Colônia onde a ocupação de grandes extensões de terra não correspondia, na

mesma proporção, ao aproveitamento econômico das mesmas, a Lei de Terras

concebia a venda de terras públicas a preços bem altos de modo que somente

os detentores de grandes capitais conseguissem comprar as mesmas. Na

verdade, como observou Emília Viotti da Costa, o objetivo do projeto do qual

resultou a Lei de Terras era claramente incentivar o desenvolvimento de

plantations em um momento decisivo da economia brasileira dos oitocentos que

84 Os dados estão em Nosso Século, I (1900 – 1910), p. 11 e em FAUSTO Boris (direção) História

Geral da Civilização Brasileira, 8, III, 1, p. 17.

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é o do início da ascensão do café como produto principal de exportação.85 A

imigração já se fazia sentir nessa época, mas durante o século XIX, em vista das

imposições estabelecidas pela Lei de Terras e pela proibição do tráfico negreiro

(Lei Eusébio de Queiroz, também de 1850) passou por significativas mudanças:

de fato, o novo estatuto das terras pretendia manter os imigrantes na condição

de trabalhadores das grandes fazendas, sem o compromisso de dividir com eles

a posse da terra, efetivamente como empregado e não como arrendatário e

muito menos colono.86 Ao regime de parceria, intentado na segunda metade

desse século para dar sustentação ao plantio do café, as grandes lavouras

preferiram, no final desse período o do assalariamento puro e simples87. Os

núcleos de colonização organizados no sistema de parceria ou da pequena

propriedade, como o das colônias alemãs e suíças no Rio Grande do Sul e em

Santa Catarina, não atendiam as necessidades das plantations que precisavam

de um modo de produção “que pudesse comprimir o seu custo no mesmo nível

do trabalho escravo”.88 Em suma, a imigração só podia ser deslocada para

centros onde já houvesse uma atividade de exportação, capaz de pagar salários

e absorver os excedentes agrícolas da produção dos colonos, fomentando ainda

a atividade manufatureira que absorve, por sua vez, os trabalhadores que vão

para cidade por conta das crises cíclicas do café, bem como os empregados não

agrícolas que a imigração traz consigo, uma situação que se tornou possível em

São Paulo, mas não no estado do Rio e no Nordeste89.

3.1.3. A Igreja Católica nos primórdios da República

Qual era a situação da Igreja Católica no momento em que Ginsburg

chega ao Brasil apenas poucos meses depois de proclamada a República?

85 COSTA Emília Viotti, Da Monarquia à República, ob cit, p. 182. 86 Ibidem, p. 183. 87 JÚNIOR Caio Prado. História Econômica do Brasil, p. 188 – 189. 88 COSTA Emília Viotti da. Da Monarquia a República, op cit, p. 230. 89 CASALECCHI José Ênio, op cit, p. 26 – 27.

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Embora tivesse gozado de status oficial durante o Império (Constituição

de 1824, artigo 5º), fato era que a “religião do Estado” gozou de bem pouco

prestígio e apoio institucional durante esse período e por uma série de razões. A

primeira delas está na própria origem do Catolicismo no Brasil, atrelada ao

regime do padroado português. Com efeito, de acordo com Sergio Buarque de

Holanda, a bula papal Praeclara Caríssimi, de 1551, do papa Júlio III, transmitiu

aos monarcas portugueses “com o patronato nas terras descobertas” um poder

“praticamente discricionário sobre os assuntos eclesiásticos. Propunham

candidatos ao bispado e nomeavam-nos com clausula de ratificação pontifícia,

cobravam dízimos para dotação de culto e estabeleciam toda sorte de fundações

religiosas, por conta própria e seguindo suas conveniências momentâneas”.

Desse modo, ainda conforme Sérgio Buarque de Holanda, a igreja se

transformava em “simples braço do poder secular, em um departamento da

administração leiga”90. Uma Igreja Territorial.

Na verdade, o regime do padroado ibérico em nada favoreceu o

desenvolvimento do catolicismo romano no Brasil, antes o contrário. Mesmo a

outorga de um documento eclesial da maior significação como as Constituições

Episcopais do Arcebispado da Bahia, redigidas em 1707 e publicadas em 1720,

só conseguiu colaborar com o desenvolvimento da Igreja Católica no Brasil em

termos de formação do clero, policiamento dos costumes e a ordenação das

liturgias e não na organização e ampliação do número de dioceses91.

O processo de emancipação política não eliminou o padroado, mas antes

o fortaleceu. A simpatia dos homens públicos pelo protestantismo e a filiação de

vários destes à Maçonaria – evidenciada na crise aberta pela Questão dos

Bispos – estorvaram a vida do catolicismo imperial, que precisou esperar até a

República para conseguir se desenvolver plenamente, por meio da reação

ultramontana. De fato, apesar de já haver uma propaganda ultramontana

formada no Brasil desde o início do século XIX, exemplificada nos ataques do

padre Luis Gonçalves dos Santos, alcunhado “padre Perereca” contra os

90 HOLANDA Sergio Buarque de; op cit. 205. 91 Ver o artigo de LANGE Lana, “As Constituições da Bahia e a reforma do clero tridentino no

Brasil”, in FEITLER Bruno; SOUZA Evergton Sales de (orgs). A Igreja no Brasil, p. 147 – 177.

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protestantes e os galicanos e nos do padre inglês Tilbury contra a Maçonaria92,

essas idéias precisariam esperar pelo fim do Império e do Padroado para que

pudessem ir adiante, mesmo porque, no Império o sentimento galicano do clero

e a postura política em herdar o padroado (embora, paradoxalmente, flertando

com o positivismo e o protestantismo) também impediram a expansão de

dioceses e paróquias, o que só vai ocorrer com a República.

O Ultramontanismo foi a reação do Catolicismo à modernidade e nesse

ponto nivela-se com o Fundamentalismo que representa a reação protestante

também decorrente do seu estranhamento e posterior rejeição do mundo

moderno. Fundamentalmente, a crítica ultramontana preconizava o retorno ao

sentido de ordem e unidade que, conforme a apologética católica dessa época,

a Reforma e Lutero haviam despedaçado, sendo esse discurso repetido à

exaustão desde o início do século XIX em documentos e escritos de autores

identificados com a reação como Joseph de Maistre, Felicitè de Lammenais

(ainda não o Lammenais das Palavras de um Crente), Chateaubriand e Novalis

e ganhou muita força depois da derrocada de Napoleão93. Não é sem razão que

sendo o ultramontanismo um movimento que preconizava o retorno ao

cristianismo medieval, tenha encontrado uma boa recepção no romantismo,

particularmente na Alemanha (Novalis à frente) e na França (onde O Gênio do

Cristianismo, de Chateaubriand, fez sucesso nos salões parisienses ainda sob o

bonapartismo)94.

A República, portanto, representa para o catolicismo a plena liberdade de

movimento do qual o episcopado se ressentira, mesmo com o status de “religião

oficial”. Como lembra Sergio Buarque de Holanda, as restrições impostas ao

catolicismo no período imperial – desde proibir os bispos de deixar suas dioceses

sob o risco de serem declaradas vacantes até a imposição da apreciação dos

manuais de teologia por funcionários leigos do próprio governo e a proibição às

ordens regulares quanto a receber noviços, além da oposição dos próprios

agentes públicos ao episcopado como ficou claro na Questão dos Bispos – não

sinalizam com a idéia de um país católico, ou mesmo formalmente católico. A

92 VIEIRA David Gueiros. O Protestantismo, a Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil, p. 33

– 35. 93 ZAGHENI Guido. Curso de História da Igreja, vol. IV, p. 21 – 43. 94 HAUSER Arnold. História Social da Literatura e da Arte, p. 654.

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própria Questão dos Bispos mostra isso: concordando com Sergio Buarque de

Holanda, Fernando de Azevedo lembra que o que estava em jogo na celeuma

“não era, certamente, a intolerância religiosa”, mas simplesmente o direito dos

bispos de exercerem sua “autoridade legitima em assuntos puramente

espirituais”, sobre o clero e as confrarias expostas à crescente influência

maçônica e à intervenção dos agentes públicos que viam os clérigos como meros

funcionários do Estado95. Daí a conclusão do episcopado brasileiro, na pastoral

coletiva de março de 1890, ano da chegada de Ginsburg ao Brasil de que o

padroado era, afinal de contas, “uma proteção que nos abafava”.96 A expansão

diocesana no período subsequente a 1889 confirma o impacto positivo que a

República teve na propagação do catolicismo romanizado.

Dioceses abertas no Brasil, 1551 – 1930

Região Colônia Império República (até 1930)

Norte 1 – 8

Nordeste 3 1 18

Centro-Oeste 2 – 6

Sudeste 3 1 27

Sul – 1 9

Total 9 3 6897

Fica evidenciado aqui que o Império representa não o ápice, mas o nadir

na História da Igreja Católica no Brasil. De fato, observando a tabela acima é

possível perceber que a maior expansão de dioceses se deu com a República,

com 36 dioceses criadas no Centro-Sul e 26 no Nordeste. A região Sul foi a que

mais se beneficiou desse crescimento, saindo de uma situação de quase total

insularidade para o de verdadeira irrupção episcopal, já que foi ali onde mais

diretamente se sentiu todo o impacto da romanização do catolicismo brasileiro

implantado a partir do final do século XIX. Nessa região, graças ao fluxo

imigratório contínuo e ao fato de as tradições luso-africanas não haverem ali se

95 AZEVEDO Fernando de. A Cultura Brasileira, p. 262. 96 HOLANDA Sergio Buarque, op cit, p. 206. 97 http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-218-65.htm acesso 06 jan. 2017.

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desenvolvido como no Nordeste e parte do Sudeste, foi possível implantar um

catolicismo de forte traço europeu primeiro por meio da organização eclesiástica

e depois dos seminários menores e maiores que arregimentavam os futuros

quadros da igreja entre a classe dos pequenos agricultores sulistas, formados

em zonas de colonização profundamente marcadas pela pertença católica98,

notadamente entre os italianos99 e os poloneses100, suprimindo com o tempo não

só as incipientes manifestações do catolicismo colonial, como até mesmo – caso

do Rio Grande do Sul – a influência da laicidade advinda do positivismo.101 No

Nordeste se deu fenômeno inverso: ali, a pressão demográfica preservou o

catolicismo de raízes ibéricas, muito marcado pela influência africana e que se

mostrou muito mais resistente à absorção pelo catolicismo europeu, sobretudo

em centros de devoção popular como Bom Jesus da Lapa, Juazeiro do Norte e

São Severino do Ramo102.

Não apenas com relação a territorialidade o catolicismo apresenta essa

característica de diversidade. Como lembra Riolando Azzi, o catolicismo no

Brasil não traduz nenhuma idéia de uniformidade. Pelo contrário: há vários

“catolicismos” que coexistem entre o começo do século XX e os anos 60 que vão

se condensando no rastro das transformações sociais decorrentes da

configuração social formada com o advento da República e realinhada depois de

1930: um catolicismo ainda identificado com as tradições lusas e forte

principalmente no interior do Brasil, “praticado, principalmente, pelas camadas

populares iletradas”; o catolicismo ultramontano do Centro-Sul do país e o

chamado “catolicismo militante”, onde se destacam as organizações católicas

das juventudes operárias e estudantis, subsidiadas pelo forte apoio de

congregações e presente em certos centros progressistas de classe média,

sendo que nas capitais os três modelos compartilham os mesmos espaços103.

Todos esses movimentos ocorridos no âmbito do catolicismo brasileiro se deram

com a República e com a separação da Igreja do Estado, por meio do qual a

Igreja Católica veio a ser beneficiada com o acesso a “uma certa soma de

98 HISTÓRIA DA IGREJA NO BRASIL, III, 2, 3/2, p. 538. 99 Ibidem, p. 274. 100 Ibidem, p. 275. 101 Ibidem, p. 595 – 595. 102 Ibidem, op cit, p. 425 – 426 e 428 – 431. 103 Ibidem, op cit, p. 421.

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liberdades que ela jamais logrou no tempo da monarquia”, onde o episcopado,

nas palavras do padre Júlio Maria de Lambaerde, citado por Fernando de

Azevedo, padeceu em meio a uma “longa e triste escravidão”.104

4. Atividades de Ginsburg na IEF (1890 – 1891)

A despeito dos problemas passados em Portugal, Ginsburg afirmou

depois em suas memórias que, no final, a temporada portuguesa foi boa porque

lhe possibilitou aprender não apenas a língua, mas ter uma idéia a respeito da

“atuação da Igreja Católica Romana”. Porém, ele precisava arrumar uma igreja

protestante onde congregar e tendo em vista o acordo que havia celebrado com

a Sra. Kalley foi logo encaminhar-se à IEF. Aqui ele comete mais um lapso

quando descreve aquela comunidade como sendo “uma espécie de igreja

congregacional com governo presbiteriano105” quando na verdade tanto na forma

quanto no governo ela é congregacional (art. 18 e 19 dos 28 Artigos da IEF).

Decerto Ginsburg deve ter feito confusão por ele entender que a igreja

“pertencia” à família Fernandes Braga, possivelmente dada a proeminência

desse grupo sobre os demais elementos da congregação.106

4.1. Missão em Pernambuco e na cidade do Rio de Janeiro

As atividades de Ginsburg com os congregacionalistas foram,

basicamente, as de evangelização, pregação e, por algum tempo, o pastorado

da IEP por conta da licença do pastor titular, James Fanstone, que retornou à

104 AZEVEDO Fernando de, op cit, p. 269. 105 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 47. 106 Ibidem, p. 49.

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Inglaterra por motivo de saúde107. Essa primeira temporada em Pernambuco lhe

seria de grande valia, permitindo-lhe mais tarde, já com os batistas, movimentar-

se sem maiores dificuldades pela zona da mata.

Nessa sua primeira passagem por Pernambuco, Ginsburg, porém, atuou

basicamente como colportor, percorrendo o Recife e cidades da zona da mata

sul como o Cabo onde se dá um incidente que é bastante revelador de sua

mentalidade naquele momento em que dava os primeiros passos pelo país.

Depois de obter uma licença para vender bíblias na feira da cidade, Ginsburg

percebeu que estava sendo seguido por um grupo liderado por um padre que ele

descreve como chefe político da região e filho natural de um usineiro. Como o

grupo era muito numeroso ele decidiu retirar-se. “Concluí que seria inútil tentar

evitar o ataque de cem ou mais asseclas fanáticos e enfurecidos ou incitados por

um padre mulato todo-poderoso” (grifo meu)108. O racismo e o moralismo podem

ser encontrados na tônica tanto do discurso quanto da prática missionária de

Ginsburg

O relato do incidente do Cabo não é o único episódio que evidencia o

racismo de Ginsburg. Em outra situação ele faz menção a dois oficiais da junta

diaconal da PIB do Rio, o médico piauiense Dr. Joaquim Nogueira Paranaguá e

certo diácono Santana, que não é descrito da mesma maneira cerimoniosa com

o qual é mencionado o Dr. Paranaguá, proveniente de uma das famílias

protestantes mais antigas do país, outrora governador e depois senador pelo

Piauí e que também presidiu a CBB (1911 – 1913) como o primeiro e até hoje

único leigo a dirigir aquela instituição. De fato, a única coisa mencionada desse

diácono Santana é o fato de ele ser negro: “preto retinto como bem poucos o

são, mas com um coração tão alvo quanto a neve”109. É quase certo que ao

escrever isso Ginsburg tenha pensado no Salmo 51.7: “Expurga-me com

hissopo, e ficarei limpo; lava-me, e ficarei mais branco que a neve” (Tradução

Brasileira). Se for de fato, então Ginsburg associa o pecado humano também a

107 BRAGA Henriqueta Rosa Fernandes, op cit, p. 192 – 193. 108 Idem, p. 53. O texto é baseado na tradução de 1970, vertido do original em inglês de 1922, p.

52. Na edição de 1931 o tradutor Manoel Avelino de Souza suprimiu esse comentário com a seguinte

tradução: “mas não há ganho algum em resistir a uma multidão de 100 fanáticos guiados por um padre sem

valor nenhum”, p. 57. 109 Ibidem, p. 222.

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questões etno-raciais, embora, de forma alguma, ele fosse o único a fazê-lo

nesses termos110.

Ainda na fase congregacional deram-se dois incidentes que mostram bem

a postura proselitista do missionário. No primeiro, Ginsburg entrou numa loja em

um subúrbio carioca e tentou vender uma bíblia a um passante. Sua insistência

foi tanta que o homem perdeu a paciência e o jogou para fora da loja a pontapés.

Mesmo assim o missionário retornou e depois de avisar ao agressor que

chamaria a polícia para notificar o incidente conseguiu fazer com que ele

comprasse a bíblia.111 No segundo incidente, Ginsburg foi vender folhetos no

centro do Rio e fez ponto nas proximidades da igreja de São Francisco de Paula

onde começou a vendê-los até que a chegada de um padre o forçou a ir embora.

“O padre não queria que o seu povo lesse a Bíblia”112. Nos dois incidentes fica

configurada a prática proselitista que será recorrente do ministério de Ginsburg

e, na verdade, acentuada quando de sua transição do congregacionalismo para

a Igreja Batista. De fato, em muitos relatos de sua autobiografia, o proselitismo

é quase sempre pensado e praticado em termos de confronto direito com o

catolicismo.

110 O missionário pentecostal sueco Otto Nelson que desembarcou em Alagoas em 1915 também

fez comentários análogos ao tratar de uma prosélita, uma das primeiras aquisições feitas pela AD naquele

estado “preta como carvão, mas lavada no sangue de Jesus”. ALENCAR Gedeon. Assembléias de Deus,

origem, implantação, militância, p. 66. O racismo no meio pentecostal também aparece na incipiente

produção literária dos primórdios do movimento nos EUA. Myer Pearlman (1898 – 1943), também oriundo

do meio judaico, nesse caso, do ambiente inglês, e como Ginsburg convertido ao cristianismo após

dolorosas experiências pessoais, transferiu-se para os EUA onde assumiu funções docentes no Central Bible

Institute em St. Louis, Missouri, um dos centros do movimento pentecostal estadunidense, onde formou

seminaristas que depois serão enviados como missionários ao Brasil, a exemplo de Niels Lawrence Olson

(1910 – 1993), autor de revistas de escola dominical e apresentador do programa radiofônico A Voz das

Assembléias de Deus, transmitido do Rio de Janeiro, a partir de 1955. Pearlman escreveu alguns livros que

depois serão publicados no Brasil por meio de grupos editoriais conservadores como a editora Vida, entre

os quais, Através da Bíblia, Livro por Livro, adotado como livro-texto no Instituto Bíblico das Assembléias

de Deus de Pindamonhangaba (SP), e no Instituto Bíblico Pentecostal, do Rio, também ligado às AD. Em

Através da Bíblia aparece a tese da “maldição da Cam” na p. 20. Um registro biográfico de Pearlman pode

ser encontrado em ARAUJO Isael, Dicionário do Movimento Pentecostal, p. 547. Sobre Olson, mesma

obra, p. 531. 111 GINSBURG Salomão L, op cit, p 52. 112 Ibidem, p. 53.

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4.2. Ginsburg e a hinologia: o “Cantor Cristão” (1891)

Além das atividades propriamente pastorais outra iniciativa também

tomada por Ginsburg nesses primeiros tempos em Pernambuco, quando ainda

estava entre os congregacionalistas, foi a edição da coleção de hinos Cantor

Cristão, publicada pela primeira vez no Recife em 1891113, e que com o passar

do tempo terminou por substituir os Salmos e Hinos, primeiro hinário protestante

brasileiro publicado ainda durante o Império (1861) de autoria do casal Kalley e

que foi muito usado pelos batistas nos primeiros tempos. O sucesso desse

hinário pode ser explicado pelo fato de se constituir a coleção no saltério da igreja

batista onde, além de Ginsburg, contam-se canções dos missionários pioneiros

como Bagby, Taylor, além de ministros de outras denominações como João

Gomes da Rocha e Robert Kalley (lembrando que a primeira edição saiu quando

Ginsburg ainda fazia parte do quadro da IEF). E de fato o sucesso entre os

batistas pode ser facilmente atestado pela quantidade de edições que esse

hinário teve desde 1891, bem como os acréscimos posteriores, passando dos

dezesseis hinos iniciais para 578 publicados na trigésima edição (1956) pela

mesma Casa Publicadora Batista.114 Aqui não é o local para fazermos uma

análise completa da hinologia de Ginsburg até por ser bastante vasta – mais de

cem hinos – mas desse total, queremos chamar atenção para um deles que, a

nosso ver, expressa bem o pensamento de Ginsburg acerca do Brasil e do seu

próprio ministério, o hino 432, “Avante com Deus”, que é, ao mesmo tempo, um

resumo do caráter cristocêntrico de sua pregação, como também de que sua

idéia de uma “nação cristã” – conforme transmitida pelo refrão “A Pátria para

Cristo” – só era possível numa perspectiva protestante (ou melhor, batista). “A

Pátria para Cristo/Bem alto apregoai/ E a graça do Evangelho/ Na vida proclamai/

(...) Jesus triunfará/ Nos lares brasileiros/ Jesus triunfará (...). Ó crentes

brasileiros/ O Mestre tem poder/ dê aos nossos conterrâneos/ A vida conceder

(...) A Pátria para Cristo/ avante com fervor!”

113 Ibidem, p. 126. 114 BRAGA Henriqueta Gonçalves Fernandes, op cit, p. 193 – 195.

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Para Ginsburg o que fará o Brasil um “país cristão” é o fato de ele se tornar

uma realidade em cada casa, em cada família, mas isso só é possível na

perspectiva da conversão e conversão a um novo sistema religioso, a uma nova

relação de fé e sociedade. Os “crentes” são chamados a fazer esse esforço,

apregoando o evangelho e o dom da vida inerente na sua mensagem. Fica claro,

assim, que nesse hino, Ginsburg não só não vê o Brasil como um país cristão ou

que tenha uma idéia do que seja a mensagem cristã, como ainda, que só por

meio do protestantismo batista essa mensagem poderá ser efetivamente

transmitida e vivenciada.

4.3. Transição da IEF para a Batista (1891)

Ginsburg tinha poucos meses no Brasil quando subitamente se vê

envolvido numa polêmica sobre a forma de se realizar o batismo, travada com

elementos da Igreja Batista do Rio, isto é, se o batismo se dava por meio de

imersão ou de aspersão. E é interessante notar que mesmo se declarando alheio

ao denominacionalismo115, uma vez que sua transição para o cristianismo se deu

no âmbito de uma agência interdenominacional, ele tenha feito de uma questão

dessa ordem o motivo para deixar a IEF, que praticava o rito aspersionista, para

se membrar na denominação batista, cujo batismo imersionista lhe pareceu mais

aceitável e justificável116.

Contudo, desse episódio aparentemente pouco relevante, podemos tirar

algumas pistas que podem nos sugerir o tipo de personalidade que era o

missionário Ginsburg e sua compreensão da forma de cristianismo que estava

pregando. Em primeiro lugar, esse cristianismo não exclui de todo o rito judaico,

já que uma das razões que influenciaram a opção de Ginsburg pelo batismo

imersionista e, consequentemente, pela Igreja Batista, foi a reminiscência de

práticas rituais imersionistas que teria presenciado na Sinagoga durante a

115 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 61 – 62. 116 Ibidem, p. 66 – 68.

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infância e o entendimento particular de eruditos judeus sobre o conceito e a

significação do termo imergir dentro da cultura e da literatura

veterotestamentária117. Portanto, mesmo criticando o caráter ritual do judaísmo,

é a essa experiência religiosa que ele recorre para formular o seu juizo sobre o

que ele entende ser a concepção certa do rito de batismo. Em segundo lugar, ao

dizer que ele estava “errado” e os batistas “certos” na questão imersionista (isto

é, na forma de celebração do batismo por parte dos batistas), Ginsburg está

reproduzindo um discurso que é também a tônica não só do missionismo e do

evangelismo, mas de todo um modo de ser dos batistas landmarquistas sobre

quem nos deteremos mais adiante: a de que a verdade do cristianismo não

poderia ser apreendida de outro modo a não ser por meio da recepção da

teologia dos batistas, com a exclusão subsequente de outras formas de prática

religiosa protestante e mesmo das próprias formas de batismo peculiares

àquelas, como destaca o professor e pastor batista Carlos Novaes.118

Em terceiro lugar, mesmo quando insiste em afirmar que procurou um

entendimento da questão de um ponto de vista bíblico, Ginsburg reconhece que

ficou prejudicado por sentir lhe faltar a erudição necessária para elaborar uma

compreensão mais objetiva e precisa da questão: “eu não tinha outro livro para

examinar. Às vezes lamentava não ter estudado a questão na Inglaterra, e outras

achava melhor não tê-lo feito, porque assim a estava estudando seriamente

agora. Sabia que os batistas baseavam seus argumentos na Bíblia e que a Bíblia

era o melhor livro para decidir essa questão, e assim foi à Bíblia que eu fui119”.

Também não se pode descartar a influência do ambiente da Mildmay Mission,

em particular o seu próprio processo de batismo, o que pode ter influído em sua

decisão de membrar-se com uma igreja que aceitasse essa concepção

soteriológica120, bem como a sua rejeição do batismo infantil que ele mesmo já

havia assinalado e que foi, entre outras coisas, uma razão determinante pelo

qual Ginsburg optou por se membrar na Igreja Batista. E embora ele não deixe

isso explícito, é bem provável que suas rusgas com o reverendo João Manoel

117 Idem, p. 68. 118 NOVAES Carlos. “Vocação para a Intolerância. Controvérsias e cisões na História dos

Batistas”, in PINHEIRO Jorge; SANTOS Marcelo. Batistas. Controvérsias e vocação para a Intolerância,

p. 10. 119 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 63. 120 Ibidem, p. 29.

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Gonçalves dos Santos121, o sucessor dos Kalleys na IEF, tenha influído na sua

decisão de se reunir aos batistas cujo trabalho era mais recente e onde o conflito

de egos, pelo menos naquele momento, ainda não existia ou não tinha tomado

vulto maior122.

Note-se que logo depois de recebido na comunidade batista, Ginsburg foi

quase que incontinenti ordenado ministro123, o que corrobora – embora, voltemos

a afirmar, essa seja uma hipótese circunstancial – a idéia de que seu conflito

com a liderança congregacional e em particular com o pastor João Manoel

Gonçalves dos Santos, pode ter influenciado em sua opção por deixar a IEF e

membrar-se efetivamente no grêmio batista.

4.4. Primeiros movimentos na Igreja Batista: proselitismo entre os

congregacionalistas.

As atividades que Ginsburg passa a desenvolver logo após a sua

passagem do estandarte congregacional para o batista mostram não só que

Salomão Ginsburg havia se deixado assimilar totalmente pelo novo ambiente,

como ainda, que a sua decisão de missionar no Brasil havia solidificado de forma

indelével a sua opção por um trabalho missionário de forte conteúdo apologético

e proselitista. Isso porque Ginsburg, agora se sentindo plenamente convencido

de que apenas o batismo batista é bíblico, decide ir atrás de um grupo de

prosélitos de uma congregação da IEF em Niterói, então capital do estado do

Rio, que ele havia batizado por aspersão, movido pelo intento de rebatizá-los no

rito imersionista. Diz, em princípio, respeitar as opiniões alheias “pronto a

121 Rev. João Manoel Gonçalves dos Santos (1842 – 1928). Membro da Igreja Evangélica

Fluminense desde 1859, tendo sido recebido pelo próprio Robert Kalley, estudou na escola de pregadores

fundada por C H Spurgeon em Londres, formando-se ali em 1875. De volta ao Brasil presidiu a Igreja

Evangélica Fluminense do Rio de 1876 a 1914 e a SBBE no Brasil de 1879 a 1901. É o primeiro pastor

brasileiro consagrado estritamente para este ministério. 122 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 47 – 48. 123 Ibidem, p. 70.

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condenar os que perseguem outros por não concordarem com as suas idéias124”,

mas, ao mesmo tempo, afirma que a questão do rebatismo dos

congregacionalistas era de teor diferente. “Considerei ser meu dever

incontestável ao menos explicar-lhes que as havia deixado em erro por

ignorância125.” Ginsburg ainda registra que muitos crentes que batizou em Niterói

durante sua passagem pela IEF haviam sido “por minha influência (grifo meu)

(...) guiadas a Cristo, sabendo que me ligara aos batistas, começaram logo a

estudar a questão do batismo sob nova luz (grifo meu) e com a Bíblia aberta”.126

Acrescenta ainda o missionário que muitos prosélitos do grupo de Niterói foram

depois apresentados ao missionário Willian Bagby o pioneiro batista, e mais

tarde organizaram a PIB na antiga capital fluminense, feito que Ginsburg atribuiu

sem pejo algum ao seu testemunho de fé embora para ele isso de maneira

nenhuma signifique proselitismo.127

5. Salomão Ginsburg na Bahia (1892)

O missionário Taylor, fundador da primeira igreja batista voltada para

brasileiros e organizada na Bahia, em 1882, vinha desde o prmeiro momento

presidindo aquela comunidade, mas foi forçado a retornar aos EUA no começo

de 1892 e deixou a Salomão Ginsburg a responsabilidade de cuidar da igreja até

seu retorno. As causas específicas para essa retirada repentina não são bem

explicadas por Ginsburg que se limita apenas a registrar as “idéias peculiares”

que aquele missionário tinha sobre o casamento, como, por exemplo, de que a

luz de certas circunstâncias era possível a igreja local conceder o divórcio a um

casal e depois conceder aos divorciados o direito de celebrar novas núpcias.128

É possível que esse interregno se devesse a forma como Taylor tratou a questão

124 Ibidem, p. 73. 125 Idem, p. 73. 126 Idem, p. 73. 127 Idem, p. 73. 128 Idem, p. 74.

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do casamento em um contexto em que o próprio Estado ainda não reconhecia o

divórcio, mas também fica claro, pelo teor da narrativa, que Salomão Ginsburg

não aprovava o pensamento do colega. Desse modo inicia-se de facto o trabalho

de Ginsburg na Igreja Batista e que não começa de forma alvissareira, pois, com

efeito, a comunidade não se achava, segundo ele, dentro do padrão moral que

ele concebia o que lhe leva a tomar medidas drásticas de exclusão dos membros

que ele alegava não terem um padrão retilíneo de comportamento. E de novo

ficamos sujeitos a examinar a questão sob o seu olhar, isto é, é pela sua narrativa

que sabemos que os membros foram excluídos e disciplinados e que depois

retornaram “humilhados e mudados” para o remanso da igreja, tudo isso tratado

conforme o seu próprio testemunho pessoal129. Além disso, a atitude extremista

deixa clara a importância que ele dava ao “testemunho exterior” da comunidade

como condição essencial para que se pudesse fazer uma evangelização bem

sucedida da sociedade130.

5.1. A questão do “testemunho exterior” na PIB da Bahia

Ginsburg se preocupava em demasia com o testemunho exterior da igreja.

“Para tornar-se membro de uma igreja batista no Brasil é preciso dar provas de

regeneração. Comissões são formadas para inquirir a vida do candidato antes

que seja batizado”131. Tudo isso para que a igreja local pudesse dar um

testemunho ilibado diante da comunidade já que também o testemunho exterior

era uma arma de propaganda. “Cada igreja batista levanta o padrão moral da

comunidade. Quando é organizada é combatida e deixada no ostracismo, mas

uma vez compreendidos os princípios que pregamos eles o admiram e o

129 Idem, p. 76. 130 Desde o início do seu ministério no Brasil que Ginsburg manifesta preocupação quanto ao

“testemunho exterior” da comunidade. Na época de sua transição do congregacionalismo para a Igreja

batista, Ginsburg lembra que os batistas de Pernambucano “tinham má reputação”; GINSBURG Salomão

L, op cit, p. 207. 131 Idem, p. 258.

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querem.”132 No período que Ginsburg exerceu o ministério na Bahia, parece que

o que mais o preocupou nos exames admissionais foi o controle social e o

cerceamento da mulher como agente participante ativo no culto, lembrando que

elas constituíam a maior parte dos membros da igreja. E tudo isso em

decorrência da questão do testemunho haja visto o fato de que, como lembrado

por João Pedro Gonçalves de Araújo, do programa de pós-graduação da PUC

Goiás, o testemunho do crente colocava em sua responsabilidade a missão de

convencer a Igreja de sua regeneração e transformação de vida que, por fim,

justificassem o batismo. E “era a congregação que julgava satisfatório ou

insatisfatório o depoimento”.133

O poder da congregação é confirmado pelos registros das atas da PIB

baiana: um mendigo que pretendia se batizar, fora rejeitado pela congregação

por conta, justamente, da “sua profissão, que torna o evangelho muito

humilhante, e uma vez que a Igreja não poderá sustentar o candidato ou arranjar

outra profissão, vota contra a aceitação do mesmo, estando, porém, a qualquer

tempo disposto a aceita-lo, caso venha a arranjar outra ocupação mais lícita

(grifo meu)134. Em outro caso, de setembro de 1892, um requerente de nome de

Ribas se candidatou para o batismo, mas foi rejeitado duas vezes pela

comunidade, a primeira por ser amasiado e a segunda porque, mesmo tendo

rejeitado a amásia, ainda continuava a frequentar sua casa onde almoçava,

ficando ainda a mesma a cuidar da sua roupa.135

5.2. Ginsburg e a questão de gênero na PIB da Bahia

O episódio envolvendo uma peticionária chamada Maria Magdalena dos

Santos que requereu o batismo, tendo sido o seu pedido também rejeitado duas

132 Idem, p. 258. 133 ARAÚJO João Pedro Gonçalves de. História, Pensamentos e Tradições Batistas, p. 24. 134 Ibidem, p. 25. 135 Ibidem, p. 25.

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vezes, a primeira por conta de sua situação de amásia e a segunda por ter ficado

grávida ainda que tivesse deixado aquele relacionamento, é bem ilustrativo do

modo como as relações de gênero eram tratadas na PIB baiana, e que refletem

o estado de espírito da Igreja Batista de um modo geral e do próprio Salomão

Ginsburg em particular, posto que ele ocupa uma posição de protagonista no

incidente tendo em vista que no momento em que se deu o fato (setembro de

1892) ele se acha respondendo por aquela igreja. De fato, é preciso aqui chamar

atenção para aquilo que Gonçalves de Araújo descreve como sendo a

disparidade dos conceitos de moral formado pelos brasileiros que membravam

na igreja e o dos missionários, já que enquanto os primeiros votavam pela

recepção da peticionária, os últimos tomaram partido contrário. Diante da

posição favorável dos brasileiros, Ginsburg substituiu o moderador da reunião

colocando em seu lugar outro elemento mais sensível às suas convicções e

forçando assim a Igreja a rejeitar o ingresso da solicitante.136 Pode ter sido em

virtude desse fato, talvez um resquício da influência precedente de Taylor, que

Ginsburg tenha se decidido por depurar aquela igreja afastando dela aqueles

elementos que seriam, segundo ele, a razão do mau testemunho da comunidade

no âmbito da sociedade local.

É bem verdade que procedimentos repressivos dessa natureza não são

uma exclusividade batista, lembrando, ainda acompanhando João Pedro

Gonçalves de Araújo nesse tópico, que o protestantismo apenas continuou uma

práxis que já vinha da Idade Média Católica ou ainda de muito antes, dos

primórdios da formação da Igreja Cristã. O que se sucede é que esse

Protestantismo de Missão ao se inserir na realidade brasileira, não apenas

implanta, mas principalmente impõe esse modelo de padronização eclesiástica

que tem no público feminino o seu principal alvo. Além disso, ao menos nesse

ponto, ele não pretende romper com os padrões sociais estabelecidos pela moral

burguesa europeia e anglo-saxônica, pelo que termina por reproduzir o seu

discurso onde o elemento feminino é manietado e enquadrado de forma a se

tornar uma personalidade abúlica, dominada e manietada dentro e fora da

igreja137. A mulher precisava de acompanhamento regular, o que justificava e

136 Idem, p. 26. 137 Idem, p. 33 – 44.

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legitimava a criação de uma comissão, dentro da PIB baiana, em maio de 1887,

dedicada exclusivamente a visita-las e examinar seus padrões de conduta138.

Igualmente com relação ao “direito de falar” na comunidade, este não é expresso

nos mesmos termos, porque às mulheres não era dado o direito à voz na

assembléia da Congregação. A solução encontrada é a permissão, dada pelos

homens, para que suas esposas pudessem organizar uma comissão por meio

da qual elas pudessem falar. A comissão foi constituída no final de 1885 com

três irmãos “oferecendo” suas esposas para organizarem a mencionada

comissão139, o que possibilitou, posteriormente, a divisão dos próprios trabalhos

regulares da comunidade, ficando aos homens delegadas as tarefas

relacionadas ao proselitismo e à organização da igreja e as mulheres o cuidado

com as sociedades femininas.

Nisso se cria uma situação deveras excepcional, como percebido por

Alberto Kenji Yamabuchi em sua tese doutorado pela Universidade Metodista de

São Paulo: “As mulheres batistas brasileiras, portanto, eram responsáveis pela

maior parte do trabalho poimênico e de evangelização, mas não lhes eram

permitidos acessos aos lugares privilegiados de poder da Convenção Batista

Brasileira140”. Ela pode atuar na evangelização, mas não pode ser protagonista

em sua comunidade ou grupo religioso141. E o costume da segregação feminina

chegou até o século XX, já que, conforme Ebenézer Cavalcanti, citado por Rute

Salviano, no Pará, em 1928, ainda era possível encontrar igrejas batistas regidas

dentro dessa divisão142.

É importante destacar que os padrões de dominação das mulheres em

igrejas protestantes e pentecostais prosseguiram ainda por muitas décadas e

não se restringiam apenas ao meio eclesial batista. Na Igreja Evangélica

138 Idem, p. 32. 139 ALMEIDA Rute Salviano de, Vozes Femininas no Início do Protestantismo Brasileiro, p. 182

– 183. 140 YAMABUCHI Alberto Kenji, O Debate sobre a História das Origens do Trabalho Batista no

Brasil. Tese de doutorado em Ciências da Religião, p. 127. 141 Em seu artigo sobre o ministério pastoral feminino, Mia Fabiano já destaca a mudança de

mentalidade em igrejas batistas e que no âmbito das duas convenções batistas brasileiras (CBB e Convenção

Batista Nacional) se percebe uma recepção à ordenação de pastoras, mesmo porque as missionárias no

campo já exercem trabalho análogo ao dos pastores, por exemplo, batizando e celebrando a ceia, “coisa que

antes as próprias convenções não permitiam”. FABIANO Mina. “Provocações de Gênero: Mulheres

Pastoras”, in PINHEIRO Jorge; SANTOS Marcelo, op cit, p. 119. 142 ALMEIDA Rute Salviano de op cit, p. 181 – 183.

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Congregacional de Campina Grande (PB), cujas atas foram estudadas por

Cleofas Lima Alves de Freitas, durante o período de pastorado de João Clímaco

Ximenes (1928 – 1960) são relatadas toda sorte de medidas de controle do

elemento feminino: negação do batismo à mulheres que viviam amasiadas ou

que fumavam; afastamento ou desligamento da igreja daquelas que aparavam

ou cortavam os cabelos completamente ou que frequentavam festas e cinemas.

Interessante o registro que o pastor Clímaco Ximenes faz a respeito do que

entendia ser uma “estética pura” para a mulher cristã e que apenas aquelas que

não cortavam os cabelos se inseriam nesse grupo. A esse respeito, a conclusão

de Cleofas é praticamente idêntica à de Gonçalves de Araújo: “as mulheres

foram constrangidas ao silêncio público, com o dever de se ocultar, com

aparições reguladas e o cuidado do corpo143”.

No meio pentecostal, é conhecida a política dos “usos e costumes” que

por décadas predominou no meio assembleiano. Exemplo disso é a resolução

do presbitério da AD de São Cristovão, no Rio, da primeira quinzena de julho de

1946 onde se determinava uma série de restrições para as mulheres entre as

quais: proibição de corte de cabelo, proibição de raspagem das sobrancelhas,

proibição de vestidos curtos e recomendação para o uso de meias. E como na

igreja congregacional campinense, também ali se impunha a perda da comunhão

para as recalcitrantes caso não se ajustassem àqueles termos de conduta144. A

decisão do presbitério da AD carioca foi totalmente rechaçada pela 8ª

Convenção Geral das AD reunida no Recife (21 a 28 de outubro de 1946), porém,

como lembra Silas Daniel, permaneceu a continuidade da prática, especialmente

nas igrejas ligadas à Assembléia de Deus de Madureira, embora não fosse a

única145.

Nos três casos, a despeito das variáveis doutrinárias de cada igreja e das

regiões onde elas se instalaram, permanece a mesma situação: a negação do

sujeito feminino tanto do ponto de vista do seu papel na vida da comunidade

143 JUNIOR Cleofas Lima Alves de Freitas, As Práticas e Representações Femininas no

Protestantismo de Campina Grande: a Igreja Evangélica Congregacional (1927 – 1960). Dissertação de

Mestrado em História, p. 107 – 109. 144 DANIEL Silas. História da Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil, p. 219. 145 Op cit, p. 224. Na defesa dessa dissertação, o professor Gedeon Alencar, componente da banca,

destacou que o não-acatamento da resolução do presbitério carioca pela convenção estava mais relacionado

ao conflito de poderes (precisamente por se tratar de ato do presbitério de uma igreja e não da convenção)

e não na de contrariedade com as normas (N.A).

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como do seu direito ao uso do corpo como expressão da individualidade. Tudo

fica contingenciado ao imperativo masculino, seja para falar no culto, seja para

se expressar em grupo dentro da igreja. A relação da mulher com os demais

grupos tem que ser enquadrada, não lhe cabendo a autonomia mesmo quanto a

decidir a conveniência ou não de certas relações, o que a coloca do ponto de

vista da moral burguesa, inteiramente sob as rédeas do homem, seja ele o

marido ou o pastor da comunidade.146

A promulgação da Lei Eleitoral por Getúlio Vargas, em 1932, fornece outro

exemplo das relações de subordinação de gênero no protestantismo brasileiro

em geral e no batista em particular. Depois de afirmar que a nova lei eleitoral é

a vitória de um “ideal evangélico” e que as mulheres já participavam das eleições

das diversas juntas e das escolhas dos pastores nas igrejas, o professor Luciano

Lopes, escrevendo no Jornal Batista (23 de maio de 1933) assinala: Não

ignoramos o perigo a que nos conduz o voto feminino, sabendo que a mulher

brasileira, em geral, não está preparada para cumprir tão alta missão” (grifo

meu), mas de todo modo, “o caso é uma oportunidade que a mulher esclarecida

por um verdadeiro espírito cristão não deve perder de mostrar-se como exemplo

no cumprimento dos seus deveres cívicos, segundo a norma inculcada147.

Disso se conclui, portanto, que os atos praticados por Ginsburg, durante

sua interinidade pastoral na Bahia, refletem não uma posição sectária isolada,

mas a tônica de um discurso institucional, posto que encontrado no meio

protestante brasileiro, bem como no pentecostalismo, acerca da tutela e da

negação do papel institucional da mulher como elemento participativo e

protagonista de sua comunidade religiosa.

146 ARAÚJO João Pedro Gonçalves de, op cit, p. 41 – 42. 147 ALMEIDA Rute Salviano de op cit, p. 184.

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5.3. Proselitismo e doutrinação

Como vimos a Igreja Batista já estava constituída na Bahia havia uma

década quando da chegada de Ginsburg e experimentava uma incipiente fase

de expansão. Ligadas à PIB de Salvador se achavam duas igrejas: a de Valença,

no interior do estado e a de Maceió, fundada ainda no tempo do Império por um

ex padre, Antonio Teixeira de Albuquerque148, todas em fase de organização e

com reduzido número de prosélitos. A igreja alagoana merece nesse ponto da

narrativa uma atenção especial, posto que, segundo Ginsburg, “as perseguições

aos crentes eram severas” o que fez com que cada membro “se tornasse um

soldado de Cristo forte e destemido”149. Essa informação não é corroborada pela

pesquisa de Pedro Tarsier sobre as perseguições religiosas ocorridas no Brasil

durante os primeiros anos da República, que relata no período de 1890 a 1909

apenas uma ocorrência nesse sentido, e mesmo assim dirigida a um colportor150,

contra quatorze no período de 1910 a 1930 quando o campo missionário

alagoano já havia sido assumido pelo missionário John Mein, que depois irá

dirigir o STBNB. E tampouco Ginsburg cita fontes (orais ou escritas) para lançar

essa afirmação. Outro pormenor que desperta interesse é a estratégia de

evangelização usada pelos dois missionários em seu trabalho na Bahia, o uso

de literatura de cunho apologético e o debate público. Começando pelos livros

ao quais Taylor traduzia, escrevia e publicava enquanto Ginsburg os vendia em

seu trabalho de colportagem pelo interior do estado, o que chama atenção é o

caráter totalmente denominacional dessas produções. Conforme Ginsburg,

Taylor traduziu e depois imprimiu em sua própria tipografia a Origem e História

dos Batistas de S. H. Ford151e uma tradução da Confissão de Fé de Filadelphia

(1742) muito mais calvinista do que a mais moderada Confissão de New

148 MEIN John. A Causa Batista em Alagoas, p. 9 – 13. 149 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 77 – 78. 150 TARSIER Pedro. História das Perseguições Religiosas no Brasil, vol. II, p. 8. Tarsier cita como

fonte a Revista de Missões Nacionais, de 28 de dezembro de 1905. 151 Samuel Howard Ford (1819 – 1905). Teólogo e historiador batista, nascido na Inglaterra,

mudou-se para os EUA onde se formou em teologia pela Universidade Estadual de Colúmbia no Missouri.

Pastor em Memphis, Louisville e Sant Louis e editor do Western Recorder de Louisville, Kentucky. Durante

a Guerra de Secessão (1861 – 1865), representou o Kentucky no Congresso Confederado em Richmond de

dezembro de 1861 a fevereiro de 1862.

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Hampshire (1833) uma vez que repete os decretos de Deus e a dupla

predestinação da Confissão de Westminster (1647) dos puritanos152. Ginsburg

reconhece que a tradução não é das melhores, mas, por outro lado, é enfático

em declarar que esse tipo de literatura, junto com as Regras de Fé dos Batistas,

tem funcionado como “esteio principal na maioria das igrejas brasileiras.153” A

narrativa também mostra que mesmo oriundos de um ambiente muito

conservador, ainda não havia entre os missionários uma concordância de pontos

de vista quanto ao tipo de confissão de fé a ser adotada pelos prosélitos, bem

como na concepção soteriológica a ser abraçada, se a calvinista ou a

arminiana154.

Assim, sob o pretexto de evangelização, o trabalho missionário se

convertia em pura e simples doutrinação proselitista e, nesse sentido, em um

processo de reprodução dos bens religiosos já que, de acordo com Bourdieu,

esse capital simbólico acumulado pode ser lançado na concorrência pelo

“monopólio dos bens de salvação” e do poder religioso no sentido de se tornar

uma influência perene sobre os leigos, incutindo-lhes um novo habitus religioso,

“principio gerador de todos os pensamentos, percepções e ações, segundo as

normas de uma representação religiosa do mundo natural e sobrenatural, ou

seja, objetivamente ajustados aos princípios de uma visão política do mundo

social”.155 E tendo em vista que no Brasil pós independência sempre houve a

abertura para as novas demandas relacionadas ao Sagrado e também uma

ampla oferta de “bens de salvação” (por meio do incipiente protestantismo já aqui

inserido), fica claro que, além de proporcionar satisfação aos seus

consumidores, o capital religioso também tem atuado no ordenamento da

atividade religiosa e não apenas quanto a organização do trabalho religioso, mas

152 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 78. 153 Ibidem, ob cit, p. 78. 154 No meio batista as igrejas fundadas nos EUA seguiam orientação calvinista (isto é, aceitavam

o dogma da predestinação conforme consubstanciado por Calvino), sendo a doutrina acentuada (Confissão

da Filadélfia) ou atenuada (Confissão de New Hampshire), conforme o meio eclesial em que ela se

inserisse. Esses batistas eram comumente chamados de particulares, posto que criam no caráter seletivo da

salvação por parte de Deus, em detrimento dos batistas gerais, muito numerosos no Reino Unido, e que

seguiam as idéias teológicas do teólogo holandês Jacob Hermensz (conhecido como Armínio) onde a

predestinação não excluía a responsabilidade humana. Ver a respeito PINHEIRO Jorge e SANTOS

Marcelo, op cit, p. 24 – 29. 155 BOURDIEU Pierre, op cit p. 57.

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também do político já que em Bourdieu ambas as funções se encontram sob a

mesma forma de representação simbólica.156

O uso de literatura como meio de propagação do Protestantismo não era

uma exclusividade de Ginsburg e praticamente pode ser encontrado em diversos

relatos de missionários e colportores que percorreram o país durante o Império.

A literatura protestante era tão importante quanto a Bíblia, na medida em que

servia como material de instrução para o neófito que tinha contato com tais obras

nas áreas mais remotas, além do que, em caso de conversão, abria o caminho

para o envio de missionários e pastores da denominação responsável pela

publicação daqueles livros. Para exemplificar, lembremos o programa distribuído

pela Liga Antiprotestante de Pernambuco, fundada pelo frei italiano Celestino

Pedavoli, em 1902, quando da queima de bíblias realizada por ocasião do seu

segundo aniversário e que também incluía escritos doutrinários e revistas

denominacionais. Na relação estavam os Salmos e Hinos do casal Kalley (seis

exemplares); Vozes da História e Confissão, de Guilherme Dias (duas cópias);

Notas sobre as Epístolas de Pedro e Judas, de Samuel Gamom (um exemplar)

e jornais protestantes como O Século (74), O Mensageiro (4), O Evangelista (4),

A Luz Divina (2), O Expositor Cristão (20) e O Apologista I (220).157 Portanto, o

uso de literatura denominacional se inseria dentro de uma clara estratégia de

conversionismo proselitista.

Igualmente as conferências ou debates públicos. No caso de Ginsburg,

isso ocorre em dois momentos: no primeiro, ele descreve um debate ocorrido no

Rio pouco tempo depois de sua migração para a Igreja Batista entre ele e o

pastor da IEF, João Manoel Gomes dos Santos e que, segundo Ginsburg teria

resultado na mudança das famílias que o haviam promovido para o redil

Batista.158 Em outra ocasião, Ginsburg descreve a visita que recebeu de um

oficial do Exército e de um advogado que lhe pediram que fosse realizar uma

conferência no teatro da cidade baiana de Amargosa. O padre local, de “vida

desregrada” havia sido expulso da cidade e os “melhores elementos da região”

queriam agora conhecer mais a fundo as “doutrinas dos protestantes”. A

156 Ibidem, p. 57. 157 TARSIER Pedro, op cit, I, p. 198. 158 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 80 – 81.

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conferência seguiu o ritmo de praxe, isto é, Ginsburg fez uma exposição sobre a

diferença entre as doutrinas batistas e o Catolicismo Romano e distribuiu

algumas bíblias das quais uma foi parar nas mãos de um indivíduo que parece

ter se atemorizado por “ter um livro proibido pelos padres em seu poder”, e tanto

assim que se dispôs a queimá-lo com a maior urgência. Ocorreu, contudo, que

um padeiro, que já tinha tido algum contato com protestantes, pediu emprestada

a Bíblia para lê-la com sua esposa e, segundo Ginsburg, a primeira mensagem

que leram foi a de Êxodo 20 sobre os Dez Mandamentos, mais precisamente a

passagem “onde o culto aos ídolos é claramente proibido”, após o que ambos

destruíram todas as imagens de santos que haviam dentro da casa. Ginsburg

destaca o sucesso de sua missão em Amargosa com o fato de que uma igreja

batista havia sido fundada na região e que depois de alguns anos ela já “crescia

satisfatoriamente”159.

5.4. Ginsburg e a Maçonaria

O incidente ocorrido em Queimadas mostra bem como foi de grande

importância para Ginsburg, e decerto também para outros missionários, a

construção de uma sólida rede de relações para garantir a segurança e a

tranquilidade no seu trabalho de pregação. Queimadas, ponto final da Estrada

de Ferro Este Brasileiro, no sentido da zona do Rio São Francisco, e que terá

seu nome associado ao da Guerra de Canudos, vivia uma fase de decadência

econômica160, a despeito da ferrovia e de uma grande feira onde além do

comércio havia “muita jogatina, bebedeira e toda espécie de crime”.161 Ginsburg

decidiu fazer uma pregação pública naquela feira, mas em dado momento

começou a perceber que uma malta se achegava com punhais e outras armas

brancas desembainhadas provocando grande temor tanto em Ginsburg quanto

159 Ibidem, ob cit, p. 83 – 84. 160 CUNHA Euclides. Os Sertões, p. 465. 161 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 87.

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no colportor que o acompanhara naquela expedição. Então, de acordo com seu

relato:

Como um raio de luz, veio-me um pensamento para fazer o sinal de perigo da

Maçonaria. Seria possível que, naquele lugar, houvesse um irmão maçom? Eu o tentei e

pareceu-me que alguém como que estivesse esperando por aquele sinal, porque em menos

de cinco minutos cerca de meia dúzia de homens se aproximaram de mim e me rodearam

e me disseram que me vieram buscar para a sua casa. De certo foi-me grande surpresa.

Logo fiquei livre, asseguradamente instalado em uma das melhores residências da cidade,

protegido por soldados com suas carabinas de prontidão. Eu agradeci ao meu Pai Celeste

pelo livramento que me deu tão maravilhosamente daquela multidão enfurecida162.

Em outra ocasião, por conta da crise antimaçônica que eclodiu na Igreja

Batista de Alagoas, em 1905, Ginsburg teve mais uma vez a chance de

demonstrar publicamente sua identificação com a Irmandade. Naquela ocasião,

os batistas alagoanos, ao que parece influenciados pela pregação antimaçônica

de Eduardo Carlos Pereira, decidiram excluir todos os maçons do rol de

membros. O relato de Ginsburg é demonstrativo do ambiente cordial que reinava

entre os missionários batistas e os maçons naquele momento: “O trabalho estava

prosperando de um modo maravilhoso no estado de Alagoas (...) infelizmente,

um pastor presbiteriano anti-maçônico visitou Maceió e deixou ali plantada a

semente anti-maçônica de um espírito jesuíta e farisaico, de modo que o trabalho

se dividiu em dezembro de 1905 e está sofrendo bastante”163. É curiosa e

chamativa a anotação deixada a respeito do episódio pelo missionário John Mein

que dedicou boa parte de sua vida ao ministério missionário naquele estado:

“Não convém culpar os presbiterianos daquilo que os batistas fazem (...) um

regime semi-oligárquico no meio de um grêmio democrático é uma

incongruidade. O mal podia ter sido exterminado logo ao princípio: porém, a

história inglória daquele tempo faz crer que os envolvidos não contemplaram a

glória de Deus”164. Para Mein estava claro que a “glória de Deus” somente seria

162 Ibidem, p. 90. 163 MEIN John, op cit, p. 27. 164 Ibidem, p. 27.

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devidamente compreendida e assimilada mediante a colaboração entre batistas

e maçons, pensamento que é também o mesmo de Ginsburg.

De fato, segundo John Mein, por ocasião dessa crise, Ginsburg propôs

uma solução em nome da Missão nos seguintes termos: “A Missão, representada

pelos senhores missionários W.H. Canada e Salomão L. Ginsburg dissera que

continuaria a auxiliar esta igreja caso ela revogasse o que deliberou

relativamente à maçonaria, caso contrário, retiraria todo o auxílio”. Esse auxílio

era o pagamento do aluguel do ponto de pregação e o subsídio pastoral, ficando

a “evangelização do estado” por conta dos nacionais165. É possível que essa

atitude impositiva de Ginsburg tenha colaborado para que a crise antimaçônica

prosseguisse por mais tempo só sendo efetivamente solucionada em 1910, com

a chegada do missionário R.E Pettigrew, que, por meio de um discurso de

pacificação e sem imposições prévias, conseguiu restabelecer a união das

igrejas batistas dissidentes e revogar o edito de 1905 que expulsava os maçons

da denominação, fato para o qual colaborou também o esvaziamento do

movimento antimaçônico que, nesse momento se achava reduzido a três

membros da igreja batista de Pilar, que foi, por essa razão, extinta.166 Desse

modo, encerrou-se o cisma maçônico alagoano sem a saída dos maçons, o que

significou, na prática, o triunfo da posição defendida por Salomão Ginsburg,

ainda que por outros meios.

Decerto temos que observar o quanto a vinculação de Ginsburg à

Maçonaria colaborou para o desenvolvimento do seu ministério de pregação167.

Diferente de Simonton (não obstante os esforços maçônicos em tomar de assalto

a Igreja Presbiteriana nos seus primeiros anos no Brasil168), e de Kalley que não

tinha simpatia pela Maçonaria169, Ginsburg destaca de modo contundente sua

filiação à Irmandade e de modo algum isso é fato isolado na história do

Protestantismo Brasileiro. Ao contrário: denominações como a Presbiteriana

tinham grande número de membros maçons170 e por um bom tempo, a julgar

165 Ibidem, p. 28. 166 Ibidem, op cit, p. 31 – 32. 167 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 121 (porém, alguns irmãos maçons não podiam tolerar essa

perseguição...). 168 VIEIRA David Gueiros, op cit, p. 264. 169 Ibidem, p. 278. 170 Conforme David Gueiros Vieira, as relações entre presbiterianos e maçons eram bastante

cordiais no decorrer do século XIX embora destaque que a colaboração nem sempre era recíproca, pois

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pelo testemunho de Crabtree, foram muito cordiais as relações entre maçons e

a Igreja Batista. Para o historiador dos batistas, “a Maçonaria, embora sem credo

religioso, zela sempre pela liberdade religiosa e governo liberal. Estava, por

princípio, ao lado do movimento evangélico no Brasil (grifo meu)171.” E como

vimos, até o irrompimento da crise antimaçônica nas Alagoas, as relações entre

batistas e maçons eram bastante amistosas.

É sabida a influência poderosa que a Maçonaria exercia sobre a vida

social e política brasileira dos oitocentos, bastando apenas lembrar a quantidade

de políticos ou homens públicos ligados à Irmandade, de D.Pedro I (que procurou

assumir uma posição de protagonista na Irmandade tal como Federico II na

Prússia)172 ao Duque de Caxias; do visconde de Rio Branco a Rui Barbosa; de

frei Caneca a José Bonifácio; de Gonçalves Ledo a Saldanha Marinho173. Mesmo

no Catolicismo essa relação era uma realidade e apesar da reação ultramontana

da qual resultou a Questão dos Bispos, era fato corrente, como relata o

missionário presbiteriano Alexander Blackford em sua correspondência, que

muitas lojas maçônicas eram dirigidas por padres174. Os interditos papais contra

a filiação de católicos à Maçonaria foram ignorados totalmente no Brasil: “as

encíclicas contra a maçonaria nunca tinham recebido o beneplácito do imperador

e, portanto, não eram julgadas obrigatórias para a Igreja Católica”175 o que por

certo contribuiu para que se corresse em muitos círculos, a idéia de que os

maçons estavam excluídos de interditos de qualquer espécie, impressão que

não passou despercebida nem de Pio IX em sua carta ao episcopado brasileiro

quando da Questão dos Bispos.176 Contudo, é inegável que tais fatos, sem

dúvida, possibilitaram o mais amplo desenvolvimento da Irmandade, havendo,

enquanto os missionários presbiterianos estavam a par de muitas decisões da Maçonaria, por outro,

cooperavam com aqueles de modo restrito, limitando-se a fornecer livros e literatura anticatólica. Já os

maçons que aderiram à Igreja Presbiteriana “entravam com satisfação” na luta contra o Catolicismo.

Evidentemente havia exceções em relação à Maçonaria no meio presbiteriano como o missionário

Alexander Blackford, que tinha uma opinião mais crítica acerca da Irmandade, mas não eram

predominantes. Gueiros não encontrou evidências de uma colaboração nos mesmos moldes entre a

Maçonaria e os congregacionalistas, por certo, devido à falta de confiança de Robert Kalley na Irmandade.

Op cit, p. 278. 171 CRABTREE A.R, op cit, I, p. 47. 172 Sobre a participação de D. Pedro I na organização do maçonismo no Brasil ver VIEIRA David

Gueiros, op cit, p. 41 – 42. 173 Acerca da inserção da Maçonaria no Brasil e seu desenvolvimento durante o século XIX ver

VIEIRA David Gueiros, op cit, p. 40 – 47. 174 Ibidem, p. 278. 175 Ibidem , p. 279. 176 DOCUMENTOS DA IGREJA. Carta “Exortae in Ista”, 29 de abril de 1876, 2.

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no curso do século XIX lojas “em quase todas as cidades”, ainda segundo

Blackford em sua correspondência privada177. Como escreveu Metódio

Maranhão: “a Maçonaria teve sempre entre nós, um grande prestígio, sem a

mínima incompatibilidade com os membros e autoridades da Igreja Católica”.178

É também significativo que tanto na Igreja Presbiteriana quanto na Batista

os conflitos entre maçons e seus desafetos colocaram em lados opostos os

ministros nacionais que assumiam não somente posições nacionalistas, mas

também antiamericanas, e os missionários norte-americanos, simpatizantes da

Irmandade. A atitude de John Mein em favor da aproximação com os maçons

lembra em muito o ditirâmbico do missionário presbiteriano Schneider que

buscava uma síntese entre a fé cristã e aquilo que defendiam os membros da

Maçonaria.179 A associação entre a Missão e a Maçonaria também não passou

despercebida de João Dias de Araujo que escrevendo nos 70 fez esse

comentário irônico sobre semelhante vinculação. “Não seria a maçonaria um tipo

de ADESG (Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra) daquela

época”? Para Araujo, a vinculação do estado republicano com o Positivismo e a

Maçonaria foi refletida no meio protestante brasileiro por meio da aproximação

de suas lideranças, notadamente missionárias, das organizações maçônicas, o

que implicava, de imediato, no reconhecimento do novo regime pelos

protestantes.180 É a igreja exercendo o seu papel de legitimação dos atos do

Estado por meio da busca do “consenso”, naturalizando a ordem (ou nesse caso

a nova ordem) no mundo e, por meio dessa relação, os próprios atos do Estado,

conforme teoriza Bourdieu.181

A narrativa de Ginsburg não fala quando, como e onde ele foi cooptado

pela Irmandade, mas destaca o fato com as cores mais nítidas e revela nessa

afirmação uma necessidade imperativa: a de que o estudo das relações

177 VIEIRA David Gueiros, op cit, p. 278. 178 MARANHÃO Metódio, op cit, p. 58. 179 LÉONARD Émile G, op cit, p. 172. 180 ARAUJO João Dias de, “Igrejas Protestantes e Estado no Brasil”, in CADERNOS DO ISER,

7 p. 29. 181 BOURDIEU Pierre, op cit, p. 70.7

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institucionais entre o Protestantismo Brasileiro e a Maçonaria na República ainda

está a pedir o seu historiador182.

6. Estado do Rio de Janeiro no final do século XIX

O estado do Rio, como Pernambuco no final do século XIX, se achava em

uma situação de incerteza quanto ao futuro do seu principal produto de

exportação, a cana-de-açúcar, que tendo perdido espaço no mercado externo

por conta da ascensão do açúcar cubano, que substituiu o brasileiro na pauta

internacional de exportações, especialmente no concorrido mercado norte-

americano, a partir do começo do século XX183, dispunha agora apenas do

mercado interno para o atendimento da produção local.

Essa dificuldade em se assegurar do mercado nacional explica em grande

parte o fato de que embora em 1910 o estado do Rio possuísse 31 usinas de

açúcar, a maioria fundada depois de 1900, aos quais foram acrescentadas mais

onze até 1916, isso de forma alguma significava aperfeiçoamento das

tecnologias de produção, pois a simples substituição do modo de produção semi-

artesanal dos antigos engenhos pela produção industrial das usinas não indicava

por si que estas estivessem no centro de uma renovação tecnológica que

implicasse em aumento vertiginoso da produção de açúcar. Ao contrário: os

processos tecnológicos de produção eram somente reproduzidos de uma usina

para outra, sem que isso implicasse em aumento considerável da produtividade

das mesmas184. Daí, em grande parte, o caráter irregular da produção alternando

altas e baixas, fenômeno que, juntamente com a formação de estoques, mais

problemas de ordem climática como as secas (caso de Pernambuco) e as

182 Lembramos que o período estudado por David Gueiros Vieira é o do segundo império até o

encerramento da Questão dos Bispos (1874). 183 Ver GNACCARINI José C. “A Economia do Açúcar. Processo de Trabalho e Processo de

Acumulação”. In FAUSTO Boris (org.). História Geral da Civilização Brasileira, vol. 8, p. 311 – 315. 184 Ibidem, 8, p. 318 – 319.

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doenças da cana, determinaram o caráter oscilatório da economia dos dois

estados185.

O resultado dessa instabilidade na produção e na pulverização dos

mercados consumidores em decorrência da instabilidade dos preços do açúcar

fluminense é a perda de influência política do estado do Rio com sua

dependência de outros centros de poder: no Império, a história fluminense gira

em torno da corte do Rio de Janeiro onde seu elemento conservador “envolvia a

corte e abroquelava a monarquia, assegurando-lhe uma base de estabilidade

essencial, num país onde o centro senhoreia despoticamente as extremidades,

onde os acidentes da metrópole prendem os destinos da nação”, nas palavras

de Raimundo Faoro186. A República em nada altera a dependência do Rio da

proximidade da capital federal, e mais: reforça o caráter saudosista do discurso

elitista e conservador fluminense que vai buscar no passado a legitimidade para

suas convicções e idéias. Oliveira Viana, formado no meio mais conservador da

sociedade fluminense, eivado de toda influência eugenista consagrada em sua

negação do papel desempenhado pelo negro na formação histórica do país, e

que louva decantando a velha aristocracia rural, é o mais acabado exemplo

dessa postura: para Viana, os fluminenses, embora não tenham “o orgulho

paulista, nem o democracismo mineiro”, são, por outro lado, “mais finos, mais

polidos, mais socialmente cultos pela proximidade, convívio e hegemonia da

corte, cuja ação como que os absorve e os despersonaliza. Os seus grandes

representativos, Uruguai, Itaboraí, Francisco Belisário, Otaviano, Justiniano,

Macedo Soares, Paulino de Souza não apresentam tão vivo, como os de Minas

e São Paulo, o traço rural”. Em suma, para Oliveira Viana, os fluminenses

representam “os nossos atenienses da política e das letras” e, sobremodo

importante, é um grupo de índole “naturalmente conservadora”187. Urbanidade,

refinamento e conservadorismo, eram esses, conforme a pena de Oliveira Viana,

os traços que particularizavam o modo de ser e de viver das elites agrárias

fluminenses.

185 Ibidem, 8, p. 320 – 322. 186 FAORO Raimundo. Os Donos do Poder, vol. II, p. 72. 187 VIANA Oliveira. Populações Meridionais do Brasil, p. 108.

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Também como observou Oliveira Viana, a proximidade da Corte

possibilitou a formação de uma elite política que se manifestava bem mais

tolerante, o que permitiu a organização de praticamente todas as igrejas

protestantes que se introduziram no país durante o Segundo Império. Os

governantes do estado fluminense durante os primeiros anos da Velha República

revelam maior tolerância tanto com a pregação quanto com a organização das

igrejas o que ajudou aos missionários dessas igrejas a se organizarem. É

interessante, porém, notar que a despeito disso há um recrudescimento das

ocorrências de intolerância religiosa depois de 1900, sendo que boa parte

desses incidentes ocorre na administração de Quintino Bocaiuva (1900 – 1903),

republicano histórico, abolicionista e maçom, isto é, um personagem com idéias

bastante liberais e por isso receptivo à liberdade religiosa. A atuação de Quintino

no incidente de São João Marcos (novembro de 1902) é bastante elucidativa: ele

manda abrir o inquérito, mas apenas porque no local onde pregava o reverendo

presbiteriano José Orton se encontravam também pessoas dos estratos sociais

mais altos, entre eles um comerciante de nome Leonel que conseguiu evitar

maiores danos. Contudo, mesmo aberto o inquérito, ele não dá resultado algum,

possivelmente em decorrência do fato de que até “autoridades” (possivelmente

o delegado de polícia ou o juiz de direito) tenham participado da tentativa de

agressão, capitaneando o povo que se reunira em volta do local onde se realizou

o culto.188 Esse episódio mostra bem o quão limitadas poderiam ser as relações

de poder e influência do protestantismo com os elementos mais influentes da

sociedade, prevalecendo nem sempre o compromisso com a lei, mas puramente

o jogo de interesses que em certos momentos, como em Macaé, funciona de

modo favorável, mas em outros, como nesse último, de forma inteiramente

adversa, não obstante em ambos os casos o ator principal seja o poder público

personificado pelas autoridades executivas. À busca de dar uma satisfação às

partes atingidas não corresponde, necessariamente, ao desejo de levar a termo

essa intenção.

188 TARSIER Pedro, op cit, I, p. 197.

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6.1. Ginsburg no estado do Rio (1893 – 1900). A questão da identificação

confessional e atividades de colportagem.

As atividades pastorais de Salomão Ginsburg na Bahia foram eclipsadas

pela morte de sua primeira esposa, Carrie Bishop, enfermeira e missionária

inglesa abatida pela febre amarela no final de 1892, apenas quatro meses após

o seu casamento189. O fato abalou seu ministério de tal modo que, atendendo a

um convite do missionário pioneiro Willian Bagby ele se decidiu por retornar ao

Centro-Sul190, fixando-se em Niterói onde assumiu a responsabilidade da PIB da

cidade formada, como já vimos em boa parte, por prosélitos arrebanhados por

Ginsburg da IEF. Contudo, Ginsburg permaneceu pouco tempo na cidade e

parece que a conjuntura política da época, bastante instável por conta da revolta

da Armada que parou o trânsito entre Rio e Niterói, fechando a Baía da

Guanabara, influenciou de certo modo nessa interrupção191. De significativo o

único fato relevante desse período foi mesmo o seu casamento com Emma

Morton, missionária norte-americana ligada à Junta de Missões Estrangeiras de

Richmond, da Convenção Batista do Sul, e que se realizou na PIB carioca em

01 de agosto de 1893.

Em seu processo de transição da IEF para a Batista, Ginsburg declarou

se ressentir por não ter disponível um bom embasamento teológico que o

subsidiasse quanto a questões que considerava pertinentes para a plena

concretude de seu ministério como, por exemplo, a da forma de se proceder ao

batismo. O seu retorno ao estado do Rio revelou mais uma vez essa

preocupação. “Depois da morte de minha primeira esposa meu desejo principal

era voltar aos Estados Unidos (sic) e fazer um curso especial de Teologia no

Seminário Batista em Louisville, Kentucky. O meu conhecimento dos princípios,

costumes e usos dos batistas era muito limitado”192. O casamento com Emma

Morton e sua transferência para a zona canavieira fluminense impediram a

189 GINSBURG Salomão L, op cit. p. 91 – 93. 190 Ibidem, p. 94. 191 Ibidem, p. 95. 192 Ibidem, p. 96.

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concretização desse intento, mas mesmo assim esse pensamento abortado

ainda no seu desenvolvimento inicial revela muita coisa do estado de espírito de

Ginsburg nesse momento. Primeiro, que o convívio com os missionários batistas

pioneiros, Taylor e Bagby já havia produzido efeito, isto é, a adesão incondicional

de Salomão Ginsburg aos “princípios batistas”. Em segundo lugar, a partir dessa

fase, ele já começa a olhar o mundo e interpretá-lo pela ótica peculiar daquela

denominação o que passa a lhe impor a exigência de conhecer os “princípios,

costumes e usos dos batistas” uma vez que sua concepção de cristianismo está

agora eivada da certeza de que ele só pode ser vivenciado em sua plenitude

dentro de uma comunidade batista. E não podemos esquecer o fato de que seu

rebatismo, sob influência das doutrinas landmarquistas, que retomaremos mais

adiante, se insere dentro de um contexto de completa aceitação e subordinação

aos princípios teológicos e eclesiais aos quais havia aderido tão completamente.

Em terceiro lugar é possível ver que nesse momento em que a República ainda

está se institucionalizando, a pregação missionária assume um viés diferente,

mais parcimonioso, mais denominacional e, por conseguinte, mais sectário. Não

se trata de simplesmente promover a pregação, mas também, e de modo bem

aberto, propagar princípios confessionais, e nesse caso, “princípios batistas”.

Quando comparada com seus colegas missionários do período imperial,

a pregação de Salomão Ginsburg soa bem mais radical. O advento da República

certamente explica boa parte da linguagem desabrida, mas não só isso: Embora

oriundo do ambiente europeu que diferente do norte-americano considera a

América Latina um continente cristão, a pregação de Ginsburg reflete a práxis

religiosa do contexto eclesial norte-americano onde predomina o

denominacionalismo e o anticatolicismo. Além disso, temos que observar o

quanto a influência maçônica colaborou na construção do seu discurso

anticatólico ou, pelo menos, de uma visão negativa do catolicismo na formação

da sociedade brasileira. Já vimos as relações de Ginsburg com a Maçonaria e o

ambiente social brasileiro e desse modo fica claro que Ginsburg não está

somente pregando o evangelho, mas direcionando sua pregação para um

extrato social que se encontre em condições de receber essa mensagem e

reproduzi-la, o que não será difícil considerando o anticatolicismo nato

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alimentado pelas camadas mais influente da sociedade brasileira do período

inicial da República.

Assim, a pregação de Ginsburg acaba sendo bem mais anticatólica do

que a de Simonton já que, diferente deste ele se encontra em plena liberdade de

movimentos para poder dizer o que pensa sobre a religião que moldou a

sociedade e os costumes brasileiros. Porém, mais significativo do que isso é a

ênfase que ele dá a sua identidade confessional. Enquanto Kalley, Simonton e

Ranson no Império e Tucker durante o começo da Republica diluem sua atuação

ministerial ajustando sua pregação às necessidades encontradas no meio em

que se inseriram, quando não se deixam envolver por atividades de maior monta

como projetos sociais e filantrópicos onde a pertença ministerial não se coloca

como um fato institucional (caso de Tucker) evidenciado pelas iniciativas

filantrópicas e no trabalho com sociedades paraeclesiais, sobretudo as

sociedades bíblicas, ou enfocando uma pregação claramente evangelística (tal

como Kalley e Simonton), em Ginsburg fica evidenciado que tanto o seu

ministério de pregação como seu trabalho de colportagem se ligam ao universo

denominacional que o recebeu e mais, que pretende reproduzi-lo tal qual por ele

fora recebido. Ele é um pregador batista que assume explicitamente essa

identidade e é dentro dos “princípios batistas” que ele se põe a pregar o

evangelho no interior do Brasil do início do período republicano. De fato, ele

mesmo confessa que seu maior anseio é que o Brasil se transforma na “maior

comunidade batista do mundo”.193

6.2. A região norte fluminense na época de Ginsburg

A partir de 1893 Salomão Ginsburg inicia seu ministério missionário na

região do norte fluminense cuja capital econômica é o município de Campos ou

Campos dos Goitacazes. Ali a economia girava em torno da produção açucareira

193 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 246.

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que desde o século XVIII vinha moldando a configuração econômica e social de

toda aquela região. Em 1769, segundo dados recolhidos por Caio Prado Junior,

haviam na região de Campos 55 engenhos de açúcar. Até 1778 apareceram

mais 113 e até 1783 outros 110194, mantendo-se a produção canavieira num

continuo mesmo na fase de transição do engenho para a usina industrial. Oliveira

Viana detectou mudanças nos hábitos sociais da população local por causa da

agricultura canavieira: “o povo campista se modifica e, de turbulento que era, se

faz ordeiro, pacífico, operoso”195. O diplomata suíço Tschudi, que visitou a região

em 1862, deixou um relato que também atesta a força da agropecuária local e

destaca o papel do município que na ocasião era o segundo aglomerado urbano

da província do Rio de Janeiro embora “no que toca ao comércio, indústria,

inteligência e atividade, ocupa, sem favor algum, o primeiro lugar”,196 o que

mostra que na segunda metade dos oitocentos a configuração econômica e o

desenvolvimento urbano do município estavam efetivamente consolidados. Em

suma, a região experimentava um surto progressista e esse processo continuou

mesmo nos períodos de transição do Império para a República como o próprio

Ginsburg atesta em sua descrição da região campista do final dos oitocentos.

É bem possível que Ginsburg tenha pensado nesse fato antes de eleger

aquela região como base de suas operações, e uma vez que repetirá o

expediente em Pernambuco a especulação não é de todo infundada embora seja

apenas uma hipótese. Contudo, por se tratar de uma região de grande

adensamento populacional, com circulação de dinheiro e serviços urbanos

disponíveis como ferrovias, bancos e jornais, a tese não pode ser de todo

descartada. De fato, somando as populações dos municípios de Campos

(90.706 habitantes), Macaé (42.015) e São Fidélis 25.195), temos um total de

157.916 pessoas morando nesses três municípios contra um total de 926.035

em todo o estado do Rio em 1900197. Se pensarmos que a região norte do estado

do Rio, como a zona da mata norte de Pernambuco, correspondia a uma área

de grande giro comercial e econômico motivado pela lavoura da cana-de-açúcar,

teremos então um padrão na atividade missionária de Ginsburg, que priorizava

194 JUNIOR Caio Prado, op cit, p. 137. 195 VIANA Oliveira, op cit, p. 304. 196 TSCHUDI J.J op cit, p. 19 – 22. 197 SYNOPSE DO CENSO 1900, p. 75 – 77.

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assim cidades ricas e com uma burguesia relativamente abastada que se

mostrasse receptiva às suas idéias. Isso pode demonstrar que os motivos pelos

quais Ginsburg norteava a sua atividade missionária e de colportagem – afinal

ele também se mantinha da venda de bíblias e literatura religiosa – eram

primeiramente os de ordem econômica, e isso tanto do ponto de vista de sua

própria manutenção quanto também para a divulgação dos recursos naturais

dessas áreas, seguindo assim a prática do missionismo protestante

estadunidense.198.

6.3. Ginsburg em Campos (1893)

O tópico dedicado às suas atividades no município de Campos e região

adjacente é particularmente interessante. Começa afirmando que Campos é a

maior cidade do estado do Rio, o que é verdadeiro naquele momento199 e que

ali se encontram “trezentas usinas” de açúcar200, informação essa que não

procede já que, como vimos, em 1910 haviam em todo o estado do Rio 31 usinas

que seriam elevadas a 42 até 1916, sendo que a maioria fora fundada no

primeiro decênio do século XX. Ginsburg se estabelece na cidade na residência

de um norte-americano, antigo combatente confederado da Guerra Civil e que

decide voltar à “terra de Dixie” para ver como andam as coisas201. Para justificar

a missão naquela região, porém, ele não recita o “paganismo” católico, mas sim

o fato de que os missionários que o precederam, da IEF e da Igreja Presbiteriana,

não haviam sido bem sucedidos o que justificava e até legitimava o trabalho

batista que, de fato, já havia começado, mas tinha um desenvolvimento

198 PIEDRA Arturo, A Evangelização Protestante na América Latina, I p. 94 – 97. Piedra também

chama atenção para a relação entre a atividade missionária e econômica com os missionários exercendo o

papel de divulgadores dos recursos naturais do continente latino-americano e enfatizando a

interdependência das nações do Cone Sul com os EUA. 199 De fato, no censo de 1900, Niterói, então capital do estado do Rio, contava com 30.869

habitantes contra os 90.706 de Campos. SYNOPSE DO CENSO, 1900, op cit, p. 76. 200 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 97. 201 Ibidem, p. 98.

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incipiente até aquele momento202. É o abandono da região pelas igrejas

protestantes mais antigas que dá motivo para que os batistas iniciem a sua obra.

O episódio da construção do primeiro templo batista em Campos é usado

por Ginsburg para ilustrar o desprezo que, segundo ele, os brasileiros nutrem

pela Igreja Católica. Com efeito os membros da comunidade batista além de

poucos eram muito pobres o que impossibilitava a construção de um templo. O

ensejo lhe inspirou então a idéia de abrir uma subscrição pública convidando a

população campista a colaborar na construção do templo que, segundo ele, iria

beneficiar a cidade.203 O padre da paróquia local ameaçou aos que

subscrevessem com a excomunhão, mas tudo o que conseguiu, segundo

Ginsburg, foi que chegassem cartas pelo correio, “trazendo dinheiro, cheques ou

ordem de quarenta a duzentos e mais mil-réis. “Quase todos”, segundo

Ginsburg, “concluiam assim: sr. Ginsburg faça o favor de publicar o meu nome e

que lhe remeti algum dinheiro porque eu desejo ser excomungado”204

acrescentando ainda que o maior desejo dos brasileiro é receber “a excomunhão

do papa ou do padre” e que muitos acreditam que a maior tragédia que lhes

podia ocorrer seria a bênção do sumo pontificie205, mas sem dizer de onde tirou

essa história, nem quantas pessoas de fato tornaram-se membros dessa igreja

no periodo relatado. Contudo, a despeito dessa aparente simpatia de parte da

comunidade campista, parece que ainda ocorreram incidentes relacionados com

os batistas na cidade, pelo menos conforme Pedro Tarsier que diz ter sido o

prédio depredado em 31 de outubro de 1898 por “uns 400 amotinados”, mas sem

citar fontes206.

Mais uma vez, Ginsburg não percebe que o que ele considera ser um

anticatolicismo nato na sociedade brasileira é, na verdade, uma aversão a

determinada forma de catolicismo, nesse caso o ultramontano, em detrimento

daquele de influência galicana ou jansenista. David Gueiros, a exemplo de

Sergio Buarque de Holanda, lembra que o galicanismo decorre da própria

conjuntura do padroado ibérico e que foi preservado pelas autoridades régias

202 Idem, p. 98 – 99. 203 Idem, p. 100. 204 Idem, p. 101. 205 Idem, p. 101. 206 TARSIER Pedro, op cit, vol. I, p. 177.

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portuguesas, assumindo um aspecto mais vigoroso no decorrer do século XVIII

quando o marquês de Pombal decreta a expulsão dos jesuítas de Portugal e das

colônias do ultramar. O Império Brasileiro assume o padroado logo após a

independência. A bula Proeclara portugaliae algarbiorum, de 1827, confirma

essa autordade, embora o parlamento termine por rejeitar essa bula alegando

que o direito ao padroado era inerente à soberania sem a necessidade do

reconhecimento papal207. Insistimos nesse aspecto da discussão já que

Ginsburg desconhece completamente o fato que, no entanto, era bem claro para

Kidder meio século antes: a de que a Igreja Católica no Brasil era algo bem

diferente do Catolicismo Romano. Cumpre ainda lembrar que o

Ultramontanismo, este sim ligado à reação ortodoxa católica que culmina no

centralismo eurocêntrico do Concílio do Vaticano I (1869 – 1870)208, embora

tenha suas raízes fincadas no Brasil desde o começo do século XIX209 só

encontrará repercussão a partir da Questão dos Bispos, embora o seu grande

momento seja mesmo a partir da segunda metade do século XX quando o

Catolicismo Brasileiro se reorganiza por meio de entidades ligadas ao

apostolado como o Centro Dom Vital (1922) e da atuação mais institucional de

lideranças religiosas como o cardeal arcebispo do Rio, Dom Sebastião Leme, o

padre Leonel Franca, os leigos Jackson de Figueiredo e Alceu do Amoroso Lima,

etc.

6.4. Ginsburg em São Fidélis (1894 – 1895)

Os movimentos de Salomão Ginsburg no estado do Rio foram bastante

prejuducados por conta da segunda revolta da armada que, coligado com levante

dos federalistas gaúchos no extremo Sul do país, lançaram a jovem República a

uma guerra civil fraticida que tinha basicamente dois teatros de operações, os

207 VIEIRA David Gueiros, op cit, p. 28 – 29. 208 ALBERIGO Giuseppe. “O Concílio do Vaticano I” (1869 – 1870) in ALBERIGO Giuseppe

(org.) História dos Concílios Ecumênicos, p. 367 e 388. 209 Ver nota 91.

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estados sulinos e a região da Baía da Guanabara cujo acesso era bloqueado

pela esquadra revoltada. Do ponto de vista estritamente militar e estratégico, a

capital fluminense, Niterói, por não dispor, como o Rio, de um grande conjunto

de tropas aquarteladas e por ser proporcionalmente bem menor que o Distrito

Federal, se encontrava numa posição de maior vulnerabilidade exposta a

conflitos internos e externos uma vez que além da revolta da Marinha ainda

haviam os disturbios populares o que levou ao governador Tomás Porciúncula a

transferir a sede do governo para Petrópolis em virtude da insegurança geral. É

no meio dessa situação que Ginsburg vai para São Fidelis, na região de Campos,

também com a intenção de iniciar o trabalho batista ali. E o relato que deixa

dessa passagem é talvez dos mais significativos do livro, pois, pela primeira vez

nos dá uma imagem das relações de classe que encontra no Brasil por essa

época.

Logo nos pirmórdios de sua missão Ginsburg se vê envolto num conflito

que ele descreve como uma tentativa de se proibir a pregação protestante ali, já

que o chefe do polícia local, ao que parece influenciado pelo chefe político do

lugar cujo nome ele não cita, mas que diz ter dois filhos, um dos quais o chefe

de polícia que implicou com Ginsburg e outro o tabelião da cidade, não quer

permitir que ele desenvolva suas atividades na região. “Ser chefe político é uma

posição política importante no Brasil”. Diz o missionário210. Depois de ser

convidado a ir a delegacia da cidade onde ouve uma intimação para deixar São

Fidelis, pois estava proibido de pregar o protestantismo naquelas terras,

Ginsburg responde reivindicando o direito de pregar onde e quando pudesse, e

mais uma vez enfatizando sua confessionalidade batista e que, em virtude disso,

não está obrigado a obedecer a governo algum em matéria de religião. A ênfase

na identidade confessional é uma questão recorrente em todo o seu relato. Ele

é um batista, isto é, prega “princípios batistas” e uma visão de mundo formada

dentro desses princípios,211 e é bastante provavel que ao retransmitir essas

informações esteja, de fato, reproduzindo o mesmo discurso recebido dos seus

colegas missionários dos EUA e coligido na História dos Batistas de Crabtree.

Logo depois a comunidade batista é atacada, um incidente que Tarsier registra,

210 GINSBURG Salomão L, op cit p. 102. 211 Ibidem, p. 103.

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mas informando erradamente como tendo ocorrido em 1891: sob instigação do

padre capelão da localidade, dois cidadãos, Vitorino Viela, Agostinho Vilela e

Gabriel Guido, “à testa de uma turba de fanáticos, investiram contra o pequeno

grupo evangélico e seu pastor, rev. (sic!) Salomão Ginsburg. As autoridades

coadjuvaram a selvageria. Dona Corina Manhães recebeu uma pedrada na

cabeça, caindo sem sentidos e o pastor foi levado preso, sendo detido por nove

dias. Belo batismo para o regime republicano”!212 Depois de preso, Ginsburg é

reenviado com a esposa para Niterói213 onde, segundo seu relato, é levado ao

vice-governador do estado214, ao qual também não cita por nome, o que é um

problema haja visto que haviam três pessoas ocupando a função naquela

ocasião, Manuel Martins Torres215, Joaquim Maurício de Abreu216 e Lourenço

Maria de Almeida Batista, o barão de Miracema217, todos influentes “chefes

políticos”. E a narrativa fica ainda mais comprometida pelo fato de que Pedro

Tarsier, que estudou as perseguições religiosas ocorridas no Brasil nesse

período, não faz nenhuma alusão a este incidente, embora use com recorrência

o livro de Ginsburg para tratar de outros episódios de violências contra

protestantes, particularmente em Pernambuco.

Deve-se frisar, ainda com base no relato de Ginsburg, que o vice-

governador não tomou nenhuma providência concreta com relação à situação e

212 TARSIER Pedro, op cit, I, p. 167 – 168. 213 Ibidem, p. 104. 214 Ibidem, p. 105. 215 O carioca Manuel Martins Torres nasceu em 1843 e morreu na mesma cidade em 1905.

Formado pela faculdade de direito de São Paulo (1864). Juiz de Direito em Santa Catarina, Mato Grosso e

Bahia, delegado de polícia na Paraíba, deputado provincial na província do Rio de Janeiro, assumiu a

primeira vice-presidência do estado na administração de Francisco Portela (1889 – 1891) sendo depois

reconduzido ao cargo no governo de Tomás Porciúncula. Governou interinamente o estado de setembro de

1893 a março de 1894, quando do afastamento de Porciúncula, ao mesmo tempo que respondia pela chefia

da polícia do Distrito Federal durante a Revolta da Armada.

http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/TORRES,%20Manuel%20Martins.pdf

acesso 24 dez. 2016. 216 (1852 – 1913), fluminense de Sapucaia, formado pela faculdade de medicina do Rio de Janeiro

(1876), estabelece-se na cidade natal onde exerceu a clínica e a política ao mesmo tempo. Foi vice-

governador do estado do RJ (1892 – 1894) e depois assumiu o governo (1894 – 1897) após o que tornou-

se deputado federal pelo estado do Rio. http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-

republica/ABREU,%20Maur%C3%ADcio%20de.pdf acesso 24 dez. 2016. 217 (1839 – 1924). Natural de Campos, médico formado pela faculdade de medicina do Rio,

clinicou nos hospitais da Misericórdia e Beneficência Portuguesa até 1903 além de ser fundador e primeiro

presidente da Sociedade Médico-Farmacêutica e de Beneficência de Campos, fundada em 1878. Agraciado

com o título de barão em 1888, foi vice-presidente do estado do Rio (1892 – 1894), deputado federal (1900

– 1905) e senador (1905 – 1921) sempre pelo estado do RJ.

http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/BATISTA,%20Almeida.pdf acesso 24

dez. 2016.

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que no final do debate o missionário foi enviado à prisão onde ficou dividindo a

cela com cerca “de quarenta criminosos para cima”, após o que foi transferido

para o salão dos soldados antes de ser enviado para a Casa de Detenção em

Niterói.218 É só depois que o próprio presidente do estado, Tomás Porciúncula219,

fica sabendo a respeito do fato é que finalmente Ginsburg foi solto e ainda se

desculpa do desaire, argumentando que apenas as circunstâncias especiais

decorrentes da revolta da Armada que determinara aquela prisão220. Ginsburg

não fala sobre de que modo o então presidente do estado do Rio tomou ciência

do fato e chama atenção o fato de ele pedir desculpas argumentando que

somente a conjuntura política determinou aquele desentendimento221, mas é

possível que a resposta esteja na confusão de nacionalidade que os funcionários

fluminenses fizeram a respeito de Ginsburg quando, em São Fidélis, o

confundiram com um cidadão norte-americano222. Deve-se lembrar que antes

dessa entrevista, Ginsburg tinha se avistado com o cônsul português, que ele

descreve como seu amigo pessoal, e que prometeu mediar a sua soltura, embora

sem muita esperança de lograr êxito devido ao sentimento anti-português

reinante tanto no Rio quanto em Niterói223. O que parece mais provável – embora

a narrativa não dê muito subsídio para pensarmos desse modo – é que o status

estrangeiro de Ginsburg, mais as suas boas relações com diplomatas e políticos,

deve ter interferido em sua libertação. Devemos também lembrar que naquele

momento as circunstâncias especiais determindas pela revolta da Armada havia

218 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 107. 219 (1854 – 1901) fluminense de Petrópolis, formou-se em Medicina pela faculdade de medicina

do Rio de Janeiro (1878). Médico em Petrópolis e fundador da Sociedade Médica e Cirúrgica do Rio de

Janeiro, ligando-se desde essa época ao movimento republicano, assumiu interinamente, após a

proclamação do novo regime, o governo do Maranhão (1889 – 1890), elegendo-se depois governador do

estado do RJ. Em seu mandato (1892 – 1894) ocorreu a segunda revolta da Armada e por conta da ameaça

dos amotinados que tentam forçar o desembarque do qual resulta o feroz combate da Ponta da Armação,

em Niterói, decide transferir a capital para Petrópolis onde o poder executivo funciona até 1903. Após

deixar o governo fluminense, Porciúncula é nomeado ministro plenipotenciário no Uruguai, assumindo

depois os mandatos de deputado federal (1895 – 1897) e senador (1897 – 1901) pelo estado do Rio.

http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-

republica/PORCI%C3%9ANCULA,%20Jos%C3%A9%20Tom%C3%A1s%20da.pdf acesso 27 dez.

2016. 220 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 108. 221 Ginsburg estava ciente do modo como as forças políticas governistas se livravam dos opositores

no correr da revolta da armada: “o processo como eles se livravam dos inimigos políticos era fardá-los e

pô-los na praia onde os marinheiros os assassinariam imediatamente”. Ginsburg acreditava que o delegado

de São Fidélis estava imbuído desse intento quando decidiu por remover o missionário de volta para Niterói,

mesmo com a revolta em andamento. Op cit, p. 108. 222 Ibidem, p. 103. 223 Idem, p. 107.

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colocado virtualmente a Baía da Guanabara sobre o controle estrangeiro das

potências cujos navios se encontravam ancorados no porto transformado em

zona de guerra, isto é, Portugal, França, Itália, Alemanha e EUA, e reforçada

com a chegada da “frota” sucateada comprada pelo governo brasileiro nos EUA,

o que acentuava ainda mais o controle224. Esse fato também poderia explicar o

sucesso posterior do ministério de Ginsburg em São Fidélis para onde voltou

depois do término da revolta225 junto com uma força policial formada por

soldados que “ou eram protestantes ou ou eram amigos da causa dele” e que

tão logo na região dispersaram os grupos ligados ao tal chefe político

perseguidor da véspera, sendo que alguns elementos do grupo decaído ficaram

“feridos, cortados e com os membros quebrados”, conforme o próprio Ginsburg

faz questão de sublinhar226.

Mas o detalhe que mais chama atenção na narrativa de Ginsburg é o que

vem logo a seguir. No processo de transição política que se segue ao fim da

revolta da Armada o chefe político que havia perseguido o missionário perde sua

influência e os cargos que havia amealhado para si ao passo que o novo chefe

“amigo pessoal” de Ginsburg, posto que uma de suas filhas era membro da igreja

batista recém-organizada na região, assume o domínio político do lugar. Depois

de, conforme suas palavras, se “vingar” do delegado que o havia prendido pouco

antes e que, segundo Ginsburg, havia sido preso por suspeita de envolvimento

em um tiroteio do qual resultaram três mortes227, o trabalho batista na região

prosperou: o templo foi erguido em um terreno doado por um negociante recém-

convertido ao passo que o irmão deste, um fazendeiro rico, deu-lhe os meios

para a edificação do templo batista naquela região.228

O relato de Ginsburg sobre os acontecimentos de São Fidelis é marcado

por impreciões. Primeiro, ele não deixa claro se sua ida ao vice-governador do

estado do Rio foi feita a pedido ou por ordem de terceiros, e se pudermos supor,

caso o fato tenha ocorrdo de acordo com o seu relato, é mais provável que

224 NABUCO Joaquim. A Intervenção Estrangeira na Revolta de 1893, p. 89 – 100. 225 A tradução das memórias de Ginsburg publicada no Brasil em 1931 informou de forma errada

a data do término da revolta da Marinha, 13 de março de 1892, ao passo que a edição norte-americana

registra acertadamente o encerramento do levante em 13 de março de 1894, na p. 105. 226 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 109 – 110. 227 Ibidem, p. 111. 228 Ibidem, p. 111 – 112.

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Ginsburg tenha se dedicido por ir ao encontro dessa autoridade. Segundo, como

ele não menciona nomes, só podemos supor que, a julgar pela sua

movimentação na regão de Campos, o vice-governador com quem ele se

entrevistou deveria ser mesmo o barão de Miracema, embora só possamos falar

a esse respeito em termos de hipóteses. Terceiro e o mais importante: não há

registro desse relato na obra de Pedro Tarsier dedicada à historicização das

perseguições religiosas no Brasil ou nos periódicos por ele recolhidos acerca de

tal incidente, lembrando que o registro das perseguições religiosas era

repassado em grande parte por folhas protestantes, principalmente O Estandarte

e O Puritano, ligados à Igreja Presbiteriana, e que constituem a principal fonte

de pesquisa deste período na obra de Pedro Tarsier229. Quarto: o fato de

Ginsburg ter sido relativamente bem sucedido em sua missão em São Fidélis,

inclusive junto a altas autoridades políticas, não quer dizer que tal situação fosse

uma regra e a perseguição a missionários estrangeiros no Brasil durante esse

período mostra claramente que não o era em hipótese alguma.

Episódios de expulsão de missionários estrangeiros de cidades no interior

do Brasil foram uma constante no final do século XIX. Pedro Tarsier registra

vários incidentes do tipo. Em março de 1893, expulsão do reverendo Deslandes

de São João del Rey (MG)230. Em abril do mesmo ano, expulsão dos reverendos

metodistas João Evangelista Tavares e Mcfarland de Cachoeira (MG).231 Em

julho do mesmo ano, expulsão do missionário batista Zachary Taylor e dos seus

acompanhantes, Emiliano Novais e Dionísio de Oliveira de Barra do Rio Grande

(BA)232. Em agosto de 1901, os reverendos presbiterianos Lino e Gamon são

forçados a deixar a cidade de Porto Real (MG)233. Até no Rio de Janeiro

ocorreram incidentes do tipo: em janeiro de 1904 o reverendo metodista James

Lillbourne Kennedy foi atacado por um grupo de cerca de cinquenta pessoas

enquanto pregava em uma casa de oração234. Assim a ocorrência do fenômeno

da expulsão de missionários estrangeiros, especialmente norte-americanos, de

229 Mesmo o historiador batista Crabtree não consigna os relatos deixados por Ginsburg durante

sua passagem por Campos ao passo que os incidentes em São Fidélis e Macaé, especialmente os últimos,

são descritos todos com base nas próprias narrativas de Ginsburg. 230 TARSIER Pedro. Op cit, vol. I, p. 173. 231 Ibidem, ob cit, p. 173. 232 Idem, p. 173. 233 Idem, p. 193. 234 Idem, p. 204.

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cidades do interior, é algo que se dará com recorrência na história do

protestantismo no Brasil e isso durante muito tempo embora, ao contrário do que

Ginsburg e Tarsier tentem supor, isso nada tenha a ver com os “padres

romanos”235 cheios de “furor inquisitorial”,236 mas antes com as reações das

paróquias locais, seja por meio de padres ou religiosos de ordens monásticas ou

ainda, de autoridades policiais influenciadas por elementos religiosos,

lembrando, mais uma vez, que no catolicismo brasileiro a paróquia se sobrepõe

à diocese e às formas eclesiásticas institucionais, como já vimos em Gilberto

Freyre e em Sergio Buarque de Holanda.237 E os próprios relatos trazidos por

Ginsburg e Tarsier confirmam antes a ação da paróquia local e não a do

episcopado na organização dessas perseguições.

6.5. Ginsburg em Macaé (1895 – 1898)

Depois de Campos e São Fidélis, Ginsburg deslocou-se para Macaé onde

se inicia a terceira fase de sua passagem pela região norte fluminense. Ali

Ginsburg encontrou uma situação parecida com a que foi vivenciada em São

Fidélis, isto é, a região era controlada por uma família prestigiosa que tinha o

controle de todos os cargos públicos da região, assim como também da

imprensa. E tão logo começou a organizar a nova igreja iniciou-se, segundo ele,

uma perseguição que o missionário não explica bem com relação às causas,

mas que é mencionada também por Tarsier238 e até por Émile Léonard239 e que

possivelmente pode estar relacionada à sua atividade por meio da imprensa. De

fato, tal como na Bahia, ele se serve da palavra impressa a fim de alcançar seu

objetivo de divulgar a “causa batista”, quando consegue comprar uma máquina

tipográfica para imprimir um pequeno jornal semanal, Boas Novas, bem como os

235 Idem, p. 178. 236 Idem, p. 181. 237 Ver notas 60,61 e 63. 238 TARSIER Pedro, op cit, I, p. 180. 239 LÉONARD Émile G, op cit, p. 127 – 128.

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tratados com os quais sustentava polêmicas com o espiritismo e os padres.

Ginsburg lembra que os tratados que imprimia eram enviados a todas as figuras

proeminentes do lugar, magistrados, professores, autoridades públicas, padres,

etc, com o pedido de que se desejassem qualquer literatura, pedissem,

especialmente, um exemplar da Bíblia. Era interessante ver como se

aproveitavam dessa oferta, somente do padre recebia uma série de insultos.240”

também Léonard chama atenção para os efeitos dessa pregação anticatólica

pública, posto que insistente e em Ginsburg a atitude constante de desafio e

provocação das autoridades eclesiásticas católicas ou através de pregações

públicas, como aquelas feitas em teatros ou por meio de publicações como Boas

Novas ou seus escritos apologéticos lançados em Portugal, tudo isso criava o

tipo de clima que, em último caso, favorecia reações adversas241.

Mas o fato que é mais marcante no período de sua passagem pela região

é a conversão de certo senhor Curindiba, um fato que não chamaria maior

atenção não fosse pelos predicativos que semelhante personagem traz em sua

biografia. De fato, o tal Curindiba, a julgar que dele nos fala o próprio Ginsburg,

é um agregado ligado a uma das famílias dominantes da política local e que

auxiliava mediante intimidação e achaques a perpetuação do domínio das forças

políticas locais, “um homem usado pelos políticos para aterrorizar a população,

principalmente nos dias de eleição”.242 Como a esposa e as filhas desse homem

frequentavam os cultos, parece que Ginsburg soube bem se aproveitar do

caráter façanhudo, bem como dos elementos que este senhor arregimentara em

seu trabalho e conseguiu com isso quebrar as resistências dos elementos

católicos na região, inclusive com uso de violência.243 Tinha o missionário muita

razão, portanto, em se regozijar com a conversão desse homem e de sua família,

bem como Antonio Neves de Mesquita em descrever os métodos de

evangelização de Ginsburg como “peculiares”.

De fato, a ocorrência desse incidente, a exemplo do outro em São Fidélis

onde a proximidade das novas autoridades, ligadas por laços familiares à igreja

batista local, bem como no episódio que Ginsburg narra em Limoeiro (PE) de

240 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 125. 241 LÉONARD Émile G, op cit, p. 133. 242 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 118. 243 Idem, p. 119.

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características análogas, permite desprender que o missionário já fazia uso

consciente das redes de relacionamento criadas nas esferas de poder para,

desse modo, suplementar o seu trabalho missionário pelo interior do país. Nesse

sentido, então Ginsburg já está entranhado naquela cultura que Sergio Buarque

de Holanda descreve como sendo a das “vontades particulares que encontram

seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação

impessoal”.244 Desses núcleos, ainda segundo Sergio Buarque, a família exerce

posição predominante. E disso se infere, ainda segundo o historiador, numa

conformação social em que o âmbito privado da vida doméstica fornece “o

modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós”.245 É ocioso

especular aqui como ou se Ginsburg percebeu esse ordenamento particular da

vida social brasileira adentrando em todos os seus setores, mas é inegável que

ele percebeu as profundas e intrínsecas relações entre o público e o privado da

perspectiva do universo criado dentro das relações familiares, e fez uso dessa

prática em seu ministério.

A perseguição em Macaé também dá ensejo para que Ginsburg se utilize

outra vez do apoio dos “irmãos maçons” que, desobrigados das limitações a que

Ginsburg se achava tolhido, atacaram os católicos durante o período da

perseguição e “resolveram ensinar-lhes uma lição e uma noite houve uma luta

de socos, quebrando narizes e cabeças de católicos”.246 Logo em seguida, como

o delegado local pretendesse impedir os cultos protestantes na região, talvez em

decorrência dos episódios de violência verificados ali, Ginsburg é proibido de

pregar no município, decisão da qual apela, como no caso da perseguição de

São Fidelis, ao governador do estado (que ele mais uma vez não menciona,

lembrando que no período em que Ginsburg percorreu a região de Macaé o

governo fluminense foi exercido respectivamente por Joaquim Maurício de

Abreu247 e depois por Alberto Torres248), que garante o envio de força policial

244 HOLANDA Sergio Buarque de, op cit, p. 253. 245 Ibidem, p. 253. 246 GINSBURG Salomão, op cit, p.121 247 Ver nota 214. 248 (1865 – 1917), filho de Manoel Martins Torres, governador interino do estado do RJ na

administração de Tomás Porciúncula, formado em Direito pela faculdade do Recife (1885), foi deputado

estadual (1892 – 1893) e federal (1893 – 1896) pelo estado do Rio. Ministro da justiça de Prudente de

Morais (1896 – 1897), governador do estado do Rio (1897 – 1900) e ministro do Supremo Tribunal Federal

a partir de 1901. Nacionalista, esboçou seu pensamento nos livros O problema nacional brasileiro e A

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para dar fim aos distúrbios.249 Pela segunda vez em sua carreira ministerial no

estado do Rio, Salomão Ginsburg fez uso dos seus contatos políticos para

assegurar liberdade de movimentação e pregação e com isso consegue ser

plenamente bem sucedido a darmos crédito ao relato de Crabtree que destaca

que na inauguração do templo batista em Macaé, em 1898, o próprio vice-

presidente (que ele também não menciona) esteve presente, tendo na ocasião

abraçado o missionário e ainda feito votos para que a “causa batista” tivesse

êxito no estado.250

7. Salomão Ginsburg em Pernambuco (1900 – 1909)

A segunda parte da atividade missionária regular de Salomão Ginsburg

foi exercida no estado de Pernambuco nas primeiras décadas do século XX.

Do ponto de vista geográfico e econômico a região percorrida por

Ginsburg nesse período em muito se assemelha àquela do norte fluminense,

pois com efeito, a zona da mata pernambucana é uma região marcada desde as

épocas mais remotas da formação territorial brasileira pelo cultivo da cana-de-

açúcar, uma atividade econômica que reflete não apenas a natureza mercantil

da exploração colonial como também a sua função agroexportadora. Além disso,

fica próxima da cidade do Recife o que será de grande importância em face das

perseguições que assolam os batistas nesse período. Também, a exemplo da

região campista, Ginsburg pode dispor de uma razoável logística de transportes,

com uma rede ferroviária que lhe permite deslocar-se pelo interior ou pelo menos

nos municípios que se encontram mais próximos da capital do estado. A única

organização nacional (ambos publicados em 1914) e As fontes da vida no Brasil (1915) onde defende o

estado agrário, infenso a qualquer tentativa de industrialização. 249 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 123 – 124. 250 CRABTREE A.R, op cit, I, p. 179. Como nos incidentes em São Fidélis em que Ginsburg foi

se entrevistar com o “vice-presidente” sem citá-lo nominalmente, também Crabtree comete aqui uma

descompostura histórica ao não citar nominalmente quem seria esse personagem lembrando que haviam

três vice-governadores em exercício do cargo na ocasião. http://www.cbg.org.br/novo/wp-

content/uploads/2012/07/rj-governadores.pdf acesso 28 de dez. 2016.

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diferença – e diferença significativa – é a existência de um grande centro urbano

que exerce, efetivamente, as funções de capital administrativa e também de

centro financeiro e comercial, a cidade do Recife, que com seus mais de cem mil

habitantes ultrapassava em muito a acanhada Niterói, além de funcionar como

polo de atração dos municípios vizinhos, embora sem lhes estorvar o

crescimento. Pelo contrário: a zona da mata de Pernambuco, tanto ao Norte

quanto ao Sul, é uma região densamente habitada com vários núcleos de

importância como Olinda, Igarassu, Goiana, Cabo, Sirinhaém, Limoeiro, Nazaré

da Mata, Palmares, etc. Além das atividades proselitistas na zona da mata Norte,

Ginsburg também desempenhou funções no Recife onde teve participação

destacada na fundação do STBNB, do qual foi um dos fundadores (ou o próprio

fundador segundo David Mein)251 além de, eventualmente, polemizar contra os

“jesuítas” na imprensa diária, semelhantemente ao que já havia feito primeiro na

Bahia e depois no estado do Rio.

Em Recife o desenvolvimento da comunidade protestante seguiu um ritmo

bastante similar ao verificado no Rio de Janeiro, o que revela a importância

econômica e cultural da capital pernambucana no começo do século XX: a

primeira igreja protestante ali fundada foi a dos congregacionalistas, (IEP),

fundada por Kalley em 1873252. Depois vieram os presbiterianos (1878)253 e os

batistas em 1886254ou 1892, conforme Léonard255 e Ginsburg256 e a razão da

divergência pode ser pelo fato de que a igreja foi reorganizada naquele ano em

virtude de se encontrar praticamente dissolvida, o que explica da parte de

Ginsburg a opção de 1892 como o ano de efetiva fundação da PIB recifense.

251 MEIN David, Esboço Histórico do Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil, p. 4. 252 FORSYTH Willian B. Jornada no Império, p. 210 – 211. 253 LÉONARD Émile G, op cit, p. 101 – 102. 254 CRABTREE A.R ob cit, I, p. 85 – 86. 255 LÉONARD Émile G, op cit, p. 102. 256 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 132.

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7.1. Situação geral do estado

Algumas características uniam intrinsecamente as realidades do estado

fluminense e de Pernambuco no final do século XIX. Ambos os estados se

encontravam em um processo de estagnação econômica, ou pelo menos de um

crescimento econômico sujeito a sazonalidades, conforme as oscilações do

preço do principal produto de exportação daquelas unidades federativas, a cana-

de-açúcar. Ambos ficaram ao largo das correntes imigratórias – e mesmo o surto

incipiente vivido pelo estado do Rio nas primeiras décadas do século XIX da qual

resultou a fundação de núcleos de colonização helvético-alemãs de Nova

Friburgo e Petrópolis ficou restrito ao âmbito da serra fluminense257. Ambos

experimentaram surtos progressistas incipientes também com base no

movimento da economia canavieira e, principalmente, ambos buscavam espaço

no concorrido mercado interno, o único que sobrou depois que o açúcar cubano

substituiu o brasileiro na pauta internacional de exportações, especialmente no

concorrido mercado norte-americano, a partir do começo do século XX258.

Em alguns aspectos estado do Rio e Pernambuco também se

assemelhavam na política. Em ambos os estados a propaganda republicana foi

muito incipiente de maneira que até o final do período republicano os

conservadores (estado do Rio) e os liberais (Pernambuco) manterão as regras.

No entanto, mesmo durante o Império já era possível perceber um movimento

com vistas ao deslocamento dos eixos de poder, fenômeno que já vinha se

evidenciando com a transferência da capital da colônia da Bahia para o Rio de

Janeiro (1763) e que se aprofundou com a vinda da família real portuguesa para

o Brasil (1808) e com a Independência (1822) que também elegeram o Rio como

capital do Reino Unido e depois do Império, um fato que sem dúvida, junto com

o deslocamento do eixo de produção agroexportador da cana-de-açúcar para o

257 De fato, enquanto a população do estado do Rio passa de 819.604 habitantes, em 1872, para

926.035 no censo de 1900, e Pernambuco de 841.539 para 1.178.150 no mesmo período, o Rio Grande do

Sul pulou nessa época de 446.962 habitantes para 1.149.070 e São Paulo de 837.534 para 2279.608

habitantes, fato para o qual, sem dúvida, influenciou o movimento imigratório intenso no Centro-Sul do

país. SYNOPSE DO CENSO, 1900, op cit, p. X. 258 GNACCARINI José C, in FAUSTO Boris (org.), op cit, vol. 8, p.315.

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café, contribui para a transferência do centro de poder das províncias do Norte

para o Centro-Sul do país. O resultado desse movimento é que enquanto a

história fluminense fica presa aos ditames da corte do Rio, depois Distrito

Federal, conforme Raimundo Faoro259, no Nordeste em geral e Pernambuco em

particular se inicia o movimento de descenso tanto político quanto econômico.

De fato, a República apenas acentua a decadência do Nordeste, traduzindo em

termos políticos o fastígio econômico que começara no Império260. Também em

termos urbanos essa decadência pode ser percebida. Enquanto a população do

Recife permanece quase estagnada no período que vai de 1872 a 1900 – de

116.671 para 113.106 habitantes, respectivamente – a de São Paulo,

impulsionada pelo café que estimula a imigração, salta de incipientes 31.385

habitantes para 239.820 no mesmo período261.

Diferente do que se deu no estado do Rio onde a propaganda republicana

encontrou expoentes ativos como Quintino Bocaiuva, em Pernambuco o

republicanismo não prosperou até as vésperas do 15 de novembro, tanto que de

início o governo foi exercido quase simultaneamente por políticos egressos do

Império, como Henrique Pereira de Lucena, o barão de Lucena262, e por Antonio

Epaminondas de Barros Corrêia, o barão de Contendas263, fato que certamente

influenciou a decisão do governo federal de intervir no estado, em 1892, após o

que, segue-se o governo de Alexandre Barbosa Lima (1892 – 1896)264, militar

259 FAORO Raimundo. Os Donos do Poder, vol. II, p. 72. 260 Ibidem, ob cit, vol. II, p. 73. Faoro faz ainda um paralelo entre a ascensão dos estados sulinos,

particularmente São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul, onde a propaganda Republicana foi mais ativa, em

detrimento do Nordeste ainda muito próximo do Império cujas elites (Joaquim Nabuco e Rui Barbosa) estão

vinculadas à idéia de um princípio federativo com a preservação da Monarquia. 261 “Populações das capitais dos estados do Brasil” (1872, 1890, 1900 e 1910)

http://seculoxx.ibge.gov.br/images/seculoxx/arquivos_download/populacao/1908_12/populacao1908_12v

1_022.pdf acesso 08 de dez. 2016. 262 (1835 – 1913) bacharel em Direito pela Faculdade do Recife (1858), juiz de direito em

Pernambuco, na Paraíba e na cidade do Rio; chefe de polícia no Ceará (1869); presidente das províncias do

Rio Grande do Norte (1872), Pernambuco (1872 – 1875), Bahia (1877 – 1878) e Rio Grande do Sul (1886

– 1887). Deputado geral por Pernambuco (1885 – 1889), agraciado com o baronato (1888). Desembargador

do Superior Tribunal de Justiça, depois Supremo Tribunal Federal, nomeado em 1875; governador de

Pernambuco (1890) e ministro do governo do marechal Deodoro da Fonseca, ocupando as pastas da

Agricultura, Justiça e Fazenda, em 1891.

http://www.stf.jus.br/portal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stf&id=213 acesso 07/03/17. 263 (1839 – 1905) formado pela faculdade de Direito do Recife (1864), agraciado com o baronato

(1889). Governador de Pernambuco (1891 – 1892), foi deposto por interveniência do governo federal,

retirando-se, a seguir, da vida pública. http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-

republica/CORREIA,%20Ant%C3%B4nio%20Epaminondas%20de%20Barros.pdf acesso 07/03/17. 264 (1862 – 1931), militar, deputado constituinte pelo Ceará (1890 – 1891), foi nomeado por

Floriano governador de Pernambuco exercendo seu governo de forma autoritária até 1896, procurando

realizar melhoramentos nas áreas de saúde, educação e transporte. Deputado federal (1896 – 1911),

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jacobino e por isso afinado com as tendências autoritárias do governo do

marechal Floriano Peixoto. Seu governo é bem visto pelos protestantes em geral

e, não obstante os métodos autoritários, estes o descrevem como “homem liberal

e culto”265, possivelmente em vista da boa relação entre as igrejas e as

autoridades constituídas nesse período. Em 1896, porém, com a volta da

oligarquia ao poder central assume o controle do estado o conselheiro Francisco

de Assis Rosa e Silva266, que imprime um controle pessoal à política estadual,

ajudando a colocar pessoas de sua confiança na administração do estado, sendo

a primeira delas Joaquim Correia de Araújo267. Indivíduo a ele achegado.

É significativo o modo como Pedro Tarsier descreve a administração de

Joaquim Araújo, que ele define como um governo marcado pela “tirania e pela

opressão” enquanto Barbosa Lima, que também usava métodos autoritários é

apresentado como um governante que primava pela liberdade.268 Para Tarsier,

o traço de “tirania” de Joaquim Araújo não residia na sua vinculação ao sistema

oligárquico, mas sim no fato de ele ser um “grande carola e jesuíta de casaca”.269

Assim, a defesa do catolicismo que segundo Tarsier era feita por Joaquim

Araújo, constituía em si o traço marcante de um governo tirânico, enquanto

Barbosa Lima, cujo governo possuía dessas mesmas características, não era

visto de igual modo, precisamente pela sua defesa das minorias religiosas270.

Em Pernambuco as condições que criaram o ambiente de perseguição e

animosidade contra os protestantes no começo do século XX são bem mais

complexas do que aquelas encontradas no estado do Rio. Para começar a

reação ultramontana que culminou com a Questão dos Bispos e que teve ali, na

primeiro por Pernambuco, depois pelo Rio Grande do Sul e, por fim, pelo Distrito Federal, retornou ao

Exército em 1912 chegando ao generalato. É pai do jornalista Alexandre Barbosa Lima Sobrinho (1897 –

2000), membro da Academia Brasileira de Letras a partir de 1937 e governador de Pernambuco de 1948 a

1951. http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-

republica/LIMA,%20Alexandre%20Barbosa.pdfv acesso 07/03/17. 265 TARSIER Pedro, op cit, I, p. 177. 266 (1847 – 1929), bacharel pela faculdade de Direito do Recife (1878), ministro da justiça do

último gabinete do Império (1889). Deputado constituinte por Pernambuco (1891), deputado federal (1891

– 1896) e senador (1896 – 1898 e de 1903 – 1929) pelo mesmo estado, vice-presidente da República na

chapa encabeçada por Campos Sales de 1898 a 1902. 267 (1843 – 1901) advogado formado pela faculdade do Recife (1864), professor da mesma

instituição (1870), deputado geral por Pernambuco ainda no Império (1878 – 1881), senador pelo mesmo

estado (1894 – 1896 e de novo de 1900 a 1901) e governador de Pernambuco de 1896 a 1900. 268 TARSIER Pedro, op cit, I, p, 177. 269 Ibidem, I, p. 178. 270 Ibidem, I, p. 177 – 178.

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diocese de Olinda, um dos seus focos, particularmente ativo em relação à

Maçonaria271. Mas essa reação só foi forte porque encontrou no meio local

condições excepcionais para sua expansão. Por exemplo, a imprensa liberal

pernambucana era republicana, mas, paradoxalmente, também ultramontana e,

por isso, hostil ao protestantismo.272 Em particular o jornal A União (a “tenda de

combate dos ‘jesuítas estrangeiros’”, no falar de Metódio Maranhão273), chamava

atenção pelo tom desabrido e pela postura do qual se auto investia como

defensor da “única religião verdadeira” e em favor da unidade dos “laços

religiosos da nação”274. A União empenhara-se em atacar os protestantes que

começavam a chegar ao Recife, em especial Manuel José da Silva Viana, agente

da SBBE enviado pela IEF e descrito pelo jornal como “português de baixa

extração e bufarinheiro de bíblias protestantes”,275 além de ter tido importante

participação na polarização dos ânimos quando da Crise dos Bispos276. Em

segundo lugar, e também como reflexo direto da Questão dos Bispos, houve

uma progressiva substituição dos padres nacionais, muito identificados com o

jansenismo e o galicanismo, por religiosos estrangeiros, principalmente italianos,

belgas e espanhóis. Conforme Gilberto Freyre, dom Vital foi “quem abriu

caminho para essa substituição, nem sempre agradável à época, mas

necessária à Igreja e ao próprio Brasil, de padres de ordinário (...) por europeus

que se revelassem animados de verdadeira unção sacerdotal”. E acrescenta que

“a substituição de nacionais pelos estrangeiros se tornara imperiosa, pela própria

escassez de padres brasileiros que se seguiu ao maior rigor da parte dos bispos

– continuadores de D. Vital – com relação ao procedimento ou à conduta do

clero.277

Uma consequência direta do descenso pernambucano é o discurso

saudosista que, em Pernambuco, se demonstra em dois momentos. O primeiro

é pela fundação do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, em

janeiro de 1862, pouco mais de vinte anos após a fundação do Instituto Histórico

e Geográfico Brasileiro, sendo, portanto, a segunda mais antiga instituição desse

271 VIEIRA David Gueiros, op cit, p. 325 – 329. 272 Ibidem, p. 326 – 327. 273 MARANHÃO Metódio, op cit, p. 63. 274 Ibidem, p. 327. 275 Idem, p. 337. 276 MARANHÃO Metódio, op cit, p. 63 – 64. 277 FREYRE Gilberto Ordem e Progresso, op cit. P. 837 – 840.

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gênero no país278. Os objetivos do Instituto eram bem claros desde o ato de sua

fundação: manter a hegemonia cultural de Pernambuco, o “Leão do Norte”, sobre

as províncias vizinhas, mas também “preservar o passado como um escudo

contra um futuro incerto”, como escreve Robert Levigne, citado por Lilia Moritz

Schwarcz279. O segundo momento – que sob certo aspecto não deixa de ter

relação com o primeiro – é o aparecimento da obra de Gilberto Freyre. É

impressionante o modo como Gilberto Freyre se refere às elites agrárias

pernambucanas, usando e abusando de uma terminologia que em tudo se

assemelha com aquela empregada por Oliveira Viana em seu louvor aos

feudatários fluminenses. Com efeito, para Gilberto Freyre, o senhor de engenho

também é um tipo de homem, refinado, elegante, brioso de sua importância e

independente de modos. Criou não apenas uma sociedade, mas amalgamou-lhe

os próprios costumes dando-lhe formas, como se constituísse uma civilização

com características bastante próprias. “E era na verdade uma gente que tinha

piano de cauda e livros em casa. Que recebia bem. Que apreciava a boa

cozinha. O doce fino. O quitute delicado. O bolo bem feito”. Uma aristocracia

que, no testemunho insuspeito dos estrangeiros que visitaram o Brasil dos

oitocentos, era em tudo superior àquela que se formara em torno da cultura do

café280. É, portanto, em meio a um ambiente onde as camadas dirigentes velam

pelo seu passado e tradições avoengas que vem Ginsburg desenvolver o seu

ministério. Uma região que, conforme a terminologia machadiana sentia

saudades de si própria (Memorial de Aires).

278 SCHWARCZ Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças, p. 153. 279 Apud SCHWARCZ Lilia Moritz, op cit, p. 154. 280 FREYRE Gilberto. Nordeste, p. 54.

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7.2. A região da zona da mata Norte de Pernambuco no começo do século

XX.

É muito importante destacar os aspectos econômicos, políticos e

religiosos da região que Ginsburg transformou em base para suas atividades

missionárias e que compreende alguns municípios onde se verificaram

incidentes contra protestantes, particularmente Bom Jardim e Limoeiro, mas

também Goiana, Glória do Goitá, além da própria Nazaré da Mata, isto é, regiões

por onde andou Salomão Ginsburg bem como os missionários pioneiros batistas

nos começos do século XX. Tratam-se de localidades que, a exemplo do norte

fluminense, foram permeadas pela cultura da cana-de-açúcar e que, por essa

razão, constituíam-se em adensamentos urbanos nada desprezíveis e muito

antigos, posto que foram constituídos no período colonial, com giro comercial e

repartições públicas. Glória do Goitá, por exemplo, é a terra do Cabeleira, o

protótipo de cangaceiros como Jesuíno Brilhante, Antonio Silvino e Lampião,

cujos feitos, registrados na época colonial, foram recolhidos e transformados em

um romance do mesmo título pelo escritor cearense, radicado no Recife, Franklin

Távora (1842 – 1888), e o próprio Antonio Silvino também andara por ali, ao

passo que em Goiana se encontra localizado um dos conjuntos carmelitas mais

antigos do país, do século XVII, além de possuir grande número de igrejas que

remontam ao período das irmandades que, graças ao ciclo do açúcar, gozaram

de enorme prestígio na região, como as irmandades do Rosário dos Homens

Pretos e Brancos. Mais: também era uma região com grande adensamento

populacional: Nazaré da Mata, a principal cidade da região, tinha, em 1900,

57.995 habitantes; Timbaúba, 45.356; Goiana, 34.903; Glória do Goitá, 30.177;

Bom Jardim, 29.675 e Limoeiro, 25.661 habitantes. No total, esses municípios

reuniam 223.767 habitantes contra o total de 1.178.150 de todo o estado281.

Além da economia, a região da Zona da Mata Norte pernambucana é

particularmente marcada por um tipo de devoção popular bastante próxima

daquelas registradas em outros centros de romagem como Juazeiro do Norte

281 SYNOPSE DO RECENSEAMENTO, op cit, p. 66 – 67.

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(CE) e Bom Jesus da Lapa (BA), a romaria de São Severino do Ramo, localidade

situada no município de Paul d’Alho e cuja força de atração vai além da zona da

mata pernambucana, alcançando os estados vizinhos. A devoção, iniciada em

época incerta – também não existem informações sobre quando e como a

imagem de São Severino foi encontrada – tem como núcleo o engenho Ramos,

ou engenho de Ramos, cuja primeira menção data de 1761. O engenho,

localizado na então povoação de Ribeira do Pau d’Alho, nessa época termo da

freguesia de São Lourenço da Mata, da qual foi separada em 1883, para se

constituir em município autônomo, encerrou suas atividades em 1924. Contudo,

ao tempo desses eventos, a região já assistia romarias de devotos em direção à

capela do antigo engenho onde, desde 1854 se mencionavam ocorrências de

milagres, embora também esse detalhe não possa ser datado com precisão.

Para os efeitos dessa pesquisa o que de fato nos interessa é destacar o esforço

adotado pela arquidiocese de Olinda e Recife, em se apropriar desse evento,

sem descaracterizá-lo de sua essência.

Com efeito, dada a amplitude das romarias foram iniciadas reformas para

ampliação da capela, em 1906 e depois em 1918 quando esta ganhou um altar

próprio “fato indicador da estabilização das romarias”. Outro fator que também

pode ter sido influenciado pela devoção e que com certeza contribuiu para a sua

disseminação, decorre da construção da rede ferroviária, posto que a Great

Western of Brazil Railway, empresa de capital inglês fundada em 1875, havia

recebido concessão dos governos imperial e provincial para explorar o transporte

na região da zona da mata pernambucana. O serviço ferroviário previa uma linha

ligando o Recife a Limoeiro e o trecho passando por Paul d’Alho foi inaugurado

em 1881, o que, sem dúvida, teve efeito na ampliação das caravanas de

romeiros. Em 1918, atendendo uma solicitação do cardeal arcebispo de Olinda

e Recife, dom Sebastião Leme, o papa Bento XV criou a Diocese de Nazaré,

junto com as de Garanhuns e Pesqueira e com isso as romarias passaram a ter

um acompanhamento mais próximo da diocese282. Como escreveram Sergio

Lobo de Moura e José Maria Gouvêia de Almeida, a propósito, do catolicismo

282 MARINHO Ana Lúcia da Silva. O Sagrado nas Redes Geográficas do Turismo. Um estudo

sobre o santuário de São Severino, Paul d’Alho, Pernambuco. Dissertação de mestrado em Geografia, p.

48 – 49. Ver também, PEREIRA Antonio Inácio. O Santuário de São Severino do Ramo. Características

de uma devoção na Diocese de Nazaré. Dissertação de mestrado em Ciência da Religião, p. 41 – 42.

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dos primeiros decênios da República, “o catolicismo popular é admitido e mesmo

valorizado pela reforma patrocinada pela Santa Sé na segunda metade do século

XIX, desde, no entanto, que submetido ao controle da hierarquia”.283

7.3. Ginsburg e o seminário batista do Recife (1902)

A fundação de um seminário com vistas a preparação de candidatos ao

ministério pastoral era algo que já vinha preocupando o meio batista de algum

tempo. Em 1896 foi dado um parecer positivo para a constituição de um

seminário para os eventuais candidatos, mas este referia-se às igrejas batistas

do Centro-Sul capitaneadas pela Associação Evangélica Denominada Batista,

do Rio de Janeiro. Só depois de se constituir a União Batista Leão do Norte

(1899), congregando as igrejas batistas fundadas no Nordeste é que se passou

a pensar mais seriamente na constituição de um seminário destinado a suprir as

igrejas desta região de obreiros regularmente formados para o serviço pastoral.

Era um consenso a necessidade de formação de um pastorado nacional como o

próprio Ginsburg reconhecia: “Necessitamos de pastores brasileiros para os

nossos campos e não o temos (...) sem um ministério nacional, trabalharemos

em vão”.284 Daí a razão porque em 1899 ele já havia solicitado à Junta de

Missões de Richmond os meios necessários para trabalhar a formação de

obreiros destinados às igrejas recém-formadas.285

É também preciso lembrar que na época da constituição do seminário

batista do Recife, as demais igrejas protestantes já haviam conquistado a

autonomia ministerial ou semineral, isto é, contavam com um quadro exclusivo

ou em grande parte formado por ministros nacionais ou estavam formando seus

ministros dentro do país em instituições organizadas para este fim. Os

283 MOURA Sergio Lobo de; ALMEIDA José Maria Gouvêia de. “A Igreja na Primeira

República”. In FAUSTO Boris (org.). História Geral da Civilização Brasileira, vol. 9, p. 325. 284 MEIN David, op cit, p. 4. 285 Ibidem, p. 4.

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congregacionalistas, por exemplo, possuíam um quadro de obreiros nacionais

desde o Império.286 Os presbiterianos começaram a cuidar disso apenas poucos

anos depois da chegada de Simonton, inaugurando um seminário no Rio, em

1867.287 Após a constituição do Sínodo, em 1888 organizaram-se dois

seminários para atender as regiões Norte e Sul do país alcançadas pela

denominação. No caso sulista, o seminário foi instituído inicialmente em Nova

Friburgo, na serra fluminense, em 1894288, sendo depois transferido para São

Paulo (1899)289 e dali para Campinas, no interior paulista, a partir de 1907290. No

caso nordestino, o seminário fundado em Garanhuns, no agreste pernambucano

em 1899291 ali permaneceu até 1920, vencendo a batalha contra os que

defendiam o seu fechamento e envio dos seminaristas para Campinas292, sendo

nesse último ano transferido para o Recife.293 Bem menos traumático foi o

processo de formação do seminário metodista, o Granbery, criado e estabelecido

em Juiz de Fora (MG) em 1889 e que funcionou como seminário único da igreja

até 1940 quando foi transferido para São Paulo e depois para São Bernardo do

Campo294. Assim, a igreja batista se inseria em um processo de emancipação

semineral que envolvia todo o protestantismo de missão brasileiro.

O Seminário do Recife foi criado em abril de 1902. Contava com Ginsburg

entre os seus primeiros professores, trabalhando em conjunto com sua esposa

Emma Morton Ginsburg295 embora dentro das limitações que lhe impunham os

serviços no campo missionário, bem como da falta de preparo teológico, que ele

mesmo reconhecia (tópico 6.1). Nenhum desses fatores, porém, impediu que

Ginsburg exercesse poderosa influência não apenas na formação de obreiros

nacionais para a continuação da obra batista do Nordeste296, como também na

286 ALMANACH EVANGÉLICO BRASILEIRO, ob cit, p. 66. Ver também LESSA Vicente

Themudo, op cit, p. 702 – 705. 287 FERREIRA Júlio Andrade, História da Igreja Presbiteriana do Brasil, vol. I, p. 60. 288 Ibidem, p. 266. 289 Idem, II, p. 34 – 36. 290 Idem, II, p. 84 – 85. 291 Idem, I, p. 401 – 402. 292 Idem, II, p. 82 – 84. 293 Idem, II, p. 202 – 204. 294 ALMANACH EVANGÉLICO BRASILEIRO, op cit, p. 67. Ver também BRAGA Henriqueta

Rosa Fernandes, ob cit, p. 167; ROCHA Isnard, ob cit, p. 52; VALVERDE Messias, “Uma Leitura do

Metodismo” in DIAS Zwínglio Mota, RODRIGUES Elisa, PORTELA Rodrigo (orgs.) Protestantes,

Evangélicos e (neo) pentecostais, p. 145. 295 MESQUITA Antonio Neves, História da Igreja Batista no Brasil, vol. II, p. 29. 296 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 277 – 278.

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estruturação do Seminário do Recife que durante um bom tempo funcionou à

margem do sistema educacional da denominação. De fato, enquanto o STBSB

ficou ligado à CBB que o tinha como seminário da denominação desde 1907, o

STBNB permaneceu ligado à Junta de Richmond sem conexão direta com a

convenção, o que só ocorreu em 1918 quando a CBB, reunida em Vitória (ES)

organizou as juntas administrativas do colégio e do seminário pernambucano297.

Devido a essas circunstâncias, o desenvolvimento do STBNB foi muito

acidentado, permanecendo por muitos anos operando, conforme David Mein, de

forma quase clandestina. Com isso, criou-se uma situação muito parecida com

a que ocorrera no seminário presbiteriano, isto é, um amplo esforço de se fechar

o STBNB, permanecendo apenas o seminário carioca como formador de

ministros da denominação, para onde se transferiram professores e missionários

encarregados da sua organização com o apoio tácito da Junta de Richmond que

pretendia manter apenas um seminário no país298. Só depois de 1942, com a

“dinastia” Mein (John Mein e seu filho David299) é que o seminário do Recife

conquistou o prestígio e o reconhecimento no âmbito do meio batista.

Cumpre destacar o fato de que embora esta tenha sido apenas a primeira

das três grandes crises que quase fecharam o STBNB (as outras duas

decorreram da Questão Radical e do Movimento Neoradical que assolaram com

um inflamado discurso nacionalista as igrejas batistas do Nordeste nos anos 20

e no final dos anos 30)300, todas elas tem o mesmo pano de fundo que uniu em

uma causa comum os batistas e os presbiterianos nordestinos: a idéia de uma

identidade nacional reforçada pelos vínculos regionais que se recusa a aceitar

tanto a dependência da junta estrangeira como a tutela das igrejas mais ricas do

Sul do país. Portanto, é muito mais do que uma mera questão religiosa, mas uma

reação nativista que buscava na autonomia semineral reforçar a sua própria

identidade e especificidade regional inserida dentro de um discurso nacionalista.

O próprio fato de que o seminário tenha sido um dos epicentros tanto do

297 MESQUITA Antonio Neves de, op cit, II, p. 100. 298 MEIN David, op cit, p. 10. 299 O missionário norte-americano David Mein (1919 – 1995) foi professor do STBNB de 1948 a

1984 e presidiu a instituição de 1952 a 1984. Foi também pastor da Igreja Batista do Cordeiro, no Recife,

de 1951 a 1981. Ver MEIN David op cit, p. 33 – 35 e PEREIRA José Reis, História dos Batistas no Brasil,

p. 294. 300 Sobre a Questão Radical e seus efeitos sobre o STBNB, ver MEIN David, op cit, p. 15 e p. 20

– 22.

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movimento batista radical de 1923 quanto do seu recrudescimento em 1939

reforça nosso entendimento quanto a essa hipótese de que o nacionalismo

evocado nas duas dissidências tenha sido a razão primeva da luta dos batistas

(como também dos presbiterianos) nordestinos em favor de sua autonomia

semineral e educacional e que é também a luta pelo reconhecimento de sua

própria identidade. Como diz o manifesto dos batistas radicais de 1923: “nossos

bem-amados missionários não estão convencidos de que não sejamos capazes

de nos governarmos (...) o povo batista brasileiro é inferior aos outros povos? Do

contrário, por que não terá ele a capacidade de dirigir os seus próprios

trabalhos”?301

O conflito entre a missão e o ministério nativo não é, portanto, um conflito

de poder, mas sim um conflito de visões de mundo, uma formada dentro da

tradição anglo-saxônica, empedernida de preconceito e excludente, e a outra,

dentro das condições advindas do meio nacional, respeitando sua especificidade

e diferenciação regional. Acima de tudo, é um conflito onde se colocam de lados

opostos o nacionalismo da igreja local e o liberalismo dos missionários

representantes do mundo anglo-saxão ao qual não apenas representam, mas

também divulgam em sua atividade de missão e de pregação e que, acima de

tudo, se faz presente institucionalmente no âmbito do seminário. Examinando o

corpo docente do STBNB no período que vai de 1902 a 1977, vemos que dos

113 professores que passaram pela instituição apenas 51 eram nativos contra

62 estrangeiros, em sua grande maioria norte-americanos302 ao passo que dos

quatorze diretores, somente dois eram nacionais.303 Em um momento em que as

demais igrejas protestantes já se encontravam quase que completamente

nacionalizadas, a presença missionária estadunidense, tanto do ponto de vista

pedagógico quanto do pastoral, ainda continuava forte no meio eclesial batista

tanto no momento de sua fundação como no desenrolar de sua história.

301 LÉONARD Émile G, op cit, p. 200, nota 30. 302 MEIN David, op cit, p. 35 – 37. 303 Ibidem, op cit, p. 33.

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7.4. Atividades de Salomão Ginsburg na zona da mata norte de

Pernambuco (1897 – 1909). Interlúdio em Nazaré da Mata (1897) e atividade

missionária em Bom Jardim e Limoeiro (1900 – 1909)

Ginsburg não exagera que a perseguição religiosa ocorrida em Bom

Jardim foi “uma das mais cruéis que se deram em Pernambuco”304, o qual,

segundo ele, foi a razão pela qual ele decidiu retornar ao estado depois de sua

passagem inicial como missionário da IEF oito anos antes. Ainda segundo o

missionário, a onda de violência teria se dado por conta das provocações feitas

pelos próprios batistas contra os católicos, o que teria justificado a intervenção

do chefe político da localidade, um católico, que decidiu então parar a

propaganda e considerando o contexto político que já examinamos

anteriormente, isto é, a receptividade com que o governador Joaquim Araújo

acolhia os pleitos da Igreja Católica, segundo Tarsier, e assim apropriar-se do

apoio tácito do governo do estado. “Tomando a palavra, o governador Araújo

entrou numa longa defesa do catolicismo, lenga-lenga que acabou dando a

entender que a propaganda protestante não tinha razão de ser, e, portanto, não

podia ele atender ao nosso pedido”.305 Era uma situação diametralmente oposta

àquela encontrada pelos batistas no norte fluminense, isto é, de

condescendência das autoridades políticas e dos seus sipaios, como Curindiba

de Carvalho. Em vista disso, os batistas pernambucanos só podiam contar com

os canais de relacionamento com os poderes institucionais que missionários

como Ginsburg dispunham e que usavam a larga, seja por meio da política

tradicional, seja através de caminhos indiretos e tortuosos como o das conexões

com as lojas maçônicas.

304 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 134.; 305 TARSIER Pedro, op cit, I, p. 178.

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7.5. Ginsburg em Nazaré da Mata (1897). Atividade missionária em Bom

Jardim (1900)

Ginsburg já possuía algum conhecimento da zona da mata norte por conta

de uma viagem que ali fizera entre 1897 e 1898 a fim de acompanhar as

atividades do missionário Willian Entzminger no município de Nazaré da Mata. A

igreja ali organizada em 1896306, era um reflexo microscópico do protestantismo

brasileiro nessa época, e mesmo depois: pequena e formada pelas “melhores

famílias da cidade” sendo, portanto, muito seletiva307. A excelência dessa grei,

bem como a riqueza econômica da zona da mata norte não eram desconhecidos

de Ginsburg que, no entanto, percebeu que a igreja não estava numa situação

muito boa com muitos dos “melhores membros” daquele grupo em falta com seus

deveres religiosos. Decidiu-se então pela reorganização daquela comunidade

por meio de um radical evangelismo em plena praça pública o que atraiu a

atenção do padre da paróquia local que tratou então de assalariar um bandido

para mata-lo. Para facilitar as coisas, todas as autoridades locais, inclusive a

força policial, se retiraram da cidade “de modo que eu não tivesse a quem

recorrer e o assassino pudesse completar a sua obra sem impedimentos”. 308

Contudo, tendo em vista que o comércio de bebidas continuasse aberto na

região, o tal bandido que “precisava de coragem” para lograr seu intento, acabou

se embriagando, de modo que o atentado não ocorreu.309 Com isso, Ginsburg

ficou livre para pregar e em sua pregação, como de hábito, fez “um ataque à

Igreja de Roma, em todos os seus ensinos”, sem ser em momento algum

importunado.310 Era a repetição das mesmas práticas proselitistas já vistas na

cidade do Rio, no estado da Bahia e na região de Campos, mas agora

provocando sérios desdobramentos.

Pelo relato de Ginsburg a situação reinante em Bom Jardim era um reflexo

do que ocorria no plano estadual, isto é, havia um grupo político ligado à

306 LÉONARD Émile G, op cit, p. 103. 307 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 129. 308 Ibidem, op cit, p. 130. 309 Ibidem, p. 130 – 131. 310 Idem, p. 130.

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oligarquia e outro às forças de oposição que, possivelmente, foram

marginalizadas com a ruptura da antiga ordem criada pela intervenção federal

de 1892. A religião acabou também refletindo a contenda com o grupo

protestante sendo defendido pela oposição enquanto o catolicismo era abraçado

pelos situacionistas. “O chefe político, um médico”, diz Ginsburg em seu relato,

“havia combinado com os fazendeiros católicos para mandarem um

destacamento dos seus cangaceiros (sic), muitos deles bandidos ignorantes, no

domingo da Páscoa de 1900, com o objetivo de atacar os crentes que estavam

reunidos na casa do crente, chefe oposicionista”. O “chefe oposicionista”, que

Ginsburg não menciona pelo nome, repetindo de novo a falta de precisão no

relato como nos incidentes de Campos, Macaé e São Fidélis, era um potentado

local, Primo da Fonseca, enquanto o chefe situacionista era o Dr. Mota Silveira,

aliado do padre João Bezerra de Carvalho, líder político daquele município na

assembléia legislativa pernambucana onde tinha um mandato no senado

estadual311. Foi desse padre que partiu, segundo Pedro Tarsier, a ordem de

atacar os batistas bom-jardinenses312, ficando o fazendeiro Nicolau Antonio

Duarte, também ligado à situação, com a responsabilidade de organizar aquela

operação313. Contudo, dado que não houve uma combinação prévia para o

ataque, sucedeu que os dois grupos, o do médico e o do fazendeiro, acabaram

trocando tiros entre si nas ruas da cidade, sucedendo, segundo Ginsburg, que

ao final da peleja havia “uns vinte e cinco mortos e mais de cem feridos314”. Essa

última informação, porém, não é corroborada pelas fontes da época, dado que o

Jornal do Recife, reproduzindo por Crabtree em sua obra, embora confirmando

o tiroteio gerado pelo fogo amigo, relata apenas três mortes e alguns feridos no

entrevero315. Ginsburg, porém, insiste na veracidade do seu relato, dizendo que

“os católicos trabalharam para ocultar os resultados de sua batalha, sepultando

os mortos e escondendo os feridos”,316 o que reflete uma tendência de

mitificação em sua obra que, embora não seja algo só dele, faz parte da literatura

hagiográfica que tem como objetivos a edificação por meio do relato e a

311 Até 1930 alguns estados possuíam senado estadual como São Paulo e Pernambuco. 312 TARSIER Pedro, op cit, I, p. 188. 313 CRABTREE A.R, op cit, I, p. 147 – 148. 314 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 136. 315 CRABTREE A.R, op cit, I, p. 149. 316 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 137.

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demonstração da interveniência de outras forças em favor dos crentes

perseverantes, expostos a situações de perigo extremo, confirmando um tipo de

padrão que reflete o que disse Sofia Boesch Gajano acerca da tênue fronteira

entre o verossímil e o inverossímil nesse tipo de relato. Trata-se, portanto, de um

esforço de legitimação do seu trabalho (e das doutrinas às quais se encontra

ligado), mesmo com informações precárias quando não suspeitas.

7.6. A perseguição contra os batistas em Bom Jardim

A partir desse momento, segundo Ginsburg, um reinado de terror se abate

sobre os batistas bom-jardinenses. O chefe político local que, segundo a

narrativa do missionário, perdeu um sobrinho no combate, acusou a comunidade

protestante de ter feito uso de armas e dado início à peleja, sendo a acusação

imediatamente acatada pelo juiz da comarca, “um rapaz perverso que era um

instrumento em suas mãos317” e que deu ordem de prisão para o grupo que se

reunia na casa de Primo da Fonseca. “Nem um tris de evidência havia para

condenar os crentes. Eles nem uma espingarda tinham em suas casas, mas o

tal chefe tinha suas testemunhas falsas que juraram ter visto os protestantes

atirar nos católicos”. Com a acusação, oito pessoas foram detidas e as demais

tiveram de fugir da cidade. 318 Sempre desfalcado de precisão, Ginsburg relata

ter chegado ao Recife e entrado em contato com o governador, que não cita

nominalmente, pedindo um salvo-conduto para ir até Bom Jardim, medida que,

segundo ele, era necessária para se proteger “do povo que acaba de fazer esses

atentados”, o que ele garantiu, segundo Ginsburg, de modo bem contrariado.

Ainda no contato com o governador, Ginsburg lhe informa ter trazido consigo

“muito boa recomendação de alguns dos homens principais do Brasil”, 319 o que

pode ser reflexo das informações que com certeza deve ter tido na véspera

317 Ibidem, p. 137. 318 Ibidem, p. 137. 319 Ibidem, p. 138.

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acerca das inclinações religiosas de Joaquim Araújo, informadas anteriormente

pelo missionário Willian Entzminger. É uma pena que Ginsburg não diga que

“homens principais do Brasil” eram estes, mas, a julgar pelo tempo que ele tinha

no país, esses personagens só poderiam pertencer a dois grupos, o dos maçons

e os que militavam na política fluminense.

A perseguição religiosa de Bom Jardim registra um acontecimento que

com certeza dá muito o que pensar acerca do modus operandi de Ginsburg no

país. Tendo chegado à localidade e constatado a mudança da situação política

com outro “chefe” na posição de comando no município, Ginsburg foi tratar com

ele, percebendo que este indivíduo, descendente de portugueses e dono de uma

padaria, estando, portanto, situado às margens da oligarquia rural, poderia ser

mais propenso a um diálogo consigo. Ginsburg novamente reconhece a

importância que um chefe político tem nos municípios interioranos após o que

relata esse fato:

A posição de chefe político no interior do Brasil é bastante remuneradora. Para

conseguir livrar os crentes eu fiz um bom presente aos filhos do chefe político e bem

assim aos do juiz que era pai de oito filhos. Paguei a hospedagem de todos os lavradores

que serviram de jurados no júri. Para abreviar a história este negócio levou cerca de quatro

anos para obter a quitação dos dezenove homens que foram envolvidos no caso e gastei

mais de dez contos de réis em ouro. E ainda assim, senão fosse o chefe político, cujo

poder sobre o juiz e os jurados era tão grande que entrava no tribunal e na presença do

próprio juiz, abria a urna onde estavam os nomes dos jurados, substituía os daqueles que

achava, votariam contra ele, assim que não havia possibilidade dos seus serem chamados.

Se não fosse ele, os pobres crentes inocentes teriam sido condenados como homicidas.

Foi uma luta, mas os resultados foram admiráveis porque hoje o Evangelho está

espalhando-se por toda aquela vasta região de modo maravilhoso.320

A rigor o que chama atenção nesse depoimento não é tanto o fato de que

Ginsburg confessa o suborno de um juiz de Direito para soltar indivíduos de sua

grei que se achavam na cadeia. O que chama atenção é ele reconhecer a

existência de um traço nada decoroso nas relações sociais brasileiras, que é a

320 Ibidem, p. 138 – 139.

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idéia de se obter algum tipo de vantagem por meio das relações com outrem, e,

do mesmo modo, fazer uso desse fato para conseguir lograr a soltura dos seus

irmãos da prisão. A narrativa mostra que ele não vê com censura nenhuma nem

o suborno e nem a decisão do juiz de aceita-lo, embora reconheça que a prisão

de pessoas sem provas seja algo revelador de flagrante injustiça. Além do mais,

se lembrarmos do seu comportamento “ortodoxo” no episódio da irmã Maria

Madalena, que não pôde tornar-se membro da PIB baiana por estar grávida de

um homem que não era seu marido, é inegável que seu conceito de moral

variava bastante conforme o grupo, ou então, que ele reconheceu ou passou a

reconhecer que na relação proselitista que vinha praticando pelo país afora,

seriam necessárias algumas negociações para o pleno andamento de sua obra

missionária. Também é preciso destacar a reação tanto dos seus

contemporâneos quanto a narrativa histórica subsequente. Entzminger,

testemunha de alguns dos acontecimentos, enfatizou a atuação de Ginsburg em

favor da soltura dos acusados “esforçando-se heroicamente em prol desses

mártires. E além do trabalho insano que isso lhe acarretou, viu-se obrigado a

despender nada menos de quinze mil cruzeiros com a defesa”.321 Mas não

menciona o suborno. Crabtree, por sua vez, limita-se a reproduzir o incidente em

Bom Jardim recorrendo à imprensa diária e ao relato de Entzminger, sem citar a

versão de Ginsburg para os fatos322.

O relato de Ginsburg, lido sob a perspectiva de Sergio Buarque de

Holanda também deixa claro que as estruturas patriarcais de sociedade formam

uma regra que mesmo a transição do regime não consegue suplantar. “Entre

nós”, explica Sérgio Buarque de Holanda, “mesmo durante o Império, já se

tinham tornado manifestas as limitações que os vínculos familiares, demasiado

estreitos, e não raro opressivos, podem impor a vida ulterior dos indivíduos323”.

O incidente em Bom Jardim, como tantos outros da República Velha, mostra que

o limitado liberalismo brasileiro não aboliu a prática, de resto, parte indissociável

da vida social brasileira. “No Brasil”, ainda segundo Sergio Buarque, “só

excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários

puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. (...)

321 CRABTREE A.R, op cit, I, p. 149. 322 Ibidem, p. 147 – 149. 323 HOLANDA Sérgio Buarque de op cit, p. 250.

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é possível acompanhar ao longo de nossa História, o predomínio constante das

vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados

e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal324”. Ao que parece Ginsburg

percebeu isso em suas andanças pelo país, ou em contato com os ‘”homens

principais” brasileiros e quis, de algum modo, tirar proveito dessa situação. A sua

vinculação com a Maçonaria pode também ter sido decorrente dessa percepção

como fica bem claro no incidente de Queimadas. Como ele não reprova, nem

exalta o sistema, é bem possível que ele tenha tido uma compreensão

pragmática dessa situação e com isso percebido que ele lhe poderia ser de bom

proveito em caso de uma situação adversa como nesse caso, mas aqui, é claro,

que estamos entrando em um terreno puramente especulativo e, portanto, hostil

ao ofício do historiador. Contudo, uma coisa fica evidenciado no relato: ao contar

com minúcias esse incidente, Ginsburg mostra que não viu problema algum em

fazer o que fez e que esse fato pode ser revelador de que a constância como

esse tipo de expediente se reproduzia pelo Brasil afora o eximia de qualquer

inquietação moral sendo, portanto, sua prática absolutamente lícita e justificada

do ponto de vista de sua atividade ministerial, mesmo que ela venha doravante

comprometer, senão limitar, o projeto protestante em geral e batista em particular

de promover uma reforma da sociedade.

Ainda a esse respeito, o antropólogo argentino Nestor Canclini traz o

paradigma machadiano analisado por Roberto Schwarcz como forma de se

entender o paradoxo brasileiro exemplificado nesse relato. Para Schwarcz, que

usa a obra de Machado de Assis para formular sua interpretação do Brasil a

partir da literatura, as classes instruídas, desprovidas de poder político-

econômico próprio por não terem a posse da terra, mas que, ainda assim, estão

situadas dentro das engrenagens do poder e dependentes de relações para

trilhar seu próprio caminho, acabam dependendo dos favores de pessoas

poderosas para também elas chegarem ao poder e usufruir de suas benesses.

O favor é antimoderno e antiliberal sem dúvida, mas, por outro lado, é “mais

simpático” e “susceptível de unir-se ao liberalismo por seu componente de

arbítrio, pelo jogo fluído de estima e autoestima ao qual submete o interesse

material”, além do que, “pratica a dependência da pessoa, a exceção à regra, a

324 Ibidem, p. 253.

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cultura interessada e a remuneração de serviços pessoais”, e acaba se impondo

dada a impossibilidade de as camadas médias no Brasil machadiano de

conseguirem romper esse ciclo vicioso, sem o que nenhum progresso pessoal é

de fato possível. 325

Também não podemos esquecer que Ginsburg está escrevendo não para

o público brasileiro, mas sim para o norte-americano, e, nesse caso, as

expectativas são bem outras. Ali, a imagem predominante do continente latino-

americano em geral e do Brasil em particular, era a de uma região moralmente

degradada. Como observado por Arturo Piedra, “esse interesse [dos

protestantes norte-americanos] pela realidade religiosa da América Latina não

conseguia esconder os preconceitos racistas. A preocupação com o continente

baseou-se, principalmente, nas supostas condições morais (ou imorais) de sua

gente.326” a descrição da América Latina, incluindo o Brasil como “áreas escuras

ou tenebrosas” vinculava-se tanto a questões raciais quanto a ético-morais. Essa

impressão foi progressivamente reforçada ora por declarações de missionários

como Robert Speer, que dizia que “os latino-americanos careciam de virtudes

fundamentais anglo-saxônicas como a dignidade, energia, franqueza e

integridade” e que suas elites eram dominadas “pela apatia que era manifesta

em sua ciência, política e religião”,327 bem como por livros como The Neglected

Continent (O Continente Abandonado), editado por Lucy Guinness em 1894

onde os povos latino-americanos eram descritos como degradados e amorais328.

É inegável que Ginsburg está dominado por esse tipo de impressão quando

descreve esse episódio que de outro modo teria sido omitido como o foi por

Crabtree que em seu livro sobre a História dos Batistas está em diálogo com os

prosélitos nacionais. Ginsburg, nesse relato, está, desse modo, coadunando e

reforçando conscientemente essa impressão e lhe dando o embasamento de

sua própria experiência missionária.

É bem certo que esse incidente e outras ações de Ginsburg em seu

ministério, sobretudo nos estados do Rio e Pernambuco, tenha gerado algum

325 CANCLINI Nestor Garcia, Culturas Híbridas, p. 76. BURKE Peter. História e Teoria social,

p. 161 – 162.

326 PIEDRA Arturo, op cit, I, p. 73. 327 WIRTH Lauri Emilio, in LEONEL João (org.), op cit, p. 41. 328 PIEDRA Arturo, op cit, I, p. 73.

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tipo de inquietação da parte de seus colegas de ministério, muito perturbados

com esse tipo de iniciativa. O pastor Antonio Neves Mesquita, autor de uma

história dos batistas pernambucanos e depois historiador da denominação,

chama atenção para isso quando fala dos “modos peculiares” com os quais

Ginsburg exerceu o trabalho missionário, em particular no estado de

Pernambuco.329 Posteriormente, escrevendo sobre a história da igreja batista no

Brasil, retoma o tema, mas agora de forma mais discreta.

O trabalho batista é relativamente novo. Pouco mais de meia geração. Muitas das

atividades deste trabalho foram desenvolvidas por irmãos que ainda vivem. Não se

poderia esperar que em tudo eles fossem exímios e perfeitos. Houve muitos senões. Fazer

uma análise anatômica de tudo que se fez, certo ou errado, seria ofender irmãos que

fizeram o melhor que puderam nas circunstâncias em que se encontraram. Outros heróis

que já tombaram estão ainda quentes em nossa memória e ninguém gostaria que se

metesse o bisturi em suas atividades. Seria uma profanação330.

E também Crabtree, quando descreve a atividade missionária de Zachary

Taylor em São Paulo, destaca o tamanho do contraste de como se deu o

progresso da obra batista nesse estado com os percalços passados pelos

batistas no Rio e em Pernambuco, onde Ginsburg atuou, “porque o fundador da

Missão sabia evitar conflitos e perseguições que, às vezes, contribuem para a

propaganda do Evangelho e, às vezes, para uma certa superficialidade dos

crentes que entendem que a sua missão principal é a de combater o

catolicismo”.331

329 MESQUITA Antonio N, op cit, II, p. 58. 330 Ibidem, II, p. 14. 331 CRABTREE A R, op cit, I, p. 286 – 287.

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7.7. Polêmicas na imprensa e a queima de bíblias

Ginsburg já era um experimentado polemista quando chegou ao Recife.

Seus combates na imprensa contra o clero católico na Bahia e depois no estado

do Rio o deixaram calejado para desembainhar a espada agora no Recife que

nesse momento vivia uma forte reação católica tanto no âmbito do governo

estadual quanto no da chegada de missionários católicos enviados para dar freio

à expansão do protestantismo pelo Nordeste. Destes, sem dúvida, o mais

importante foi o frade franciscano Celestino Pedavoli (ou Padavoli), que, em

princípios do século XX, organizou uma Liga Antiprotestante, a fim de combater,

sobretudo, o expansionismo batista no estado e enfrentar a difusão de bíblias

protestantes. Pedavoli já era conhecido dos protestantes desde 1879 quando

este publicou nos jornais pernambucanos uma série de Perguntas respeitosas

dirigidas ao senhor ministro da igreja evangélica nesta província por um neófito

da mesma igreja, e no qual, fazendo-se passar por novo convertido, publicou as

tais perguntas que, segundo Vicente Themudo Lessa nada mais eram do que

“artigos infamantes contra o protestantismo”.332 Lembremos uma vez mais que

o ambiente pernambucano, sobretudo o da imprensa, foi desde o início muito

hostil ao protestantismo, de modo que Pedavoli encontrou campo fértil para suas

atividades, ao ponto as tais “Perguntas” causarem grande sensação, sendo

republicadas várias vezes até mesmo em Lisboa, em 1887, e depois traduzidas

para o francês e publicadas em Lille na mesma época, tendo também saído

nessa ocasião as réplicas do Dr. Kalley e dos reverendos presbiterianos John

Rockwell Smith e T.J. Porter, desqualificando aquele escrito.333

Era com esse personagem com o qual Ginsburg e Entzminger iriam medir

forças a partir de 1897 quando tem início no Recife uma violenta polêmica na

imprensa, colocando de um lado o jornal católico A Era Nova e do outro o Jornal

do Recife que cedeu um espaço para as respostas dos missionários batistas. A

332 LESSA Vicente Themudo, op cit, p. 215. 333 Ibidem, ob cit, p. 216. Ver também LÉONARD Émile G, op cit, p. 125, nota 23. Ver também

VASCONCELOS, Micheline Reinaux. As Boas Novas pela Imprensa: impressos e imprensa protestante

no Brasil (1837 – 1930), tese de doutorado em História, p. 60.

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fundação da Liga Antiprotestante por Pedavoli, em 1902, veio aprofundar o

debate pelos jornais: “Diariamente”, escreve Ginsburg, “publicavam num dos

jornais diários um artigo escrito por algum homem importante da cidade ou do

estado. Começaram atacando as nossas doutrinas, aos quais eu respondi

indiretamente, dirigindo-me ao público em vez de ao clero que a escrevera”334.

Ginsburg destaca em seu relato que seu objetivo não era propriamente um

debate apologético, mas apenas explicar as crenças batistas para o público em

geral, evitando com isso de discutir com os padres, sobretudo os jesuítas que

em geral “sofismam e querelam com frases e palavras, em vez de doutrinas e

princípios”335. Apesar da crassa imprecisão, o relato de Ginsburg cumpre uma

função que é tipicamente hagiográfica, como observado por Sofia Boesch

Gajano, que é a de “defender a doutrina”. Ao se colocar em um campo doutrinário

que elege o outro como herético ou desviado, aquele que ataca irá procurar não

só fazer valer a verdade de sua doutrina por meio de argumentação pertinente,

mas também, irá procurar, na reconstrução da história, a sua própria visão dos

fatos e de que modo essa visão lhe poderá ser útil336.

O debate religioso na imprensa recifense teria ficado apenas nas

discussões doutrinárias se o frei Celestino não tivesse tomado a decisão de

promover a queima de bíblias no começo de 1903. Todas as fontes concordam

que a decisão do frade italiano de incinerar as bíblias foi o canto de cisne de sua

campanha contra o protestantismo, tamanha a reação negativa que o ato causou

para o seu movimento e para sua pessoa. A cerimônia, realizada em praça

pública perto do Mercado de São José e próximo da Igreja da Penha, em horário

de grande movimento, resultou na queima de 214 exemplares da Bíblia, bem

como de numerosos panfletos protestantes 337. Esse primeiro ato foi com certeza

o inspirador do segundo, ainda melhor documentado e que ocorreu em 27 de

setembro do mesmo ano, quando do segundo aniversário de fundação da Liga

Antiprotestante e que até por isso abrangeria um maior número de livros a serem

destruídos. Um programa dos escritos que seriam queimados foi amplamente

divulgado pela imprensa e incluía 26 exemplares do Velho Testamento e 42 do

334 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 140. 335 Ibidem, op cit, p. 140. 336 GAJANO Sofia Boesch, in BERNARDINO Angelo di; FEDALTO Giorgio; SIMONETTI

Manlio (orgs), op cit, p. 910. 337 MARANHÃO Metódio, op cit, p. 95.

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Novo, além 45 do evangelho de São Mateus, 4 de São Marcos, 9 de São Lucas

e 12 de São João; 9 do livro de Atos dos Apóstolos e edições avulsas de livros

e tratados. A péssima repercussão ao evento foi imediata: “a imprensa carioca

começou a debater o assunto e no Congresso Federal o deputado pelo Rio

Grande do Sul, o sr. Germano Hasslocher, proferiu um eloquente discurso (...)

na sessão de 22 desse mês, sobre o crime bárbaro praticado pelo frei Celestino,

tendo por cúmplice o sr. Dom Luis, bispo daquela diocese”.338 Este responde no

dia seguinte insinuando que o deputado gaúcho estava “obedecendo as

manhosas notícias que o infeliz interessado mandou, reclamou contra a queima

de bíblias falsas”339 e defendeu o auto-de-fé, primeiramente ao dizer “que

estaríamos em nosso direito, se as queimássemos, desde que aqueles a quem

pertenciam no-la deram para este fim”. Depois, torna a acusar os protestantes

de adulterar bíblias que seriam depois tomadas e disseminadas por toda parte

e, por fim, reafirmando mais uma vez nada ter a ver com os incidentes340.

Ginsburg responde no Jornal do Recife no dia 23: “o senhor bispo pode (...) não

ter ordenado a queima de bíblias, mas aprovou-a, e vai presidi-la”341. E sobre o

fato de a segunda cerimônia ter se dado dentro de um convento, o missionário

comenta nesses termos: “Quanto a solenidade de queima ter de passar-se na

cozinha do convento da Penha não louvamos o gosto (...) do sr. Dom Luis (...).

Sua excelência não ia queimar as bíblias na cozinha da Penha; ia queimá-las na

praça pública, e, naturalmente, não pensa mais em tal, porque as enérgicas e

honradas autoridades do Estado não o consentirão”.342

Ginsburg soube tirar vantagem da reação subsequente àquele evento. A

imprensa se assomou ao coro e os velhos liberais anticlericais voltaram a dar as

caras343. Contudo, percebe-se em seu relato uma tendência mistificadora

quando este afirma que dadas as suas comunicações com “todos os jornais da

capital”, bem como com políticos e até com o presidente da república e o ministro

da justiça, foi possível impedir que a queima de bíblias continuasse. O discurso

de Hasslocher no parlamento teria levado o presidente da República tomar uma

338 TARSIER Pedro, op cit, I, p. 198. 339 Ibidem, op cit, I, p. 218, nota 223. 340 Ibidem, op cit, I, p. 219, nota 223. 341 Ibidem, op cit, I, p. 219 – 220, nota 224. 342 Ibidem, op cit, I, p. 220, nota 224. 343 Ibidem, op cit, I, p. 199.

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decisão e esta veio com efeito na forma da sustação de novas queimas de

bíblias. “Foi uma grande vitória para a causa da justiça”, diz Ginsburg que

recebeu a notícia pelos jornais, bem como os encômios de políticos que lhe

prometeram apoio tão logo retornasse de viagem para o Recife.344

Esse apoio, porém, só virou fato em parte. Houve, em momentos pontuais,

intervenção policial em algumas perseguições como as ocorridas em Palmares,

na zona da mata sul, e em Cortez, na fronteira entre o agreste e a zona da mata

Sul, mas ainda continuaram ocorrendo incidentes nas quais a ação da polícia

não se fez sentir como no episódio do incêndio da igreja batista de Timbaúba,

em 1907, levado a efeito “pela célebre liga antiprotestante” que ainda continuou

na ativa, embora sem mais o poder que desfrutara em outros tempos.345 Mais

importante: ela não cessou as queimas de bíblias já que em São Paulo, em 1904,

se verificou outro auto-de-fé onde foram incineradas na mesma pira tanto as

bíblias quanto folhetos protestantes, embora, dessa vez, o evento tenha sido

capitaneado por uma entidade leiga, a Legião de São Pedro, que, como no

Recife, fez a incineração em um recinto particular, a Igreja de Santa Cecília.346

Contudo, é inegável que o incidente aumentou o prestígio de Ginsburg nos meios

políticos e sociais pernambucanos para o qual dá evidência o júbilo com que os

jornais católicos receberam a notícia da partida de Ginsburg, em gozo de férias,

para os EUA, no começo de 1904347. Também a Junta de Missões de Richmond

passou a olhar com outros olhos o trabalho bem-sucedido de seu missionário em

Pernambuco, ao ponto de lhe entregar U$ 1500,00 para auxiliar a obra batista

no estado, dinheiro esse recolhido e depositado pela Sociedade Missionária de

Senhoras da Carolina do Sul.348 Um diácono enviado por uma igreja batista do

Alabama e um certo “irmão W.W Robinson” representante de uma firma norte-

americana no Recife corroborando assim a tese defendida por Arturo Piedra

acerca da associação entre empresas norte-americanas e atividades

344 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 142 – 143. 345 TARSIER Pedro, op cit, II, p. 9. 346 Ibidem, op cit, II, p. 7. 347 Ibidem, op cit, II, p. 5. 348 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 145.

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missionárias na América Latina349, supervisionaram os trabalhos quanto a

aplicação desses recursos pelos batistas pernambucanos.350

7.8. Ginsburg e Antonio Silvino

Outro episódio recolhido por Salomão Ginsburg do período missionário

pernambucano foi seu encontro com o cangaceiro Antonio Silvino. Esse

encontro, se é que podemos chamar assim, ocorreu logo que Ginsburg retornou

às suas viagens pelo interior do estado e teria sido decorrente, segundo o

missionário, de um plano obrado por frei Celestino Pedavoli que teria assalariado

o cangaceiro em duzentos e cinquenta mil-réis para assassiná-lo351. A descrição

que Ginsburg faz de Antonio Silvino é relativamente correta. Silvino “era um dos

homens mais temidos que já apareceram no Brasil” com numerosos crimes a ele

atribuídos ao ponto de o governo pernambucano oferecer um prêmio de 40

contos de réis pela sua captura vivo ou morto, embora, paradoxalmente, fosse

também uma espécie de filantropo, dividindo o lucro do seu butim com as

pessoas mais pobres. Tanto a historiografia quando a literatura de cordel que

registrou seus feitos consignou ambas as coisas, o temor que seu nome

disseminava pelo sertão afora, e mesmo por regiões da zona da mata, e a

bondade para com os despossuídos. “Valente, atrevido, arrojado”, escreve Luis

da Câmara Cascudo, “com gestos generosos e humanos, respeitado de donas

e donzelas, nenhum cangaceiro antes dele, despertou maior interesse para os

cantadores e poetas sertanejos, motivando um número incalculável de folhetos

vorazmente decorados e divulgados nas feiras e cantigas”.352 Muitos desses

poemas eram alusivos ao poder que seu nome desfrutava em todo o sertão ao

ponto de ele, virtualmente, solapar os próprios fundamentos do Estado

349 “Em sua busca por apoio econômico, algumas instituições missionárias protestantes almejavam

ter contato com empresas comerciais que já tinham alguma presença na região ou procuravam abrir

mercados”. PIEDRA Arturo, op cit, cit, I, p. 95. 350 GINSBURG Salomão L, p. 146. 351 Ibidem, p. 150. 352 CASCUDO Luis da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro p. 58 – 59.

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institucional, como no caso desse episódio, recolhido do poeta popular paraibano

Leandro Gomes de Barros (1868 – 1918): “Telegrafei ao governo/ e ele lá

recebeu/mandei-lhe dizer: doutor/cuide lá no que for seu/a capital lhe

pertence/porém o estado é meu”.

Em outro momento o cangaceiro, falando por meio do seu cronista, dá

vazão às suas relações com os estados onde estão confinadas suas façanhas:

“No Norte tem quatro estados/à minha disposição/Pernambuco e Paraíba/dão-

me toda distinção/Rio-Grande e o Ceará/me conhecem por patrão”.

As incursões do cangaceiro não se limitavam ao sertão ignoto. Na obra

memorialística de José Lins do Rêgo, especialmente nos romances Menino de

Engenho (1932), Fogo Morto (1943) e em Meus Verdes Anos (1956) constam

várias referências aos ataques do cangaceiro pelas várzeas do rio Paraíba, na

região do município de Pilar, apenas umas poucas dezenas de quilômetros da

capital do estado, ao passo que o telegrama insolente enviado de Guarabira,

tecendo injúrias ao governador do estado, episódio citado por Leandro Gomes

de Barros no poema acima353, foi talvez um dos momentos mais importantes de

sua carreira. Leandro Gomes de Barros também faz menção a outros feitos: “No

Pilar da Paraíba/eu fui juiz de direito/no povoado – Sapé/fui intendente e

prefeito/e o pessoal dali/ficou todo satisfeito”354.

Conforme o relato de Ginsburg, o primeiro encontro entre ambos se deu

na localidade de Moganga, na região de Nazaré da Mata onde Ginsburg se

deparou com um “um homem baixinho e magro, mas muito vivo, em pé junto a

estrada por onde eu ia. Tinha nas mãos uma espingarda de dois canos e sobre

seu peito uma enorme corrente de cartuchos de balas”.355 A proximidade de

Nazaré da Mata, então a maior cidade da zona da mata norte, da capital

pernambucana, lembra, a exemplo dos relatos de José Lins do Rego sobre as

andanças do cangaceiro pelas várzeas do Paraíba, a facilidade com que Antonio

Silvino se deslocava por ambos os estados em praticamente todas as direções.

Quando chegou para pernoitar na casa do chefe político local (à essa altura

Ginsburg já sabe se valer das relações com chefes políticos tanto para poder

353 Ver também MELLO José Octávio de Arruda. História da Paraíba, p. 156. 354 Os poemas estão em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/jp000012.pdf acesso

12/03/17. 355 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 150.

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entrar nas localidades como também para usufruir de benefícios mais valiosos

como hospedagem e alimentação) tomou conhecimento de que o cangaceiro lhe

andava a procurar, mas não deu muita atenção para o fato, imaginando ter se

livrado dele na estrada. Porém, apenas bastando que se recolhesse na casa do

“chefe político”, eis que o próprio cangaceiro aparece diante dele causando um

ambiente de desolação e devastação na casa. “O chefe político estava pálido e

tremia, e sua mulher, irmã, duas senhoras franzinas, esfregavam as mãos e

choravam muito.”356 A partir desse momento, segundo o missionário, deu-se o

seguinte diálogo entre ambos:

Dirigindo-me para o homem sentia-me forte, disse: “o senhor deseja me ver? Que

quer de mim”? “O senhor me conhece”? Perguntou ele depois de um instante e eu

respondi. “Sim, o senhor é o capitão Antonio Silvino”. “O senhor sabe por que eu vim

aqui?” Ele perguntou e eu disse. “Sim, o senhor está contratado para me matar. “É

verdade”. Ele disse. Orei ao meu Pai celeste enquanto estava diante deste bandido,

pedindo-lhe para auxiliar-me e tomar cuidado da minha esposa e dos filhinhos. Passados

alguns minutos sem ele se mover eu disse: “então por que não leva a efeito o seu intento”?

(...) finalmente ele disse: “Não, eu não quero mata-lo, eu não quero matar um homem

como o senhor. Hoje de manhã quando eu o esperava perto de Sapé, o senhor parou o

animal e falou comigo tão gentil e bondosamente, que me surpreendeu. Disseram que o

senhor era um indivíduo perigoso, que suas doutrinas e ensinamentos eram uma maldição

para o meu povo e que mata-lo seria uma obra de caridade para muitos. Mas o senhor me

falou tão bondosamente que que resolvi saber mais alguma coisa a seu respeito. Estava

presente enquanto o senhor estava pregando, ensinando, orando e cantando e digo ao

senhor que não vou matar um homem que está fazendo uma obra tão boa357.

Ginsburg destaca logo a seguir que a opção de Antonio Silvino pelo

cangaço foi estritamente vingativa, para vingar a morte dos pais, abatidos por

inimigos políticos, e destacando – pormenor significativo – que Antonio Silvino

não era um cangaceiro qualquer, já que vinha de uma família influente e que

tinha posses no estado da Paraíba358. Posteriormente após a sua prisão e

356 Ibidem, p. 153. 357 Ibidem, p. 153 – 154. 358 Ibidem, p. 154.

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julgamento, quando foi sentenciado a trinta anos de prisão a serem cumpridos

na penitenciária do Recife, Silvino se converteu ao protestantismo batista,

mantendo-se vinculado a essa igreja até a sua morte, em Campina Grande, na

Paraíba, em agosto de 1944.

É fácil perceber, a respeito desse relato, que Ginsburg atua como um

canal por meio do qual o cangaceiro Antonio Silvino recebe a comunicação da

nova doutrina e, por meio dela, a sua experiência de conversão e, ao mesmo

tempo, o livramento por conta da preservação miraculosa da vida. No relato o

cangaceiro vê a virtude no missionário que, por seu turno, o descreve como uma

vítima da injustiça dos homens e que por esse motivo se entrega ao crime

embora destacando que seu meio social é prestigioso e que sua bondade para

com os mais pobres é decorrente dessa distinção. Mas o que particulariza esse

relato dos demais – o único paralelo com este é o tiroteio em Barra do

Itabapoana, no interior fluminense, em 1913, do qual também escapa e ao qual

atribui o livramento a causas miraculosas – é precisamente esse teor

inteiramente singular359 e que denotam duas coisas: primeiro, o esforço em

demonstrar o caráter singular e inusitado de sua missão e que os riscos a ela

inerentes decorrem, precisamente, dessa singularidade, ou antes, de sua

legitimação. E, em segundo lugar, conforme já destacado, os interesses do seu

público leitor, oriundo de um ambiente religioso e cujo discurso de legitimação

passa, inevitavelmente, pela idéia do chamamento missionário como corolário

da própria chamada cristã para um novo tempo, uma nova vida360.

A esse respeito, Sofia Boesch Gajano nos lembra que, assim como o

monopólio da transmissão das legendas medievais foi transmitido por um clero

de baixa erudição (não apenas literária), permitindo-lhe adaptar livremente a

narrativa com incrementos de dramaticidade ímpar como perseguições, torturas

359 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 165 – 167. 360 Ginsburg recebia cartas de alunos de escolas dominicais e membros de sociedades batistas e

chegou a publicar uma dessas missivas enviada de uma tal Sociedade de Moças de Americus, Geórgia, na

qual a autora, possivelmente a secretária da entidade escreveu: “meu caro irmão Salomão Ginsburg. Hoje

é nosso dia missionário e temos estudado a seu respeito e seu trabalho e temos orado ao nosso Pai Celeste

para abençoá-lo, guarda-lo e protege-lo de todo o perigo e usá-lo poderosamente em seu serviço”.

GINSBURG Salomão L, op cit, p. 155. A missiva revela tanto a mentalidade do ambiente que acompanhava

e financiava a atividade de Ginsburg no Brasil como também do próprio Ginsburg que ao divulga-la, quer

demonstrar mais uma vez a singularidade do seu ministério já que a mesma teria sido escrita no próprio dia

do seu “encontro” com Antonio Silvino.

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e mesmo eventos sobrenaturais361, muitos dos relatos dos primórdios do

protestantismo no Brasil nos foram legados por indivíduos com uma educação

geral precária ou mesmo despossuídos de qualquer uma, como se dá para

perceber pela imprecisão de relatos, muitos dos quais recolhidos de tradição oral

(conforme vimos em Tarsier). Ginsburg não foge à essa regra. Sua educação

geral foi eclipsada pela ruptura com o meio familiar e sua visão de mundo foi

construída a partir da experiência da missão e depois do meio batista em que

viveu e do qual herdou até mesmo os seus vícios como o landmarquismo. A falta

de precisão não é intencional: sua intenção é, exclusivamente, a de construir

uma imagem da graça divina passando por seu ministério, sob o qual todas as

demais questões da narrativa como o lugar onde ocorreu e, principalmente, que

atores dela participaram, são puramente secundários. A construção narrativa

que ele faz, carregada de lutas e tribulações, só tem por objetivo exponencial,

“tornar maior, mais vibrante e mais heroica a vicissitude do personagem”, como

escreve Sofia Boesch Gajano acerca dos autores das chamadas vidas dos

santos362 e, ao mesmo tempo, legitimar as práticas religiosas e simbólicas do

sistema, sem o que este não tem sentido funcional, como teoriza Bourdieu363.

7.9. Ginsburg em Limoeiro (1909)

O cenário encontrado por Ginsburg em Limoeiro é bastante parecido com

aquele visto em Nazaré da Mata, em 1897, e em Bom Jardim em 1900, isto é,

tratava-se de um município com razoável contingente populacional e servido

pela estrada de ferro (Great Western) que fazia o escoamento de sua produção

de açúcar e algodão364. Limoeiro havia se conservado até aquele momento

indene ao periclitante avanço batista pela zona da mata norte. Uma primeira

361 GAJANO Sofia Boesch, in BERNARDINO Angelo di; FEDALTO Giorgio; SIMONETTI

Manlio (orgs), op cit, p. 908. 362 Ibidem, op cit, p. 908. 363 BOURDIEU Pierre, op cit, p. 69. 364 GINSBURG Salomão, op cit, p. 156.

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tentativa de evangelização batista havia ocorrido ali em 1896, mas naquela

ocasião os dois evangelistas João Borges e Melo Lins foram escorraçados

dali.365 Entzminger que também havia passado algum tempo naquela região

sofreu idêntico vexame, sendo, segundo Ginsburg, amarrado e colocado no trem

que voltava para o Recife com a advertência de que não mais pusesse os pés

ali366. Ginsburg, que estava em vésperas de ser transferido para a Bahia, tomou

a decisão de estabelecer uma igreja batista na região e para isso pediu o auxílio

do chefe de polícia do estado descrito como um “amigo pessoal”367 que já o

ajudara antes em outras situações. O resultado foi o envio de numerosa força

policial para a região, tendo Ginsburg se encontrado com o oficial responsável

pelo comando da mesma na localidade de Ilheitas (ou Ilhetas) duas estações

antes de Limoeiro e que já havia sido cenário de demonstrações de violência

contra protestantes em 1901368. Ali, pelo que se verificou depois, um grupo de

indivíduos já se preparava para tomar o trem e vilipendiar o missionário369.

Graças ao reforço policial, Ginsburg conseguiu realizar as suas conferências no

teatro da cidade e com poucos meses uma igreja batista estava organizada

naquele município370.

Dois incidentes ocorridos no período em que Ginsburg esteve em

Limoeiro se listam dentro daquilo que falamos a pouco acerca da função do

hagiógrafo como instrumento de propaganda religiosa. O primeiro é o fato de

que um dos oficiais que ficara encarregado de cuidar da segurança de Ginsburg

durante a viagem de trem a Limoeiro era, precisamente, o indivíduo que anos

antes tentara mata-lo em Nazaré da Mata e não logrou êxito em virtude da

embriaguez. “O acontecimento mais surpreendente de tudo isto foi que o

sargento que estava destacado para vigiar-me noite e dia era um membro da

igreja batista de Nazaré que alguns anos antes, enquanto eu pregava ao ar livre

naquela cidade, tinha sido assalariado para me matar” Depois do incidente ele

se converteu e contou a experiência naquela igreja.371. O outro, foi a tentativa de

assassinato que o padre da paróquia tentou levar a efeito, primeiro por meio de

365 TARSIER Pedro, op cit, I, p. 176. 366 GINSBURG Salomão, op cit, p. 156. 367 Ibidem, p. 157. 368 TARSIER Pedro, op cit, I, p. 193. 369 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 158. 370 Ibidem, p. 159 – 161. 371 Ibidem, p. 158 – 159.

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criminosos assalariados e depois com as próprias mãos. Ginsburg tece uma

longa descompostura no religioso no qual se declara pronto a “dar a vida” pela

sua missão e que se viesse a morrer, outros “milhões de batistas” no Brasil e nos

EUA continuariam sua obra de onde ele parasse e também “dariam a vida, se

necessário, pelo Reino de Deus e por sua glória”372. Chama atenção como

Ginsburg consegue reconstituir de memória um discurso dessa natureza ao

mesmo tempo que omite, por esquecimento ou conveniência, os nomes de

personagens importantes da história política do Brasil com quem conviveu de

algum modo dos anos em que andou pelo país. De igual modo, revela ele mais

uma vez a função do seu relato que é o de mostrar o caráter do hagiógrafo como

literatura de edificação e exortação, pois, com efeito, ele determinou a vinda para

Limoeiro atendendo ao que entendeu ser o chamado de Deus e estava feliz por

dar a própria vida ao seu reino. No hagiógrafo aquele que se sente chamado

cumpre sua comissão porque este é o imperativo. Nada pode impedi-lo ou

demovê-lo de seu cumprimento.

Outro pormenor importante é a semelhança desse relato com os de

Gunnar Vingreen recolhidos dos seus primeiros anos de atividade missionária

nos igarapés da Amazônia. Ali, a exemplo do que se sucede com Ginsburg, as

forças contrárias ameaçam de morte os missionários, mas no final, acabam

sendo postas em debandada porque a “mão de Deus” caiu sobre todos eles373.

É o que se sucede no relato de Limoeiro onde, depois de tentar sem sucesso

impedir os batistas de abrirem uma congregação na cidade, o padre local é

expulso dali por ter, segundo Ginsburg, intentado sexualmente contra uma moça

da paróquia. Como consequência, o que ele me tentara fazer ceifou no dia em

que tomara o trem, porque toda a população lançou sobre ele os mais tristes

insultos”. É, novamente, a “vingança” do missionário como no episódio de São

Fidélis, no qual Ginsburg procura deixar claro que o fim daqueles que o

perseguem é sempre o opróbrio e que nisso se pode ver a confirmação do seu

chamamento. No ano seguinte, T.B. Ray, o secretário da Junta de Missões de

372 Ibidem p. 159. 373 VINGREEN Ivar, O Diário do Pioneiro Gunnar Vingreen, p. 57.

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Richmond e sua esposa visitaram a cidade onde lhes foi oferecido um jantar

pelos “melhores cidadãos” da localidade.374

Após deixar Pernambuco em 1909 Ginsburg atuou por algum tempo como

missionário no vale amazônico onde auxiliou o missionário batista Eurico Nelson

a quem já conhecia desde que presidiu o concílio que o recebeu como

missionário em 1897, depois de aprovar a sua “ortodoxia”375. Depois retornou à

Bahia onde, pela segunda vez, presidiu PIB de Salvador, voltando dali para o

Rio de Janeiro onde residiu e trabalhou na Casa Publicadora Batista até 1925

salvo o período em que esteve nos EUA, em 1913, em gozo de férias, mas

também para divulgar as atividades missionárias batistas no país, sendo por isso

aquinhoado com uma ajuda de R$ 30 mil dólares que recebeu da Convenção

Batista do Arkansas e que usou mais tarde para a compra do terreno onde depois

foi instalado o Colégio Batista do Recife. Em 1925 muda-se para São Paulo junto

com a família a fim de tomar parte na abertura do trabalho batista em Goiás,

enquanto sua esposa e filhas foram trabalhar como professoras no Colégio

Batista Brasileiro de Perdizes e foi na capital paulista que o missionário veio a

falecer na madrugada de 01 de abril de 1927 com sessenta anos incompletos376.

Depois de mais de vinte anos de lutas e perseguições o protestantismo batista

alcançava seu lugar dentre os “melhores cidadãos” da sociedade brasileira, a

exemplo dos congregacionalistas, dos presbiterianos e dos metodistas. Não era

apenas mais um grupo religioso reconhecido dentro da sociedade, mas também

fazia parte dela, desfrutando do bom prestígio e relações entre os seus extratos

sociais mais elevados. Ginsburg desse modo, foi um dos poucos missionários a

permanecer por um longo período no país, a exemplo Tucker, Kennedy,

Blackford e Schneider, e também, a exemplo destes, entreteve relações com

grupos sociais dos mais influentes a fim de conseguir assegurar-se de condições

para o empreendimento de suas atividades missionárias pelo país afora.

374 GINSBURG Salomão, op cit, p. 160. 375 Ibidem, op cit, p. 128. Ver também PEREIRA José Reis. Eurico Nelson, o Apóstolo da

Amazônia, p. 39 – 40. 376 Sobre os demais dados da vida de Salomão Ginsburg não contemplados nesse estudo, ver

MESQUITA Antonio Neves de op cit, II, p. 114, 122 – 125; e 152.

http://www.museubatistadosertao.org/past_salomaoLuis.html acesso 03 de agosto de 2016. Ver também

CRABTREE A R, ob cit, I, p. 110 – 112, 126 – 128.

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CAPÍTULO II

Situação do meio eclesial protestante no Brasil e sua recepção no

âmbito da sociedade brasileira

1. Classificação do Protestantismo Brasileiro

A rica diversidade do Protestantismo Brasileiro possibilitou a formulação

de classificações propostas por estudiosos do tema como Antonio Gouvêia de

Mendonça377 e mais recentemente, por Lauri Emílio Wirth378. Para os objetivos

desse estudo, tal classificação é importante a fim de situarmos com o máximo

de precisão o tipo de protestantismo que está sendo enfocado na presente

pesquisa.

1.1. Protestantismo de Imigração

De modo geral, tanto Gouvêia de Mendonça como Lauri Emílio Wirth

concordam em dividir o Protestantismo Brasileiro em dois grandes grupos

chamados de Protestantismo de Imigração e de Protestantismo de Missão. O

primeiro grupo encontra sua expressão mais acabada na IECLB, embora seja

possível encontrar representantes desse grupo também entre as comunidades

377 MENDONÇA Antonio Gouvêia de. FILHO Prócoro Velasquez, Introdução ao Protestantismo

no Brasil, p. 27 – 30. 378 WIRTH Lauri Emílio: “Protestantismos Latino-Americanos entre o Imaginário Eurocêntrico e

as Culturas Locais” in LEONEL João (org.) Novas Perspectivas sobre o Protestantismo Brasileiro, I, p. 34

– 46. Ver também o verbete de GOUVEIA Antonio Gouvêia de. “Protestantismo no Brasil” in

DICIONÁRIO BRASILEIRO DE TEOLOGIA, p. 824.

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batistas de letões e estonianos379. Nessa forma de protestantismo, a

evangelização fica vinculada à idéia de preservação da cultura (no caso luterano,

da cultura e da tradição alemã), e na verdade acaba sendo diluída no meio do

discurso da “preservação da raça” vindo daí a rejeição dos ascendentes mais

significativos da cultura local a partir do isolamento dentro do seu próprio

ambiente cultural380. Em suma, no Protestantismo de Imigração, o que se busca

é a preservação, por meio da pertença religiosa, da identidade cultural e étnica

que particulariza os povos da diáspora381.

1.2. Protestantismo de Missão ou de Conversão

O chamado Protestantismo de Missão ou de Conversão é formado por

aquele grupo de igrejas que tiveram sua inserção na sociedade brasileira

vinculada a empreendimentos missionários de caráter denominacional. Aqui

também a diversidade de grupos impede uma classificação uniforme, sendo

possível falar em pelo menos quatro tipos de igrejas que se introduziram no

Brasil por meio do proselitismo missionário: as que se originaram de

empreendimentos particulares (congregacionalistas, sob Robert Kalley), as que

surgiram de trabalho missionário institucional com viés proselitista

(presbiterianos, sob Ashbel Simonton) e as que se organizaram também por

meio de missões confessionais, porém, atuando inicialmente nas comunidades

de imigrantes sulistas norte-americanos refugiadas no Brasil por conta da Guerra

Civil (1861 – 1865), e apenas mais tarde se voltando para a ação missionária

entre os nacionais, caso dos metodistas e dos batistas.

Existe um ponto de aproximação entre os protestantismos de Imigração e

de Missão que é o que diz respeito ao discurso de viés eurocêntrico enfocado

ora na idéia da “germanidade”, ora na da superioridade cultural do mundo anglo-

379 PEREIRA José Reis, História dos Batistas no Brasil, op cit, p. 241 – 249. 380 WIRTH Lauri Emílio in LEONEL João (org.), op cit, p. 36 – 37. 381 DREHER Martin N, Igreja e Germanidade, p. 78.

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saxão personificado, principalmente, pelos EUA. Nos dois casos temos a

negação da cultura local, no primeiro exemplo por meio da vinculação cultural e

religiosa aos ambientes ancestrais, mas sem pretensão evangelística. No

segundo, a mesma ênfase, mas com viés proselitista e idêntica rejeição às

particularidades sociais e culturais nativas. É, portanto, o mesmo discurso de

viés eurocêntrico, só que nesse caso não ignorando ou se distanciando da

cultura e da sociedade recebedora de tais influências, mas tentando, de algum

modo, intervir dentro dela. É a negação das especificidades culturais locais em

detrimento do discurso eurocêntrico382, um discurso que une ambos os

protestantismos.

Conceituando os dois campos do Protestantismo junto com o

Pentecostalismo e o Catolicismo, a partir da sua relação com a cultura brasileira,

Gouvêia de Mendonça propôs o seguinte esquema para explicar as relações

desses quatro grupos com o meio social e cultural formado em torno deles:

Catolicismo: ajustamento à cultura brasileira (estabilidade relativa).

Pentecostalismo: ajustamento à cultura brasileira (estabilidade relativa).

Protestantismo de Imigração: ligado com a cultura religiosa europeia mais estável

e tendência crescente para ajustamento à cultura brasileira.

Protestantismo de Missão: ligação com a cultura religiosa americana, menos

estável e em constante ebulição, com tendência para manter confronto com a cultura

brasileira.383

Conclui Gouvêia de Mendonça que aqueles grupos religiosos que

procuram se ajustar a “planos culturais mais estáveis” como o Catolicismo e o

Pentecostalismo, tendem a crescer, mesmo que vegetativamente, ao passo que

aqueles elementos que se encontram “em constante ebulição”, como no caso do

Protestantismo de Missão, “tendem a estagnar ou diminuir.”384

382 WIRTH Lauri Emílio in LEONEL João (org.) op cit, p. 45. 383 MENDONÇA Antonio Gouvêia de. FILHO Prócoro Velasquez, op cit, p. 25. 384 Ibidem, p. 24. Os dados do censo de 2010 que apontam estagnação e declínio das igrejas

protestantes “históricas” e a estabilização das comunidades pentecostais parecem confirmar a tese que

Gouvêia de Mendonça lançou nos anos 80. Ver a esse respeito os artigos de CAMPOS Leonildo Silveira,

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2. O Protestantismo de Missão no Brasil

Ginsburg encontrou uma comunidade protestante relativamente

numerosa, heterogênea e bastante dispersa no Brasil onde desembarcou nos

primeiros dias da República. Dentre as igrejas de missão organizadas ainda no

Império, os congregacionalistas e os presbiterianos estavam na dianteira,

achando-se presentes no Centro-Sul e no Nordeste, contando já nessa época

com considerável quadro de obreiros nacionais.

2.1. Congregacionalistas

Os congregacionalistas devem sua fundação e organização no Brasil aos

esforços particulares do médico escocês Robert Kalley (1809 – 1888). Por conta

de suas origens e sua primitiva filiação à Igreja Presbiteriana da Escócia385,

Kalley trouxe para a nova grei suas influências calvinistas, se bem que bastante

moderadas, mas assegurou o predomínio da forma de governo congregacional

com o qual se simpatizava.386 Começou as suas atividades inicialmente em

Petrópolis (1855)387, passando depois para o Rio onde fundou a IEF (1858), só

depois indo para o Nordeste onde estabeleceu a IEP (1873). Kalley também é

um pioneiro na hinódia protestante. A coleção de Salmos e Hinos que ele editou

junto com sua esposa Sarah Pouthon Kalley (1820 – 1907) em 1861, além de

“Evangélicos de Missão’ em declínio no Brasil”; e de JÚNIOR Paulo Gracino; MARIZ Cecília L. ‘As

Igrejas Pentecostais no censo de 2010’. In: TEIXEIRA Faustino; MENEZES Renata. Religiões em

Movimento. O censo de 2010, p. 127 – 160 e 161 – 174. 385 FORSYTH Willian B, op cit, p. 15. 386 Ibidem, op cit, p. 15 – 22. 387 Ibidem, p. 128 – 131.

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seu pioneirismo, foi amplamente usada no culto protestante de quase todas as

denominações ao longo de várias décadas388.

Mas a maior conquista de Kalley no campo missionário, aquela que de

fato possibilitaria a expansão da obra protestante em terras brasileiras, foi a de

ter logrado, em 1859, o parecer favorável dos juristas do Império acerca de uma

série de questões que formulou com vistas a se respaldar juridicamente acerca

de sua atividade missionária no Brasil contra eventuais perseguições religiosas

assegurando-se assim, as bases jurídicas da propaganda religiosa protestante

no país ainda na vigência do Império e do Padroado. 389

2.2. Presbiterianos

Os presbiterianos, guardiões da teologia calvinista (se bem que numa

forma mais atenuada, ao menos na pregação de Simonton, que reflete as

ênfases evangelísticas do ambiente da fronteira estadunidense390), do governo

do presbitério (os “senadores da igreja” de que fala Heinrich Bullinger na

Segunda Confissão Helvética, de 1566, 18) bem como do batismo infantil,

rejeitado por Kalley, também são devedores dos esforços de um pioneiro, o

reverendo Ashbel Green Simonton (1833 – 1867), chegado ao país em 1859391.

Como Kalley, Simonton inicia suas operações pelo Centro-Sul, inaugurando no

Rio a primeira igreja presbiteriana (1862) e organizando ali o primeiro sínodo

dessa denominação (1865)392, abrangendo a igreja da corte, a de São Paulo e a

de Brotas, no interior paulista, organizada por um ex padre transformado em

prosélito e depois no primeiro pastor protestante brasileiro, José Manoel da

Conceição (1822 – 1873), verdadeiro pioneiro dessa fase áurea do

388 BRAGA Henriqueta Rosa Fernandes, op cit, p. 111. 389 ROCHA João Gomes da, op cit, I, p. 95 – 96. 390 SERMÕES ESCOLHIDOS DE SIMONTON, p. 9. Ver também HAHN Carl Joseph. História

do Culto Protestante no Brasil, p. 172 – 187. 391 Sobre os primórdios de Simonton no Brasil e informações biográficas ver FERREIRA Júlio

Andrade, op cit, I, p. 9 – 30. 392 FERREIRA Júlio Andrade, op cit, I, p. 41 – 43.

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presbiterianismo nacional, embora lembrando que a pregação missionária de

Conceição estava mais próxima do misticismo franciscano do que do que do

protestantismo, como advoga Léonard393.

A Igreja Presbiteriana também se distinguia dos congregacionalistas pelo

seu caráter mais institucional (no sentido weberiano) já que tanto Simonton

quanto os missionários que vieram depois, foram enviados por comitês de

missões da denominação, o de Nova York,394 encarregado da Missão na corte e

nas províncias do Sul, notadamente em São Paulo, e o de Nashville, formado

como decorrência da organização da Igreja Presbiteriana do Sul, organizada,

como nos casos das igrejas batista e metodista do Sul, por conta da questão da

escravidão, agravada pelo desencadeamento da Guerra Civil395, que embora

concentrado em Campinas, no interior paulista396, tinha foco em Minas Gerais e

nas províncias do Norte (para onde Alexander Blackford, Francis Schneider e

John Rockwell Smith são enviados para organizar as igrejas presbiterianas de

Salvador, de Cachoeira, no Recôncavo baiano, e do Recife, respectivamente,

em 1872,1875 e 1878)397. Nisso se nota um padrão que caracteriza a ação das

igrejas congregacional e presbiteriana: início da obra no Sudeste, mais

particularmente no Rio, e posterior expansão pelas províncias próximas para só

então subirem para o Nordeste, o que sem dúvida é reflexo do momento vivido

pelo país com o deslocamento do eixo econômico do Nordeste para o Centro-

Sul, provocado pela crise da economia canavieira e o advento do café como

produto principal de exportação398, fenômeno ainda mais acentuado pelo fato de

que a capital do Império também se encontra nessa região, próxima das zonas

cafeicultoras. A escolha do Recife como base de operações, por parte de

congregacionalistas e presbiterianos, evidencia, contudo, a importância

econômica, social e cultural da capital pernambucana não só – ainda – do ponto

de vista nacional, mas, sobretudo, regional, o que justificou a decisão de ambas

as igrejas de abrir pontos de pregação naquela cidade.

393 LÉONARD Émile G, op cit, p. 72 – 76. 394 FERREIRA Júlio Andrade, op cit, I, p 15 e 79. 395 Ibidem, op cit, I, p. 76 – 78. 396 Ibidem, I, p. 77 – 78. 397 LESSA Vicente Themudo, op cit, p. 75 – 77. 398 FURTADO Celso. Formação Econômica do Brasil, p. 166 – 171.

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2.3. Metodistas

Os metodistas, terceiro grupo por ordem de chegada a se instalar no

Brasil, se organizaram no país a partir da imigração de refugiados do Sul dos

EUA trazidos no rastro da derrota confederada na Guerra Civil Americana,

instalando-se na província de São Paulo, mais precisamente em Santa Bárbara

do Oeste, onde é organizada a primeira igreja dessa denominação (1867)399. É

bem verdade que antes desse movimento imigratório outros metodistas já

haviam passado por aqui como S. Broadbent400 (1816), Fountain Pitts401 e Justus

Spauding (1835)402 e Daniel P. Kidder (1839 – 1840)403 sendo que este último

descreveu com detalhes o país nas Reminiscências de viagens e permanência

no Brasil, publicado em 1845, livro que irá inspirar o Dr. Kalley a se decidir por

trabalhar na evangelização do país404. Porém, tais visitas não foram mais do que

expedições de observação, com a importante exceção de Kidder, e não

permitiram a fundação de igrejas de modo que somente pelo processo de

imigração é que se constituirão as bases da obra metodista no Brasil405 assistido

por um ministro regular, embora, ainda não um missionário, Junius Newman406

(1819 – 1895) que iniciará a organização regular desse ministério entre os

colonos sulistas.407

O metodismo se particulariza do congregacionalismo e do

presbiterianismo por conta do seu governo episcopal, herdado do pioneiro John

399 BUYERS Paul E. Manual para os Membros da Egreja Methodista, p. 55. Ver também REILY

Duncan Alexander, op cit, p. 107. 400 REILY Duncan Alexander, op cit, p. 51 – 53. 401 ROCHA Isnard, op cit, p. 23 – 25. 402 Ibidem, p. 26 – 28. 403 Ibidem, p. 29 – 32. 404 ROCHA João Gomes da, op cit, I, p. 14. 405 Sobre a imigração confederada para o Brasil ver VIEIRA David Gueiros, p. 215 – 216. Ver

também JONES Judith Mac Knight. Soldado Descansa!, p. 57 – 85, 201 e 259. Sobre a introdução do-

Metodismo em Piracicaba ver LOIOLA José Roberto Alves. Protestantismo, Escravidão e os Negros no

Brasil, p. 130 – 134. 406 ROCHA Isnard, op cit, p. 33 – 35. 407 Ibidem, op cit, p. 34. Ver também BUYERS Paul E, op cit, p. 55.

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Wesley quando este organizou as sociedades metodistas dos EUA (1784)408 e

também pela sua teologia arminiana409, distinta do calvinismo dos outros grupos,

embora muito dependente das leituras do próprio Wesley410. Mas a maior

diferenciação está na estratégia de evangelização adotada pelos metodistas, ou

pelo menos pela variante sulista que surgiu do cisma de 1844 que dividiu a Igreja

Metodista dos EUA por conta da questão da escravidão, a IMES, já que a Igreja

Metodista Episcopal (estados do Norte dos EUA), concentrou-se, em tese, na

região Norte do país, e dizemos em tese, porque, de fato, o missionário a ela

ligado, o reverendo Justus Nelson (1850 – 1925)411 embora nomeado desde

1880 por um bispo e uma conferência regular para atuar no Pará, exerceu seu

ministério de forma praticamente autônoma na região, sem vínculos efetivos com

sua denominação412. Já a IMES centralizou suas operações no Centro-Sul a

partir de dois núcleos iniciais, o Rio de Janeiro, onde o missionário John James

Ramson (1854 – 1934), enviado para iniciar o trabalho da denominação entre os

nacionais, inaugurou a primeira igreja daquele ministério, em 1878413, e

Piracicaba, no interior paulista, onde o esforço educacional teve grande

destaque414. O envio de missionários por juntas de missões com o objetivo de

organizarem a igreja no país é um detalhe que, do ponto de vista institucional,

aproxima o Metodismo do Presbiterianismo.

O resultado dessas estratégias foi um crescimento desproporcional do

protestantismo brasileiro com algumas igrejas espalhadas por grande parte do

território nacional e outras situadas em zonas específicas ou mesmo em alguns

estados. Em uma publicação do começo dos anos 20 a geografia desses cultos

estava distribuída da seguinte maneira: os presbiterianos estavam presentes em

todos os estados do país, com exceção do Rio Grande do Sul, onde tinham

“cedido” o campo para a Igreja Episcopal415. Os congregacionalistas tinham

igrejas localizadas no Rio de Janeiro (na cidade e no estado), São Paulo, Paraná,

408 LELIÉVRE Mateo. João Wesley, sua vida e obra, p. 309 – 318. 409 Ver nota 154. 410 Ibidem, ob cit, p. 249 – 264. 411 ROCHA Isnard, op cit, p. 40 – 43. 412 Ibidem, op cit, p. 40 – 41. Ver também REILY Duncan Alexander, op cit p. 198 – 199. 413 ROCHA Isnard, op cit, p. 36 – 39. 414 REILY Duncan Alexander, op cit, p. 109. 415 ALMANACH EVANGÉLICO BRASILEIRO, p. 61.

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Minas Gerais, Pernambuco e Paraíba416. Finalmente os metodistas se faziam

representar no estado e na cidade do Rio, São Paulo, Rio Grande do Sul, Espírito

Santo e Minas Gerais417. Importante é também destacar o papel da cidade do

Rio de Janeiro que funcionou nesse período como “centro de irradiação” de

quase todas as denominações protestantes para o resto do país418.

2.4. Batistas

A exemplo dos presbiterianos e dos metodistas, os batistas brasileiros

estão eclesial e teologicamente vinculados ao ambiente religioso norte-

americano, ou mais precisamente, do Sul daquele país, região de onde vem a

imensa maioria dos missionários trazidos pela Junta de Missões de Richmond,

instituição criada pouco depois da organização da Convenção Batista do Sul, em

Augusta, Geórgia, em 1845, no rastro da crise que culminou com a divisão dos

batistas estadunidenses, decorrente do debate em torno da questão da

escravidão419. Outro ponto de aproximação dos batistas com seus confrades

presbiterianos e os congregacionalistas, é o que diz respeito a incorporação da

teologia calvinista dos primeiros e ao sistema de governo congregacional das

igrejas fundadas pelo Dr. Kalley.

No caso brasileiro, a Igreja Batista surge em circunstâncias similares às

dos metodistas. Após uma tentativa malsucedida no final da década de 1850

com o missionário Thomas Bowen (1814 – 1875)420, os batistas reapareceram

dez anos depois por meio de incipientes fluxos imigratórios de ex combatentes

confederados em direção às zonas de café da província de São Paulo, acabando

os agregados dessa denominação por se fixar também nessa área promissora.

Naquele momento, que á a da constituição do primeiro templo batista no Brasil

416 Ibidem, op cit, p. 66. 417 Ibidem, op cit, p. 68. 418 AZEVEDO Fernando, op cit, p. 265. 419 PEREIRA José Reis, História dos Batistas no Brasil, p. 67. 420 Ibidem, ob cit, p. 68. Ver também CRABTRE A.R, op cit, I, p 58 – 59.

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em Santa Bárbara do Oeste (1871) a ação missionária ainda visa atender

exclusivamente os colonos locais421. É só nos derradeiros anos do Império que

a Junta de Richmond irá enviar um casal de missionários para iniciar a missão

batista regular no Brasil, Willian e Anne Bagby, desembarcados em 1881 e

seguidos um ano depois por outro casal, Zachary e Kate Taylor.422 No ano

seguinte eles vão para a Bahia onde iniciam de fato suas atividades e aqui se

constitui uma ruptura em relação a estratégia das demais igrejas que

começavam a evangelização geralmente pelo Rio de Janeiro, então capital do

país, ou pela província de São Paulo, a que se desenvolvia de forma mais célere.

Ao contrário, os batistas, irão primeiro para a Bahia (1882)423 passando depois

para o Rio (1884)424, mas sem descuidar do Nordeste onde organizam, ainda no

Império, as igrejas de Maceió (1885)425 e do Recife (1886),426

É bastante significativo que os batistas tenham dinamizado os primeiros

esforços missionários a partir do Nordeste embora uma possibilidade de

explicação para essa escolha possa ser auferida do próprio historiador da

denominação, o Dr. Crabtree, que descreve Salvador como “a capital

eclesiástica do país” e “a cidade mais fanática em todo o Império”,427 o que não

sugere, de modo algum, a idéia de mera casualidade na escolha de Salvador

como ponto de partida da missão batista.

Duas características podem ser identificadas na práxis social dos batistas

nessa época: a primeira o seu caráter apolítico. Conforme João Dias de Araújo,

quando a Junta de Missões da Convenção Batista do Sul examinou as

possibilidades de um trabalho missionário batista no Brasil, o fez nos seguintes

termos: “O Brasil, como os EUA tem escravos e os missionários enviados pela

Convenção não podiam ser constrangidos a combater a escravidão e, assim,

envolver-se na política do país”. Ainda de acordo com Araújo, “a doutrina da

separação radical entre a Igreja e o Estado foi levada ao extremo a ponto dos

missionários batistas acharem que era um constrangimento para o cristão

421 JONES Judith Mack Knight, op cit, p. 263. Ver também PEREIRA José Reis, História dos

Batistas no Brasil, op cit, p. 68 – 69. 422 CRABTREE A.R, op cit, I, p. 65 – 69. 423 Ibidem, p. 74 – 75. 424 Idem, p. 93 – 95. 425 Idem, p. 85. 426 Ver notas 253 e 254. 427 Idem, p. 74.

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desafiar a ordem política no combate a um mal social como a escravatura”.428 A

outra pode ser percebida em obras como O Princípio do Individualismo (1933),

de Alva Bee Langston e A Celebração do Indivíduo (2004), de Israel Belo de

Azevedo, isto é, o papel da individualidade como valor ético universal, pois,

sendo a salvação um dado “pessoal, intransferível e incorporatizível”, como diz

Israel Belo de Azevedo, o indivíduo como expressão central da fé e da

experiência cristã se sobrepõe ao coletivo, dado que a experiência de salvação

só pode se dar no encontro entre a criação e o seu criador.429

Cronologicamente é possível identificar quatro fases no trabalho

missionário batista no Brasil. A primeira, iniciada ainda no Império, é a da

fundação das primeiras igrejas voltadas para os prosélitos nacionais, isto é, as

PIB de Salvador, do Rio, de Maceió e do Recife. A segunda etapa, que é a que

está mais próxima dos propósitos deste estudo, contempla o período que vai da

proclamação da República até a organização da CBB (1907), pois é nesse

período que se funda a PIB de Niterói (1892) que será o ponto de partida para a

fundação de outras comunidades batistas, principalmente na região norte

fluminense, bem como da fundação e organização da PIB paulistana (1899). É

também nesse período que se organizam as primeiras associações batistas

estaduais como a Associação Evangélica Denominada Batista, no Rio, em 1894,

a União Batista Leão do Norte em Pernambuco, em 1901, e a União Batista

Paulistana, em 1904430, ao mesmo tempo em que começam a se formar os

campos missionários que logo se transformarão nas futuras convenções

estaduais. A fundação da CBB encerra essa fase quando a igreja batista ganha

status jurídico e estrutura organizacional.

A criação da CBB representa, portanto, o momento de institucionalização

e automação organizacional do movimento batista brasileiro, mas não ainda da

sua autonomia efetiva, haja vista que a dependência da Junta Missionária de

Richmond, responsável pelo envio de missionários para o campo brasileiro e

pela superintendência dos recursos destinados ao país, se fará sentir ainda por

428 ARAUJO João Dias de, op cit, p. 27. 429 ROSA Edvaldo Fernandes. Pastores Novos em Igreja Antiga. Dissertação de Mestrado em

Ciência da Religião, p. 97. 430 Sobre a “Associação Evangélica Denominada Batista”, ver CRABTREE A.R, op cit, I, p. 102

– 105. Sobre a “União Batista Leão do Norte” ver MEIN David, op cit, p. 4, e sobre a “União Batista

Paulistana”, http://cbesp.org.br/index.php/sobre-nos/pequeno-historico acesso 26 de setembro de 2016.

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muitas décadas431, o que será a causa de enormes ressentimentos, sobretudo

nas regiões mais dependentes da Junta como o Nordeste, ressentimento que

será a raiz da Questão Radical que dividiu o meio batista brasileiro entre os anos

20 e 30. A Questão Radical é também o ponto de fechamento dessa terceira fase

que se estende de 1907 até 1935 quando um novo acordo de cooperação entre

a Junta de Missões de Richmond e as igrejas nacionais é fechado com vistas à

permitir a participação de nacionais na gestão dos recursos advindos dos EUA,

o que, na prática, encerra a crise, embora não suas consequências que ainda se

farão sentir por muitas décadas e terão desdobramentos imediatos no trabalho

missionário e evangelístico dos batistas em território brasileiro432. Também não

podemos esquecer que a criação da CBB não eclipsou o fluxo de missionários

norte-americanos para o Brasil, o que significa, do mesmo modo, um

engessamento da sua autonomia interna, ainda mais se nos lembrarmos de que

na época da criação da Convenção, congregacionalistas e presbiterianos já

tinham amplo quadro de ministros nacionais administrando as igrejas locais433.

Finalmente a quarta fase, isto é, o período posterior a 1935, assiste o movimento

neoradical, um desdobramento da crise radical, mais uma vez concentrado no

Recife (1939 – 1941) e a disseminação da obra batista pelo interior do país,

embora a essa altura tal esforço já comece a ser eclipsado pelo movimento

pentecostal, ora por meio de suas próprias denominações – Congregação Cristã

no Brasil e ADs – ora de movimentos carismáticos localizados dentro da própria

denominação e que surgem entre os anos 50 e 60.

Na época que Salomão Ginsburg ingressou na igreja batista, a

denominação se achava organizada da seguinte forma: o chamado “campo

pernambucano” com sede no Recife, respondia pelas igrejas que iam sendo

abertas na capital, na zona de mata e também no estado de Alagoas. O “campo

431 Ver os “Anais, Relatórios e Pareceres da Quadragésima Assembleia Anual da Convenção

Batista Brasileira, 1957, proposições de 1 a 6”. REILY Duncan Alexander, op cit, p. 188 – 190. Ainda nos

anos 90 a redução da ajuda financeira dos “irmãos norte-americanos” foi sentida, juntamente com os efeitos

da crise econômica, especialmente no setor educacional, particularmente na manutenção dos seminários.

Ver PEREIRA Clóvis Monteiro, “Atualização 1982 – 2001” in PEREIRA José Reis, História dos Batistas

no Brasil, op cit, p. 439. 432 De fato, conforme José Reis Pereira, enquanto no período de 1911 – 1920 a Igreja Batista havia

experimentado um crescimento da ordem de 102%, no período de 1921 – 1930, isto é, na fase mais intensa

do movimento radical, esse percentual baixou para 70,6% e no período de 1931 – 1940 caiu ainda mais,

para 58%. Op cit, p. 172. 433 ALMANACH EVANGÉLICO BRASILEIRO, p. 60. Sobre os ministros congregacionalistas,

ibidem, p. 62.

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baiano”, o pioneiro de todos, abrangia as igrejas da capital do estado e também

do interior (Jequié, Vitória da Conquista, Canavieiras), além do estado do Espírito

Santo. O “campo federal” era a cidade do Rio de Janeiro de onde também

partiram missionários para atuar no Espírito Santo, entre os quais o próprio

Ginsburg que ali atuou por algum tempo, em 1892434, bem como no estado do

Rio, a partir de Niterói. De época posterior são o “campo paulistano”, organizado

a partir da fundação da PIB na capital e sem qualquer relação com a igreja batista

fundada pelos colonos sulistas norte-americanos em Santa Bárbara do Oeste; O

“campo piauiense”, baseado no município de Corrente, e o do Vale do

Amazonas, reunindo as igrejas do Amazonas e Pará, eram zonas insulares por

demais afastadas dos grandes centros do litoral e cresciam quase que

exclusivamente por meio de iniciativas particulares como as do missionário e

colportor Eurico Nelson435 em Belém e da família Nogueira Paranaguá no sertão

piauiense436.

3. O campo eclesial batista: questões doutrinárias

Embora sendo uma denominação protestante que possui muitos pontos

em comum com as demais, também se pode dizer que dentro do meio eclesial

batista existem especificidades que só podem ser compreendidas a partir do

contato com sua história, em particular no que tange ao seu desenvolvimento

teológico. Algumas dessas questões serão levantadas aqui, em parte porque

elas caracterizam o fazer batista e em parte também porque algumas delas serão

reproduzidas pelo próprio Ginsburg em seu ministério no Brasil, evidenciando a

sua total absorção dos “princípios batistas” por influência dos missionários com

quem conviveu e que, de certo modo, concluíram no Brasil a formação teológica

que ele recebeu na Inglaterra, além do que, também revelam muita coisa do

434 CRABTREE A.R, op cit I, p. 249. 435 PEREIRA José Reis, Eurico Nelson, Apóstolo da Amazônia, p. 26 – 46. 436 CRABTREE A.R, op cit, I, p. 209 – 212.

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próprio fazer missionário que norteou a ação dos batistas pioneiros em terras

brasileiras.

3.1. Evangelismo

Uma característica evidente do trabalho batista é o zelo extremoso pelo

evangelismo. “Contrariamente ás denominações nas quais o homem é simples

acidente na economia geral da Igreja”, escreve Léonard, “o indivíduo é a base

das comunidades batistas antes de serem congregacionais. Elas procuram o

indivíduo para salvá-lo, fazem dele um propagandista de sua mensagem de

salvação e lhe concedem direitos ao seu próprio governo que não é anulado por

nenhum organismo superior”.437 Léonard ainda lembra o caso de um missionário

batista que quando perguntado sobre quantos evangelistas havia em seu campo

respondeu: “tantos quanto membros”.438 Também Ginsburg corrobora essa

afirmação. “Uma das coisas mais animadoras no nosso trabalho missionário é

ver a transformação que se dá na juventude que é enviada das terras brasileiras

aos nossos colégios e seminários. Eles aprendem rápida e prontamente e depois

de findar os cursos se tornam poderes para o bem na grande causa de edificar

o Reino de Deus no Brasil439”.

Carl Joseph Hahn também destaca o fato de que o congregacionalismo

possibilitou uma rápida expansão das igrejas batistas pelo país por possibilitar a

qualquer grupo de crentes reunidos escolher livremente o seu pastor, ainda que

nesse processo surja sempre o perigo de cizânias. Porém, mesmo assim, “cada

estilhaço de grupo permanece uma igreja batista e, com a mudança de liderança

e o passar do tempo, as querelas são frequentemente esquecidas e curadas”.440

A Escola Dominical também exerce forte atuação nesse proselitismo direto.

437 LÉONARD Émile G, op cit, p. 300. 438 Ibidem, p. 300. 439 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 243. 440 HAHN Carl Joseph, op cit, p. 372.

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Como escreve a professora Cathryn Smith, a EBD “define a missão entregue por

Jesus à Igreja (...) Evangelizar, Batizar e Doutrinar, ou seja, fazer discípulos...”441

Isso, porém, não se fez sem que surgissem dificuldades, como, por

exemplo, a alocação de pastores para os novos campos abertos pela atividade

dos missionários e dos evangelistas. Em 1915 as atas da Missão Batista no

Norte do Brasil registraram essa observação: “temos evangelizado tanto que o

trabalho tem se tornado desproporcionado. Há mais igrejas que pastores. Muitas

igrejas no território da Missão têm possibilidades, e desejam sustentar seus

pastores, no entanto, não encontram pastores a altura das responsabilidades”.442

Não deixa de chamar atenção o fato de que as atas do seminário do Recife

registrem essas conclusões quando a Igreja Batista já se achava estabelecida

há mais de três décadas no país, contando, inclusive, com um pastorado

nacional já há um bom tempo estabelecido no campo.

3.2. O batismo de conversão como testemunho público de fé

Outra característica do fazer batista é o fato de ter sido durante muito

tempo permeado por uma idéia exclusivista acerca do batismo, isto é, de que

apenas na comunhão batista se praticava de forma correta o mandamento do

batismo. Disso se infere que, nas igrejas batistas, o evento do batismo é um dos

mais significativos, senão propriamente o mais importante da vida religiosa do

crente. Contudo, este evento não é em si um evento salvífico, mas sim um

testemunho de fé, como diz o missionário Willian Taylor no seu Manual das

Igrejas, em 1926: “o crente deve ser batizado porque o batismo é a sua pública

confissão de fé”443. E é por meio da confissão de fé que se dá a pertença

institucional à comunidade religiosa.

441 SMITH Cathryn. Manual da Escola Bíblica Dominical, p. 53. 442 MEIN David, op cit, p. 8. 443 HAHN Carl Joseph, op cit, p. 373.

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A ênfase batista no batismo como evento testemunhal não passou

despercebida também de outros ministros protestantes nacionais. No começo do

século XX o reverendo presbiteriano Mattathias Gomes dos Santos, comentando

o fato com as cores mais fortes, escreveu em O Puritano, de 06 de julho de 1911:

Entre as diferentes denominações evangélicas que militam no Brasil, nenhuma

existe que, por certas doutrinas fundamentais, mais se aproxime da denominação

presbiteriana do que a Igreja Imersionista, comumente denominada Batista. O seu corpo

de doutrinas tem quase as mesmas cores que o nosso: as características de seu estandarte

de fé fazem-no sobremodo parecido com o estandarte calvinista. Encontram-se no seio

dessa igreja verdadeiros cristãos, almas abnegadas e a toda prova (...) para contrastar,

porém, com esses leais servidores do Senhor (...) levantam-se no seio da denominação

imersionista corifeus do sectarismo, possuídos de cegueira, capazes dos maiores absurdos

(...) entre esses proselitistas cegos acentua-se dia a dia uma tendência perigosíssima para

a vida do cristianismo (...) a tendência materializadora do Batismo, assumindo as

proporções ameaçadoras de um culto pagão – a Hidrolatria (...) julgamos (...) que a

Hidrolatria deve ser combatida sem tréguas (...) porque constitui um perigosíssimo

desvirtuamento das doutrinas e do caráter do cristianismo.444

Apesar dessa ênfase no batismo como testemunho de fé, Carl Joseph

Hahn, que embora questionando a relação dessa interpretação batista do evento

com o magistério dos reformadores445, reconhece que essa idéia se ajusta

melhor à prática evangelística446, destaca que a ministração do evento está

sempre ligada à visitação do pastor que, desse modo, retém o monopólio dos

“bens de salvação” que estão a disposição da igreja e que constituem, por

excelência, o seu capital religioso,447 justificando sua missão e discurso. Como

teoriza Bourdieu:

Em função de sua posição na estrutura da distribuição do capital de autoridade

propriamente religiosa, as diferentes instâncias religiosas, indivíduos ou instituições,

444 REILY Duncan Alexander, op cit, p. 242. 445 HAHN Carl Joseph, op cit, p. 373. 446 Ibidem, p. 373. 447 BOURDIEU Pierre, op cit, p. 57.

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podem lançar mão do capital religioso na concorrência pelo monopólio de gestão dos

bens de salvação e do exercício legítimo do poder religioso, enquanto poder de modificar

em bases duradouras as representações e as práticas dos leigos, inculcando-lhes um

habitus religioso, princípio gerador de todos os pensamentos, percepções e ações,

segundo as normas de uma representação religiosa do mundo natural ou sobrenatural, ou

seja, objetivamente ajustados aos princípios de uma visão política do mundo social448

Não é surpresa, assim, que a prática do batismo de adultos como

testemunho de fé seja algo que, além do meio eclesial batista, também se

encontre no Pentecostalismo onde as ênfases evangelísticas são praticamente

idênticas às da igreja batista.

3.3. Landmarquismo

O landmarquismo pode ser descrito como uma teologia exclusivista, pois

salienta uma proeminência histórico-teológica da Igreja Batista confirmada por

meio do batismo imersionista. O landmarquismo surge no meio batista norte-

americano na segunda metade do século XIX por meio da pena de Jarries R.

Graves (1820 – 1893), jornalista e editor do boletim eclesiástico O Batista do

Tennessee e como baseava sua teologia na linha sucessória (a teoria JJJ, isto

é, Jerusalém, Jordão e João, ou seja, de que a Igreja Batista havia sido fundada

por João Batista em Jerusalém e que as bases dessa fundação estavam

estabelecidas na prática de batismo fundada pelo profeta)449, terminava negando

que todos os demais grupos protestantes pudessem ser chamados de

cristãos.450 O termo Landmarquismo é oriundo de um artigo escrito em 1856 por

James Madison Pendleton (1811 – 1891), um ministro batista do Sul que rompeu

com sua convenção para apoiar o Norte durante a Guerra Civil, chamado And

448 Ibidem, p. 57. 449 Ver SANTOS Marcelo. “Raízes Históricas e Teológicas dos Batistas: de onde viemos”? In

PINHEIRO Jorge e SANTOS Marcelo, op cit, p. 14 – 18. 450 Ibidem, p. 44 – 45.

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Older Landmark Reset (“Um Antigo Marco Divisório Recolocado”, baseado em

Provérbios 22.28). Em suma, o Landmarquismo considerava necessário

preservar a fé cristã neotestamentária, ou ainda, resgatar tudo o que se entendia

ter sido perdido da fé da antiga comunidade cristã. É portanto uma teologia

vinculada diretamente em suas origens ao contexto eclesial do Sul dos EUA451,

região onde os batistas encontram sua maior força organizacional e de onde são

oriundos quase todos os missionários que desembarcam no Brasil desde o final

dos oitocentos.

Essa atitude exclusivista é um traço peculiar da visão landmarquista que

por muito tempo exerceu grande influência na formação da Igreja Batista no

Brasil e que o professor Marcelo Santos, da Faculdade Teológica Batista de São

Paulo resume dessa forma: “Práticas como não convidar para o púlpito

pregadores de outras denominações evangélicas, de batizar mesmo aqueles

que já são batizados por imersão em outro grupo evangélico (...)452, de não

admitir que outros evangélicos e até (...) membros de outras igrejas batistas

participem da ceia, são fruto da forte influência landmarquista no meio batista”.453

Daí a conclusão de Marcelo Santos de que o landmarquismo seja “talvez a mais

séria causa das distorções interpretativas doutrinárias” que ocorreram por muito

tempo entre os batistas454.

No seu folheto Quem são os Batistas? Salomão Ginsburg, que certamente

recebeu o landamarquismo por influência dos seus colegas missionários do Sul

norte-americano, retoma a teoria JJJ, reivindicada e evocada pelos seguidores

dessa teologia, através do seguinte esquema:

1) O primeiro pregador batista veio de Deus: João 1.6-7;

2) Jesus foi batizado por um pregador batista: Mateus 3.13-17;

3) Um pregador batista batizou os fundadores da Igreja do Novo Testamento:

Mateus 3.1-6; Marcos 3.13-14;

4) Foi nessa Igreja que Jesus instituiu a santa ceia: Mateus 26.20-30;

451 SANTOS Marcelo, PINHEIRO Jorge, op cit, p. 45. 452 Ver a respeito CRABTREE A.R, op cit, I, p. 31 que descreve as práticas aspersionista e de

batismo infantil dos demais grupos protestantes como “erros” que desviam o crente da “rota da verdade”,

p. 31. 453 SANTOS Marcelo, in PIHEIRO Jorge; SANTOS Marcelo, op cit, p. 45 – 46. 454 Ibidem, p. 44.

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5) Foi a esta mesma Igreja que o Senhor Jesus outorgou autoridade de pregar o

evangelho e administrar os sacramentos: Mateus 28.19-20; 1 Coríntios 12.27-28;

6) Foi a essa Igreja que Jesus deu o seu Santo Espírito antes do dia de Pentecostes:

João 20.19-21;

7) Essa Igreja, assim afirma o Espírito Santo de Deus, permanece para sempre:

Daniel 2.44 e Mateus 16.18;

8) Jesus Cristo mesmo organizou essa Igreja: Marcos 3.13-14 e Mateus 10.

Ora, se Jesus foi batizado por pregador batista e os pregadores da Igreja do Novo

Testamento também foram batizados por pregadores batistas, não é razoável, lógico e de

acordo com as Escrituras afirmar que a Igreja do Novo Testamento, a Igreja de Jesus, foi

Igreja Batista?455

É praticamente o mesmo axioma repetido pelo educador batista James

Milton Carroll (1852 – 1931) em Rastro de Sangue (publicado em 1931), um

clássico da hagiografia batista, que fornece uma síntese do pensamento

landmarquista, interpretando as origens batistas como estando vinculadas

diretamente à época apostólica: “Nem Cristo, nem os seus apóstolos deram em

qualquer tempo aos seguidores (...) designações como ‘católico’, ‘luterano’,

‘presbiteriano’, ‘episcopal’, etc, a não ser o nome de Cristo dado a João, que

passou a ser chamado de ‘O Batista’, João Batista (Mateus 11.11 – 12)”456.

Também o historiador batista Crabtree reafirma essa tese embora sob chave

nova: “a sucessão apostólica dos batistas não depende da continuação

ininterrupta de igrejas batistas desde o tempo apostólico até o presente, mas sim

da aceitação e da prática das doutrinas e princípios apostólicos”457. Assim, para

o historiador dos batistas nacionais as igrejas batistas eram nos tempos

hodiernos as herdeiras da Igreja Apostólica do Novo Testamento. E Crabtree

ainda vai mais longe: por meio da Teologia da Sucessão Apostólica dos Batistas

ele ataca a Teologia do Pacto dos presbiterianos: “as leis da Igreja se

apresentam no Novo Testamento e não no Antigo. Esta distinção é relevante e

é feita somente pelos batistas (grifo meu) (...) não há coisa alguma no Novo

Testamento que indique, por exemplo, que o batismo viesse tomar o lugar da

455 Ibidem, p. 16 – 17. 456 Ibidem, p. 16. 457 CRABTREE A.R, op cit, I, p. 32.

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circuncisão458”. Igualmente o teólogo batista Augustus Hopkins Strong (1836 –

1921) propugnou as teses landmarquistas em sua obra teológica:

Grupos de cristãos que se recusam a aceitar esses princípios [batismo por

conversão, sistema congregacional de governo eclesiástico] podemos, com certa

liberdade e sentido modificado (grifo meu), chamar de igrejas; mas não podemos

considerá-las como organizadas em todos os aspectos segundo as leis de Cristo, ou

correspondendo completamente ao modelo neotestamentário de organização da igreja (...)

é apenas uma questão de cortesia falar de organizações pedobatistas como igrejas, apesar

de que não as consideramos como tais (grifo meu) no seu sentido, conforme as leis de

Cristo indicadas no Novo Testamento.459

O mesmo Strong, em um ataque ao sistema episcopal consagrado não só

na Igreja Católica, mas também entre os metodistas, os anglicanos e os

luteranos, afirmava ainda que “o episcopado diocesano é antibíblico e

anticristão”.460

Há outros vestígios de influência landmarquista que podem ser

encontrados no meio batista nesse período e que durante muito tempo

grassaram pela denominação. Um deles é o modus operandi do evangelismo. É

sabida a intrepidez com que a pregação batista avançou mesmo pelas regiões

mais inóspitas do país, alcançando grande número de pessoas e fundando

igrejas, mas sem se prestarem ao trabalho de colaborar ou delimitar campos

missionários com outras denominações. Com isso, sua atitude perfeccionista e

exclusivista acabou gerando não poucas tensões entre os batistas e outros

ministérios em torno dessa “concorrência” por rebanhos para redil evangélico, e

do qual um bom registro é o comentário do missionário Willian Entzminger que,

escrevendo em 1893 descreveu de modo contundente a reação dos crentes de

outros ministérios quando da chegada dos batistas a uma determinada

localidade: “até os evangélicos fugiam de nós como uma epidemia perigosa”.461

458 Ibidem, p. 27. 459 STRONG Augustus Hopkins, Teologia Sistemática, II, p. 1565. 460 Ibidem, II, p. 1565. 461 ARAÚJO João Pedro Gonçalves, op cit, p. 140.

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4. O sentido da missão

O nosso objeto de estudo é, portanto, um personagem que dedicou sua

vida ao trabalho missionário pelo Brasil e o meio eclesial que o recebeu, o que

impõe a necessidade de uma explicação sobre o sentido e o conceito de missão

que norteava o seu ministério e que, ao mesmo tempo, possui algumas

características mais gerais (ex. a busca da conversão da população), mas, ao

mesmo tempo, revela especificidades mais distintas como, por exemplo, o tipo

de estratégia a ser seguido na busca desse fim em especial. Do mesmo modo,

o meio eclesial que o formou e onde ele trabalhou, a Igreja Batista, que também

é oriunda desse contexto missionário, precisa ser conhecido e compreendido

com clareza.

4.1. Conceito de Missão

A Missão é um acontecimento que se vincula à História do Protestantismo

Brasileiro, mas não apenas ao Brasil. A própria dinâmica de uma religião que

estabelece a pregação como forma de propagação da fé justifica a Missão como

meio de consumação desse esforço, mas de todo modo, representa um algo

novo tanto na tradição católica quanto na protestante, uma vez que é apenas na

época moderna e contemporânea que temos a Igreja agindo como missionária

para tribos e povos. Todavia, a exemplo do que se deu em questões como o

batismo e a eucaristia, também aqui o entendimento sobre o conceito de Missão

será distinto entre as igrejas mantidas pelo Estado, como a luterana e a

anglicana e as independentes. Nas palavras de J. Leslie Dunstan:

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Uma Igreja protestante que a si mesma se visse como parte de uma vida nacional,

de modo que fosse apenas uma faceta da organização do Estado – a instituição

encarregada do e responsável pelo bem-estar espiritual de todos os seus cidadãos, e tendo

sempre, pois, uma ligação extremamente íntima e direta com as agências do governo –

veria um empreendimento missionário à luz do seu caráter próprio; enquanto uma Igreja

que se visse como um agrupamento de pessoas redimidas pela ação de Deus no seio de

uma humanidade perdida, veria a sua obrigação missionária de um ponto de vista

consentâneo com a sua natureza essencial462.

É praticamente o mesmo pensamento do teólogo presbiteriano Charles

Hodge (1797 – 1878) que vê a realização da empresa missionária como um

evento destinado à igreja para a qual espera por um “avivamento do espírito

missionário” em sua época, a fim de que a total conversão dos gentios seja

efetivamente alcançada463.

O que se viu, todavia, acerca daquilo que recebeu o nome de Missão, foi

um empreendimento voltado ou para a conversão de pessoas de uma religião

para a outra, por meio da implantação de igrejas destinadas ao trabalho

proselitista, ou uma responsabilidade vocacional transmitida a indivíduos no

sentido de realizar esse trabalho conversionista; ou ainda a imposição da

mudança de hábitos em relação aos prosélitos como condição preliminar de sua

aceitação dentro da nova comunidade, como lembra o professor Leontino Farias

dos Santos do Seminário Teológico da Igreja Presbiteriana Independente do

Brasil464. Essa idéia de missão perpassa o trabalho dos missionários pioneiros,

eles são propagadores de um sistema religioso, e no caso de Ashbel Green

Simonton e de Salomão Ginsburg, ambos estão perfeitamente cônscios disso.

“É honra minha”, diz Ginsburg, “ter acompanhado e testemunhado o crescimento

da Causa Batista no Brasil nos últimos trinta anos, e me parece isto que anima

os nossos irmãos que alegre e voluntariamente contribuírem para a Causa das

Missões Estrangeiras, considerar (...) o que os batistas estão fazendo no

462 DUNSTAN J. Leslie. Protestantismo, p. 136 – 137. 463 HODGE Charles, Teologia Sistemática, p. 1612. 464 DICIONÁRIO BRASILEIRO DE TEOLOGIA, op cit, p. 655.

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Brasil”465. Em suma, Missão, ao menos no caso brasileiro, tem sido,

historicamente, sinônimo de proselitismo e conversionismo, e não apenas a uma

igreja ou forma de religião, mas também à visão de mundo que molda os valores

deste grupo religioso que, por serem decorrentes de uma inserção missionária,

não estão vinculados à cultura local e não a aceitam em sua maior parte.

A atividade missionária constituída envolve não apenas a organização e

constituição de igrejas, mas também o processo de reeducação dos prosélitos

dentro dos novos moldes religiosos, processo esse que não fica, naturalmente,

apenas circunscrito aos horários do culto dominical. Em seu relatório sobre a

situação do presbitério do Rio, Ashbel Simonton reclama que foi “necessário (...)

exercer a disciplina (...) repreendendo os culpados para que se arrependessem

(...) privando por algum tempo da participação dos Sacramentos. E com íntimo

prazer que acrescento meu testemunho do bom resultado da aplicação da

salutar disciplina da Igreja”, embora, por outro lado, reconheça que ainda havia

“um outro exemplo de insubordinação e que “talvez seja necessário proceder-se

à última decisão que uma Igreja Evangélica pode tornar-se à exclusão de um

dos seus membros”466. Os prosélitos, porém, precisavam mais do que, tudo, de

instrução: “era necessário”, escreve o autor das Lembranças do Passado,

continuar a despertar o povo. Era necessário também prosseguir na instrução

bíblica (...) a dar o ensino prático das doutrinas evangélicas aos novos discípulos

crentes no Redentor Supremo e único”.467 Como diz João Gomes da Rocha era

necessário dar o ensino prático das doutrinas evangélicas aos prosélitos.

Conversão, nesse sentido, não é só a substituição de uma fé por outra, mas

também a substituição de um determinado discurso, de uma cosmovisão, por

outra, por meio de um processo continuado de ressignificações e doutrinamentos

que podemos chamar de proselitismo ou de doutrinação.

4.2. Breve histórico das missões protestantes

465 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 247 - 248. 466 TEOLOGIA PARA A VIDA, “Relatório pastoral do reverendo Ashbel Green Simonton”, p. 9

e 10 manuscrito fac símile. 467 ROCHA João Gomes da, op cit, I, p. 68.

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A atividade missionária de viés conversionista não é uma decorrência do

missionismo protestante do século XIX, mas um ideal que se encontra nas raízes

do próprio Protestantismo, particularmente naquele vinculado à Tradição

Reformada. A Escola de Genebra fundada por Calvino em 1555 era,

essencialmente, uma escola missionária e a própria prioridade quanto ao envio

de pregadores destaca um ponto que será a tônica da Missão no século XIX: a

ação em países católicos ou em suas colônias. De fato, o envio de pregadores

para regiões católicas como o Piemonte e a França mostra que a preocupação

do missionismo genebrino não era apenas com aqueles que não conheciam a fé

cristã, mas, sobretudo, com aqueles que a praticavam de modo diverso das

igrejas reformadas468 (e o mesmo se pode dizer quanto ao Jesuitismo, sobretudo

em suas atividades nas regiões influenciadas pelo Protestantismo como os

Países Baixos no século XVI469).

O século XIX assiste, nos países protestantes, uma crescente e influente

atividade missionária realizada pelas agências denominacionais e sociedades

bíblicas estabelecidas na Inglaterra e Estados Unidos e norteadas ambas pelo

propósito comum de evangelização de todos os povos não-cristãos. Em relação

ao período anterior – isto é, o período que vai da fundação da Escola de Genebra

até a época das Guerras Napoleônicas – o que muda e a maneira como a Igreja

passa a perceber a missão, isto é, como um empreendimento que está

relacionado com a denominação, como chamado com vistas ao cumprimento da

Grande Comissão, mas um chamado que não diz respeito só à Igreja como

instituição, mas também ao indivíduo como parte desta. No caso latino-

americano esse movimento se inicia com o estabelecimento da primeira missão

protestante na Patagônia argentina, em 1838 e se encerra com as conferências

missionárias de Edimburgo (1910) e do Panamá (1916) onde pela primeira vez

são estabelecidas agendas para a Missão da Igreja Protestante no mundo

contemporâneo.

468 LINDBERG Carter, As Reformas na Europa, p. 325. 469 DELUMEAU Jean. Nascimento e Afirmação da Reforma, p. 206 – 207.

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Durante o século XIX os relatos de missionários como Adoniran Judson

(1788 – 1850) ou David Levingstone (1813 – 1873) produzirão, sobretudo na

Europa e nos EUA a consciência de um empreendimento civilizatório, porque de

fato a conversão religiosa de tribos ou populações inteiras resulta em novos

hábitos sociais e culturas por meio dos quais as sociedades catequizadas

passarão por transformações perenes, embora nem sempre favoráveis, como no

caso dos maoris no século XIX, que ao saírem da condição de povo ágrafo para

a de povo alfabetizado, ou em grande parte alfabetizado, por conta do processo

de alfabetização empreendido pelos missionários ingleses por meio do Novo

Testamento, acabaram depois perdendo suas terras e seus direitos quando

perceberam que não podiam manipular tão bem a palavra escrita e a legislação

fundamentada por meio dos códigos impressos, como o faziam com as tradições

orais, códigos esses que lhes suprimiram o direito à propriedade, forçando-os

assim a gastar dezenas de anos para dominar esse conhecimento470. Daí a

razão porque o ápice do período colonial é também o ápice da Missão entre os

povos não cristãos, não somente em países diretamente dominados como a

Índia, a África do Sul e Argélia, mas também nos países descritos pela

historiografia marxista como semicolônias, isto é, países que mantém uma

independência nominal, mas que se acham economicamente presos e

dependentes ao grande capital externo como a Argentina e o Brasil. A missão

passou a ser entendida como um grande processo de conversão de hábitos

sociais e culturais, um amplo atavismo cultural no qual os povos considerados

não-alcançados assimilavam a visão de mundo, os valores, a ideologia política

e social quando não até mesmo a própria língua e a escrita dos agentes

missionários que estavam a transitar entre eles, e passaram a reproduzi-la,

mesmo que, mais adiante, acabassem sendo dobrados por novas formas de

dominação trazidas e legitimadas por esses mesmos agentes, como no caso já

referido dos maoris sob o domínio inglês.

470 PRINS Gwyn. “História Oral”. In BURKE Peter (org), A Escrita da História, novas

perspectivas, p. 168 – 170.

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4.3. A perspectiva da Missão nas conferências missionárias de Edimburgo

(1910) e do Panamá (1916)

Embora as conferências missionárias pioneiras de Edimburgo e do

Panamá representem a visão eclesial protestante do mundo europeu, e mais

particularmente do anglo-saxão, as duas diferem entre si quando o assunto é a

América Latina. Em Edimburgo a América Latina foi tratada como continente

cristianizado, ou, no pior das hipóteses, nominalmente cristianizado, dado que

também a Igreja Católica era entendida como parte da tradição cristã471. De fato,

como escreve Arturo Piedra, a visão geral da conferência de Edimburgo deixou

de fora tanto a América Latina quanto o mundo grego dado o receio da Igreja

Anglicana e também dos luteranos alemães, de que tal postura de não

reconhecimento da Igreja Católica e da Igreja Ortodoxa como expressões da

Tradição Cristã pudesse causar tensões nas relações intereclesiais472. Desse

modo, a ação eclesial de Edimburgo foi deslocada para o Oriente, a África e ilhas

do Pacífico ficando de fora a América Latina católica, restringindo-se a ação

eclesial da conferência apenas às comunidades não consideradas cristãs,

contando, nesse sentido, inclusive, com o apoio da delegação norte-

americana.473

No Panamá, longe da influência britânica e mais perto da égide territorial

das igrejas e agências missionárias estadunidenses o enfoque passa a ser outro:

ali a Igreja Católica é responsabilizada pela disseminação superficial e periférica

do Cristianismo na região, mas o julgamento da ação missionária desenvolvida

pelas juntas missionárias protestantes também não é dos melhores. E de fato,

conforme o juizo dos participantes do Congresso, pelo tempo que muitas das

igrejas protestantes vinham atuando na região, poderiam, de fato, ter feito bem

mais474. O Congresso constatava que uma das razões do atraso geral da

América Latina residia na falta de cultura geral do povo, diagnóstico feito também

471 PIEDRA Arturo, op cit, I, p. 125. 472 Ibidem, p. 125. 473 Idem, p. 139 – 140. 474 Idem, p. 167.

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pelos missionários que atuavam na região e até pelo próprio Ginsburg que

lembra que somente quinze por cento da população brasileira em sua época

sabia ler e escrever475. Daí a conclusão da conferência do Panamá de que a

evangelização passava pela educação como instrumento de transformação

integral do indivíduo vindo daí também a sua conversão. Essa conclusão,

decerto, decorria da própria experiência missionária já vivenciada pelas igrejas

protestantes em países como o Brasil onde metodistas, presbiterianos e batistas

realizaram empreendimentos educacionais em praticamente todos os campos

da educação, do ensino básico ao técnico.

Contudo, e aí está o ponto em que a abordagem da Conferência do

Panamá se revelou mais deficiente, esse processo de educação não passaria

pelas camadas mais pobres, mas sim pelas classes medianas e pelas elites já

suficientemente educadas para receber essa nova e poderosa influência,

podendo desse modo passar para o Protestantismo, na medida em que tais

grupos percebessem a incompatibilidade de um projeto modernizador com o

tradicionalismo católico ultramontano. Esse pensamento passava por uma

convicção de que tais elites estavam eivadas de um projeto de modernização

que apenas precisava de um influxo por meio de uma poderosa influência cultural

a ser administrada pelos “colégios americanos”, mas como perceberam Juan

Kessler e Wilton Nelson, citados por Luiz Longuini Neto, esse pensamento “se

devia, em parte, à preocupação de alcançar as classes acomodadas e também

em parte a que davam por certo que um melhoramento do nível geral da

educação beneficiaria automaticamente os pobres”. Mas isso sem se darem

conta de que “as estruturas opressoras podiam continuar explorando os pobres

até mesmo quando deles haviam recebido, por meio de bolsas de estudos, uma

educação melhor”.476

Daí que a tônica do discurso missionário institucional será o de repisar o

velho mote liberal no sentido de cooptar, a fim de obter uma posição de simpatia

senão a conversão propriamente dita daqueles elementos das camadas

dirigentes. Crabtree constrói uma visão da história relacionando os fundamentos

475 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 242. 476 NETO Luiz Longuini, O Novo Rosto da Missão, p. 96.

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do liberalismo com o surgimento das igrejas batistas477, do mesmo modo que

João Gomes da Rocha faz na introdução de sua história sobre o

congregacionalismo brasileiro a associação entre protestantismo e

liberalismo478. O discurso liberal de ambos é claramente um discurso de

cooptação, mas não de reforma do Estado já que a adesão a esse liberalismo

dentro da elite latino-americana é apenas para reafirmar suas próprias

contradições internas, só que em âmbito eclesial.

4.4. A influência dos EUA na configuração do protestantismo de missão

brasileiro

Conforme Arturo Piedra, a Doutrina Monroe (“A América para os

Americanos”) exerceu uma influência poderosa sobre a ação dos missionários

estadunidenses479, fato para o qual colaborou sem dúvida, a fundação das

sociedades bíblicas norte-americanas que amparou com bíblias e literatura

religiosa o trabalho dos primeiros missionários no país, permitindo assim a

colportagem e a reprodução do discurso religioso institucional e eclesial

daquelas igrejas, além de demarcar os espaços de atuação das próprias

sociedades bíblicas norte-americanas em oposição às britânicas na mesma

região, posto que as primeiras requeriam total exclusividade de

movimentação480. Ainda quanto Doutrina Monroe, escreve Arturo Piedra, está

claro que ela teve um efeito sobre a religião similar ao que produziu, por exemplo,

na política: “o princípio ‘da América para os americanos’, o coração da doutrina,

também teve uma clara conotação religiosa: os EUA e não a Europa deveriam

liderar a introdução do Protestantismo nesses países”481. Além disso, ficava

evidenciado que a ação missionária das igrejas protestantes se daria em paralelo

477 CRABTREE A.R, op cit, I, p. 37 – 45. 478 ROCHA João Gomes da, op cit, I, p. 12. 479 PIEDRA Arturo, ob cit, I, p. 30. 480 Ibidem, p. 31. 481 Idem, p. 30 – 31.

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com a expansão do imperialismo norte-americano no Caribe, devendo fortalece-

lo já que é dessa forma que se assegura a atividade missionária na região.482

Lembremos que no final do século XIX a política externa dos EUA assume um

viés claramente imperialista e expansionista, que se configura na Guerra

Hispano-Americana (1898), quando os EUA tomam aos espanhóis Cuba, Porto

Rico, Guam e as Filipinas, num movimento que para muitos missionários e

agências missionárias protestantes, é considerado uma vitória da “democracia”

protestante norte-americana contra o “autoritarismo” católico da Espanha.

Missionários como Robert Speer fazem essa associação entre expansão do

comércio e atuação missionária, quando busca justificar a política expansionista

dos EUA no começo do século XX.483 E John Mott, outro representante do

missionismo norte-americano enaltece a atuação conjunta entre as missões

protestantes e o governo dos EUA que teriam contribuído para o progresso

econômico das Filipinas, a partir da inversão de capitais norte-americanos na

construção de ferrovias e linhas telegráficas naquele país484.

Como decorrência desse momento histórico, o Protestantismo de Missão

ou de Conversão se deixa envolver pela idéia de disseminação de uma cultura

cheia de “virtudes” e “valores” imbuídos do ideal de que cabe aos povos anglo-

saxônicos a necessidade de difundir tais valores e aos povos latinos o de aceita-

los, por serem os mesmos considerados imprescindíveis para a fixação dos

marcos civilizatórios daqueles países. Essa necessidade de distinguir a ação

missionária daquele que a recebe é o que leva à formação da idéia da distinção

entre os “povos fortes” e os “povos fracos” que se percebe de um dos enunciados

principais da mensagem final da conferência missionária de Edimburgo:

“cristianizar a totalidade da vida e da expressão dos povos, a fim de que a

totalidade da influência do Ocidente sobre o Oriente, mesmo do comércio e da

política, e dos povos mais fortes sobre os povos mais fracos, não enfraqueça a

mensagem missionária”.485

Conforme destaca Lauri Emílio Wirth, citando Wolfgang Gunther, por

“povos fortes” entende-se os povos anglo-saxônicos que se alto-investem da

482 Ibidem, p. 39 – 40. 483 Idem, p. 41. 484 Idem, p. 42. 485 WIRTH Lauri Emílio, in LEONEL João (org.), op cit, p. 41.

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missão “civilizadora” sob o impacto da eugenia e de outras teorias raciais então

em curso no final do século XIX e começos do XX, enquanto os “povos fracos”

são aqueles povos assim apresentados com base em panacéias como fatores

climáticos, fisiológicos, raciais, etc, “o que transforma a suposta inferioridade

racial dos ‘povos fracos’ numa característica hereditária”.486 Tidos como fracos e

despossuídos das chamadas “virtudes anglo-saxônicas”487” justificava-se, desse

modo, tanto a missão quanto a fundação das chamadas “escolas americanas”

onde essas elites seriam reeducadas dentro dos padrões estabelecidos a partir

dos fundamentos ideológicos dessas agências.

Ainda de acordo com Arturo Piedra, “esse interesse [dos protestantes

norte-americanos] pela realidade religiosa da América Latina não conseguia

esconder os preconceitos racistas. A preocupação com o continente baseou-se,

principalmente, nas supostas condições morais (ou imorais) de sua gente.488” a

descrição da América Latina, incluindo o Brasil como “áreas escuras ou

tenebrosas” vinculava-se tanto a questões raciais quanto a ético-morais. Essa

impressão foi progressivamente reforçada ora por declarações racistas como as

do citado Robert Speer,489 ora por publicações do mesmo teor como as do The

Neglected Continent490. Contudo, não apenas esse tipo de discurso e literatura

contribuiu para formar o imaginário desses missionários em trânsito pelo Brasil,

posto que muitos relatos recolhidos de viajantes que passaram pelo país ao

longo do século XIX assemelham-se em muito nas suas impressões do país ao

discurso dominante erigido dentro das agências missionárias acerca do caráter

e da religiosidade do povo, considerada uma e outra como promíscua e

superficial. Para esses grupos, o Brasil estava dominado por uma cultura

supersticiosa à qual, como bons protestantes, comparam ao paganismo: “não é

possível entrar nas instituições eclesiásticas daqui sem recordar suas origens

pagãs e verificar as pequenas modificações que sofreram”, escreve já em 1845

o capitalista aposentado Thomas Ewbank.491 Daniel Kidder, que visitou o Brasil

no período da Regência mais como agente da SBA do que propriamente como

486 WIRTH Lauri Emílio, in LEONEL João (org.), op cit, p. 41. 487 Idem, p. 41. 488 PIEDRA Arturo, op cit, I, p. 73. 489 WIRTH Lauri Emilio, in LEONEL João (org.), op cit, p. 41. 490 PIEDRA Arturo, op cit, I, p. 73. 491 EWBANK Thomas. Vida no Brasil, p. 127.

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missionário e que tinha opiniões bem mais moderadas sobre o Catolicismo do

que Salomão Ginsburg e Ashbel Simonton, lembra-nos que os eventos religiosos

no Brasil dos oitocentos não se diferiam muito daqueles do Brasil Colonial, isto

é, eram carregados de toda uma pompa e solenidade, sendo essa a razão,

segundo o ministro metodista, o elemento inspirador dos “sentimentos religiosos

dos nacionais”.492 E Richard Holden, missionário episcopal escocês que atuava

no Pará, sendo personagem constantemente citado nas Lembranças do

Passado por causa de suas relações com Robert Kalley, chegou a informar à

Sociedade de Literatura Religiosa de Londres que precisou parar com a venda

de “Ilustrações Bíblicas” (isto é, cópias de quadros de grandes artistas que

retratavam cenas do Antigo e do Novo Testamento) porque estes estavam sendo

usados como santinhos em altares domésticos improvisados493.

A crítica aos padres também faz parte desse retrato depreciativo da vida

social e moral do país, com ênfase na baixa qualidade intelectual e moral dos

clérigos brasileiros, refletida nas frequentes denúncias de amasiamento de

padres ou do seu comportamento nada condizente com a dignidade do cargo,

em relação a mulheres ou moças jovens. Kidder, visitando a província de São

Paulo, entrevistou-se com um diácono partidário das idéias do padre Diogo Feijó

(1784 – 1843), antigo regente do Império, acerca da abolição do celibato dos

padres, já que a proibição do casamento tornava “a situação de muitos padres

(...) pior do que se fossem casados, com grande escândalo para a religião”.494 O

já citado Thomas Ewbank disse quase a mesma coisa: “em todas as seitas de

todos os países encontram-se clérigos imorais, mas no Brasil as más

consequências do celibato dos padres são admitidas como sendo gerais e do

mais revoltante caráter.”495 Até o cientista pomerano Hermann Burmeister, cético

em matéria de religião, embora oriundo de um ambiente luterano, protestava

contra o mau comportamento dos padres da região de Mariana (MG), que ele

visitou em 1850, tanto do ponto de vista do relaxamento moral quanto da falta de

cultura geral496.

492 KIDDER Daniel Parish, op cit, I, p. 113. 493 VIEIRA David Gueiros, op cit, p. 171. 494 KIDDER Daniel Parish, op cit, I, p. 262- 263. 495 Ibidem, ob cit, p. 111. 496 BURMEISTER Hermann. Viagem no Brasil, p. 216.

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Uma coisa é o uso desse discurso da parte daqueles que compõem o

mundo europeu ou anglo-saxônico carregado de preconceito e indignação com

as práticas sociais e culturais com os quais se deparam no interior do Brasil ou

da América Latina. Outra é quando os representantes dos povos nativos

reproduzem esse mesmo discurso para justificar não apenas a ação missionária

das igrejas ligadas ao mundo anglo-saxônico, mas também, e principalmente,

para legitimar esse mesmo discurso. É o que se depreende, por exemplo, da

passagem abaixo, escrita não por um turista ocasional ou um cientista, ou

mesmo um missionário em trânsito pelo interior do país, mas por um ministro

nacional, ordenado por uma igreja protestante constituída em território brasileiro

sendo ele mesmo também um nativo. De fato, a explicação que Boanerges

Ribeiro dá para a formação da religiosidade popular brasileira em nada se

diferencia do se propõe como explicação da parte dos missionários anglo-

saxônicos: “no caso da religião popular, a ‘regra de fé e prática’ parece ser, em

alguns casos, o ciclo natural das estações do Hemisfério Sul, que motiva a

liturgia, ou a fauna próxima e íntima. Ou, talvez, a ‘força do instinto da vida, a

pressão de nosso inconsciente’”.497 O inconsciente, ou como ele diz, a “pressão

do inconsciente” sobre os instintos, seria a explicação para justificar padrões de

comportamento extravagantes que teriam sua justificação, ainda segundo o

pastor presbiteriano, na repressão da sociedade colonial influenciada pelo

catolicismo do padroado.498

5. Os missionários

497 RIBEIRO Boanerges. Protestantismo no Brasil Monárquico, p. 77. 498 Idem, p. 77, nota 47. A tentativa que Boanerges Ribeiro faz de tentar associar as “pressões do

inconsciente” ao relativismo moral da sociedade brasileira do período colonial atribuindo a isso a influência

católica, não é corroborada pela História Protestante. No V Congresso Evangélico Brasileiro que se reuniu

em São Paulo, em dezembro de 1936, o presidente da Federação da Juventude Evangélica da Igreja

Presbiteriana Independente do Brasil, Eduardo Pereira de Magalhães, chamou atenção para a crise moral

identificada na época entre os jovens protestantes brasileiros: “a mocidade oculta seus problemas morais

(...) sondando a mocidade evangélica, ficamos assombrados com a sua decadência moral. Grande parte de

nossa mocidade frequenta os lupanares e essa é uma razão porque não professam a fé (...) cinema, bailes,

moda, diversões, conversa, jogo, bebidas, etc, não há folhetos sobre esses notáveis assuntos, e quando eles

se enfrentam no púlpito ou na imprensa, torna-se atitude negativista, sem discussões abalizadas, sem

paixões poderosas, sem atitude construtiva”. AMARAL Epaminondas Melo do. Apreciação e Diretrizes,

Quinto Congresso Evangélico do Brasil, p. 78 – 82.

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A atividade missionária protestante no Brasil foi feita basicamente por

agentes de sociedades bíblicas paraeclesiais, colportores, que podiam ser leigos

ou ministros devidamente ordenados, e, a partir da segunda metade do século

XIX e, mais acentuadamente, com a proclamação da República, por agentes

vinculados de forma direta à instituições religiosas. Na época de Ginsburg o

protestantismo de missão brasileiro contava com os três grupos em seu esforço

proselitista.

5.1. Os agentes das sociedades bíblicas

Os primeiros missionários em atividade no Brasil eram agentes de

sociedades bíblicas, norte-americanas (SBA) ou inglesas (SBBE), que tinham

por objetivo imediato a difusão de bíblias, mas também publicavam literatura

religiosa pertencente às diversas tradições protestantes, de modo que, além de

ser um agente paraeclesial, elas também acabavam atuando como um

reprodutor não-formal da instituição religiosa499. Além disso, estavam em contato

com o Brasil desde logo após a abertura dos portos pelo governo português

(1808) o que assegurava um fluxo de informação contínua acerca da situação

religiosa e social do país que servirá depois de base para o trabalho missionário

propriamente dito. Seus registros de viagens, seus contatos comerciais,

funcionarão como guias para os missionários das agências denominacionais que

virão logo a seguir500.

Desse primeiro grupo o metodista Daniel Parish Kidder (1815 – 1891)501

e o presbiteriano James Fletcher (1823 – 1901)502 são os nomes mais

conhecidos, não apenas por conta do seu trabalho de venda de bíblias, mas,

sobretudo, porque também tiveram atuação na História do Brasil. Kidder, que

499 REILY Duncan Alexander, op cit, p. 77 – 82. 500 Ibidem, p. 77. 501 ROCHA Isnard, op cit, p. 29 – 32. 502 VIEIRA David Gueiros, op cit, p. 61 – 82. Ver também HAHN Carl Joseph, op cit, p. 156 –

157.

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visitou o país no fim do período regencial, entre 1839 e 1841, deixou um precioso

relato de sua viagem e trabalhos (Sketches of Residence and Travel in Brazil,

traduzido para o português como Reminiscências de Viagens e Permanência no

Brasil e publicado pela primeira vez em inglês em 1845); quanto a Fletcher, uma

rara exceção do meio protestante norte-americano que atuou no Brasil dada a

sua formação nortista e educação cosmopolita503. este exerceu funções

consulares no Rio de Janeiro entre 1852 e 1853, ao mesmo tempo que atuava

como capelão da Sociedade Americana de Amigos dos Marinheiros, outra

instituição paraeclesial distribuidora de bíblias, além de contribuir para a

historiografia brasileira com um preciso relato do país no Segundo Reinado, (O

Brasil e os Brasileiros: esboço histórico e descritivo, publicado em 1855);

participou também da vida brasileira travando relações com políticos e

intelectuais afeitos ou simpatizantes do protestantismo504. Hugh Clarence Tucker

(1857 – 1956)505, metodista, agente da SBA, e de espírito tão cosmopolita e

desembaraçado quanto Fletcher, legou seu nome à História do Protestantismo

no Brasil por meio do ICP, entidade de assistência social inspirada nos moldes

do evangelho social norte-americano, fundado e organizado por ele no Rio, em

1906506. Além disso, participou da comissão organizadora da primeira tradução

protestante da Bíblia realizada no Brasil, a chamada Tradução Brasileira,

publicada entre 1903 e 1917507.

A influência desses agentes no sentido de criar um espírito receptivo para

que as agências denominacionais abrissem campos missionários no Brasil foi

por certo decisiva: O relato de Kidder, por exemplo, será determinante para a

decisão de Kalley de vir para o Brasil508, confrangido com o que descreveu como

“deplorável escassez espiritual”509 do país. E uma vez estabelecido no Brasil, ele

se tornará agente da SBBE. Também é bastante provável que Simonton tenha

503 Fletcher estudou em Princeton bem como na França e na Suíça durante um ano. Ver VIEIRA

David Gueiros, op cit, p. 62. 504 Para Osvaldo Hack, Fletcher por suas atividades diplomáticas e de agente da Sociedade Bíblica

Americana, antes da chegada de Simonton, é, de fato, o pioneiro do presbiterianismo no Brasil. HACK

Osvaldo Henrique. Instituto Cristão de Castro, p. 29. 505 ROCHA Isnard, op cit, p. 237 – 241. 506 REILY Duncan Alexander, op cit, p. 282 – 286. Ver também GIRARDI Luiz Antonio, A Bíblia

no Brasil República, p. 102 – 104. 507 GIRARDI Luiz Antonio, op cit, p. 146 – 150. 508 ROCHA João Gomes da, op cit, I, p. 14. 509 Idem, p. 18 – 19.

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tido contato com essa obra por meio do reverendo Fletcher a quem conheceu

através do seu trabalho na capelania entre os marítimos, no Rio.510

5.2. Os colportores

Além dos agentes das sociedades bíblicas e dos missionários ligados às

igrejas, mas que atuavam dentro das restrições impostas pelo Estado e sua

religião oficial, há uma terceira categoria de agentes que são os colportores, isto

é, agentes das sociedades bíblicas que atuam no interior do país vendendo

bíblias e livros religiosos em geral. Basicamente, segundo Luiz Antonio Giraldi,

os colportores eram “vendedores ambulantes que viajavam por todo o país

oferecendo as Escrituras de casa em casa. Viajando pelos sertões do Brasil (...)

os colportores prepararam o caminho para a chegada dos primeiros missionários

e das primeiras igrejas evangélicas”511.

Embora muito atuantes no Império, é com a República que eles ampliam

suas atividades que logo alcançam âmbito nacional. Além de bíblias e literatura

religiosa, os colportores também divulgaram os manuais de culto dos reverendos

Ramson, metodista (O Culto Dominical, 1878) e Modesto Carvalhosa,

presbiteriano, (Manual de Culto, 1892) com os quais muitas comunidades

protestantes isoladas e sem apoio pastoral, organizarão um arremedo de igreja

que, por vezes, subsistirá por anos antes da chegada de missionários regulares.

Não há dúvida quanto a importância desse trabalho para a proliferação de

bíblias, e com elas, das primeiras comunidades protestantes organizadas de

forma isolada nos ermos mais afastados do país. Em 1889, com efeito, a SBBE

havia distribuído em todo o país 10.883 bíblias, ao passo que no ano seguinte

passaria para 12.756. É certo que a atividade de colportagem teve efeito

510 HAHN Carl Joseph, ob cit, p. 172 – 173. 511 GIRALDI Luiz Antonio, op cit, p. 159.

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expressivo nesse crescimento512, bem como a liberdade religiosa assegurada

pela separação Igreja – Estado através da Constituição de 1891.

Ginsburg desenvolveu um ministério missionário que tinha na

colportagem uma das suas principais atividades: “um dos trabalhos do secretário

do campo é a colportagem. É realmente um dos mais frutíferos e estimulantes.

A qualquer tempo que eu deixar a Casa Publicadora, encherei minha mala de

bíblias e livros e irei vende-los em viagem, nos trens, a bordo dos navios, nas

vilas e cidades e bem assim nas fazendas”513. Não raro, em suas viagens

missionárias, era colportor e missionário ao mesmo tempo, fazendo tanto o

trabalho de venda como de doutrinação: “Oh! Os tempos maravilhosos que

discuti as doutrinas que ensinamos e, muitas falsidades dos padres a respeito

de Lutero e dos protestantes! (...) digamos o que quisermos dos católicos, mas

o que eles querem é a palavra de Deus. (...) dê-lhes a Bíblia, um claro ‘assim diz

o Senhor’ e eles abrirão a boca e o coração514.

A colportagem, portanto, foi um braço forte na expansão do

Protestantismo no Brasil, cumprindo assim o papel que muitas vezes não foi

devidamente exercido pelas igrejas ou missões quanto a alcançar as regiões

onde a presença missionária só conseguirá chegar muitas décadas mais tarde.

De fato, nas áreas mais remotas, é a colportagem quem exerce o papel de

organizar as primeiras igrejas ao possibilitar, por meio da leitura bíblica, o

congraçamento dos primeiros prosélitos.

5.3. Os missionários denominacionais

O terceiro grupo de missionários presentes no Brasil é o dos agentes

ligados à organizações eclesiais propriamente ditas e que são enviados sob duas

circunstâncias distintas: ou para trabalhar com compatriotas em núcleos de

colonização formados, principalmente, entre refugiados da guerra civil

512 Ibidem, p. 68 – 69. 513 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 175. 514 Ibidem, op cit, p. 175 – 176.

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americana que vieram para o Brasil e se estabeleceram principalmente na

província de São Paulo, ou para a realizar a missão propriamente dita entre os

nativos locais. No geral, o segundo grupo vem precedido pelo primeiro,

especialmente entre os metodistas e os batistas que constituíram igrejas na

região de Santa Bárbara do Oeste (SP) entre 1867 e 1871. Para o primeiro grupo

os metodistas enviaram Junius Newman515 enquanto para a igreja batista foram

deslocados Richard Radcliff, Elias Quillin, Robert Thomas e Samuel Pyles,516 isto

é, missionários que foram enviados para zonas de colonização a fim de atender

as necessidades religiosas de seus próprios compatriotas.

Do ponto de vista cronológico, o presbiteriano Ashbel Green Simonton

não é só o primeiro missionário dessa denominação a atuar no Brasil, mas

também o primeiro missionário ligado a uma denominação a exercer a atividade

missionária no país, já que Robert Kalley não estava vinculado a agência alguma

ficando, ao invés, situado naquela categoria que David Gueiros Vieira descreve

como sendo a dos pregadores zelosos e distribuidores de bíblias,517 sem

qualquer vínculo denominacional, embora que, atuando de forma autônoma,

ajude na organização e instalação de igrejas independentes pelo país afora. O

pioneiro metodista John James Ranson, fundador da Igreja Metodista do Catete,

no Rio (1878) e o casal Bagby, fundadores da PIB da Bahia (1882) também se

inserem nesse grupo, como agentes que foram, das suas respectivas agências

denominacionais. Também Salomão Ginsburg se encontra nesse último grupo

ainda que em seus primeiros tempos no Brasil tenha atuado de modo

“independente”, junto aos congregacionalistas.

É preciso também lembrar que no caso dos metodistas, dos batistas e de

uma parte dos presbiterianos, sobretudo dos que atuaram no Nordeste, uma

parcela significativa provinha da região Sul dos EUA, isto é, do popularmente

conhecido cinturão bíblico, região conservadora, escravocrata e secessionista.

Contudo, mesmo Ashbel Simonton, nascido no Norte e formado no Seminário de

Princeton, não era menos conservador que o texano Willian Bagby ou o sul-

caroliniano Willian Entzminger, já que sua teologia foi moldada sob a influência

515 ROCHA Isnard, op cit, p. 33 – 35. 516 AMARAL Othon Ávila do. “Os Batistas de Santa Bárbara d´Oeste. In PEREIRA José Reis.

História dos Batistas no Brasil, p. 468 – 469. Ver também CRABTREE A.R. op cit, I, p. 57 – 63. 517 VIEIRA David Gueiros, op cit, p. 49.

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do círculo de Charles Hodge, teólogo ultracalvinista e um dos pais do

fundamentalismo moderno. Também não podemos esquecer a influência desse

círculo sob Salomão Ginsburg que, mesmo nascido na Polônia e criado na

Inglaterra, receberá por completo a influência teológica e a visão de mundo dos

missionários batistas do Sul, ao ponto de reproduzi-la também em seu ministério

e em suas convicções.

6. Estratégias missionárias

Os missionários que atuaram no Brasil, à medida em que as igrejas iam

se estabelecendo no país, foram organizando jornais e publicações ligadas a

essas igrejas que exerciam tanto a função de divulgar as novas idéias religiosas

como também participar do debate apologético contra a imprensa católica ou

suas instituições representativas. Contudo, a atividade literária por meio de

jornais foi apenas uma das diversas que foram organizadas pelos missionários

estadunidenses tendo por objetivo a conversão do Brasil ao Protestantismo. As

distâncias e as condições encontradas por esses elementos no interior do país

favoreceram o desenvolvimento de outras estratégias que foram sendo

progressivamente incorporadas ao modus operandi desses agentes de maneira

a assegurar uma maior flexibilização das abordagens proselitistas.

6.1. A imprensa

A imprensa protestante se desenvolveu quase tão rapidamente quanto as

próprias igrejas. Inicialmente a propaganda protestante se dava por meio dos

jornais seculares como O Correio Mercantil, do Rio, que publicava os artigos de

Kalley que também usava os jornais para anunciar livros protestantes à venda518.

518 ROCHA João Gomes da, op cit, I, p. 46 – 50. Ver também VASCONCELOS Micheline

Reinaux, op cit, p. 33 – 34.

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E esse expediente ainda continuaria sendo usado no começo do século XX como

vimos pela polêmica sustentada por Ginsburg contra a Igreja Católica pelas

páginas do Jornal do Recife, que também publicava o noticiário referente às

comunidades protestantes. Quanto aos primeiros jornais denominacionais,

respectivamente a Imprensa Evangélica (1864), presbiteriana, e o Expositor

Cristão (1886) dos metodistas, estes foram fundados apenas uns poucos anos

depois de organizadas as igrejas pioneiras e desde o início foi objetivo dessa

imprensa suplementar o trabalho missionário das diversas frentes, mesmo que

porventura tratasse também de outros assuntos como o caso de Imprensa

Evangélica. “A folha evangélica”, escreve Edwiges Rosa dos Santos sobre o

noticioso presbiteriano, “divulgou princípios bíblicos e morais, manteve seus

leitores informados sobre os principais acontecimentos mundiais e a

evangelização do mundo, relatou as descobertas científicas do período”.519 No

fundo, a intenção primeira do jornal, isto é, a divulgação da fé protestante, foi

plenamente alcançada.520

O Jornal Batista, fundado na República no limiar do século XX (1901) tinha

pretensões análogas ao periódico presbiteriano: “saudamos a todos os sinceros

crentes em Jesus”, diz o primeiro número do periódico dos batistas brasileiros,

“rogando que se dediquem fervorosamente para que a terra do Cruzeiro do Sul

seja quanto antes anexa ao reino de Cristo. Afinal, saldamos os irmãos batistas

a quem temos a excelsa honra de representar”.521 A finalidade do periódico

também fica destacada na parte dedicada às responsabilidades que o jornal

deve ter pela frente não só com sua comunidade, mas também com o mundo,

isto é, “realçar o dever dos crentes de não só evangelizar o Brasil como também

o mundo”522. Como Imprensa Evangélica, o Jornal Batista tinha uma clara missão

apologética e proselitista e o fato de que prestigiosas lideranças batistas

colaboravam com o mesmo, como Ginsburg, Entzminger e J.E. Hamilton,

fortalece o caráter do jornal de ser não só o veículo institucional, mas também

um instrumento de propaganda religiosa.

519 SANTOS Edwiges Rosa. O Jornal Imprensa Evangélica, p. 47. 520 Ibidem, op cit, p. 147. 521 CRABTREE A.R, op cit, I, p. 194. 522 Ibidem, p. 194.

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6.2. Debates polêmicos

Tanto os missionários quanto os líderes protestantes nacionais

envolveram-se em polêmicas que tinham por temática a defesa da religião ou

dos postulados protestantes contra os católicos ou outros grupos mais ativos a

exemplo dos espíritas. Esses debates podiam se dar através de folhetos, artigos

ou mesmo de livros publicados especificamente para refutar posições oponentes

ou ainda através de conferências públicas e prolongaram-se por um período

muito extenso, como, por exemplo, o debate literário a respeito de Lutero,

envolvendo de um lado o padre Leonel Franca e do outro o reverendo

presbiteriano Eduardo Carlos Pereira, substituído depois por seu colega de

ministério Otoniel Mota, que começou nos anos 20 e seguiu-se até o início da

década seguinte. Outra forma de discussão entre os grupos era por meio das

audiências públicas que podiam ocorrer em teatros ou faculdades como a que

se realizou entre os estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo e os

missionários presbiterianos norte-americanos Robert Lenington e Emmanuel N.

Pires, entre junho e julho de 1868523. Outro caso referente a esse tipo de debate

ocorreu em Alagoas onde o missionário batista John Mein envolveu-se em uma

série de discussões públicas com católicos e espíritas, que foram

acompanhadas de perto por autoridades judiciárias e pela imprensa524. Nisso,

mostra-se o caráter seletivo e limitado dos grupos participantes dessas

discussões, quase sempre profissionais liberais ou funcionários públicos

situados nas camadas medianas ou altas, formando com isso o perfil do público

que passa a frequentar os cultos protestantes, em suma, o “melhor elemento da

cidade”, como se refere Ginsburg aos organizadores do já mencionado debate

público no teatro da cidade baiana de Amargosa, em 1892, do qual ele tomou

parte.

523 VIEIRA David Gueiros, op cit, p. 258 – 259. 524 MEIN John, ob cit, p. 53 – 57.

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Os artigos que Robert Kalley publicou no Correio Mercantil do Rio de

Janeiro seguem um viés similar ao de Simonton, se bem que de caráter mais

moderado. São apologéticos como “O Sacramento do Casamento” (Correio

Mercantil, 29 de abril de 1860)525 onde questiona os sacramentos conforme

entendido pelo magistério católico; “A Regra de Nossa Fé” (17 de agosto de

1864), em que defende o prevalecimento da Escritura sobre as tradições

humanas, em um debate apologético contra os jesuítas526 e “O Jesuitismo na

Corte” (05 de agosto de 1864)527 onde trata do mesmo assunto. Nesses artigos,

Kalley questiona as doutrinas católicas e o entendimento estabelecido pelo

magistério católico no que concerne à fé e as Escrituras, “que são a verdade de

Deus” e do qual se pode dispor sem recorrer às “fábulas da infalibilidade da

Igreja”528. Também em seus sermões o fundador da obra congregacional expõe

a Escritura de modo bastante similar ao de Simonton, isto é, apologético, no

sentido de salvaguardar sua autoridade de eventuais ataques daqueles que

questionassem seu magistério, fossem católicos ou outros grupos, e também

pedagógico, a fim de instruir a comunidade evangélica fluminense formada em

sua maior parte por conversos.

Em Simonton as práticas exteriores do Catolicismo são criticadas por

meio dos seus sermões. Boa parte da sermonística do missionário pioneiro tem

claro viés apologético: “Entrai pela Porta Estreita”529 onde investe contra a

exteriorização do culto; “Sem Efusão de Sangue não há Remissão”, no qual

ataca especialmente o entendimento do Concílio de Trento sobre a missa e seu

papel ofertório como celebração do sacrifício de Jesus;530 “A Morte e o futuro

Estado dos Justos”, publicado postumamente, em série pela Imprensa

Evangélica entre 01 de agosto e 21 de novembro de 1868 onde contesta a

doutrina católica do purgatório e as missas de sétimo dia. “A verdade é que todo

esse aparato de ofícios deslumbrantes de tochas, galas e orquestras, não se

ostenta em homenagem a Deus, mas em honra dos mortos, e pelo honorário

que toca aos celebrantes”,531 em suas críticas ao catolicismo, Simonton quase

525 ROCHA João Gomes da, op cit,. I, p. 122. 526 Ibidem, p. 280 – 281. 527 Idem, p. 282. 528 Idem, p. 282. 529SERMÕES ESCOLHIDOS D E SIMONTON. 18 e 24. 530 Ibidem, p. 49. 531 Idem, p. 142.

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sempre está apontando para a exterioridade da liturgia e sua incompatibilidade

com aquilo que, no entendimento do missionário presbiteriano, seria o

verdadeiro culto evangélico, pautado apenas na leitura da Bíblia e numa liturgia

modesta. Também nesse ponto há proximidade entre as críticas do missionário

presbiteriano e as de Salomão Ginsburg: para o missionário batista, o

“cerimonialismo” e as “tradições de homens” oriundas do catolicismo, são a

causa do atraso geral do Brasil em sua época532.

Como vimos, a prática de Ginsburg de polemizar com os católicos por

meio da literatura começou em Portugal quando do seu estágio para o serviço

missionário no Brasil533 e prosseguiu nos anos iniciais de seu ministério,

particularmente no período em que atuou no Bahia onde, juntamente com o

missionário Zachary Taylor, prosseguiu com as provocações, publicando

literatura religiosa anticatólica534 e participando de audiências públicas como a

de Amargosa. A polêmica sustentada contra frei Celestino Pedavoli em

Pernambuco, durante o ano de 1902 foi outro grande momento de sua carreira

de polemista e, a considerar o que diz o missionário desse entrevero, esta

embate lhe valeu 39 conversões.535

Se tomarmos por base a opinião de Léonard sobre o ministério

missionário de Ginsburg, comparando-o com o de Simonton, especialmente

quanto a publicação de folhetos de caráter anticatólico, fica evidente para o

historiador francês que a atividade missionária de Ginsburg ia muito além de uma

mera pregação dos “princípios batistas”, assumindo uma atitude de confrontação

com o catolicismo, e decerto não apenas no seu sentido apologético.

6.3. A obra educacional

532 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 246. 533 Ibidem, p. 44 – 47. 534 Idem, p. 78 – 79. 535 LÉONARD Émile G, op cit, p. 130.

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O campo educacional foi sem dúvida uma área em que a Missão atuou

com o maior regozijo. À exceção dos congregacionalistas todas as demais

igrejas inseridas no Protestantismo de Missão investiram seus esforços na

expansão do ensino, mas não de um ensino qualquer. A educação concebida

pelos missionários estava pautada dentro de um modelo baseado na experiência

educacional norte-americana e por isso refletia não apenas as concepções

pedagógicas como também a visão de mundo daquele país, e tanto que o termo

“Escola Americana” ou “Colégio Americano” estavam associadas do mesmo

modo ao Protestantismo e aos EUA. Conforme Duncan Alexander Reily, as

escolas reproduziam, a idéia de uma sociedade educada e moldada pela religião

com papel ativo na vida social do país, regulando as relações morais e

promovendo seus valores de liberdade individual, de consciência, etc., mas,

acima de tudo, uma religião normativa, já que sua função exponencial é a de

organizar e padronizar as relações sociais536.

Ora, é conhecido o impacto que os colégios protestantes tiveram sobre a

classe média e as elites dirigentes do Brasil do começo dos novecentos tanto do

ponto de vista educacional quanto do cultural537. Para Fernando de Azevedo,

comentando o impacto das “escolas americanas” no meio educacional paulista,

elas não apenas promoveram mudanças metodológicas, mas também

intensificaram a expansão do ensino538. Para Osvaldo Hack: “As igrejas norte-

americanas deram grande ênfase às instituições educacionais com a finalidade

de realizar uma propaganda indireta dos ideais de uma civilização cristã nos

moldes protestantes”. E isso com o claro propósito de promover uma

“propaganda indireta do Evangelho” a fim de “atrair as elites nacionais para os

meios protestantes, para orientá-los e fornecer-lhes os valores morais e

espirituais que eram tidos como a interpretação genuína do Cristianismo”.539

Organizadas a partir do final do Império e também durante a República,

essas “escolas americanas” não se diferenciavam apenas na confessionalidade,

mas também no tipo de atribuição para o qual eram constituídas e o tipo de

público a ser atendido pelas mesmas. Pode-se dizer que três grupos dessas

536 REILY Duncan Alexander, op cit, p. 37. 537 FREYRE Gilberto. Ordem e Progresso, op cit, p. 411. 538 AZEVEDO Fernando de, op cit, p. 265. 539 HACK Osvaldo Henrique. Protestantismo e Educação Brasileira, p. 59.

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instituições foram organizadas pelos missionários em território brasileiro: a

“escola americana” propriamente dita, fundada por missionários para educar as

camadas influentes da sociedade, como o caso do Mackenzie, dos colégios

batistas do Recife, Rio, Vitória, Belo Horizonte e São Paulo e do Instituto Bennett,

dos metodistas, no Rio; as escolas técnicas, destinadas a preparar os jovens

para o mundo do trabalho, a exemplo do Instituto Granbery, de Juiz de Fora

(MG), ligado aos metodistas, que tinha curso contábil, além do ginásio e o

colégio, e o Instituto Batista Industrial de Corrente, no Piauí, ligado à família

Nogueira Paranaguá. E por fim as escolas criadas à formação de líderes para as

igrejas organizadas ou em organização pelo país afora, sendo este o caso da

ETC, do Recife, ligado à Igreja Batista, e o Instituto Cristão de Castro, no Paraná,

vinculado aos presbiterianos.

Quando dizemos que o Protestantismo Brasileiro assumiu um discurso

“moderno” e “progressista”, é, principalmente, para destacar que o paradigma de

modernidade foi por muito tempo o seu emblema e Gilberto Freyre conseguiu

destacar isso quando lembra o esforço intelectual realizado no começo do século

XX por Álvaro Reis (1864 – 1925), portador da mensagem presbiteriana e

declarado maçom, de situar o Protestantismo como referencial por excelência de

modernidade, posto que teria proporcionado “a ascensão intelectual e social de

elementos que sem esse estímulo talvez se encontrassem inermes e

inexpressivos: indivíduos ‘saídos da pobreza’ que pela ‘influência direta do

evangelho’ haviam se tornado ‘luminares da sociedade’”.540 É também Gilberto

Freyre que vai chamar atenção para a presença desse protestantismo inserido

na cultura e na vida social brasileira a partir dos meados do século XIX. De fato,

embora sem escusar uma influência protestante nos meios rurais, fenômeno que

também foi percebido por Gilberto Freyre541 e que constituiu depois campo de

estudo para as pesquisas de Antonio Gouvêia de Mendonça e, em épocas mais

recentes, da antropóloga Lídice Ribeiro, doutora em Antropologia Social pela

540 FREYRE Gilberto. Ordem e Progresso, p. 97. 541 Ibidem, op cit, p. 844. Ainda nessa página, Freyre destaca a influência do Protestantismo em

certos extratos do universo rural paulista, mais tarde estudados por Gouvêia de Mendonça, bem como na

zona da mata pernambucana. Mas lembra também que “este alastramento foi precedido pela influência

sobre as elites brasileiras, do protestantismo, ao mesmo tempo que do anglo-saxonismo, através de colégios

para filhos de aristocratas e burgueses estabelecidos no Brasil ainda no Império”.

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USP e professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie542, não podemos

olvidar o fato de que o Protestantismo tinha por objetivo a transformação da

sociedade por meio do binômio educação e conversão. Conforme Gouvêia de

Mendonça, o protestantismo representava um “modo de vida” e “aceita-lo nos

seus princípios de crença implicava em mudança nos padrões de cultura”, o que

se fazia por meio dos colégios “cuja clientela foi principalmente conquistada nas

classes dominantes” e que “trazia no seu bojo a visão do Reino de Deus na terra,

que animou os primeiros puritanos que chegaram à Nova Inglaterra.543

A educação, como reflexo do discurso conversionista aponta o catolicismo

tridentino ultramontano como resultado pelo atraso do país e seu alto índice de

analfabetismo, levando então as camadas educadas da sociedade a optar por

um novo modelo presumivelmente mais “democrático” e com maior preocupação

pelo conhecimento544 e com clara ênfase na experiência social e religiosa dos

Estados Unidos. De fato, conforme a análise de um dos estudos mais recentes

sobre o tema:

Não há como negar o quanto tal pensamento encontrou ressonância nas elites

brasileiras, conhecedoras e seguidoras de idéias liberais, que desejavam, tal como os

missionários, fazer do Brasil um país segundo os moldes da Europa e dos EUA. Houve

uma convergência de interesses entre liberais e protestantes no Brasil. Se as idéias em

comum com as elites fizeram com que o Protestantismo tivesse algum êxito na educação

brasileira num determinado período, pelo mesmo motivo ele se distanciou mais ainda das

massas. No mesmo movimento residiam a força e a fraqueza do Protestantismo no

Brasil545.

É certo que a proposta educacional trazida pelos missionários por meio

das “escolas americanas” teve excelente acolhida no incipiente meio social

brasileiro do final dos oitocentos. Quando do falecimento do reverendo

542 RIBEIRO Lídice Meyer Pinto. “Protestantismo Rural: um protestantismo genuinamente

brasileiro”. In LEONEL João (org.) op cit, p. 197 – 236. 543 MENDONÇA Antonio Gouvêia de. O Celeste Porvir, p. 96. 544 Ibidem, p. 140. 545 CAMPOS Breno Martins & DOLGHIE Jaqueline Ziroldo. “Campo Cristão Brasileiro no século

XX: Declínio Católico, Estagnação Protestante e Crescimento Pentecostal”, in LEONEL João (org.) op cit,

p.39.

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presbiteriano George Nash Morton nos EUA, em 1917, Júlio de Mesquita, que

foi seu aluno no “Colégio Morton”, fundado por aquele missionário em Campinas,

em 1869, dirigiu-lhe um ditirambo em que o homenageado era descrito como o

“protótipo do educador”, mostrando assim seu reconhecimento pelos princípios

pedagógicos adotados pela escola.546 E que princípios eram esses? Salas

mistas, método intuitivo, estudo silencioso em detrimento da pura e simples

decoração das matérias, uso da Bíblia como livro básico em matéria de moral,

etc.547 a fundação do Colégio Mackenzie, em São Paulo, em 1870 (e que muito

ganhou com o fechamento do Morton)548, bem do Colégio Gamom, em Lavras,

no interior mineiro, em 1895549, contribuíram para consolidar a presença

presbiteriana no Sudeste além de associar a denominação com a causa

educacional550. Mas não apenas no Sudeste. Em Natal, em 1897, foi fundada,

por missionários presbiterianos, uma escola nos mesmos moldes do Mackenzie

e do Gamom e também supervisionada por uma educadora trazida dos EUA,

Rebeca Morrissette. A descrição dos métodos pedagógicos implantados na

escola lembra muito o que Themudo Lessa descreveu do antigo Mackenzie. 551

E a exemplo do ocorrido nas escolas abertas pelos presbiterianos em São Paulo

e Lavras, “muitos alunos de famílias ilustres entraram para o Colégio”552. Quanto

ao Mackenzie, o lançamento da sua Pedra Fundamental, em 1892, tornou-se um

grande evento social, tendo sido acompanhado por Cesário Mota, chefe do

triunvirato que assumiu o governo paulista após a proclamação da República, e

outros próceres do novo regime553 que também tratou de nomear uma professora

daquela escola, Marcia P. Brown, como encarregada da formação de

normalistas, dentro do modelo norte-americano, para atuar nas escolas

estaduais. Em Piracicaba, o Colégio Piracicabano, ligado aos metodistas criado

em 1878, também atraiu em torno de si as “melhores famílias” da cidade554 ao

passo que sua fundadora, Marta Watts, durante a República, a exemplo de miss.

546 LÉONARD Émile G, op cit, p. 148 – 149. 547 LESSA Vicente Themudo, op cit, p. 451. 548 Ibidem, ob cit, p. 86. 549 FERREIRA Júlio Andrade, op cit, I, p. 350 – 361. 550 LESSA Vicente Themudo, op cit, p. 452 – 453. 551 FERREIRA Júlio Andrade, op cit, I, p. 396. 552 Ibidem, p. 398. 553 LESSA Vicente Themudo, op cit, p. 450. 554 MENDONÇA Antonio Gouveia de, op cit, p. 114.

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Brown, foi igualmente chamada a orientar a política educacional do estado sob

o governo de Prudente de Moraes.

Desse modo fica configurada uma atividade missionária regular que tem

como principal característica o proselitismo por meio da pregação, bem como a

construção de uma relação de poder ligando esses missionários às camadas

médias urbanas e as elites agrárias da sociedade brasileira do século XIX e início

do XX, por meio desse mesmo tipo de discurso. O esforço educacional está por

inteiro tomado por essa idéia. No caso presbiteriano, conforme lembra Osvaldo

Hack, “uma das iniciativas da Missão da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos

era evangelizar por meio da educação. Portanto, a abertura de escolas fazia

parte do plano missionário de cada obreiro enviado ao Brasil”.555 A obra

educacional completava a pregação por meio do convencimento de que os males

do Brasil só poderiam ser solucionados por meio de uma mudança radical de

valores e visão de mundo e que só o Protestantismo conseguia levar a contento.

A seguinte citação do historiador batista Crabtree, muito elucidativa, é

confirmadora dessa estratégia:

Nós evangélicos estamos plenamente convencidos da superioridade dos nossos

ideais (...) Afinal de contas a evangelização do Brasil implica no conflito de dois sistemas

e o resultado final dependerá da possibilidade de demonstrar a superioridade do

Cristianismo Evangélico (...) o poder maravilhoso do Evangelho na transformação

imediata dos ideais do indivíduo, a superioridade das doutrinas batistas [grifos meus]

não será demonstrada exclusivamente no campo da evangelização. O povo ficará

convencido pelos frutos do evangelho. É justamente no campo de educação que o

evangelho produz os seus frutos seletos e superiores, homens preparados para falar com

poder à consciência nacional.556

Há outro aspecto que também precisa ser considerado no que concerne

à influência das “escolas americanas” na educação e na sociedade brasileira que

é a reprodução, por meio delas, do discurso positivista. Como escreve João Dias

de Araujo, a República Velha foi estruturada por meio de uma aliança entre os

555 HACK Osvaldo Henrique. Instituto Cristão de Castro, op cit, p. 42. 556 CRABTREE A.R, op cit,139 – 140.

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positivistas e a Maçonaria. Citando a dissertação de Jether Pereira Ramalho

defendida na PUC carioca em 1975, Araujo lembra que os ideais positivistas

foram defendidos e reproduzidos pelas “escolas americanas”, sobretudo pelo

Mackenzie paulistano, isso sem prejuízo das teses liberais clássicas como o

individualismo, o liberalismo, o sentido de responsabilidade, de disciplina e de

sucesso que se constituem, segundo essa perspectiva, nos fundamentos da

democracia e do progresso”.557

Apesar do tremendo esforço dispensado por todas as igrejas no sentido

de organizar escolas e por meio delas iniciar o trabalho de evangelização das

camadas letradas, o resultado final ficou muito aquém do desejado. Mesmo

quando se critica a natureza elitizada dos colégios católicos, como faz o

historiador batista Crabtree que menciona o caráter “elitista” daquelas escolas

como sendo voltados à determinada e influente parcela da sociedade558, fica

evidente, pelo relatos do próprio Crabtree, como também de Ginsburg, para só

ficarmos entre os batistas, que os colégios protestantes também não se saíram

melhor na democratização do ensino. Na verdade, como percebeu Léonard,

mesmo considerando o inestimável serviço prestado pelo Protestantismo

Brasileiro em prol da educação nacional, notadamente quanto a contribuição das

igrejas presbiteriana, metodista e batista, a estratégia de evangelizar as elites

nacionais a partir do esforço educacional para, logo em seguida, incorporá-las

ao seu redil, não produziu os mesmos resultados que, por exemplo, o

proselitismo direto. “Se se tratava de uma obra desinteressada”, escreve

Léonard, “melhor seria que os esforços das igrejas se houvessem destinado,

normalmente, a manter a própria evangelização”559. Pois, com efeito, não era a

primeira vez que se usava a Educação como instrumento de conversão das elites

já que os jesuítas também haviam se empenhado neste mister séculos antes.

Também é preciso destacar que entre as camadas influentes da sociedade

brasileira não prevalecia consenso sobre o tipo de modelo educacional a ser

gestado, pois, se por um lado haviam aqueles que viam com bons olhos a

influência católica na educação (Alceu do Amoroso Lima560, por exemplo) ou os

557 ARAUJO João Dias de, op cit, p. 28 – 29. 558 CRABTREE A.R, op cit., I, p. 140. 559 LÉONARD Émile G. op cit., p. 148. 560 Sobre Alceu do Amoroso Lima, ver o estudo de CURY Carlos Roberto Jamil. Alceu Amoroso

Lima. Coleção Educadores, MEC. Recife, Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.

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que tinham simpatias pela obra educacional protestante (como já vimos em

Gilberto Freyre e em Fernando de Azevedo), também havia os que pregavam

um ensino totalmente laico, como Anísio Teixeira, lembrando ainda que a idéia

de uma educação “moral e cívica” totalmente laica já é discutida na Velha

República, como destaca Methodio Maranhão que rechaçava ambas as

correntes, descrevendo a educação religiosa como “uma calamidade” e um

“crime de lesa-civilização”.561 Na verdade, o protestantismo pátrio apenas lhes

continuou a mesma estratégia com outros métodos. E nos dois casos o resultado

foi idêntico, isto é, “um êxito social indiscutível, mas que por outro lado

comprometem o seu próprio êxito religioso”562. E Gouvêia de Mendonça,

escrevendo nos anos 70, corroboraria as conclusões do pioneiro da história do

Protestantismo Brasileiro.563

7. A influência do ambiente norte-americano

A práxis missionária e educacional evidencia a influência do ambiente

religioso norte-americano no meio eclesial protestante brasileiro derivado da

Missão. Para entendermos como se dá esse processo, vamos recapitular

algumas observações que já foram feitas por Duncan Alexander Reily, e

relembrando que, dada a importância desse tópico, será necessário retomá-lo

mais adiante. Essas observações, de acordo com Reily, são as seguintes:

7.1. Predominância de uma “religião civil”, sem forma denominacional,

mas enraizada na vida social e religiosa do país.

561 MARANHÃO Methódio, op cit, p. 142. 562 LÉONARD Émile G, op cit, p.148. 563 MENDONÇA Antonio Gouvêia de, op cit., p. 96.

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Nos EUA não existe uma união Estado-Igreja, mas isso não quer dizer

que exista uma laicidade plena já que temos ali o elemento da religião civil, e

nessa “religião civil” o Cristianismo ocupa uma posição de destaque. Há um

capelão no Congresso e também oficiais de capelania nas forças armadas,

sustentados pelo erário público, isenção de impostos para templos, etc.564 Essa

“religião civil” faz parte da vida social do país, embora, na verdade, não tenha

um desenho institucional, nem uma identidade confessional. Ela não está

alicerçada por dogmas, embora estes também existam, mas antes se insere

dentro daquilo que Alexis de Toqueville que visitou os EUA na primeira metade

do século XIX, descreve como sendo o “mundo moral” que não perpassa por

sistemas ou convenções dogmáticas, mas que se impõe pelas regras morais e

que são essas regras, transformadas em um sistema religioso, que norteiam as

relações sociais e políticas. “A religião que, entre os americanos, nunca se

envolve diretamente no governo da sociedade, deve ser considerada, pois, a

primeira de suas instituições políticas, porque, conquanto não lhes dê o gosto

pela liberdade, facilita-lhes singularmente seu uso”.565 Eles até podem não ter fé

em sua religião, mas com toda certeza, ainda segundo Toqueville, a consideram

importante para a manutenção e consolidação das instituições republicanas e

para a sua própria liberdade individual, ou seja, para Tocqueville, o papel da

Igreja na consolidação das liberdades civis é puramente supletivo, mas

indispensável. Essa confusão pública entre a confessionalidade cristã e o

sentido estrito do termo cristão ou nação cristã também foi percebida mais

adiante, na segunda metade do século XX, pelo teólogo teuto-alemão Paul

Tillich: para Tillich:

Sempre ouvimos aqui nos Estados Unidos, discursos que dizem “nós somos uma

nação cristã”. Que quer isso dizer? Certamente não somos uma nação cristã em sentido

empírico. Somos extremamente anticristãos, como de resto, todas as nações da terra.

Talvez se queira dizer que há em nossa vida secular, e nas diversas expressões de nossa

vida nacional, uma substância que tem sido moldada pelo cristianismo. Se entendemos

564 REILY Duncan Alexander, op cit, p. 37. 565 TOQUEVILLE Alexis de. A Democracia na América, I, p. 342.

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assim, talvez a frase esteja correta, embora seja muito perigosa, especialmente quando

usada em propaganda anticomunista. Nesse momento, a frase se torna inaceitável, pois

nenhuma nação é totalmente cristã ou pagã, não importando as teorias seguidas pelos

governantes. Nenhum dos lados é correto.566

O pensamento de Paul Tillich está bem próximo de Toqueville quando

este afirma que os norte-americanos do seu tempo não estavam preocupados

em seguir a “verdadeira religião”, mas sim que todos os cidadãos “professem

uma religião”, pois essa religião, seja ela qual for por não ser uma religião do

Estado, está mais propensa a exercer uma influência sobre os costumes, sobre

as relações familiares e sociais, e desse modo, influenciar também os atos

privativos do Estado. De fato, conforme Toqueville, “a religião não regra apena

os costumes, ela estende seu império até a inteligência. Entre os anglo-

americanos, uns professam os dogmas cristãos porque acreditam neles, os

outros porque temem não parecer acreditar”.567 A questão, portanto, não é o tipo

de religião, mas como destaca Toqueville, a inserção em alguma. Ainda sobre

essa religião civil, Toqueville propõe a seguinte explicação:

Vi americanos se associarem para mandar padres (sic) aos novos estados do Oeste

e ai fundar escolas e igrejas; eles temem que a religião venha a se perder no meio das

florestas e que o povo que lá se cria não possa ser tão livre quanto aquele de que nasceu.

Encontrei ricos habitantes da Nova Inglaterra que abandonaram sua terra natal a fim de

lançar no Missouri ou nas pradarias do Illinois, os fundamentos do Cristianismo e da

Liberdade. Assim, nos Estados Unidos, o zelo religioso se aquece sem cessar ao pé do

fogo do patriotismo. Você acha que esses homens agem unicamente pensando na outra

vida, mas se engana: a eternidade é apenas uma de suas preocupações. Se você interrogar

esses missionários da civilização cristã, ficará surpreso ao ouvi-los falar com tanta

frequência dos bens desse mundo e de encontrar políticos onde acreditava ver religiosos.

“Todas as repúblicas americanas são solidárias umas das outras”, irão dizer-lhe. “Se as

repúblicas do Oeste caíssem na anarquia ou sofressem o jugo do despotismo, as

instituições republicanas que florescem a beira do Oceano Atlântico estariam em grande

566 TILLICH Paul, Perspectivas da Teologia Protestante, séculos XIX e XX, p. 147. 567 TOQUEVILLE Alexis de, op cit, I, p. 343.

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perigo. Portanto, temos todo interesse e que os novos Estados sejam religiosos, para que

nos permitam continuar livres”568.

7.2. Intepretação alegorista da Bíblia na lógica do “destino manifesto”.

Há uma automistificação acerca da imagem bíblica da libertação do povo

hebreu conduzido para fora do Egito por Moisés, analogia que será reproduzida

pelos puritanos do Mayflower.569 Os EUA eram vistos como nação abençoada

por conta de sua fé em Deus. A abertura do canal do Panamá pelos norte-

americanos (e o contraponto do fracasso da França no mesmo projeto) era, para

os missionários que estiveram na conferência panamenha de 1916, a prova de

recompensa pela fé depositada pelos EUA em Deus.570A guerra europeia de

1914 – 1918 que se desenvolvia no momento exato daquela conferência,

convenceu muitos missionários de que apenas os EUA eram a “nação escolhida”

por Deus para ser “modelo para o mundo”.571

7.3. A “religião civil” não exclui a identidade confessional que na verdade

se insere dentro daquela.

Essa religiosidade tem sua manifestação mais explícita e mais auto-

evidente na denominação cujo conceito pode ser assim exposto: a denominação

é essencialmente a estrutura eclesiástica “uma associação voluntária de

568 Ibidem, I, p. 342. 569 REILY Duncan, op cit, p. 37. 570 PIEDRA Arturo, op cit, I, p. 89. 571 Ibidem, p. 91.

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indivíduos com sentimentos e pensamentos comuns, unidos na base de crenças

comuns para o propósito de alcançar objetivos tangíveis e definidos.”572 Ela

também se entende como parte de um projeto divino maior que é em geral o da

propagação da palavra de Deus ou, como declarou a conferência constituinte da

Igreja Metodista Episcopal nos EUA (1784), “espalhar a santidade bíblica” pela

nação573. Além disso, o denominacionalismo também é “ecumênico” sendo o

“ecumenismo” entendido aqui como “a unidade subjacente à desunião

observável”, isto é, todas compartilhavam pontos de vista comuns ou que podiam

ser entendidos como base de uma essência comum, e nisso se diferenciavam

das seitas cujo discurso era totalmente exclusivista574. Por fim, a denominação

é um “meio” para se atingir a um determinado fim, fim esse que é a conversão

dos povos não-alcançados ou tidos por tenuamente cristianizados a fim de que

sejam trazidos para o redil cristão de tradição protestante, a exemplo dos

católicos latino-americanos. Mas para isso ela precisa estar investida de um

formato institucional (no sentido weberiano da palavra), que lhe dê recursos

materiais, bem como o embasamento teológico que sirva de discurso para o

proselitismo conversionista.

É praticamente a mesma coisa que vemos nos relatos sobre a introdução

do Protestantismo no Brasil. “O Espírito Santo (...) na plenitude dos tempos”,

escreve Crabtree, “preparou os brasileiros para receberem o Evangelho de

Cristo e, ao mesmo tempo, incumbiu os seus mensageiros (grifo meu) de

anunciar ao povo preparado as Boas Novas da Salvação”575. E o mesmo em

Ashbel Green Simonton: “Ouvi um sermão do Dr. Hodge sobre o dever da Igreja

como mestra. Que os pagãos devem ser convertidos está claramente revelado

nas Escrituras (grifo meu). Estou convencido de que devo levar o assunto em

consideração; se muitos preferem ficar, é meu dever ir.”576 E também em

Ginsburg, que embora não tenha sido formado no ambiente norte-americano era

dele tributário pela teologia e pela visão da Missão como chamamento: “eu

estava no Colégio estudando e gastando meu tempo e esperando a minha

572 REILY Duncan Alexander, op cit, p. 38. 573 Ibidem, p. 38. 574 Idem, p. 39. 575 CRABTREE A.R, op cit, I, p. 65. 576 HAHN Carl Joseph, op cit, p. 184.

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chamada (grifo meu) Sabia que no devido tempo o Senhor me abriria um

caminho.”577

Em resumo, a diversidade de igrejas não afeta o processo missionário, já

que todas estão imbuídas do mesmo propósito, isto é, o de levar a fé, mas

também introduzir aquilo que Osvaldo Hack descreveu como sendo a “civilização

cristã nos moldes protestantes578.” Assim, a denominação não é somente a igreja

formada e organizada institucionalmente, conforme teorizado por Weber579, mas

também os seus valores transmitidos por meio da missão e depois, através da

igreja local e do seminário onde se dá o processo de reprodução dos ensinos

herméticos, o discipulado e a formação das novas lideranças de obreiros que

irão, entre outras coisas, trazer essa “civilização cristã” moldada pelo

Protestantismo, junto com os dogmas, regras de fé e verdades de sua

denominação.

7.4. As igrejas protestantes brasileiras são oriundas de um ambiente

conservador, preconceituoso e racista.

A divisão vivida pelos EUA no curso do século XIX em torno da questão

da escravidão ganhou contornos dramáticos durante o ano de 1844 com

rachaduras que dividiram as igrejas metodista e batista. É a representação

sulista dessas igrejas – Igreja Metodista Episcopal do Sul e Convenção Batista

do Sul – que irá conduzir o trabalho missionário de suas respectivas

denominações no campo missionário brasileiro580. A formação institucional e

confessional dessas igrejas no Brasil seguirá, portanto, os influxos derivados

daquele meio social e eclesial cujas marcas culturais mais evidentes são o

conservadorismo (político e religioso) e o racismo.

577 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 41. 578 HACK Osvaldo, Protestantismo e Educação Brasileira, op cit, p. 59. 579 WEBER Max, op cit, 2, p. 368 – 369. 580 REILY Duncan Alexander, op cit, p. 42.

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É bem verdade que a Igreja Presbiteriana se manteve unida, pelo menos

até perto do início da guerra civil (1861), bem como também é vero que o pioneiro

presbiteriano Simonton foi enviado por um comitê missionário nortista (Nova

York) sendo ele igualmente oriundo do meio nortista e ainda partidário da

abolição. Contudo, não podemos esquecer também que a despeito dessas

credenciais ele é, igualmente, produto de um ambiente conservador, nesse caso,

do seminário presbiteriano da Universidade de Princeton onde Simonton foi

aluno de Charles Hodge (1797 – 1878), teólogo tão conservador na política

quanto na teologia. Tendo estudado na Alemanha antes de iniciar sua longa

docência em Princeton, Hodge, que não era um teólogo criativo e que deu pouca

atenção à filosofia, propugnou uma teologia bíblica em constante diálogo com a

História da Igreja. Para Hodge a teologia era simplesmente “a ciência dos fatos

da revelação divina até onde esses fatos dizem respeito à natureza de Deus e á

nossa relação com ele, como suas criaturas, como pecadores e como sujeitos

da redenção”581. John H. Leith que não classifica Hodge como fundamentalista

admite, porém, que as idéias do teólogo de Princeton podem sim se transformar

em fundamentalismo quando repetida de forma estéril numa nova situação582.

Charles Hodge é um sistematizador de uma escola teológica, como explica John

H. Leith: “Com base na ‘filosofia do senso comum escocês’, Hodge [pai] expôs

as três características ortodoxia princetoniana: um conceito estático da História;

a inspiração verbal dos textos originais da Bíblia e a intransigência

denominacional583”.

As noções teológicas de Simonton foram formadas da fusão entre a Old

School, representada por Hodge, e a New School, representada pelos adeptos

das práticas religiosas consubstanciadas na expressão “Metodismo de

Fronteira”: pouca ou nenhuma liturgia, pregação avivalista, exaltação do

individualismo e do sentimentalismo. Além do mais, boa parte do trabalho

missionário presbiteriano no Brasil foi desenvolvida pelo comitê missionário de

Nashville que começou a enviar missionários para o Brasil a partir de 1869,

sendo o primeiro deles, o já referido professor George Nash Morton, que se

estabeleceu em Campinas, no interior paulista onde fundou o Colégio Morton no

581 HODGE Charles, op cit, p. 16. 582 LEITH John H. A Tradição Reformada, p. 187. 583 Ibidem, p. 216.

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qual Júlio de Mesquita estudou, além de responder pela congregação ali

organizada pela Missão. Morton, “oriundo de antiga e aristocrática família da

Virgínia, onde se encontram as tradições mais cavalheirescas dos Estados

Unidos”584, é o ponto de partida das atividades daquela junta missionária que fez

de Campinas, por alguns anos, a base das atividades da Missão de Nashville,

dos presbiterianos sulistas, cujo campo de atuação abrangia também Minas

Gerais (Lavras), Pernambuco, Alagoas e Maranhão585. Fletcher, como já vimos,

constituía-se também numa exceção, mas exceções não se constituem regras.

Os ministros metodistas enviados ao Brasil foram todos comissionados

pelo comitê de missões da Igreja Metodista Episcopal do Sul e tinham em comum

com os batistas a mesma origem sulista e a mesma passagem por

estabelecimentos de ensino daquela região. Junius Newman586 e John James

Ranson587 eram egressos do ambiente sulista, tendo o primeiro pastoreado a

comunidade metodista formada por exilados confederados em Santa Bárbara do

Oeste588 enquanto o segundo fundou a igreja metodista do Catete, no Rio. O

missionário James Terrell (1868 – 1943), pioneiro metodista no Rio Grande do

Sul, estudou no Emory & Henry College, uma das instituições de ensino superior

mais antigas do estado da Virgínia589 enquanto o reverendo William Tarboux

(1858 – 1940), primeiro bispo da Igreja Metodista do Brasil, obteve sua

graduação na faculdade Wofford, uma instituição confessional ligada à Igreja

Metodista e situada na Carolina do Sul590, o primeiro estado a desfraldar a

bandeira da Confederação. Do mesmo modo a atividade missionária dos batistas

registrou uma total centralização por parte da Junta de Missões de Richmond,

Virgínia, antiga capital da Confederação e um dos centros do movimento batista

do Sul. Foi a Junta de Richmond a responsável pelo envio de várias gerações

de missionários batistas ao Brasil.

584 FERREIRA Júlio Andrade, op cit, I, p. 77. 585 ALMANACH EVANGELICO BRASILEIRO, p. 60. Judith Mac Knight Jones lembra também

que em 1866 o sínodo da Carolina do Sul pediu a Assembléia Geral da PCUSA para que enviasse ministros

para os colonos norte-americanos no Brasil. JONES Judith Mac Knight, op cit, p. 189. 586 ROCHA Isnard, op cit, p. 33 – 35. 587 Ibidem, op cit, p. 36 – 39. 588 JONES Judith Mac Knight, op cit, p. 217. 589 ROCHA Isnard op cit, p. 158 – 160. 590 Ibidem, op cit, p. 142 – 145.

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É também preciso destacar que além da rivalidade política entre o Norte

e o Sul dos EUA decorrente da escravidão, esta também impelia outro tipo de

litígio que era a rivalidade teológica. “Os teólogos sulistas protestantes”, escreve

David Gueiros Vieira, “eram ortodoxos interpretes das Escrituras Sagradas –

‘fundamentalistas’, nos termos hodiernos. A escravidão era tida como uma

instituição ordenada por Deus. O negro era um descendente de Cam,

amaldiçoado por Deus para ser sempre o ‘servo dos servos de seus irmãos’. O

protestantismo sulista acreditava que ele, só ele, era o verdadeiro defensor da

palavra de Deus”.591 Para o ambiente teológico conservador do Sul, a Teologia

em voga no Norte era apóstata, fosse por causa do Unitarismo, fosse por conta

das simpatias que muitos seminários da região nutriam pela alta crítica da Bíblia

levada a efeito nas universidades alemãs e recebida pelos círculos mais

progressistas do Norte. O Unitarismo, que rejeita a compreensão trinitária cristã,

havia adentrado no meio protestante norte-americano no final do século XVIII,

tomando de assalto as igrejas congregacionais calvinistas da Nova Inglaterra e

depois o seminário teológico da Universidade de Harvard, instituição de ensino

que até aquele momento também estava ligada ao calvinismo592. O já citado

Augustus Strong, que como Hodge também estudara no Norte onde da mesma

maneira exerceu o magistério lecionando por anos no Seminário Teológico

Batista de Rochester, Nova York, compartilhava das mesmas opiniões dos seus

colegas batistas do Sul na crítica ao unitarismo, relacionando-o com as novas

tendências teológicas que condena em sua obra: “Parece que estamos à beira

do precipício de uma repetida falha unitária, que esfacelará igrejas e compelirá

a cisões, de maneira pior que a de Channing593 e Ware594 há um século”595. É

591 VIEIRA David Gueiros, op cit, p. 212. 592 TILLICH Paul, op cit, p. 41. Tillich concorda que o liberalismo teológico europeu influenciou

o unitarismo norte-americano, mas com a diferença de que lá essa influência foi profundamente eclesial.

“Enquanto na Europa o liberalismo se limitava a ser um movimento dentro do sistema eclesial das igrejas

territoriais, nos EUA ele se transformou numa igreja, no unitarismo”. 593 Willian Ellery Channing (1780 – 1842), teólogo unitarista norte-americano que polemizou com

os ministros calvinistas ortodoxos no começo do século XIX resultando da controvérsia unitária o

deslocamento de um número significativo de igrejas congregacionais situadas na Nova Inglaterra, do campo

calvinista. Channing também gastou muito tempo procurando diferenciar o Unitarismo do Socinianismo. 594 Henri Ware (1764 – 1845), teólogo unitarista norte-americano. Professor da Faculdade de

Teologia da Universidade de Harvard desde 1805, participou do processo de transição dessa instituição de

ensino do campo calvinista para o unitário. Sobre Channing e Ware, ver

ttp://archive.vcu.edu/english/engweb/transcendentalism/authors/wechanning/channingunitarian.html

acesso 29 de agosto de 2016. 595 STRONG Augustus Hopkins, op cit, I, op cit, p. 13.

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digno de nota que o teólogo Robert Louis Dabney (1820 – 1898) professor do

Union Theological Seminary de Richmond, sendo já nessa época reputado como

um teólogo competente, ainda que fervoroso partidário da escravidão tenha

declinado de lecionar no Norte do país por não aceitar o modo de vida dos

yankees e isso não apenas com relação à escravidão, mas também quanto a

outros temas como o industrialismo nortista.596 Em suma, embora a escravidão

fosse o pomo de discórdia, não era essa a única razão pela desavença religiosa,

mais decorrente das diferenças culturais que permeavam a religião do que

propriamente por questões pontuais específicas.

É também preciso destacar a influência de teólogos ou burocratas de

conselhos e juntas missionárias em sua atuação no sentido de formular diretrizes

e estratégias missionárias de evangelização na América Latina em geral e no

Brasil em particular. Nesse sentido, cumpre destacar a atuação de Robert Speer

(1867 – 1947), missionário presbiteriano com atuação no Oriente (China, Pérsia,

Índia) e na América do Sul e Edward Ewery (1862 – 1941), bispo anglicano das

ilhas Falklands (Malvinas). Ambos defendiam a necessidade de ação missionária

na América Latina sendo que na Conferência de Edimburgo esse discurso foi

usado para confrontar protestantes e católicos que defendiam a tese de que a

América Latina era um continente cristão e que não precisava, portanto, de ação

missionária. Para os representantes das juntas missionárias norte-americanas,

a “depravação moral” da América Latina já era um motivo em si para justificar a

ação missionária, e reforçavam esses argumentos com os relatórios de

missionários que destacavam o caráter sensual da vida social desses povos597.

A influência dessa teologia se fez sentir no Brasil tão logo estabelecidas

as fundações das igrejas protestantes e constituídos os seminários. No caso

presbiteriano, já vimos o papel de Charles Hodge na formação espiritual e

intelectual de Ashbel Simonton, mas ela não fica restrita apenas a essa igreja,

posto que também os batistas irão recorrer à sua Teologia Sistemática, que junto

com a de Augustus Strong, tão conservadora quanto a de Hodge, constituirão a

base da formação teológica das primeiras gerações de ministros batistas, como

revela o missionário e docente do STBSB Alva Bee Langstom (1878 – 1965)

596 VIEIRA David Gueiros, op cit, p. 212 – 213. 597 PIEDRA Arturo, op cit, I, p. 74.

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autor do primeiro manual para a instrução semineral da Igreja Batista: “Quem ler

esta obra há de notar a grande influência dos meus mestres, doutores Strong,

Clark598, Mullins599, Hodge e outros. Estudei cuidadosamente as obras destes

autores e, por isso mesmo, não posso deixar de manifestar aqui (...) a minha

dívida de gratidão para com todos eles”600. Como Hodge, Strong também investe

contra a escola liberal alemã, posto que enquanto o teólogo presbiteriano ataca

o pensamento teológico de Friedrich Schleiermacher (1768 – 1834),601 o batista

investe contra a obra de Albrecht Ritschl (1822 – 1889)602. Langstom, além de

exercer o magistério teológico, esteve bem próximo de Ginsburg com quem

organizou um instituto bíblico na Bahia, em 1911, com obreiros nacionais e

missionários estrangeiros e do qual, ao seu término, teria, segundo Ginsburg,

resultado no batismo de mais de mil pessoas, afora crentes que haviam se

“reconciliado” e tornado ao redil batista.603 Sem dúvida, Langstom é influência-

chave para entender a recepção da teologia de Hodge-Strong tanto pelo meio

batista brasileiro em geral quanto pelo próprio Ginsburg em particular.

7.5. Essa religiosidade é profundamente anticatólica

598 Provavelmente John Clarke (1609 – 1676), médico e ministro batista, um dos fundadores da

colônia de Rhode Island e da primeira igreja batista na Nova Inglaterra, em Providence, Rhode Island, em

1639. Perseguido pelos puritanos de Massachussetts por negar a validade do batismo infantil, apelou ao rei

Carlos II em 1663 sendo a sua petição, a famosa Rhode Island Royal Charter, um dos primeiros documentos

redigidos em prol da liberdade religiosa nas colônias inglesas. Após a independência, a carta permaneceu

como documento legal até 1843. 599 Edgar Young Mullins (1860 – 1928). Formado em Teologia pelo Seminário Batista do Sul de

Louisville, em 1885, foi recusado pela Junta de Missões de Richmond para ser missionário no Brasil embora

não deixasse de atuar na causa das missões tornando-se mais tarde secretário da Junta de Missões

Estrangeiras, em Richmond. Foi também professor e depois diretor do Seminário de Louisville (1899) e

perto de sua morte eleito presidente da Aliança Batista Mundial. Seus escritos exerceram profunda

influência no meio batista do começo do século XX, especialmente a Baptist Faith and Message, que se

tornou a declaração de fé dos batistas do Sul dos EUA, publicada em 1925 e revista em 1963, 1998 e em

2000 onde foram aprofundadas as teses conservadoras. 600 LANGSTON A B Esboço de Teologia Sistemática, p. 5. 601 HODGE Charles, op cit, p. 123. 602 STRONG Augustus Hopkins, op cit, I, p. 13. 603 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 164 – 165 e, p. 231.

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Finalmente, um último ponto, talvez o mais importante de todos: o

contexto eclesial norte-americano é marcadamente anticatólico. Esse

anticatolicismo tem raízes formadas ainda na tradição religiosa da Reforma

Inglesa, sobretudo por conta das perseguições promovidas pela rainha Maria,

católica e ligada pelos laços de casamento à Espanha. Durante o seu reinado

(1553 – 1558) aproximadamente 300 pessoas, entre as quais os bispos Thomas

Cramer, de Canterbury, e Ridley, de Londres, foram martirizadas, ficando daí

uma cultura anticatólica que encontrou no Livro dos Mártires604, de John Foxe,

uma de suas expressões mais acabadas. O livro, publicado em 1587, sinaliza a

reação anticatólica do reinado da rainha Isabel (1558 – 1603) que tanto por meio

do Ato de Religião (1558) que institui a Igreja Anglicana, como por sua própria

guerra contra a Espanha, bastião da contrarreforma, irá atravessar a Era Stuart

e chegará à Nova Inglaterra com o Mayflower e outros grupos religiosos

dissidentes. Além disso, no século XIX, as grandes ondas de imigração

irlandesas, notadamente as que ocorrem no período da “grande fome” de 1846

a 1851 e que tiveram os EUA como um dos seus principais centros de destino,

contribuíram para provocar um desequilíbrio nas estatísticas que apontavam até

aquele momento a população como sendo de grande maioria protestante.

Escolas paroquiais católicas tiveram que ser construídas e apelos ao Congresso

norte-americano foram feitos para que as mesmas fossem reconhecidas pelo

Estado.605 Tudo isso colaborou para a formação de um ambiente anticatólico

bastante sectário nos EUA do século XIX.

Já vimos que os batistas estadunidenses que vieram para o Brasil não

consideravam o Catolicismo como uma religião cristã606. Os presbiterianos não

tinham opinião diferente. Desde 1835 a Assembléia Geral da Igreja Presbiteriana

já havia se posicionado em não reconhecer a Igreja Católica Romana como

igreja cristã descrevendo-a como “apóstata”, etc. E em 1845 a mesma

Assembléia, por sugestão do presbitério de Ohio, declarou também que o

batismo católico não tinha validade alguma607. A fundação da Aliança

Evangélica, em 1867 e instalada no Brasil desde 1903 também compartilhava a

604 São Paulo, Mundo Cristão, 2003. 605 REILY Duncan Alexander, op cit, p. 43 – 44. 606 CRABTREE A.R, op cit, I, p. 57. 607 HAHN Carl Joseph, op cit, p. 180 – 181.

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mesma opinião sobre o Catolicismo, isto é, de que era “apóstata”, etc., opinião

essa que, com raras exceções608 era seguida pela quase totalidade do

movimento protestante brasileiro a ela filiado609.

Além disso, o catolicismo era responsabilizado por ter “permitido” a

“depravação moral” da América Latina e por consentir que uma religião sem

autenticidade fosse vivida pelo povo da região que, segundo esses missionários,

só ia a igreja em momentos de necessidade.610 Esse discurso é claramente

repetido pelo historiador batista Crabtree: “Por três séculos o Brasil foi isolado

do mundo, e o catolicismo era a única religião que podia ser apresentada ao

povo brasileiro. Portanto, o catolicismo teve tempo e oportunidade para produzir

os seus frutos legítimos”.611

Os missionários norte-americanos ou ligados à igrejas norte-americanas,

como Ginsburg, tinham em seu discurso religioso um sentimento anticatólico

profundamente enraizado. Em outro tópico já vimos como Kalley e Simonton se

posicionavam acerca da Igreja Oficial e reconhecida pelo Estado612. Contudo,

embora norteadas pelo combate ao inimigo comum, as críticas feitas por

Simonton durante o Império e as de Ginsburg já na República, possuem matrizes

diversos sendo que as de Simonton podem ser consideradas em sua maior parte

teológicas e as de Ginsburg são em parte teológicas e em parte também

políticas. O advento da República certamente explica boa parte a radicalidade

do segundo, mas não só isso: Embora oriundo do ambiente europeu que

diferente do norte-americano considera a América Latina um continente cristão,

reforçando, como já vimos, essa idéia na conferência de Edimburgo, a pregação

de Ginsburg reflete a práxis religiosa dos não conformistas e que tem conexões

no contexto eclesial norte-americano marcado pelo denominacionalismo. Além

disso, temos que observar o quanto a influência maçônica colaborou na

formação do seu discurso anticatólico ou, pelo menos, de uma visão negativa do

catolicismo na formação da sociedade brasileira. Para Ginsburg, o catolicismo

com sua prática religiosa “pior que a pagã, por causa dos seus galvanizos

608 O reverendo metodista John James Ranson reconhecia como válido qualquer batismo, inclusive

o católico, posto que fosse feito em nome da Santíssima Trindade. HAHN Carl Joseph, op cit, p. 274. 609 REILY Duncan Alexander, ob cit., p. 227. 610 PIEDRA Arturo, op cit, I, p. 74 – 75. 611 CRABTREE A.R, op cit, I, p. 44. 612 Ver capítulo I, 3.2.

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cristãos” é a razão pela situação de pobreza e entorpecimento moral e espiritual

do país: “o problema principal do nosso trabalho no Brasil é o problema universal

do pecado de todas as nações, agravado por quatrocentos anos de Catolicismo

Tropical613” (sic). Essa afirmação também é reveladora já que mostra que

Ginsburg, embora fazendo parte de uma denominação que naquele momento

está distanciada dos demais grupos protestantes, reproduz o discurso

preconceituoso de seus líderes como Robert Speer: “note-se que eu digo

‘Catolicismo Romano Tropical’, porque acredito que o Catolicismo Romano num

clima tropical é pior que no temperado ou frio.”614 Para Ginsburg, portanto, a

missão se impunha por si mesma, isto é, pela necessidade que se tinha da parte

dos cristãos formados na cultura anglo-saxônica de evangelizar um povo que

não possuía virtude em si mesmo.

7.6. Inferências institucionais dos EUA na vida social brasileira por meio

da atividade missionária.

Nesse sentido é importante também destacar o papel político dos EUA

como agente fomentador da Missão no continente latino-americano. Como no

século XIX o papel institucional de governos – e suas respectivas forças armadas

– no amparo aos empreendimentos missionários se fará presente,

especialmente na Índia, África e Oceania, os EUA também assumirão, nesse

sentido, o mesmo papel de coadjuvante político desse tipo de empreitada. Essa

atitude teve indeléveis efeitos práticos quando, nos primórdios do ministério de

Simonton no Rio, tanto o cônsul norte-americano na corte, Robert S. Scott

quanto o chefe da legação desse país no Brasil Richard K. Meade garantiram

não só ao missionário presbiteriano como a outros que solicitassem seu auxílio,

a proteção diplomática do governo dos EUA.615 Daí a rejeição, por parte dos

613 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 246. 614 Ibidem, p. 246. 615 VIEIRA David Gueiros, op cit, p. 137.

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missionários e líderes eclesiais norte-americanos das decisões da Conferência

de Edimburgo, e da qual a resultou a sua antítese, a Conferência do Panamá,

em 1916, onde a América Latina foi transformada em campo missionário.

Ao longo do século XIX, muitos intelectuais e políticos brasileiros

alimentarão simpatias pelos EUA apesar de eventuais excessos da diplomacia

daquele país como os que foram praticados pelo general Willian Trousdale na

década de 1850 e que tentou da forma mais agressiva persuadir o governo

imperial a abrir o Rio Amazonas à navegação internacional.616 A atividade

diplomática de Fletcher, na segunda metade do século XIX, conseguiu aparar as

arestas e vender a imagem dos EUA como o país do progresso e da técnica, que

muito tinha para oferecer ao Brasil notadamente no campo do ensino. O

resultado foi que no decorrer de sua permanência no Brasil, Fletcher constituiu

um círculo de relações bastante influente – os “amigos do Progresso” – boa parte

deles com posições-chave na administração pública. O diplomata Joaquim Maria

Azambuja (1812 – 1896) engajou-se pessoalmente no projeto de atrair ex

combatentes confederados bem como acatólicos em geral.617 O deputado

Francisco Leite de Bittencourt Sampaio (1807 – 1892), cultivador da poesia

anglo-saxônica, também envidou esforços em favor da imigração de não-

católicos e defendia, segundo David Gueiros Vieira, uma renovação progressista

do país sob a égide da influência anglo-saxônica618. O visconde de Bom Retiro

(Luiz Pedreira do Couto Ferraz, 1818 – 1886), também era amigo de Fletcher

que lhe faz louvores laudatórios em seu livro sobre o Brasil. Além de defender

os interesses da comunidade luterana da província do Rio, chegando a solicitar

o aumento dos vencimentos para o pastor responsável pela igreja luterana de

Nova Friburgo, Friedrich Sauerbronn, lembrando que nessa época a Igreja

Católica era a religião do Estado, atacou o bispo de Olinda, Dom Vital, por conta

da Questão dos Bispos (1872 – 1874), assumindo a posição regalista do Estado,

possivelmente como reflexo de sua filiação à Maçonaria.619 O Dr. Caetano

Furquim de Almeida (1816 – 1879) “batizado em todas as opiniões progressistas

e sensatas da escola anglo-saxônica”, também foi um exímio defensor da

616 Ibidem, op cit, p. 63 – 64. 617 Ibidem, p. 84 – 85. 618 Idem, p. 85. 619 Idem, p. 85 – 86.

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imigração de ex combatentes confederados para o Brasil.620 Francisco Otaviano

de Almeida Rosa (1825 – 1889), intelectual e homem público, deputado geral por

várias legislaturas, profundo conhecedor da literatura inglesa tinha muita coisa

em comum com Fletcher: a abolição da escravidão, a reforma no ensino e a

abertura do Amazonas à navegação internacional.621O Dr. Manoel Pacheco e

Silva (1812 – 1889), interessado na reforma do ensino, esmerou-se em traduzir

para o português livros escolares norte-americanos que seriam adotados no

Brasil622. O deputado Pedro Luiz Pereira de Souza (1839 – 1884), outro devoto

das letras anglo-saxônicas, além de muito amigo de Fletcher era conhecido pela

sua ojeriza pelos jesuítas.623 Também o senador José Inácio Silveira da Mota

(1807 – 1893), tinha em comum com Pedro Luiz o anticlericalismo e a defesa do

fim do escravagismo624. Finalmente Aureliano Tavares Bastos (1839 – 1875),

além de defender a abertura do rio Amazonas, bem como dos portos costeiros à

navegação estrangeira, também sustentava posições favoráveis ao livre

comércio usando argumento e retórica muito similar a dos protestantes liberais

(e que mais tarde reaparecerão nas Lembranças do Passado, de João Gomes

da Rocha625), embora, por outro lado, condenasse a miscigenação racial,

levando-o a ser visto com antipatia por alguns intelectuais como Francisco

Otaviano, cuja ascendência africana era evidente.626

De fato, quando pensamos nessas relações é que conseguimos entender

como, a despeito de eventuais dificuldades de adaptação e perseguições o

protestantismo conseguiu firmar bases sólidas no Brasil e ainda angariar

prestígio junto às camadas mais influentes da sociedade de uma forma que nem

sempre foi desfrutada pela Igreja Católica, ao menos no Imperio e na primeira

parte do período republicano, não obstante sua característica de religião do

Estado. Enquanto na Questão dos Bispos, D. Vital, bispo de Olinda, e D. Macedo

da Costa, bispo de Belém do Pará, contaram com a oposição praticamente

unânime da imprensa, políticos e maçons, as missões protestantes foram

consideravelmente incentivadas por ambos. Kalley contou com o apoio do

620 Idem, p. 88. 621 Idem, p. 90. 622 Idem, p. 91. 623 Idem. 91 – 92. 624 Idem, p. 93 – 94. 625 ROCHA João Gomes da op cit, I, p. 12. 626 VIEIRA David Gueiros, op cit, p. 95 – 103.

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próprio Dom Pedro II no auge das perseguições que sofrera no Rio e em

Petrópolis.627 O confisco de Bíblias editadas por sociedades bíblicas americanas

e britânicas foi assunto de debates no parlamento tendo o deputado maranhense

Francisco Belfort Duarte (cuja esposa, dona Maria Bárbara, tornou-se mais tarde

membro da Igreja Presbiteriana no Maranhão)628, junto com o mineiro Teófilo

Otoni e Tavares Bastos se posicionado contrário a medida629. O mesmo Tavares

Bastos também influiu de modo ativo no estabelecimento de escolas

protestantes no Brasil.630 Como destaca Carl Joseph Hahn, Fletcher

“provavelmente mais do que qualquer outro missionário, tornou o protestantismo

atraente nos círculos da corte do Rio de Janeiro – funcionários do governo que,

ocasionalmente, assistiam as pregações desse homem simpático e cortês”.631

A política de boa vizinhança continuou na República, dessa vez sob o

influxo do missionário metodista Hugh Clarence Tucker, que exerceu no novo

regime o papel que coube a Fletcher durante o Império. Tendo vindo para o Brasil

como missionário e assumindo depois o pastorado da Igreja Metodista do bairro

carioca do Catete, Tucker é tido como um dos expoentes do Evangelho Social

no país632, ligando seu nome ao Instituto Central do Povo fundado no bairro

carioca da Gamboa e voltado ao atendimento da população marginalizada e

carente da região central da antiga capital federal, um trabalho que ultrapassava

o lado meramente assistencial, mas, que, ao contrário, efetivamente, se

constituía em um amplo esforço de atendimento médico e de higienização de

toda uma vasta gama de pessoas amontoadas nos pardieiros da região central

do Rio de Janeiro.633 Além disso, Tucker, como Kalley, desfrutou de ótimas

relações com setores influentes da vida social e política do país e mesmo com

elementos de outras denominações como Eduardo Carlos Pereira com quem

trabalhou no projeto da primeira tradução da Bíblia feita no Brasil, a Tradução

Brasileira, publicada na íntegra em 1917, trabalho de anos onde contou ainda

com a consultoria gramatical de membros da Academia Brasileira de Letras

627 Ibidem, p. 121 – 123. 628 Ibidem, p. 158. 629 Idem, p. 157 – 158. 630 Idem, p. 160. 631 HAHN Carl Joseph, ob cit, p. 173. 632 RENDERS Helmuth. “Evangelho Social”; in DICIONÁRIO BRASILEIRO D E TEOLOGIA,

op cit, p. 410. 633 REILY Duncan Alexander, op cit., p. 282 – 287.

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como Rui Barbosa e Heráclito Graça. Além desses, o círculo de amigos de

Tucker abrangia ainda Machado de Assis, José Veríssimo, Virgílio Várzea,

Antonio da Costa Correia Leite e Oswaldo Cruz634. Seu espírito conciliador,

formado na mesma tradição daquela que concebera John James Ranson o

inoculou do ambiente sectário do protestantismo nacional o que o tornava um

interlocutor aceitável nos círculos intelectuais, sociais e políticos mais elevados.

É claro que nem todos compartilhavam dessa simpatia pela nação

estadunidense. “Não havia nada que me desse idéia na América do Norte, da

superioridade de suas instituições sobre as inglesas”, escreveu Joaquim Nabuco

(1849 – 1910) que exerceu por algum tempo funções diplomáticas naquele país.

“A atmosfera moral em roda da política era seguramente mais viciada. A classe

de homens a quem a política atraia, inferior, isto é, não era a melhor classe da

sociedade como na Inglaterra (...) o que a sociedade tem de mais escrupuloso

afasta-se naturalmente da política”635. Mesmo o sentimento de igualdade é visto

pelo escritor pernambucano com ressalvas. Há de fato uma preocupação em

assegurar-se a plena igualdade de todos perante a lei, mas, por outro lado, a

idéia de uma excelência individual intrínseca (“cada homem é um rei e cada

mulher é uma rainha”, explica Nabuco), gera um profundo sentimento de orgulho

do qual “renascerá senão a desigualdade, porquanto a igualdade pode ficar

entranhada no sangue da raça, o servilismo”. Daí a constatação de Nabuco de

que a noção de igualdade perante a lei e a justiça – “qualquer que possa ser o

sentimento de igualdade de condição” – era maior na Inglaterra do que nos

EUA636.

O paulistano Eduardo Prado (1860 – 1901), ligado ao mundo do café era

um crítico veemente da influência estadunidense na sociedade brasileira:

“pretender identificar o Brasil com os Estados Unidos, pela razão se serem do

mesmo continente, é o mesmo que querer dar a Portugal as instituições da

Suíça, porque ambos os países estão na Europa”.637 Para Eduardo Prado, os

EUA nunca apoiaram a América Latina no seu projeto de independência, pelo

634 GIRALDI Luiz Antonio, op cit, p. 94 – 104 e p. 145 – 151. 635 NABUCO Joaquim. Minha Formação, p. 174. 636 Ibidem, p. 178. 637 PRADO Eduardo. A Ilusão Americana, p. 11.,

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contrário, esse foi apoiado pelos ingleses.638 Os EUA não eram solidários, mas

não poucas vezes adversários do mundo hispânico não apoiando e muitas vezes

hostilizando seu processo político de independência.639 As relações com os

vizinhos como o México eram pautadas pela dominação e não pelo respeito.640

“Nos Estados Unidos”, escreve Eduardo Prado, “a palavra América significa a

parte do novo continente que obedece ao governo de Washington. Respeitam

os americanos a soberania da Inglaterra no Canadá e, por todas as outras

nações há, nos benévolos, numa grande indiferença, e nos outros um sentimento

acentuada superioridade, que é feito de amor próprio e de desprezo pelos sul-

americanos”.641 É curioso que Eduardo Prado não veja a ação da política inglesa

na América do Sul como imperialismo, mesmo quando esta exercia o domínio

territorial sobre parte do continente. A violência e a pretensão de dominar

grandes territórios por meio de achaques e torpezas diplomáticas são premissas

do governo de Washington e os exemplos da guerra contra o México e os

ataques de flibusteiros norte-americanos na América Central na década de 1850

são para o escritor paulistano, ilustrações de suas teses nesse sentido.

Também é oportuno lembrar que a vinculação protestantismo-EUA

aparecia de igual modo como mote do discurso católico que via nessa relação

uma indelével política imperialista. Escrevendo em 1898 para o governador

(presidente) do estado do Amazonas, o frade espiritiano Xavier Libermann

advertia acerca da atividade missionária protestante entre os índios do vale

amazônico, usando esse refrão: “profetizo que os ministros protestantes que já

trabalham com muito sucesso no Takutu, conseguirão não apenas instalar sua

língua inglesa, mas dentro de pouco tempo até sua bandeira naquela região

indígena”642. E ainda na década de 20 esse argumento será de novo repisado

pelo cônego Antonio Valente, de Maceió, que descreve como “propaganda do

americanismo batista” levada a efeito por “emissários americanos”, o trabalho de

proselitismo feito pelos batistas no estado de Alagoas643. A associação entre o

638 Ibidem, p. 15. 639 Idem, p. 19. 640 Idem, p. 29 - 32. 641 Idem, p. 91. 642 AZZI Riolando; GRIJP Klaus van der. História da Igreja no Brasil, III, 2, 3/2, p. 62. 643 MEIN John, op cit, p. 51.

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liberalismo protestante e o imperialismo norte-americano era parte tanto do

discurso conservador monarquista quanto do catolicismo ultramontano.

Essas opiniões foram rapidamente jogadas na periferia das idéias e para

isso certamente contribuiu muito o espírito monarquista que unia o diplomata

pernambucano ao escritor paulistano. Em 1891 a nova constituição republicana

é promulgada estabelecendo as bases jurisdicionais dos “Estados Unidos do

Brasil” (artigo 1º), implantando o mais amplo federalismo nos moldes norte-

americanos, embora sob a sombra da influência positivista qual é inquietante

testemunho a constituição do Rio Grande do Sul, que só foi possível graças ao

ambiente federativo da República Velha; e, além disso, a reverência e os

encômios depositados à memória de Benjamin Constant, apóstolo do positivismo

no Brasil e advogado da tese da “ditadura científica” defendida pelo “fundador da

República” e por seus alunos, os “cadetes filósofos” (artigo 8º das disposições

transitórias) e o emblema “Ordem e Progresso” firmado no estandarte nacional.

Em 1893 A Ilusão Americana é apreendida e suspensa sua circulação,

sacramentalizando, de certa forma, uma das teses sustentadas por Eduardo

Prado em sua obra: a de que ao aderir ao regime republicano o Brasil havia

encampado também as “idéias liberticidas” baseadas na supressão de direitos e

da negação do contraditório, a despeito das garantias de liberdade de

pensamento asseguradas pela primeira constituição republicana (art. 72, §12)644.

8. Grupos sociais

Tanto Émile Léonard quanto João Dias de Araujo e Antonio Gouvêia de

Mendonça concordam que a publicidade protestante encontrou eco nas

camadas urbanas e rurais detentoras de capital ou localizadas na classe média

ascendente. Isso não quer dizer que esse Protestantismo seja de todo elitizado,

644 PRADO Eduardo, op cit, p.111.

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mas é significativo que sua expansão, em praticamente todas as igrejas, se

concentre em um tipo de camada social bastante influente e em alguns aspectos,

até mesmo prestigiosa.

8.1. Fazendeiros e sitiantes

Émile Léonard destaca que o fato de que o protestantismo brasileiro tenha

encontrado boa receptividade no meio rural pelo fato de que a própria

configuração econômica do Brasil do século XIX, predominantemente agrária,

terminou por favorecer esse fenômeno. Muitas igrejas surgiram dentro de

fazendas ou foram organizadas por fazendeiros, listando, nesse sentido a de

Inácio Pereira Garcia, em Dois Córregos (SP), onde se organizou uma igreja

presbiteriana645; a do coronel Ramiro de Barros em Vila Afonso Claudio (ES),

onde foi implantada uma igreja batista646; a do major Quintino de Medeiros em

Barra Mansa, no interior fluminense, onde foi construída uma capela

metodista647; a de Ana da Conceição Gonzaga que legou à Igreja Metodista uma

propriedade em Inhoaíba, onde foi instalado um orfanato; os Nogueira

Paranaguá em Corrente (PI); os Lins, de Rio Largo (AL); os Cerqueira, de Irará

(BA); Inocêncio Barbosa Farias, de Limoeiro (PE); Manoel de Holanda

Cavalcante, em Bom Jardim e Cachoeira (PE) e o coronel Armando Machado

Vieira, dono de um seringal em Parangaba (AC).

Talvez o caso mais ilustrativo dessa relação entre o protestantismo e as

camadas agrárias seja mesmo o do reverendo metodista Guaracy Silveira (1893

– 1953), pastor, capelão das forças constitucionalistas na revolução de 1932,

deputado federal por São Paulo nas Assembléias Constituintes de 1933/34 e de

645 LÉONARD Émile G, op cit, p. 110. 646 CRABTREE A.R, ob cit, I, p. 252. Crabtree destaca que na sua primeira pregação na região,

Zachary Taylor contou com um público seleto constituído pelo juiz da comarca, promotor e delegado de

polícia. “Graças a prudência do coronel Ramiro o evangelho estava gozando liberdade e até de aceitação”.

Op cit, p. 252. 647 LÉONARD Émile G, op cit, p. 111.

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1946; após a jubilação, encarregado pelo governo paulista de realizar uma

campanha em prol da educação dos trabalhadores acerca das leis trabalhistas

através do rádio e escolas, assumindo ainda o cargo de diretor das Divisões do

Trabalho em Taubaté, Sorocaba e Santos durante o Estado Novo648. Guaracy,

como Eduardo Carlos Pereira, pertence às camadas agrárias e por isso o seu

processo de transição do Catolicismo para o Metodismo teve todas as

características de um translado místico como porta de passagem de uma

tradição para a outra, que, todavia, não apagou, nem corrigiu certo senso elitista

próprio das velhas oligarquias agrárias e cujo poder – ou pretenso poder – estava

vinculado diretamente ao mundo da terra, de cujas tradições avoengas ele

mesmo gostava de se gabar quando se declarava descendente dos antigos

bandeirantes paulistas649. Outra contradição, mas que não deixa de ter certo

significado tipicamente brasileiro é o seu autodeclarado “socialismo cristão”650,

que ele defende da mesma forma que faz uma apologia “quase maurasiana” da

do regime monárquico, porque “na monarquia a família real zela pelos interesses

do país, os quais se confundem com os seus, enquanto que na República, onde

não existe fundamento moral seguro, cada governo promove os interesses dos

seus detentores, dos seus amigos e de suas famílias.651” E, finalmente, temos a

sua contrariedade radical aos casamentos inter-raciais, ainda que embora tenha

afirmado que “receberia com tristeza” o casamento de filho ou filha com pessoa

de cor “muito pronunciada”, um casamento com pessoas de pele mais clara seria

mais tolerado porque “não afeta aos filhos, num país onde as famílias mais

ilustres, não poucas vezes descendem de senzalas.”652 Guaracy fez a transição

do catolicismo para o protestantismo, mas sem perder as características quanto

ao viver e ao pensar que marcam os ideários das chamadas elites agrárias, da

qual ele é partícipe, ainda que situado numa posição bastante periférica.

Isso, porém, não quer dizer que apenas grandes proprietários de terras

tenham contribuído para a disseminação do protestantismo no Brasil, mas que

sem dúvida eles foram parcela influente desse processo. Todavia, nos primeiros

estágios da expansão protestante, ainda durante o Império, é possível identificar

648 ROCHA Isnard, op cit, p. 210. 649 FREYRE Gilberto, Ordem e Progresso ob cit, p. 596. 650 Ibidem, p. 998. 651 Idem, p. 284. 652 Idem, p. 596.

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correntes de prosélitos protestantes entre sitiantes sendo fato que um dos grupos

mais antigos organizados no interior do país seja aquele que se estabeleceu

entre Brotas, Rio Claro, Borda da Mata e Dois Córregos, no estado de São Paulo,

onde o presbiterianismo fez considerável progresso653. Por vezes também podia

acontecer de o fazendeiro exercer outra atividade rentável na região como era o

caso do pai do pastor presbiteriano Eduardo Carlos Pereira, o capitão Francisco

Joaquim Pereira, proprietário de terras, mas também farmacêutico na região.

Eber Ferreira Lima, estudioso da vida de Eduardo Carlos Pereira, destaca, como

Léonard654 e Antonio Gouvêia de Mendonça655, a imprecisão dos termos sitiante

e fazendeiro para definir com exatidão os donos de terra naquela região. “A

expressão ‘fazendeiro’ era utilizada largamente englobando sitiantes médios e

grandes proprietários. Certamente o capitão Francisco não contava entre os

grandes proprietários”.656 Mas era seguramente um proprietário de terras e tinha

na terra parte dos seus rendimentos. Como lembra Gouveia de Mendonça, o

crescimento do protestantismo em geral e do presbiterianismo em particular, na

segunda metade dos oitocentos, está muito mais ligado à sua assimilação pelas

camadas rurais, particularmente em São Paulo e zonas fronteiriças de Minas

Gerais, do que ao estabelecimento de igrejas em áreas urbanas, como Rio e São

Paulo. “Ali encontraram-se”, escreve Gouveia de Mendonça sobre as igrejas

formadas nas áreas rurais paulistas e mineiras, “as condições para expandir-se

e fixar-se definitivamente657”.

Também Salomão Ginsburg não estava alheio quanto ao reconhecimento

da importância desse grupo de potentados na disseminação da Igreja Batista no

Brasil, evidenciando isso em seus relatos, particularmente naquele consagrado

ao já citado cangaceiro Antonio Silvino. “Não era um criminoso comum. Pertencia

a uma família rica e aristocrática (grifo meu). Ele mesmo possui uma grande área

de terra no estado da Paraíba”.658 Portanto, até Salomão Ginsburg, tendo

chegado ao Brasil em um momento posterior ao da formação das primeiras

igrejas protestantes, tinha plena consciência da importância da terra como fonte

653 LÉONARD Émile G, op cit, p. 111. 654 Ibidem, op cit, p. 111. 655 MENDONÇA Antonio Gouveia de, op cit, p. 124. 656 LIMA Eber Ferreira Silveira, op cit, p. 37. 657 MENDONÇA Antonio Gouveia de op cit, p. 118. 658 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 154.

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de renda e de prestígio e foi sem dúvida pensando nisso que fixou como seu

principal campo missionário, as zonas agrícolas dedicadas à economia agrária

de exportação, a região do norte fluminense e a zona da mata pernambucana.

8.2. Camadas urbanas

Contudo, o protestantismo brasileiro também assumiu um viés urbano,

aliás, sua expansão nas áreas de grande adensamento populacional deu-se

quase que simultaneamente com a das áreas rurais, onde profissionais de

diversas carreiras foram atraídos para o protestantismo em diferentes épocas.

Entre os militares, o general Abreu e Lima (que nunca se tornou protestante

embora defendesse seus postulados)659, o engenheiro militar Manoel Vieira

Ferreira, que depois de passar um período com os presbiterianos acabou por

fundar sua própria denominação, a Igreja Evangélica Brasileira, em 1879;660 e o

contra-almirante Sebastião Caetano dos Santos, que foi membro da Igreja

Presbiteriana661. Entre os profissionais liberais, um caso bastante ilustrativo

dessa influência protestante nas camadas médias é sem dúvida o de Francisco

de Miranda Pinto, engenheiro da Estrada de Ferro Leopoldina e que se tornou

membro da Igreja Batista de Niterói em 1904.662 Também o médico Vital Brasil

foi uma grande aquisição do protestantismo brasileiro, tendo sido por anos

membro da comunidade presbiteriana de São Paulo663. E não podemos

esquecer o caso de Joaquim Nogueira Paranaguá, fazendeiro, mas também

médico e político e que por anos participou ativamente da vida eclesial da igreja

batista da cidade do Rio, onde este residia por conta dos seus compromissos

políticos como representante do estado do Piauí no Congresso Nacional664.

659 VIEIRA David Gueiros, op cit, p. 221 – 223. 660 LÉONARD Émile G, ob cit, p. 76 – 79. Ver também VIEIRA David Gueiros, op cit, p. 152 –

156. 661 LÉONARD Émile G, op cit, p. 113. 662 CRABTREE A.R, op cit, I, p. 267. 663 LÉONARD Émile G. op cit, p. 115. 664 PEREIRA José Reis, História dos Batistas no Brasil, op cit, p. 129 – 130.

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201

Outro grupo que também influenciou bastante a formação das igrejas

protestantes brasileiras foi o dos comerciantes ou empregados do comércio e

artesãos. Pastores presbiterianos como Antonio Trajano, Miguel Torres e

Vicente Themudo Lessa665 assim como Francisco Fulgêncio Soren, primeiro

ministro brasileiro da PIB do Rio, começaram suas vidas trabalhando no

comércio666. O congregacionalista José Luis Fernandes Braga, um dos pioneiros

da IEF, possuía uma fábrica de chapéus no Rio, sendo contemporâneo de outro

empresário e membro da mesma igreja, Domingos Antonio da Silva Oliveira,

diretor da fábrica de calçados Clark, também sediada no Rio.667 Funcionários

públicos, como Antonio José dos Santos Neves, taquígrafo do Senado Imperial,

presbiteriano, abolicionista e maçom668 foram também cooptados nas primeiras

fases do protestantismo no Brasil.

O Magistério exerceu igualmente grande influência sobre o

Protestantismo no Brasil dos primeiros tempos, quer fornecendo quadros, quer

atraindo prosélitos. Sendo essa uma carreira mais acessível às camadas mais

baixas da população, principalmente para as mulheres, acabava exercendo uma

força de atração muito grande sob os diversos extratos sociais. A pioneira da

Igreja Batista em Limoeiro de Anadia (AL) fora uma professora do estado,

Ermelinda de Souza Mello, que ali organizou um culto público, em 1921, o que

lhe valeu depois uma forte perseguição por parte do pároco da localidade que

tentou, inclusive, queimar a sua casa669. Na Bahia houve o caso da professora

Archiminia Barreto, filha de um ex padre e que se torna batista, passando a

escrever farta literatura anticatólica.670 Em Natal, a PIB foi organizada a partir de

uma dissidência da Igreja Presbiteriana, sob a liderança de um professor,

Joaquim Lourival da Câmara671. Muitos professores ligados ao protestantismo

também acabaram exercendo influência sobre a própria educação brasileira do

início do século XX e enriquecendo substancialmente a literatura didática, como

destaca Fernando de Azevedo672, dado que os compêndios de matemática de

665 LÉONARD Émile G, op cit, p. 113. 666 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 217. 667 Ibidem, p. 114. 668 VIEIRA David Gueiros, op cit, p. 150 – 151. 669 MEIN John, op cit, p. 43 – 44. 670 YAMABUCHI Alberto Kenji, op cit, p. 148 – 149. 671 CRABTREE A.R, op, cit, I, p. 141. 672 AZEVEDO Fernando de, op cit, 265.

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Antonio Trajano e as gramáticas de Júlio Ribeiro, Jerônimo Gueiros, Álvaro Reis,

Eduardo Carlos Pereira e Otoniel Mota, todos ministros presbiterianos,

influenciaram várias gerações de alunos673. Eber Ferreira de Lima destaca as

menções de Monteiro Lobato a Eduardo Carlos Pereira em suas obras e até

mesmo em livros infantis como Emília no País da Gramática (1934) onde é citada

textualmente a sua Gramática Histórica, publicada, por sinal, pela editora do

próprio Monteiro Lobato, em 1923674. Quanto a Jerônimo Gueiros, professor e

pastor presbiteriano com atuação ministerial em Pernambuco, além de

gramático, celebrizou-se também por ter concebido uma das primeiras obras de

ataque contra o pentecostalismo, Heresia Pentecostal, publicada em 1924, onde

além de argumentos bíblicos usa sua experiência de gramático para investir

contra um dos dogmas fundamentais daquele movimento: a doutrina da

glossolalia (o “falar em línguas estranhas”). A “babel pentecostal” como ele

descreve o movimento, apenas praticava a glossolalia por causa da

incapacidade dos pentecostais de dominar, mesmo que superficialmente, os

elementos básicos da língua portuguesa. E uma das razões para que isso

ocorresse estava no “pioneiro da seita no Pará”, o missionário sueco Gunnar

Vingreen que embora tenha “estudado um pouco a nossa língua para vencer a

negação glótica e filológica que o caracteriza”, mal consegue dominá-la,

expondo assim sua dificuldade “para aprender a língua em que propaga o que

ele chama de as maravilhas de Deus675”.

8.3. Proletários e escravos

É certo também que o protestantismo encontrou eco nas camadas

proletárias, formadas por artesãos ou trabalhadores avulsos. Funileiros como

João Batista na Bahia e tecelões como Pasquale Giuliano, em Piracicaba,

também contribuíram para o avanço da Igreja Batista nos últimos decênios do

673 FREYRE Gilberto. Ordem e Progresso, op cit, p. 412. 674 LIMA Eber Ferreira Silveira, op cit, p. 64 – 65. 675 Ver BENATTE Antonio Paulo. “A Infantaria da Evangelização. Colportagem assembleiana e

leitura da Bíblia no Brasil”. In OLIVA Alfredo dos Santos; BENATTE Antonio Paulo (orgs). 100 Anos de

Pentecostes, p. 103 – 104.

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203

século XIX.676 Na verdade é até possível identificar trabalhadores avulsos ou

mesmo pessoas muito pobres que participam da vida das igrejas protestantes

ou que são a elas incorporados, mas é errado acreditar que o Protestantismo

exerceu uma força de atração desses grupos, como Antonio Gouveia de

Mendonça também destaca677. Mesmo a Igreja Presbiteriana que se inseriu na

“camada livre e pobre” da população, não constituía, como vimos, uma igreja

proletária, diferentemente do que se deu com as comunidades pentecostais

formadas basicamente por trabalhadores avulsos, agregados, diaristas e outros

grupos econômicos menos qualificados678.

Na verdade, tão difuso quanto o conceito de fazendeiro e sitiante é o

conceito de pobre nesses grupos, principalmente se forem pobres que possuam

algum cabedal de renda, como no caso dos “sitiantes”. Além do mais, o ideário

de ascensão social, próprio do protestantismo, fez com que boa parte desse

grupo convergisse, naturalmente, para a classe média da população. Mesmo a

Igreja Batista, mais disseminada pelas periferias urbanas em virtude do seu

proselitismo está muito longe de poder ser descrita como uma igreja popular.679

Também é possível perceber em escravos ou egressos da escravidão a

filiação ao protestantismo. Léonard destaca a presença de escravos, cinco,

listados na relação de membros da Igreja Presbiteriana de São Paulo, em

1879.680 Crabtree também relata a presença de um escravo na PIB da Bahia o

qual teria sido alvo de sevícias durante uma das primeiras perseguições sofridas

pela igreja. “Apesar de escravo, revelou-se livre no Senhor Jesus Cristo e

superior em brio e caráter aos seus arrogantes perseguidores”.681 Quanto aos

presbiterianos, Vicente Themudo Lessa destaca o fato de que o presbitério do

Rio de Janeiro discutiu durante o ano de 1878 a questão da escravidão, tendo

sido recomendado que se vertesse para o português a tradução da resolução da

676 LÉONARD Émile G, op cit, p. 114. 677 MENDONÇA Antonio Gouvêia de, op cit, p. 124. Gouvêia de Mendonça entende que a posse

da terra por sitiantes alcançados pela pregação protestante, mesmo em se tratando de grandes herdades, não

significava acesso ao sistema capitalista uma vez que os sitiantes não atuavam como produtores de bens de

exportação. Mas não ignora o fato de que, em se tratando de proprietários sitiantes, não podem também ser

enquadrados dentro da concepção proletária de mão-de-obra avulsa que tem apenas a força de trabalho para

oferecer. 678 ALENCAR Gedeon, Assembléias de Deus. Origem, implantação e militância, p. 43. 679 MENDONÇA Antonio Gouveia; FILHO Prócoro Velasquez, op cit, p. 34 – 44. 680 LÉONARD Émile G, op cit, p. 112. 681 CRABTREE A.R, op cit, I, p. 81.

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Assembleia Geral da PCUSA, de 1818, onde se condenava a escravidão. O

laconismo do relatório, que o próprio Themudo Lessa destaca, é evidente: nem

se condena a escravidão, nem se tem um esclarecimento quanto à posição do

presbitério sobre o assunto e ainda se joga a resolução da questão para a análise

das conclusões de um presbitério estadunidense682. Em 1886 Eduardo Carlos

Pereira também identificado com a causa da abolição, propôs que a questão da

escravidão fosse tratada no âmbito do ministério e sumariamente condenada683,

mas como destaca Léonard, não houve um fechamento da questão por parte da

denominação presbiteriana684. Comentando o fato, João Dias de Araujo destaca

que a atitude de Eduardo Carlos Pereira é um fato significativo e marcante tanto

na história do protestantismo brasileiro de um modo geral como da Igreja

Presbiteriana do Brasil em particular, “porque todas as vezes que um pastor se

levanta para condenar o regime ‘causa algum rumor’ ou sua atitude não é levada

a sério”.685

Disso não se pode inferir, contudo, que o protestantismo no Brasil fosse

essencialmente elitista ou só dialogasse com as camadas mais elevadas. Muitos

ministros protestantes tinham consciência da dura realidade das populações

mais desfavorecidas e procuravam antídotos para o enfrentamento do problema

em projetos de reforma social. Já falamos do ICP do Rio, ligado aos metodistas,

como uma forte iniciativa nesse sentido, mas há outros exemplos: Em sua posse

como membro do Instituto de Ciências e Letras de Pernambuco, em 1922,

Jerônimo Gueiros dedicou boa parte do seu discurso a atacar o modo como os

trabalhadores da zona da mata pernambucana eram explorados pelos usineiros.

Já Erasmo Braga, talvez a voz mais progressista do protestantismo nativo de

sua geração, e que já tinha se posicionado em 1913 acerca da situação dos

índios, concebeu, em 1932 um projeto de reforma social que contemplava a

laicidade do Estado, a economia cooperativista, o casamento civil e a

regulamentação do divórcio, a educação popular e profissionalizante, auxílio ao

menor abandonado, uma política externa pacifista e até a redução dos gastos

com as forças armadas.686 E no V Congresso Evangélico Brasileiro reunido em

682 LESSA Vicente Themudo, op cit, p. 264. 683 Ibidem, p. 297. 684 LÉONARD Émile G, op cit, p. 113. 685 ARAUJO João Dias de, ob cit, p. 27. 686 Ibidem, p. 29.

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205

São Paulo, em dezembro de 1936, o professor José Cardoso d´Afonseca, do

Seminário Granbery, da Igreja Metodista, chamou atenção para “aqueles

3.592.861 crianças sem escolas (...) sobretudo nas zonas rurais onde o número

de escolas do governo é absolutamente insuficiente”. Ao final, propõe que as

igrejas apoiem campanhas de alfabetização e que sejam criadas cadeiras de

“Educação Ruralista” em todos os seminários, a fim de que os ministros ali

formados possam exercer mais ativamente seu trabalho nas áreas rurais.687

Em suma, as relações do protestantismo brasileiro com as populações

mais pobres tiveram como característica principal e excepcional o seu caráter

periférico em face dos outros grupos sociais economicamente mais prósperos

ou influentes, ao passo que os projetos de reforma social ficaram quase todos

no plano das idéias, quase sem repercussão efetiva na vida institucional das

denominações.

8.4. Os “ilustres”

Quando pensamos nas relações entre o protestantismo e a sociedade

brasileira nas fases iniciais de sua implantação no Brasil é que conseguimos

entender como, a despeito de eventuais dificuldades de adaptação e

perseguições o Protestantismo conseguiu firmar bases sólidas no país e ainda

angariar um prestígio junto às camadas mais influentes da sociedade de uma

forma que nem sempre foi desfrutada pelo Catolicismo, não obstante sua

característica de religião do Estado. Lembremos, a título de exemplo, a

conversão de Gabriela Augusta Carneiro Leão, sobrinha do Marquês de Paraná,

presidente do conselho do Império, e de Henriqueta do Couto Esther688, ambas

recebidas na IEF em 1858 e, posteriormente, levadas a deixar a corte, ficando a

primeira instalada numa fazenda da família no interior da província do Rio

687 AMARAL Epaminondas Melo do op cit, p. 49 – 50, 56 – 57. 688 ROCHA João Gomes da op cit, I, p. 82 – 83.

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206

enquanto dona Henriqueta se mudava para São Paulo689. Esse fato evidencia a

atração que o protestantismo exerceu também sobre elementos de status social

bem alto, particularmente pela linha feminina, como destaca Gouvêia de

Mendonça690, embora não só por ela, como fica bem exemplificado pelos casos

de Miguel Vieira Ferreira, da família Nogueira Paranaguá, que aderiu à Igreja

Batista no Piauí, ou da família Fernandes Braga, que se tornou membro da IEF.

Contudo, é inegável que o elemento feminino foi predominante: no Maranhão,

além de dona Maria Bárbara, casada com o primo, Francisco de Paula Belfort

Duarte, engrossaram os quadros da igreja presbiteriana daquele estado dona

Maria da Glória (mais tarde esposa de Miguel Vieira Ferreira) e Clementina

Shalders (mãe do Dr. Carlos Shalders, primeiro diretor da Escola Politécnica de

São Paulo)691. Em São Paulo houve o caso de Maria Antônia da Silva Ramos,

filha do barão de Antonina, batizada em 1878 na Igreja Presbiteriana692, e em

1882 da sua neta, Ernestina Rudge da Silva Ramos, que após ser recebida na

igreja casou-se no mesmo ano na Escola Americana, um verdadeiro

acontecimento social na Paulicéia.693 Essas conversões configuram a formação

de um grupo que Émile Léonard chama de “os ilustres”, por pertencer aos

extratos mais altos da sociedade brasileira dos oitocentos. A maioria dessas

conversões notáveis ocorreu nos primórdios do protestantismo no Brasil e

confirma a impressão de que o fato se deu como parte de uma resposta

afirmativa de uma elite curiosa, mas retrógrada, às novas idéias que foram

desembocando no Brasil desde a abertura dos portos e, de maneira mais

acelerada, com a independência. É de se assinalar, contudo, que, a adesão

propriamente dita ao protestantismo acabou permanecendo em um nível muito

aquém das expectativas concebidas, se lembrarmos que praticamente todas as

denominações tinham em vista a conversão das camadas ricas locais por meio,

principalmente, do esforço pedagógico, o que não ocorreu, não obstante a

fundação de “escolas americanas” que eram consideradas exemplo de prática

pedagógica e de formação, mas que não conseguiram se impor como força de

atração sobre essa parcela mais rica e influente da sociedade brasileira do final

689 LESSA Vicente Themudo, op cit, p. 42 – 43. 690 MENDONÇA Antonio Gouvêia de op cit, p. 122 – 123. 691 VIEIRA David Gueiros, op cit, p. 156. 692 LESSA Vicente Themudo, op cit, p. 155 693 Ibidem, ob cit, p. 205.

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do Império, sendo logo sua influência quebrada pelo Positivismo tanto no plano

social quanto do político.

9. O fogo das perseguições

O protestantismo brasileiro enfrentou muitas perseguições. Os jornais

denominacionais dos primeiros tempos da República falam de ocorrências

sistemáticas de ataques a prosélitos, espancamento ou expulsão de

missionários de cidades afastadas dos grandes centros, depredações de igrejas,

queimas de livros e bíblias, etc. Diante da variedade de incidentes e, sobretudo,

naqueles episódios de excepcional violência como a perseguição aos crentes

batistas em Bom Jardim (PE) a imprensa protestante começou a buscar

informações, reconstituir relatos e, por fim, lançar a público o registro dos

acontecimentos para que fossem tomadas as devidas providências da parte das

autoridades policiais, o que quase sempre não se sucede. Mais tarde,

aparecerão livros que tratam do assunto e o próprio Ginsburg pode ser

considerado um dos pioneiros nesse campo narrativo. Mas é na década de 30,

no rastro da reação católica em busca da oficialização ou semioficialização do

seu culto que irão surgir obras mais específicas abordando estritamente o

assunto, como a conferência de Metódio Maranhão sobre O Direito e a Religião,

e a pesquisa de Pedro Tarsier que usamos nesse estudo.

É importante fixar o momento histórico dessa produção literária já que ela

também servirá de suporte para alimentar e justificar algumas interpretações

feitas por escritores protestantes acerca da reação católica, sobretudo no interior

do país. Afinal não é por acaso que a História das Perseguições Religiosas no

Brasil é publicada nessa época, bem como as biografias de Themudo Lessa

sobre Lutero e Calvino, personagens muito atacados nos escritos católicos

nesse período, sobretudo pelo padre Leonel Franca que dedica um livro inteiro

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a apostrofar o primeiro694. A própria tradução de Um Judeu Errante no Brasil,

feita no começo dos anos 30 também é um indicativo de que até no meio batista,

nesse momento bastante sectário, se percebeu a reação católica que se segue

à revolução de 1930 e que passa pelo fortalecimento do discurso nacionalista

contra o liberalismo clássico do protestantismo missionário e conversionista.

A muitos missionários a participação de religiosos católicos estrangeiros

em perseguições contra protestantes, como o padre belga e missionário da

Sagrada Família Júlio Maria de Lambaerde em Minas Gerais e do frei

franciscano italiano Celestino Pedavoli em Pernambuco, bem como de muitas

instituições que haviam sido criadas ou organizadas a partir das decretais

romanas como dioceses e ordens religiosas, etc., principalmente a Sociedade

de Jesus (jesuítas) o catolicismo brasileiro nada mais era do que um

prolongamento do romano. Para os protestantes nesse período, tal

movimentação da parte do episcopado brasileiro demonstrava uma reação

ultramontana, sendo o ultramontanismo a derradeira reação institucional da

Igreja Católica contra o mundo moderno.

A República, contudo, não alterou, em princípio, as boas relações entre o

Estado e o protestantismo dado o fato de que muitos políticos e homens públicos

do período imperial eram formados no liberalismo clássico e no anticatolicismo,

e trarão essas mesmas idéias para a República como o citado Barbosa Lima,

interventor em Pernambuco durante o governo do marechal Floriano Peixoto, e

Quintino Bocaiuva, que governou o estado do Rio de 1901 a 1903. De fato, é

preciso também lembrar que boa parte da elite política imperial, formada na

tradição liberal e maçônica do século XIX, irá influenciar, pelo menos nos

primeiros anos, o processo de formação e consolidação do Estado Repúblicano.

É apenas a partir dos anos 20 que essa classe de políticos e homens públicos

será substituída por uma nova elite política, mais nacionalista, forjada nas

discussões sobre o projeto de país que começam a aparecer primeiro nos

escritos de Alberto Torres e depois com os modernistas. Uma das

consequências dessa nova forjadura de idéias é sem dúvida a criação do Centro

Dom Vital, do Rio de Janeiro, em 1922, onde será formada não só a

694 FRANCA padre Leonel s.j. A Igreja, a Reforma e a Civilização. Rio de Janeiro, Civilização

Brasileira, 1928.

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intelectualidade brasileira que reproduzirá em seu discurso, quer à direita, quer

à esquerda, a pertença católica, mas também um discurso que será muito

repetido nos anos imediatamente posteriores (embora, de modo algum, se

constitua esse mesmo discurso numa novidade, já que ele também aparece no

final do século XIX e começo do XX) de associar o protestantismo ao

imperialismo dos EUA. As tentativas de “recatolizar” ou de criar um status

privilegiado do catolicismo no Brasil, primeiro no Congresso Nacional em 1925,

e depois, na Assembléia Nacional Constituinte de 1933/34, se inserem

completamente nesse processo.

Como consequência desse cenário que a revolução de 1930 aprofunda,

para muitos protestantes era evidente de que havia um movimento de

“recatolização” em curso e que esse fato era indissociável do ultramontanismo.

Assim, a luta contra a “recatolização” se insere também na luta contra o

ultramontanismo. Nesse sentido, a História é reinterpretada segundo a leitura do

protestantismo nacional dentro de uma perspectiva quase maniqueísta. Ao

ultramontanismo retrógrado e incompatível com o mundo moderno, se impõe o

protestantismo liberal ou melhor, apresentado como guardião dos princípios

liberais e democráticos, mesmo que muitas vezes os exemplos usados não

correspondam na prática a essa forma de pensar. Já vimos em outros tópicos

que Salomão Ginsburg estava convencido de que o catolicismo era um todo

universal e que sobre cada igreja católica se projetava, em último plano, a

influência romana. Esse pensamento pode ser originário da Polônia onde, de

fato, o catolicismo está muito mais próximo de Roma, tendo essa aproximação

se acentuado no século XVIII, mais até que no período da Reforma, embora

nesse caso vinculado a uma reação nacionalista e não propriamente religiosa695.

Mas não era uma lucubração isolada dentro do protestantismo brasileiro.

Durante a primeira metade do século XX associações do catolicismo brasileiro

aos “jesuítas” (Ginsburg, John Mein) ou aos “vaticanistas”, aos “romanistas” ou,

em certas versões extremas, à “inquisição” (Pedro Tarsier) são recorrentes. A

literatura batista de cunho apologético e hagiográfico via o catolicismo brasileiro

como mera projeção do romanismo, uma extensão irregular daquela. Em outras

tradições protestantes prevalecia o mesmo entendimento, como na passagem

695 ANDERSON Perry. Linhagens do Estado Absolutista, p. 326 – 327.

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abaixo, extraída da primeira biografia de Lutero escrita em língua portuguesa

(1934) por Vicente Themudo Lessa:

Lutero, Frederico o Grande, Goethe e Bismarck são grandes personagens: Lutero

é o tipo de homem religioso, o homem que despedaçou os grilhões de Roma (...)

Frederico, o árbitro da Europa no seu tempo é a encarnação do gênio militar, que produziu

a grandeza da Alemanha. Goethe o gênio da literatura nas suas mais sublimes concepções.

Bismarck, o gênio político que realizou a unidade do Império e derrotou as forças

ultramontanas da França e da Áustria, protestando que jamais iria a Canossa696.

Em outro texto, o protestantismo é tratado como agente fomentador da

democracia moderna. Guaracy Silveira, que sem dúvida nada sabia sob o caráter

paternalista do pensamento luterano e escrevendo no contexto da Segunda

Guerra Mundial (1943) diz quase a mesma coisa:

Há hoje milhões de homens que gozam de inumeráveis privilégios, ignorando

que os deve à coragem de Lutero. Não sendo portadores de sangue nobre, viveriam hoje

como os servos humildes dos vilões de sangue azul que exploravam a plebe, em nome de

Deus e de pretensos direitos divinos, mercê de uma nobreza que Deus não lhes outorgou

(...) mas a revolução religiosa de Lutero venceu, e o mundo goza hoje dos favores da

democracia cristã, restaurada nos costumes da Igreja para o uso dos povos em sua vida

pública697.

Enquanto a interpretação de Themudo Lessa vê Lutero como o

contraponto ao ultramontanismo (e pode ser que esse pensamento fosse

reforçado pela tradução de O Papa e o Concílio, por Janus, de 1876, que Rui

Barbosa popularizou no Brasil no período imediatamente posterior à Questão

dos Bispos, bem como pela própria kultkampf bismarckiana contra os católicos

alemães da Baviera nos primeiros anos do Império Alemão698), a tese de

696 LESSA Vicente Themudo. Lutero, op cit, p. 248. 697 SILVEIRA Guaracy, Lutero, Loyola e o Totalitarismo, p. 262. 698 Ver TAYLOR A.J.P. Bismarck, o homem e o estadista, p. 151 – 152. Ver também ZAGHENI

Guido. Curso de História da Igreja, IV, p. 172.

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Guaracy é ainda mais extraordinária: ela liga deliberadamente a ordem jesuíta

ao nazi-fascismo, como precursora dos valores preconizados por tais regimes,

isto é, a negação da liberdade e da democracia e o militarismo699, ao passo que

o protestantismo agrupava em torno de si as forças liberais que os combatiam.

Um verdadeiro exercício de revisionismo histórico.

9.1. As ocorrências

Para compreendermos o tipo de perseguição religiosa ocorrida contra

protestantes no Brasil dos primeiros anos da República, a pesquisa feita por

Pedro Tarsier nos anos 30 é fundamental embora, como destacaremos a seguir,

não livre de ressalvas.

Perseguições contra protestantes no Brasil República conforme

Tarsier (1890 – 1909)700

Ano Local Ocorrência Igreja Resultado Fonte

1890

mar.

Vila do Conde

BA

Ataque ao

missionário

Zachary.

Taylor

Batista s/d Jornal da Baía

28/3/1890

1890 Rio de Janeiro Processo

contra o eng.

Miguel Vieira

Ferreira

Igreja

Evangélica

Brasileira

Multa contra o

mesmo.

FERREIRA M.V.

“O Cristo no

Júri”, 1891.

1890 Guriri (Campos

RJ)

Ataque ao

missionário W.

Bagby

Batista s/d s/d

1890

set.

Mar de Espanha,

MG

Perseguição ao

rev. F.R

Carvalho

Presbiteriana Intervenção

policial

s/d

699 SILVEIRA Guaracy, op cit, p. 181. 700 TARSIER Pedro, op cit, I, p. 166 – 205 e II, p. 5 – 14.

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212

1890

nov.

Palmeiras RJ Ataque ao rev.

C. da Fonseca

Metodista s/d s/d

1891 Maceió AL Perseguição

contra

“crentes”

Batista s/d MEIN John “a

Causa Batista em

Alagoas”, p. 15 –

16.

1891 São Luis MA Perseguição

contra o rev.

Julius. Nelson

Metodista Intervenção de

B. Harrison,

presidente dos

EUA e do dep.

Estado

YOUNG A.

“Países Católicos

e Protestantes”.

1892

ab.

Sabará MG Ataque ao rev.

J.L Bruce e

A.C da

Fonseca

Presbiteriana s/d s/d

1892 Buquira SP Ataques aos

miss. J.C

Andrade e J.R

Carvalho

Presbiteriana s/d s/d

1893

Jan.

Paraíba do

Norte PB

Depredação de

igreja

Presbiteriana Uma prisão O Paraibano

14/01/1893

1893

Mar.

São João del

Rey MG

Perseguição

contra o miss.

F.A Deslandes

Presbiteriana s/d O Estandarte 04 a

18/3/1893

1893

Mar.

Recife Depredação de

igreja pelos

capuchinhos

Presbiteriana s/d O Estandarte

28/3/1893

1893

Abr.

Cachoeira MG Expulsão dos

miss. J.E

Tavares e

Macfarland

Metodista s/d s/d

02/06/

93

Paraíba do

Norte

Depredação de

igreja

Presbiteriana s/d O Estandarte

3/6/1893

1893

jul.

Barra do Rio

Grande BA

Perseguição

contra o miss.

Z. Taylor

Batista s/d O Estandarte

8/7/1893

1894

jan.

Ubá MG Agressão aos

miss. Becker e

Araujo Filho

Metodista s/d s/d

1894

mar.

Rio de Janeiro Proibição de

culto público

s/d s/d O Estandarte

24/3/1894

1894

Jun.

Campanha MG Queima de

bíblias

s/d s/d O Estandarte

24/6/1894

1894

Jul.

Guarabira PB Manuel

Lacerda,

evangelista, é

expulso da

localidade

Presbiteriana (?) s/d O Estandarte

14/7/1894

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213

1895

jul.

Nazaré da Mata

PE

Expulsão do

miss. W.

Entzminger

Batista Intervenção

policial

MESQUITA A.N.

“História dos

Batistas em

Pernambuco”, p.

33 – 34.

1896

mar.

Recife Depredação de

igreja s/d s/d) MARANHÃO

Metódio. “O

Direito e a

Religião”, 1928,

p. 95701

1896

ago.

Limoeiro PE Expulsão do

evangelista

Lins e família

da localidade.

Batista s/d MESQUITA A.N,

“História dos

Batistas em

Pernambuco”, p.

34.

1896

out.

Campos RJ Depredação de

igreja

Batista s/d s/d

1897

fev.

Estrela MG Perseguição

contra os miss.

Araújo Filho e

Tavares

Metodista s/d O País (?)

1897

mar.

Nazaré da Mata

PE

Perseguição ao

miss.

Guinsburg

Batista s/d “Os Batistas em

Pernambuco”, p.

40.

1898

Mar.

São Bento PE Assassinato de

Manuel Correa

Vitela,

prosélito

batista.

Batista “O réu foi

preso e julgado

três vezes, (...)

Saiu

absolvido”!

Jornal Batista

26/08/1915.

1898 Macaé RJ Perseguição

contra

prosélitos com

um ferido

(Adalberto

Vieira)

Batista “O pastor

recorreu ao

íntegro

presidente do

estado, sr.

Alberto Torres

que enviou a

força (...) a fim

de ser

respeitada a

lei”.

s/d

1898

jul.

Niterói RJ Ataque à

residência de

Francisco

Camargo

“opulento

negociante”

s/d s/d s/d

701 O professor Metódio Maranhão também não informa sobre a qual denominação pertencia o

templo depredado, mas destaca o fato de o incidente ter se dado “em uma capital de estado, como o Recife

e numa de suas “ruas mais movimentadas”, op cit, p. 95.

Page 212: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC SP … Douglas de... · 6.5. Ginsburg em Macaé (1898). 92 7. Salomão Ginsburg em Pernambuco (1900 – 1909). 95 7.1. Situação

214

1898 Bonito PE “Três mortes” s/d s/d s/d

1898 Nazaré da Mata

PE

Perseguição

(?)

s/d s/d s/d

1898

jun.

Glória do Goitá

PE

Ataque a

residência de

Joaquim José

da Costa

Presbiteriana s/d O Puritano

14/6/1900.

1901

Abr.

Niterói RJ Ataque a igreja

batista

Batista s/d s/d

1901

mai.

Porto Real MG Perseguição

aos miss. Lino

e Gamon

Presbiteriana s/d O Puritano

30/5/1901; 11/6 e

22/08/1901.

1901 São Vicente de

Paula RJ

Expulsão de

“crentes”

s/d s/d s/d

1901

ago.

Ilhetas PE Depredação de

igreja batista

Batista s/d s/d

1901

ago.

Arrazoal de

Baixo RJ

Perseguição ao

rev. José Orton

Presbiteriana s/d s/d

1901

set.

Caruaru PE Perseguição a

“crentes”

s/d s/d s/d

1901

out.

Tiradentes MG Agressão

contra o ver.

Baldomero

Garcia.

Presbiteriana s/d O Puritano

10/10/1901

1901

nov.

Caruaru PE Ataque a

“crentes”

Presbiteriana (?) s/d A Província nº

251

1901

dez.

Paty do Alferes

RJ

Proibição de

sepultamento

de crente em

cemitério

público

s/d s/d O Puritano

05/12/1901

1901

dez.

Sousa PB Proibição de

culto

s/d s/d O Puritano

12/12/1901

1902

Abr.

Alto Jequitibá

MG

Ataque ao rev.

Matatias

Gomes dos

Santos

Presbiteriana Intervenção

policial

Manhuassu

15/04/1902

1902

nov.

São Sebastião

do Arrazoal RJ

Tentativa de

agressão ao

reverendo José

Orton.

Presbiteriana “Comunicado

o fato (...) o Sr.

Quintino

Bocaiuva (gov,

RJ) mandou

abrir inquérito

sem

resultado”.

Carta do pastor

João Manuel

Gonçalves dos

Santos.

1902 São João

Marcos RJ

Expulsão do

pastor João

Manuel

Gonçalves dos

Santos

Igreja

Evangélica

Fluminense

s/d s/d

Page 213: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC SP … Douglas de... · 6.5. Ginsburg em Macaé (1898). 92 7. Salomão Ginsburg em Pernambuco (1900 – 1909). 95 7.1. Situação

215

1902

dez.

Santa Margarida

RJ

Proibição de

sepultamento

de crente em

cemitério

público

s/d s/d O Puritano

25/121902

1902

dez.

Canhotinho PE Tentativa de

agressão ao

rev. Lino da

Costa

Presbiteriana s/d s/d

1902

dez.

Muritiba BA Ataque contra

“crentes”

s/d s/d s/d

1903

fev.

Recife Queima de

bíblias

s/d s/d MARANHÃO

Metódio. “O

Direito e a

Religião”, 1928,

p. 95 – 97

1903

mar.

Águas Belas PE Ataque a

“crentes”

s/d s/d O Puritano

25/03/1903

1903

mar.

Maceió AL Ataque a

“crentes”

s/d s/d O Puritano,

09/07/1903

1903

maio

Palmares PE Ataque a

“crentes”

Batista Intervenção

policial

MESQUITA A.N

“História dos

Batistas em

Pernambuco”,

1930, p. 83.

1903

Set.

Carangola MG Perseguição a

“crentes”

Presbiteriana (?) s/d O Puritano

03/09/1903

1903

Set.

Bonfim BA Perseguição a

“crentes”

s/d s/d O Puritano

24/09/1903

1904

Fev.

Rio de Janeiro Tentativa de

agressão

contra o rev.

J.L.Kennedy

Metodista s/d s/d

1904

Fev.

Penedo AL Destruição de

templo

protestante

s/d s/d O Puritano

09/03/1904

1904

ab.

Cabo verde MG Proibição de

sepultamento

de protestante

em cemitério

público

s/d s/d O Puritano

06/04/1904

1904

abr.

Jacareí SP Proibição de

culto

protestante

Presbiteriana s/d O Puritano

21/04/1904

1904

jun.

Santo Ângelo

RS

Expulsão do

rev. Terrel702

Metodista s/d KENNEDY J.L

“Cinquenta Anos

702 Tarsier destaca o pouco registro de perseguições religiosas no Rio Grande do Sul, mas para ele

o motivo se devia “a ausência quase completa de dados e não na de crueldade dos romanistas”. Op cit. II,

Page 214: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC SP … Douglas de... · 6.5. Ginsburg em Macaé (1898). 92 7. Salomão Ginsburg em Pernambuco (1900 – 1909). 95 7.1. Situação

216

de Metodismo no

Brasil” 1928, p.

202.

1904

jul.

Cortez PE Ataque a culto

protestante

Batista Intervenção

policial

Jornal do Recife

10/07/1904703

1904

jul.

São Paulo Queima de

bíblias e

folhetos

s/d s/d O Puritano

14/07/1904

1905 Vila do Rio

Pardo MG

Expulsão do

miss. Manuel

Alves de Brito

Presbiteriana (?) s/d O Puritano

23/03/1905

1905

maio.

Porto Real MG Expulsão do

miss ver.

Gamon e Lino

da Costa

Presbiteriana s/d O Puritano 30/05

e 11/07/1905

1905 São Paulo Ataque contra

o reverendo

B.V. Rancken

Presbiteriana s/d O Puritano

11/10/1905

1905 Maceió Expulsão de

colportor

s/d s/d Revista de

Missões

Nacionais

28/12/1905

1905 Tatuí SP Ataque contra

Francisco do

Amaral

Camargo

“opulento

negociante”

s/d s/d s/d

1

1906

Monte Alegre

(Timbaúba, PE)

Incêndio de

igreja

IEP s/d “Esboço Histórico

da Escola

Dominical da

Igreja Evangélica

Fluminense”,

1932, p. 309704.

1906 Goiana PE Agressão a

batistas

Batista s/d “Os Batistas em

Pernambuco”, p.

115.

1907 Timbaúba PE Incêndio de

igreja

Batista s/d “Os Batistas em

Pernambuco”, p.

122.

1907 Bom Jardim RJ Destruição de

igreja

Batista s/d O Puritano

12/01/1907

p. 6. Acrescenta ainda que a zona missioneira, de povoamento mais antigo, testemunhou muitas violências

contra protestantes, mas não cita fontes. 703 O episódio do ataque a um culto batista em Cortez, localidade da zona da mata sul de

Pernambuco, onde até “inofensivas viúvas” teriam sido seviciadas por um grupo de trinta indivíduos

aliciados pelo padre Jerônimo de Assunção, é o único registro contemporâneo recolhido por Tarsier de uma

perseguição contra batistas, mas mesmo assim, extraído de um jornal secular. Op cit, II, p. 6. 704 Esse incidente, relatado por Metódio Maranhão (op cit, p. 95) e também recolhido por Léonard,

(p. 131) não é mencionado na obra de Tarsier.

Page 215: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC SP … Douglas de... · 6.5. Ginsburg em Macaé (1898). 92 7. Salomão Ginsburg em Pernambuco (1900 – 1909). 95 7.1. Situação

217

1908

fev.

Macabu RJ Agressão

contra Luis

Otávio Firmo e

seu sobrinho

s/d s/d “A Lira de

Macaé”

1908 Timbaúba PE Incêndio de

igreja

Batista s/d s/d

1908

set.

Nova Friburgo

RJ

Tentativa de

proibir

propaganda

protestante

Batista Intervenção

policial.

s/d

1908 Bom Jardim PE Assassinato de

Teófilo de

Souza, crente

protestante

Batista s/d s/d

1909

mar.

Além Paraíba

MG

Tentativa de

depredação de

propriedades

da igreja

metodista

Metodista Intervenção do

governo

estadual que

envia delegado

militar para a

região.

s/d

1909

maio

Cabo Frio RJ Desacato ao

rev. Leônidas

da Silva

Metodista s/d Expositor Cristão

13/05/1909

Perseguições religiosas na República Velha por estado

Estado (1890 – 1910) (1910 – 1930) Total

Território Acre – – –

Alagoas 4 10 14

Amazonas – – –

Bahia 4 6 10

Ceará – 1 1

Distrito Federal 3 2 5

Espírito Santo – – –

Goiás – – –

Maranhão 1 – 1

Mato Grosso – 2 2

Minas Gerais 15 2 17

Pará – – –

Paraíba 4 2 6

Paraná – – –

Pernambuco 23 5 28

Piauí – 3 3

R.G. Norte – – –

R.G. Sul 1 – 1

Rio de Janeiro 16 1 17

Santa Catarina – – –

Page 216: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC SP … Douglas de... · 6.5. Ginsburg em Macaé (1898). 92 7. Salomão Ginsburg em Pernambuco (1900 – 1909). 95 7.1. Situação

218

São Paulo 5 4 9

Sergipe – – –

Para começar, o cenário onde se verificam esses incidentes é muito

amplo, o que, por conseguinte, não permite situar o quadro das perseguições

em uma única região. É bem verdade que os ataques registrados no Nordeste

são mais numerosos – 63 ocorrências contra 50 verificadas nos estados

meridionais, concentradas principalmente nos estados do Rio de Janeiro e Minas

Gerais. Contudo, isso não quer dizer que o Nordeste seja em si mesmo um

bastião de intolerância religiosa, já que os incidentes estão em sua maioria

concentrados na zona da mata pernambucana, em Alagoas, no município

piauiense de Corrente (terra dos Nogueira Paranaguá) afora episódios isolados

na Bahia e na Paraíba. Já no Centro-Sul, chama atenção as seguidas

ocorrências de perseguições em regiões muito próximas dos centros políticos e

econômicos, particularmente no estado do Rio, ao passo que em Minas Gerais

elas podem ser explicadas pela forte influência do catolicismo do padroado sobre

a população, profundamente enraizada em sua cultura e vida social. Também

merece destaque o fato de que, embora concentradas em áreas rurais e

municípios de pequeno porte, isso não significa de modo algum que tais

ocorrências seguem um padrão, já que também se registram incidentes em

grandes cidades e capitais de estados como Niterói, Recife, Maceió, João

Pessoa, São Paulo e até no antigo Distrito Federal com cinco ocorrências, mais

do que em todo o estado do Piauí durante o período da Velha República. Assim,

o que destaca a pesquisa de Tarsier não é o quadro das perseguições ocorridas

no Nordeste ou mesmo no estado de Pernambuco embora o fato tenha

relevância, mas sim aqueles incidentes verificados em Minas e no Rio de

Janeiro, por ser a região Sudeste do país a mais rica já no momento em que o

autor fez esse levantamento, e onde se espera encontrar costumes sociais mais

asseados.

Também é possível perceber que as ocorrências de perseguição religiosa

oscilam bastante não apenas em relação a regiões, mas também no âmbito dos

próprios estados, conforme o período analisado, como mostramos na tabela 4.

Page 217: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC SP … Douglas de... · 6.5. Ginsburg em Macaé (1898). 92 7. Salomão Ginsburg em Pernambuco (1900 – 1909). 95 7.1. Situação

219

No caso de Pernambuco isso fica muito claro: foram vinte e três ocorrências

somente no período de 1890 a 1910 contra apenas cinco nos vinte anos

seguintes. E se lembrarmos que a maior parte desse período corresponde à

época em Ginsburg está em atividade missionária no estado, isto é, entre 1898

a 1909, somos levados a concordar com Émile Léonard que chama atenção para

o fato de que o ministério missionário de Ginsburg realmente instigava e

fomentava esses conflitos705. Do mesmo modo no estado do Rio onde são

verificadas dezesseis ocorrências entre 1890 e 1910 contra apenas uma no

período seguinte, sendo que dos dezesseis incidentes registrados no primeiro

período, quatro se deram em regiões onde Ginsburg desenvolveu atividade

missionária, isto é, Niterói, Macaé Campos e São Fidélis. Por outro lado, o estado

de Alagoas onde ocorreram apenas quatro episódios de violência entre 1890 e

1910, assistiu a um salto das intercorrências com dez incidentes assinalados

entre 1910 e 1930, coincidentemente, o período de atividade do missionário

batista John Mein naquele estado, quando a “causa batista” registra a sua

primeira grande expansão. Lembrando que o tom polemista de Mein é

praticamente o mesmo de Ginsburg – “as igrejas evangélicas segregam os seus

fiéis da influência corruptora da igreja romana”, diz Mein a certa altura706 – está

explicado em parte a amplitude da perseguição verificada contra os protestantes

alagoanos no período posterior a 1910.

Outra coisa que chama atenção é que as perseguições são movidas por

grupos de sectários instigados por padres, portanto, não se trata de uma ação

articulada pelo clero mais alto707. Mesmo a atuação de Dom Luis Raimundo da

Silva Brito no episódio da queima de bíblias no Recife, em 1903, não evidenciou

que tenha partido deste bispo a ordem de incineração das mesmas. São,

portanto, perseguições de âmbito local, alimentadas e instigadas por vigários

paroquiais, em grande parte ligados ao clero secular dos quais alguns nomes

foram preservados como os dos padres Rocha, de Bonfim, na Bahia; Bulção, de

São Vicente de Paula, no interior do estado do Rio; e Jerônimo de Assunção, de

Cortez, na zona da mata sul pernambucana. A militância de religiosos

monásticos como o padre Júlio Maria em Minas Gerais, ou de frei Celestino

705 LÉONARD Émile G, op cit, p. 125. 706 MEIN John, op cit, p. 56. 707 Léonard segue o mesmo pensamento, op cit, p. 132.

Page 218: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC SP … Douglas de... · 6.5. Ginsburg em Macaé (1898). 92 7. Salomão Ginsburg em Pernambuco (1900 – 1909). 95 7.1. Situação

220

Pedavoli em Pernambuco, ou a participação de leigos católicos em ações

esporádicas como os da “Legião de São Pedro”, na capital paulista, pode

contribuir para acentuar o processo, mas não é, em si mesmo a causa dele.

Quanto as fontes por meio das quais os incidentes foram registrados, os

dados de Tarsier destacam em primeiro lugar os jornais denominacionais, em

especial os presbiterianos O Estandarte e O Puritano que recolheram grande

número de ocorrências em todo o país. Em segundo lugar vem os jornais locais,

estaduais ou municipais e depois os livros que guardam boa parte da memória

não recolhida pela imprensa, como a obra de Metódio Maranhão O Direito e a

Religião, mas que dedica boa parte de sua narrativa aos incidentes ocorridos na

zona da mata pernambucana no começo do século XX, e a História dos Batistas

em Pernambuco, de Antonio Neves Mesquita, outra obra que também foi escrita

muitos anos depois dos acontecimentos. De fato, muitos incidentes foram

relatados a posteriori como o homicídio perpetrado contra Manuel Correa Vilela

em Pernambuco, em março de 1898, e que só é mencionado no Jornal Batista

em agosto de 1915 ao passo que a expulsão do missionário metodista Terrel de

Santo Ângelo, na zona missioneira gaúcha só é descrita no sumário do

reverendo James Lillbourne Kennedy sobre o metodismo brasileiro quase vinte

e cinco anos depois. E do mesmo modo, o incêndio perpetrado contra a capela

congregacionalista de Monte Alegre, em Pernambuco, em 1906 só é

mencionado pela crônica histórica daquela denominação quase trinta anos

depois. Em suma, apenas os jornais denominacionais lhe subsidiaram com

informação regular, e ainda numa escala limitada posto que no período que

estamos estudando apenas a imprensa presbiteriana fornece informações

regulares, lembrando que o órgão informativo dos metodistas, o Expositor

Cristão, já existia desde 1886 e o Jornal Batista fora fundado em 1902. Daí

porque a maioria dos registros coletados pelo autor envolva, principalmente

missionários e leigos presbiterianos e batistas. Também chama atenção o fato

de que Tarsier não tenha localizado nenhum registro de grandes jornais

nacionais desse período como o Jornal do Brasil, o Jornal do Comércio ou

mesmo de uma folha provinciana, mas de relativa importância como o jornal O

Estado de S.Paulo, que tenha guardado memórias desses incidentes.

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221

A pesquisa de Tarsier também revela que a quantidade de ocorrências

está concentrada, sobretudo, nos grupos presbiteriano e batista e a razão para

explicar o fato é que nesse momento ambas as igrejas estavam se expandindo

nas duas direções, isto é, tanto para o Norte-Nordeste quanto para o Centro-Sul

do país, e de modo mais acelerado, fenômeno que não se nota nas igrejas

congregacionalistas já no começo do século XX e que se reflete nas ocorrências

esparsas, apenas duas no período. Por outro lado, das ocorrências efetivamente

discriminadas, 21 envolvem a Igreja Presbiteriana ao passo que 20 que

alcançaram a denominação batista. Já as intercorrências relacionadas aos

metodistas (nove incidentes), revelam o padrão de expansão daquela igreja,

todo concentrado, nesse momento, na região Centro-Sul do país, mais rica e

com melhores comunicações. Desse modo, a pesquisa de Tarsier consegue

evidenciar, a despeito de suas sérias limitações, dois aspectos importantes da

inserção do protestantismo na vida social brasileira: primeiro, a forte penetração

da religião protestante no interior do país, mormente as dificuldades logísticas e

a hostilidade do vicariato secular. E em segundo lugar, que esse processo se

encontrava sob o direcionamento das igrejas presbiteriana e batista, as únicas

que faziam esse movimento ao mesmo tempo tanto para o Sul quanto para o

Norte do país, embora somente os presbiterianos consigam produzir registros

dessas ocorrências ao tempo dos próprios acontecimentos.

Em terceiro lugar, embora pareça ficar evidenciado o fato de que uma

igreja “antiga”, isto é, com bastante tempo de inserção na vida social brasileira,

tende a se estabilizar e deixar de se expandir – e, consequentemente, de

enfrentar reações adversas – isto só é verdadeiro dentro de certa perspectiva,

ou seja, até pode ser verdade em relação aos congregacionalistas, mas não

quanto aos presbiterianos, que tendo quase o mesmo tempo de presença no

país que os congregacionalistas, ainda se acham em expansão nessa época e,

naturalmente, enfrentando oposições. Contudo, se invertermos a classificação e

colocarmos por bloco as igrejas mais “jovens” como a batista e a metodista de

um lado e as mais “antigas” como a congregacional e a presbiteriana do outro,

veremos que o primeiro grupo registra bem mais incidentes – vinte e nove no

total – do que o mais antigo, com vinte e duas ocorrências.

Page 220: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC SP … Douglas de... · 6.5. Ginsburg em Macaé (1898). 92 7. Salomão Ginsburg em Pernambuco (1900 – 1909). 95 7.1. Situação

222

9.2. Tipos de perseguições

Pode-se dizer que as perseguições contra protestantes na República

Velha tem, basicamente, duas características: as que são direcionadas contra

indivíduos como nos casos de espancamento, expulsão de missionários,

homicídios e, eventualmente, situações mais complexas como interdição de

cemitérios para o enterro de protestantes, etc , e aquelas que dizem respeito a

depredação de patrimônio seja ele particular – incêndio de casas de

protestantes, por exemplo – ou contra a instituição religiosa, seja o templo ou

outro tipo de bem imobiliário. A queima de bíblias é um ato que de tão singular

merece um exame à parte.

9.2.1. As ocorrências contra pessoas

As ocorrências, em geral, são de desacato aos pregadores, tentativas de

proibição de pregações e proibição de culto protestante, etc. Muitas dessas

ocorrências são listadas como “perseguição” a “crentes”, mas Tarsier não

descreve que tipo de perseguição seria essa, nem os indivíduos envolvidos, nem

as fontes com as quais ele sustenta essa informação. Além do mais, o próprio

registro dos incidentes obedece um padrão “eusebiano” com destaque para os

casos envolvendo missionários e ministros ordenados e apenas em situações

excepcionais, homicídio por exemplo, os indivíduos leigos que, no geral, são

descritos como “crentes” sem maiores explicações. Casos mais sérios –

espancamento de missionários, depredação de propriedades e assassinatos –

são muito esporádicos e nem sempre relacionam fontes. Além do mais, muitos

registros contêm imprecisões grosseiras como a prisão de Salomão Ginsburg

em São Fidelis, que Tarsier informa ter se dado em 1891 quando o mesmo em

Page 221: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC SP … Douglas de... · 6.5. Ginsburg em Macaé (1898). 92 7. Salomão Ginsburg em Pernambuco (1900 – 1909). 95 7.1. Situação

223

suas memórias informa ter ocorrido ao tempo da revolta da Armada, no começo

de 1894708. Relatos imprecisos são uma constante em Tarsier: o homicídio de

Teófilo de Souza em Bom Jardim (PE), por exemplo, é relatado como tendo sido

perpetrado em dezembro enquanto Antonio Neves de Mesquita fala em janeiro

de 1908 e nenhum dos autores informa o nome exato da vítima709. E a história

das “três mortes” ocorridas em Pernambuco em 1898 não apresenta nenhuma

fonte a não ser o próprio Tarsier. Essas imprecisões não invalidam o seu

trabalho, mas forçam o historiador a olhar com reservas e cautela o caudal de

informações, levando-o a separar com a maior atenção aquilo que é

comprovadamente fato do que é, quando muito, presunção de fato.

Outro aspecto a destacar desses incidentes é que eles evidenciam

claramente a frágil cobertura jurídica do estado brasileiro, no que tange a

garantia dos direitos mais elementares. Episódios como os da interdição de

cemitério público para o sepultamento de protestante em Paty do Alfares (RJ) e

em Cabo Verde (MG) ou o episódio relatado por Metódio Maranhão ocorrido no

município do Cabo, em 1910, em que um cidadão precisou desenterrar o corpo

de sua filha, por conta do interdito do cemitério público à protestantes

estabelecida pelo vigário paroquial João Batista de Araujo e pelo juiz da

comarca710, ou ainda a proibição de cultos, evidenciam, inclusive nas regiões

mais ricas do país, a continuação da ausência do estado de direito, tal como no

Império onde havia ainda o problema da centralização administrativa e judiciaria.

Quando se tem reação do Estado é somente quando os incidentes ocorrem em

regiões de antiga presença protestante (Nova Friburgo, RJ), ou sob pressão da

opinião pública organizada como em Bom Jardim.

9.2.2. As ocorrências contra propriedades

Quando ocorre uma reação é, em geral, quando as violações atingem a

integridade de propriedades das igrejas como no incidente de Além Paraíba onde

se tentou destruir bens imóveis e semoventes da IMES. O fato de ser uma

708 TARSIER Pedro, op cit, I, p. 167 – 168. 709 LÉONARD Émile G, op cit, p. 132. 710 MARANHÃO Metódio, op cit, p. 92 – 94.

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224

entidade privada com sede nos EUA e que naquele momento respondia

diretamente pela administração das comunidades de prosélitos organizadas no

país, deve ter certamente pesado na decisão do governo mineiro em deslocar

força policial para a região, a fim de impedir a consumação do vandalismo. Isso,

contudo, não se constitui uma regra e as depredações ou incêndios de igrejas

protestantes, como aqueles perpetrados contra as igrejas congregacional e

batista no município pernambucano de Timbaúba, em 1906 e 1907,

respectivamente, evidenciam as limitações do estado de direito no período da

República Velha.

9.2.3. Queima de Bíblias

A destruição de bíblias é um acontecimento que dada a sua peculiaridade

precisa de um exame a parte. Há relatos sobre queimas de bíblias em Campanha

(MG) em 1894; no Recife, em 1903 e em São Paulo no ano seguinte e esses

incidentes corroboram até certo ponto o padrão de romanização do catolicismo

brasileiro, embora, por outro lado, dado o seu caráter esparso e circunscrito

quase que exclusivamente aos ambientes mais urbanos, não possam ser

considerados, como intenta Tarsier, em um movimento uniforme, na direção do

ultramontanismo. Além disso, também durante o Império, onde vigorava o

regime do padroado, foi proibida a comercialização de bíblias distribuídas por

colportores protestantes entre o público católico em geral, a exemplo do que

ocorreu com os colportores ligados a Robert Kalley no Recife.711 De todo modo,

isso não chega a afetar a indignação de Ginsburg quando soube da queima de

bíblias na capital pernambucana. “Eles” [os padres] fizeram tudo ao seu alcance

para convencer o povo que não buscasse a bíblia e que não a lesse, mas

queimasse todos os exemplares que lhes chegassem em mãos. E para

711 FORSYTH Willian, op cit, p. 205.

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convencê-lo não só que a nossa bíblia era falsa, mas que também devia ser

queimada, organizaram uma queima pública da Bíblia”712.

A reação católica contra a distribuição de bíblias pelas sociedades

missionárias, taxando-as de falsificações decorre do momento histórico da

Reforma quando católicos e protestantes formularam suas definições do cânon

bíblico. No Concílio de Trento (1546 – 1563) a Igreja Católica reconheceu a

canonicidade dos livros deuterocanônicos no cânon veterotestamentário que

figuravam na tradução de Jerônimo, a Vulgata, desde o século IV. Esses livros

– Tobias, Judite, Eclesiástico, Sabedoria [Sirácida] de Salomão, Baruc e os dois

livros dos Macabeus – foram adicionados oficialmente ao cânon católico naquele

concílio com a advertência de que “se alguém não recebesse estes livros como

sagrados e canônicos, com todas as suas partes, como se costuma ler na Igreja

Católica e estão contidos na antiga edição latina da Vulgata, e desprezasse

conscientemente as indicações acima referidas, seja anátema”.713 Por sua vez

as igrejas protestantes, sobretudo as reformadas, os rejeitaram totalmente, a

exemplo da Confissão de Fé de Westminster (1647), dos puritanos ingleses: “Os

livros geralmente chamados Apócrifos, não sendo de inspiração divina, não

fazem parte do cânon da Escritura; não são, portanto, de autoridade na Igreja de

Deus, nem de modo algum podem ser aprovados ou empregados senão como

escritos humanos”. (Capitulo I, 3). Mas essa não foi uma rejeição uniforme, posto

que a Igreja Anglicana, nos seus 39 Artigos de Religião (1562) os recebeu em

parte para a leitura fora do ambiente eclesiástico. “E os outros Livros (como diz

Jerônimo) a Igreja os lê para exemplo de vida e instrução de costumes (grifo

meu); mas não os aplica para estabelecer doutrina alguma” (artigo VI), posição

similar à da Confissão Belga, de 1561, dos reformados dos Países Baixos: “A

igreja pode, sim, ler estes livros e tirar deles ensino, na medida em que

concordem com os livros canônicos (grifo meu). Porém, os apócrifos não têm

tanto poder e autoridade que o testemunho deles possa confirmar qualquer artigo

da fé ou da religião cristã (artigo 6º)”. Desse modo estabeleceram-se duas

edições da Bíblia ao longo dos séculos seguintes, uma contemplando os

deuterocanônicos e outra omitindo eles.

712 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 141. 713 ALVES Herculano. Documentos da Igreja sobre a Bíblia, p. 129.

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No caso do Brasil, os primeiros agentes das sociedades bíblicas, como

Kalley (SBBE) e Fletcher (SBA) trabalhavam tanto com a tradução católica do

padre Antonio Pereira de Figueiredo (século XVIII)714 quanto com a protestante

de João Ferreira de Almeida (século XVII)715. A SBA vendia ambas: um

levantamento realizado pela SBA em 1927 acusava que 50% das bíblias

comercializadas pela sociedade eram da versão Almeida Revista e Corrigida

(RC), lançada na íntegra em 1753 e revisada pela última vez até aquele

momento, em 1898, vindo em seguida a Tradução Brasileira com 33% das

vendas, e a versão católica do padre Figueiredo, com 17%716.

A forte atuação das sociedades bíblicas levou a uma condenação

veemente dessas instituições pelo papa Gregório XVI por meio da carta encíclica

Inter Praecipuas, de 15 de agosto de 1840. É nesse documento que se encontra

a acusação de que as bíblias protestantes eram falsas: “não ignorais”, diz a

encíclica, “quanta diligência ou sabedoria é preciso para traduzir fielmente em

outra língua as palavras do Senhor. De tal modo que nada é mais fácil do que a

multiplicação desses gravíssimos erros, quer nas versões preparadas pelas

sociedades bíblicas, quer por fraude ou ignorância de tantos interpretes”.717 É

importante destacar que a preocupação do pontífice não foi de proibir a

circulação de bíblias, e tanto que a mesma encíclica destaca as iniciativas

realizadas no âmbito católico para disseminar a leitura e a cultura bíblica, mas

sim que apenas a Igreja Católica exercesse, por meio do magistério, a

prerrogativa de ensinar, comentar e divulgar a Bíblia, em suma, um verdadeiro

monopólio do Sagrado718 que a concorrência protestante vinha ameaçar, quer

de modo particular, por meio das igrejas locais, quer de maneira mais ampla,

através das sociedades bíblicas, organizadas, segundo o documento, “para

propagar o cristianismo fora das regras instituídas pelo próprio Cristo”719. Pio IX

(1846 – 1878) manteve o interdito dessas bíblias no Syllabus Errorum (1864)

numa condenação em que as sociedades bíblicas eram niveladas ao socialismo,

714 ROCHA João Gomes da; op cit, I, p. 58. 715 GIRALDI Luiz Antonio, op cit, p. 59 – 60. 716 Ibidem, p. 60. 717 DOCUMENTOS DA IGREJA. DOCUMENTOS DE GREGÓRIO XVI E PIO IX, (Inter

Praecipuas, 1840), 2. 718 Ibidem, 3,4. 719 Ibidem, 8.

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ao comunismo e a maçonaria720. Trata-se, portanto, não só de uma luta contra

as bíblias protestantes, mas, em última análise, uma luta para assegurar o

monopólio dos bens de salvação (na perspectiva hermenêutica de Bourdieu)

pela Igreja Católica. Ainda no começo do século XX o Catecismo de Pio X tratava

a questão da recepção dessas bíblias, demonstrando da forma mais eficaz a

precisão da crítica bourdiana:

P. É necessária a todos os cristãos a leitura da Bíblia?

R. A leitura da Bíblia não é necessária a todos os cristãos, (grifo meu) sendo,

como são, instruídos pela Igreja; mas é, contudo, útil e recomendada a todos (grifo meu).

P. Pode-se ler qualquer tradução em língua vulgar da Bíblia?

R. Podem ler-se as traduções em língua vulgar da Bíblia desde que sejam

reconhecidas como fiéis pela Igreja Católica (grifo meu), e venham acompanhadas de

explicações ou notas aprovadas pela mesma Igreja (...) Só se podem ler as traduções da

Bíblia que são aprovadas pela Igreja porque só Ela é legítima depositária e guarda da

Bíblia (...)

P. Que deveria fazer um cristão, se lhe fosse oferecida a Bíblia por um protestante

ou por algum emissário dos protestantes?

R. Um cristão a quem fosse oferecida a Bíblia por um protestante, ou por algum

emissário dos protestantes, deveria rejeitá-la com horror, por ser proibida pela Igreja. E,

se a tivesse aceitado sem reparar, deveria logo lançá-la ao fogo (grifo meu) ou entregá-

la ao próprio pároco.

P. Por que proíbe a Igreja as bíblias protestantes?

R. A Igreja proíbe as Bíblias protestantes, porque ou estão alteradas e contêm

erros (grifo meu), ou então, faltando-lhes a sua aprovação e as notas explicativas das

passagens obscuras, podem causar dano à Fé. Por isso a Igreja proíbe também as

traduções da Sagrada Escritura já aprovadas por Ela, mas reimpressas sem as explicações

que a mesma Igreja aprovou721

720 Ibidem, Syllabus Errorum, 18, § IV. 721 file:///C:/Users/Edson%20Douglas/Downloads/Catecismo_Sao_Pio_X.pdf acesso 06/03/17.

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É importante frisar que a decisão da Igreja Católica de exercer um

monopólio sobre os bens de salvação, conforme a abordagem teórica de

Bourdieu, também encontra eco no mundo protestante, e isso desde os dias da

Reforma, quando vemos Lutero se insurgindo contra os “pregadores

clandestinos”, apostrofando-os em favor dos ministros estabelecidos pelo Estado

e com reconhecimento da igreja oficial e que, por conseguinte, detinham o direito

de não apenas pregar, mas expor a leitura bíblica que era aceita pela

hierocracia722. O próprio Ginsburg não deixa de fazer o mesmo: em seu esforço

em converter os congregacionalistas de Niterói “com a Bíblia aberta” e “sob nova

luz”, conforme suas palavras, ele nada mais faz do que reconhecer a existência

de um padrão válido de leitura e compreensão da Bíblia ao qual a sua inteligência

e capacidade de persuasão se ajustam a fim de trazer os extraviados para a sua

nova grei e, o qual, resulta na rejeição e negação daquela outra precedente,

católica ou protestante pedobatista. Permanece uma leitura “hierocrática” da

Escritura que legitima e justifica suas crenças e cosmovisão de mundo ao

mesmo tempo que tira legitimidade das demais, convertendo-se desse modo

essa mesma leitura em “bem de salvação” (Bourdieu).

CAPÍTULO III

722 Ver LUTERO Martinho, Obras Selecionadas, VII [Carta do Dr. Martinho Lutero sobre os

Intrusos e Pregadores Clandestinos, 1532], p. 115 – 124.

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O relato de Salomão Ginsburg como um hagiógrafo e um registro

de impressões sobre o Brasil. As influências recebidas e transmitidas por

Salomão Ginsburg no âmbito da Igreja Batista

1. A construção da memória simbólica

Como já foi dito, a base para a reconstrução da memória de Salomão

Ginsburg no Brasil é a sua autobiografia, mas é preciso esclarecer que não se

tratam de quaisquer memórias: todas as experiências pessoais que Ginsburg

relata no seu livro estão condicionadas às suas vivências religiosas e são

carregadas de imagens que remetem à sua relação com o Sagrado. A esse fato

procuramos dar uma significação bem própria por meio do termo memória

simbólica, já que se trata de uma construção autobiográfica que remete em todo

o tempo à busca de sentido de sua experiência de fé e que para isso usa os

símbolos que dão significado a essa fé (batismo, igreja, etc) como base para a

formação dessa memória.

Mas a memória simbólica vai além do discurso religioso. Ela também pode

resultar na construção de um discurso no qual a fronteira entre a autobiografia e

a construção ficcional, mesmo que sob um formato histórico, tornam-se muito

tênues. Tais obras são vistas por Bourdieu como construções, ora na direção de

uma nova configuração simbólica, ora na transformação do sujeito narrador em

personagem principal de uma nova categoria de romance, categoria essa

formulada dentro de premissas metodológicas bem distintas. Como escreve

Bourdieu:

De fato, vivendo aos olhos da posteridade uma vida cujos mínimos detalhes são

dignos de coleta autobiográfica, é integrando através do gênero “memórias” todos os

momentos de sua existência na unidade reconstruída de um projeto estético, em suma, ao

fazer de sua vida uma obra de arte e a matéria da obra de arte, os escritores estimulam

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uma leitura biográfica de sua obra e sugerem se conceba a relação entre a obra e o público

como uma comunhão pessoal entre a “pessoa” do criador e a “pessoa” do leitor723.

Para os efeitos de nosso estudo queremos chamar atenção para a idéia

de reconstrução da memória autobiográfica que, sendo já por si mesma um

exercício de seleção de memórias (quais as memórias que devem ser, de fato,

disponibilizadas para os leitores-consumidores e domo serão apresentadas)

assume caráter outro que não é nem o autobiográfico, nem o romântico (já que

se constitui de memórias seletivas). Para Bourdieu esse tipo de produção tem

uma finalidade implícita.

É preciso situar o corpus assim constituído no interior do campo ideológico de

que faz parte (...) em outros termos, é necessário determinar (...) as funções de que se

reveste esse corpus no sistema das relações de concorrência e de conflito entre grupos

situados em posições diferentes no interior de um campo intelectual que, por sua vez,

também ocupa uma dada posição no campo de poder.724

No caso das narrativas de caráter simbólico, especialmente aquelas de

profundo teor religioso, o hagiógrafo é certamente uma parcela desse tipo de

literatura, tanto pela sua importância na construção de novos símbolos (em

termos de uma uniformidade das relações religiosas) como na possibilidade de

dar outro significado aos antigos símbolos, por meio de novas narrativas,

acrescentando outros elementos quer de caráter místico, quer devocional, além

de assumir uma posição de concorrência em relação a outros grupos com os

quais está em litígio, ou mesmo em relação a outros hagiógrafos. Em Ginsburg,

essa percepção também se percebe por uma série de motivos: primeiro, o fato

de que esta não é uma autobiografia convencional, não busca um grande

público, mas um público específico dentro do seu próprio meio religioso, um

público que já o conhece e que pretende acompanhar todas as fases de sua vida

por meio dos seus relatos. E em segundo lugar porque ela se reveste de uma

723 BOURDIEU Pierre, op cit, p. 185. 724 Ibidem, p. 186.

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função implícita claramente delineada que é a assegurar a reprodução do capital

simbólico por meio da legitimação do discurso deste, o que só é possível através

de uma literatura que sirva de subsídio e justificativa para esse mesmo discurso,

o que a coloca, por conseguinte, na categoria dos escritos hagiográficos. Daí a

necessidade da escolha das memórias e do público o que implica, enfim, no

caráter funcional dessa obra, mesmo quando revestida de uma forma “histórica”.

2. Conceituação de hagiógrafo

Tanto a Historia Eclesiástica de feitio eusebiano quanto a Historiografia

recorrem aos hagiógrafos como fonte de pesquisa, seja pelas informações que

ele disponibiliza, seja pelo que ela pode revelar em termos de transformações

de mentalidades a partir do momento em que tais registros apareceram. De fato,

é quase impossível construir uma narrativa histórica que tenha por tema a

religião cristã relegando os hagiógrafos que são parte indissociável de sua

literatura.

A Hagiografia, conforme Sofia Boesch Gajano, professora de História

Medieval da Universidade de Roma (Roma III), pode ser definida como “toda

escrita que tem por objeto os santos ou a santidade, mesmo que no decorrer do

tempo tenha adquirido outros significados, até abranger todo testemunho e

discurso relativo aos santos e a seu culto e, finalmente, à ciência que os estuda,

um ramo da ciência histórica”.725 Seu objetivo é a preservação da memória dos

santos com vistas a edificação e o exemplo. Na literatura antiga, a Hagiografia

abrangia uma variedade imensa de produções literárias como relatos de vidas

de santos – ex: o Martírio de Policarpo de Esmirna (que embora se reporte a um

fato do século II foi escrito três séculos mais tarde), a Vida e Conduta de Santo

Antão, de Atanásio (século IV), a Vida de São Martinho, de Sulpício Severo

(século IV) e outras menos conhecidas como a Vida de Melânia a jovem, de

725 GAJANO Sofia Boesch, in BERNARDINO Angelo di; FEDALTO Giorgio; SIMONETTI

Manlio (org.), op cit, p. 904.

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Gerôncio (século V), a Vida de Macrina, de Gregório de Nissa (século IV) entre

outros – Paixões, coleções de narrativas de milagres e até os processos judiciais

do qual resultou o martírio dos santos também podem se constituir em

hagiógrafos. Nem sempre esses últimos se tratam de documentos judiciais

propriamente ditos sendo que “as mais das vezes trata-se antes de forma literária

do que de verdadeiros protocolos e processos legais.”726 Não raro, o próprio

autor do relato tem ciência de que o mesmo pode não passar de um apócrifo,

como no caso de Jacopo Varazze a respeito de São Jorge.727 Mas mesmo assim

não chega a lhe questionar a sua utilidade para a edificação e também, se for o

caso, o combate a heresia e a superstição (outra função importante do

hagiógrafo)728.

“O termo hagiografia” escreve Sofia Boesch Gajano, “não subentende

necessariamente um cunho de historicidade maior que o contido em textos mais

fragmentários ou mais inclinados a abrir espaço a narrativas miraculosas. A

diferenciação entre historicidade e fantasiosidade deve ser buscada às vezes em

cada texto e nas formas da sua construção”.729 De fato, mesmo no hagiógrafo é

possível encontrar um relevante retrato de uma época como na Vida de São

Severino Nórico, de Eugípio (século V), cuja biografia coincide com o período

das invasões bárbaras na Itália730, bem como testemunhos suspeitos como o

Testamento dos Quarenta Mártires, supostamente executados em Sebaste, na

Armênia, durante o século IV731. A fronteira entre a História e a Ficção

propriamente dita é mesmo bastante flexível.

Nem todo hagiógrafo tende a terminar necessariamente com a morte

violenta do biografado. No relato sobre a vida de Santo Antão, Atanásio busca o

testemunho da vida do eremita que viveu, conforme nos diz, mais de cem anos:

“só o fato de me recordar de Antão é de grande proveito”,732 ao passo que no

relato de São Severino Nórico, que também morreu idoso e de causas naturais,

a narrativa descreve, entre outros fatos, o translado dos seus restos mortais para

726 ALTANER Berthold; STUIBER Albert. Patrologia, p. 99. 727 VARAZZE Jacoppo, Legenda Áurea, p. 365. 728 GAJANO Sofia Boesch, in BERNARDINO Angelo di; FEDALTO Giorgio; SIMONETTI

Manlio (org.), op cit, p. 910. 729 Ibidem, p. 908 – 909. 730 Idem, p. 911. 731 ALTANER Berthold; STUIBER Albert, op cit, p. 102. 732 ATANÁSIO S. Vida e Conduta de Santo Antão, prefacio.

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Nápoles733. No hagiógrafo o que importa é o testemunho do biografado e o modo

como esse testemunho irá ser lido e recebido pela igreja. Na hagiografia também

as mulheres ganham projeção embora o monasticismo feminino seja visto com

reserva. As patrícias romanas que se internaram no deserto da Palestina e que

mereceram por isso o louvor de Jerônimo; a rainha merovíngia Radegunda,

celebrada como santa e taumaturga e mesmo Maria Madalena, todas essas

personagens tem no hagiógrafo o campo de ressonância de sua vida por meio

da qual se espera a edificação da Igreja e da sociedade do seu tempo,

principalmente no Ocidente quando do desmoronamento do Império Romano734.

A Reforma Protestante preservou a tradição hagiográfica em quase toda

a sua essência, mas acrescentando o testemunho de resistência ou negação ao

poder papal (ou, no caso dos anabatistas do Continente, os testemunhos da

comunidade contra as igrejas estatais e de resto todo o discurso em prol da

testificação da santidade e da negação do mundo). Também foi dinamizado o

gênero com a proliferação das chamadas baladas de mártires. O próprio Lutero

compôs uma dedicada a dois monges agostinianos, Heinrich Voes e Johann von

Eschen, queimados em Bruxelas em 1522 por terem lido e divulgado os seus

escritos735, mas foram os anabatistas que mais popularizaram esse tipo de

hagiógrafo com a divulgação do Ausbund, o hinário dos irmãos suíços que

depois foi adotado pelos Amish. Nem todos os hinos de martírio falam de

anabatistas como é o caso de George Wagner, condenado à fogueira por negar

a mediação sacerdotal,736 mas isso não chega a comprometer o espírito que

norteou esse tipo de produção que se pretendia colocar numa clara relação de

oposicão em relação ao mundo em redor e que se via a si própria, mediante a

sua condição de comunidade perseguida, como a expressão mais acabada da

Igreja que milita no mundo mediante o sofrimento. Relatos de mártires

anabatistas como Michael Sattler, autor da chamada Confissão de Schleitheim,

e líder dos anabatistas do Sul da Alemanha e da Suíça, morto em 1527737 ou de

Baltasar Hubmayer, líder dos anabatistas da Suíça e da Áustria, queimado em

733 GAJANO Sofia Boesch, in BERNARDINO Angelo di; FEDALTO Giorgio; SIMONETTI

Manlio (org.), op cit, p. 911. 734 Ibidem, p. 912 – 913. 735 LUTERO MARTINHO. Obras Selecionadas VII [Um belo Hino dos Mártires de Cristo

queimados em Bruxelas pelos sofistas de Louvain, 1522], p. 485 – 489. 736 GEORGE Timothy. Teologia dos Reformadores, p. 297. 737 MICHAEL SATTLER, op cit, p. 31 – 42.

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1528, foram popularizados durante o período da Reforma e reapareceram até no

Brasil onde encontraram boa acolhida na História dos Batistas do pastor José

Reis Pereira738. Ainda na tradição da Reforma há outros dois registros que são

da maior significação: o já citado Livro dos Mártires, de John Foxe, de 1587, e o

Espelho dos Mártires, compilação de relatos de martírios de anabatistas da

Suíça, Alemanha e Países Baixos, publicada em 1659. No caso desse último, a

intenção do livro está bem clara como é demonstrada pelo prefácio do

responsável pela compilação dos relatos:

São tristes estes tempos em que nós estamos vivendo. Sim, são tempos muito

mais perigosos do que aqueles dos nossos antepassados que sofriam a morte em

consequência do testemunho do Senhor (...) estes dias são muito mais perigosos porque

naqueles tempos Satanás vinha abertamente, quando o Sol estava alto no céu, rugindo

com um leão. Era fácil identifica-lo e, às vezes, até se esconder dele. Além disso, seu

objetivo era destruir o corpo natural. Mas agora ele se aproxima de noite ou no crepúsculo

do dia. Se apresenta de forma estranha, porém agradável, para espreitar a alma. (...) ele

procura mostrar que o mundo é um lugar lindo e glorioso. Isto faz através da

concupiscência da carne, da concupiscência dos olhos e da soberba da vida. Praticamente

todos os homens têm seguido esses prazeres, adorando-os como se fossem a rainha de sua

vida739.

Desse modo, conforme o compilador do clássico da hagiografia

anabatista, a tranquilidade decorrente da pacificação religiosa e da prosperidade

econômica advinda pela Idade de Ouro da cultura holandesa – a época de

Rembrandt, de Rubens, de Frans Hals e Vermeer – representa tempos nos quais

a igreja passa a sofrer outro tipo de pressão, outro tipo de assalto, não mais

violento, porém sutil e, o mais importante, atrativo aos olhos e aos sentidos. É

preciso haver uma coesão interna dentro do grupo e essa coesão é assegurada

pela preservação da memória, pois ela justifica a existência do grupo e sua

homogeneidade, dado que conseguiu superar as piores provações mantendo

sua unidade. Além disso, mostra que a produção de novos “cânones”, de que

738 PEREIRA José Reis, História dos Batistas no Brasil, p. 45 – 47. 739 O ESPELHO DOS MÁRTIRES, p. 7 – 8.

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fala Bourdieu740 precisa estar ocorrendo a todo o tempo, independentemente da

conjuntura, embora com mais justificação nos tempos de paz do que nos de

perseguição tanto para lembrar os dramas precedentes como ainda para

justificar as cadeias de relações e poder, notadamente quando líderes

proeminentes do movimento aparecem nas primeiras fileiras dentre os abatidos

pelas perseguições da véspera. Além do mais, não há unidade ou mesmo

produção de cânones se não houver junto com tudo isso uma produção de

símbolos e discursos religiosos que fundamentem de modo sistemático as

convicções da comunidade e aponte, inclusive, as diretrizes para a produção de

novos “cânones”. É o trabalho religioso acumulado com vistas a gestão do que

Bourdieu chama de “capital religioso”, isto é, a produção de tudo o que seja

necessário para garantir a reprodução da própria igreja como organismo

associativo a partir da reprodução dos elementos que darão legitimidade e

organicidade a esse processo, o ”corpo de sacerdotes” o qual, por sua vez,

assegurará aos membros leigos a posse dos “bens de salvação”, os

consumidores que, “dotados de um mínimo de competência religiosa necessária

para sentir a necessidade específica de seus produtos”, garantirá, por meio do

consumo destes, a reprodutibilidade da organização religiosa.741

2.1. A literatura hagiográfica no Protestantismo Brasileiro

O mesmo pressuposto também vale para a reprodução do “capital

religioso” nas igrejas protestantes brasileiras, desde a produção de música

religiosa com vistas a criar vínculos de solidariedade e um ambiente cultural

alternativo ao do “mundo” por meio da expressão da arte musical, até a

elaboração de narrativas ou discursos que deem o sentido de justificativa e

legitimação das práticas de fé que estão sendo seguidas, legitimando sua

teologia e visão de mundo, mas também – o que é mais significativo – a

740 BOURDIEU Pierre, op cit, p. 68. 741 Ibidem, ob cit, p. 59.

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perenidade dos grupos encarregados de construir e reproduzir esse tipo de

narração ou discurso. Ele é necessário não só para a reprodução orgânica da

própria igreja, através da ação dos leigos, mas também das estruturas de poder

que são legitimadas e justificadas por esse tipo de produção, assegurando-se

assim a necessidade de um corpo técnico que manterá a produção dos “bens de

salvação”. Desse modo, quando o reverendo Boanerges Ribeiro publica a

biografia do ex padre José Manoel da Conceição, ou quando os batistas decidem

traduzir a autobiografia de Salomão Ginsburg, eles não estão fazendo mais do

que assegurar a própria reprodução da Igreja mediante a literatura de edificação

que transmitirá ao leigo a ideia da legitimidade da missão (uma vez que é

confirmada pelo testemunho dos antigos e corroborada pela idéia do “pagar o

preço”, isto é, de aceitar as condições delimitadas para o cumprimento da

missão, como perseguições, privações, injustiças, etc.), a confirmação da Igreja

como expressão de uma vontade mais elevada (na medida em que este tipo de

discurso funciona como forma de corroborar práticas institucionais da mesma)

bem como do seu discurso de fé, inserindo-o também de uma legitimidade

excelsa.

O hagiógrafo é, portanto, um “bem de salvação” da maior relevância no

sentido de assegurar a permanência da Igreja e do seu corpo de burocratas e,

por conseguinte, de todas as suas funções correlatas, incluindo a sua

participação ativa na vida social da comunidade nacional. Ele constitui a

essência do “capital religioso” uma vez que se destina ao universo das práticas

e representações do laicato, “inculcando-lhes um habitus religioso” por meio do

qual é construída sua visão de mundo a partir da experiência religiosa (isto é, da

experiência religiosa interpretada, ressignificada ou apresentada ao leigo a partir

dos referenciais trazidos pelo grupo religioso, mas que não deixam de ter clara

conotação política, uma vez que também irão influir na visão do leigo acerca do

mundo social em sua volta).742

É significativa a produção de hagiógrafos pelas igrejas protestantes

brasileiras que decerto reconheceram sua importância na educação do laicato,

bem como na legitimação e confirmação dos grupos de poder, uma vez que parte

dos elementos vinculados às instâncias governativas (ou de leigos

742 Ibidem, ob cit, p. 57.

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comissionados para tal mister) a produção desse tipo de literatura. Além dos

clássicos presbiterianos como O Apóstolo de Caldas, (1950) do reverendo Júlio

Andrade Ferreira, dedicada à vida do pastor Miguel G. Torres; da Galeria

Evangélica (1952), do mesmo autor, um sumário da vida e ministério de figuras

eminentes do presbiterianismo brasileiro, e de O Padre Protestante (1948) do

reverendo Boanerges Ribeiro, temos o exemplo dos metodistas que na década

de 20 lançaram, através da Imprensa Metodista, a coleção Os Fundadores do

Metodismo, com biografias de John e Charles Wesley, Thomas Cocke, Peter

Cartwright, etc, todas com propósito explicitamente edificativo e apologético. Nos

anos 60, com claro intento de destacar a ação dos ministros nacionais e

estrangeiros, Isnard Rocha publicou os Pioneiros e Bandeirantes do Metodismo

no Brasil, uma obra muito parecida com a Galeria Evangélica. Entre os batistas,

além da autobiografia de Ginsburg existem os relatos acerca da vida da

missionária Noêmia Campêlo (1906 – 1928), pernambucana que faleceu no

exercício de suas atividades missionárias junto aos índios craôs do Maranhão.

O primeiro surgiu na década de 50 pela lavra de Stella Câmara Dubois (A

Heroína de Craoanópolis, 1959) e o segundo da parte do ex esposo da mesma,

pastor Zacarias Campêlo (Minha Vida e Minha Obra, 1970). Nos anos 40 o pastor

José Reis Pereira publicou uma biografia do missionário Eurico Nelson (1945),

que atuou no extremo Norte do país, igualmente de caráter hagiográfico. No

Pentecostalismo, os relatos dos fundadores das ADs, Gunnar Vingreen (O Diário

do Pioneiro Gunnar Vingreen, editado por seu filho Ivar Vingreen) e Daniel Berg

(Memórias), bem como do fundador da Congregação Cristã no Brasil, Luigi

Francescon, (o Resumo de uma ramificação da obra de Deus, pelo Espírito

Santo, no século atual) também possuem características hagiográficas743. De

igual modo, a coletânea Heróis da Fé, do missionário norte-americano Orlando

Boyer, com extratos das vidas de Lutero, Wesley, Dwight Moddy e até do monge

dominicano florentino Savonarola, também tem funcionado como um hagiógrafo.

A despeito da diversidade de grupos confessionais é possível perceber

algumas convergências bem explícitas nesses escritos devocionais. A primeira

delas é quanto ao sentido de chamado, de missão reivindicada pelos

743 Sobre o relato de Francescon ver REILY Duncan Alexander, op cit, p. 367 – 369; sobre a

Congregação Cristã no Brasil, ver LEONARD Emile G, op cit, p. 377 – 380 e do mesmo autor, O

Iluminismo num Protestantismo de Constituição Recente, p. 78 – 108.

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protagonistas dessas narrações. De fato, não é possível, à luz do escrito

hagiográfico, fazer a missão se não houver a autoconsciência do chamado. Isso

é importante não apenas para confirmar a missão, mas também – e

principalmente – a legitimidade da ação missionária ou pastoral por parte das

instituições religiosas744. Em segundo lugar, ainda como decorrência do primeiro

ponto, é preciso destacar que o chamado não é direcionado para a pregação

exclusiva da fé, da mensagem ou da doutrina, mas também para a propagação

de um modo de ser, de um estilo de vida. Portanto o missionário está

reproduzindo no lugar onde atua as funções do seu sistema eclesiástico,

doutrinas, costumes, visão de mundo, etc. Em terceiro lugar, o missionário se

reconhece como um eleito para um povo especial, povo esse que será

contemplado pela dádiva do evangelho que, por sua vez, irá não só remi-lo do

pecado universal, mas também, e principalmente, dos vícios aos quais o olhar

eurocêntrico (ou, no caso dos missionários nacionais como Noêmia Campelo,

formado a partir da ótica eurocêntrica) atribui à cultura nacional os seus maiores

infortúnios. Tanto Ginsburg745 quanto Noêmia Campelo746 se veem na missão de

não apenas evangelizar, mas também mudar os hábitos dos povos nos quais se

encontram trabalhando.

Finalmente, em quarto lugar, a exemplo do que acontece na hagiografia

dos santos, o hagiógrafo protestante também se destina ao combate dos

“pagãos” e das “superstições”. No caso dos missionários estrangeiros que

atuaram no Brasil entre a segunda metade dos oitocentos e o começo do século

XIX, está bem claro que o catolicismo é uma forma de paganismo e é com esse

pensamento que Salomão Ginsburg vai a campo. Pregar para os “pagãos”

católicos (Simonton, Ginsburg) ou para os “silvícolas” indígenas (Noêmia e

Zacarias Campelo) não é apenas uma missão evangélica, é também uma missão

“civilizadora”. O católico com sua religião sincrética vivendo nos interiores

744 Acerca do chamado ministerial ver HAHN Carl Joseph, op cit, p. 175 – 177, sobre o chamado

de Ashbel Simonton. FORSYTH Willian B. Jornada no Império, op cit, p. 19 – 20 acerca da conversão de

Robert Kalley. Bastante significativo é o relato de José Reis Pereira acerca do batismo de Eurico Nelson,

missionário pioneiro batista na Amazônia, onde a conversão também é demonstração de resistência contra

“todos os adeptos de religiões oficializadas”, nesse caso, referindo-se a Igreja Luterana da Suécia.

PEREIRA José Reis, O Apóstolo da Amazônia, p. 10 – 11. 745 GINSBURG Salomão, op cit, p. 246. 746 ALMEIDA Rute Salviano de, op cit, p. 395.

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remotos e o índio com sua religião ancestral são os sujeitos passivos do

evangelho da conversão e da nova civilização.

2.2. O hagiógrafo como construção e como documento histórico

Algumas questões de ênfase ainda se impõem nesse tópico, sendo a

primeira, a que mais diretamente se reporta ao nosso estudo, se o hagiógrafo

pode ser considerado um documento histórico. Fica claro aqui que a função

fundamental do hagiógrafo, embora muitas vezes redigido para ser uma crônica

edificativa (e, nesse sentido, funcionar como um bem de capital simbólico

conforme a perspectiva de Bourdieu) também age como um elemento de

fundamentação da História Eclesiástica. Na hagiografia protestante o fato

histórico se encontra bem delineado com a intenção de assegurar uma

“autenticidade” ao relato, embora isso não impeça eventuais discrepâncias ou

incongruências do texto. Na verdade, mesmo que haja lacunas ou

inverossimilhanças – e Sofia Boesch Gajano já destacou essa possibilidade –

elas funcionam como um dado revelador das mentalidades que inspiraram e

redigiram essa memória de modo que o trânsito narrativo soa fluídico porque

entre o autor e a causa inspiradora e o mercado de leitores existe uma linha de

convergência que o hagiógrafo não pretende quebrar, sem contar que a função

dessa literatura é a de edificar as consciências e assegurar a reprodução da

religião por meio do discurso da fé.

Além do mais, como já vimos, o hagiógrafo está na bibliografia da História

e da Historiografia do Protestantismo, o que significa que seus autores também

reconhecem ali a historicidade – ou alguma historicidade – que permita o seu

uso como fonte. Como escreve Léonard, embora escritas com o propósito de

edificação e tenham um forte componente romanceado, o fato de possuírem

“numerosos documentos de caráter muito pessoal” permite ao historiador

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“encontrar dados valiosos, vendo desenhar-se ao redor de si figuras e horizontes

desconhecidos”.747

Em segundo lugar, ao se fazer da vida de determinadas pessoas um sinal

indicativo de uma vontade transcendente onde o chamado e a confirmação do

mesmo resultem numa vocação, tais escritores (e o público que compra seus

produtos) não estão fazendo nada de mais do que aceitando a ligação intrínseca

entre ambos a partir do sujeito do biografado, do que resulta, para Bourdieu, na

formação de um “mandarinato intelectual” que do ponto de vista da sua função

de produtor de significados, irá exercer papel análogo ao do sacerdote ou leigo

encarregado de produzir os bens simbólicos que constituem o produto da religião

e o meio pelo qual se realimenta continuamente o discurso religioso.748 nesse

sentido o hagiógrafo é inegavelmente uma construção, mas também é um

discurso de uma mentalidade inserida no tempo e expressão das divagações e

tensões desse tempo onde uma série de ameaças (crescimento dos movimentos

laicos dentro e fora da igreja e dos grupos pentecostais, por exemplo) obriga os

produtores de bens simbólicos a redobrar os esforços pela preservação da

memória e, não só isso, mas em sua ressignificação para o tempo presente.

Além disso, o hagiógrafo funciona como uma construção para os sujeitos

evangelizados e, portanto, suscetíveis à influência do meio cultural e religioso

que permeou a construção daquele discurso. A “idolatria” na qual o casal Kalley

encontrou o Rio de Janeiro do século XIX é o pretexto da ação missionária e o

mote que legitimará, segundo Synesio de Lyra, a publicação das memórias de

João Gomes da Rocha.749 A biografia de Eurico Nelson não se destina a outra

coisa senão a despertar a mocidade batista para as Missões, bem como para

que sirva de estímulo a que se publique outras biografias de vultos batistas como

o Dr. Nogueira Paranaguá e o antigo pastor da PIB do Rio, Francisco Soren “e

de outros que tem contribuído tanto para a obra missionária no Brasil”750. É o

mesmo pensamento de Isnard Rocha em seu livro sobre os pioneiros metodistas:

“que da leitura destas ligeiras notas biográficas despertem muitos corações

jovens em nossas igrejas locais para também se dedicarem a essa obra

747 LÉONARD Émile G, op cit, p. 26. 748 BOURDIEU Pierre, op cit, p. 185. 749 ROCHA João Gomes da, op cit, I, p. 6 – 7. 750 PEREIRA José Reis, Eurico Nelson, op cit, p. 5 – 10.

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gigantesca (...) de levar as boas novas de salvação ao povo de nossa terra”.751

Em suma, os hagiógrafos existem porque há uma demanda de sujeitos que

precisam receber esse discurso para poder reproduzir a própria igreja. É essa

demanda de público leigo que consumirá os bens de salvação que é, em última

análise, aquilo que preserva a continuidade da igreja e de suas estruturas

burocráticas (Bourdieu).

3. A narrativa de Salomão Ginsburg

Os relatos de Salomão Ginsburg sobre suas experiências como

missionário possuem uma complexidade narrativa que não pode ser

escamoteada. Refletem tanto as particularidades de sua formação como

também as influências recebidas do meio religioso batista moldado pela

perspectiva da ideologia missionária anglo-saxônica em vigência no final do

século XIX e cujas características são o racismo, o eurocentrismo e a

desconstrução da identidade dos sujeitos recebedores da mensagem

missionária.

Tais narrativas envolvem, no geral, suas atividades de pregação e

proselitismo e quase sempre resultam em perseguições ou ameaças. Em certos

momentos, como no Cabo e em Queimadas, as ameaças são feitas por

multidões que ele descreve geralmente “fanáticos”, mas nas perseguições

ocorridas no estado do Rio e em Pernambuco ele também dá conta de

movimentos organizados, quase sempre por religiosos, geralmente padres

seculares, que, direta ou indiretamente, instigam a massa contra ele, embora por

vezes a oposição também venha de outros círculos, principalmente delegados

de polícia ou “chefes políticos” (São Fidelis). De todas essas situações ele

consegue desembaraçar-se e ainda tripudia dos inimigos com no caso de São

Fidélis, ou os vê sendo escorraçados da cidade e da vida social do município

751 ROCHA Isnard, op cit, ob cit, p. 17.

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como o padre de Limoeiro. Em todas as situações, Ginsburg descreve os

eventos como um misto de perseverança e ênfase no sofrimento pessoal como

testemunho de fé. A lição que fica dessas narrativas é sempre a mesma: ele está

fazendo uma missão e essa missão ninguém pode deter. Os inimigos que se

levantam contra ela caem todos a seus pés o que é um demonstrativo de que

suas ações são perfeitamente justificadas e lícitas. No final, depois de fundar a

igreja e arrebanhar os prosélitos convertidos na véspera, Ginsburg e sua causa

saem vencedoras do embate.

Excetuando algumas situações pontuais como o encontro com Antonio

Silvino ou o episódio do tiroteio em Barra do Itabapoana (RJ)752 onde, segundo

ele, foi salvo por milagre de um grupo de “fanáticos” que procuraram dispersar

sua reunião evangelística abrindo fogo contra os prosélitos, as narrativas de

Ginsburg são quase inteiramente despossuídas de eventos que possamos

chamar de miraculosos ou sobrenaturais. É o completo oposto do que ocorre,

por exemplo, com o pioneiro das AD, Gunnar Vingreen que, como Ginsburg,

também possui conexões com o meio eclesial batista (embora suas origens

rurais o aproximem naturalmente do tipo de público que irá frequentar no

Brasil753, diferente de Ginsburg cuja educação rabínica e o meio urbano por onde

passou na Alemanha e Inglaterra o deixem mais próximo das camadas urbanas

e das classes médias). Nos relatos de Vingreen são constantes as menções a

eventos sobrenaturais ou miraculosos. Como entender essas diferenças sem

passar pelo discurso consensual de que ambos representam praticas religiosas

distintas, isto é, o protestantismo de missão e o pentecostalismo?

Bourdieu também chama atenção para o fato de que os interesses

mágicos, de que se reveste a religiosidade popular, se distinguem dos interesses

religiosos propriamente ditos,

Por causa do seu caráter parcial e imediato, o que os torna cada vez mais

recorrentes quando se busca sinais de tais práticas nas camadas mais baixas da hierarquia

social, fazendo-se presentes, sobretudo, nas classes populares e, mais particularmente,

752 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 165 – 167. 753 VINGREEN Ivar, op cit, p. 19 – 20.

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entre os camponeses (...) quanto maior for o peso da tradição camponesa numa civilização

tanto mais a religiosidade popular se orienta para a magia754.

Para Bourdieu a transição das formas mágicas da religião para uma

religiosidade sistematizada e permeada de valores morais, uma religiosidade

institucional, tal como classificada por Weber, não só ocorre quando da

convergência de interesses entre o “profeta” (aquele que recebe a “revelação”)

e o “clero” (que recebe a “revelação” do “profeta” ou dos seus discípulos e a

transmite para os leigos), “mas também das transformações da condição

econômica e social dos leigos”. Quando isso ocorre, ou seja, quando passa a

haver um distanciamento social entre os grupos constituintes do movimento

religioso e entre os leigos e seus líderes clericais, tem-se então a formação da

hierocracia. Esse passo é importante porque como Weber destaca, a existência

de um “carisma pessoal” no interior das formas religiosas, reunindo pessoas e

agrupando-as em torno de um líder ou do próprio movimento, conforme destaca

Gedeon Alencar acerca dos primeiros momentos das ADs755 impede a igreja de

alcançar as pretensões universalistas de controle.756 Pode ser, quando muito,

um instrumento para a edificação e a virtude, mas não um bem de salvação em

si mesmo, posto que a igreja – todas as igrejas e em todas as épocas, conforme

Weber – reivindica esse poder sem o qual não se configura a hierocracia. 757 Só

na hierocracia é que a Igreja assume de fato o monopólio dos bens de salvação

e a profissionalização do corpo sacerdotal que assegura a reprodução desse

discurso, por meio da formação semineral.

No caso batista – e das igrejas protestantes históricas de modo geral – a

preocupação dos missionários foi desde o início reproduzir a estrutura

eclesiástica que os formou e comissionou no território onde se desenvolve a

missão, enquanto que no pentecostalismo o que predominou de início foi a

aversão a toda e qualquer forma de organização eclesiástica758, fato

exemplificado na total rejeição da formação profissional para o ministério,

754 Ibidem, ob cit, p. 84 – 85. 755 ALENCAR Gedeon, op cit, p. 140. 756 WEBER Max, op cit, 2, p. 370. 757 Ibidem, op cit 2, p. 370. 758 ALENCAR Gedeon, op cit, p. 20.

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lembrando que enquanto na Igreja Batista pouco mais de vinte anos separam a

fundação da primeira igreja da organização do seminário, no pentecostalismo

isso só irá se dar várias décadas após a fundação da “Missão Fé Apostólica”, o

primeiro nome das AD, e ainda sob fortes resistências, nos fins dos anos 60 e

começo dos 70759, resistências essas que são resquício da fase “carismática” da

denominação assembleiana760. Contudo, mesmo com essa forte resistência, é

importante destacar que, no momento em que prevalece a tese da

profissionalização do corpo pastoral, a fundação e expansão dos “institutos

bíblicos” se dá de forma avassaladora: são quatorze instituições ligadas às AD

fundadas apenas na década de 70 (1971 – 1979)761 contra duas criadas no

período de 1958 a 1971762. A despersonalização da liderança eclesiástica e a

mudança de hábitos sociais dos membros do grupo são passos importantes na

racionalização e organização da Igreja Institucional.

De fato, entender a configuração social dos grupos inseridos nas

comunidades batista e assembleiana é de fundamental importância para

entendermos as dinâmicas narrativas que particularizam os dois relatos. Os

prosélitos arrebanhados por Ginsburg em sua passagem pela zona da mata

norte pernambucana provém das “melhores famílias do lugar”, são oriundos de

famílias de sitiantes ou grandes proprietários de terras ou proprietários urbanos

como Manoel de Holanda Cavalcanti, em suma, pessoas que possuem posses

e rendimentos advindos delas ou exercem funções especializadas. A

proximidade de um centro católico de devoção popular – e todo centro de

devoção popular tem narrativas de milagres a ele aderentes, como é o caso de

São Severino do Ramo – não parece ter interferido na escolha dessas pessoas

como mostra o rápido progresso dos batistas naquela região. No caso

pentecostal se dá um fenômeno diferente: ali os grupos sociais são os mais

pobres, grupos esses que, como lembra Gedeon Alencar, estavam

institucionalmente marginalizados, trabalhadores pobres e negros recém-

emancipados e próximos das tradições camponesas (como o próprio Vingreen)

759 DANIEL Silas, op cit, p. 193 – 196; 250 – 255; 391 – 392; 409 – 410 e 428. Ver também

GOMES José Ozean. Educação Teológica no Pentecostalismo Brasileiro, p. 136 – 142. 760 DANIEL Silas, op cit, p. 252 – 253 e p. 380 – 381. 761 GOMES José Ozean, op cit, p. 139. 762 Ibidem, op cit, p. 122 – 123.

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de modo que terminam por reproduzir os valores com os quais se vinculam e se

identificam, conforme teoriza Bourdieu.763

A opção pela religião mágica teria que advir da tradição religiosa formada

nas camadas mais humildes do campesinato e adicionada à experiência

religiosa que estava se inserindo naquele contexto e representada pela prática

do “falar em línguas estranhas” (Glossolalia). “Toda a igreja [a PIB de Belém do

Pará] estava sendo contaminada, pois já muitos falavam as tais línguas, menos

os diáconos que não chegaram a fazer esse progresso”, descreve Antonio Neves

de Mesquita em tom depreciativo o surgimento do “pentecostismo” no Brasil764.

Qual o sentido disso? A busca da resposta imediata de demandas também

imediatas (desemprego, fome, doença, etc) por meio do carisma765, ao passo

que para os grupos que permanecem na igreja batista como os diáconos da PIB

de Belém e as “melhores famílias” da zona da mata norte pernambucana, o que

predomina é a busca do “sentido unitário da vida”, isto é, a “visão coerente do

mundo e da existência humana (...) capaz de fornecer justificativas de existir tal

como existem, isto é, em uma determinada posição social”.766 E aqui voltamos

ao que fora dito logo no começo dessa pesquisa por Antonio Gouvêia de

Mendonça, de que os batistas estão impregnados de um “ideal de classe média”

que os tornam infensos às demandas das camadas populares.767 Quem não está

nesse grupo social quer fazer parte dele. Quem está não quer sair dele.

A narrativa sobre o encontro de Ginsburg com o “governador do sertão”

foge, em parte, à regra das relações sociais de Ginsburg. Ela é tratada como

evento de salvação e nesse sentido converte-se em hagiógrafo, mas, por outro

lado, revela muita coisa da própria práxis missionária de Ginsburg e dos

missionários conversionistas em geral que levam para as “famílias melhores do

lugar” a “visão coerente do mundo e da existência humana” e que só pode ser

recebida por esses grupos já que eles não são tomados pelas preocupações

763 ALENCAR Gedeon, op cit, p. 139 – 141. 764 MESQUITA Antonio Neves de, op cit, II, p. 137. 765 A esse respeito ver o artigo de ARAUJO Arão Inocêncio Alves de, “Sob o Domínio do Presente.

A valorização do tempo presente no pentecostalismo assembleiano brasileiro” (1950 – 1990), in OLIVA

Alfredo dos Santos; BENATTE Antonio Paulo (org), op cit, p. 163 – 170 onde, estudando as cartas enviadas

de várias regiões do país para o jornal da denominação “Mensageiro da Paz”, entre 1933 e 1945, em que se

percebe a drástica redução do relato conversionista em detrimento daqueles dedicados à destacar curas

físicas com a subsequente valorização dos “aspectos terrenos” da vida. 766 BOURDIEU Pierre, op cit, p. 87. 767 MENDONÇA Antonio Gouvêia de; FILHO Prócoro Velasquez, op cit, p. 44.

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imediatas, a exemplo das classes populares. De fato, não há pregação ou

esforço de conversão no relato, toda ênfase é dada ao livramento que o

missionário recebeu. Além disso, como que para demonstrar que o cangaceiro

não era de todo um indivíduo das camadas populares, Ginsburg chama atenção

para o fato de ele pertencer a uma “família aristocrática” e ser até dono de terras.

Mas há também similaridades na narrativa de Salomão Ginsburg com a

do pioneiro das Assembléias de Deus no Brasil, Gunnar Vingreen. Como em

Ginsburg, os relatos de Vingreen são imprecisos quanto a pessoas e carregados

de perseguições que terminam sempre com o desvalido dos inimigos da nova fé,

além de tornar passível de especulação até mesmo se eles partiram de uma

única fonte, decerto uma fonte oral. Como em Ginsburg, a narrativa de Vingreen

parte da idéia de que um chamamento especial os direcionou para o Brasil e

como no exemplo do missionário batista os relatos de perseguições funcionam

como um virtual laboratório de temperança e confirmação da validade de todos

os esforços768. Em vista disso, pensamos que o que foi dito pela pesquisadora

das AD no Brasil, Marina Correa, acerca dos diários de Gunnar Vingreen e das

Memórias de Daniel Berg, pode também ser aplicado a Salomão Ginsburg, isto

é, de que seus escritos constituem um mito de fundação da Igreja Batista no

Brasil tal como os diários e as memórias dos missionários suecos representam

o “mito fundante” das AD769. Como disse T.B Ray na introdução a Um Judeu

Errante no Brasil, Ginsburg pode ser considerado um pioneiro já que “seu tempo

no Brasil quase abrange o período de esforço dos batistas do Sul nesse país”.770

Além disso, sua atuação no estado do Rio e em Pernambuco lhe assegura uma

proeminência nata que só é eclipsada pelo casal Bagby com sua atividade

pioneira na Bahia e na cidade do Rio ainda durante o Império. A sua condição

como um dos pioneiros, bem como o relato que nos deixou, nos permite concluir

que a construção de um “mito fundante” entre os batistas se insere dentro de

768 VINGREEN Ivar, op cit, p. 43 – 59. Como Ginsburg, Vingreen também denuncia a propaganda

católica contra as “bíblias falsas” protestantes, além de destacar que sua missão é desconstruir “toda a

mentira e toda a superstição que o povo aprendeu desde criança dos sacerdotes católicos”, p. 58. Em certo

momento o relato beira a autocomiseração: “somos atacados por febres tremendas e temos que suportar um

clima quente e severo, que em poucos anos deixa o corpo completamente esgotado. Só com a graça de Deus

é que os missionários podem suportar tudo isso”. Idem, p. 58. Ver também BERG Daniel, Enviado por

Deus, p. 93 – 97 e p. 133 – 143. 769 CORREA Marina. Assembléias de Deus: ministérios, carisma e exercício de poder, p. 47 – 50. 770 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 12.

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características que são bastante análogas às dos pentecostais, mas que podem

ser encontradas entre outros fundadores do protestantismo brasileiro como

Simonton e Kalley como o chamamento pessoal e o direcionamento desse

chamado para a reforma social da nação onde é desenvolvida a ação

missionária.

É também possível perceber um traço nas descrições de Ginsburg que

vão de encontro ao que já vimos acerca das impressões de Speer e de Lucy

Guinness sobre o continente latino-americano. No relato de Ginsburg é o

cangaceiro que enxerga a virtude no outro. Ginsburg também reconhece virtude

no cangaceiro, mas nesse caso, conforme seu relato, ela está obnubilada pela

falta de compreensão do evangelho. Daí o fato de que ele lembra que Silvino, na

cadeia, mudou a sua vida totalmente por meio da Bíblia e associa a essa

mudança o seu encontro com o cangaceiro anos antes771. Assim, o problema do

cangaço em Ginsburg deixa seu sentido social e assume um aspecto moral que

só pode ser resolvido mediante a conversão do indivíduo e da supressão da vida

pregressa substituindo toda e qualquer preocupação conjuntural ou social que

passam a ser simplesmente descartadas. Ambos os missionários apresentam o

problema do Brasil como sendo de natureza moral, mas apenas Vingreen

acrescenta a sua retórica o elemento mágico, porque seu grupo está mais

próximo desse tipo de discurso religioso do que os prosélitos convertidos por

Salomão Ginsburg.

4. O Brasil segundo Salomão Ginsburg

Salomão Ginsburg viveu quase quatro décadas no Brasil e por isso pode-

se dizer que ele o conheceu bem. Visitou todas as regiões brasileiras e mesmo

admitindo que o período vivido no Rio de Janeiro e Pernambuco tenha

influenciado sua impressão geral do país, ela não afetou a sua percepção da

771 Ibidem, op cit, p. 155.

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tremenda diversidade econômica e cultural da realidade brasileira. Além disso,

precisamos considerar outros elementos presentes em seu relato para podermos

refazer a visão geral de Ginsburg sobre o país, como a influência do meio eclesial

batista sob o qual se acha em dependência e que irá influenciar o seu modo de

ver o país, os seus erros de avaliação sobre o catolicismo, bem como o tipo de

público com o qual está dialogando, formado por leitores oriundos do meio social

do sul estadunidense, cujas características mais marcantes são o racismo e o

conservadorismo político.

4.1. Grupos sociais envolvidos na pregação de Ginsburg

Em parte o discurso de Ginsburg repete quase que literalmente o

pensamento de Speer e do Continente Negligenciado, chegando inclusive, a

usar essa terminologia ao se referir ao Brasil como “o campo mais negligenciado

do continente”.772 É, portanto, com esse tipo de literatura e mentalidade que ele

está dialogando. Ele se regozija em virtude de seu chamamento o trazer para o

Brasil onde, não obstante o aumento do número de missionários batistas nos

trinta anos de sua missão no país, este percentual é ainda pequeno no computo

geral, um missionário para cada um milhão de pessoas773. Daí a justificativa

desse tópico do seu livro (capítulo IX) que é o de apresentar o país a fim de que

aqueles que se sentirem chamados para a missão venham consagrar sua vida

à evangelização dos milhões que vivem no Brasil, como nos ajuda a preparar a

base para os milhões que estão entrando no Brasil e que nas décadas seguintes

tomarão conta dessa grande terra774”. A frase de Ginsburg reflete uma certa

ambiguidade. É claro que quando ele fala dos “milhões que estão entrando no

Brasil” ele está se referindo aos imigrantes, mas quando diz que no futuro eles

772 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 241. 773 Ibidem, p. 240 – 241. 774 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 241.

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irão tomar conta “dessa grande terra”, deixa clara a sua predileção pela mão de

obra estrangeira, particularmente europeia.

Conforme vimos Salomão Ginsburg travou contato com muitos indivíduos

de posições sociais as mais variadas durante sua missão no Brasil. Alguns

desses indivíduos ocupavam posições-chave na administração pública, ora

como governadores de estado, ora como representantes da justiça e da polícia

no Sudeste e no Nordeste; sua declaração de que tinha ao seu lado os “homens

principais do país” não deve ser subestimada já que suas relações com o

senador Nogueira Paranaguá e, principalmente, com a Maçonaria, lhe

franqueavam as portas para os grupos mais influentes. Contudo, podemos dizer

que as relações que ele cultivou no Brasil eram bastante variadas e podem ser

descritas dentro de três grupos: os líderes políticos nacionais, especialmente

governadores e vice-governadores, tendo sido essa relação muito mais próxima

no estado do Rio do que em Pernambuco; os chamados “chefes políticos”, por

meio dos quais conseguia adentrar em municípios como nos casos

exemplificados de Bom Jardim e Limoeiro, em Pernambuco; profissionais liberais

que exerciam cargos no serviço público, geralmente delegados de polícia (como

no exemplo do chefe de polícia de Pernambuco) ou como o pai do futuro pastor

Orlando Falcão775, advogado e primeiro defensor público dos batistas

perseguidos em Bom Jardim; e, por fim, aqueles indivíduos situados nas

camadas mais baixas, mas que acabavam sendo cooptados mais facilmente

para o interior da igreja e dos seus serviços, em geral trabalhadores avulsos

como Adrião Bernardo, que trabalhava como alfaiate776, comerciários como

Manoel Avelino de Souza777, ou empresários como Augusto Santiago fabricante

de cigarros e posteriormente pastor batista na Paraíba778. Somando-se esses

exemplos ao do pastor Francisco Soren, outro egresso do comércio, é possível

dizer que boa parte do pastorado batista, pelo menos o das primeiras gerações,

a exemplo do que se deu na Igreja Presbiteriana também é oriunda do mundo

comercial, quando não eram autônomos.

775 Ibidem, op cit, p. 204. 776 Ibidem, p. 195. 777 Idem, p. 197. 778 Idem, p. 200.

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Outra coisa a destacar dessas relações é a insistência recorrente com que

Ginsburg usa termos como “famílias ilustres” ou “cidadãos ilustres” do lugar.

Essa menção é importante porque dá a devida dimensão do tipo de público com

o qual Ginsburg está em diálogo durante todo o seu ministério e que corrobora

aquilo que disse Antonio Gouvêia de Mendonça, de que a Igreja Batista, por

maior que seja o seu raio de penetração na sociedade, está longe de ser uma

igreja “popular” nos moldes pentecostais779 e que, além do mais, ela se insere

no mesmo tipo de estratégia de cooptação e proselitismo do protestantismo

brasileiro dos séculos XIX e XX, isto é, de uma evangelização verticalizada, das

camadas mais altas (ou pelo menos das mais influentes) em direção aos extratos

mais baixos. Em suma, com base nessas afirmativas e no perfil do tipo de

prosélito com quem Ginsburg se incumbiu ou das relações sociais que entreteve

em seu ministério no Brasil, é possível dizer que esse público era formado

basicamente por pessoas letradas, brancas, bem situadas, formadas ou

detentoras de profissões que as deixavam fora de uma condição proletária (e

mesmo quando isso ocorria, como no caso de Francisco Soren e Manoel Avelino

de Souza, era pelo lado da atividade comercial e não da industrial).

4.2. Visão eurocêntrica

O discurso de Ginsburg está cheio de inferências a uma visão

eurocêntrica de mundo, as vezes afirmada de forma bem objetiva como quando

classifica a sociedade brasileira dentro do mesmo modelo proposto por Robert

Speer e outros missionários norte-americanos, isto é, quando fala que o

problema principal do Brasil “é o problema universal do pecado em todas as suas

manifestações780”. Ou em outro momento afirma que a ação do catolicismo

romano “num clima tropical é pior que no temperado ou frio”. Aqui ele também

está retomando algumas teses correntes na missiologia europeia e norte-

779 MENDONÇA Antonio Gouveia de; FILHO Prócoro Velasques, op cit, p. 44. 780 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 246.

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americana do começo do século XX, segundo o qual a ação de fatores climáticos

influenciava no comportamento lúbrico atribuído às populações sul-americanas.

Boa parte desse discurso foi, posteriormente, incorporada e reproduzida até

mesmo por obreiros nacionais como no caso já citado de Boanerges Ribeiro,

mas de um modo geral o que chama atenção é a natureza eurocêntrica desse

discurso que foi trazida para o Brasil e recebida sem maiores discussões no meio

local. Outros argumentos de Ginsburg como a falta de uma verdadeira

espiritualidade do povo, absorvida por uma religiosidade superficial e

utilitarista781, também podem ser encontrados entre os discursos e os relatos de

missionários norte-americanos e europeus que percorreram o continente na

mesma época782, formando assim uma impressão que se tornou um discurso

corrente nesse momento: a de que a degradação atribuída pelos missionários

ao continente latino-americano e que levava esses missionários a atribuir traços

culturais latentes como o roubo ou a incontinência sexual só poderia ser

efetivamente combatida por meio de uma reforma moral da sociedade, o que o

catolicismo não poderia fazer já que não o fizera quando dominava de forma

absoluta a região.

Até mesmo quando faz elogios aos brasileiros a fala de Ginsburg está

impregnada da alocução preconceituosa de Speer e Homer C Stunz acerca da

baixa qualidade geral atribuída ao caráter desses povos. Ginsburg dizia que os

brasileiros tinham quatro traços inatos, inteligência, coragem, cortesia e sacrifício

e que quando tem oportunidade, eles revelam clareza, perspicácia de

percepção, clareza de mente e facilidade de aprender de modo maravilhoso”783

Cita indiretamente Rui Barbosa, talvez por conta de sua defesa da liberdade

religiosa em O Papa e o Concílio, ou talvez pelas suas vinculações com a

Maçonaria; e lista feitos da engenharia nacional como os túneis da E.F. Central

do Brasil e da E.F. Curitiba-Paranaguá,784 como evidencias do brilhantismo da

inteligência nacional. “As classes educadas”, ainda segundo o missionário,

tratam a gente com grande atenção e respeito, especialmente os que vivem no

interior (...) nunca são rudes, grosseiros ou provocantes. Sempre escutam

781 Ibidem, op cit, p. 245 – 246. 782 PIEDRA Arturo, op cit, I, p. 74 – 75. 783 Ibidem, op cit, p. 242. 784 GINSBURG Salomão L, p. 243.

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primeiro o argumento do interlocutor, antes de responde-lo”.785 É praticamente a

mesma coisa que diz Robert Speer quando afirma que os povos latino-

americanos eram “bondosos, corteses, fraternos, carinhosos com as crianças,

respeitosos dos assuntos religiosos”, mas, por outro lado, “careciam das virtudes

fundamentais anglo-saxônicas como dignidade, energia, franqueza e

integridade”.786 Note-se que Ginsburg também não menciona nenhuma dessas

“virtudes” em seu catálogo benfazejo, quando muito, fala do “espirito de

sacrifício” e senso de doação pela obra, mas não de que os brasileiros sejam

pessoas honestas ou íntegras. Mesmo suas virtudes só são plenamente

potencializadas quando depois de convertidos e recebidos na igreja onde se

tornam. Também não há menção a virtudes técnicas ou de engenhosidade, não

obstante a sua menção a feitos de engenharia que destaca, como as demais,

mais por concessão do que por reconhecimento de indeléveis virtudes próprias.

Em suma, para Ginsburg, a principal virtude dos brasileiros consiste

precisamente daquele aspecto que para Sergio Buarque de Holanda é,

justamente, o traço mais nocivo e negativo do seu temperamento coletivo, isto

é, a sua “cordialidade”.

Tendo em vista a idéia de que a ação missionária tem por meta

aperfeiçoar o caráter dos povos latinos, fornecendo-lhes condições de assegurar

um lugar ao Sol na história dos povos, sendo que esse papel complementar cabe

às igrejas protestantes, pode-se dizer que Ginsburg não só recebe como também

reproduz essa ideologia em sua prática missionária. Ginsburg enfatiza que a

missão batista no Brasil é moldar as gerações vindouras para Cristo e sua

vontade para, por meio dessa influência, assegurar um grande futuro para o país

e para a igreja batista.787 É, de novo, o discurso dos “povos fortes” influenciando

o destino dos “povos fracos” de que fala a Conferência de Edimburgo de 1910.

Ginsburg, discorrendo sobre a situação dos índios brasileiros durante uma

conferência para alunos do STBNB e da ETC do Recife, buscou chamar atenção

para o modo de vida das tribos indígenas que, segundo suas palavras, viviam

em um estado selvagem e negligenciado. É praticamente o mesmo ponto de

vista da SAMS que desde 1864 estereotipava os índios do continente como

785 Ibidem, p. 244. 786 Citado por PIEDRA Arturo, op cit, I, p. 77. 787 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 246.

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pessoas problemáticas e que precisavam ser domesticados a fim de não

impedirem a fixação de imigrantes perto dos seus territórios788. A missão atuava

com os governos locais na “civilização” e “incorporação” do índio à vida nacional,

e nesse sentido não hesitavam em se aliar à ditaduras locais para a plena

realização desse projeto que abrangia também a ocupação dos territórios ainda

intocados, por meio da presença da imigração europeia789.

Ginsburg, portanto, reproduz um discurso missionário que associa a

Missão com a ação política imperialista sendo tal ação um instrumento de auxílio

do trabalho missionário no continente latino-americano. É bem verdade que ele

não defende de forma enfática essa intervenção e nem poderia por conta das

redes de relacionamento e proximidade de poder que ele cultivou no Brasil; mas

deixa claro que a transformação do Brasil não se dará por meio dos grupos que

estão no poder e sim a partir de uma aproximação entre as elites nacionais e as

igrejas protestantes, portadoras do ethos anglo-saxão, reproduzido no Brasil por

meio das igrejas e dos “colégios americanos”. Mesmo fazendo parte de uma

denominação que manteve-se por bastante tempo numa atitude de confronto

não apenas contra a Igreja Católica, mas também com igrejas protestantes,

notadamente com os presbiterianos, o pensamento de Ginsburg está em sintonia

com as tendência do movimento missionário expressas nas conferências de

Edimburgo e do Panamá no sentido de que a única possibilidade de futuro para

os países latinos era incorporar e reproduzir os valores e visão de mundo dos

países protestantes anglo-saxônicos, renunciando às suas próprias tradições e

costumes.

A posição das agências e sociedades missionárias norte-americanas e

europeias em relação a América Latina e as populações locais não passou

despercebida dos obreiros brasileiros que, sobretudo após o Congresso do

Panamá, começaram a buscar uma atitude de reconhecimento do

protestantismo nativo em pé de igualdade com o norte-americano e europeu.

Sobretudo Eduardo Carlos Pereira foi enfático nas críticas mais precisas.

Durante a conferência, Pereira, que participou do evento como representante da

IPI e do protestantismo brasileiro ao lado dos reverendos Álvaro Reis e Erasmo

788 PIEDRA Arturo, op cit, I, p. 54. 789 Ibidem, p. 55.

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Braga, da IPB, destacou que o excesso de centralidade dos missionários em

controlar as igrejas nativas, bem como a incompatibilidade do individualismo

anglo-saxônico com o que Pereira chama de “tendências sociais e coletivas” dos

povos latinos (o que remete ao pensamento de Richard M. Morse apresentado

no começo desse estudo), além do sectarismo do qual resultava divisões entre

as igrejas, prejudicava o desenvolvimento do protestantismo naquela região.

Além disso, Pereira também criticou a “interpretação unilateral do monroísmo”

pelos missionários estadunidenses, advogando um Pan Americanismo em que

todos os países se tratassem em posição de completa igualdade.790 No âmbito

batista, a partir dos anos 20 começa a prevalecer semelhante entendimento. Em

seu manifesto, de 1923, com o qual precipitou o movimento radical, o pastor

batista Adrião Bernardo acusou os missionários de não acreditarem que os

brasileiros fossem capazes de se autogerir, tratando os batistas nacionais do

mesmo como o governo norte-americano tratava os filipinos e os cubanos. É a

mesma diretriz do Manifesto aos Batistas Brasileiros, de 1925 e que, a exemplo

das declarações de Eduardo Carlos Pereira na conferência do Panamá, chama

atenção para as especificidades da realidade brasileira que não podiam ser

tratadas de maneira uniforme:

Nós não acreditamos que o evangelho estirpe do coração brasileiro o amor pela

sua pátria e pelas coisas da pátria, o interesse vital pelos problemas nacionais, o que este

mesmo evangelho não fez em outras terras. Não acreditamos, muito menos, que o

evangelho deva vir sempre coberto pelo manto de disposições particulares a uma ou outra

raça. Chegamos a pensar que exatamente o mesmo evangelho que, na Inglaterra, se adapta

aos ingleses, e toma características saxônicas, pode fazer o mesmo aqui no Brasil, dando

ao trabalho um encaminhamento e características puramente brasileiros (...) mesmo aqui

no Brasil, o método de trabalho adotado no Rio de Janeiro não servirá sempre para a

Bahia ou para Recife e vice-versa. Vivamos, pois, dentro desta liberdade que o evangelho

nos proporcionou. Por outro lado, tudo ou quase tudo aqui difere dos Estados Unidos da

América do Norte, e as condições religiosas do povo brasileiro, ao mesmo tempo que as

campanhas sem trégua que os ultramontanos dirigem contra nós, exigem que mudemos a

nossa conduta eclesiástica. Os ultramontanos falam que nós somos “vendidos” aos

Estados Unidos. Nós sabemos o quanto tal campanha é tola, ilógica e injusta, mas,

790 LÉONARD Émile G, op cit, p. 180.

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infelizmente, alguns obreiros agem como se os Estados Unidos fossem a sua sagrada Sé

apostólica791.

O movimento batista radical que tem origem nos estados nordestinos

pretende-se não apenas evangélico, mas também, e sobretudo, patriótico,

propugnando uma igreja com características nacionais e ministrada por obreiros

nacionais. É o retorno das teses concebidas por Kidder acerca de uma igreja

brasileira, além do que, chama atenção a ocorrência do movimento no Nordeste

que, não muito tempo antes, conseguiu impedir o fechamento dos seminários

protestantes locais, o presbiteriano e o batista, e a transferência dos alunos para

o Sul do país. Com o movimento radical a dinâmica mudou, superando-se o

regionalismo com sabor nacionalista em detrimento de um movimento com

características genuinamente nacionais, mas sem ignorar que dentro dessa

nacionalidade, formam-se especificidades sociais únicas, como o Manifesto faz

questão de destacar.

Não sabemos se ao publicar o manifesto dos pastores do Norte e

Nordeste, os ministros batistas radicais tinham em mente Salomão Ginsburg ou

algum outro missionário norte-americano ou mesmo à Junta de Missões de

Richmond como um todo. Mas é inegável que o esforço de pensar uma igreja

protestante brasileira a partir da própria realidade local, representa um dos raros

momentos do Protestantismo Brasileiro em que se procurou de verdade pensar

a si mesmo a partir de suas próprias experiências e contradições internas, de

maneira que esse manifesto é um dos documentos mais significativos tanto da

história do Protestantismo Brasileiro como um todo quanto da Igreja Batista em

particular.

791 Ibidem, p. 204, nota 33.

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4.3. A economia brasileira, segundo Ginsburg

Um dado que chama atenção no relato que Ginsburg faz do Brasil é a

ênfase que ele dá à produção agrícola e mineral. Para o missionário o Brasil está

destinado a ser o “futuro armazém do mundo”792. Destaca os seringais e a

extração de madeira da Amazônia, o plantio de algodão, açúcar e arroz no

Nordeste, especialmente na região margeada pelo Rio São Francisco e,

finalmente, os cafezais paulistas e as zonas extrativas de madeira de pinho do

Paraná. Tudo o que se produz no Brasil é de excelente qualidade, da borracha

da Amazônia ao cacau do Sul da Bahia. Sobre as jazidas minerais ele destaca

que a terra é cheia de ouro, cobre, carvão e assim por diante” e que os diamantes

são facilmente encontrados nos leitos dos rios.793 Também chama atenção dos

seus leitores norte-americanos para a “excelente qualidade” do gado bovino

criado nas regiões centrais e as jazidas de ferro, manganês e ouro de Minas

Gerais. “O Brasil é”, escreve Ginsburg, “não há como negar, uma verdadeira

terra de Gosén, terra que mana leite e mel, destinada pelo criador a contribuir

grandemente para a história da humanidade”.794

O relato de Ginsburg transmite a idéia de que o Brasil está destinado a

ser um fornecedor de matérias primas e ainda destaca que vastas áreas do

interior do país, especialmente a Amazônia, permaneciam indenes ao contato

humano, escondendo no seu interior “tesouros incalculáveis”795. É realmente

uma exposição fisiocrática, e reforçada pelo fato, bastante sugestivo de que ele

omite o processo de industrialização que vivia o Brasil nesse momento, detalhe

o qual Ginsburg não poderia ignorar já que a partir de 1913 ele passa a residir

no Centro-Sul do país, primeiro no Rio e depois em São Paulo. Sobremodo

importante é a sua descrição da situação econômica paulista onde destaca o

café como produto econômico principal, mas omite a formação do parque

industrial na cidade de São Paulo que, a partir do censo de 1920 torna-se o maior

792 GINSBURG Salomão L, p. 241. 793 Ibidem, p. 241 – 242. 794 Ibidem, p. 242. 795 Ibidem, p. 241.

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do país em termos de industrias e mão-de-obra796. Também faz uma descrição

laudatória do sistema ferroviário, chamando atenção para o desenvolvimento

técnico dessas ferrovias que à época em que ele escreveu eram, com exceção

da Central do Brasil, companhias de capital predominantemente inglês. A qual

finalidade se justifica toda essa exposição laudatória dos recursos econômicos

agropecuários e minerais do Brasil e sua omissão dos parques fabris?

É certo que grande parte do discurso fisiocrático de Ginsburg decorre de

suas impressões formuladas por anos de andanças pelo país, sendo que a maior

parte desse período foi vivenciado em regiões marcadas por uma agricultura de

exportação ou de produção para o mercado interno como era o caso de

Pernambuco. É só depois de sua mudança para o Centro-Sul que ele passará a

viver mais regularmente em cidades, mas no relato não temos a impressão dele

sobre as urbes brasileiras, lembrando que, além de Rio e São Paulo, ele também

passou um bom tempo em Salvador e no Recife, o que lhe deu a chance de

perceber as diferentes nuanças da configuração do espaço urbano brasileiro de

Norte a Sul. Mais chamativo ainda é o fato de ele nada falar sobre a cidade de

São Paulo que vinha em um processo de crescimento acelerado por conta da

contínua chegada de imigrantes, e mais: que grande parte dessa população

estava empregada na atividade industrial ou a ela correlata797, sendo que ele,

defensor da imigração a qual vê como o caminho para saída do país do atraso,

não poderia ignorar. Mesmo o Recife, cidade onde ele viveu por dois períodos

sendo que o último por quase uma década, não é motivo de descrição. A cidade,

sem dúvida, não é um elemento de atração na narrativa de Salomão Ginsburg.

Disso se pode perceber que o objetivo do missionário nesse ditirâmbico é

apresentar o Brasil como uma economia agroexportadora, capaz de absorver as

demandas de grandes mercados como o dos EUA que passaram a procurar

bens primários na América Latina desde que tivera início sua aventura

imperialista no além-mar com a Guerra Hispano-Americana de 1898 do qual

resultou a tomada das antigas colônias espanholas de Cuba, Porto Rico,

Filipinas e Guam Em troca dos artigos manufaturados norte-americanos a

796 Ver o artigo de BARBOSA Alexandre de Freitas. “O Mercado de Trabalho antes de 1930.

Emprego e ‘desemprego’ na cidade de São Paulo. In CADERNOS DO CEBRAP, nº 80, p. 92 – 93. 797 Ibidem, op cit, p. 95 – 106.

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América Latina fornecia borracha, cacau, gado, madeira e gado de corte. 798 A

atividade industrial não é vista como relevante já que os EUA contam com seu

próprio parque que produz tanto para dentro quanto para fora do país e que,

além do mais, também não é apreciada pelas elites agrárias locais. Ginsburg

está, portanto, em sintonia tanto com o pensamento dos grupos

agroexportadores nacionais, como também com os grupos econômicos

estrangeiros que vêem o continente latino-americano como mercado fornecedor

de matérias-primas, porém, em um regime de exclusividade já que o pan-

americanismo da doutrina Monroe, evocado sob outra chave na Conferência do

Panamá, coloca a América Latina em bloco dentro da zona de influência norte-

americana.

Mas o Brasil do começo do século XX não é uma colônia, como o eram

Cuba, Porto Rico e Filipinas. Além disso, na maior parte da sua história, esteve

sempre mais próximo da Europa e dos capitais ingleses, do que dos EUA, como

destaca Eduardo Prado799. Como, então, pode-se ver esse escrito de Ginsburg

como sendo um discurso imperialista? Vários pontos nesse capítulo do seu livro

mostram que Ginsburg está em perfeita sintonia com os missionários norte-

americanos e europeus apesar do exclusivismo do seu discurso religioso. Em

primeiro lugar a crítica à Igreja Católica considerada como fator de atraso

econômico das regiões sob seu domínio. “Espanha e Roma”, escreve Robert

Speer a respeito dos efeitos da presença militar norte-americana em Cuba,

“estão se opondo à nova ordem que o espírito norte-americano de liberdade e o

cristianismo protestante estão introduzindo num lugar onde antes havia tirania,

estagnação, perseguição, ignorância e superstição”800. A mesma crítica pode ser

vista em Ginsburg logo no começo desse estudo quando ele atribui ao

catolicismo o atraso econômico e social do Brasil. Em segundo lugar, o destaque

para a necessidade de explorar um território imenso e que permanecia ainda

inacessível à presença da civilização, escondendo “tesouros incalculáveis” em

seu interior. Um relatório da SAMS, de 1909, também repete o mesmo palavrório

de Ginsburg a fim de destacar o caráter “virgem” de muitas partes do continente

latino ainda não explorados, chegando a citar textualmente o Brasil como um

798 PIEDRA Arturo, op cit, I, p. 97. 799 PRADO Eduardo, op cit, p. 96 – 97. 800 PIEDRA Arturo, op cit, I, 40.

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país provido de grandes jazidas minerais: “a grande riqueza mineral, a quase

desconhecida riqueza mineral do Brasil, representa o estado espiritual de quem

tem sido forçado a esconder, por mais de trezentos anos, suas aspirações reais

e erradicar seus verdadeiros sentimentos em assuntos religiosos”.801 Comércio

e Missões se entrelaçam por meio da ação imperialista.

4.4. Ginsburg e a educação

A Igreja Batista procurou também, desde seus primeiros decênios no país,

atuar de forma efetiva no campo educacional. Na época da morte de Ginsburg

esse esforço havia resultado na abertura de uma série de colégios e instituições

de ensino nas cidades onde a denominação se fazia presente, com educandários

funcionando em Recife, Vitória, Rio, Belo Horizonte e São Paulo, que atendiam

os filhos das “famílias importantes da cidade”, como era o caso do colégio batista

paulistano802; no outro extremo, o Instituto Batista Industrial de Corrente, no

Piauí, funcionando como curso técnico e os seminários e a ETC cuidando da

formação dos quadros para o ministério regular. Os seminários do Recife e do

Rio de Janeiro possuíam gestões distintas das dos colégios, estando o seminário

nordestino sob a direção da Junta de Richmond (do qual o ministério nacional

muito se ressentia e de cujo ressentimento nasceu o germe da Crise Radical de

1923) ao passo que o do Rio estava sob os cuidados da CBB.

Com base no seu relato, não parece haver dúvidas de que Salomão

Ginsburg compartilhava do mesmo pensamento que norteou os esforços da

Conferência do Panamá no que tange o papel da educação para formar uma

nova sociedade. Para ele a educação tinha um efeito poderoso na promoção de

profundas transformações sociais e na elevação moral do país. E nesse sentido

ele destaca as atividades de três educandários batistas com o intento de ilustrar

aquilo que ele descreve em seu livro como sendo “o que os batistas estão

801 Idem, p. 44. 802 CRABTREE A.R, op cit, I, p. 288.

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fazendo no Brasil”, isto é, o Colégio Batista do Rio, a ETC e o Colégio Americano

Brasileiro de São Paulo. No caso do colégio carioca, anexo ao STBSB, o corpo

docente e as atividades religiosas estavam contribuindo para que os “filhos das

principais famílias da nação” fossem estudar ali. Além do mais, pelo fato do

colégio ficar situado na então Capital Federal, era de se esperar que sua

influência ultrapassasse o quanto antes os limites daquela cidade, ecoando pelo

país afora803. A ETC, fundada em 1917, era de outra estirpe: ali “o preparo de

quarenta jovens para o Ministério e cerca de quarenta meninas para o serviço

do Rei é um grande alicerce para o futuro e para nossas igrejas e campos

missionários”804. Aqui o objetivo é claramente o alicerçamento institucional da

denominação por meio de um corpo de obreiros profissionalizado com condições

de assegurar não apenas a consolidação da igreja, mas também a sua expansão

futura e o atendimento de todas as necessidades da comunidade.

Quanto ao Colégio Batista de São Paulo, embora concebido inicialmente

para o público feminino, também ele acaba por atender ao mesmo perfil de

clientela do colégio carioca. “Um dos maiores prazeres que tenho nas minhas

viagens missionárias é demorar alguns dias, contemplar essas jovens, vindas

das melhores famílias da terra (grifo meu), e pregar-lhes o evangelho. É bom

imaginar o futuro do Brasil com essas jovens influenciadas pela vida de senhoras

como D. Anna Bagby, Helen Edwards e a senhora Ingram. Pode-se dizer que o

futuro nos contempla risonho e brilhante”805 para Ginsburg, portanto, a mudança

de hábitos no Brasil começa pelo processo de conversão e reeducação das elites

dentro dos novos parâmetros oferecidos pelos colégios protestantes tanto do

ponto de vista moral e espiritual quanto do educacional. As “famílias mais

importantes da cidade”, como diz Crabtree, precisavam de um ambiente que as

livrasse ao mesmo tempo dos “jesuítas fanáticos” e dos “materialistas pedantes”

que segundo o historiador dos batistas, abundavam nas escolas públicas806.

Para Ginsburg a função das escolas estava bem claramente definida: exercer

influência sobre o Brasil como um todo. “A maior bênção que tem vindo ao Brasil

803 GINSBURG Salomão, L, op cit, p. 256. 804 Ibidem, p. 257. Ver também MEIN David, op cit, p. 16. 805 GINSBURG Salomão, op cit, p. 257 – 258. 806 CRABTREE A.R, op cit, I, p. 288 – 289. Ginsburg também chama atenção para a presença de

padres lecionando nas escolas públicas ou exercendo influência sobre a nomeação de professores, de modo

que “o romanismo é ensinado e praticado abertamente” nas escolas públicas”, ob cit, p. 254.

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ao lado da pregação do evangelho, é a dádiva de nossos grandes colégios e

seminários, cuja influência está exercendo eficientemente não só sobre as

igrejas e crentes, mas também sobre toda a nação brasileira”807.

Além da função de exercer uma influência perene junto à sociedade, as

escolas batistas deveriam, segundo Ginsburg, assegurar a pureza doutrinaria da

denominação, fornecendo a igreja local, especialmente nas regiões interioranas,

todos os quadros humanos necessários para a sua sobrevivência com os quais

se preservasse da influência dos padres que, através do controle da instrução

pública, exerciam domínio, segundo ele, nas regiões mais distantes dos grandes

centros do país. A necessidade de se impedir que os crentes fossem “obrigados

a se inclinarem perante os ídolos”808, justificava o esforço para se garantir que

a igreja permanecesse imune a qualquer tentativa de solapamento dos seus

fundamentos institucionais e religiosos. Daí a função das instituições de ensino

fundadas pelos batistas: os colégios onde os filhos seriam educados dentro de

uma educação estritamente protestante, infensos à realidade cultural e social do

meio adjacente; a ETC que fornece o corpo docente moldado dentro dos

“princípios batistas”, e os seminários que cuidavam da preparação dos pastores,

isto é, da formação do “estamento especial de sacerdotes”, de que fala Weber809.

É impossível nessa hora não lembrar do que diz Foucault acerca do papel da

educação como instrumento de reprodutibilidade do próprio sistema: “todo

sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a

apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem

consigo”810.

807 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 256. 808 Ibidem, p. 254. 809 WEBER Max, op cit, II, p. 368. 810 FOUCAULT Michel, op cit, p. 41.

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5. Influências de missionários norte-americanos sobre Salomão

Ginsburg

Embora tenha se convertido na Inglaterra e feito seus estudos seminerais

naquele país, Salomão Ginsburg é, essencialmente, um produto do meio cultural

e religioso norte-americano personificado pela Igreja Batista. A aceitação quase

que inconteste desses princípios, a incorporação da visão de mundo concebida

em torno dos “princípios batistas” junto com o landmarquismo e, finalmente, o

contato com missionários norte-americanos formados dentro do contexto eclesial

do Sul norte-americano, tudo isso favoreceu a incorporação, por parte de

Ginsburg, das idéias e da visão de mundo concebida por esses missionários a

partir do meio cultural daquela região moldado, sobretudo, por meio da formação

educacional uniforme tanto do ponto de vista teológico quanto do social.

Como já dissemos, todos os missionários batistas que trabalharam no

Brasil, desde os pioneiros, foram enviados pela Junta de Missões de Richmond

que exerceu assim o papel de ponte de ligação entre o mundo norte-americano

sulista e o Brasil, eleito campo missionário por aquela agência, sendo ainda que

todos eles foram preparados e enviados depois de formados em instituições de

ensino sulistas, Bagby, Entzminger e Taylor: Willian Bagby estudou na

Universidade de Waco, no Texas e pastoreou igrejas batistas daquele estado

antes de se engajar no serviço missionário811. Também Zachary Taylor era do

Texas e havia, do mesmo modo, cursado a Baylor University onde estudou

Gilberto Freyre. Quanto a Willian Entzminger, nascido na Carolina do Sul, este

depois de estudar na Universidade de Furman, no mesmo estado, ingressou no

Seminário Batista do Sul, de Louisville, no Kentucky, onde concluiu seu

doutoramento teológico812. Desse modo, a maior parte dos ministros pioneiros

batistas, como seus colegas metodistas, tinha relações com o mundo sulista

estadunidense não apenas quanto às origens, mas também, e mais

particularmente, com a formação educacional que receberam de instituições de

811 CRABTREE A.R, op cit, I, p. 65. 812 Idem, p. 111.

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ensino formadas naquela região. Ginsburg reconhece a relação de dependência

e vinculação pessoal com os missionários supracitados813 bem como de J.W

Sheppard, outro ex aluno do Seminário de Louisville.814 Também não podemos

deixar de destacar que tanto Ginsburg como Entzminger e Sheppard figuram

entre os primeiros docentes do STBNB, os dois primeiros em seus primórdios

enquanto Sheppard atuou ali no período de 1906 – 1907.815

Em algumas situações Ginsburg admite que as relações com seus

colegas da missão não foram tranquilas como no caso de Zachary Taylor, mas

não deixa, ainda assim, de exaltar seu caráter e seu altruísmo. Taylor foi um

personagem importantíssimo no processo de conversão de Ginsburg à Igreja

Batista já que foi por meio das conversas tidas com ele que o missionário judeu

fez a sua transição.816 Outro missionário do sul norte-americano com quem teve

relações e que igualmente influenciou em seu ministério foi Willian Entzminger

com quem trabalhou em Pernambuco e depois no Rio quando do seu retorno ao

Sul do país, ao tempo em que se organizava a Casa Publicadora Batista.

Entzminger foi sem dúvida uma peça-chave para a permanência de Ginsburg na

Igreja Batista, bem como por sua assimilação dos princípios doutrinários daquela

denominação já que, conforme seu relato, após a saída temporária de Taylor do

Brasil a fim de cuidar da esposa que estava enferma, ficaram apenas aqueles

dois missionários para dar conta do campo missionário da Bahia, mais os

estados vizinhos. Com efeito, Ginsburg, segundo seu relato, desconhecia ainda

muita coisa das doutrinas batistas e a presença de Entzminger que dominava o

assunto, e tanto mais que respondia pelas publicações doutrinárias da

denominação, foi de fundamental importância para que Ginsburg assimilasse

completamente as “doutrinas, regras e princípios das igrejas batistas”817.

O missionário e teólogo Alva Bee Langston (1879 – 1965) não é citado

com muita frequência por Ginsburg, mas ainda assim aparece em momentos

pontuais de suas memórias como quando Langston é por ele chamado para

realizar um Instituto Bíblico na Bahia para a formação de obreiros daquele

813 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 207 – 212. 814 Ibidem, op cit, p. 212 – 213. 815 MEIN David, op cit, p. 35. 816 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 66 – 70. Ver também p. 206 – 207. 817 Ibidem, p. 210.

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campo818. Langston, educado na escola de Hodge e Strong foi sem dúvida o

primeiro grande sistematizador do pensamento e do fazer batistas, podendo

mesmo ser considerado como o primeiro teólogo batista brasileiro segundo Israel

Belo de Azevedo.819 E não apenas teólogo já que algumas de suas obras como

A Democracia Batista (1917) e o já citado O Princípio do Individualismo em suas

expressões doutrinárias (1933) enveredam por outros campos além do teológico.

Suas idéias, que como vimos em Ginsburg serão repercutidas nas primeiras

gerações de obreiros batistas, são um misto de liberalismo com ênfase no

individualismo, landmarquismo, conversionismo e uma soteriologia calvinista

atenuada. Conforme Darci Dusilek:

A primeira geração de pastores e pregadores batistas brasileiros contraiu uma

grande dívida para com A.B. Langston (...) uma das suas preocupações foi a formação de

líderes para a obra de evangelização. Esta formação procurava ele ministrar não apenas

através de cursos e aulas formais, mas também através da preparação de textos que, uma

vez servindo de base para preleções, pudessem também ser utilizados como guia de

estudos820.

Também Israel Belo de Azevedo coaduna essa referência ao lembrar que

os candidatos ao ministério passaram a ser examinados a partir dos conceitos

estabelecidos nas obras de Langston, e não nas declarações de fé da

denominação.821

Os nomes de John W. Sheppard e Harold Muirhead822 também estão

ligados à educação sendo que o primeiro tem parte importante na história da

organização dos seminários batistas do Recife e do Rio de Janeiro. Ginsburg

818 Ibidem, p. 164. 819 Apud ROSA Edvaldo Fernandes, Pastores Novos em Igreja Antiga, Dissertação de Mestrado

em Ciências da Religião, p. 96. 820 Ibidem, p. 95 – 96. 821 Ibidem, p. 96. 822 Harvey Harold Muirhead (1879 – 1957), missionário e educador norte-americano, nomeado

pela Junta de Richmond para o Brasil, desembarcou em Pernambuco em 1907, acompanhado da esposa

Alyna Berth Mills. Dirigiu o Colégio Americano Batista do Recife ao mesmo tempo em que dava aulas no

STBNB até 1927, passando depois para o Rio onde dirigiu o Colégio e o STBSB até 1938 quando retorna

aos EUA para exercer a direção da Casa Editora Batista em El Paso, no Texas. Gilberto Freyre destaca em

seus relatos autobiográficos o papel que Muirhead teve em sua curta passagem pelo “cristianismo

evangélico”. FREYRE Gilberto, De Menino a Homem, p. 88 – 89. Sobre Muirhead, ibidem, p. 89 nota 131

e PEREIRA José Reis, História dos Batistas no Brasil, p. 292.

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conheceu Sheppard nos EUA durante suas férias passadas naquele país em

1904 e, segundo seu relato, orou para que ele, então aluno do Seminário de

Louisville, se decidisse por missionar no brasil.823 Seu trabalho na organização

dos seminários, particularmente o do Rio, é bastante enaltecido por Ginsburg no

estilo que lhe é peculiar: “o Colégio e Seminário Batista do Rio (...) é hoje um

fator poderoso no Brasil. (...) estou alegre em meu coração por ter apoiado o

irmão Sheppard, com todas as veras do meu coração e a seus planos através

das grandes dificuldades e provações”.824 O missionário Muirhead, também

preparado para a obra educacional, exerceu idêntica atuação no Recife. “Após

preparo especial para a educação, veio para Pernambuco e não demorou muito

para minha senhora e eu vermos que ele era um líder nato, especialmente na

edificação de uma instituição de ensino na grande cidade do Recife”. E lista suas

obras, o Colégio Americano Batista, o Seminário e a ETC.

Como se pode perceber, Ginsburg se encontra sob inteira dependência

doutrinária e institucional da Junta de Missões de Richmond, representada aqui

pelos missionários que ela comissiona para o trabalho de pregação e educação

no Brasil. Ao reconhecer o papel pessoal de cada um deles em seu próprio

ministério, Ginsburg também reconhece que a influência deles transcende o

mero círculo dos afetos e se transforma – especialmente nos casos de Zachary

Taylor e Willian Entzminger – numa relação de subordinação ao discurso

ideológico recebido por meio da doutrinação teológica por meio do qual Ginsburg

pôde conhecer e aceitar os “princípios batistas”.

6. A formação dos discípulos

Em se tratando da influência sobre os moços recém-chamados para o

ministério, é inegável que Ginsburg exerceu poderosa atração sobre a primeira

geração de jovens que, mais adiante, iriam prosseguir no ministério a expansão

823 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 213. 824 Ibidem, p. 214.

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da obra batista pelo país, fato do qual Ginsburg se gaba bastante: “foi honra

minha, não somente guia-los aos pés do Mestre, mas também ao caminho da

utilidade e do serviço”825, jovens esses que foram por ele convertidos e depois

discipulados nos estágios iniciais de sua preparação para o serviço pastoral.

Desse modo, assegura-se a preservação daquilo que Ginsburg chama de

“princípios batistas”, por meio da sua reprodução pela educação semineral e pelo

discipulado que conduzem ambos ao mesmo objetivo exponencial.

Esse ponto é deveras importante: ao processo de conversão, segue-se

imediatamente a transformação do convertido em agente reprodutor do

conhecimento novo recentemente adquirido. Manoel Avelino de Souza826,

convertido por Ginsburg na Bahia e depois recomendado por ele ao seminário

do Rio onde exerceu o pastorado827; Manoel da Paz828, pastor pernambucano

que “logo após batizado, tornou-se um trabalhador ativo na Igreja”, tendo sido

um dos primeiros alunos de Ginsburg nos idos de 1900, logo após a sua chegada

em Pernambuco829. Manoel Tertuliano Cerqueira830, que além de batizado por

Ginsburg foi também por ele amplamente educado dentro da nova igreja831;

Adrião Onésimo Fernandes832 descrito por Ginsburg como “um dos evangelistas

825 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 191. 826 Ver nota 10. 827 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 198. 828 Manoel Corinto Ferreira da Paz (1880 – 1926). Batizado pelo próprio Ginsburg (1902) foi aluno

do STBNB no qual se formou em 1906. Pastoreou as igrejas batistas da Gameleira, da Rua Imperial, da

Torre e do Feitosa, no Recife, bem como as igrejas batistas de Maceió, Nazaré da Mata e Gravatá, na zona

da mata norte pernambucana. De 1908 a 1926 fixou-se como pastor titular da Igreja Batista do Cordeiro,

no Recife, onde deu atenção a organização de escolas paroquiais para atender aos filhos dos membros da

igreja. http://igrejabatistadocordeiro.blogspot.com.br/2010_10_01_archive.html acesso 16 de setembro de

2016. 829 GINSBURG Salomão L op cit, p. 199. 830 (1894 – 1972). Nascido na Bahia e formado pelo STBNB (1918) tornou-se pastor da PIB do

Pará, em Belém, fraturada por conta da dissidência pentecostal, reorganizando-a e lhe dando “uma década

de paz e de trabalho” (MESQUITA Antonio Neves de, ob cit, p. 138). Formado em Medicina em Belém,

em 1926, no ano seguinte se transfere para o Recife onde exerce o pastorado na Igreja Batista do Capunga,

mudando-se depois para São Paulo onde pastoreou a PIB paulistana de 1929 a 1970.

http://nossoreijesus.blogspot.com.br/2010/12/batistas-do-brasil-dr-manuel-tertuliano.html acesso 16 de

setembro de 2016. http://www.pib.org.br/institucional.php acesso 16 de setembro de 2016 e MESQUITA

Antonio Neves de, ob cit, II, p. 333. 831 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 203. 832 (1891 – 1969) nascido na Bahia, convertido por Ginsburg (1909) e por ele recomendado para

o STBNB onde se formou (1918), estudou depois na Universidade de Baylor, Texas, EUA. Foi professor

do STBNB (1922) passando depois a pastorear na igreja batista de Jaboatão PE (1923 – 1926), onde tornou-

se expoente do movimento radical batista no Nordeste, transferindo-se depois para o Rio onde tentou

engajar o STBSB Sul sem sucesso. Passando para São Paulo, tornou-se pastor PIB da capital paulista (1927

– 1929), afastando-se depois por alguns anos do ministério pastoral. Retorna nos anos 30 como pastor da

Igreja Batista da Parada Inglesa, atual Igreja Batista Redenção, na zona norte paulistana. Foi vice-presidente

da Aliança Latino-Americana das Igrejas Cristãs (ALADIC) organização de cunho fundamentalista, de

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mais aceitáveis do Brasil”, também levado por ele ao seminário do Recife e

depois para a Universidade de Baylor de onde retornou “fervoroso pela salvação

do seu povo e pela propaganda dos princípios batistas no seu país”.833 Em suma,

a “propaganda dos princípios batistas” está entrelaçada com o discipulado e com

o Seminário, ambos anunciadores e reprodutores da Teologia Oficial da

denominação que depois será reproduzida ao infinito na comunidade local, na

escola dominical e na evangelização como uma estrutura mental única e

intrínseca. A busca de uma verdade de vontade (como define Foucault)

prescinde de uma estrutura educacional que permita a reprodução de

determinados discursos que, ao mesmo tempo, excluem (porque negam a

alteridade com o outro) e se institucionalizam (pois, que a busca da “verdade” só

pode ser afirmada dentro de um formato institucional ou que pressupõe a

institucionalização)834.

1951 a 1954.

http://igrejaredencao.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=30&Itemid=106 acesso 17

de setembro de 2016. http://historiasbatistas.blogspot.com.br/2009/01/pib-jaboatao-pe-1901.html acesso

17 de setembro de 2016. Ver também PEREIRA José Reis, op cit, p 299 – 300. 833 GINSBURG Salomão L, op cit, p. 195 – 197. Na edição de 1931 consta essa nota de rodapé:

“infelizmente o Sr. Adrião desmentiu tudo o que afirma dele neste capítulo. Hoje está separado da Igreja e

entregue a outros misteres” (ob cit, p. 195). A nota, possivelmente, faz menção à participação de Adrião

Fernandes, então pastor da Igreja Batista de Jaboatão, no grande Recife, na Questão Radical que dividiu o

meio batista brasileiro nos anos 20 e cujo epicentro foi justamente Pernambuco e o STBNB (LÉONARD

Émile G, op cit, p. 197 – 207), 834 FOUCAULT Michel, op cit, p. 16 – 17.

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Considerações finais

O presente estudo procurou, através da narrativa memorialística de

Salomão Ginsburg, registrar não apenas reconstituir o seu itinerário pelo Brasil,

mas também, e principalmente, o tipo de visão de mundo que norteou o seu fazer

e quais os ascendentes mais significativos que podiam ser encontrados em seu

trabalho missionário.

Desde o início fica evidente que a sua Missão no Brasil é também um ato

de resistência e de combate efetivo contra aquela instituição que, conforme suas

palavras, é responsável pelo opróbrio geral do país, isto é, a Igreja Católica.

Embora seja possível encontrar um anticatolicismo militante em outros

missionários em atividade no Brasil durante o século XIX como Robert Kalley e

Ashbel Green Simonton, que não se melindram em declarar isso em artigos e

sermões835, é em Ginsburg que esse discurso se apresenta de forma mais

violenta e por vários motivos: primeiro, o fim da monarquia, que também significa

o fim do padroado ibérico e, por conseguinte, do “apoio” do Estado à Igreja, que

abre o caminho para a laicização do Estado, e com isso, fortalece o

Protestantismo, tanto no aspecto organizacional quanto na prática missionária,

que passa a contar com maior liberdade de movimentação e ação (embora, por

outro lado, também tenha fortalecido a Igreja Católica que passou a contar com

uma maior mobilidade de ação, muito maior do que no período do Império). É

bem verdade que nem todos os missionários batistas como de outras

denominações faziam uso desse tipo de confrontação, como Crabtree, inclusive,

destaca, ao mencionar o trabalho missionário de Willian Taylor no estado de São

Paulo que, em comparação com Ginsburg, procurou evitar conflitos de qualquer

natureza836. Mas essa não é uma prática institucional como é, sem dúvida, o

discurso anticatólico, especialmente entre aquelas denominações que já se

encontram predispostas a não aceitar o Catolicismo Romano como uma igreja

cristã, como os presbiterianos e os batistas, e isso desde os EUA, ponto de

835 Sobre o posicionamento anticatólico de Kalley ver ROCHA João Gomes da op cit, I, p. 122 –

124 e 280 – 282. Sobre Simonton, ver SERMÕES ESCOLHIDOS DE SIMONTON, op cit, p. 18 e 24, 49

e 142. 836 CRABTREE A R, op cit, I, p. 286 – 287.

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partida da quase totalidade das igrejas situada no chamado Protestantismo de

Missão. Conforme Duncan Alexander Reily, “todas as igrejas protestantes

criticavam fortemente a Igreja Católica”, sendo o rebatismo a expressão mais

usual dessa ojeriza837. Ginsburg, portanto, segue, mesmo sem conexões diretas

com o passado imperial do protestantismo nacional, nem com a práxis eclesial

das demais denominações, um discurso anticatólico que, no fim das contas,

também está na gênese desse mesmo protestantismo.

Em segundo lugar é preciso destacar que esse anticatolicismo também

encontrava eco em setores específicos da vida cultural e política brasileira ao

ponto de muitos desses elementos não terem pejo algum de se filiar à Maçonaria

como parte de um instrumental retórico anticatólico que encontra sua expressão

mais acabada na Questão dos Bispos838. Ginsburg soube tirar proveito dessa

tendência, sobretudo no estado do Rio onde as posições anticatólicas eram mais

evidentes. Em Pernambuco, ao contrário, a conjuntura política não o favoreceu,

ao menos nos seus primeiros tempos quando a reação encontrou apoio no

governo estadual839. Embora não seja possível dizer se foi por esse motivo que

Ginsburg radicalizou em sua pregação anticatólica naquele estado a ponto de

provocar reações adversas e violentas, conforme destacadas por Léonard, é fato

inegável, porém, que seu discurso contribuiu fortemente para isso. Por fim,

lembremos ainda o papel mais específico dos missionários batistas oriundos dos

EUA, bem como do ambiente em que estes foram formados e que tinha como

características o exclusivismo denominacional (que no caso batista era

personificado no landmarquismo), o racismo, o conservadorismo e o

anticatolicismo. Ginsburg recebe essas influências por meio de missionários

formados em instituições de ensino sulistas que reproduzem o modo de ser e

pensar do contexto eclesial batista, como Willian Entzminger e W. Sheppard. Ele

é, em síntese, um produto dessa conjuntura. O maçonismo que também

encontra ressonância entre outros missionários protestantes, particularmente

837 REILY Duncan Alexander, ob cit., p. 227. 838 VIEIRA David Gueiros, op cit, p. 374 – 375. Vieira destaca o ano de 1872 como o ponto de

partida do que ela chama de “campanha anti-Roma”, isto é, a mobilização de liberais e maçons contra a

Igreja Católica depois que o episcopado suspende de suas ordens o padre José Luiz de Almeida Martins,

por sua notória vinculação à Maçonaria. Ainda conforme Vieira, a união dos protestantes à facção liberal-

maçônica foi toda baseada na crença de que com a crise desencadeada com a Questão dos Bispos se daria

muito em breve a separação entre a Igreja e o Estado, o que não se sucedeu. Ver op cit, p. 375. 839 TARSIER Pedro, op cit, I, p. 177 – 178.

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presbiterianos e batistas (conforme explicitado por Crabtree840, John Mein841 e,

principalmente, pelo próprio Ginsburg) igualmente favorece a formação e

consolidação desse discurso anticatólico. Infelizmente Ginsburg não deixa claro

em seu relato se a sua adesão à Maçonaria se deu antes de sua chegada ao

Brasil ou durante os anos que viveu no país. Mas, por outro lado, revela em todo

itinerário de sua missão que o apoio da Irmandade foi fundamental para que ele

pudesse percorrer o país e enfrentar a hostilidades dos padres seculares e de

elementos encastelados na justiça e na polícia ou de políticos que tinham

simpatias pelo clero católico.

As relações sociais que Ginsburg estabeleceu no Brasil revelam muito do

tipo de estratégia missionária do nosso personagem. Sua preocupação em

alcançar as “famílias ilustres” das regiões por onde ele passava decorrem em

parte da própria imposição de um país onde oitenta por cento da população não

saber ler e escrever o que impunha o trabalho de levar a Bíblia justamente

àqueles segmentos letrados que constituíam também as camadas privilegiadas

da sociedade. Por outro lado, porém, há ainda um propósito de se usar essas

relações como meio de acesso a determinados lugares a fim de se evitar reações

violentas por parte do clero católico secular e assegurar, desse modo, a

liberdade de movimento que o missionário precisava, além do que, por meio

desse processo de conversão das elites dirigentes, se esperava também

conquistar as camadas mais baixas da sociedade. Essa estratégia de

evangelização “das cimalhas para a base”, também está na práxis missionista

estabelecida na Conferência do Panamá como destacada por Luiz Longuini

Neto: a conversão das nações latino-americanas passava pela conversão de

suas elites842.

Diante de tudo isso, podemos afirmar que Ginsburg foi um missionário

que seguiu a prática eclesial do protestantismo de sua época e a reproduziu no

seu trabalho de fundação de igrejas, notadamente nos estados do Rio de Janeiro

e de Pernambuco, bem como na constituição do STBNB do Recife. Ao se manter

adstrito a essa conformação, Ginsburg mostra que está em rota de aproximação

840 CRABTREE A.R; op cit, I, p. 47 – 48. 841 MEIN John, op cit, p. 28. 842 NETO Luiz Longuini, op cit, p. 97.

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com outros missionários de diferentes denominações, ainda que suas posições

landmarquistas não lhe deixem estreitar maiores laços de colaboração e diálogo

com os representantes das igrejas que praticam o batismo infantil. Por outro lado,

contudo, é inegável que também a realidade brasileira acabou, de certa forma,

influenciando sua atividade missionária, forçando-o a um permanente jogo de

acomodações, negociações e transigências que tem sua expressão mais

acabada na “aquisição” de Curindiba de Carvalho, com todo o seu histórico de

violências e associação com o mandonismo político do norte fluminense, bem

como no rumoroso episódio com o juiz de Direito de Bom jardim, na zona da

mata norte de Pernambuco. Mesmo se considerando o mau juizo que se formou

na América do Norte e na Europa acerca das características morais coletivas da

sociedade latino-americana em geral e brasileira em particular, motivada

principalmente por conta do racismo inerente no discurso missionista dessa

época843, e conforme expressa por missionários como Lucy Guinness e Robert

Speer e que Ginsburg também repete em seu relato, é fato de que as suas

mediações junto com os diferentes extratos da sociedade brasileira do período

inicial da República demonstra que ele, senão relevou, ao menos demonstrou a

possibilidade de ser flexível em sua intransigência confessional, ao admitir

concessões a esses grupos como forma de assegurar o desenvolvimento do seu

trabalho missionário regular.

As relações sociais estabelecidas por Ginsburg são, portanto,

principalmente, relações de poder. Contudo, essas relações, a exemplo

daquelas cultivadas por Simonton e Kalley, não foram além do interesse mais

imediato e não produziram consequências duradouras no âmbito da História

Social Brasileira, ao menos do ponto de vista de se estabelecerem como regras

institucionais, ou até mesmo da História do Protestantismo Brasileiro. Pelo

contrário: a partir dos anos 20 a Igreja Católica volta a exercer forte influência

sobre as altas rodas paulistanas e cariocas primeiro através do Centro Dom Vital

e do Apostolado Leigo, e depois, por meio dos congressos eucarísticos e das

universidades católicas. Em resumo, o projeto inicial de uma reforma moral da

sociedade brasileira baseado na educação e em um amplo proselitismo foi a

debalde na medida em que as denominações protestantes todas foram se

843 PIEDRA Arturo, op cit, I, p. 50 – 52.

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ajustando em seu processo de adaptação a um Estado infenso a mudanças, ou

pelo menos de mudanças que fossem além daquelas adstritas às periferias.

Essa postura coincide com a dinâmica das relações institucionais exercidas pela

denominação batista em seu processo de inserção dentro da sociedade

brasileira, dialogando com elementos que representavam os grupos dominantes,

reproduzindo suas práticas ou buscando a incorporação desses indivíduos

através de iniciativas educacionais. Com isso conquistou-se o espaço de

atuação dentro da sociedade, mas perdeu-se definitivamente a possibilidade de

se exercer uma influência efetivamente evangélica dentro desses mesmos

extratos sociais, algo que, aliás, como já vimos, também Émile Léonard havia

percebido nos anos 50844.

Ginsburg coloca-se como um missionário conversionista. Seu proselitismo

não tem quaisquer preocupações reformistas. Diferente de John James Ramson

ele se recusa a toda e qualquer forma de negociação ou mediação, nem está

preocupado com projetos de reforma social como Hugh Clarence Tucker,

Eduardo Carlos Pereira ou Erasmo Braga. Seu proselitismo é mais radical do

que o de Kalley e Simonton em parte por conta da liberdade de culto assegurada

pelo regime republicano e em parte pelas antipatias que nutre pela Igreja

Católica cujas origens podem ser encontradas desde sua primeira infância na

Polônia. Proselitismo e anticatolicismo são a chave para entender a dinâmica do

seu ministério de pregação, uma está ligada a outra, e de fato, uma se nutre da

outra.

Nisso se nota também que Ginsburg assume um padrão de evangelização

com a qual o Protestantismo Brasileiro se conformou: a conversão da sociedade

implicava imediatamente na transformação do país com a supressão dos antigos

valores moldados pelo Catolicismo em detrimento da nova visão de mundo

protestante, apresentada como mais progressista, mais “moderna”, o que

também não é algo propriamente seu, mas está na prática institucional do

missionismo de matriz anglo-saxônica e particularmente norte-americana dos

séculos XIX e XX845. O que não se contava era com a possibilidade de o próprio

Protestantismo não conseguir realizar essa operação, mesmo com a laicização

844 LÉONARD Émile G, op cit, p. 148. 845 PIEDRA Arturo, op cit, I, p. 51 – 52.

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da sociedade, colocando-se, como percebeu Gouvêia de Mendonça, numa

situação de insularidade em relação aos demais grupos religiosos e ainda

também quanto a configuração social estabelecida nos estágios iniciais da

formação social brasileira. A sua relação de proximidade com a cultura de matriz

anglo-saxônica, particularmente a norte-americana e, ao mesmo tempo, sua

atitude de “confronto com a cultura brasileira”846, mas sem excluir possibilidades

de ajuste e acomodação como Ginsburg demonstrou em Macaé e Bom Jardim,

explicam a evolução subsequente do protestantismo de missão brasileiro. A

“cordialidade” brasileira suplantou o discurso individualista do protestantismo

missionário enquadrando as igrejas dentro de uma relação com o poder no qual

este último não só não é por ele influenciado, mas ao próprio protestantismo de

missão vem influenciar por meio de processos de acomodação e ajuste com as

instâncias e os grupos inseridos no poder. De fato, o conflito do Protestantismo

com a cultura brasileira, como percebido por Gouveia de Mendonça, não é, de

forma alguma, o conflito do Protestantismo com a estrutura social brasileira, e

tanto assim que as iniciativas reformistas, como as de Erasmo Braga nos anos

30 ou os grandes manifestos sociais como a declaração da IPB sobre a questão

social, de 1962, ou o Manifesto dos Ministros Batistas, de 1963847 são fatos

excepcionais. Um século depois de sua inserção no Brasil, o protestantismo

missionário estava adaptado e acomodado dentro do seu espaço social, como

lembra o deputado mineiro Paulo Freire (nenhum parentesco com o educador)

pastor da IPB, por ocasião do centenário da sua denominação, em 1959:

As minorias religiosas no Brasil conquistaram a posição de respeito, admiração e

acatamento que hoje desfrutam, à custa da fidelidade de suas testemunhas. Com

tenacidade, convicção e heroísmo, conseguiram romper o cerco que lhes queriam impor,

e hoje podem apresentar à pátria os frutos dessa abnegação e desse sacrifício. (...) verifica-

se (...) que os próprios membros do Congresso Nacional são alcançados nas suas lides

políticas pela influência desses bons cidadãos brasileiros que professam a fé reformada

(...). Acabou-se o tempo, no Brasil, que ser protestante era ser demônio. Hoje gozamos

da amizade, do respeito e da admiração de todos os homens de bem em nosso país. O

846 MENDONÇA Antonio Gouvêia de. FILHO Prócoro Velasquez, op cit, p. 25. 847 CADERNOS DO ISER, op cit, p. 34 – 38.

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próprio governo não pode esquecer que já conta o país com cerca de 4.000.000 de

protestantes entre fiéis e congregações848.

O protestantismo havia conquistado seu espaço de respeitabilidade e

visibilidade social, como também deixa enfatizado o lacônico testemunho do

citado pastor João Dias de Araújo, que escreve nos anos 70: “gostaria de

reafirmar que as relações entre as Igrejas Evangélicas e o atual governo (regime

militar) são as melhores possíveis. As igrejas são verdadeiras aliadas do

Governo, mesmo aquelas que são indiferentes e apáticas aos aspectos políticos

da vida brasileira”849.

Também foi possível notar que, não obstante a situação de quase total

insularidade do meio batista em relação às demais igrejas protestantes naquele

momento histórico, ela reproduziu, através da atividade missionária, o discurso

das agências denominacionais e sociedades bíblicas norte-americanas

enfocado na premissa da superioridade da sociedade anglo-saxônica modelada

pelo cristianismo protestante e eurocêntrico em relação ao mundo latino-

americano e católico. A narrativa de Salomão Ginsburg confirma que sua

preocupação não estava em promover reformas sociais, mas exclusivamente em

converter moralmente uma sociedade ao qual se atribuíam deformidades morais,

embora isso não impedisse o Protestantismo Brasileiro e o batista em particular,

de absorver essas mesmas “deformidades”, adaptando-se assim às relações de

poder e mesmo até reproduzindo o próprio discursos delas dentro de um amplo

processo de acomodação dentro das estruturas de poder oficiais.

São Paulo, abril – julho de 2017.

Edson Douglas de Oliveira.

848 FREIRE Paulo. 1º Centenário da Igreja Presbiteriana do Brasil, p. 5. 849 ARAUJO João Dias de, CADERNOS DO ISER, op cit, p. 31.

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